MARCAS DA IDENTIDADE DOCENTE: VIVÊNCIA, FORMAÇÃO E PROFISSÃO · faculdade de educaÇÃo...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO BRASILEIRA
FABRÍCIO DE SOUSA SAMPAIO
MARCAS DA IDENTIDADE DOCENTE: VIVÊNCIA, FORMAÇÃO
E PROFISSÃO
FORTALEZA/CE
2010
FABRÍCIO DE SOUSA SAMPAIO
MARCAS DA IDENTIDADE DOCENTE: VIVÊNCIA, FORMAÇÃO
E PROFISSÃO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará para obtenção do título de Mestre sob a orientação da Profa Dra. Silvia Elizabeth Moraes.
FORTALEZA/CE
2010
“Lecturis salutem”
Ficha Catalográfica elaborada por Telma Regina Abreu Camboim – Bibliotecária – CRB-3/593 [email protected] Biblioteca de Ciências Humanas – UFC
S183m Sampaio, Fabrício de Sousa.
Marcas da identidade docente [manuscrito] : vivência, formação e
profissão / por Fabrício de Sousa Sampaio. – 2010.
210f. ; 31 cm.
Cópia de computador (printout(s)).
Dissertação(Mestrado) – Universidade Federal do Ceará,Faculdade
de Educação,Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira,
Fortaleza(CE),30/08/2010.
Orientação: Profª. Drª. Silvia Elizabeth Moraes.
Inclui bibliografia.
1-PROFESSORES DE ENSINO MÉDIO – SOBRAL(CE) – ATITUDES.
2-PROFESSORES DE ENSINO MÉDIO – FORMAÇÃO – SOBRAL(CE).3-ESCOLA
ESTADUAL DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL DOM WALFRIDO TEIXEIRA
VIEIRA. I-Moraes,Silvia Elizabeth, orientador.II.Universidade Federal do Ceará.
Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira.III-Título.
CDD(22ª ed.) 373.07108131
89/10
FABRÍCIO DE SOUSA SAMPAIO
MARCAS DA IDENTIDADE DOCENTE: VIVÊNCIA, FORMAÇÃO
E PROFISSÃO
Esta dissertação foi julgada adequada à obtenção do título de
mestre em Educação e aprovada em sua forma final pelo
Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da
Universidade Federal do Ceará- UFC.
Fortaleza, 30 de Agosto de 2010.
__________________________________________________
Profa e Orientadora Dra. Silvia Elizabeth Moraes
Universidade Federal do Ceará- UFC
__________________________________________________
Profa. Dra. Adriana Campani
Universidade Estadual Vale do Acaraú- UVA
__________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Botelho Albuquerque
Universidade Federal do Ceará - UFC
Dedico carinhosamente este trabalho a todos os
professores-sujeitos da pesquisa como também aos
trabalhadores da educação e em especial a minha
orientadora Silvia Elizabeth e logicamente a minha
família- marcadora identitária por excelência.
AGRADECIMENTOS
De início a Deus, o nome mais utilizado para presentificar algo que dá sentido a nossa existência e que possibilitou realizar este curso.
Ao meu pai, que conseguiu marcar minha identidade ao ponto de me assemelhar tanto ao seu indescritível caráter e humanidade, é claro com as devidas ressignificações.
A minha rainha-mãe que juntamente com as marcações paternas contribuiu para a formação do meu “núcleo identitário”.
A minha indescritível orientadora Profa. Silvia Elizabeth que humanamente e pacientemente deixava suas marcas de sabedoria e rigor científico em meu pensar e fazer ciência.
Ao CNPQ que possibilitou o financiamento e a concentração nos estudos.
A todos os professores do Programa de Pós-graduação que de forma ou de outra me marcaram. Uns para eu continuar criticando e reconstruindo o pensamento radical e outros para eu compreender as outras visões da educação brasileira numa perspectiva mais moderada.
Ao núcleo gestor da EEEP Dom Walfrido Teixeira Vieira de Sobral-CE, por ter deixado a total liberdade de acesso e permanência em todos os espaços de convivência docente.
Aos meus queridos sujeitos da pesquisa que deixaram que eu adentrasse em seus locais de marcação identitária e permitiram a utilização de suas falas como comprovações de suas marcas e ressignificações.
Ao excelentíssimo governador do Estado do Ceará através da Secretaria da Educação do Estado por ter concedido o meu afastamento das funções docentes a fim de me dedicar à conclusão do curso.
Ao meu paciente amigo, acadêmico de uma licenciatura, que muitas vezes me ajudou a entender as minhas próprias inquietações e de certa maneira se transformou numa espécie de “sujeito da pesquisa permanente”.
Tem coisa melhor do que você ensinar, por que você tá sempre aprendendo e nós enquanto seres independentes da profissão que seja tem essa ânsia, esse desejo de aprender, até pra crescer pessoalmente, profissionalmente em todos os cantos, enquanto a gente taá aprendendo a gente tá nascendo, a gente tá se sentindo vivo, a gente tá se sentindo útil, a gente tá se sentindo melhor, então é uma necessidade, uma das necessidades humanas básicas é o saber, é o conhecimento, é o conhecer, então cada vez que você ensina você aprende muito mais do que o que você ensinou, é isso (Professora Florbela, encerrando sua entrevista).
RESUMO
A investigação que se segue objetiva analisar as marcas determinantes no processo de formação e desenvolvimento da identidade docente, marcas essas que constituem os elementos do fogo cruzado inviabilizador da ação docente emancipatória. As metáforas utilizadas - fogo cruzado e marcas – referem-se aos efeitos, aprendizagens, sinais e impressões sentidas pelo docente no percurso de sua vida pessoal e profissional que acabam por impedir a formação da identidade docente emancipatória. Utilizou-se a metodologia do estudo de caso do tipo etnográfico tendo os Estudos Culturais como lente para enxergar a “identidade-na-cultura”. Além das entrevistas abertas e semi-estruturadas, fragmentos de histórias de vida e diálogos informais, foi realizada a observação participante para compreender as motivações, conflitos, perspectivas, aceitações e sentidos dos docentes acerca dos seus processos de construção identitária. O olhar teórico sobre a identidade humana baseou-se fundamentalmente nos trabalhos de Bauman (1998, 2005, 2007), Woodward (2008), Hall (2006) e Ciampa (2008). Na elucidação do contexto cultural, foram utilizados os teóricos Gentili (2008), Torres (2008), Suárez (2008) e Bauman. A Escola Estadual de Ensino Profissionalizante Dom Walfrido Teixeira Vieira foi o campo de pesquisa escolhido por ser a primeira escola profissionalizante na cidade de Sobral e por deter, frente à comunidade sobralense, uma excelente imagem no tocante à efetivação do processo ensino-aprendizagem de qualidade. Os sujeitos da pesquisa foram dezesseis professores dos quais seis participaram das entrevistas. Os locais de observação foram os planejamentos mensais, intervalos para o lanche, encontros de área e de formação continuada na 6ª CREDE (Coordenadoria Regional de Desenvolvimento da Educação). Concluiu-se que a identidade docente dos professores estudados permanece em crise e uma saída ou atitude que se nos apresenta é a identidadedemito – reposição da identidade da mesmice ou a identidade de palimpsesto - predisposta a ser reescrita ou readaptada ao calor das exigências do meio cultural, numa reação à impossibilidade de concretização das identidades de preferência.
Palavras-chave: Marcas identitárias. Identidade docente. Fogo cruzado.
ABSTRACT
The research aims to analyze the marks that determine the formation and development of teacher identity. These marks constitute the elements of the crossfire which blocks an emancipatory teaching action. The metaphors used - crossfire and marks - refer to effects, learning, signs and impressions experienced by teachers in the course of their personal and professional life that eventually prevent the formation of an emancipatory identity. We used the methodology of ethnographic case study and the Cultural Studies were taken as a lens to see the "identity-in-culture." Besides the open and semi-structured interviews, fragments of life stories and informal conversations, a participant observation was conducted to understand the motivations, conflicts, perspectives, acceptances and directions of teachers about their identity construction processes. The look on human identity theory was based primarily on the works of Bauman (1998, 2005, 2007), Woodward (2008), Hall (2006) and Ciampa (2008). To explain the cultural context of human identification, we used Gentili (2008), Torres (2008), Suarez (2008) and Bauman. The State School of Vocational Education Dom Walfrido Teixeira Vieira was chosen as the research field because it is the first professional school in the city of Sobral and because it has an excellent image in the eyes of the sobralense for its teaching-learning effectiveness. The research subjects were sixteen teachers of whom six participated in the interviews. The loci of observation were the monthly planning sessions, lunch intervals, area and continuing education meetings in the 6th CREDE (Regional Centre for Educational Development). It was concluded that the identity of the teachers who participated in the study remains in crisis and the way out or attitude that is left for teachers is the myth-identity or the identity of palimpsest, a reaction to the impossibility of achieving the identities of their preference.
Keywords: Identity marks. Teaching identity. Crossfire.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................11
JUSTIFICATIVAS DE TEMA E METODOLOGIA...............................................................15
CAMPO E SUJEITOS DEFINIDOS....................................................................................... 19
O OLHAR TEÓRICO SOBRE A IDENTIDADE E SUAS MARCAS DE CONSTITUIÇÃO.................................................................................................................... 20
O PERCURSO DA PESQUISA RESUMIDO EM BREVES TÓPICOS............................... 24
1. SOCIEDADE LÍQUIDA, NEOLIBERALISMO E DOCÊNCIA .................................. 26
1.1. MUNDO LÍQUIDO.......................................................................................................... 26
1.2- A SEGUNDA ORDEM: O NEOLIBERALISMO EM EDUCAÇÃO COMO RECICLADOR DA IDENTIDADE DOCENTE.................................................................... 34
1.3- A PROFISSÃO DOCENTE............................................................................................. 44
2- ESCOLA, DOCÊNCIA, FOGO CRUZADO E MARCAS DA IDENT IDADE ........... 51
2.1-ESCOLA, FUNDAMENTOS EDUCACIONAIS E OS EDUCADORES ...................... 51
2.2- DOCÊNCIA E FOGO CRUZADO.................................................................................. 54
2.3- MARCAS IDENTITÁRIAS............................................................................................. 65
3- O PALCO DA PESQUISA OU O PRINCIPAL MARCADOR DA I DENTIDADE
PROFISSIONAL DOCENTE ............................................................................................... 71
3.1- PROCENTRO...................................................................................................................75
3.2- TESE: Uma filosofia de gestão ........................................................................................ 79
4- SOBRE A IDENTIDADE ................................................................................................. 90
4.1-EM BUSCA DE ESCLARECIMENTOS: A CONTRIBUIÇÃO DOS ESTUDOS
CULTURAIS, DA SOCIOLOGIA E DA PSICOLOGIA SOCIAL........................................ 90
4.2- REALCE ÀS MARCAS IDENTITÁRIAS NAS PRODUÇÕES CIENTÍFICAS......... 101
5- AS MARCAS QUE CONSTROEM E/OU RECONSTROEM O SER DOCENTE...115
5.1-MARCAS DA PROFISSÃO........................................................................................... 116
5.1.1- Marcas discentes.......................................................................................................... 133
5.2- MARCAS INSTITUCIONAIS....................................................................................... 141
5.2.1- Currículo e identidade: relação indissociável...............................................................143
5.2.2- Marcas escolares ou dos tempos da escola básica...................................................... 145
5.2.3- Marcas da formação acadêmica................................................................................... 151
5.2.4 - Marcas das políticas educacionais ou das agências contratantes................................159
5.2.4.1- Alinhamento..............................................................................................................174
5.2.4.2- Formações continuadas ............................................................................................ 188
5.3- FOGO CRUZADO........................................................................................................ 191
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 201
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 210
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INTRODUÇÃO
A educação para Freire (2007) é um processo de conhecimento que leva à
conscientização da sociedade e sua libertação da opressão. Sua pedagogia se preocupa com a
mudança de uma sociedade de oprimidos para uma sociedade de iguais. O papel do educador
não é só a conscientização limitada ao espaço escolar, mas também a conscientização da
massa. Numa sociedade capitalista classista, o sentido da educação, conforme o autor é lutar
contra a ordem conservadora, ou melhor, subvertê-la. Eis aqui não só a concepção de
educação que permeia todo o trabalho de pesquisa como também a função dos educadores
esperada neste processo educativo específico.
A ação emancipatória é tributária de um “trabalhador social que opte pela mudança”
objetivando a superação da estrutura social, que é uma totalidade, por uma nova. O papel
deste trabalhador é fazer com que o fatalismo resultante de uma percepção ingênua da
realidade ceda lugar à “esperança crítica que move os homens para a transformação”
(FREIRE, 2007, p.51).
Seguindo a reflexão de que o predicado emancipador seja indispensável para qualquer
educador que esteja inserido na educação pública de uma massa de indivíduos dominados por
um sistema de exploração e alienação capitalista, é preciso saber se este “trabalhador social
que opte pela mudança” esteja mesmo comprometido ativamente com a transformação social.
E defenda a emancipação humana, resultado de uma reestruturação social, indubitavelmente,
não somente nos seus discursos ou abstrações mais profundas, mas no exercício mobilizador e
conscientizador diário do seu magistério.
Os trabalhadores sociais que optaram pela mudança deveriam inicialmente se libertar
da ilusão de que a atual sociedade capitalista promoverá a emancipação humana ou melhor
que as políticas educacionais neoliberais facilitarão ou estimularão tal processo. Conscientes
desta realidade, eles poderão ficar mais imunes às inúmeras estratégias tanto discursivas
quanto políticas das ofensivas capitalistas no terreno da educação pública como também serão
objetos mais fáceis para a emergência de um de pensamento livre e crítico socialmente e
consequentemente se tornarão mais criativos na busca por novas ações docentes para
efetivação de uma educação emancipatória.
Durante a pesquisa exploratória de caráter delimitador do objeto no início de 2007 na
escola de ensino médio Liceu Dom Walfrido Teixeira Vieira, constatou-se que a ação
emancipatória descrita acima não era percebida facilmente por uma parcela significativa dos
professores daquela escola que objetivava pedagogicamente, apenas, que os alunos pudessem
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ter um razoável ensino preparatório para passar no vestibular da Universidade Estadual Vale
do Acaraú – UVA. A emancipação humana como um fenômeno de libertação de pensamento,
de ação e das explorações sofridas pela enorme quantidade de cidadãos que não fazem parte
dos grupos de indivíduos dominantes, não era nem cogitado por muitos professores da escola.
Sendo assim, uma inquietação tornou-se preponderante: se a educação é para conscientizar e
libertar, conforme o mestre Paulo Freire preconizava, quais os obstáculos então impedem ou
dificultam a emergência deste tipo de ação emancipatória docente, ou melhor, por que os
professores da escola pública não trabalham focando a mudança social? Será que a formação
acadêmica não fomenta uma identidade profissional emancipatória ou os professores
enfrentam os mais variados obstáculos que impossibilitam não somente a prática de tal tipo de
ação como também até a própria esperança e luta para que ela se efetive? É pretendendo
identificar e compreender estes obstáculos que se justifica esta pesquisa como também a
utilização das metáforas do fogo cruzado e das marcas identitárias da docência.
Ainda durante a fase exploratória, os professores, quando interpelados sobre sua ação
pedagógica, finalidade no ensino e na educação e as condições reais de trabalho, eles iam
elencando diversas dificuldades e impedimentos que marcavam a sua ação ao ponto de
modificá-la, facilitá-la ou até comprometê-la no que se refere às destinações preferidas do ato
educativo como um todo. Estes inúmeros fatores foram se repetindo e possibilitando a
construção da metáfora “fogo cruzado”. Desta fase extraímos a seguinte constatação: em
muitos professores ainda há uma esperança e uma vontade de agir em prol da emancipação,
mas não conseguem porque estão jogados neste “fogo” aprisionador da ação e do pensamento
individual e profissional dos docentes.
Esta metáfora se constituiu no principal recurso analógico da pesquisa a fim de
entender as razões que impedem a ação docente emancipatória, como também, os motivos que
fragmentam ou indeterminam suas identidades, consideradas aqui como balizadoras no
processo de comprometimento com a mudança social. Os fatores que constituem o “fogo
cruzado” foram agrupados em quatro realidades específicas, porém interligadas: o sistema
social e educacional como um todo; a unidade escolar como espaço mais delimitado de
marcação; as preferências docentes com relação ao que se refere ao seu trabalho e as
possibilidades de concretizá-las, ou seja, sua subjetividade e identidade; e os interesses
discentes, ou melhor, a subjetividade dos alunos no tocante ao processo de ensino-
aprendizagem engendrado por determinado professor. Esses quatro fatores freqüentemente
vão cruzando, “ateando” fogo na identidade docente e deixando marcas pelas quais concorrem
ou não para redefinição da própria identidade docente.
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É óbvio que o “fogo cruzado” de certa maneira faz parte da própria situação do
magistério em si, visto que o professor da educação formal não é um profissional totalmente
livre de pensamento e de ação, ele deve dar satisfação às políticas educacionais e a escola que
o contrata. Sendo assim, inicialmente suas preferências já vão de certa forma ser avaliadas,
pelas condições reais de trabalho. E por último, o professor sempre estará direcionando o seu
ensino, seja de que tipo for para um conjunto variado de subjetividades discentes, e no caso
brasileiro, este conjunto aumenta, haja vista que aqui as salas variam de trinta a cinqüenta
alunos. Entretanto, num contexto de crise educacional mais visível atualmente no Brasil e
tomando como referência a educação como instrumento de libertação, a metáfora se torna
crucial para entender melhor o real contexto de marcação da identidade docente a fim de
compreender não só algumas causas desta crise como também alternativas de minimização de
determinadas especificidades deste “fogo” a fim de possibilitar uma prática docente
emancipatória.
O fogo cruzado, expressão comumente utilizada como o cruzamento de tiros em várias
direções, foi usado nesta pesquisa como o cruzamento de vários fatores – labaredas – que
produzem marcas na identidade docente que ora poderão fragmentá-la ora fortalecê-la. As
marcas foram o recurso analógico empregado para se pensar nos efeitos, aprendizagens e
reações dos professores ao sentirem as “queimações” em sua identidade diante da “fogueira”
estabelecida pelo cruzamento destes quatro grandes fatores os quais vão constituindo a
identidade docente num processo constante de articulação e ressignificação. O termo
ressignificação aqui está se referindo ao processo de dar ou atribuir outro significado a uma
palavra, um objeto, um espaço qualquer, uma relação social, uma manifestação cultural e no
caso específico a uma determinada marca sentida. O resultado da impressão das marcas
dependerá do contexto sócio-cultural em que elas serão impressas na subjetividade de cada ser
humano e de seu momento pessoal específico. Por esse motivo que é de fundamental
importância refletir sobre o contexto cultural mais amplo como também o local em que estão
inseridos os sujeitos-professores da pesquisa.
A pesquisa exploratória e a revisão de literatura possibilitaram a construção das
marcas identitárias como categorias de análise da identidade docente. Elas foram classificadas
como marcas da experiência de vida, da profissão e institucionais - escolares, da formação e
das políticas educacionais.
É analisando as marcas identitárias – objeto da pesquisa – determinantes no processo
de formação e desenvolvimento da identidade docente, objetivo principal da pesquisa, que são
conseqüências do relacionamento docente com os quatro grandes fatores constituintes do fogo
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cruzado, é que será possível reconhecer as realidades que impedem a ação docente
emancipatória. A identificação e a compreensão destas marcas como também os processos
subjetivos de ressignificação delas constituíram os objetivos específicos da pesquisa.
As marcas detêm, tal como a identidade humana, o caráter de contingência e de
construção inacabada (WOODWARD, 2008). Em dado momento, por exemplo, a postura
inflexível, autoritária e displicente de certo professor da educação básica pode ser traumática
para determinado aluno que já tinha algumas dificuldades na disciplina ministrada por este
profissional. Entretanto, noutro momento, na universidade talvez, essa marca pode adquirir
caráter impulsionador na escolha do magistério. Mas este aluno se identificará com uma
postura totalmente avessa a qual repugnara no passado.
Investigar estas marcas que influenciam a identidade e, portanto o posicionamento
docente frente ao mundo e à educação, adquire uma importância vital para compreender as
peculiaridades do agir e pensar docente numa tentativa de identificar os sentimentos
emancipatórios educacionais que existem ou ainda estão em formação na subjetividade
professoral.
O fogo cruzado em que se encontra a maioria dos docentes brasileiros é um grande
causador do desestímulo e apatia destes profissionais no exercício de suas funções, como
também um dos agentes essenciais no acirramento da crise de identidade que aflige o
professor da educação básica pública. Tal fogo se instaura exclusivamente quando os
professores se depararam com uma realidade cruelmente contraditória e enfraquecedora de
seus sentimentos identitários mais proeminentes – utopias, planos otimistas, sonhos de
transformação da realidade ou tentativas de concretização das predicações de preferência:
alegria pelo ato de ensinar alguém; crença vocacional; autonomia; compromisso,
reconhecimento social e responsabilidade pelo ofício e pelo futuro da sociedade.
Neste sentido é extremamente importante pensar sobre o processo de formação do
profissional da educação que ao assumir o magistério irá concomitantemente ser jogado neste
fogo cruzado, como também é de suma necessidade perceber como se constitui a identidade
docente no enfrentamento diário desta realidade humana e, muitas vezes desumana e
específica dos trabalhadores-docentes da educação, por causa da desvalorização dos
professores, comparada a importância que o trabalho docente possui. Este último aspecto se
constitui no ponto de partida escolhido pela pesquisa em foco.
Os estudos sobre a formação de professores têm deixado brechas para um
aprofundamento teórico da pessoa professor, do profissional professor (THIVES, 2007,
p.276) que possui uma subjetividade a ser contestada, negociada ou ressignificada frente às
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inúmeras vozes sociais, culturais e históricas. Analisar a constituição deste professor-pessoa
dotado de reflexividade e individualidade ao mesmo tempo em que ocupa posições de sujeito
social carregadas de valores, normas, tradições e comportamentos legítimos no âmbito
cultural pode possibilitar o preenchimento de algumas brechas destes estudos.
Justificativas de tema e metodologia
A escolha do objetivo de pesquisa está relacionada à experiência de observação do
cotidiano dos professores da escola – EEEP Dom Walfrido Teixeira Vieira em Sobral-Ceará,
antigo Liceu de Sobral. A definição do objeto surgiu das inúmeras vezes que, em conversas e
discussões entre os professores, o assunto vinha à tona: as motivações, as imagens sobre o
ofício, as influências dos antigos professores, o papel da formação, as dificuldades e os
problemas do magistério, como também o compromisso com a missão educativa defendida
por alguns frente a todas as adversidades do ser professor atualmente.
Nestas conversas percebemos que na definição do seu ser professoral havia alguns
aspectos que se sobressaiam em detrimento a outros em cada um dos professores observados
durante os planejamentos escolares, intervalos diários e reuniões de formação continuada
realizados pela 6ª CREDE – Coordenadoria Regional de Desenvolvimento da Educação. Estes
aspectos foram chamados de “marcas” e depois foram agrupados em grandes fatores que se
cruzavam e constituíam o que estamos chamando “fogo cruzado” da docência.
O enfoque qualitativo foi escolhido na presente pesquisa por oferecer possibilidades
de captar as significações individuais docentes sobre os processos vividos. Foi um estudo de
caso do tipo etnográfico na tentativa de atender ao apelo de McRobbie (1995) que sustenta a
prerrogativa de que se discutir a identidade na sua real existência no sentido etnográfico e não
apenas textualmente ou discursivamente, apontado pela autora como um dos problemas dos
Estudos Culturais neste campo.
A legitimidade do “conteúdo” do “falar de si” almejado pelas entrevistas ou
depoimentos é sempre escorregadia pelo fato de que o sujeito precisa de confiança, segurança,
vontade e sentido para falar. Além disso, o “discurso sobre si” poderá estar revestido ou
camuflado de uma rede complicada de informações que podem funcionar como um
mecanismo utilizado pelo sujeito que fala para dificultar a compreensão dos genuínos sentidos
pretendidos e das configurações das ações praticadas. Por conta disto se justifica a utilização,
além das entrevistas abertas e semi-estruturadas, fragmentos de histórias de vida e diálogos
informais, a observação participante como uma técnica etnográfica necessária para
“conceptualizar a identidade-na-cultura” e na sua “qualidade interativa relacional na vida
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cotidiana” a fim de compreender as motivações, perspectivas, conflitos, aceitações, sentidos e
negações dos docentes acerca dos seus processos de construção identitária. Este procedimento
metodológico teve como ponto de partida a noção de que “a identidade se torna submersa na
vida cotidiana e indistinguível dela, em toda a sua contingência e com toda a sua
especificidade histórica” (p.59). Neste sentido o cotidiano escolar e de aglomeração dos
professores como reuniões, planejamentos e formações constituíram nos espaços decisivos de
se analisar as marcas da identidade, pois eles são locais privilegiados de marcação da mesma.
O estudo de caso etnográfico se caracteriza por ser uma adaptação da etnografia ao
estudo de um caso educacional. Ele é reconhecido por seu caráter de busca de um
conhecimento, em profundidade, de um fenômeno particular em seu contexto e complexidade
e atender ao princípio básico da etnografia que é a relativização a qual requer os movimentos
de estranhamento e observação participante a fim de retratar “situações da vida real, sem
prejuízo de sua complexidade e de sua dinâmica natural” (ANDRÉ, 2005, p.34).
O estranhamento é “um esforço deliberado de distanciamento da situação investigada
para tentar apreender os modos de pensar, sentir, agir, os valores, as crenças, os costumes, as
práticas e produções culturais dos sujeitos ou grupos estudados”. É tornar o estranho familiar
e/ou tornar o familiar em estranho na perspectiva defendida pelo antropólogo Da Matta
(1978). Na observação participante, o pesquisador “tem sempre um grau de interação com a
situação estudada, afetando-a e sendo afetado. Isso implica uma atitude de constante
vigilância, por parte do pesquisador, para não impor seus pontos de vista, crenças e
preconceitos” (ibid, p.26). Como neste tipo de estudo de caso é necessário atender às
características da etnografia, a mesma autora aponta outras características importantes desta
prática de pesquisa, tais como: o contato direto por certo período de tempo do pesquisador
com as pessoas por meio de conversas, entrevistas e enquetes; o trabalho de campo que está
associado a uma prática de registro descritivo e interpretativo das pessoas, eventos, situações,
opiniões e falas dos sujeitos no diário de campo; e o pesquisador como o principal
instrumento na coleta e análise dos dados, abrindo uma possibilidade para “manter um
esquema aberto e flexível que permita rever os pontos críticos da pesquisa, localizar novos
sujeitos, se necessário, incluir novos instrumentos e novas técnicas de coleta de dados,
aprofundar certas questões ainda durante o desenrolar do trabalho” (ibid, p.28).
A grande limitação da pesquisa etnográfica está vinculada a sua dependência
intrínseca à capacidade, sensibilidade e preparo do pesquisador, visto que o mesmo se
constitui no principal instrumento de coleta e análise de dados. André (2005) aponta certas
qualidades do pesquisador a fim de evitar que tal limitação possa comprometer a prática de
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pesquisa. O pesquisador deve saber lidar com os prós e contras de sua condição humana; ter
domínio razoável do instrumento teórico-metodológico necessário ao desenvolvimento da
pesquisa; ser ético no tocante à seleção e descarte dos dados apresentados; ser comunicativo,
pois a empatia é imprescindível aos pesquisadores de campo; saber ouvir e ser paciente na
escuta dos sujeitos; ter habilidade na expressão escrita; saber conviver com as dúvidas e
incertezas inerentes a este tipo de abordagem, como também saber lidar com o novo e o
improviso; ser sensível no sentido de saber recorrer às suas percepções, intuições e emoções
frente às possibilidades de exploração dos dados colhidos e também na importante postura de
Manter uma constante atitude de vigilância para detectar e avaliar o peso de suas preferências pessoais, filosóficas, religiosas, políticas, no decorrer de toda investigação. E tentar controlá-las, o que não significa negá-las, mas tomar consciência de que elas existem e tomar providências teórico-metodológicas para que não contaminem os dados e as interpretações (ibid, p.40)
A entrevista, como interação social, é um instrumento destacável no campo das
ciências humanas por ser considerada como fonte “reveladora de condições estruturais, de
sistemas de valores, normas e símbolos (sendo ela mesma um deles)” (MINAYO, 1999, p.
109). Segundo a autora a situação - entrevista é permeada pelo aspecto básico da interação
pesquisador – informante, denominado por Goffman (1959) como “controle de impressões”
em que os atores sustentam uma função social de cuja imagem deve ser percebida pelos
observadores de acordo com seus interesses.
Com a intenção de realizar um ‘casamento’ metodológico para perceber o objeto, a
entrevista de perspectiva antropológica foi utilizada na referida pesquisa. Para Romanelli
(1998) a entrevista precisa ser considerada como processo e não produto da pesquisa
empírica. De natureza relacional, ela “cria uma forma de sociabilidade específica” que se
vincula a duas dimensões:
A primeira refere-se à sua realização, instância de fluxo e de troca de experiência entre pesquisador e nativo em uma relação face à face, em que a alteridade entre ambos é condição e pressuposto para que o processo de comunicação ocorra. A segunda dimensão da entrevista está relacionada a seus resultados, vale dizer, à construção de fatos etnográficos (op.cit, p.125).
Na entrevista, o pesquisador por meio de diferentes perguntas, conduz o entrevistado à
apreensão de sua própria situação a ser vista por outro ângulo através do processo de lembrar-
se de fatos, relações vividas, sentimentos, emoções a fim de se construir um relato claro sobre
si mesmo e para quem o ouve. Por ser uma relação de troca, muitas vezes, o entrevistado pode
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inquirir o pesquisador, e também por se constituir num encontro e não numa apropriação do
outro pelo entrevistador, há a problemática da subjetividade, que não deve ser evitada, nem
expulsa e sim “controlada pelos recursos teóricos e metodológicos do pesquisador, vale dizer,
da experiência que ele, lentamente, vai adquirindo no trabalho de campo”. Como a situação de
entrevista é marcada pelas emoções e sentimentos que surgem da relação entre entrevistado e
pesquisador, cabe ao último registrar não só as emoções do primeiro, mas também as suas
(ROMANELLI, 1998, p.128).
Segundo Romanelli (1998) muitos pesquisadores privilegiam a entrevista como
instrumento básico de coleta de dados e a define da seguinte maneira:
É processo de construção de dados sobre experiências diversas dos sujeitos e é expressa pela linguagem, constituindo um produto cultural. Como tal, o que está presente na fala do sujeito são fatos de duas ordens: descrições de acontecimentos vividos por ele e interpretações, ou representações, acerca dessas vivências. Representações constituem imagens, idéias coletivas, partilhadas por um segmento específico de pessoas e são constantemente reproduzidas na prática social. Embora representações adquiram concretude na fala que é gravada, podendo ser consideradas como produto da relação específica que se estabelece em certo momento entre pesquisador e pesquisado, seu conteúdo é algo em processo e não concepção estanque e definitiva. Justamente por isso, o sujeito que fala tende a emitir, ao longo da entrevista, opiniões diversas e contraditórias sobre um mesmo tema (op. cit, p. 129-130).
A fala do outro consiste numa articulação de vários fatores, numa “tradução e síntese
de múltiplas experiências”. O entrevistado não apenas responde perguntas, mas também
avalia, distancia-se ou aproxima-se do pesquisador, elaborando uma identidade para o mesmo.
As perguntas são indicações e não comandos. E o que o falante discorre na entrevista é o
resultado interpretativo das questões que lhes são feitas e de uma síntese selecionada de
aspectos de sua biografia. O discurso constitui numa representação de temas específicos,
É um tipo peculiar de representação, ou seja, é um conjunto relativamente articulado de explicações, reflexões e legitimações, com as quais o outro apreende dimensões de sua existência, que lhe são muito próximas, mas que nem por isso são plenamente conhecidas por ele (ROMANELLI, 1998, p.131).
O pesquisador não pode correr o risco de tomar o discurso como a fonte de todas as
explicações. É fundamental introduzir o ‘campo de investigação’, “representado pela
dimensão histórica e estrutural da sociedade onde se insere o grupo que é objeto de pesquisa”,
ou seja, “o pesquisador deve articular as representações dos sujeitos com a realidade social na
qual ele vive e onde são produzidas e reproduzidas essas representações que organizam sua
prática social e dão significado simbólico a ela”. Em outras palavras, não basta analisar as
19
falas dos professores para elucidar as marcas que determinam as suas identidades, faz-se
necessário interpretá-las no contexto – utilizando-se de uma terminologia dos Estudos
Culturais – de emergência destas no viver docente. Neste sentido, dar-se por encerrado o
vínculo indissociável entre a formulação teórica – os Estudos Culturais de natureza sempre
contextual – e o método de pesquisa – a observação participante e a entrevista antropológica,
pertinentes ao estudo de caso do tipo etnográfico aqui realizado.
Campo e sujeitos definidos
A Escola Estadual de Educação Profissional Dom Walfrido Teixeira Vieira,
inicialmente campo da pesquisa exploratória quando ainda se denominava Liceu, foi o campo
de pesquisa escolhido por ser a primeira escola profissionalizante na cidade de Sobral e deter
frente à comunidade sobralense, mesmo antes de se tornar uma escola profissionalizante no
ano de 2008, uma excelente imagem e aceitação popular no tocante à efetivação do processo
ensino-aprendizagem de qualidade.
A observação participante propriamente dita se iniciou em 2007 com uma fase de
exploração do campo. E depois continuou em 2008, agora com o credenciamento frente à
comunidade escolar. Os principais lócus de observação foram: os encontros de área- espaços
onde os professores de determinada área específica (Linguagens e códigos, Ciências da
Natureza ou Ciências Humanas) ficavam planejando suas aulas, preenchendo fichas de
acompanhamento da freqüência e rendimento dos alunos, como também discutindo sobre as
marcas que iam sendo sentidas no cotidiano escolar; os planejamentos mensais – de
organização e discussão geral sobre as diretrizes e problemas da escola; intervalos – momento
em que, em meio ao lanche matinal, algumas marcas eram “escancaradas” por alguns que não
conseguiam mais reprimi-las; e os encontros de formação continuada na 6ª CREDE – espaço
onde representantes de cada escola por área discutiam metodologicamente novas maneiras de
se conseguir uma aprendizagem significativa, que, em alguns momentos, certas marcas mais
pungentes vinham à tona.
Os sujeitos da pesquisa foram dezesseis professores da referida escola que se
mostraram acessíveis. No momento em que ocorreu o início do processo de entrevistas,
segundo semestre de 2008, quatro professores colocaram certos obstáculos e não colaboraram
com a pesquisa. Depois a justificativa apareceu: eles estavam participando da seleção para
diretores e coordenadores da Secretaria de Educação do Estado do Ceará e mesmo sem saber
o tema da pesquisa, já se colocaram avessos ao processo. A entrevista foi realizada apenas
com seis professores. O contexto vivenciado pela escola no momento de aplicação desta
20
técnica de coleta de dados também propiciou a sua inviabilização com os seis restantes: era
um momento de intensa troca de professores das disciplinas profissionalizantes e quando estes
saiam, os professores regulares assumiam as determinadas salas para que os alunos não
ficassem sem aula. Ou seja, os professores não sabiam realmente os seus reais horários de
aula. Muitas entrevistas foram desmarcadas e remarcadas diversas vezes por conta disso. Os
professores que saiam confessavam que não se identificavam com a profissão. Na sua maioria
eram enfermeiros ou técnicos de enfermagem e de informática. Mas atualmente esta situação
se encontra estável.
O olhar teórico sobre a identidade e suas marcas de constituição
Partindo do pressuposto de que o trabalho docente é um trabalho intelectual e como
tal, somente se completa se retornar ao mundo, munidos com a teoria, para a luta política e
cultural em prol da mudança da sociedade, é que se encontra outra justificativa para a
preferência teórica da pesquisa pelos Estudos Culturais, pois eles “oferecem uma ponte entre
a teoria e a cultura material” e, além disso, suas teorizações tentam se vincular aos problemas
sociais reais (NELSON; THEICHLER & GROSSBERG, 1995, p.17). O sucateamento da
educação e sua transformação num jogo político e midiático de manipulação e especulação
numérica de resultados em vez de uma qualitativa socialização holística do homem pautada na
emancipação, libertação e existência feliz, é um exemplo descomunal de um real problema da
humanidade capital, caracterizada pela busca desenfreada e desumana do lucro exacerbado.
Pensar na educação como uma esfera da vida humana imprescindível na efetivação
desta socialização é refletir especialmente na necessidade de conscientizar seus principais
agentes – os professores – de seu papel de intelectual crítico e engajado, onde através de sua
prática pedagógica produza efeitos concretos tanto no seu espaço de trabalho específico – a
sala de aula e a escola- quanto na cultura em que está inserido. Assim, compreender as marcas
da construção identitária docente é também entender de certa maneira as razões de uma ação
efetiva docente conformada, apolítica, pragmática, alienada, individualista e
descompromissada com os ideais de transformação social.
Considerando o universo do objeto de pesquisa – a identidade – um processo
complexo na sua constituição e abordagem, estudado por vários campos do saber: Pedagogia,
Sociologia, Política, Filosofia, Psicologia, Antropologia e Psicanálise, é que se faz necessário
analisá-la a partir do embasamento teórico dos Estudos Culturais pela sua característica
essencial de se aproveitar de quaisquer campos necessários para produzir o conhecimento
sobre determinado fenômeno tais como: marxismo, feminismo, psicanálise, pós-
21
estruturalismo, pós-modernismo e outros.
O Centro de Estudos Culturais Contemporâneos da Universidade de Birmingham,
Inglaterra, fundado em 1964, foi quem construiu e formalizou o termo para seu próprio
projeto. Neste campo são centrais as obras: Culture and society, de Raymond Willians em
1958; Uses of Literacy, de Richard Haggart em 1957; e a influência teórica do livro The
making of the English working class, de E.P. Thompson em 1963 (SILVA, 2004, p.131).
Nos Estudos Culturais não há metodologia específica, “a escolha de práticas de
pesquisa depende das questões que são feitas, e as questões dependem de seu contexto”
(NELSON; THEICHLER & GROSSBERG, 1995, p.9). Seus métodos e objetos de análise são
concebidos de forma relacional ao contrário da proposta de descontextualização de ambos
pelas disciplinas acadêmicas (ibid, p.32). Semelhante ao conceito de identidade, considerado
por este campo como uma de suas categorias de análise da cultura, os Estudos Culturais
podem ser definidos como “sendo um empreendimento diversificado e frequentemente
controverso, abrangendo posições e estratégias diferentes em contextos específicos, tratando
de muitas questões, extraindo seu alimento de muitas raízes e moldando a si próprio no
interior de diferentes instituições e locais” (ibid, p.11)
Embora seja importante a definição anterior, a sua amplitude deixa margem para se
pensar neste campo como o estudo de qualquer coisa ou de tudo. Para evitar este risco, uma
série de esforços foi feita pelos intelectuais deste campo a fim de destacar os seus elementos
recorrentes. Primeiro, caracterizado por um caráter interdisciplinar, transdisciplinar e algumas
vezes contra-disciplinar, os Estudos Culturais tomam a cultura como objeto de estudo,
análise, crítica e intervenção política. Entretanto eles defendem uma concepção ampla de
cultura, entendida como uma forma de vida e um conjunto de práticas em que não estão
isoladas do resto da vida social. Segundo, eles se preocupam continuamente com a noção de
transformação social e cultural radical e seus praticantes se vêem “como participantes
politicamente engajados” (ibid, p.16). Tem uma história longa de comprometimento com as
populações sem poder, pois “foram forjados no contexto de um sentimento das margens
contra o centro” (p.28). Porém nem todo estudo da cultura e da política é objeto dos Estudos
Culturais, como também nem todo ato de luta cultural é consistente necessariamente com a
sua política. Certos atos podem enriquecê-los (o feminismo, os de cor, esquerdistas) e se
tornarem projetos deste campo, mas o que deve ser examinado são os efeitos e as práticas que
constituem as lutas culturais. Em suma, a exigência dos Estudos Culturais é que:
Identifiquemos a operação de práticas específicas, de como elas continuamente reinscrevem a linha entre a cultura popular e a cultura
22
legítima, e o que elas conseguem fazer em contextos específicos. Ao mesmo tempo, os Estudos Culturais devem constantemente questionar sua própria conexão com relações contemporâneas de poder, seus próprios interesses. (op. cit, p. 31).
Os Estudos Culturais são sempre contextuais e estão constantemente reescrevendo sua
própria história, reconstruindo-se de acordo com os novos desafios e novas situações e
apropriando-se de novas posições. (p. 25). Eis o terceiro elemento. Uma quarta característica
vincula-se a sua ênfase às contingências para possibilitar “uma teoria da articulação e para a
construção de modelos que possam realizar análises conjunturais – isto é, análises que estejam
imersas em seu meio, que sejam descritivas e histórica e contextualmente específicas.” (op.
cit, p.20).
Este campo implica “o estudo de todas as relações entre todos os elementos de uma
forma inteira de vida” ao interagir com o econômico, o político, o erótico, o social e o
ideológico. Tem como conceitos teóricos centrais: articulação, hegemonia, ideologia,
conjuntura, representação e identidade (p.32). Dentre estes conceitos, ganhou destaque
durante a pesquisa exploratória referente à delimitação do objeto de pesquisa o conceito de
articulação juntamente com seus termos acompanhantes: a desarticulação e a rearticulação, na
tentativa de perceber o processo de construção identidária. Ele é um conceito abstrato e geral
de aplicação prática e que
Fornece uma forma de descrever o processo contínuo de separação, realinhamento e recombinação de discursos, grupos sociais, interesses políticos e estruturas de poder, numa sociedade. Fornece também uma forma de descrever os processos discursivos pelos quais os objetos e identidades são formados ou pelos quais se lhes atribuem significados. (op. cit, p.21)
McRobbie (1992, p.34) defende que um dos objetivos centrais deste campo é o de
“compreender a transformação social e a mudança cultural” e enfatiza que a tensão que
atravessa todas as tradições de Estudos Culturais e define a prática específica dos mesmos
“fornece um lugar que torna o julgamento e a intervenção possíveis.” Conforme a autora a
preocupação dos Estudos Culturais com a identidade, suas complexas formas de articulação,
experimentação e desdobramento é recente e veio sob a influência dos estudos de etnia, raça e
pós-colonialismo e a epidemia de AIDS (ibid, p.24). Pensando no contexto atual de
motivação, formação e exercício do magistério brasileiro, percebe-se que a construção da
identidade docente, bem como sua aparente crise, constituem discussões essenciais a serem
travadas no meio acadêmico e por intelectuais engajados pela mudança social. Todavia, a
23
autora citada destaca como é problemático para os Estudos Culturais compreender o processo
real de aquisição da identidade:
Por um lado, ele é fluido, nunca completamente assegurado e está continuamente sendo refeito, reconstruído a cada vez. Por outro lado, ele só existe em relação ao que não é, às outras identidades que são seu ‘outro’. A identidade não é o indivíduo ‘burguês’, nem tampouco é a personalidade, a pessoa singular, mas também não é o sujeito psicanalítico. Tal como usada no discurso cultural atual, ela implica uma noção combativa do eu, mas uma noção que só faz sentido em termos de uma categoria abrangente mais ampla, tal como raça ou sexualidade ou classe. A identidade, portanto, está fundada na identidade social, em grupos sociais ou populações com algum sentido de uma história e de uma experiência partilhada. E, contudo, é também uma categoria condenada á dispersão e à fragmentação, comprometida com um anti-essencialismo, com um anti-absolutismo (MCROBBIE, 1992, p.58-9).
Tomando a identidade como um fenômeno dialético entre indivíduo e sociedade
(BERGER; LUCKMANN, 1985) e a prerrogativa de que a existência humana é totalmente
influenciada por todas as experiências vivenciadas, destaca-se na determinada pesquisa a
categoria de identidade docente e não especificamente de identidade profissional, uma
diferença crucial em relação ao estudo de Lobo (2005), pois esta categoria é apenas uma
identidade peculiar possível das identidades assumidas pelo professor-pessoa que se
caracteriza pelas suas interferências culturais e funções socialmente construídas. Thives
(2007, p.278) justifica, de certa maneira, estas afirmações:
Identificar-se profissional docente requer do professor primeiro uma identificação individual enquanto pessoa, ser humano dotado de características da sua história e cultura, também requer um entrosamento a um grupo ativo ou passivo de ações coletivas num âmbito educacional, onde regras sociais e educacionais precisam ser estabelecidas de acordo com a hierarquia do sistema.
A identidade docente é concebida neste trabalho como uma categoria que engloba
tanto a identidade pessoal e profissional, ambas interdependentes e ao mesmo tempo,
posicionamentos estratégicos na relação do professor com as diversas situações culturais.
Analisar as marcas que a determinam, bem como os seus processos de ressignificação pelos
professores no processo de construção de seu ‘ser docente’, pode possibilitar um caminho
para compreender a subjetividade docente no tocante: aos seus objetivos educacionais;
posturas pedagógicas exercidas; inclinação para inovar e assumir novas tendências
metodológicas ou de permanecer arraigados em práticas já consolidadas. As reais motivações
e perspectivas no que diz respeito à entrada na profissão e a permanência na mesma, podem
também ser elucidadas pelo estudo destas marcas identitárias.
24
A questão da identidade humana é um tema bastante debatido atualmente pelas teorias
sociais e culturais. O conceito de identidade é muito complexo e pouco desenvolvido pela
ciência social contemporânea. Certos teóricos acreditam que as identidades modernas estão
em colapso por causa das mudanças estruturais da sociedade que antes forneciam sólidas
localizações aos indivíduos sociais. As transformações que vem ocorrendo mudam as
identidades pessoais e abalam a imagem que os sujeitos tinham de si próprios (HALL, 2006,
p.9). Desta forma,
...esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo.
O percurso da pesquisa resumido em breves tópicos
A dissertação que se segue inicia com a preocupação de analisar os tempos culturais
hodiernos de marcação da identidade humana. No capítulo primeiro objetivamos uma maior
caracterização da era pós-moderna denominada por Bauman (1998) de era líquida. Isto foi
necessário para compreendermos o primeiro grande fator do fogo cruzado que é o sistema
social como um todo. Seguindo a caracterização da cultura pós-moderna, apresentamos
algumas considerações sobre as políticas educacionais neoliberais sempre enfocando as
possibilidades de marcações deste primeiro grande fator na identidade humana e mais
especificamente no professor.
O segundo capitulo é constituído pela ênfase dada aos recursos analógicos: fogo
cruzado e marcas identitárias. Nele se pretendeu justificar o uso, a importância e a validade
destes recursos para compreender o processo de construção da identidade docente e a
impossibilidade de se efetivar uma docência emancipatória.
A caracterização do campo de pesquisa, ou melhor, uma análise do segundo grande
fator do fogo cruzado é o objetivo do terceiro capítulo. Além de identificar a Escola Estadual
de Educação Profissional Dom Walfrido Teixeira Vieira como um exemplo claro e vibrante
da ofensiva neoliberal e analisar a nova filosofia de gestão – TESE (Tecnologia Empresarial
Socioeducacional) – a discussão também focaliza as possíveis marcações da identidade por
esta configuração de escola, como também algumas reflexões acerca da transição que ocorreu
em 2008, onde o colégio de ensino médio regular - Liceu de Sobral foi transformado na atual
escola de ensino médio regular integrado à educação profissionalizante.
A discussão teórica e de literatura sobre a identidade humana e docente é o destaque
25
do quarto capítulo. Autores como Bauman (1998, 2005, 2007), Ciampa (2004, 2008), Hall
(2006), Lawn (2001), Lima (1995), Silva (1995), Woodward (2008), Garcia, Manuela Alves;
Hypolito e Vieira (1995) são chamados para esclarecer alguns pontos sobre a identidade
humana. Neste capítulo alguns trabalhos acadêmicos são analisados com a utilização da
metáfora das marcas da identidade.
Todo o quinto capítulo é destinado à análise das marcas das identidades dos dezesseis
professores da EEEP Dom Walfrido. Além disso, outro foco do capítulo é a identificação dos
cruzamentos das marcas identitárias que produzem as labaredas do fogo cruzado e também
como as marcas identitárias são ressignificadas pelos professores desta escola a fim de
enfrentar este fogo e evitar a fragmentação ou a “cremação” de suas identidades.
O último capítulo é constituído por algumas considerações sobre as marcações
identitárias que constituem o fogo cruzado e também por reflexões acerca das possibilidades
tanto formativas quanto pessoais-identitárias de enfrentamento do fogo cruzado docente a fim
de que iniciem, os professores da escola pública e do ensino superior, um processo de
construção e efetivação de uma ação docente emancipatória, fundante da transformação social
via educação formal.
26
CAPÍTULO 1
SOCIEDADE LÍQUIDA, NEOLIBERALISMO E DOCÊNCIA
Em nossos tempos pós-modernos, [...], as fronteiras que tendem a ser ao mesmo tempo mais fortemente desejadas e mais agudamente despercebidas são as de uma justa e segura posição na sociedade, de um espaço inquestionavelmente da pessoa, onde possa planejar sua vida com o mínimo de interferência, desempenhar seu papel, num jogo em que as regras não mudem da noite para o dia e sem aviso, agir razoavelmente e esperar pelo melhor (BAUMAN, 1998, p.38).
1.1 - MUNDO LÍQUIDO
Vivemos numa época líquido-moderna cuja principal característica é a sua repartição
em “fragmentos mal coordenados” onde “as nossas existências individuais são fatiadas numa
sucessão de episódios fragilmente conectados” (BAUMAN, 2005, p. 19). Inicialmente esta
fragmentação e fragilidade nos laços sociais constituem num grande obstáculo à constituição
das identidades humanas.
Pessoas líquidas possuem uma capacidade decisiva de destruir criativamente tudo e
livrar-se ligeiramente dos detritos. Elas têm relacionamentos frouxos e descompromissados ao
passo que convivem com o medo de serem jogadas no lixo. São nômades, extraterritoriais,
“leves, lépidas e voláteis” como o comércio e as finanças globais. Flutuando entre o horror da
lixeira e os prazeres do consumo, vivem constantemente no auto-exame, autocrítica e
autocensura, insatisfeitas consigo mesmas a fim de afastar o perigo de deixarem de ser
consideradas objetos de consumo. Devem dominar a arte da vida líquida: “aquiescência à
desorientação, imunidade à vertigem, adaptação ao estado de tontura, tolerância com a falta
de itinerário e direção, e com a duração indefinida da viagem” (BAUMAN, 2007, p.10-4).
Para Bauman (2005), passamos de uma fase sólida da modernidade para a fase
“fluida” em que a sociedade não é mais “um árbitro severo e intransigente, por vezes rígido e
impiedoso, mas de quem se espera ser justo e de princípios” com relação às tentativas e erros
humanos. A sociedade é “um jogador particularmente astuto, ardiloso e dissimulado” cuja
preocupação não é mais dar “ordens sobre como se viver – e, mesmo que desse, não lhe
importaria muito que elas fossem obedecidas ou não”. Ela deseja “que você continue no jogo
e tenha fichas suficientes para permanecer jogando” (ibid, p.59). Não é por acaso que há uma
27
disseminação de discursos nas literaturas científicas e de auto-ajuda acerca do trabalhador
polivalente, do ser humano potencialmente auto-ajudável e auto-adaptável a todas as
intempéries da vida em sociedade. Se você não consegue emprego, uma vida amorosa
satisfatória ou uma conta bancária considerável a culpa é exclusivamente sua, pois você não
possui, infelizmente, as fichas necessárias para mudar, ganhar ou permanecer no jogo. A
exclusão assim é diretamente culpa da sua inevitável inaptidão de não possuí-las.
A força da sociedade e o seu poder sobre os indivíduos agora se baseiam no fato de ela ser ‘não-localizável’ em sua atitude evasiva, versatilidade e volatilidade, na imprevisibilidade desorientadora de seus movimentos, na agilidade de ilusionista com que escapa das gaiolas mais resistentes e na habilidade com que desafia expectativas e volta atrás nas suas premissas, quer declaradas sem rodeios ou engenhosamente insinuadas (ibid, p.58-9).
Numa sociedade líquido-moderna, os seus membros agem sobre condições que
mudam cada vez mais rápido e num curto período de tempo dificultando assim “a
consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir”. “Aprender com a experiência a fim
de se basear em estratégias e movimentos táticos empregados com sucesso no passado é
pouco recomendável” (BAUMAN, 2007, p.7). Os saberes da experiência dos docentes,
elementos importantes na constituição da identidade docente, ficam então comprometidos ou
até obsoletos nesta ambientação líquida. Por essa razão, e talvez uma estratégia aproveitada de
controle dissimulado do Estado quanto à ação docente, os professores passam a se sentirem
“incompetentes contínuos” naquilo que fazem abrindo espaço para o controle estatal-político
via especialistas da educação. Como o mundo muda numa velocidade avassaladora, o
professor no seu espaço reduzido de trabalho não tem condições estruturais nem intelectuais
de reformular e reatualizar suas metodologias e didáticas ou posturas no enfrentamento destas
novas realidades que se formam.
No caso cearense, os professores contratados no regime de quarenta horas semanais
trabalham trinta e duas horas em salas de aula que totalizam quarenta e cinco alunos em
média e possuem apenas oito horas para se dedicarem aos planejamentos mensais da escola e
aos planejamentos da disciplina de sua responsabilidade. Grosso modo não há tempo para se
dedicar ao planejamento específico para cada sala de aula como também para trocas de idéias
e experiências entre os pares e fundamentalmente discutir e repensar o processo de ensino-
aprendizagem praticado na escola, suas finalidades, objetivos, conseqüências e possibilidades
de reformulações. Soma-se também a esta realidade a inexistência de formação continuada
28
aos professores em exercício, numa perspectiva de pensar e buscar alternativas no
enfrentamento dessas mudanças que ocorrem rapidamente.
Tal formação – pelo menos durante a observação de campo realizada na cidade de
Sobral – se constitui em reuniões que ocorrem uma ou duas vezes por mês onde participam
apenas dois professores de cada área de conhecimento ou setor da escola: ciências biológicas
e exatas, humanas, linguagens e códigos, biblioteca e salas de educação especial. Mesmo que
no discurso dos formadores, a formação continuada oferecida tenha um caráter de apoio
pedagógico aos professores, quando ocorre não passa de cobranças por melhores resultados
nos índices de aprovação dos alunos, tanto no demonstrativo interno da escola quanto nas
avaliações estaduais e nacionais.
Quando o assunto não é cobrança, o objetivo é a enunciação de propostas-diretrizes
com relação aos procedimentos metodológicos plausíveis cuja eficácia foi testada pelos
especialistas em educação ou por professores considerados modelos pela Secretaria de
Educação da cidade ou do Estado. São denominadas propostas-diretrizes por causa da forma
que são transmitidas e repassadas pelos professores-formadores. Ou melhor, a sensação
conseqüente da transmissão é a de que aquela proposta é a melhor de todas as metodologias e
posturas didáticas docentes e deve ser seguida categoricamente porque os métodos e técnicas
utilizadas pelos professores em exercício já deram provas suficientes de que estão
ultrapassados, não funcionam e somente aumentam os índices de reprovação, desinteresse e
evasão dos alunos.
Em nenhum momento se discute politicamente e estruturalmente as causas do
insucesso da educação. Assuntos como número de alunos por sala a fim de melhorar o
acompanhamento do professor, tempo consideravelmente suficiente para o planejamento
individual e coletivo da disciplina e dos conhecimentos a serem trabalhados em sala e
reestruturação curricular a fim de acabar com a predominância dos conteúdos técnicos em sua
composição são tidos como desnecessários e uma perda de tempo. Sendo assim, o docente
considera de forma automática, ou coercitiva, válidas as considerações e formulações dos
especialistas que adentram e passam a conduzir o processo de ensino-aprendizagem do qual o
docente se transforma, por vezes, num mero fantoche. Com a incerteza de sua competência e
dos saberes necessários ao ato de ensinar, resta aos professores seguir os procedimentos
tecnologicamente testados, pois
[...] o que costumava ser apresentado e mantido conjuntamente pelas habilidades individuais e com o uso de recursos inatos tende agora a ser
29
mediado por ferramentas tecnologicamente produzidas e que podem ser compradas no mercado (BAUMAN, 1998, p.35).
A vida líquida é “vivida em condições de incerteza constante” e se constitui numa
“sucessão de reinícios” onde a prioridade de seus habitantes é ter a arte de livrar-se das coisas
ao invés de adquiri-las. O “encerrar ou fechar” torna-se mais necessário a estes habitantes do
que o “começar ou abrir”, pois o que mais os preocupam intensamente e assombram seus
modos de viver são:
Os temores de ser pego tirando uma soneca, não conseguir acompanhar a rapidez dos eventos, ficar para trás, deixar passar as datas de vencimento, ficar sobrecarregado de bens agora indesejáveis, perder o momento que pede mudança e mudar de rumo antes de tomar um caminho sem volta (BAUMAN, 2007, p.8).
A ênfase da vida líquida está em “esquecer, apagar, desistir e substituir”. O bem-estar
de seus membros está diretamente vinculado às suas capacidades de eficiência e velocidade
no envio dos produtos aos depósitos de lixo sem deixar detritos. Referendados pela “regra
universal do descarte”, os habitantes líquido-modernos tomam “a constância, a aderência e a
viscosidade das coisas” como “os perigos mais sinistros e terminais, as fontes dos temores
mais assustadores e os alvos dos ataques mais violentos”. Então os professores que almejam
permanecer no jogo líquido social devem estar preparados para a qualquer momento jogar no
lixo seus saberes e conhecimentos adquiridos tanto pela formação quanto pela experiência de
ensino e reiniciar velozmente e permanentemente a construção de sua identidade profissional,
saberes, atitudes e formas de pensar o ensino até segunda ordem de exclusão novamente para
o lixo. Atualmente podemos considerar que esta tal segunda ordem é constituída pelas
políticas neoliberais e neoconservadoras da educação. Se modernizar-se significa descartar os
atributos que perdem a validade e repelir “as identidades que atualmente estão sendo
montadas e assumidas”, a própria noção de identidade deve ser revista e reformulada (ibid,
p.9).
A principal preocupação de nossos contemporâneos não é “formar um todo consistente
e coeso chamado ‘identidade’’. “Uma identidade coesa, firmemente fixada e solidamente
construída seria um fardo, uma repressão, uma limitação da liberdade de escolha”. O lema
então é “ajustar pedaços infinitamente” (BAUMAN, 2005, p.60).
Na sociedade moderna a construção de uma identidade clara e duradoura só foi
possível através da edificação de um cenário de confiança, estável a partir de esforços
coletivos, ou melhor, das “estruturas” que “pareciam dotadas de suficiente elasticidade e
solidez para resistir a todas as incursões dos esforços individuais e sobreviver a toda escolha
30
individual”. Esta era medida tendo como base um “conjunto de oportunidades finito e duro
como uma rocha” e podia ser calculada racionalmente e avaliada objetivamente. “As
profissões, ocupações e habilidades correlatas não envelheciam mais depressa do que os seus
titulares” (id, 1998, p.31).
No contexto de vida pós-moderna, a situação é diferente. Não há terreno estável para
acomodação dos projetos de vida individuais e “os esforços de constituição da identidade
individual não podem retificar as conseqüências do ‘desencaixe’1, deter o eu flutuante e à
deriva” (ibid, p.32).
Ao contrário da “genuína e suposta solidez e continuidade que costumavam ser a
marca registrada das ‘estruturas’ modernas”, o mundo pós-moderno “está se preparando para
a vida sob uma condição de incerteza que é permanente e irredutível” (op.cit). “No admirável
mundo novo das oportunidades fugazes e das seguranças frágeis, as identidades ao estilo
antigo, rígidas e inegociáveis, simplesmente não funcionam” (BAUMAN, 2005, p.33). Agora,
os indivíduos têm a liberdade de acessar e capturar as identidades “em pleno vôo, usando os
seus próprios recursos e ferramentas” (ibid, p.35). Os habitantes do mundo líquido, no que se
refere às suas “identidades em movimento”, lutam para construir e manter as referências
comunais de suas identidades e se juntar “aos grupos igualmente móveis e velozes” numa
tentativa de mantê-los vivos “por um momento, mas não por muito tempo” depois da procura
e construção dos mesmos. (ibid, p.32).
Bauman (1998) tenta explicar alguns dos fatores responsáveis por esta atmosfera de
incerteza do mundo líquido. O primeiro fator é a nova desordem do mundo. As intensas
divisões após meio século e “tanto interesses evidentes como indubitáveis desígnios e
estratégias políticas privaram o mundo de estrutura visível e de qualquer – por mais que
sinistra- lógica” (ibid, p.33). O terceiro mundo como uma força de oposição aos impérios do
poder “abandonou o palco político do mundo”. O segundo fator é a “desregulamentação
universal”- “prioridade outorgada à irracionalidade e à cegueira moral da competição de
mercado” e o “repúdio a todas as razões que não econômicas, deram um novo impulso ao
implacável processo de polarização” que, segundo o autor fora detido temporariamente pela
legalidade do estado de bem-estar, do trabalho, dos direitos de negociação dos sindicatos e
“pelos primeiros efeitos dos órgãos internacionais encarregados da redistribuição do capital”
1 Conceito de Giddens trabalhado por Bauman ao se referir à passagem dos indivíduos de uma realidade moderna onde os indivíduos foram postos frente à liberdade de escolha de sua forma de viver transformando a identidade numa tarefa individual e de responsabilidade do indivíduo para a realidade de navegação, ou seja, identidade em movimento.
31
(ibid, p.34). Dos efeitos advindos desta nova atmosfera, além do aumento das fileiras de
despojados e redundantes, o autor acrescenta:
Nenhum emprego é garantido, nenhuma posição é inteiramente segura, nenhuma perícia é de utilidade duradoura, a experiência e a prática se convertem em responsabilidade logo que se tornam haveres, carreiras sedutoras muito freqüentemente se revelam vias suicidas. Em sua versão presente, os direitos humanos não trazem consigo a aquisição do direito a um emprego, por mais que bem desempenhado, ou – de um modo mais geral- o direito ao cuidado e à consideração por causa de méritos pessoais. Meio de vida, posição social, reconhecimento da utilidade e merecimento da auto-estima podem todos desvanecer-se simultaneamente da noite para o dia e sem se perceber (BAUMAN, 1998, p.35).
Se tudo pode desvanecer da noite para o dia a noção de identidade como algo estável e
perene de identificação do ser humano torna-se obsoleta. Como pensar a identidade então?
Bauman defende o processo de construção da identidade como incessante, inconcluso,
instável e protéico:
Como tudo o mais, a imagem de si mesmo se parte numa coleção de instantâneos, e cada pessoa deve evocar, transportar e exprimir seu próprio significado, mais freqüentemente do que abstrair os instantâneos do outro. Em vez de construir sua identidade, gradual e pacientemente, como se constrói uma casa - mediante a adição de tetos, soalhos, aposentos, ou de corredores-, uma série de “novos começos”, que se experimentam com formas instantaneamente agrupadas mas facilmente demolidas, pintadas umas sobre as outras: uma identidade de palimpsesto. Essa é a identidade que se ajusta ao mundo em que a arte de esquecer é um bem não menos, se não mais, importante do que a arte de memorizar, em que esquecer, mais do que aprender, é a condição de contínua adaptação, em que sempre novas coisas e pessoas entram e saem sem muita ou qualquer finalidade do campo de visão da inalterada câmara de atenção, (ibid, p.36-7).
O terceiro fator responsável é a desintegração ou o enfraquecimento das outras redes
de segurança, “tecidas e sustentadas pessoalmente, essa segunda linha de trincheiras outrora
oferecida pela vizinhança ou pela família”. A pragmática das relações interpessoais permeada
pelo espírito do consumismo não gera nem laços duradouros muito menos seguros. Os laços
gerados “têm cláusulas embutidas até segunda ordem e passíveis de retirada unilateral; não
prometem a concessão nem a aquisição de direitos e obrigações” (ibid, p.35).
O quarto responsável é a mensagem de indeterminação e maleabilidade do mundo
pelos mais eficazes meios de comunicação cultural. Assim nada pode ser considerado seguro
e confiável. Apostar é a regra. “Neste mundo, os laços são dissimulados em encontros
sucessivos, as identidades em máscaras sucessivamente usadas, a história da vida numa série
32
de episódios cuja única conseqüência duradoura é a sua igualmente efêmera memória” (ibid,
p.36).
Se vivemos permanentemente num estado de incerteza e insegurança em que “nenhum
emprego é garantido” e os direitos humanos foram ressignificados pela ofensiva do mercado
numa variante do mérito e da investida exclusivamente individual e egoísta, não é de se
estranhar que professores desmotivados financeiramente e pelas condições estruturais de seu
trabalho, não queiram arriscar seu emprego líquido com atitudes de mobilização política,
cobranças diretas aos chefes imediatos por melhorias como também não queiram sustentar
sentimentos de classe ou algo parecido. Por que se arriscar numa greve até conquistar direitos
e mudanças concretas se podem perder o seu ‘ganha pão’? É verdade que os habitantes
líquidos são consumidores egoístas, mas como ter outro caráter se o que está em jogo é a
própria sobrevivência biológica? Talvez seja esta realidade de desarticulação via atmosfera de
tensão e angústia constante em relação à permanência no emprego uma das mais valiosas
conseqüências das estratégias neoliberais de dominação e controle em todas as profissões
atualmente. Como ser politicamente engajado e mobilizador aquele indivíduo que a todo
instante convive com o fantasma da exclusão ou da lata de lixo? Todos os profissionais
perderam a segurança até mesmo os considerados bons ou importantes para qualquer empresa,
indústria ou escola. Agitadores, subversivos e questionadores demais são os principais objetos
humanos descartados na lixeira dos “supermercados sociais” da sociedade líquida.
A educação brasileira, senão mundial, continua partilhando dos valores modernos
enumerados por Bauman (1998): de beleza – “tudo o que dá sublime prazer da harmonia e
perfeição da forma” (p.8); pureza – “um ideal, uma visão da condição que ainda precisa ser
criada, ou da que precisa ser diligentemente protegida contra as disparidades genuínas ou
imaginadas” (p.13); e de ordem – “situação em que cada coisa se acha em seu justo lugar e em
nenhum outro” (p.14). Por essa razão que os investimentos estatais na reforma escolar pública
objetivam a sua estrutura física e não uma reforma na gestão, formação docente, finalidade e
função na educação. Uma sala de aula bela é uma sala silenciosa, harmônica, sem conflito,
disciplinada, ordenada e sem questionamentos. O mais intrigante é que esta concepção de
educação é consensualmente aceita por grande parte dos professores que enxergam como
ameaça e desconforto e muitas vezes, medo por não ter sido preparado para enfrentar as
situações de conflito, objeções, questionamentos, exigências e inquietações dos alunos com
relação ao currículo, à metodologia e didática docentes e até a própria razão de ser da escola
na vida deles.
33
Na verdade nem a escola nem os professores não são preparados para enfrentar o
avesso da modernidade: feiúra, sujeira e desordem. Tanto as políticas educacionais quanto a
formação docente bebem da mesma fonte considerando a educação como um processo
disciplinador e harmônico de transmissão dos conhecimentos necessários ao ajustamento dos
indivíduos numa dada configuração sociocultural- na atualidade, a sociedade capitalista de
consumo. A escola brasileira não consegue e nem pretende saber lidar com as diferenças e
com o conflito. Os “sujos” – alunos indisciplinados, resistentes, violentos e desistentes – e os
revoltosos – alunos e professores discordantes das normas – são excluídos ou purificados a
fim de restabelecer a determinada ordem acreditada como inata e eficaz. Não estaria na hora
da escola e dos atores educacionais deixarem de se autovangloriarem com o sucesso na
escolarização dos poucos e tentar atingir realmente a maioria dos indivíduos. Colocar na pauta
da discussão sobre uma escola democrática uma concreta reforma estrutural e uma
investigação acerca das motivações e significados das práticas tidas como sujas- indisciplina,
resistência, indiferença, desrespeito e revolta, constituem nos movimentos necessários para se
construir uma escolarização pública mais digna e humana.
Bauman (1998) descreve da seguinte maneira a relação da pureza e sujeira na pós-
modernidade:
De estilos e padrões de vida livremente concorrentes, há ainda um severo teste de pureza que se requer seja transposto por todo aquele que solicite ser ali admitido: tem de mostrar-se capaz de ser seduzido pela infinita possibilidade e constante renovação promovida pelo mercado consumidor, de se regozijar com a sorte de vestir e despir identidades, de passar a vida na caça interminável de cada vez mais intensas sensações e cada vez mais inebriante experiência. Nem todos podem passar nessa prova. Aqueles que não podem são a ‘sujeira’ da pureza pós-moderna (ibid, p.23)
Politicamente os “sujos” do sistema educacional são aqueles professores que não
conseguem se adaptar rapidamente e seduzir-se irrefletidamente pelas normas estabelecidas
pela escola as quais são impostas pelas políticas educacionais. “Sujos” porque não vestiram as
identidades engendradas pelo contexto neoliberal de seu trabalho e não consumiram as
propostas-diretrizes dos especialistas e nem os “pedidos-normas” dos gestores e governantes,
no sentido de que estes gestores ao utilizarem uma voz mansa e doce, proferem solicitações
acompanhadas de expressões de carinho ora verbal ora através do toque, mas que ressoam
verdadeiramente como uma norma que não pode ser deixada de ser executada imediatamente.
Como numa sociedade líquida de efemeridade dos laços humanos e coisificação dos
34
sentimentos humanos, qualquer demonstração de carinho e afeto é bem vinda e anestesiante
para enfrentar os vazios de significação, mesmo que seja dissimulada.
Exposto os responsáveis pelo clima de incerteza permanente da sociedade líquido-
moderna, Bauman defende que os habitantes desta sociedade vivem permanentemente “com o
‘problema da identidade’ não-resolvido”, pois eles sofrem “de uma crônica falta de recursos
com os quais pudessem construir uma identidade verdadeiramente sólida e duradoura, ancorá-
la e suspender-lhe a deriva”. Além disso, o autor destaca um traço universal desses tempos
líquidos e que se constitui num autêntico dilema desafiador dos esforços de construir a
identidade bem delineada e confiável:
Enquanto é uma necessidade intensamente sentida e uma atividade eloqüentemente encorajada todos os meios de comunicação cultural autorizados a própria pessoa fazer uma identidade, ter uma identidade solidamente fundamentada e resistente a interoscilações, tê-la “pela vida”, revela mais uma desvantagem do que uma qualidade para aquelas pessoas que não controlam suficientemente as circunstâncias do seu itinerário de vida; um fardo que dificulta o movimento, um lastro que elas devem jogar fora para permanecer à tona”(ibid, p.38).
Na sociedade líquido-moderna, caracterizada pelo excesso de “individualização”, “as
identidades são bênçãos ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não há como dizer
quando um se transforma no outro”. As identidades constituem um acirrado objeto de debate
para os “indivíduos líquido-modernos” porque “talvez sejam as encarnações mais comuns,
mais aguçadas, mais profundamente sentidas e perturbadoras da ambivalência”. “Manter em
alta velocidade” transformou-se numa “tarefa exaustiva” em vez de uma “divertida aventura”
preservando “aquela incerteza desagradável e aquela confusão aflitiva” em que se pensava
não mais existir com a presença da velocidade (BAUMAN, 2005, p.38).
1.2- A SEGUNDA ORDEM: O NEOLIBERALISMO EM EDUCAÇÃO COMO
RECICLADOR DA IDENTIDADE DOCENTE
Eis o grande perigo para o homem líquido: construir uma identidade bem delineada e
resistente a oscilações da sociedade caso não controlarem “suficientemente as circunstâncias
do seu itinerário de vida”. Em contrapartida a melhor maneira de permanecer incluído e
afastar o fantasma da descartabilidade e exclusão: ter uma identidade líquida, flutuante,
adaptável e constituída por elementos efêmeros e prontos para serem substituídos,
reformulados ou jogados no lixo.
35
Enfocando socialmente a educação e a profissão docente nesta atmosfera líquida
percebemos que a segunda ordem - princípios, valores, normatizações, leis e padronizações
que determinam os objetos a serem trocados ou jogados no lixo - é atualmente determinada
pelas políticas públicas neoliberais e neoconservadoras invasoras e parasitas de todos os
aspectos da vida em sociedade. O valor mercantil e as suas relações foram introjetados como
padrão dominante de sociabilidade e significação do mundo.
O neoliberalismo é o termo utilizado para designar “uma saída política, econômica,
jurídica e cultural específica para a crise hegemônica que começa a atravessar a economia do
mundo capitalista como produto do esgotamento do regime de acumulação fordista iniciado a
partir do final dos anos 60 e começo dos 70”. Com a finalidade de restabelecer a hegemonia
burguesa no cenário global do capitalismo, o neoliberalismo impõe à sociedade uma política
de medidas antidemocráticas cujo enfoque máximo é a desintegração da possibilidade de
existir tanto a educação como direito social quanto a concretização de um aparato
institucional para tal direito: escola pública (GENTILI, 2008, p. 217).
Nos cenários de pós-crises cíclicas do capitalismo, são lançados inúmeros desafios à
classe dominante e suas frações a fim de que continuem pleiteando a hegemonia do processo
social. É por essa razão que não é apenas necessário a criação de “uma nova ordem
econômica e política (tal como defendem alternativamente as versões economicistas e
politicistas), mas também da criação de uma nova ordem cultural” (ibid, p.219). Esta nova
ordem é caracterizada fundamentalmente por um ajuste econômico-político: livre-comércio,
mercados-abertos, “redução do setor público e diminuição do intervencionismo estatal na
economia e na regulação do mercado” (TORRES, 2008, p.107).
Outra peculiaridade desta nova ordem é um ajuste cultural ou reforma, ou seja, um “conjunto mais ou menos coerente de conceitos, valores, representações e imagens” com o “objetivo de deslocar os conteúdos culturais e políticos implicados nas noções modernas de ‘cidadania’, ‘bem comum’, ‘democracia’ e ‘educação pública’ e substituí-los por outros, produzidos no quadro da ética do mercado de livre consumo” (SUÁREZ, 2008, p.239).
Conforme este autor, a construção de uma escola democrática está comprometida
com tal substituição.
Neste cenário, a confiança no mercado livre e competitivo glorifica o setor privado- e
as privatizações- em detrimento do setor público ou estatal cujas atividades são consideradas
“ineficientes, improdutivas, antieconômicas e como um desperdício social, enquanto o setor
privado é visto como eficiente, efetivo, produtivo, podendo responder, por sua natureza
36
menos burocrática, como maior rapidez e presteza às transformações que ocorrem no mundo
moderno”(ibid, p.109). Tal glorificação foi exemplarmente sentida no momento da referida
pesquisa onde todas as escolas que estão ou estarão sendo criadas pelo Estado do Ceará com a
marca de ser uma escola estadual de ensino profissionalizante (EEEP) serão dirigidas por uma
filosofia educacional denominada de TESE – Tecnologia Empresarial Socioeducacional.
Torres (2008) defende a globalização como categoria fundamental para entender as
transformações do capitalismo e o modelo estatal neoliberal. Ela significou uma
reestruturação da economia no mundo inteiro e uma divisão profunda e internacional do
trabalho que causou uma alta produtividade e mobilidade do capital. O aumento da
produtividade, a redução dos custos da produção e a quebra das fronteiras geográficas
promoveram uma acumulação vertiginosa das taxas de lucro. Por conseqüência, estas
transformações implicaram numa “diminuição da classe operária e do poder dos sindicatos na
negociação de políticas econômicas e na constituição do pacto de dominação estatal” (ibid,
p.112). A marca destas transformações mais sentida pela classe docente é a diminuição do
poder mobilizador dos sindicatos temerosos por uma desestabilização dos poucos professores
efetivos que ainda restam na educação, visto que dissimuladamente o Estado opera com um
número crescente de professores sem vínculo e um cadastro de espera nas Secretarias de
Educação constituído por professores recém-formados ávidos por uma oportunidade no jogo
mercantil da educação.
A sociedade pós-fordista ou atual se caracteriza pela edificação de um modelo social
dualizador e marginalizador de setores amplos da população. Tal dualização ou sociedades de
“ganhadores” e “perdedores” ou de “integrados” e ‘”excluídos” não são apresentadas
Como um desvio patológico do aparentemente necessário processo de integração social que deveria caracterizar as sociedades modernas, constituem hoje uma evidência indispensável da normalidade que regula o desenvolvimento contemporâneo das sociedades ‘competitivas’ [...]. Na perspectiva conservadora não é mau que seja assim- é, até mesmo, desejável. Para isso, cumprem aqui um papel fundamental as ideologias meritocráticas e do individualismo competitivo, segundo as quais o que justifica e legitima a divisão hierarquizante e dualizada das modernas sociedades de mercado é o assim chamando princípio do mérito (GENTILI, 2008, p.220, grifo do autor).
O princípio do mérito no neoliberalismo concorre para duas grandes finalidades:
vincular o sucesso do competidor individual em todos os aspectos à sua supracapacidade de
enfrentar as realidades adversas do mercado social; e evitar o “clima social de acomodação e
desrespeito pelo esforço e pelo mérito individual” difundido pela existência dos direitos
37
sociais e políticos (ibid, p.221). Descartando a necessidade dos direitos sociais e
fundamentando toda a existência social no princípio do mérito, as políticas neoliberais
conseguem justificar a nova configuração de atuação do Estado “mínimo”: não mais como
suposto responsável pela disseminação dos bens públicos- saúde, educação, moradia,
segurança, emprego, cidadania e democracia; mas sim um conservador e defensor tal quanto
da propriedade e seu direito (ibid, p.227) como um apoiador das demandas do mercado
(TORRES, 2008, p.109).
A retórica neoliberal considera a desigualdade como a base para “toda possibilidade de
compra e venda” e que “leva supostamente os indivíduos a melhorar, a se esforçarem e a
competir, em suma: é a precondição para o exercício do princípio do mérito” (GENTILI,
2008, p.227). Não é a toa que o sistema educacional brasileiro está recheado de avaliações
nacionais e estaduais e suas devidas premiações e recompensas direcionadas aos alunos,
professores e gestores da educação, objetivando uma maior produtividade ao evitar uma
possível acomodação advinda da estabilidade profissional e justificando assim suas políticas
de exclusão e demissão por justa causa.
Tal princípio se constitui num dos motivos que leva os docentes a se armarem o
quanto possível a fim de obterem alguma vitória no campo de batalhas da docência por
reconhecimento, aprovação, status, posicionamento e aumento salarial.
Vinculado a este princípio está o discurso da eficiência e competitividade que objetiva
tornar a mão-de-obra mais flexível e angustiada com relação às suas habilidades básicas
adaptadas ao mercado e em permanente busca por autocapacitação, individual e solitária, pois
a educação tornou-se um direito de propriedade que poucos conseguem possuí-las ao ponto de
trocá-la, por exemplo, por melhores salários ou pela simples situação de permanecer no
emprego.
Estas marcas neoliberais que ferem qualquer trabalhador social - meritocracia, culto à
desigualdade como estratégia de maior produtividade, princípio da competição e eficiência,
instabilidade no emprego, descartabilidade profissional – advindas de uma filosofia de vida
escravizada por demandas altamente mutáveis do mercado que a classe dominante engendra a
fim de continuar no seu processo de dominação e exploração – causam danos significativos
nas perspectivas da população essencialmente se as previsões científicas não conseguem
prever as futuras reviravoltas da esfera mercantil. Bauman (2007) comenta este fato assim:
Submeter os esforços humanos de auto-afirmação e auto-aperfeiçoamento a visões essencialmente imprevisíveis e sabidamente não-confiáveis das
38
futuras necessidades dos voláteis e caóticos mercados acarreta muito sofrimento para as pessoas- frustração, esperanças destruídas e vidas desperdiçadas. Os cálculos sobre a ‘capacidade humana’ reivindicam uma autoridade a pessoas que não tem que fazem promessas que não podem cumprir e, como resultado, assumem responsabilidades com as quais não podem arcar (ibid, p.161).
Na verdade o discurso de auto-aperfeiçoamento e auto-aprendizagem servem como
uma desculpa cínica tanto para a retirada do Estado da sua função de provedor dos direitos
sociais quanto para justificar as políticas mercantis de exclusão, competitividade,
produtividade e instabilidade no trabalho social.
A irritação dos neoliberais e neoconservadores com relação aos conceitos de direitos
humanos, justiça e igualdade e sua preferência aos de desigualdade, competição, mérito e
‘mercantilidade’, compromete a distribuição dos bens sociais como a educação. Como o
gestor universal da educação é o mercado via escola pública e privada, quando tal distribuição
não é suficiente, cabe às instituições descentralizadas- comunidades, igrejas, associações-
livres da “ingerência perniciosa dos governos” assumirem esta responsabilidade numa
situação de caridade. A caridade exercida pelo Estado é denominada de assistência social.
Para os neoliberais, tal ação é que gera mais desigualdade (GENTILI, 2008, p.227-8).
A ofensiva neoliberal deixa claro sua preferência pelo mercado, mas esconde, até certo
ponto, seu desprezo pelas políticas democráticas, revelando desta forma seu caráter despótico
e autoritário.
Para Suárez (2008) a expressão mais ambiciosa do neoliberalismo é um “projeto
intelectual e político de desintegração do quadro de direitos até há pouco garantido pelo
Estado (de bem-estar, populista e outros híbridos latino-americanos)” apontando problemas de
deficiência administrativa do setor público numa defesa das perspectivas neoliberais de
mercado. A mudança cultural engendrada pelo novo ordenamento neoliberal tem como
condição de possibilidade e ferramenta
A dissolução de representações ancoradas no imaginário social acerca das vantagens conquistadas, após anos de luta, pela democratização da vida social e política, e construídas historicamente em detrimento do interesse individualista, da competição selvagem e do lucro indiscriminado prometidos pelo mercado entregue à sua própria legalidade (ou seja, sem ajustamento e controle públicos) (ibid, p.241).
Eis o horizonte do neoliberalismo: substituir os consensos edificados em torno de
valores sociais e democráticos por valores da empresa- competitividade, mensurabilidade e
39
lucro. Esta substituição não sendo automática precisa, conforme Suárez
(2008) de uma mudança profunda das formas culturais e para tal feito a Nova Direita se
utiliza da escola pública e dos meios de comunicação de massa “para ensaiar e operar as
redefinições e as transformações implicadas em sua reforma cultural”, “porque se deram conta
das potencialidades que apresentam para ‘fabricar’ sentidos e significados sociais favoráveis a
seu projeto, sem o perigo ou obrigação de submetê-los, ao menos, imediatamente, à discussão
e ao controle públicos” (p.244).
Por mais que cinicamente no discurso oficial da filosofia da TESE seja constituída por
certos princípios como cidadania, ética, valores sociais, gestão democrática, protagonismo
juvenil e os quatro pilares da educação de Jacques Delors, os valores da iniciativa empresarial
constituem o eixo norteador das práticas curriculares e em momentos decisórios expressam a
sua predominância: produtividade, autocapacitação, eficiência, diligência, eficácia,
empreendedorismo, competência, autocontrole, gerência, competição e outros.
Este autor denomina de “princípio educativo da Nova Direita”, o conjunto de
discursos, propostas e práticas como momento estratégico da política neoliberal de reforma
cultural. Esta tarefa cultural engendrada pela Nova Direita se caracteriza por possuir uma
dupla face:
Ao mesmo tempo que afirma, cria, recria e modela um novo sentido do educativo, nega, desqualifica e oculta outros significados divergentes, considerados disfuncionais em relação à nova lógica que pretende impor como a única válida, razoável e legítima, a partir desse momento simultâneo de produção e de crítica, apresenta-se como conjunto de critérios que permitem ‘modernizar a educação’ e ajustá-la às demandas colocadas pela sociedade ou, que dá no mesmo, pelas exigências de qualificação- disciplinamento ditadas pelo mercado de trabalho surgido de processos produtivos reconvertidos (SUÁREZ, 2008, p.245).
Duas conseqüências são sentidas da ação deste princípio educativo: a educação deixa
de ser um direito social e de conquista democrática e passa a ser uma mercadoria a mais; e a
formação de identidades sociais e culturais será orientada para funcionarem dentro desta nova
ordem a instaurar (SUÁREZ, 2008).
A esfera educacional deve passar por todo um processo de mudança de sentido. A
escola como espaço social de conflito e contradição nos processos de produção simbólica se
constitui num importante lugar estratégico de reforma cultural. Uma de suas funções é tentar
destruir a imagem de uma sociedade de cidadãos que lutam por seus direitos e introjetar uma
imagem de sociedade de consumidores em competição embriagados pela ética do consumo,
40
ou seja, pela promessa de livre escolha no mundo capital sem considerar as desigualdades nas
relações de poder (op.cit).
Uma das marcas mais poderosas deste princípio educativo está na ação e atuação do
currículo. O currículo pode ser entendido como “um instrumento de política pública” e o
currículo oficial mais especificamente configura “um mandato socializador (grifo do autor)
que, ao interpelar pedagógica e ideologicamente os sujeitos, os constitui e os habilita
instrumentalmente para perceber e atuar em um dado universo significativo”. Tal mandato
expressa o princípio educativo dominante, mas que os sujeitos podem imprimir suas
resistências (SUÁREZ, 2008, p.250-1).
O autor também considera o currículo como “artefatos normativos de regulação
política e moral” que marcam os sentidos de posição do professor na reprodução e
transmissão de uma seleção particular arbitrária de uma cultura, da legitimidade dos modos de
fazer e avaliar as relações entre professor e aluno. Sendo assim, os indivíduos comprometidos
com a constituição de suas identidades social e pedagógica esbarram nos limites institucionais
da escola e “são direcionados e controlados pelas afirmações e sanções culturais ideológicas e
axiológicas que são estabelecidas pelas definições curriculares oficiais”. Lutar pela
constituição democrática do currículo é para o autor antes de tudo “uma luta política e ética”
(SUÁREZ, 2008, p.252).
Na educação, o poder de dominação neoliberal é aumentado pelo uso das estratégias
discursivas de “qualidade na educação” e educação para o emprego. Entretanto, a educação de
qualidade se apresenta como direito de propriedade de pouco consumidores no mercado dos
bens educacionais e “’serve’, enquanto propriedade ‘possuí-la’, para competir no mercado dos
postos de trabalho (que definem a renda das pessoas também enquanto direito de
propriedade)” (ibid, p.233). Já a educação para o emprego
Não é outra coisa senão a educação para o desemprego e a marginalidade. Reduzir e confiar cinicamente a educação a uma propriedade que só potencializa o acesso ao trabalho é nos resignarmos a sofrer uma nova forma de violência em nossas sociedades não-democráticas (ibid, p.234).
Sobre esta relação estratégica de dominação neoliberal – educação-trabalho – Gentili
(2008) conclui da seguinte maneira:
Na moderna sociedade de mercado, o emprego (como a educação de qualidade) não é um direito, nem deve sê-lo. Esta redução da relação educação-trabalho à fórmula ‘educação para o emprego’ deriva-se quase logicamente tanto de uma série de formulações apologéticas acerca do
41
funcionamento autocorretivo dos mercados (em termos gerais), como de uma particular interpretação acerca da dinâmica que caracteriza as novas formas de competição e intercâmbio comercial das sociedades pós-fordistas (ibid, p.232).
Numa sociedade dualizada não há cidadãos ou “alguns membros mais cidadanizados
que outros”, visto que a preferência é por consumidores mais adequados ao mercado
(GENTILI, 2008, p.221). É um direito ser ‘consumidor’, no sentido de ter direito à
propriedade dos objetos e a possibilidade de comprar e vendê-los.
Na sociedade líquida, marcadamente uma sociedade de consumidores, necessita-se de
uma educação adaptável a tal realidade. Através de incontáveis instituições – jornais, TV,
cartazes, revistas temáticas, escolas, cinema, escolas e universidades – o ideal neoliberal é
alcançado: uma educação continuada – conforme Bauman (2005), o único exemplo bem
sucedido deste tipo de educação, que objetive o desenvolvimento das competências de um
consumidor. Para este autor uma considerável diferença nesta educação é que antes nossos
ancestrais nos treinavam como produtores onde certos atributos eram ensinados tais como
“aquisição e retenção de hábitos, lealdade aos costumes estabelecidos, tolerância à rotina e a
padrões de comportamento repetitivos, boa vontade em adiar a satisfação, rigidez de
necessidades”. Hoje estes atributos se transformaram nos “vícios mais apavorantes” (ibid,
p.73).
Conforme Bauman (2007), esta educação contínua e ao longo da vida é o único tipo
concebível de educação num ambiente líquido-moderno, visto que ocorre uma produção em
grande escala e estocagem da ignorância humana por causa da combinação entre “o
impetuoso crescimento do novo conhecimento e o não menos rápido envelhecimento do
conhecimento prévio” (ibid, p.156). Além disso, e com maior importância este tipo de
educação é conseqüência de uma estratégia de reforma cultural imposta pelas políticas
neoliberais que tem as demandas imprevisíveis do mercado como fio condutor de suas ações.
Educar-se para sempre é a única maneira que temos para não ser jogado na lixeira dos
desempregados. Aprender o maior número de habilidades técnicas e estar sempre à espera das
novas habilidades que o mercado faz surgir para aprendermos constitui no cerne da educação
continuada.
É verdadeiro que quem se nega a se educar continuamente poderá ser excluído do
mundo do trabalho, mas também é igualmente verídico que tal orientação no fundo significa
uma estratégia de justificar as decisões empresariais de demissão e achatamento salarial de
seus empregados. Como educar continuamente uma massa de trabalhadores se não há nem a
preocupação pública de criar os cursos e faculdades correspondentes às demandas do
42
mercado? Mais uma vez uma justificativa é encontrada para destruir a imagem que temos do
serviço público, ou seja, este serviço deve ser administrado pela iniciativa privada pois a
instância pública não consegue se modernizar, adaptar-se às demandas sociais. Entretanto o
Estado está a serviço do mercado. É por esse motivo que ele não se preocupa com a criação
destes cursos, visto que esta demanda por novos cursos “atualizados” será satisfeita pelo
próprio mercado, agora com um recente campo de exploração- a educação ao longo da vida.
Indubitavelmente este processo de criação de novas demandas cognitivas e técnicas exigidas
pelas novas reviravoltas do mercado se constituem num dos movimentos vitais para o
capitalismo excludente continuar resistindo a suas crises estruturais.
Para Gentili (2008), a educação é um direito se houver instituições públicas que a
concretizem via ambiente democrático. Direito como atributo gozado pela minoria não passa
de um privilégio, como ocorre nos países latino-americanos. Assim, “defender ‘direitos’
esquecendo-se de defender e ampliar as condições materiais que os asseguram é pouco menos
que um exercício de cinismo” (op. cit). Geralmente é o que fazem as máximas e pensamentos
vergonhosamente neoliberais que inundam as práticas e políticas curriculares brasileiras e que
passam despercebidas pelos docentes despreparados e alienadamente proletários tensos e
amedrontados do capitalismo global. Então não adianta lutar por uma sociedade justa, igual e
cidadã apenas tentando conscientizar as massas de seus direitos e significados dos mesmos. É
necessária uma conscientização crítica-estrutural das relações de dominação e de reforma
cultural por que passam as sociedades capitalistas para que o poder hegemônico dos
dominantes comece a rachar sensivelmente.
No ambiente líquido-moderno o instrumento supremo de dominação é a “incerteza
fabricada” (BAUMAN, 2007, p.162). Ela se constitui na maior marca da identidade humana,
e no caso específico, dos professores. Constitui na resposta- razão do desestímulo às
mobilizações. Produz medo e insegurança com relação à perda do emprego e da própria vida.
Fabrica identidades indeterminadas ou fragmentadas caracterizadas pela perda da esperança,
desilusão e desistência com relação à construção de uma sociedade melhor e de uma
identidade mais definida e autônoma. Exacerba o individualismo e egoísmo como estratégias
de continuar em movimento. Enfim, compromete a emergência de uma ação docente
emancipatória tão necessária ao início de uma reconstrução da cultura via educação formal.
Bauman (2007) defende como objetivo principal da aprendizagem ao longo da vida-
adaptável ao mundo líquido – o “capacitamento”, obter capacitação. Para ele “estar
‘capacitado’ significa ser capaz de fazer escolhas e atuar efetivamente sobre as escolhas
feitas, e isso por sua vez significa a capacidade de influenciar o espectro de escolhas
43
disponíveis e os ambientes sócias em que as escolhas são feitas e perseguidas (grifo do autor)”
(ibid, p.162). Para tal feito o autor defende não só aquisição de habilidades técnicas
continuamente renovadas, mas também de poderes sociais “para influenciar os objetivos,
riscos e normas do jogo” (ibid, p.163). Outra defesa do autor para este tipo de educação é que
os indivíduos consigam realizar seus objetivos com “um pouco de engenhosidade e
autoconfiança, e esperar ter sucesso” a fim de não se adaptar ao ritmo acelerado de mudança
em atividade, mas sim tornar esse mundo mais hospitaleiro (ibid, p.164).
Percebe-se que Bauman mesmo criticando essa nova configuração líquida do mundo
caracterizada por relacionamentos sem vínculo, individualismo possessivo e competitivo,
culto e idolatria ao consumo, coisificação dos sentimentos e valores humanos e
mercantilização da existência cultural, defende uma noção de educação que se preocupa com
a melhor adaptação ou ajustamento do “indivíduo” em meio a estas inúmeras e aceleradas
mudanças. Pelo menos depois de uma avaliação das obras lidas do autor, o sentimento ou
objetivo de desestruturação desta nova ordem e edificação de outra, não foi sentida. Parece
que o autor desconsidera a possibilidade de mudança estrutural mesmo que lenta da
humanidade a qual se constitui na filosofia da pesquisa realizada.
Uma importante consideração de Bauman (2007) merece destaque. A ignorância
paralisa a vontade. Juntamente à incerteza ambas “deliberadamente cultivadas” produzem um
efeito dominador mais barato e confiável “do que um governo com base num profundo debate
dos fatos e num longo esforço de atingir a concordância quanto à verdade e às formas menos
arriscadas de proceder” (ibid, p.166). É por essa razão que as mudanças significativas na
educação brasileira não se efetivam- para preservar a ignorância e nutrir a incerteza. Escolas
democráticas. Salas com poucos alunos. Professores bem pagos e formados tanto pela
pedagogia crítica quanto pelos conhecimentos específicos de sua área. Boas condições físicas
e ambientais no processo de aprendizagem. Variedade curricular, porque as Artes e os
Esportes não são considerados importantes no desenvolvimento intelectual e social dos
discentes. São muito arriscadas tais mudanças, se realizadas talvez condenassem a morte da
ignorância e num futuro próximo das práticas de exploração e dominação do espírito
capitalista.
A principal vertente de dominação é a ignorância política que está conseguindo
sufocar as vozes da democracia. (BAUMAN, 2007). Sua autoperpetuação é acompanhada e
embaçada pelo discurso da autoeducação, autodesenvolvimento e do sucesso na vida como
resultado imediato da busca individual, autocontrole e autoaperfeiçoamento que esconde as
malhas estruturais de dominação e determinação da vida humana. Para o autor a democracia
44
não resiste à passividade, ignorância e indiferença políticas observadas em toda parte do
planeta: pessoas apáticas e desinteressadas pelo político (ibid, p.164).
No Brasil, a subida ao poder de um líder supostamente de esquerda e sua rendição aos
ditames do mercado global e às relações escusas de corrupção e satisfação meramente
individuais dos “representantes do povo” corrobora não só a apatia e a passividade com
relação ao político, mas também para uma “indignação protecionista” do tipo “vou parar de
ficar tentando entender as coisas ou discutir política, pois vou acabar ficando doido ou
desempregado e os que estão no poder continuam mais poderosos e insensíveis”. A
indignação civil é a força-motriz da mobilização e conseqüente ressuscitação da democracia.
Todavia uma “uma indignação protecionista” provoca, além da indiferença defensiva quanto
aos problemas e a real situação da política brasileira, um anestesiamento da população que
para compensar as conseqüências desta “anestesia” ou para evitar que a sensação da mesma
acabe, os cidadãos brasileiros preferem se dedicar à idolatria dos seus times e craques do
futebol, à extravagância e o glamour das festividades do carnaval, às promessas de mudança
vindas do Céu – deuses e santos ou se entregam às bebedeiras nos bares da esquina ou mais
recentemente às alucinações das “cápsulas e pós do prazer” fácil, efêmero, porém
mortificante.
Bauman (2007) afirma que a educação ao longo da vida é necessária para termos
escolha e preservar as condições de tornar esta escolha possível. Talvez esta afirmação
corrobore a enunciação acima sobre o autor. Sua defesa da ordem líquida e a pouca
possibilidade de mudá-la, delegando à educação ao longo da vida a função de melhor preparar
individualmente os humanos para se sair bem nos espaços líquidos sociais em acelerado
movimento, é uma paradigma usualmente difundido pelas pedagogias neoliberais.
1.3- A PROFISSÃO DOCENTE
As características da era líquida e seu específico produto controlador – as políticas
neoliberais – marcam vertiginosamente o exercício da docência e de qualquer profissão
humana.
Veiga (2008) destaca o sentido etimológico da docência cujas raízes vêm do latim
docere, “que significa ensinar, instruir, mostrar, indicar, dar a entender”. Expressando o
trabalho dos professores, a docência envolve um conjunto de funções a serem desempenhadas
numa instituição escolar determinada. O ato de ensinar, principal função do docente, vincula-
se a específicas atividades, saberes e aprendizagens antes, durante e após a concretização da
45
ação educativa. Como antes se destacam as atividades relacionadas ao planejamento da aula
propriamente dita que se relaciona com a formação acadêmica docente – saberes e
aprendizagens adquiridas durante o curso universitário, como também o conjunto de saberes e
aprendizagens advindos da experiência no magistério ou no diálogo com os pares da
profissão. Se for iniciante na profissão, vale refazer a afirmação anterior substituindo a
palavra ‘experiência no magistério’ pelos momentos de reflexão e debate ocorridos
supostamente na disciplina de estágio supervisionado nos cursos de licenciatura do país.
Durante a aula, o planejamento docente, bem como as suas escolhas metodológicas e
didáticas, seus saberes tanto acadêmicos quanto da experiência, enfim suas aprendizagens
estarão em permanente avaliação, reestruturação e análise. Depois da aula as possíveis e
necessárias articulações sejam concebidas, aceitas e exercidas a fim de que o professor
continue realizando o ato de educar de forma plausível e consensualmente aceita pela
comunidade escolar ou subjetivamente por si mesmo.
Esse movimento da docência destacado acima se vincula de certa maneira às
proposições do professor reflexivo tão difundidas na literatura especializada atualmente.
Entretanto tal movimento está permanentemente sendo influenciado por inúmeros paradigmas
e tendências de pensamento e ação que trazem consigo concepções de ser, pensar e fazer do
professor à medida que carregam seus sentidos e definições sobre a educação, aprendizagem,
escola, sociedade, política e cultura. A cada momento histórico tal paradigma se coloca como
dominante e tenta se contrapuser aos outros numa eterna batalha para conceber o educativo.
Um exemplo disso é a concepção de professor reflexivo que é logicamente comprometida
pelos paradigmas neoliberais da educação. Ora, o docente reflexivo logo tomará consciência
das reais finalidades da educação formal e se for um intelectual crítico engajado iniciará um
processo de conscientização da comunidade escolar e uma resistência às normatizações
políticas educacionais. Agindo desta forma o professor estará comprometendo sua
sobrevivência no sistema, pois, em última instância, ele é um funcionário do Estado cuja
função está deliberadamente definida, mesmo no caso da docência que existem inúmeras
concepções de ser e agir relacionadas aos objetivos educacionais- ora reprodução, ora
transformação social ou adaptação e ajustamento.
Enfocar os paradigmas norteadores da formação docente é necessário para se pensar
alguns elementos da docência. O primeiro é investigar de que forma esta formação está
marcando a identidade docente através de seus paradigmas, concepções e sentidos do pensar,
ser e fazer dos professores. De que maneira estes paradigmas ou significações da cultura e da
docência engendram professores proletários ou intelectuais críticos sociais. Este ponto será
46
investigado em outro momento. O segundo elemento é a defesa de que a docência “requer
formação profissional para seu exercício: conhecimentos específicos para exercê-lo
adequadamente ou, no mínimo, a aquisição das habilidades e dos conhecimentos vinculados à
atividade docente para melhorar sua qualidade” (VEIGA, 2008, p.14).
Deste segundo elemento depreendem-se outros dois. Defender uma formação
profissional para os docentes assegura que não caem na escola “professores pára-quedas” sem
preparação pedagógica e específica para exercerem a profissão. Como o processo de
desemprego estrutural capitalista acelera a busca de determinados profissionais
desempregados por outros campos de trabalho que o aceitem. São advogados, enfermeiros,
assistentes sociais, engenheiros que não conseguem inserção no mercado de trabalho e
procuram as escolas para sobreviverem. Como a escassez de professores em algumas áreas do
saber – Matemática, Física, Química e Biologia – torna-se um problema estrutural cada vez
mais isento de soluções, a escola acolhe estes profissionais com o maior prazer. Todavia onde
fica a exigência de formação pedagógica necessária ao magistério, haja vista a importância da
docência na socialização da cultura.
Outro elemento e, por vezes, conseqüência do anterior, é uma maior preocupação das
Universidades tanto com relação às licenciaturas quanto aos cursos de formação pedagógica
de professores. Talvez tal preocupação possa enfatizar o papel fundamental das disciplinas
pedagógicas nos cursos de Licenciatura do Brasil, tão entregues às intempéries da estrutura
curricular e política das universidades que legitimam em sua grande maioria apenas as
disciplinas de formação específica de cada Licenciatura.
Para Veiga (2008) a formação do professor deve ser tratada como um direito de
responsabilidade da esfera pública e a fim de superar o ideal de aperfeiçoamento próprio. De
caráter multifacetado, plural, inconcluso e autoformativo, este processo de formação deve
proporcionar uma preparação profissional para exercer o magistério (ibid, p.15) tendo como
características: o caráter contínuo e progressivo de ações que envolvem várias instâncias;
valorização da prática profissional fundamentada numa teorização específica como “ponto de
partida e de chegada”; contextualização histórica e social da formação alinhadas ao ideal de
inclusão social a partir de “perspectivas emergentes e emancipatórias”; sinaliza uma dada
opção política e preparação para o incerto; expressa uma “articulação entre a formação
pessoal e profissional” ou “encontro e confronto de experiências vivenciadas”; “trata-se de
um processo coletivo de construção docente”; e deve passar “pela elaboração de pensamentos
autônomos e críticos que dêem aos sujeitos e poder de decidir por si mesmos” (ibid, p.16-7).
47
Tomando a identidade docente como espaço conflitivo de construção das formas de
ser, pensar e agir na profissão e também como condição da profissionalização docente
(VEIGA, 2008), as marcas que a constitui podem ser esclarecedoras tanto para saber se esses
objetivos enumerados acima foram atingidos quanto que objetivos foram alcançados numa
determinada formação universitária- espaço social importante na marcação identitária.
As escolas públicas e o exercício da docência, não abrem espaço para construção e
solidificação de um projeto de mudança. A busca veloz e angustiante por uma sobrevivência
digna tornou os professores meros executores de tarefas ou normas: instruir os alunos para
certas habilidades cognitivas e modos de ser, pensar e agir da sociedade capital. Eles como
boa parte da ciência humana conceberam a sociedade capitalista como ideal ou perderam a
esperança de construir uma nova configuração social e assim ambos trabalham juntas ciência
e docência ou educação para no mínimo melhorar uma enorme massa de pessoas excluídas do
processo capital de existência através de uma inclusão sofrível do mínimo de pessoas.
Além disso, o medo de perder o emprego e ser descartado ou substituído por outro
exacerba e consolida o individualismo e o egoísmo dos indivíduos tão necessários à
acumulação do capital. Por esse motivo a iniciativa dos professores de mudar suas condições
de vida e de trabalho se dá prioritariamente no aspecto individual através da busca por outros
postos de trabalho ou de realização de cursos de pós-graduação a fim de aumentarem sua
renda salarial tão defasada atualmente.
Neste cenário fica secundarizada a busca por melhoria nos saberes e aprendizagens
necessárias à realização de um processo de ensino-aprendizagem que vislumbre a formação
dos discentes não apenas com relação às habilidades técnicas exigidas pela nova configuração
social, mas, fundamentalmente, vinculado ao desenvolvimento de seres humanos críticos,
responsáveis, solidários, conscientes, éticos, cidadãos e ‘humanos”.
Lutar coletivamente é hoje um risco muito grande com relação aos ganhos individuais
conseguidos com tanto esforço. Neste sentido, é de suma importância analisar o poder de
atuação e mobilização dos órgãos que se dizem defensores de determinadas classes
trabalhistas - os sindicatos - que, no atual governo petista antes de raízes combativas por
melhores condições trabalhistas, percebe-se um retraimento e clara moderação em suas lutas e
mobilizações. No Estado do Ceará, por exemplo, o sindicato de maior representatividade dos
professores estaduais é a APEOC – Associação de Professores das Escolas Oficiais do Ceará
– além de não conseguir melhorias nas negociações com o governo, não possui nenhuma
capacidade de mobilização da classe docente para as devidas manifestações. Um exemplo de
sua ineficácia é a incapacidade de pressionar o governo cearense na implantação do Piso
48
Salarial da categoria sancionado pelo presidente Lula no final de 2008, cujo governador se
nega a implantar. Parece que “cada categoria em desvantagem está agora por sua própria
conta, abandonada aos próprios recursos e à própria engenhosidade” (BAUMAN, 2005, p.42).
Para este autor, “o descontentamento social dissolveu-se num número indefinido de
ressentimentos de grupos ou categorias, cada qual procurando a sua própria âncora social,
pois a classe não era mais segura “para reivindicações discrepantes e difusas” e isso teve um
“efeito imprevisto”: “progressiva desintegração do conflito social numa multiplicidade de
confrontos intergrupais e numa proliferação de campos de batalha”. E isso enfraqueceu a luta
por uma sociedade melhor no sentido macro, pois todos os grupos historicamente excluídos e
renegados estão preocupados em fazer justiça para si mesmos - que não deixa de ser ‘justa’ tal
iniciativa e humanamente legítima, entretanto:
A idéia de um “mundo melhor”, se é que surgiu, se encolheu diante da defesa de causas atuais relacionadas a grupos ou categorias. Ela permaneceu indiferente a outras privações e desvantagens e ficou muito longe de oferecer uma solução universal e abrangente para os problemas humanos. (BAUMAN, 2005, p.42-3).
Bauman (2005) endossa a preocupação de que os intelectuais críticos sociais não
enxergam mais os menos favorecidos e o dever para com os mesmos ficou esquecido. Assim,
os seus descendentes são “frágeis, sensíveis e irritados, lutando para elevar o respeito e a
adulação de que gozam ao nível dos elevados ganhos econômicos que já obtiveram. São
obstinadamente, egocêntricos e auto-referentes” (ibid, p.44). No caso do professor e se
pensarmos como um intelectual crítico social, que de alguma maneira deveria ser uma
identidade essencial numa categoria trabalhista de que se almeja a tarefa da mudança social, o
que muda é o final da frase: ao nível dos elevados ganhos de posicionamento social que
almejam obter.
Como o aumento salarial significativo do docente brasileiro só se concretiza a partir de
títulos de mestrado e doutorado ou pela ascensão para os cargos de chefia – coordenação,
direção ou secretário de educação – os professores vivem num campo de batalhas em busca
por reconhecimento pelos atuais mandatários do sistema educacional. Em vez de canalizar sua
força em prol da melhoria da categoria docente e pela mudança social através de seu fazer
específico, o existir docente – e a realidade observada ratifica esta afirmação – em sua grande
maioria os sujeitos estão vinculados a esses campos de batalhas.
O professor não se preocupa em ser reconhecido nem entre os pares e nem entre seus
alunos. Habita num mundo de incerteza e efemeridade líquida, onde a desvalorização
49
financeira e social da docência não é somente sua conseqüência, mas se constitui numa
estratégia neoliberal de desarticulação e indeterminação de sua própria identidade. Assim,
toda sua ação, como a de qualquer profissional está permanentemente sendo avaliada no
propósito de substituí-la ou descartá-la caso não atenda as exigências solicitadas. O que
esperar de um processo educativo onde seu mentor se preocupa em demonstrar eficiência e
valor para os gestores em vez de estar preocupado com a aprendizagem de seus alunos e
fundamentalmente uma aprendizagem crítica, social e emancipatória?
Não só as fábricas e os escritórios, mas também as escolas particulares e as públicas
[...] se tornaram palco de uma competição acirrada entre indivíduos lutando para que os chefes os percebam e os contemplem com um aceno de aprovação- em vez de serem, como no passado, estufas da solidariedade proletária na luta por uma sociedade melhor (ibid, p.40).
Se pudermos considerar a estabilidade no emprego público não somente como um
direito conquistado a ser ampliado, mas também como um dos recursos necessários para a
construção de uma identidade profissional mais definida e duradoura, as políticas neoliberais
e neoconservadoras também já sabem disso e por isso seu principal instrumento de dominação
e exploração neste aspecto é a flexibilização e a terceirização do trabalho. A educação não
ficou e nem poderia ficar de fora. O crescente número de professores substitutos ou
temporários nas escolas e universidades brasileiras corrobora na estratégia política de evitar a
solidariedade, mobilização da categoria e construção de uma cultura docente. Com a enorme
presença de temporários na escola e no cadastro de reserva das secretarias de educação do
Brasil, o funcionamento da escola não será afetado por completo, por exemplo, no caso de
uma greve geral da categoria. Pelo contrário, a existência desse vasto exército de reserva, e às
vezes, pessoas altamente qualificadas, amedronta mais ainda os professores efetivos
marcando profundamente sua identidade egocêntrica e de caráter autoexibicionista.
Sendo assim, os indivíduos preferem “um hoje diferente para cada um a pensarem
seriamente num futuro melhor para todos. Em meio ao esforço diário apenas para se manter à
tona, não há espaço nem tempo para uma visão da ‘boa sociedade’(BAUMAN, 2005, p.41).
Entretanto, o mesmo autor justifica estas atitudes individualistas e egoístas dos homens e
mulheres líquidas.
Como todos os indivíduos estão entregues à própria sorte, “abandonados,
dissocializados, fragmentários e solitários”, pois não há nem mais promessas de segurança e
assistência por parte da entidade estatal, eles vivem numa angustiante busca individual por
suas satisfações (emprego, reconhecimento, vivências prazerosas e felicidade) assombradas
50
“consciente ou subconscientemente” pelo “espectro da exclusão”. O medo da exclusão como
marca da identidade humana pós-moderna transforma tal identidade num terreno de
manipulação de estratégias de sobrevivência e de inclusão social.
Os contornos desta identidade líquida ficam mais difíceis de rabiscar posto que em
prol do reconhecimento, inclusão, segurança e sobrevivência, as pessoas são capazes –e
devem ser se querem continuar no jogo- de apagar suas identidades de preferência a fim de
assumirem outras identidades exigidas ou impostas pelo contexto cultural específico.
Assim é demasiado inocente pensar na existência de uma docência que priorize os
ideais de emancipação e melhoria das condições de sua própria classe e também da situação
dos alunos que a mesma tem a função de educar. Se existem professores em prol da
emancipação eles se encontram indubitavelmente mergulhados num fogo cruzado. Tal fogo
faz parte da natureza do trabalho docente, todavia os que têm ideais libertários parecem que
estão se “queimando” mais, haja vista as características da sociedade neoliberal líquida que
estamos inseridos.
Como ter esperança numa mudança da sociedade radical se os principais educadores
sociais e exímios iniciadores deste processo estão preocupados em apenas mostrar que são
mais produtivos entre seus pares? Cabe aos intelectuais críticos sociais - se ainda existem
alguns - resgatarem ou construírem a sua identidade de humanidade e passarem a atuar tanto
nos meios de comunicação de massa quanto nas instituições universitárias na formação
docente especificamente a fim de conscientizar os futuros professores dos significados e
valores das reais configurações da sociedade e de suas funções críticas e emancipatórias.
Bauman (2007) destaca como tarefa dos educadores a agitação dos alunos e da
pedagogia critica como perturbadora das consciências a fim de fazer a sociedade se sentir
culpada da ordem que ela mesma construiu.
51
CAPÍTULO 2
ESCOLA, DOCÊNCIA, FOGO CRUZADO E MARCAS DA IDENTIDA DE
Educar incorpora as marcas de um ofício e de uma arte, aprendidas no diálogo de gerações. (ARROYO, 2008, p.18).
2.1- ESCOLA, FUNDAMENTOS EDUCACIONAIS E OS EDUCADORES
As escolas são espaços sociais de acomodação, reprodução, resistência e contestação.
A construção de significados que se processa em seu interior é marcada tanto por premissas
políticas e normativas quanto libertárias. Há sempre um jogo dialético entre interesses, poder
político e econômico, conhecimento e prática escolar (GIROUX, 1986, p. 68). Assim, a
função da escola está vinculada a este jogo dialético em que dependendo das circunstâncias
sociais e políticas, ela pode atuar hegemonicamente ora para reprodução social ora para
mobilização cultural ou até articulando conflituosamente estas duas tendências
intrinsecamente.
Se as estruturas determinantes econômicas e políticas de dominação e opressão
disseminam ideologicamente que seu poder é demasiado forte ao ponto de nunca ser
dizimado, cabe à escola de viés transformador ou, especificamente, ao professor emancipador
entrar em cena e trabalhar socialmente pela mudança construindo uma contra-ideologia de
mobilização humana para sucumbir às atuais relações sociais dominantes.
A escola atual brasileira tanto a pública quanto a privada continua sendo, salvo
raríssimas exceções, positivista, fragmentada e tecnocrática. Ela transmite muitos
conhecimentos disciplinares sem se preocuparem se os mesmos são absorvidos de forma
satisfatória. Não há aprendizagem significativa. Enfatizando bons rendimentos, ou seja, notas
azuis nos boletins escolares e razoáveis resultados nos exames nacionais de verificação do
ensino: ENEM, SPAECE, SAEB, a escola rejeita o processo complexo e demorado de uma
aprendizagem qualitativa, ou por não fazer parte de seu interesse enquanto instituição
ideológica estatal de reprodução das relações de dominação social e cultural ou por se
encontrar perdida em meio às grandes transformações globais de uma nova era pós-moderna.
As recentes pesquisas divulgadas em mídia nacional atestam uma crise que vem se
arrastando há anos e talvez por causa da nova conjuntura sócio-cultural global- era líquido-
moderna ou pela ambientação do país - busca desenfreada por desenvolvimento, ou melhor,
52
imitação dos países ricos, é que os debates sobre o que fazer para melhorar a educação
brasileira se tornaram tão acirrados. Neste ínterim ocorre um forte apelo muito interessante
para a função intrinsecamente vital da educação para a construção de uma nova sociedade ou
para enfrentar os desafios de uma nova ordem econômico-tecnológica que se legitima
velozmente.
Neste contexto de crise nos deparamos com uma crescente derrota dos educadores
familiares e escolares, no sentido de adaptar as novas gerações à lógica capitalista global de
trabalho, socialização e vivência grupal, que é disseminada de forma bem sucedida. Como
também no objetivo de promover a interiorização de novos valores, atitudes e relações que
transformem tal lógica, caracterizada excessivamente pela idolatria ao consumismo,
individualismo, poder, materialismo e contrária a qualquer sentimento altruísta ou
comunitário de existência humana.
Os educadores familiares foram derrotados por não possuírem tempo necessário para
cuidar e educar seus filhos haja vista que, a única saída para sobreviver no mundo explorador
capitalista, são todos, pai e mãe, senão filhos, trabalharem para, ao menos, terem alimentação
e alguns bens imprescindíveis como água, luz, teto e vestimentas tanto as classes populares
quanto as classes médias. Estas últimas no afã de manter a posição financeira que possuem.
Os educadores escolares, além de enfrentarem uma realidade de trabalho precária sem
valorização, disponibilidade de formação e condições materiais concretas de realização de
suas funções, são bombardeados pelos educadores familiares como uma nova exigência, além
de propiciar o sucesso no ensino-aprendizagem das novas gerações no tocante aos saberes e
conhecimentos culturais a serem socializados, devem acertar naquilo que os primeiros
erraram por não terem mais tempo ou por já terem se autocondenado no que se refere a uma
educação alheia aos valores de destruição e autodestruição disseminados na atualidade pelos
mais variados agentes: mídia, indústria cultural e os incontáveis grupos capitalistas de ideário
lucrativo.
Resgatar a importância da educação familiar e escolar na construção social constitui o
ponto de partida para uma real transformação. E o segundo passo é reconhecer que todos os
seres humanos são resultados de um processo de transmissão e interiorização de princípios e
leis de controle ideológico e cultural no âmbito de um determinado grupo social desde os
primeiros anos de vida.
Da mesma forma que “nosso processo de ‘humanização’ é marcado pelas relações de
aprendizagem que vivenciamos ao longo de nossa história de vida” (FREIRE, 2008, p.61), o
processo de ‘desumanização’ ocorre. Formas de sociabilidade bárbaras são ensinadas e
53
incorporadas para as futuras gerações culturais. A reprodução institucionalizada das relações
sociais reificadas pelo espírito individualista, egocêntrico e mercantil do capital está levando a
‘civilização’ à sua destruição ou, no mínimo, a sua bestialização. A ‘desumanização’
resultante desta ‘indústria’ de fabricar seres desprovidos de amor próprio e ao seu semelhante,
de carinho, afetividade, cuidado e solidariedade genuínos, precisa ser dizimada e não há
melhor instrumento para tal feito do que uma escola democrática que lute pela transformação
social.
Não é se deixando escravizar pela racionalidade positivista ou pelas políticas
educacionais de especulação de bons resultados que a escola se efetiva enquanto espaço social
de desenvolvimento intelectual e humano. Não é atuando como um prolongamento da classe
dominante no processo de reprodução social e cultural de práticas de subordinação no
cotidiano escolar (BOURDIEU, 1970), ou como um aparelho ideológico do Estado
(ALTHUSSER, 1971) com a finalidade de consentir tacitamente as relações de dominação
existentes, que a escola transformará a sociedade.
A característica fundamental de uma educação crítica é a total negação desta estrutura
social edificada pelo capitalismo dominador e excludente através da conscientização dos seres
humanos de sua condição de serem os únicos agentes transformadores do processo social
vigente, pois foram eles próprios que o construíram. Mas, para que esta conscientização
adquira o caráter de mudança do social é necessário que o processo educativo seja
intrinsecamente emancipatório.
É lógico que a conseqüência da educação crítica e emancipatória é a mudança ou
ruptura com a estrutura social estabelecida mesmo que seja atingida a médio ou longo prazo.
Dada situação de crise civilizacional que passamos com o iminente perigo de destruição da
natureza e da humanidade pelo homem, comandado pelo paradigma conquista-dominação-
exploração, surge uma questão crucial: até quando a humanidade pode esperar por resultados
libertários e transformadores no contexto de uma educação tradicional, conservadora e
neoliberal-capitalista? É uma ilusão cruel tal espera. Os discursos ideológicos são inúmeros,
mas o objetivo da educação neoliberal não é e talvez nunca será a igualdade, libertação e
emancipação, principalmente da classe oprimida.
Além da educação crítico-emancipatória, que mecanismos podemos utilizar,
justamente agora, para sanar a crise? Talvez a resposta desta última indagação esteja nas
gerações de jovens que serão formadas por este tipo de educação: seres humanos de
pensamento livre, críticos-reflexivos e socialmente comprometidos.
54
2.2- DOCÊNCIA E FOGO CRUZADO
Quando as teorias tradicionais da educação e alguns estudos recentes centralizam suas
análises na figura do professor, não é de forma aleatória e nem por perseguição empírica,
agem desta forma baseadas no pressuposto de que no processo de ensino-aprendizagem a
mediação docente é essencial e todo aquele que se dispõe a educar outrem, coloca-se, embora
que inconscientemente, na posição de ser ‘modelo’. O ato de educar é indiscutivelmente um
ato de intervenção cujas conseqüências e ‘marcas’ podem ser felizes como também
desastrosas, “porque educar é marcar o corpo do outro” (DOWBOR, 2008, p.66)
Na educação brasileira o docente deve ser supostamente vocacionado, pois ecoa vozes
quase unânimes da classe docente de que, para ser professor atualmente, por causa das
péssimas condições de trabalho e valorização, é preciso ter muito amor, dedicação, ou melhor,
vocação.
A capacitação docente se constitui numa postura dialética frente às práticas docentes
observadas durante a sua vida, na escola, universidade e cursos freqüentados. O indivíduo que
se encontra na situação de professor em potencial vai construindo sua singular postura
pedagógica, seja negando, confirmando ou refazendo o que considera necessário. É através
deste movimento dialético que o ‘saber-fazer’ docente se constitui, ou seja, sua identidade
profissional vai sendo marcada.
Os cursos cearenses de formação docente basicamente fornecem os conhecimentos
específicos da área de atuação do profissional como também os saberes pedagógicos
legitimados pela comunidade acadêmica sobre o ato de educar. Há uma cobrança quase
unânime dos professores recém-formados, confirmada pelos que estão em exercício, de que os
conhecimentos aprendidos nas Universidades sobre o ‘saber-fazer’ docente são descolados da
realidade prática e que é na experiência do magistério no ‘corpo a corpo’ em sala de aula que
este ‘saber-fazer’ é constituído. Neste sentido, constata-se uma deficiência nas formações
docentes que urgentemente precisa ser sanada sob o peso de não conseguirmos alternativas
para acabar com a crise educacional brasileira.
Outro elemento a ser combatido de vital importância para edificação de um processo
educativo emancipatório é a despolitização e a tecnização das Licenciaturas cearenses, ou
mais precisamente, das sobralenses. Os professores entrevistados nesta pesquisa não
demonstraram nem interesse com a transformação social muito menos com a enunciação de
críticas ao sistema. Pelo contrário, eles culpavam tanto o aluno quanto os seus pares do
insucesso escolar. Somente dois professores enfatizaram o papel da formação acadêmica na
55
atuação crítica e transformadora do professor. Eles denunciaram a inexistência ou a péssima
qualidade das Licenciaturas da UVA – Universidade Estadual Vale do Acaraú – na discussão,
problematização e conscientização sobre os atuais problemas da educação brasileira e também
da sociedade como um todo.
As disciplinas pedagógicas, momento propício para ocorrerem estes movimentos, são
altamente desvalorizadas pelas Coordenações e pelos professores dos referidos cursos. Além
disso, elas são lecionadas em sua grande maioria por professores-colaboradores2, sem vínculo
empregatício com a Universidade. Muitos deles não tiveram uma formação universitária
necessária para mediarem discussões e confrontos de caráter sociológico, filosófico e político
do processo educativo. Se não for através de uma singular formação acadêmica, como
podemos mediar a construção de identidades docentes emancipatórias? Como os professores
de professores conseguirão contribuir para formação de intelectuais críticos sociais se não
conseguem criticar e se libertarem das amarras ideológicas dominantes?
Durante as conversas com os professores da escola observada notamos uma
preocupação sublime destes com sua metodologia e didática no exercício do magistério a fim
de engendrar uma aprendizagem técnica – conhecimentos e informações para serem utilizados
no vestibular, nos primeiros empregos ou fundamentalmente se adaptar à sociedade atual. Um
caráter transformador e crítico no tocante a vigente sociabilidade capitalista só foi destacada
pelo professor de Sociologia e Filosofia da escola que, além de lutar por uma maior
conscientização e reflexividade dos seus alunos, mostrou-se um exímio crítico das políticas
neoliberais da educação.
Mesmo sendo “vigiado” e “fiscalizado” constantemente pelos gestores,
superintendentes e também pelos colegas, o professor que almeje não praticar o currículo
oficial pode correr um risco muito grande de ser descartado do sistema. Assim só resta para
ele a desistência e a fragmentação ou rearticulação da sua identidade ou atuação nas
“entrelinhas” – aproveitar os espaços e as “brechas” possíveis durante a aula em que os
coordenadores e os fiscais não estão presentes. Nestas “brechas” será possível discutir a
estruturação e o funcionamento da vida em sociedade a fim de formar alunos críticos e futuros
mobilizadores dos microprocessos de transformação social iniciados por eles em seus
microespaços de atuação e vivência. Entretanto uma docência emancipatória necessita de uma
2 Denominação institucional específica para os professores que lecionam na UVA durante um semestre letivo ou
mais, trabalhando no regime de docente convidado, ganhando por hora-aula. Em 2010.2 foram selecionados via currículo o total de 174 professores. Prova cabal do descaso dos governantes com o vertiginoso sucateamento das universidades públicas cearenses.
56
formação específica cuja responsabilidade está a cabo de uma Universidade Pública
supostamente ‘neutra’.
A ação docente emancipatória deve ser guiada por um pensamento crítico e dialético
das relações de dominação existentes. Uma crítica ferrenha e bem fundamentada teoricamente
dos processos econômicos, políticos e ideológicos constitui o ponto de partida para o
planejamento de suas ações de viés emancipador. O acesso e fomento de tais aprendizagens
docentes deveriam ser veiculados pelos cursos de formação. É por isso que nos deparamos
com uma grande quantidade de professores agentes da reprodução social e poucos agentes de
transformação cultural.
A natureza de uma educação emancipatória é eminentemente política. É preciso um
comprometimento e uma ideologia mobilizadora dos professores. Não há ação emancipatória
se não houver um engajamento ativo e participativo do docente no processo de
conscientização discente e formação de agentes de transformação social nos inúmeros espaços
de sociabilidade humana.
Se o objetivo do docente emancipatório é transformar o aluno num cidadão crítico,
solidário, participativo, humano e ético a fim de que ele seja fomentador de experiências de
emancipação humana, o processo educativo não pode continuar com um currículo tradicional,
pois para formar este novo cidadão, o currículo praticável é o que defenda a
interdisciplinaridade, a transversalidade, a construção crítica dos conhecimentos e a
conscientização política e ética dos alunos. Embora que estes elementos estejam mencionados
nos PCNs – Parâmetros Curriculares Nacionais da Educação Básica – eles não são praticados
pela escola e ficam somente no discurso.
O educador pós-moderno emancipador é responsabilizado e chamado para iniciar o
processo de mudança social no seu campo de atuação específico – comunidade escolar. Ele
deve se conscientizar da crescente desestruturação da família e descrença frente às instituições
políticas e ideológicas, algumas das principais características da era pós-moderna de acordo
com Bauman (2007). Eis a finalidade deste educador: a educação do saber sentir, como
condição, por excelência, da humanização social, que, somente será possível se o docente em
sua prática, conseguir superar os obstáculos instaurados pelo fogo cruzado, conjunto de
dificuldades que se entrecruzam na efetivação do fazer docente.
Partindo destes pressupostos concebemos que a efetivação de tais objetivos recai de
uma forma unilateral e onerosa na figura do educador escolar, fundamentalmente porque
grande parte dos pais já delegou suas funções educativas ao docente por incapacidade de ação
frente às novas formas de sociabilidade ou por apostarem que o futuro moral, social e pessoal
57
de seus filhos é algo que o professor tem maior possibilidade de construir ou transformar do
que eles já cansados de tentar ou até mesmo de nunca terem tentado.
Vale ressaltar até que ponto a sociedade como um todo, instituições familiares,
educativas, religiosas e políticas estão sendo injustas ao concentrarem o processo educativo
no docente e esquecerem os inúmeros fatores que permeiam tal processo: o Estado que se
nega a melhorar substancialmente as instalações físicas escolares; recursos didático-
metodológicos disponíveis e de qualidade; autonomia docente; condições de trabalho
favoráveis; reconhecimento e respeito no tocante à importância social dos professores;
motivação e interesse dos discentes; existência real da realização de cursos de
aperfeiçoamento e formação docentes; corpo gestor escolar humano e compreensivo;
concorrência do processo de ensino com inúmeros outros “educadores”- os meios de
comunicação de massa e a internet, bem como outras atividades mais “prazerosas”- uso de
drogas, sexo descartável e culto aos ídolos e deuses nacionais- futebol, carnaval, moda,
malhação, cerveja e festividades; e perspectivas futuras discentes que poderiam ser
causadoras de uma atitude integradora dos mesmos aos seus estudos.
Tal diversidade de fatores coloca o docente no “fogo cruzado” da educação
dificultando de certa forma a sua ação emancipatória e transformadora da realidade social que
deve ser o resultado de um verdadeiro comprometimento com a humanização e
conscientização da sociedade, conforme Paulo Freire (2007).
A escolha pelo termo “fogo cruzado” pode ser justificada da seguinte maneira:
determinada relação, elemento ou ordenação que participa da vida docente durante o exercício
do magistério, ou seja, certos fatores do processo educativo vão ateando “fogo” na
subjetividade e identidade do professor sem pedir permissão, muitas vezes, inesperadamente,
ao ponto de deixar uma “queimadura” ou “ferimento” que nem sempre é cicatrizada de
maneira bem sucedida imprimindo uma marca identitária que influenciará na constituição das
identidades engendradas pelo professor. São precisamente estas marcas advindas deste fogo
cruzado que constitui o objeto de pesquisa deste trabalho.
Durante o ensino ou no decorrer do magistério, a cada momento vários fatores se
cruzam na “queimação” da subjetividade docente. O adjetivo “queimação” é usado para
expressar o caráter imprevisto, doloroso ou até mesmo modificador destes fatores que se
cruzam. Por exemplo, numa aula, depois de ter estudado muitas horas e planejado muito o
ensino de dado conhecimento, ele pode ser marcado pelo desinteresse dos alunos que no
momento poderiam estar mais interessados em ouvir músicas de seu ídolo musical nos
tocadores de áudio e, ao mesmo tempo, outro fator se cruza: ao conversar algumas vezes com
58
a coordenação pedagógica, a mesma pode atestar sempre que o que está errado é a
metodologia aplicada, que o professor deve ser capaz de vencer a batalha contra os
“produtores de modos de ser”: moda, idolatria e atitudes escravizantes dos edificadores do
consumismo. Desta maneira, se o professor confia na sua identidade profissional – saberes e
valores construídos como referências para pensar e agir na profissão – não consegue negá-la,
ou seja, a reclamação da coordenadora e o desinteresse dos alunos “queimam” sua identidade
e a cicatrização não é bem sucedida. Caso consiga negá-la, tal marca propiciará uma
rearticulação constante de sua identidade a fim de atender as reclamações da coordenação e se
sair melhor naquela situação conflitiva. Com isso, a marca ou o sinal daquela “queimadura”
continuará e em certos momentos influenciará as suas tomadas de decisões e formulações no
seu pensamento. Em última instância sua identidade poderá começar a se fragmentar
dependendo da quantidade de cicatrizações mal feitas, ou melhor, marcas impressas pelo fogo
docente constituído pelo cruzamento de vários fatores.
Vale frisar, também a título de exemplo, os mecanismos de distorção e/ou
empobrecimento do fazer docente que constitui numa das labaredas deste fogo citados por
Silva (1995, p.69): “a intimidação oriunda das hierarquias, as estratégias ligadas à
racionalidade técnica, a expropriação dos meios de vida, a fragmentação e a
compartimentalização do trabalho escolar, etc”.
Os principais fatores que permeiam a prática docente e constituem este fogo cruzado
marcador da identidade docente podem ser resumidos a priori da seguinte maneira.
O primeiro fator é o sistema social como um todo e sua vertente – política educacional
– resultante e reprodutor de mecanismos de alienação e opressão de uma classe dominante
que exclui e inibe qualquer meio de emancipação e participação popular ou ilude,
dissimulando a existência de tais espaços. Ele também transforma o professor num operário
fabril executor de funções na escola sem tempo de pensar sobre si e sobre o processo, pois o
tempo de vida – além sala de aula – é inundado por atividades relacionadas com a mesma,
embora que pertinentes e necessárias: planejamento escolar, correções de provas, preparação
cognitiva para o ensino, interesse angustiante por melhoria de sua aula e outros.
A nova configuração líquida da modernidade cujas características foram citadas no
capitulo anterior se constitui no grande “queimador” da identidade docente. A “incerteza
fabricada”, a desestabilização do trabalho, a efemeridade dos relacionamentos e
compromissos, a ansiedade debilitadora e a mercantilização de todos os aspectos sociais
transformaram a vida em sociedade num pesadelo intermitente. Acordar pode ser o maior
risco, pois o amanhã não está mais assegurado por nenhum valor, norma, instituição ou lei
59
possível, visto que tudo pode ser desfeito e descartado para que novas e aceleradas realidades
se esbocem a fim de incitar a criação e renovação dos desejos humanos em busca do consumo
dos objetos recém-criados e pré-selecionados.
O neoliberalismo na educação foi uma “cartada de mestre” do capitalismo globalizado
frente ao temor de sua desestruturação pelas crises cíclicas do sistema e da emergência ou
consolidação de focos de resistência e libertação advindos da prática docente transformadora
e das organizações escolares de finalidade democrática. Através de suas estratégias –
meritocracia, competitividade, individualismo possessivo, polarização, desigualdade social e
profissional, desestabilização do serviço público e privado, enfim exclusão e desumanização –
os seus agentes (políticos, empresários e intelectuais convertidos) atacaram as esferas sociais
de socialização mais eficazes: os meios de comunicação de massa e a educação formal.
As universidades recentemente passaram a sentir os ditames do mercado-
produtividade, concorrência e vinculação de suas práticas e políticas curriculares às demandas
do mercado. Cabe investigar até ponto as mesmas estão se rendendo, visto que representam o
“cérebro inteligente” de uma cultura.
Ball (2004) defende que as políticas sociais e educacionais estão sendo legitimadas em
função do seu papel em aumentar a competitividade econômica ao desenvolver habilidades e
capacidades exigidas pelas novas formas econômicas da alta modernidade (ibid, p. 1109). O
Estado, nos últimos anos, passou de provedor para regulador e auditor, avaliando os
resultados das operações autorizadas. O autor também destaca a performatividade como
facilitador do monitoramento estatal e mercantilizador do trabalho do setor público. Por
conseguinte o ato de ensinar sofre profundas mudanças com o “novo panopticismo da gestão
(de qualidade e excelência) e as novas formas de controle empresarial (por meio do marketing
e da concorrência)” (ibid, p. 1118).
A política educacional cearense engendrada pelo Estado e que é conseqüência da
mesma política adotada em Sobral nos dois mandatos em que o atual governador exerceu o
cargo de prefeito é caracterizada por uma absoluta centralização dos insucessos da
aprendizagem na figura do professor como também a desmotivação dos alunos. O resultado
desta mentalidade foi a criação da Superintendência, já atuante no sistema municipal
sobralense de ensino. Este órgão supostamente objetivando um apoio pedagógico à escola, ele
se constitui substancialmente numa forma clara de regulamentação e padronização das ações
escolares desde o ensino-aprendizagem até a organização da limpeza da escola: vigilância
sobre a quantidade de atividades extraclasse (exibição de filmes, seminários temáticos,
gincanas culturais, eventos esportivos, exposições artísticas e aulas desvinculadas com o
60
programa curricular); supervisão das aulas expositivas; análise da estrutura e conteúdo dos
planos de aula docentes semanalmente; freqüência docente; rendimento dos alunos; cobranças
por boas notas; maior fidelidade com o conteúdo disciplinar e avaliação docente mensalmente
tendo como critérios os acima citados.
Os mecanismos de controle mais expressivos de tal órgão, desde a sua criação em
2006, incitam os docentes que estavam ‘em cima do muro’ a se decidirem: ou se tornam
profissionais reprodutores do sistema educacional cearense, ou melhor, brasileiro, que prima
pela transmissão de um programa curricular mínimo de formação de ‘novos pobres’ e
oprimidos sem criticidade; ou passem a atuar em suas salas de aula em prol da transformação
social, agora estrategicamente através das “entrelinhas”, pois todas as relações humanas
existentes na escola devem ser fiscalizadas e controladas ou pela gestão ou superintendência.
A atual política educacional cearense empreendida principalmente por seu órgão mais
direto – a Superintendência – e mais recentemente pela implantação da TESE, corrobora as
afirmações de Ball como também uma de suas conclusões esclarecedoras: a de que os valores
da política mercantil legitimam ações como empreendimento, competição, excelência, ao
passo que inibem outros, a justiça social, equidade e a tolerância (BALL, 2004, p.1119).
O segundo fator é a unidade escolar, que, na maioria das vezes, é escrava das políticas
públicas de resultado para divulgação na mídia de dados estatísticos mascaradamente
positivos sem se preocuparem com o desenvolvimento social, intelectual, ético e moral dos
alunos.
Na finalidade de reproduzir certos padrões de vida e manter a coesão social através da
escolarização, a cultura dominante se utiliza de várias ferramentas tais como a ideologia,
poder e dominação. A ideologia como “produção, interpretação e efetividade de significado”
tanto “promove ou distorce o pensamento reflexivo e a ação” mobilizando os indivíduos para
determinadas práticas e formas de conscientização (GIROUX, 1986, p. 95). O poder
ideológico se efetiva na naturalização de valores, normas, idéias e representações tanto na
consciência quanto inconsciência dos indivíduos. Entretanto há contestações das classes as
quais se direcionam as forças de determinação políticas e econômicas da vida social.
As escolas não são apenas espaços de instrução e de reprodução da sociedade de
mercado, mas também espaços de luta, crítica e resistência. Elas são constantemente
controladas pelo Estado, através das políticas educacionais e pelos imperativos econômicos,
que se efetivam por tornar os cidadãos dependentes das suas instâncias estruturadas as quais
passam a ser necessidades fundantes de um ser social: trabalho, habitação, alimentação
direcionada, vestuário, materialismos, diversão e corolários da saúde física e mental.
61
O terceiro fator é o que o professor quer e aquilo que ele pode fazer em sala de aula
em termos de: recursos didático-metodológicos; conteúdos disciplinares e finalidade
pedagógica e ética de acordo com seus princípios e visão de mundos altamente conflitantes,
muitas vezes, com o sistema educacional vigente e a unidade escolar.
A ação docente é reflexivamente baseada num pensamento crítico e dialético das
relações sociais entre as escolas e as estruturas de dominação, bem como nos pressupostos
teóricos e metodológicos articulados durante a formação e a experiência de ensino. Outra
peculiaridade é o engajamento político num processo de transformação social. Entretanto, o
aprendizado mais significativo para um docente emancipatório é saber que o ato de ensinar é
repleto de peculiaridades complexas que às vezes são esquecidas por um professor tradicional
que se ocupa apenas com a transmissão ou o “repasse” de conteúdos disciplinares.
Porém, em busca de bons resultados nos boletins escolares e nos exames nacionais e
movidos pelo temor de serem deslegitimados ou até despojados de seu cargo, uma grande
parcela de professores brasileiros, tenta “depositar” nos alunos o maior número possível de
conteúdos disciplinares. Esta carga se torna mais pesada no ensino médio de viés exclusivo
preparatório para o exame de ingresso à universidade, o vestibular, sem se preocuparem ou,
talvez, sem condição de ter a preocupação de saber se tais conteúdos estão sendo identificados
pelos alunos e se estes passaram pelos seus “filtros”: apreciação, desejo, necessidade,
perspectivas, finalidade e utilidade de tal aprendizado..
Esta tentativa frustrante de depósito conteudista obrigatório nos discentes, resulta
numa desmotivação e indiferença dos mesmos com relação às disciplinas escolares e, muitas
vezes, por conseqüência, no barulho, desorganização pedagógica, conversas paralelas e até
bagunça, obrigando o docente a tomar posturas autoritárias as quais acabam por promover o
“divórcio” entre professor, aluno e a disciplina específica e aumentando a distância para se
concretizar a formação do cidadão bem informado e “multiuso” requerido pela sociedade
neoliberal excludente.
O último fator do fogo cruzado é o interesse dos alunos de aprender numa dada
situação de sala de aula, ou seja, aquilo que os alunos querem aprender e que tipo de ação
docente eles consideram como válidas e aceitáveis no processo de aprendizagem e construção
de seu próprio conhecimento e emancipação.
Nem todos os ensinamentos são absorvidos fidedignamente de acordo com a
finalidade objetivada pelo sistema educacional em curso. A conformidade nunca é total e
quando ela se apresenta aparentemente é resultado de uma imobilidade física que não impede
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a presença da resistência no nível da consciência humana, que é a mais poderosa e de difícil
persuasão.
No ensino de determinado conteúdo disciplinar numa sala de aula qualquer estará em
jogo os seguintes elementos: a) a forma docente lingüística e corporal de transmissão do
mesmo; b) as mensagens ocultas do docente transmitidas sobre o assunto que são percebidas
conscientemente ou inconscientemente e incorporadas pelos alunos; c) se não forem as
primeiras aulas, a relação amorosa já estruturada entre o professor e aluno que pode causar
aversão ou simpatia pelo assunto antes mesmo do início da aula, porém tal reação diz respeito
à figura do professor e, poucas vezes, ao tema da aula; d) o estado emocional do professor e
do aluno no momento da interação pedagógica; e) o conhecimento prévio discente sobre o
assunto que deve ser levado em conta a fim de se obter a motivação necessária para a referida
aprendizagem; f) a apreciação crítica de cada aluno sobre o tema, pois tanto pode haver uma
aversão quanto simpatia majoritárias que poderão influenciar o coletivo discente e facilitar ou
dificultar a referida aprendizagem; e g) a justificativa real de tal aprendizado a ser defendida
pelo docente, ou melhor, qual a finalidade de tal conhecimento e a sua proximidade com as
necessidades e expectativas dos alunos.
Sendo assim, a profissão do magistério é uma das profissões mais difíceis de ser
executada, haja vista as peculiaridades acima descritas do ato de aprender. O professor deve
ser capacitado não somente com conhecimentos específicos de sua disciplina, mas também
com saberes necessários tanto para melhor transmitir os conteúdos disciplinares quanto para
se relacionar com os alunos- “truques” de como motivá-los, principalmente num mundo
culturalmente industrializado e de atrativos que prometem prazeres melhores que estar numa
sala de aula.
O corpo docente educa. Tanto a linguagem verbal quanto a corporal são elementos de
comunicação na interação de sala de aula. As palavras e as disposições corporais docentes
deixam ‘marcas’ que ora dificultam ora fomentam o aprendizado, pois possibilitam o
consenso e aceitação efetiva do professor e o conhecimento que objetiva transmitir, como
também promove o conflito negativo e a antipatia com relação ao binômio professor-
disciplina. As palavras têm poder e sentido duplo dependendo das situações e da tonalidade
em que são proferidas. Elas podem iniciar uma relação afetiva solícita entre professor e aluno
ou inviabilizá-la desastrosamente. Por isso, os professores devem ser cautelosos e diligentes
com suas linguagens no ato de ensinar.
A tonalidade das palavras é essencial no ato de transmissão, principalmente por ser
uma das formas de emitir juízos de valor e emoções com relação à mensagem enunciada. Os
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sentimentos e emoções vinculados às palavras são facilmente percebidos pelos alunos, por
isso que a relação pedagógica escolar não passa de um tipo de relação amorosa humana com
todos os conflitos, alegrias, distanciamentos e aproximações característicos da mesma. O
docente emancipatório deve ser cuidadoso na sua ação comunicativa para evitar possíveis
interpretações erradas da sua fala que possam distanciar os alunos do processo de ensino-
aprendizagem, mas também deve utilizar as palavras tanto como meio de conscientização e
libertação pela crítica e conteúdos que carregam quanto como formas de disseminação de
sentimentos mobilizadores para uma nova sociabilidade: resignação, auto-estima, resistência,
oposição e negatividade em relação aos processos de dominação econômica e simbólica; e
esperança, transcendência, amor, respeito, solidariedade, afeto, bom humor e humanidade.
A importância de tal premissa é multiplicada se formos analisar a realidade dos alunos
das escolas públicas brasileiras, principalmente, as periféricas, em que a situação de carência
material e afetiva torna-se um catalisador da tonalidade verbal. As construções verbais nestes
ambientes escolares podem tomar proporções emancipatórias gratificantes como também
reações violentas contra o professor, fundamentalmente, porque, no geral, nestas escolas a
indisciplina é um fator de inviabilização do ensino e freqüentemente os professores são
colocados em situações de exigência disciplinar que, muitas vezes, são interpretadas como
ofensivas pelos alunos, provocando mais conflitos em sala de aula.
O professor agente de uma ação emancipatória deve tomar cuidado com a linguagem
verbalizada em sala de aula sob o risco de que o significado da mensagem proferida seja
recepcionada emocionalmente de forma diferente pelos alunos. Assim como, ele deve se
preocupar também com a linguagem corporal, com as posturas que o seu corpo assume no ato
de ensinar que viabilizam ou dificultam a interação entre professor e aluno. Uma das marcas
que constituem a identidade docente é constituída por estes sentimentos prazerosos ou
dolorosos advindos da relação do futuro docente com seus “antigos professores” seja da
escola básica seja da Universidade.
As posturas corporais assumidas pelo corpo docente na interação com os alunos são
facilmente percebidas e significadas por eles. Tais disposições corporais participam
ativamente no processo de ensino-aprendizagem podendo ajudar como dificultar a
assimilação das aprendizagens objetivadas pelos professores. Numa sociedade do espetáculo e
da juventude extremamente mobilizada pelos artefatos culturais capitalistas constantemente, o
corpo docente, no mínimo, não pode ser estático, mórbido e desprovido de emoções. Na
realidade hodierna, os professores estão, a todo o momento, lutando contra “os inimigos da
educação emancipatória” – consciência ingênua, reificação dos valores humanos, coisificação
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dos sentimentos humanos, barbarização das relações sociais, drogas, vícios, industrialização
dos artefatos culturais e escravização das mentalidades. Por esse motivo, o docente não pode
se conformar em ser adepto de uma pedagogia tradicional sob pena ser não só objeto de
escárnio como também de ridicularização dos estudantes dominados pelas práticas e valores
do capital.
O docente emancipatório que almeje chamar atenção de sua sala de aula aos
conhecimentos a serem expostos, precisa estar indagando rotineiramente a sua prática
pedagógica a fim de encontrar “pontes” para se chegar à subjetividade dos discentes e fazer
com que os mesmos se comuniquem e participem do processo de ensino. Ele não precisa ser
um mágico, mestre da oratória, um ator eclético ou um exímio dançarino, embora que para
lutar contra as determinantes capitalistas de escravização das consciências humanas, saber um
pouco destas técnicas seria de estratégica importância, mas sim saber utilizar tanto a sua
linguagem verbal quanto a corporal no processo de ensino. Porque não utilizar os mesmos
mecanismos capitalistas de convencimento e consentimento numa sala de aula e em prol da
emancipação, ou seja, as mídias, as tecnologias, os saberes da propaganda e a linguagem do
corpo.
Uma premissa é consensualmente aceita pelos teóricos da educação: os alunos não
aceitam mais o ensino tradicional, expositivo e depositário, eles clamam por uma “aula
diferente”. É necessário saber o que eles estão chamando de “aula diferente”, talvez seja o
descaso de alguns professores quanto à importância não só de sua linguagem verbal no ato de
ensinar, mas também a disposição que o seu corpo está assumindo no momento da interação.
Talvez tal afirmação seja interpretada como uma maior cobrança aos docentes, mas,
indubitavelmente, é por meio da docência emancipatória que construiremos um terreno para a
emancipação humana e não, esperando por políticas educacionais, porque as mesmas
comprovam a cada dia que tal objetivo não constitui a sua razão de existência.
Outro elemento do ensino é a relação amorosa edificada em sala de aula. A função do
professor não é mecânica e nunca insensível ao seu objeto de trabalho: a aprendizagem. Se
não houver uma amorosidade entre aluno e professor, o ensino está comprometido, por isso
que a docência requer um olhar multifacetado referente às subjetividades da sala de aula a fim
de construir uma ação menos conflituosa possível. E se for o caso, com o tempo, a mais
afetuosa, porque, principalmente na escola pública, os alunos são muito carentes
economicamente e emocionalmente e quase sempre são vítimas das maiores mazelas sociais:
pobreza, tipos de violência, descaso familiar, doenças físicas e psicológicas.
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Destarte, o professor deve ser emocionalmente equilibrado para enfrentar inúmeras
situações em que sua própria dignidade vai ser posta em cheque não somente por seus alunos
como também pela comunidade escolar.
O último elemento da aprendizagem e o mais importante diz respeito à subjetividade
discente. Se os alunos não estiverem motivados, interessados e solícitos às aprendizagens
oferecidas pelos professores, não há educação. O professor não é mágico, é claro, porém ele
pode influenciar decisivamente no interesse e abertura dos alunos ao ensino. É por isso que as
formações docentes brasileiras precisam se reestruturarem e incluírem nos seus currículos,
além dos conhecimentos técnicos, metodológicos e didáticos, saberes sobre formas mais
influentes e atrativas de usar a linguagem verbal e corporal na interação sala de aula, como
também a socialização qualitativa de saberes das mais variadas áreas ( Psicologia, Didática,
Pedagogia, Antropologia, História, Sociologia e Senso Comum) sobre como se dar bem com
os alunos, maneiras eficazes de motivá-los e construir uma atmosfera de afeto, respeito,
desenvolvimento intelectual, ético e social no perímetro escolar e conseqüentemente na
sociedade.
2.3- MARCAS IDENTITÁRIAS
A docência, como ato de educar, constitui também num ato de marcar. A marcação do
outro no ato de ensino tem suas peculiaridades citadas acima. As conseqüências desta
marcação no aluno ou em sua aprendizagem tanto dependem da metodologia, didática,
finalidade e currículo quanto da linguagem verbal e corporal utilizada no ato educativo. As
palavras e sua tonalidade, o corpo e suas disposições constituem nos micromarcadores do
processo ensino-aprendizagem. Muitas dificuldades neste processo podem ser resolvidas se
compreendermos tanto a importância destes marcadores como a real influência deles.
Entretanto a docência como toda atividade profissional ou até mesmo como qualquer
existência humana é marcada por inúmeros fatores, pessoas e realidades que concorrem para
determinar ou influenciar as configurações de sua identidade.
As “marcas” são aprendizagens ou efeitos da vida de um indivíduo ao se relacionar
com o outro, com os grupos sociais e com todas as entidades que constituem o mundo social.
Elas podem ser traumáticas e/ou reveladoras, tristes e/ou felizes, impulsionadoras e/ou
anestesiantes, patológicas e/ou gratificantes. Pensadas assim, a postura docente só pode ser
entendida vinculada às marcas historicamente carregadas pelos profissionais do magistério.
Geralmente, estas marcas, com relação ao tripé pensar-sentir-agir dos professores, são geradas
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fundamentalmente nas relações escolares destes com seus mestres quando eram alunos e das
relações vivenciadas durante sua formação profissional e finalmente no cotidiano de seu fazer
pedagógico com todos os segmentos que constituem o seu ambiente de trabalho: colegas
professores, coordenadores, diretores, secretários, supervisores, alunos e pais de alunos. Em
outras palavras, a postura docente é: historicamente construída até mesmo antes de o
indivíduo pensar na possibilidade de atuar na profissão e estará sendo constantemente
reconstruída a fim de se adaptar as realidades que se apresentam como também para suprimir
relações frustrantes e compensar finalidades não alcançadas. É baseado neste pressuposto que
se apresenta a possibilidade de surgimento ou não de uma atitude emancipatória em cada
docente. Talvez os conformados, desiludidos ou exímios reprodutores do sistema educacional
são indivíduos cuja marcação do fogo cruzado tenha atingido o ápice de “queimação” tendo
como conseqüência a anulação do potencial de mudança que eles têm em seu poder.
Quando os professores temem uma autoindagação de sua prática ou uma análise
externa questionadora do seu fazer por qualquer pessoa, seja colega de profissão, pesquisador,
superior imediato ou até mesmo de seus alunos, significa, quase sempre, o medo de ser
deslegitimado de sua função tendo não só conseqüências econômicas quanto profissionais e
psicológicas, como descrédito no seu espaço de trabalho, demissão, ou até descrença e
indiferença de seus alunos com relação ao seu ‘saber-fazer’. Tal situação exemplifica uma
marca do fogo cruzado resultante de características da cultura (desestabilização do trabalho e
incerteza fabricada) que se cruza com elementos da política educacional (competição
educacional e culto aos especialistas da educação) como também a ausência de uma cultura
docente que pudesse servir como parâmetro aglutinador da categoria docente frente aos
ditames neoliberais de descartabilidade do trabalho humano.
Porém este temor advém da marca identitária: falta de autoconfiança ou de auto-
análise do professor causada por outra marca: conformismo instaurado conscientemente ou
não pelas situações de trabalho: falta de incentivo profissional dos dirigentes, não
reconhecimento da sociedade e situações fomentadoras de conformidade pedagógica do
próprio sistema escolar, ou pelas marcas corporais carregadas pelos docentes durante sua vida
que os engessam num estilo profissional e os imobilizam para a possibilidade de autocrítica e
mudança postural.
Originando-se de qualquer evento ou relação social “marcante”, ou seja, que imprima
um efeito ou emoção durável e influenciadora da subjetividade humana, as marcas são
constituídas e ressignificadas dependendo tanto do contexto específico quanto da própria
subjetividade de cada ser humano. Entretanto, podem existir marcações comuns da identidade
67
dos indivíduos, mesmo que a intensidade e poder de influência sejam medidos apenas de
acordo com o aparato subjetivo de cada um. É no terreno da subjetividade que as marcas são
impressas e ganham poder de formação da identidade.
É lógico que como todo ser humano o professor está em constante processo de
marcação de sua identidade nos mais variados espaços e vivências sociais. Como se mostra
impossível analisar o processo de marcação identitária na sua totalidade, por causa da
infinitude de marcações que são impressas e sentidas pelo ser humano em toda sua existência,
a pesquisa objetiva analisar o processo de marcação identitária docente ocorrida a partir de
determinados fatores que se pressupõe dificultar a emergência de uma ação docente
emancipatória. Para tanto foi necessário a delimitação espaço-temporal a fim de perceber
estes fatores-chaves na marcação da identidade: a escolarização básica, a formação
acadêmica, a experiência no exercício do magistério e o relacionamento com a escola e a
cultura de forma geral.
O caráter duradouro dos sinais impressos pelas marcas na subjetividade humana está
intrinsecamente vinculado a possíveis ressignificações destes por outras marcas sentidas cujo
grau de ressignificação e rearticulação estão estreitamente dependentes das singularidades
individuais, visto que dentre as contínuas transformações que o ser humano passa durante sua
vida, por escolha pessoal, algumas delas podem ser adiadas a fim de “continuar sendo o que
chegaram a ser num momento de sua vida, sem perceber, talvez, que estão se transformando
numa... réplica, numa cópia daquilo que já não estão sendo, do que foram” (CIAMPA, 2008,
p. 165).
As marcas são momentos de reflexão, rearticulação, desconstrução, fragmentação e
construção da própria identidade humana. Os sentimentos e emoções resultantes das
marcações atuam como poderosos articuladores e construtores da subjetividade humana. Eles
participam ativamente na releitura das emoções e vivências passadas e presentes, às vezes
conseqüências de outras marcas já sentidas, a fim de construir ou reconstruir modos de ser,
pensar e agir mais contextualizados, ou melhor, ajustados no enfrentamento da vida cultural.
É por essa razão que a referida pesquisa pressupõe que há determinadas marcas que impedem
ou neutralizam a emergência de uma ação transformadora docente e vislumbre apenas a
docência reprodutivista e conformista.
Elas podem sobreviver por um considerável tempo como também podem ser
imediatamente ressignificadas ou até “cicatrizadas” por outras marcas. Não é possível prever
a conseqüência de determinada marcação na identidade de cada indivíduo. Uma situação de
sala de aula onde o professor é agredido verbalmente por palavrões e desrespeitado
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exageradamente pode provocar diversas emoções ou marcas, dependendo da sua subjetividade
e do contexto sociocultural que ele se encontra, ou seja, do movimento dialético entre estas
instâncias: ele pode pedir demissão, caso não haja providências mais enérgicas dos gestores;
revoltar-se contra o regimento escolar defendendo sua reformulação e prática; culpar o
sistema educacional como um todo e não o aluno ou vice-versa; fazer uma auto-reflexão sobre
os motivos de tal ação discente, que pode resultar numa reconstrução de sua prática
pedagógica; ou então num desestímulo total da profissão caso tais situações já sejam
recorrentes.
As marcas concorrem para a criação de novas personagens de nossa identidade como
também para o assassinato ou prisão de algumas ou composição de novas vestimentas para
antigas. É no intenso movimento de ressignificações das marcas que são impressas a cada dia
que as criações e matanças das personagens identitárias são engendradas ou abandonadas. Um
professor pode manter a personagem de fiel escudeiro do Estado apenas durante as reuniões e
planejamentos da escola por temer ser descartado do sistema, porém pode manter a
personagem de um docente emancipatório em todos os momentos em que ele se encontra na
função de educar. Mas tais personagens podem ser mantidas ou presas caso o contexto escolar
se modifique.
Como exemplo, identificamos dois casos de professores recém-iniciados no magistério
da escola Liceu de Sobral que foram marcados de forma diferenciada. No primeiro caso, o
professor entrevistado defende a disciplina e a autoridade como elementos fundantes para o
sucesso escolar, pois no seu tempo, década de 80, os estudantes aprendiam mesmo sem “essas
inovações todas”:
O que é que vale computador, datashow, cadeiras em círculo, se os alunos continuam não querendo saber dos estudos. O professor não pode mais tirar o aluno indisciplinado de sala, não pode reprovar, não pode mais por ordem no pedaço, pois tudo isto é passado, é autoritarismo. A onda agora é ser construtivista, mas construir o que se os jovens não querem, e assim não se tem mais disciplina e os alunos o que querem: saem e entram na sala na hora que quer, sem ter medo de ninguém e nem de ser reprovado. Se o professor for desrespeitado e revidar com tom de voz um pouco mais alto, é ligeiramente chamado pela coordenação e dependendo do tom pode até sofrer uma sindicância, para onde iremos! Nós, professores, estamos acuados de todos os lados. (professor de Biologia da rede pública estadual da cidade de sobral com cinco anos de experiência em sala).
Este professor vive uma contradição, que muitos vivem, de que seus valores são
constantemente bombardeados por novos paradigmas e ele percebe que estas novas propostas
educativas, na realidade, não estão funcionando, se comparadas ao seu passado escolar
marcado positivamente com certas atitudes docentes que constituem a sua prática pedagógica
atual, objeto de contestação rotineiramente.
69
Um segundo professor preconiza em seu relato uma personalidade docente pautada na
paciência, sensibilidade, compreensão, afetividade, escuta do outro, saber se colocar no lugar
dos alunos a fim de perceber as suas emoções e perspectivas. Sem estas características na
prática pedagógica não há educação e sim instrução ou treinamento:
Nunca me esqueço no dia em que não consegui estudar a prova de matemática na quarta série do fundamental e de esperado tirei um quatro, a menor nota da sala. A professora era super-autoritária e insensível, desde o primeiro dia de aula ela demonstrava isso: gritava e mandava para fora de sala os alunos que conversavam; ninguém podia deixar de fazer a tarefa de casa que ela mandava para coordenação; quando alguém perguntava ela não repetia porque dizia que a pessoa não tinha prestado atenção,pois tava conversando; e outras atitudes. Então, na entrega das provas, ela chamava por nome e dizia a nota bem alto para todos ouvirem e quando foi minha vez, por último, ela fez mais diferente ainda, perguntou o que eu tava fazendo aqui, se vinha só pra cochilar ou falar besteiras com meus colegas, o que eu queria ser na vida e outras coisas, sempre quase gritando, bem zangada e os olhos bem abertos. No final, chorei muito e prometi se um dia fosse um professor seria totalmente diferente de minha professora e lutaria para ser uma autoridade e expulsar estes professores da educação de uma vez por todas e pedir para eles procurarem o exército ou coisa parecida. Talvez nunca consegui gostar de matemática por causa disso, pode ser... (professor de História do ensino médio da cidade de Sobral com apenas três anos de experiência)
Destes exemplos, é inteligível a ênfase crucial que Fátima Freire (2008) faz da
capacidade de aprendermos a “ressignificar (grifo da autora) as marcas que carregamos em
nosso corpo”. Mas para fazer isso, é preciso ter:
A coragem de reconhecê-las e localizá-las no nosso próprio corpo – já que a descoberta e, portanto, a localização delas gera sofrimento, o que, de certa forma, obriga-nos a entrar em contato com nossa sombra, com nosso lado desconhecido e escuro. Sombra essa e escuridão que preferimos que seja do outro e não nossa! (p.51).
Nos dois exemplos a identidade docente foi marcada por eventos ou relações
praticadas durante a escolarização básica. Em cada situação é enfatizado como cada professor
foi marcado por seu antigo professor e como esta marca foi ressignificada e constitui numa
determinante na identidade profissional dos mesmos. Dos dois, a ação emancipatória do
primeiro professor está de certa maneira comprometida, pois as “chamas” que se cruzam e
marcam sua identidade podem ser descritas como: culto à postura tradicional que entra em
conflito com os novos paradigmas científicos de compreensão do processo educativo; a
indisciplina e desmotivação dos alunos e a culpabilização do insucesso escolar nas costas do
professor, constituem assim o cruzamento “queimador”. Assim a preocupação do docente
estará direcionada ora no combate ao sistema e tentar ao máximo exercer sua identidade
confiável, ora tentando evitar acusações sobre sua incompetência e provando a todos que a
70
culpa da não-aprendizagem não é sua. Desta forma sua identidade começa a se fragmentar. O
ideal tanto de uma aprendizagem significativa quanto da aprendizagem emancipatória não é
nem cogitado. Outros assuntos e preocupações passam a ser mais urgentes.
O docente emancipatório precisa constantemente estar ressignificando as suas marcas
corporais negativas para que elas não transformem seu corpo num mero transmissor de
conhecimentos insensivelmente. O corpo docente é marcado como qualquer corpo humano
por diversas pessoas e entidades nas mais diversas situações, são a família, os amigos, os
meios de comunicação, a igreja, os amantes e a universidade. No caso do professor, as marcas
deixadas por seus superiores e alunos são essenciais na definição de suas posturas.
Dependendo das emoções vivenciadas negativamente em situações de sala de aula ou de
conflito com superiores, o ideal emancipador tanto pode desaparecer quanto tomar força de
proporções coletivas. Ser professor é um fardo muito pesado e sobrehumano dadas as diversas
cobranças e inexistência das condições necessárias para a realização do trabalho cobrado.
A dinâmica do fogo cruzado deixa marcas na identidade impedindo o devir-docente-
sujeito emancipado e emancipador. Este fogo também bloqueia a constituição de uma
identidade desejada, preferida e autoconstruída. É superando este fogo cruzado e todas as
‘marcas’ que o mesmo deixa na ação e pensamento docentes, como também “ressignificando’
todas as outras ‘marcas’ negativas advindas de todas as relações humanas vivenciadas pelo
professor, é que teremos as condições mínimas para se efetivar uma ação docente
emancipatória.
Neste sentido é peculiar à formação acadêmica dois grandes desafios e/ou
responsabilidades no quesito apoiadora da formação de professores emancipatórios. O
primeiro, intrinsecamente ligado à pesquisa científica, é a compreensão da dinâmica do fogo
cruzado - a fim de perceber os obstáculos subjacentes a emergência deste tipo de docência-
como também do entendimento dos processos de constituição da identidade docente,
balizadora da ação e pensamento do professor. É relacionado a este desafio que a referida
pesquisa tenta demonstrar sua importância. O segundo desafio é a instrumentalização dos
professores de certa “intelectualidade” perante a organização da cultura como um todo, ou
seja, uma discussão teórica e prática, valendo das categorias de análise das Ciências Humanas
no geral, para entender as redes de dominação e exploração que impedem a constituição de
uma sociedade melhor.
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CAPITULO 3
O PALCO DA PESQUISA OU O PRINCIPAL MARCADOR DA IDEN TIDADE
PROFISSIONAL DOCENTE
Uma nova forma de ver, sentir e cuidar da juventude. (Objetivo do ICE3 e das EEEP).
A pesquisa de campo foi iniciada formalmente no segundo semestre de 2008 com as
primeiras conversas e entrevistas já norteadas pela delimitação do objeto da investigação: as
marcas da identidade docente. Entretanto a pesquisa exploratória que facilitou a delimitação
deste objeto foi iniciada no início de 2007 quando este palco marcador tinha a denominação
de Liceu de Sobral Dom Walfrido Teixeira Vieira. Se tivesse continuado com sua identidade
de Liceu de Sobral, a referida escola de ensino médio iria completar no ano de 2010, oito anos
de funcionamento apenas.
No início de 2008, esta escola passou por uma traumática mudança pelo menos para os
alunos e professores que ali constituíam a comunidade escolar Liceu de Sobral. Tal escola foi
transformada em Escola Estadual de Educação Profissional Dom Walfrido Teixeira Vieira
justamente para atender uma nova política educacional de implantação de escolas estaduais
médias profissionalizantes no estado do Ceará engendrada por seu novo governador eleito Cid
Gomes. Não foi somente uma mudança de denominação, mas de filosofia e prática
educacionais como também de identidade: a nova escola então criada num prédio que possuía
uma memória e uma identidade perante a comunidade escolar passaria então a tentar construir
uma nova identidade a partir da articulação de elementos já existentes e legitimados para se
impor no mesmo cenário social e escolar.
Criado em 19 de agosto de 2002, o Liceu de Sobral foi inaugurado cidade da região
noroeste do estado com a imagem de ser uma excelente escola de ensino médio, predicado
construído historicamente no estado desde a implantação desta configuração de escola – Liceu
– em 1844 na cidade de Fortaleza. Além disso, encheu os corações dos educadores de
esperança no tocante a melhoria deste nível de ensino na cidade haja vista o reconhecimento
que o mesmo possui no que se refere a um ensino de qualidade, como também de suas
próprias características que o identificam, tais como para exemplificar: bons professores,
3 Instituto de Co-responsabilidade pela Educação, uma entidade privada sem fins lucrativos criada para ser,
juntamente com a Secretaria Estadual de Educação de Pernambuco, um dos pólos de governança do Procentro.
72
comprometimento dos profissionais e estrutura física diferenciada- quadras esportivas e
laboratórios de prática de ensino: matemática, física, biologia, química e informática.
Durante sua existência- seis anos- comprometeu-se com ensino de qualidade e de
busca por resultados, nenhuma surpresa para o contexto histórico que se inserem as escolas
brasileiras e globais – o neoliberalismo educacional – a filosofia e práticas mercantis a serviço
da educação ou o contrário. Mas, se é para falar de produção, o Liceu durante sua vida esteve
sempre aprovando alguns de seus alunos nos vestibulares da UVA e nos respectivos exames
estaduais e nacionais: SAEB – Sistema de Avaliação da Educação Básica, SPAECE – Sistema
de Permanente de Avaliação do Estado do Ceará e ENEM – Exame Nacional do Ensino
Médio. Sua imagem era legitimada pela sociedade tanto pelo passado institucional que
carregava quanto por estes resultados que alcançava os quais confirmava as suspeitas de
excelência do referido colégio.
Um aspecto bastante interessante observado durante a pesquisa exploratória foi uma
relativa autonomia docente frente a todo o processo de ensino-aprendizagem e também uma
respeitável abertura da gestão escolar aos alunos com relação a todos os processos
desenrolados no entre muros e fora da escola. Ou seja, os professores tinham o poder de
decidir sobre os conteúdos a serem lecionados, metodologia e resultados de avaliação de seus
alunos. Entretanto, havia certas interferências no final do ano letivo quando o número de
reprovados era excessivo. Mas, o que ocorria no Liceu não se compara com a política de
aprovação automática disfarçada atrás da máscara da inclusão promovida pela educação
brasileira para arrecadar investimentos junto aos organismos nacionais e internacionais
vinculados às políticas neoliberais, praticadas exageradamente pelas escolas públicas
brasileiras.
Outro ponto destacável era uma prática dos docentes e gestores de ouvir as queixas,
sugestões e inquietações dos alunos. Em verdade algumas sugestões eram acatadas e certas
queixas eram ouvidas e não julgadas coletivamente levando até a emergência de conflitos
entre gestão e professores que, em dois momentos, resultaram na retirada de professores.
Talvez se este aspecto fosse desenvolvido e amadurecido na escola, poderíamos ter constatado
um exemplo de escola e gestão democrática na cidade de Sobral com possibilidade de ser
tomado como referência neste sentido.
Contudo, além deste protótipo ambiente democrático, o aspecto observado mais
relevante observado foi um clima de mobilização e participação política dos docentes efetivos
do Liceu. Ora se os professores são valorizados na escola e na 6ª CREDE, pois muitos deles
eram chamados a promoverem oficinas e formações aos professores das outras escolas, eles se
73
auto-valorizavam no sentido de lutar por melhores condições de trabalho, mais
reconhecimento e direitos renegados historicamente- salários dignos, horas para planejar,
planos de saúde, mais autonomia e outros. Geralmente eles iniciavam as mobilizações e
clamavam: “já que damos resultados para eles, podemos cobrar agora melhores condições”-
frase enunciada durante um dos planejamentos num sábado anterior a uma mobilização que
seria na segunda. Curioso que a gestão se posicionava contra nos momentos de greve, mas
diante da alegação acima tentava muito cuidadosamente estabelecer um acordo de retorno dos
professores às suas respectivas salas de aula.
“Como tudo na vida tem seu lado bom e ruim”, palavras de uma professora aposentada
da referida escola, o lado ruim desse clima de valorização da 6ª CREDE dos professores do
Liceu foi a instauração de outro clima, sumariamente capitalista – a concorrência e a
competição desleal e invejosa. Os professores foram tomados pela inveja e disputa por
reconhecimentos ao ponto de plantarem a semente das atitudes de bajulação, intrigas,
egoísmos e individualismos que foram naturalmente burlando certo sentimento de
coletividade e de classe que existia entre os docentes. E estrategicamente, aproveitando o
clima competitivo instaurado entre os professores, a 6ª CREDE convida três professores para
compor o quadro de seu órgão recém-criado – a Superintendência – justamente os que
lideravam as discussões e as mobilizações. Cartada final. Cheque mate. Desta forma estava
aniquilado todo e qualquer rebuliço entre os muros da escola.
Após esta breve consideração sobre aspectos identitários dos “tempos de Liceu”, é
necessário retomar a passagem traumática de Liceu para Escola Profissionalizante.
Inicialmente tal fenômeno ocorreu no meio do primeiro semestre de 2008. Num sábado de
março do corrente ano os professores foram comunicados categoricamente sobre a
transformação que iria ocorrer nos próximos três meses. Uma nova política de implantação de
cem novas escolas profissionalizantes de ensino médio iniciaria ainda no segundo semestre de
2008. Quais seriam as medidas mais inevitáveis? Primeiro a transferência de todos os
segundos anos do colégio para outras escolas da cidade – foram transferidos num total de
cinco salas, média de duzentos alunos. Os professores da nova escola seriam selecionados
através de uma seleção aberta a fim de realmente saber quais os professores que estavam
aptos a lecionarem norteados por uma nova filosofia educacional – a TESE – Tecnologia
Empresarial SócioEducacional: uma filosofia de gestão – e por novas exigências e normas,
como por exemplo, trabalhar em tempo integral – das sete da manhã até as cinco da tarde – e
se comprometerem com o sucesso desta nova medida estatal.
74
O adjetivo ‘traumática’ para tal transformação se deu a partir das inúmeras
lamentações, manifestações- inclusive com a presença da mídia local e focos de revoltas por
parte dos alunos dos segundos anos que, nos últimos momentos, já estavam exigindo apenas
que continuassem no colégio até o final do ano letivo. Esta exigência não foi atendida e um
dos responsáveis da Seduc-Ce – Secretaria de Educação do Estado do Ceará – pela transição
de certa forma encerra o assunto com a seguinte declaração: “se é pra mudar para melhor que
seja logo, não devemos deixar pra fazer amanhã o que podemos fazer já”. Esta frase foi
proferida numa das últimas reuniões feitas no auditório da escola com os representantes tanto
dos professores insatisfeitos com a transição quanto com os alunos chorosos e inconformados
com a transferência.
Por fim, os alunos foram transferidos- ainda continuaram a vir reclamar com os
professores sobre as novas escolas que estavam freqüentando e até alguns pediam para serem
reprovados no primeiro ano para continuar na escola, porque a escola iria contemplar alunos
do primeiro ano através de pura adesão dos mesmos em suas primeiras turmas. Poucos
professores continuaram por causa da não concordância com os princípios da TESE e do
horário integral e assim alegavam: “como ficar numa empresa escola que vai se preocupar em
formar profissionais respeitáveis e dignos se ela mesma não vai valorizar os seus”. Os
professores que fossem continuar e os novatos não ganhariam nenhum centavo a mais pelo
aumento das horas-aulas. Em suma, sabendo do risco claro e eminente de desvalorização e
aumento da pressão por altos índices de aprovação- que já é onerosa nas escolas regulares
brasileiras, muitos deles abandonaram o barco Liceu o qual afundou e ficaram as lembranças
por algum tempo na memória de certos professores que lutavam por uma educação diferente e
mais personalizada.
Segundo alguns professores deste Liceu somente restaram o núcleo gestor, porém com
outra mentalidade e objetivo, que não foi dispensado por uma simples razão, não se constrói
uma imagem e uma identidade de uma escola com auxílio de concretos, portas e janelas e sim
com vivências, relações humanas, enfim com passado, memória. Esta nova escola deveria
nascer com a credibilidade social do Liceu de Sobral, senão de início o seu sucesso estaria
comprometido. Foi por este detalhe que o núcleo gestor foi mantido e alguns professores
também, principalmente os mais populares com os alunos e as famílias dos mesmos.
Todavia algo mais sério estava por acontecer. Com a vivência dos princípios da TESE,
os professores da escola se tornaram sumariamente executores de normas e sua reflexividade
e criticidade foram jogadas em algum lugar muito distante de suas práticas enquanto docentes,
porque todas as resistências e conflitos iniciados por eles foram e são combatidos com a
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seguinte estratégia: “Você só está aqui porque aderiu ao projeto da escola e estas são as normas ou
você ajuda a escola a atingir os objetivos ou então você é convidado a se retirar, principalmente que no
momento da entrevista é explicado direitinho como é o projeto” (enunciação do núcleo gestor).
Além disso, os professores selecionados a cada ano para fazer parte da escola são
temporários. Somente existem dois professores apenas na escola que são efetivos e isto
complica muito a resistência ou embate com as normas da escola, pois eles têm o medo
natural de perderem o emprego e comprometerem suas sobrevivências concretas, visto que
“professor temporário é pior que cão sem dono, as escolas faz [sic] o que quer, joga pro lado
joga pro outro, sem um lugar seguro pra trabalhar” (depoimento de um dos professores da
escola).
A identidade da nova escola está em processo de construção onde a principal marca é
a racionalidade empresarial resumida nos princípios de sua filosofia intitulada por TESE.
Neste capítulo não serão analisadas as marcas desta filosofia na identidade docente e sim na
identidade em construção da nova escola. Antes de iniciar a caracterização da TESE é
importante elucidar as marcas da identidade da antiga escola cujos atores em sua mínima
parcela ainda continuam vivenciando em suas memórias ou nos momentos de liberdade nos
novos espaços de sociabilidade. A escola era preocupada com a aprendizagem discente
mesmo que transparecesse a busca pelo aumento dos índices. Autônoma, democrática
relativamente, humana, mobilizadora, politizada, comprometida e respeitabilidade eram
predicados que constituíam a sua identidade e que eram interiorizados pelos professores e
alunos no processo de constituição das suas identidades.
3.1- PROCENTRO
Antes de discutir os princípios que norteiam a TESE, algumas considerações de
caráter estrutural e pedagógico sobre os Centros e o PROCENTRO serão necessárias a fim de
oferecer uma melhor contextualização da EEEP – Dom Walfrido Teixeira Vieira, a qual
surgiu conforme as padronizações adotadas por eles. Vale ressaltar que informações
relacionadas ao processo de surgimento e consolidação dos Centros não serão abordadas aqui,
por não se vincularem diretamente ao objetivo desta discussão: informar sobre as bases de
constituição da escola onde foi realizada a pesquisa.
Em 2002 teve início no estado de Pernambuco, um programa educacional com o
objetivo de combater os desafios do Ensino Médio e que se tornou modelo a ser implantado
no estado do Ceará a partir de 2008: PROCENTRO (Programa de Desenvolvimento dos
76
Centros de Ensino Experimental). Em 2004, este novo modelo de educação foi implantado no
Ginásio Pernambucano, na cidade de Recife. A TESE foi introduzida neste experimento
educacional caracterizada da seguinte maneira: “uma filosofia de gestão humanística que
utiliza a Pedagogia da Presença e a Educação pelo Trabalho como ferramentas na formação
de líderes” (LIMA, 2007, p. 4). Em 2008 já existiam 33 centros atendendo 19.000 alunos.
O PROCENTRO é resultado da parceria do setor público e o setor privado através do
ICE – Instituto de Co-responsabilidade pela Educação – uma entidade privada sem fins
lucrativos criada para ser, juntamente com a Secretaria Estadual de Educação de Pernambuco,
um dos pólos de governança do programa. Objetiva melhorar a educação pública média de
Pernambuco e do Brasil, focalizando inovações na metodologia e gestão do ensino, adotando
um slogan que se tornou emblemático nos PROCENTROS e nas EEEPS – Escolas de
Estaduais de Ensino Profissionalizantes – implantadas no estado do Ceará: “uma nova forma
de ver, sentir e cuidar da juventude” (MAGALHÃES, 2008, p.18).
O PROCENTRO e os Centros que ele dirige adotam princípios gerenciais
empresariais padronizados e constituem escolas de educação de tempo integral – 7h30 às 17h
– e que do ponto de vista pedagógico traz as seguintes inovações conforme Marcos
Magalhães- presidente do ICE: a) educação para valores – iniciativa, liberdade e compromisso
para exercer a autonomia; b) protagonismo juvenil – atuação dos jovens na resolução de
problemas da comunidade; c) cultura da trabalhabilidade – desenvolver competências para o
mundo do trabalho; d) empreendedorismo juvenil – capacidade de “autogestão, co-gestão e
heterogestão de seu potencial”; e) associativismo juvenil – “proporcionar o surgimento de
múltiplas e variadas formas de auto-organização entre os jovens com finalidades sociais,
esportivas, ambientais, etc”; f) presença educativa – “qualificação das relações entre adultos e
jovens na comunidade educativa e fora dela”; g) educação geral e certificação profissional –
competências, aprendizagens, orientações para o mundo do trabalho; h) avaliação sistemática
– “como estratégia para adequar a prática pedagógica às reais necessidades do aluno; e i)
práticas e vivências visando “desenvolver valores e competências pessoais e sociais
necessárias à integração do projeto individual ao projeto da sociedade em que atua”
(MAGALHÃES, 2008, p.21-2).
No momento de observação participante no campo – ‘Procentro de Sobral’ – não
foram visualizadas as inovações, protagonismo juvenil e presença educativa. As inovações
que mais se destacavam e eram focos de problemas e marcação da identidade docente eram a
educação para valores, práticas e vivências e principalmente a avaliação sistemática. Em
‘todas’ as reuniões de planejamentos por áreas ou em planejamentos gerais da escola, a
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elevação dos índices tanto nas avaliações discentes internas quanto externas era exigida,
mesmo se não houvesse nenhuma avaliação próxima ou exercida. Além disso, o que mais
marcava os docentes era a direta e precisa ligação sentida por eles entre o baixo rendimento
escolar com a capacidade docente de incentivar, motivar, promover boas aulas e de ‘liderar
suas salas de aula’. Convém destacar aqui que a seleção como também a remoção dos
professores para a EEEP Dom Walfrido tem critérios próprios, tal qual seu modelo de
Pernambuco. Os docentes passam por uma análise de currículo, entrevistas de
conscientização, entendimento e aceitação da TESE. Não há exigência por professores
efetivos e sim uma velada preferência por professores substitutos no quadro de funcionários
da escola. A primeira seleção foi intitulada de ‘adesão’ justamente por estar selecionando
professores do antigo Liceu de Sobral para esta nova realidade que estava se desenhando aos
poucos.
No início de 2009, a principal modificação curricular nesta escola foi a inclusão de
duas disciplinas que justamente atendiam quatro inovações bastante relevantes no tocante a
uma real melhoria da educação pública: educação para valores, educação geral- em parte,
cultura da trabalhabilidade e práticas e vivências. As disciplinas foram a TESE e a TPV –
temática, prática e vivência. A primeira objetivava a construção do projeto de vida de cada
aluno. Com carga horária de uma hora/aula, cada professor ficava responsável por quinze
alunos. O programa da TESE era baseado no modelo de Pernambuco e estava distribuído
basicamente da seguinte forma: 1º ano – os quatro pilares da educação – Jacques Delors; novo
modo de enxergar a educação; autoconhecimento; ações do empresário; liderança e
introdução ao projeto de vida. No 2º ano – descentralização, delegação planejada, tarefa
empresarial, responsabilidade social, educação e comunicação e projeto de vida
(planejamento, acompanhamento, avaliação e julgamento). No 3º ano, esta disciplina cederia
lugar às disciplinas técnicas profissionalizantes. A segunda disciplina versava sobre temáticas
sociais diversas e conscientização acerca dos valores humanos. O tema ficaria sob
responsabilidade dos três professores predefinidos para cada sala. Os três atuariam em
conjunto na escolha do tema, metodologia, didática e produção do material didático. Vale
frisar que os temas a serem abordados pela primeira disciplina eram predefinidos.
Os professores entrevistados em nenhum momento falaram negativamente sobre estas
disciplinas. Alguns até se identificavam tanto que diziam “é nesses dias que me realizo como
professora, mesmo que alguns alunos não tão nem aí, os que querem é que me estimula a
procurar algo novo a quebrar cabeça” (professora da área de linguagens e códigos). O que
marcava e estressava os professores era a falta de apoio à realização das mesmas, visto que
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não tinham sido formados para lecionarem tais disciplinas que, embora os gestores
considerassem fáceis de se trabalhar com os alunos, requereriam como qualquer disciplina um
planejamento e preparação qualitativos no tocante à metodologia, avaliação e materiais a
serem utilizados em sala de aula. Entretanto os professores deixaram claro que não adiantava
reclamar, pois “se sair bem nessas disciplinas como na sua titular, era uma das formas da
gestão avaliar o seu desempenho, se você é realmente líder e se aderiu ao projeto da escola”
(professor da área de humanas).
Dentre as várias semelhanças que poderiam ser descritas entre os Centros e a EEEP de
Sobral, duas merecem ênfase: a consideração de que todos que trabalham na escola ou Centro
são educadores e como tais devem possuir seu programa de ação refletindo o compromisso
com a educação dos alunos; e a constante avaliação de todos, além dos alunos, acerca da
efetivação de seus programas, e no caso dos professores, com relação aos índices de
aprovação em todas as avaliações que sua sala é submetida a fim de classificá-los e premiá-
los, típico da configuração neoliberal vigente. Porém no caso de Sobral até o término da
pesquisa ainda não tinha sido aprovada as gratificações por desempenho aos professores. O
que não pode deixar de ser enfatizado e constitui um promissor objeto de estudo é a
interiorização dos termos que são utilizados por esta filosofia educacional sem resistência
qualquer. Por exemplo, o programa de ação tem como itens a serem completados: 1- negócio
– o objetivo a ser alcançado dentro da referida função; 2- filosofia do negócio – domínio,
enfoque e postura; 3- resultados combinados e esperados. Isso sem analisar os termos que são
utilizados nas reuniões de planejamento que não passam de uma transparente e não mais
velada, se é que um dia foi, invasão das políticas neoliberais na educação pública. A título de
análise segue algumas sentenças muito sugestivas:
Temos que alinhar todos pela construção de um novo jeito de ver e sentir o jovem, se o seu negócio não vai bem alguma coisa você não está fazendo bem ou é a forma de vender, ou é atratividade do seu negócio, ninguém compra algo que não goste ou se sinta atraído, temos que sentar e analisar o que eu estou fazendo de errado, será que estou me doando para mudar a realidade dos meus alunos, o que ta faltando a escola oferece merenda escolar todos os dias têm biblioteca, laboratórios, livro didático, professores comprometidos, pelo menos eu acho e porque nossos índices estão lá embaixo...(frases soltas coletadas da fala dos gestores numa das reuniões de planejamento por conta das notas dos alunos no segundo período de 2009).
Uma característica específica do ‘Procentro de Sobral’ é a função de diretor de turma.
Inovação especificamente originária do Liceu de Maracanaú. Cada turma possui um diretor
que monitora a quantidade de faltas dos alunos, os gráficos de rendimentos em avaliações
internas e externas, tenta solucionar conflitos entre alunos e professores antes de levar para o
núcleo gestor e busca alternativas para solucionar problemas em sua sala dirigida tais como o
79
insucesso escolar, indisciplina, desinteresse e outros através de diálogos com os outros
professores, núcleo gestor e a família dos alunos. Geralmente os professores são nomeados
pelo coletivo de professores ou pelos gestores. São poucos os que aceitam, pois “é muita
cobrança, muita dor de cabeça é como se duplicasse os problemas que a gente enfrenta todo
dia na sala de aula, eu tou louca pra desistir, mas ninguém quer assumir [....]”(professora da
área das ciências exatas).
Nas próximas discussões algumas características deste novo modelo de escola serão
tomadas na elucidação do objeto de pesquisa em foco – as marcações da identidade docente –
e, foi por causa dele que, certas informações não foram colocadas, somente aquelas que
versavam sobre a situação de trabalho e relacionamento dos professores entre si e com os
espaços de sociabilidade.
3.2- TESE: Uma filosofia de gestão
A tecnologia de gestão foi implantada pelos Centros como um “excelente instrumento
para desenvolver o protagonismo, sobretudo pela ênfase em princípios e valores, a visão
correta de uma empresa e o papel educativo do empresário” (MAGALHÃES, 2008, p.31).
Esta denominação é uma adaptação da TEO – Tecnologia Empresarial Odebrecht à realidade
escolar a fim de conseguir uma maior aceitabilidade dos agentes escolares de forma geral.
Partindo de um contexto de má qualidade do ensino público e a impossibilidade do
jovem ao terminar o ensino médio de se inserir tanto na vida acadêmica quanto no mercado de
trabalho, o PROCENTRO através de seus consultores adotou uma proposta de conteúdo,
método e gestão do ensino com o objetivo de “formar uma consciência empresarial
humanística não só nos gestores, mas também nos demais educadores e educandos,
alinhando-os à filosofia do programa – TEO”. A filosofia de gestão empresarial foi aplicada
nas escolas vinculadas ao PROCENTRO a fim de torná-las capazes de planejar, executar,
avaliar e corrigir “como uma empresa produtora de riquezas morais e, indiretamente, riquezas
materiais; formadora de cidadãos aptos a empresariar suas competências e habilidades”
(LIMA, 2007, p.7).
A modelagem da TESE a partir da TEO, definida “como a arte de coordenar e integrar
tecnologias” só foi possível com a estratégia de agregá-la aos quatro pilares do conhecimento
contidas no Relatório de Jacques Delors – aprender a conhecer, a fazer, a viver juntos e a ser.
Conforme Lima (2007, p.9-10) o êxito de aplicação da TESE é conseguido a partir da
presença de quatro pontos importantes: 1- uma base sólida, “líder e liderados portadores do
80
espírito de servir para gerar resultados, da humildade para trabalhar em equipe, e da
comunicação e confiança”, para conquistar credibilidade e parceria; 2- a tecnologia deve ser
ajustada à realidade de cada escola e suas peculiaridades; 3- “valorização da prática sobre a
teoria; 4- “compromisso com o futuro”. Todos esses pontos devem estar vinculados com o
negócio da escola que é a educação de qualidade, algo que deverá ocupar “a mente de cada
um dos seus integrantes, de acordo com suas áreas específicas” devendo “gerar resultados –
satisfação da comunidade pelo desempenho dos educandos, educadores e gestores”. Todos
devem estar a serviço da comunidade e dos investidores sociais (governos municipal, estadual
e parceiros privados) os quais se constituem nas “duas fontes de vida” dos Centros, visto que
os mesmos são os clientes e se “não houver cliente- alguém que precise dos serviços – e se
não houver alguém que invista, conseqüentemente, não haverá empresa” (ibid, p.11-13).
Os educadores e os gestores são considerados líderes no sentido de ter a função “de
coordenar os diversos saberes ou tecnologias específicas, integrar os resultados gerados pelas
diferentes áreas e educar pessoas, em serviço, pelo seu exemplo” (ibid, p.10). Cada líder “faz
acontecer” porque ao perceber as expectativas dos clientes “mobiliza recursos ou concentra
esforços para satisfazê-la ou superá-la” (ibid, p.12). Os líderes educam através da Pedagogia
da Presença, onde cada um “dedica tempo, presença, experiência e exemplo ao seu
liderado/educando” (ibid, p.14). Além disso, cada líder deverá ter um programa de ação
contendo fundamentalmente o seu negócio, que não é apenas objetivo e sim algo que sintetiza
as obrigações e os deveres “que cada um dos educadores tem em relação à comunidade
(cliente) e ao investidor social (PROCENTRO e ICE)” (ibid, p.9). É interessante citar a
definição de negócio contida no módulo II da apostila utilizada para oferecer as respectivas
informações sobre a TESE:
É oriunda do latim (Nec + occium = sem descanso), portanto, é algo que toma a mente, ocupa o espaço de tempo e realiza um ideal. Até em momentos de lazer, ao observar aleatoriamente imagens ou fatos, a mente se reporta ao negócio, fazendo a conexão entre eles. Se isso ocorre com freqüência, este é o negócio (ibid, p.9).
Toda escola deve elaborar o seu plano de ação que será constituído por: uma
introdução contendo valores, visão de futuro e missão; premissas; objetivos; prioridades;
resultados esperados; indicadores; estratégias; macroestrutura; papéis e responsabilidades. O
mais curioso que tal estrutura de plano se encontra em todos os estabelecimentos do estado do
Ceará atualmente, prova de que a TEO foi abraçada pelo governo e se constitui na filosofia de
gestão do estado como um todo.
81
Dentre estes elementos três merecem destaque. Os valores podem ser descritos de
acordo com as considerações acima, porém, analisando o plano de ação da escola de Sobral,
muitos valores são contemplados sem a vinculação com o sistema empresarial: solidariedade,
altruísmo, honestidade, justiça, companheirismo e etc. O segundo elemento são as premissas.
Algumas já foram conceituadas anteriormente como é o caso do protagonismo juvenil e
atitude empresarial – cultura da trabalhabilidade e empreendedorismo juvenil – mas as outras
necessitam ser conceituadas da maneira que está na apostila de formação dos gestores e
professores. A terceira premissa é a formação continuada – “educador em processo de
aperfeiçoamento profissional e comprometido com o seu desenvolvimento” (LIMA, 2007,
p.13). A quarta é a co-responsabilidade, ou seja, “parceiros públicos e privados
comprometidos com a melhoria da qualidade do ensino médio”. E a quinta é a replicabilidade
– “viabilidade da proposta, possibilitando a sua reprodução na rede pública estadual” (ibid,
p.14).
O terceiro elemento destacável são os resultados esperados, justamente porque
contempla as terminologias da administração empresarial. Um dos aspectos deste elemento
são os níveis de resultados: “sobrevivência – produtividade, liquidez, imagem. Crescimento –
líder e liderados comprometidos com o autodesenvolvimento; formação de Patrimônio moral
e material. Sustentabilidade/perpetuidade – integração da comunidade escolar,
responsabilidade social e serviço à comunidade” (ibid, p.22). Por exemplo, a sobrevivência é
constituída pelos subitens:
Produtividade – ‘resultante do processo de desenvolvimento das competências pessoais, relacionais, produtivas e cognitivas na organização’(...). Liquidez – ‘investimentos x resultados. A comunidade e a escola começam apropriar-se dos resultados. Os investimentos transformam-se em qualidade de ensino. Imagem – ‘a escola tem um significado, um conceito e sua presença na comunidade já é referência” (id, p.23).
A ofensiva e invasão mercantil na educação pública ficam se não claras e óbvias, um
tanto gritantes e cínicas depois desta breve explanação. Somente pelos termos e enunciados já
se pode afirmar que as políticas neoliberais estão se tornando hegemônicas ou já se tornaram
na educação brasileira. Aqui se analisa superficialmente a ofensiva em dois estados
brasileiros, caberia então uma investigação das configurações que o neoliberalismo está
assumindo nos outros estados do país.
Valores e princípios que constituíam a identidade da antiga escola Liceu de Sobral,
mesmo que embrionários, tais como decisão coletiva, mobilização política, cidadania,
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democracia, autonomia, discussão e sentimento de classe social, foram substituídos por outros
de matriz ética mercantil ou foram ressignificados numa das mais perversas estratégias da
invasão neoliberal e neoconservadora na educação. Reformulando conceitos e categorias,
como também valores, o princípio educativo da direita neoliberal pretende uma reforma da
cultura no seu todo e não especificamente do setor educacional ou econômico-político.
Analisando os princípios da TESE, uma afirmação de Suárez (2008, p.247) é bastante
elucidativa sobre a estratégia de substituição:
As noções econômicas e tecnocráticas de eficácia, produtividade, eficiência e êxito tomam o lugar de outras, mais políticas, como a de participação democrática na tomada de decisões educacionais, ou relacionadas com problemáticas sociais, como a de expansão quantitativa da matrícula escolar. Esta transformação não só tende a tornar cada vez mais econômico e menos político o discurso educacional como também leva a traduzir valores próprios da ética pública e cívica na clave da ética do livre mercado e do consumo: a solidariedade e a cooperação cedem lugar assim à competição e ao mérito individual como metas educacionais finais; ou, de qualquer forma, são reconsideradas meramente como estratégias metodológicas para obter maior rendimento e produtividade.
Diante de tal ofensiva e seu poder de dominação nos mais variados setores da cultura,
uma grande inquietação se apresenta no caso da esfera educacional- constituída a priori por
indivíduos pensantes e comprometidos com o processo educativo: “como triunfam
culturalmente, no plano educacional, os regimes neoliberais?”. Gentili (2008) defende como
resposta a essa pergunta, que ele também faz “o uso e abuso de duas estratégias discursivas”
que permitem o avanço e extensão da “modernização conservadora” (termo que trata do
caráter tanto transformador e criativo quanto restaurador ou conservador das políticas
culturais da Nova Direita) empreendida pelo neoliberalismo:
(a) o discurso da qualidade e o conteúdo específico atribuído a ela quando a remetemos à análise das políticas educativas e dos processos pedagógicos; (b) o exacerbado discurso dominante de articulação do universo educacional e do universo do trabalho (grifos do autor) que, defendido no plano teórico pelos que postulam uma neoteoria do capital humano, se tem expandido como a única nuança a partir da qual se pode (e deve) avaliar os efeitos ‘práticos’ da educação do mundo contemporâneo (ibid, p.230, grifos do autor).
Outra estratégia neoliberal e talvez a mais eficaz pela qual essas estratégias discursivas
ganham sentido e valor de uso e abuso é o ataque do neoliberalismo à escola pública “a partir
de uma série de estratégias privatizantes, mediante a aplicação de uma política de
83
descentralização autoritária”. Este ataque também vem acompanhado por “uma política de
reforma cultural que pretende apagar do horizonte ideológico de nossas sociedades a
possibilidade mesma de uma educação democrática pública e de qualidade para as maiorias”
(GENTILI, 2008, p.229). Esta reforma cultural se faz necessária a fim de “despolitizar a
educação, dando-lhe um novo significado como mercadoria para garantir, assim, o triunfo de
suas estratégias mercantilizantes e o necessário consenso em torno delas” (ibid, p. 230). Além
disso, a ofensiva neoliberal vai tentando substituir “a legitimidade e o consenso edificados”
em torno de noções de cidadania, solidariedade, justiça, igualdade, bem comum, ética,
democracia, direitos sociais, que estão presentes no imaginário social que representam anos
de luta e pequenas conquistas em prol da democratização da vida social e política. Os valores
da empresa, da competição, mensuração e do lucro indiscriminado constituem a moeda para a
presente substituição, que “não é automática nem mecânica” requerendo,
Uma mudança profunda das formas culturais com que as maiorias começaram a ler e atuar politicamente, ainda que de maneira interrompida e dificultosa, nas sociedades capitalistas latino-americanas, sob margem de liberdade restringida e controlada que foi outorgada por modelos de dominação oligárquicos, liberais e populistas (SUÁREZ, 2008, p.241).
Sem contar que as noções que a ofensiva neoliberal pretende substituir – os
representantes históricos de lutas e conquistas sociais – “constituíram o fundamento e o
cenário para a formação de identidades e coletivos sociais” e de questionamento do sistema
político dominante e as contradições e arbitrariedades da ordenação social e econômica
vigente. É por conta disso que o autor defende que estamos numa “guerra cultural”, pois as
noções que o neoliberalismo almeja substituir “são ainda instrumentos válidos para desafiar o
poder e pensar alternativas políticas viáveis” (ibid, p.241-2).
Nesse sentido, a escola pode ser colocada através das políticas educacionais num lugar
estratégico de “receptora” e, ao mesmo tempo de “instrumento de uma potente política de
reforma cultural de sinal regressivo e antidemocrático” (SUÁREZ, 2008, p.249). Um caso
típico desse processo é a transição descrita anteriormente de Liceu de Sobral para EEEP.
A partir do momento que o núcleo gestor começou a freqüentar os cursos de formação
e reunião acerca da nova política e filosofia a serem implantadas na escola- início de 2008, os
seus valores e posturas de gestão foram mudando e se diferenciando daqueles pregados por
eles estrategicamente durante seus discursos, tais como gestão democrática e participativa,
autonomia docente, valorização dos professores, ética, liberdade, igualdade e
companheirismo. No período da transição, tal mudança foi sentida e efetivada por uma prática
84
discursiva que denominamos de ‘política do tem-que-ser’. O ‘tem-que-ser’ quando não é
resposta para tudo- reclamações, conflitos e questões enunciadas - é a saída estratégica em
momentos de contestação às normas e diretrizes que poderiam se tornarem ameaças ao
ordenamento social instaurado.
Representando o caráter autoritário das políticas neoliberais e objetivando a anulação
de qualquer foco de conflito ou resistência frente às orientações educacionais da Secretaria de
Educação do Estado por parte dos alunos, pais e professores, esta política, em poucos meses,
tornou-se um elemento identidário de todas as gestões escolares da cidade de Sobral, se é que
podemos dizer do Estado e um profundo marcador da identidade docente.
Freqüentando os encontros de formação continuada das escolas estaduais e através de
conversas informais com os professores participantes, foi possível comparar a ‘política do
tem-que-ser’ adotado na escola durante e após a transição com a mesma política que está
sendo desenvolvida no restante das escolas sobralenses. Estão claros os ideais desta política:
antidemocracia, autoritarismo, dualização, despolitização, enfim reforma cultural.
Basicamente, através do silêncio, descaso e negativas de justificação diante de
questionamentos e pedidos de esclarecimento, os sócios e agentes da ofensiva neoliberal
pretendem cansar os resistentes e conflituosos que ameaçam a substituição dos valores e
direitos humanos almejados historicamente através da educação pelos valores, ética e sentidos
empresariais no todo social.
Conforme os professores durante as conversas, nada mais é explicado, tudo está posto
e justificado por si mesmo, pois todas as normas, diretrizes e orientações são resultado do
esforço e deliberação do governo do Estado de engendrar uma educação de qualidade para
todos. É emblemática e absurdamente simbólica a frase utilizada pela diretora da 6ª CREDE,
em meio a um turbilhão de reclamações, questionamentos e acusações sobre a implantação do
projeto da escola técnica profissionalizante antes do término do ano letivo, ocasionando com
isso a transferência de quase duzentos alunos do segundo ano: “gente, não tem mais jeito, tem
que ser dessa forma, pense nas melhorias que o projeto vai trazer...”.
A disseminação dos PROCENTROS e seus corolários atende a uma estratégia
neoliberal de utilizar a desigualdade como princípio que “leva – supostamente – os indivíduos
a melhorar, a se esforçarem e a competir, em suma: é a precondição para o exercício do
princípio do mérito” (GENTILI, 2008, p.227). Conforme este autor, numa sociedade de
mercado a educação é uma propriedade, cujo privilégio de possuir, desfrutar e usar está nas
mãos de uma minoria- os integrados. Os modelos de PROCENTROS não são seguidos por
todas as escolas estaduais justamente porque não é objetivo do neoliberalismo integrar todos
85
os alunos no ambiente estratégico da vendável falácia de capacitá-los para competir nos
postos de mercado, pois ele corre o risco dos mesmos descobrirem que estes postos não
existem mais, pelo menos da forma que os enunciados neoconservadores preconizam
Nas EEEPS do Ceará está sendo adotada a violência neoliberal contra a escola pública,
de forma exemplar. A seletividade dos alunos e dos professores ocorre, como em qualquer
aspecto da vida social hodierna, para incutir o princípio da competição- fundante do mercado
e da meritocracia- elemento importante na permanência das relações sociais mercantis.
Aliado à disseminação do princípio da competição incutido em todos os aspectos da
vida em sociedade pelas máximas neoliberais, estão dois outros princípios que devem ser
estrategicamente interiorizados interdependentes: a meritocracia e a desvalorização. Baseado
nas considerações de Gentili (2008), o mérito além de se constituir numa precondição para
aumentar a competitividade e a produtividade dos indivíduos, ele se vincula à desigualdade -
você é pobre ou não consegue emprego ou salário melhor porque é incompetente, se fosse
capaz poderia conseguir o que quer (o direito de ser consumidor). Outro vínculo se faz com
desvalorização – enquanto você não mostrar resultados, você não terá condições de exigir
melhores salários ou gratificações continuando desta forma mais um numa população de
ninguém, sempre um desvalorizado. Assim, é interiorizado pelos trabalhadores atuantes no
mercado – os professores e gestores não estão excluídos – que, somente serão valorizados se
atingirem os resultados exigidos pelas políticas empresarias, sociais ou educacionais. Os
indivíduos passam a crer que a valorização e o mérito são conseqüências diretamente
inerentes aos trabalhadores competentes e que se diferenciam dos demais na obtenção
quantitativa e objetiva dos resultados.
Desta maneira não só os professores como o restante da sociedade invertem a ordem
das parcelas, em vez de valorizar a profissão a fim de se conseguir a satisfação dos objetivos
da educação, desvaloriza-se primeiro a profissão, incentiva-se com um prêmio ou gratificação
para que os professores concorram entre si e consigam atingir os objetivos já esperados e
descritos oficialmente através dos currículos neoliberais.
A meritocracia e a desvalorização – faces da mesma moeda – que servem ao princípio
da competitividade e produtividade, conseguem um controle minucioso dos funcionários que
fazem parte das instituições em que elas são adotadas – empresas, fábricas, escolas, família,
igreja. Por um lado, iludem os indivíduos que atingem os objetivos ou se comportam da
maneira estabelecida pelas instituições através de migalhas – gratificações em dinheiro,
pequenos elogios e cargos funcionais – conseqüência do mérito. Por outro, e conseqüência do
primeiro, produz uma tensão mobilizadora tanto para produtividade, ou seja, para ser
86
recompensado quanto para evitar ser excluído do processo trabalhista e consumista do capital
por não ter sido competente ou capaz de atingir os objetivos estabelecidos. Assim, a busca
incessante pela recompensa como também o temor da exclusão concorrem para eficácia da
padronização da atividade, comportamento e atitude dos indivíduos, necessários ao êxito dos
sistemas de dominação, assim como para mortificação do pensamento crítico e reflexivo,
essenciais ao processo de mobilização e transformação social.
Esta tensão – ser competente para continuar incluído no processo educativo – foi
sentida nos professores entrevistados ao ponto de exercerem irrefletidamente as normas e
diretrizes da escola. Quando ocorriam focos de cobrança por melhores condições de trabalho
ou momentos de contestação pelas normas que não eram identificáveis com as referidas
identidades profissionais, tais focos e momentos eram sumariamente eliminados ao menos na
aparência do cotidiano escolar pelos gestores à medida que utilizavam discursivamente as
estratégias de competitividade e meritocracia aliada à desvalorização profissional contínua ou
“desvaloricracia” no intuito de padronizar e alienar os funcionários da escola:
Como vocês querem receber um salário melhor, serem reconhecidos por seus alunos ou pela sociedade se não conseguem bons resultados. Os alunos tiram péssimas notas, não sabem de nada. Vocês não conseguem nem motivá-los. Vocês acham que estão realmente em condições de cobrar alguma coisa? Melhorem os índices e eu serei o primeiro a entrar nessa briga pela valorização dos professores (fala de um membro do núcleo gestor num dia de planejamento mensal).
Depois destas considerações alguns professores ajudam o gestor no processo de
ideologização da classe docente:
É tem professores que vem pra sala dá seu conteúdo e vai embora, não se interessa se o aluno aprendeu, se o outro tá bagunçando, só se interessa se está fazendo sua parte que é repassar os conteúdos, mas cadê a preocupação com o aluno, com a aprendizagem? Por isso que as notas são tão baixas ( professora de Ciências Exatas).
Tem professores, inclusive, eu noto que aqui também tem que fingem que estão preocupados e na realidade só fazem isso para não ser chamado atenção pela coordenação ou para ter uma boa imagem diante do diretor (professor de Ciências Humanas).
O impressionante é que para justificar o fim – promover uma aceitabilidade e crença
da eficiência dos ditames neoliberais de racionalidade empresarial no processo educativo –
alguns aspectos muito importantes são postos na discussão como: a) falta de compromisso de
alguns professores com a aprendizagem dos seus alunos ou por já terem desistido de atuar
como um docente fomentador de aprendizagens discentes ou por se sentirem derrotados
perante os inúmeros problemas e obstáculos que a sua profissão tem que enfrentar ou então
por possuírem uma formação acadêmica deficitária que não o ajude no enfrentamento dos
conflitos atuais da sala de aula da escola pública brasileira; b) extinção de postos de trabalho e
falta de emprego para inúmeros indivíduos que vem a docência como única oportunidade
87
viável de sobrevivência, causando muitas vezes, numa inundação da escola de professores
“pára-quedas” atuando mecanicamente na transmissão de conhecimentos ‘mortos’ que
mortificam o interesse dos alunos pela escolarização como também o surgimento dos
conhecimentos e aprendizagens discentes; c) falta de uma política justa, acadêmica e humana
tanto de seleção dos profissionais da educação quanto da avaliação dos seus fazeres. Este
último ponto merece um parêntese: como avaliar a atuação docente sem utilizar os métodos
neoliberais- princípios da produtividade, elevação de índices, competitividade- numa
sociedade quase rendida a estes princípios no seu todo? Como construir uma forma de seleção
a fim de detectar os comprometidos com a aprendizagem dos alunos num cenário nacional de
total desvalorização da docência onde a carência deste tipo de profissional está
vertiginosamente aumentando? Como motivar os bons professores que existem na educação
brasileira num ambiente de péssimas condições materiais e financeiras de atuação? Estas e
outras inquietações que, talvez se ao menos fossem solucionadas parcialmente, resolveria boa
parte dos problemas da educação brasileira. A resolução destes problemas não constitui, em
momento algum, foco de preocupação dos mentores neoliberais e neoconservadores.
Não que tais realidades denunciadas pelos professores não se concretizem tanto na
escola pesquisada quanto em qualquer escola do país. Entretanto o que é marcante na
identidade dos professores e também na identidade da escola recém nascida é a atitude
individualista e competitiva entre os professores demonstrada claramente com as acusações
objetivadas aos profissionais da mesma categoria trabalhista. Foram muitas as situações onde
os professores em si se acusavam nas formações continuadas e nos planejamentos da escola.
Da lista de culpados estavam a didática, metodologia, falta de simpatia com o aluno,
descompromisso com a aprendizagem, individualismo, egoísmo e descaso com a educação.
Este individualismo exagerado e competitivo causa duas situações extremamente
cruciais para qualquer sistema de dominação: uma desvalorização de classe, desrespeito entre
si e um processo de identificação tanto profissional quanto coletiva fragmentário, confuso e
fundamentalmente estratégico, ou seja, os indivíduos podem se orgulhar de estar sendo ‘um’
professor e exercer ‘uma’ função de ensinar e não ser o professor e exercer a função de
ensinar. Ou seja, é como se não existissem mais nem uma referência coletiva e legítima
socialmente do que seja ser professor e sua função de ensinar. Temos apenas um turbilhão de
‘professores’ atuando no magistério sem nenhuma marcação basilar, como se cada professor
fosse e devesse ser a referência de ‘ser professor’ a ser seguida pelos outros professores,
instaurando assim um contínuo estado de guerra em prol de se conseguir legitimar a sua
88
referência de professor e para isso é necessário destruir permanentemente as referências
concorrentes.
A conseqüência imediata deste movimento é o esvaziamento de sentido das
construções de sentimento de pertença e de classe, de identidade coletiva, cultura docente e
mobilização de classe. Pertencer a que referência de docente se todos não prestam e o único
que se salva sou eu? Eis o sentimento que permeia a docência brasileira neoliberal.
Em suma, através dessas estratégias neoliberais discutidas acima, o neoliberalismo
conseguiu no caso das escolas estaduais sobralenses e brasileiras transformar os professores
em fiéis e honrados escudeiros de sua política educacional e de reforma cultural. A aceitação
dos professores entrevistados tanto na EEEP Dom Walfrido quanto dos que participavam das
formações continuadas da Secretaria da Educação com relação a estes princípios do mercado
na educação, exemplifica empiricamente tal afirmação. Mesmo sabendo que esta escola é
profissionalizante e que objetiva sumariamente “formar” técnicos para o mercado de trabalho,
o que se percebe é a disseminação dos seus princípios em todas as escolas cearenses, que não
são ainda profissionalizantes.
Curioso é que as mesmas estratégias que o neoliberalismo utiliza para promover a
aceitação e a crença dos professores quanto aos seus princípios, são utilizadas pelos
professores quando ocorre algum momento de contestação do projeto da escola durante as
reuniões e planejamento por docentes que ainda não se converteram a devida proposta:
As pessoas... Tem professores que falam mal do projeto, mas é a primeira vez na vida que o estado se preocupa com o futuro dos alunos de Sobral, eles vão concluir os estudos tendo uma profissão [estratégia da educação para o trabalho];
Acho que a educação com este modelo pode melhorar, pois antes os professores não se preocupavam com os resultados e davam aula do jeito que queriam se o aluno aprendia bem senão bola pra frente. Tava na hora de colocar ordem na casa, de dar um direcionamento à educação pública que estava jogada as traças [estratégia da qualidade e também da ineficiência do setor público para gerir qualquer setor da vida social];
Tem muito professor que se lasca, dá o sangue para que os alunos aprendam e tem outros que só estão na educação porque não encontraram coisa melhor. Não acho justo quando tem aumento no salário é pra todos. Acho que deveria haver uma política de reconhecimento diferenciada para cada um. [estratégia da meritocracia e desvalorização contínua].
(trechos coletados da fala de alguns professores sobre a TESE e o projeto de escola adotado em Sobral e no Ceará).
Faz-se necessário a alusão a dois aspectos importantes com relação ao princípio
educativo da ofensiva neoliberal. Um é a cruel sustentação de um padrão ideal de atividade,
comportamento e pensamento haja vista os objetivos esperados em determinado contexto,
sem a preocupação de atentar para as reais capacidades humanas de realização de tal padrão e
objetivo. Um professor comprometido, competente, líder e executor das enunciações dos
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especialistas sobre o fazer docente vai indefinidamente realizar seus objetivos. Caso não
aconteça é porque algo não foi seguido ou aprendido pelo professor. Mesmo consciente diante
das impossibilidades de realizar tais padrões e objetivos, o profissional passa a viver num
contínuo e alienante estado de tensão ou por se considerar incompetente ou por se amedrontar
com a possibilidade de exclusão ou até mesmo pelas duas situações justapostas.
Outro aspecto e talvez uma das mais eficazes estratégias do neoliberalismo de
disseminação e interiorização dos seus princípios e valores na cultura como um todo, é “a
cooptação e a incorporação ativa, em suas fileiras, de muitos intelectuais e educadores
antigamente progressistas” (SUÁREZ, 2008, p.242). Com o auxílio dos seus sócios
(“intelectuais-pedagogos reconvertidos”), a Nova Direita assume e consegue realizar sua
tarefa cultural e duplamente lógica:
Destrutiva porque está empenhada em corroer e deslegitimar certos padrões culturais, axiológicos e de conduta social, assim como em desqualificar e marginalizar os agentes sociais que os possuem e fazem uso político deles. Produtiva porque supõe a criação, difusão e aceitação generalizada de um novo senso comum, mesmo quando, no processo de construção hegemônica, incorpora e dá novo significado aos conteúdos fragmentários do velho e coopte alguns dos sentidos e interesses dos atores sociais vinculados a ele (op.cit).
Se a ciência e a formação acadêmica estiverem a serviço do capitalismo globalizado
de vestimenta neoliberal, que tipo de professor recém-formado podemos esperar? Que tipo de
aluno e de sociedade este professor ajudará a constituir? Que espécie de identidade este
professor terá construído provisoriamente e que balizará a sua atitude e ação docente na
experiência em sala de aula? Neste sentido é de suma importância analisar que marcas da
formação o professor traz impressas em sua identidade a fim de perceber o quanto a formação
acadêmica foi cooptada pelos princípios de neoliberalismo e qual a margem de contribuição
do currículo e das práticas curriculares na construção de uma identidade docente crítica,
mobilizadora e de preocupação pela transformação social. Tal investigação também será de
fundamental importância na percepção de qual parcela da formação docente já foi
reconvertida e transformada em sócio na tarefa de reforma cultural engendrada pelos
mentores do neoliberalismo.
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CAPÍTULO 4
SOBRE A IDENTIDADE
Comprometer-se com uma única identidade para toda a vida, ou até menos do que a vida toda, mas por um longo tempo à frente, é um negócio arriscado. As identidades são para usar e exibir, não para armazenar e manter” (BAUMAN, 2005, p.96).
4.1- EM BUSCA DE ESCLARECIMENTOS: A CONTRIBUIÇÃO DOS EST UDOS
CULTURAIS, DA SOCIOLOGIA E DA PSICOLOGIA SOCIAL.
Identidade, assunto do momento, é um dos temas que vinculam séries preocupações,
“dilemas inquietantes” e “escolhas obsedantes” cuja busca se constitui numa “tarefa
intimidadora de ‘alcançar o impossível’ pois a realização identitária se efetiva “na plenitude
do tempo – na infinitude...”. (BAUMAN, 2005, p.16).
Comumente ela é definida por dois tipos de comunidade: de vida e de destino. A
primeira ancora-se no viver juntos e a segunda “por idéias ou por uma variedade de
princípios”. Tal como o ‘pertencimento’, a identidade é bastante negociável e revogável,
tendo como fatores cruciais “as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que
percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso” (ibid, p.17).
O projeto moderno “transformou a identidade, que era questão de atribuição, em
realização – fazendo dela, assim, uma tarefa individual e da responsabilidade do indivíduo”
(BAUMAN, 1998, p.30. grifo do autor). Ela foi lançada como projeto, cuja construção
[...] requeria uma clara percepção da forma final, o cálculo cuidadoso dos passos que levariam a ela, o planejamento a longo prazo e a visão através das conseqüências de cada movimento. Havia, assim, um vínculo firme e irrevogável entre a ordem social como projeto e a vida individual como projeto, sendo a última impensável sem a primeira (ibid, p.31).
Quando a modernidade substitui a determinação da “identidade pelo nascimento” – de
escassas oportunidades – dos estados pré-modernos para uma determinação identitária
vinculada a uma tarefa individual, um “trabalho de toda uma vida”, representou um ato de
libertação – “libertação da inércia dos costumes tradicionais, das autoridades imutáveis, das
rotinas preestabelecidas e das verdades inquestionáveis” (BAUMAN, 2005, p.55-6).
91
Entretanto o custo desta liberdade resultou numa carga muito pesada para os indivíduos que,
agora, estarão sozinhos, na investida pela auto-identificação.
A identidade, o “eu postulado”, constitui num emaranhado de problemas. É algo
evasivo e escorregadio. Na nova configuração da modernidade – era líquida – as identidades
estão flutuando, algumas escolhidas por nós e outras impostas pelas pessoas que estão ao
nosso redor. O autor chama atenção para defendermos as primeiras em detrimento das
últimas. O resultado da negociação entre ambas é “eternamente pendente”, haja vista a grande
possibilidade de desentendimento entre elas (ibid, p.19), a angústia pela identidade no cenário
líquido-moderno, é decorrente do “desejo de segurança”- “ele próprio um sentimento
ambíguo”. Flutuar numa realidade indefinida sem apoio produz ansiedade. Entretanto, “uma
posição fixa dentro de uma infinidade de possibilidades também não é uma perspectiva
atraente”. O indivíduo líquido- “flutuante, desimpedido, é o herói popular”. Prender-se ou ser
inflexível é “algo cada vez mais malvisto” (ibid, p.35).
Woodward (2008) destaca que a ênfase atual dada à identidade vincula-se às
mudanças e transformações globais das estruturas políticas e econômicas onde estão
localizadas as identidades em conflito, visto que são construídas pela cultura e contestadas
sob formas particulares no mundo pós-colonial caracterizado pelo “colapso das velhas
certezas e pela produção de novas formas de posicionamento.” (ibid, p.25).Além disso, a
autora apresenta visões diferentes e contraditórias sobre a identidade:
Por um lado, a identidade é vista como tendo algum núcleo essencial que distinguiria um grupo do outro. Por outro, a identidade é vista como contingente; isto é, como o produto de uma intersecção de diferentes componentes, de discursos políticos e culturais e de histórias particulares. (ibid, pp.37-8)
De acordo com a noção de sujeito sociológico, não há no interior do sujeito um núcleo
autônomo e auto-suficiente e centrado como defendia a noção de identidade da concepção
iluminista de sujeito, mas sim um núcleo essencial interior- “eu real”, que “é formado e
modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que
esses mundos oferecem” (HALL, 2006, p.11). Sendo assim a identidade é formada pela
interação entre o eu e a sociedade. Ela “sutura’ o sujeito à estrutura, estabilizando os sujeitos e
os mundos culturais que eles habitam a fim de torná-los mais unificados e predizíveis (ibid,
p.12). Porém tal concepção não se sustenta no contexto de mudanças estruturais e
institucionais em que se percebe a fragmentação do sujeito em várias identidades e não mais
numa identidade fixa, essencial e permanente. O sujeito pós-moderno, resultante deste
92
processo, “assume diferentes identidades em diferentes momentos, identidades que não são
unificadas ao redor de um “eu” coerente.” Hall defende a especificidade da identidade pós-
moderna:
A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (ibid, p.13).
De caráter “não descoberto”, a identidade é “algo a ser inventado”, “como alvo de um
esforço”, um objetivo. É preciso ser escolhida “entre alternativas e então lutar por ela e
protegê-la lutando ainda mais” ou deve ser construída do zero. Para se vencer nesta luta é
preciso que “a verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da identidade deva
ser, e tenda a ser, suprimida e laboriosamente oculta”. Entretanto, esta condição foi revelada
recentemente (BAUMAN, 2005, p.22).
O nascimento da identidade “como problema e, acima de tudo, como tarefa” foi
possibilitado pela desintegração lenta e a “redução do poder aglutinador das vizinhanças,
complementadas pela revolução dos transportes, para limpar a área, [...]” (ibid, p.24, grifo do
autor), pois num contexto social onde a vizinhança ou proximidade firmavam as relações
sociais, “o lugar de cada pessoa era evidente demais para ser avaliado, que dirá negociado”.
A idéia de identidade, particularmente a de ‘identidade nacional’ foi gestada e forçada
chegando como uma “ficção, na experiência humana e não como um “fato de vida” auto-
evidente. Ela nasceu
Da crise de pertencimento e do esforço que esta desencadeou no sentido de transportar a brecha entre o ‘deve’ e o ‘é’ e erguer a realidade ao nível dos padrões estabelecidos pela idéia- recriar a realidade à semelhança da idéia. [...], a identidade precisava de muita coerção e convencimento para se consolidar e se concretizar numa realidade (mais corretamente: na única realidade imaginável)” (ibid, p.26).
Das afirmações acima se conclui que a sociedade pós-moderna está imbuída por um
jogo de identidades possíveis no nível do sujeito articulador nos mais variados momentos de
sociabilidade. Neste jogo necessário existe um movimento contínuo de desarticulação de
identidades passadas e criação de novas identidades caracterizado por uma rede de
cruzamentos identitários sempre que o sujeito é representado e interpelado.
93
A identidade é relacional, marcada pela diferença e significada por meio de sistemas
simbólicos que atuam no processo de representá-la. Ela é construída a partir de trocas,
aprendizagens, negociações, conflitos e interações com o Outro e os contextos sociais
determinados. O social, o simbólico e o psíquico participam ativamente de sua construção e
manutenção. (WOODWARD, 2008). Para a autora a representação como um processo
cultural constituído por práticas de significação, estabelece as identidades individuais e
coletivas. Os sistemas e os discursos representativos constroem os lugares de posicionamento
dos sujeitos. A identidade é moldada pela cultura que significa a experiência possibilitando o
ato de optar pela variedade de identidades possíveis através de um modo peculiar de
subjetividade. Somos constrangidos pela variedade possível oferecida pela cultura e pelas
relações sociais. (ibid, p.18-9; CIAMPA, 2008).
A liquidez do ser humano moderno e o posicionamento descompromissado frente aos
relacionamentos concorrem para o aprofundamento da crise da identidade, pois as relações
interpessoais e suas companhias – “amor, parcerias, compromissos, direitos e deveres
mutuamente reconhecidos” são “simultaneamente objetos de atração e apreensão, desejo e
medo; locais de ambigüidade e hesitação, inquietação, ansiedade” (BAUMAN, 2005, p.69).
Até nossos relacionamentos amorosos estão sendo tendenciosamente reduzidos ao
modo “consumista” a fim de nos sentirmos mais seguros. Se não nos satisfazem, tal como um
objeto de consumo sem utilidade ou validade vencida, o rompimento do relacionamento
torna-se tão natural como “a morte é para a vida”. Os parceiros são livres para saírem e
buscarem um lugar que os satisfaçam (ibid, p.71). Parece que os compromissos e as
obrigações de longo prazo perderam o sentido ou se tornaram realmente perigosos. Todavia
para Bauman (2005) precisamos de relacionamentos, “aos quais possamos referir-nos no
intuito de definirmos a nós mesmos”. Precisamos deles “não apenas pela preocupação moral
com o bem-estar dos outros, mas para o nosso próprio bem, pelo benefício da coesão e da
lógica de nosso próprio ser” (ibid, p.75). Como esperar uma atitude transformadora de
docentes habitantes deste cenário de efemeridade e desvinculação? Talvez a identificação com
a causa da transformação social a partir da disseminação do sentimento de “esperança crítica”
possa se constituir numa alternativa frente a esta marca tão profunda da era líquida. A
formação e a cultura docente poderiam assumir tais desafios.
Com a finalidade de resolver a tendenciosa ambivalência que caracteriza “nossas
atitudes em relação aos vínculos humanos”, buscamos fanaticamente “soluções de segunda
classe, meias soluções, soluções temporárias, paliativas, placebos” com o objetivo de adiar os
momentos de ajuste de contas e da verdade. A salvação é encontrada na quantidade, visto que
94
não confiamos mais na qualidade. Os poucos relacionamentos duradouros são substituídos
“por uma profusão de contatos pouco consistentes e superficiais” (ibid, p.76). Assim se
explica a utilização vital de drogas e calmantes como também a necessidade dos celulares e
dos relacionamentos virtuais atualmente. Deste modo, esta atmosfera se ajusta
Ao líquido mundo moderno das identidades fluidas, o mundo em que o aspecto mais importante é acabar depressa, seguir em frente e começar de novo, o mundo de mercadorias gerando e alardeando sempre novos desejos tentadores a fim sufocar e esquecer os desejos de outrora (ibid, p.76-7).
Outro aspecto importante é a referência a um autêntico passado no processo de
afirmação de determinada identidade. Considerando a identidade como uma questão de
“’tornar-se” leva a compreensão de que este passado, parte de uma comunidade representada
pelo “nós” é reconstruído e transformado no processo de reivindicação pela identidade
(WOODWARD, 2008, p.28).
Bauman (2005) defende que “‘identificar-se com’, significa dar abrigo a um destino
desconhecido que não se pode influenciar, muito menos controlar”, porque
Lugares em que o sentimento de pertencimento era tradicionalmente investido (trabalho, família, vizinhança) são indisponíveis ou indignos de confiança, de modo que é improvável que façam calar a sede por convívio ou aplaquem o medo da solidão e do abandono” (ibid, p.36-7).
Nos diferentes contextos sociais que a identidade docente é construída e negociada –
família, escola, universidade, cultura docente e discente – existirão, em cada contexto
vivenciado, controles, expectativas, promessas de prazer e realização (ibid, p.33). Analisar
esta singular identidade é focalizar as marcas que cada contexto imprime na subjetividade
docente no tocante ao processo de construção e negociação das identidades diversas e
cambiantes responsáveis pelas posições-de-sujeito assumidas pelo professor. Neste ínterim
vale destacar a conclusão do artigo elaborado pelas autoras Barreto e Delfino acerca de uma
pesquisa desenvolvida em 2005 numa escola pública de Assis com três professores de cada
área de conhecimento - Ciências Humanas, Exatas e Biológicas- objetivando analisar as
representações sociais que os professores possuem sobre a própria profissão e suas
implicações na prática docente:
Na construção identitária da profissão docente, o professor reúne elementos de sua vida pessoal, de sua trajetória acadêmica e profissional, de modo que a partir das relações estabelecidas entre diferentes objetos, constroem-se as representações sociais da profissão que subsidiam e orientam o trabalho do
95
professor, muitas vezes de modo mais marcante que a formação inicial. Tais representações influenciam e definem as escolhas das atividades, o método pedagógico de ensino e avaliação, a capacidade de motivar o aluno, as relações que estabelecem entre si e com os alunos e o modo como permitem que os alunos se expressem (BARRETO; DEFINO, 2005, p.543)
A fabricação das identidades depende da marcação da diferença que ocorre através dos
sistemas simbólicos de representação e das formas de exclusão social. (WOODWARD, 2008,
p. 39). Na sociedade são os sistemas classificatórios que estabelecem as formas de
diferenciação tanto simbólica quanto social. Estes sistemas construídos pela cultura nos
possibilitam dar sentido ao mundo social e construir significados (ibid, p. 41). A forma mais
extrema desta marcação, conforme a teoria lingüística saussureana, é a oposição binária (p.
49): o nativo e o estrangeiro; o sagrado e o profano; o limpo e o sujo; o bem e o mal.
Tomando a identificação como “um fator poderoso de estratificação”, Bauman (2005)
esclarece que pairamos entre dois pólos da “hierarquia global emergente”. Num dos pólos,
Estão aqueles que constituem e desarticulam as suas identidades mais ou menos à própria vontade, escolhendo-as no leque de ofertas extraordinariamente amplo, de abrangência planetária. No outro pólo se abarrotam aqueles que tiveram negado o acesso à escolha da identidade, que não têm direito de manifestar as suas preferências e que no final se vêem oprimidos por identidades aplicadas e impostas por outros- identidades de que eles próprios se ressentem, mas não têm permissão de abandonar nem das quais conseguem se livrar (ibid, p.44).
Os professores participantes do cenário neoliberal da educação superpopulam o
segundo pólo. O primeiro pólo é negligenciado por atuais professores em exercício
integrantes de uma gestão mercantilista da escola. O fogo cruzado favorece a superlotação do
primeiro pólo, porque tanto fragmenta uma possível identidade de preferência em nascimento
como também inviabiliza o apoderamento das matérias-primas necessárias para se construir
uma identidade de livre escolha. O desenvolvimento do pensamento crítico e social, a
desalienação do professor, a participação nas escolhas profissionais e a autonomia em sala
constituem as matérias-primas essenciais na emergência da docência emancipatória.
Bauman (2005) denomina de “subclasse” “as pessoas a quem se negou o direito de
adotar a identidade de sua escolha (situação universalmente abominada e temida)” (p.45). Aos
destinados à subclasse é negada a priori qualquer identidade que ambicionam. Transformar a
docência em “subclasse” e naturalizar tal situação é uma das mais eficazes estratégias de
controle e dominação dos professores pelas estruturas neoliberais capitalistas.
96
Woodward (2008) ao tentar responder a causa das pessoas assumirem determinadas
identidades e não outras, ela recorre ao conceito de subjetividade e à teoria psicanalítica:
O conceito de subjetividade permite uma exploração dos sentimentos que estão envolvidos no processo de produção da identidade e do envolvimento pessoal que fazemos em posições específicas de identidade. Ele nos permite explicar as razões pelas quais nós nos apegamos a identidade particulares. (ibid, p.55-6)
Tomando como referencial teórico Luis Althusser (1971), a autora destaca o processo
de interpelação como movimento de posicionamento do sujeito que é “reconhecido e
produzido por meio de práticas e processos simbólicos.” (ibid, p.60-1). As teorizações pós-
marxistas enfatizam a produção e o recrutamento também no nível do inconsciente, que com
relação a psicanálise tem a ver com fortes desejos insatisfeitos e freqüentemente reprimidos
pela mente consciente tornando-se inacessível. A importância de tal conceito psicanalítico é
enfatizada pela autora:
A “descoberta” do inconsciente, de uma dimensão psíquica que funciona de acordo com suas próprias leis e com uma lógica muito diferente da lógica do pensamento consciente do sujeito racional, tem tido um considerável impacto sobre as teorias da identidade e da subjetividade. A idéia de um conflito entre os desejos da mente inconsciente e as demandas das forças sociais, tais como elas se expressam naquilo que Freud chamou de supereu, tem sido utilizada para explicar comportamentos aparentemente irracionais e o investimento que os sujeitos podem ter em ações que podem ser vistas como inaceitáveis por outros, talvez até mesmo pelo eu consciente do sujeito. Podemos estar muito bem informados sobre um determinado domínio da vida social, mas mesmo assim acabamos nos comportando contra nossos melhores interesses. (WOODWARD, 2008, p.62)
Bauman (2005) enfatiza a especificidade do conceito identidade e esclarece alguns
pontos importantes:
O campo de batalha é o lar natural da identidade [...]. Talvez possa ser conscientemente descartada (e comumente o é, por filósofos em busca de elegância lógica), mas não pode ser eliminada do pensamento, muito menos afastada da experiência humana. A identidade é uma luta simultânea contra a dissolução e a fragmentação; uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa resoluta a ser devorado... (ibid, p.84, grifo do autor).
Como conseqüência destas batalhas identitárias, a metamorfose se coloca como “um
processo inexorável, tenhamos ou não consciência dele” (CIAMPA, 2008, p.113) que se
caracteriza “em cada momento, de uma forma específica, dadas condições históricas e sociais
determinadas” (ibid, p.121).
97
Este autor elabora uma abordagem dialética da categoria científica identidade,
considerada também com uma questão política, ao lado das categorias consciência e
atividade. Ele defende como elementos que definem a identidade humana, o projeto de vida e
os papéis que o homem vai assumindo nas relações sociais que participa. Para se efetivar uma
identidade precisa-se da “materialidade das relações sociais” se não ela torna-se uma
“abstração imaginária” (ibid, p.109). Assim, uma identidade emancipatória docente só se
define pelo objetivo transformador das reais configurações da sociedade e por ações e
desempenho de papéis que almejem a efetivação de tal projeto como: ação pedagógica
causadora da conscientização crítica e política dos alunos, da desalienação dos professores no
seu entorno profissional e engajamento direto nas tentativas, embora que microlocalizadas, de
mudar a humanidade.
É óbvio que as condições materiais para a prática emancipatória não estão
asseguradas: autonomia docente, gestão democrática, valorização profissional e financeira,
reconhecimento social, estabilidade trabalhista, boas condições físicas e pedagógicas de
trabalho e formação acadêmica reflexiva, contextualizada e de qualidade. Entretanto, eis o
grande desafio do docente emancipador, que escolhe tal identidade: é de sua responsabilidade
tanto a construção destas condições quanto as tentativas de buscar encontrar as “brechas”
possíveis deixadas pelas estruturas de dominação e controle da sociedade. O currículo oculto
pode se constituir num excelente instrumento de atuação do docente emancipatório.
Ciampa (2008) defende que “somos atividades e que o dado é o resultado do dar-se”.
Estas atividades estão sempre em relação com os Outros (ibid, p.155). Desta forma, ele critica
a representação da identidade através de proposições substantivas em vez de proposições
verbais. “Pelo fato já mencionado de interiorizarmos o que é predicado, a atividade coisifica-
se sob forma de uma personagem que subsiste independentemente da atividade que a
engendrou e que a deveria sustentar” (ibid, p.133, grifo do autor). Então, podemos correr o
risco de legitimar a atividade docente de facilitador e mediador da aprendizagem discente em
todos que tem o diploma de Licenciatura e atuam no magistério, visto que tal atividade
específica, mesmo não existindo, já foi interiorizada por nós e pelo próprio professor, antes
mesmo que avaliemos a ação destes profissionais ou eles mesmos tenham se auto avaliado.
Ou seja, o personagem – docente facilitador e mediador de aprendizagem – existe
independentemente da atividade que exerce ou deveria exercer cada professor formado.
Talvez por esta razão, os professores temem uma autoavaliação ou uma avaliação externa de
sua prática pedagógica, por recearem descobrir não estarem praticando o que dizem. Decorre
também daí a relevância que assumem no cenário teórico educacional a disseminação da idéia
98
do professor reflexivo, quicá como uma alternativa prática de enfrentar tal situação da
coisificação de uma atividade docente numa personagem de professor independente e
diferente do que ocorre no “chão de sala de aula”.
O autor propõe a forma personagem como “expressão empírica da identidade” (ibid,
p.129) a fim de expressar melhor a generalidade de predicações que vai adotando a identidade
as quais, por sua vez, se dão no terreno da atividade (ibid, p.134). Esta metáfora da
personagem é utilizada por Ciampa (2008) como recurso analógico e não de redutor da
realidade social à realidade do teatro. Personagem é definida “como aquilo que nos tornamos
pela predicação da atividade” (ibid, p.176). A noção de personagem adotada é de caráter ativo
e “traduzível por proposições verbais” e não “uma personagem substancial, traduzível por
proposições substantivas” (ibid, p.135). Ela pode aparecer “como objeto misterioso e
fantasmagórico: um fetiche”. Continuando no exemplo anterior, o professor- facilitador e
mediador da aprendizagem discente- como personagem pode subsistir mesmo que o indivíduo
não atue como professor engendrando tal atividade. O personagem “torna-se algo com poder
sobre o indivíduo, mantendo e reproduzindo sua identidade, mesmo que ele esteja envolvido
em outra atividade” (ibid, p.139).
Este fetichismo da personagem vai “explicar a quase impossiblidade de um indivíduo
atingir a condição de ser-para-si e vai ocultar a verdadeira natureza da identidade como
metamorfose, gerando o que será chamado identidademito” (CIAMPA, 2008, p.139-0, grifos
do autor), que é expressão do
Mundo da mesmice (da não-mesmidade) e da má infinidade (a não superação das contradições). Estamos vendo agora que ser-para-si é buscar a autodeterminação (que não é a ilusão de ausência de determinações exteriores); [...] ( o que de alguma forma é tentar tornar-se sujeito); procurar a unidade da subjetividade e da objetividade, que faz do agir uma atividade finalizada, relacionando desejo e finalidade, pela prática transformadora de si e do mundo (ibid, p.146, grifos do autor).
Neste sentido, a condição sine qua non para a emergência de uma ação docente
emancipatória está na superação docente de sua “identidade-mito” e conseqüente
autodeterminação de sua identidade seguida pela também superação do fogo cruzado docente
que, de certa forma, impossibilita a condição de ser-para-si dos professores por engendrar
identidades padronizáveis e fetichizadas.
Em sua obra, a identidade aparece como a “articulação de várias personagens,
articulação de igualdades e diferenças, constituindo e constituídas por, uma história pessoal”.
Os “modos de produção” da identidade são indicados pelas diferentes maneiras de
99
estruturação dos personagens: conservação, coexistência ou alternância (CIAMPA, 2008,
p.156). Semelhante à possibilidade apontada pelo autor de um “modo dominante de
produção” da estrutura da identidade, quando poderá ocorrer a predominância de uma,
podemos supor que o “modo dominante” de produção das identidades docentes líquidas está
vinculado diretamente aos ditames das políticas neoliberais em quase todo mundo
globalizado. Seus princípios e normatizações engendram, de certa forma, a construção e
estruturação de personagens necessárias à manutenção do mundo da “mesmidade” e da “má
infinidade” de vertente capitalista.
Na identidade (história), “as personagens são vividas pelos atores que as encarnam e
que se transformam à medida que vivem suas personagens”. Interiorizamos e nos tornamos as
predicações e personagens que nos são atribuídas, identificando-nos com elas (ibid, p.163).
Vivemos numa constante busca por velhas e novas personagens a fim de enfrentar a
existência social (ibid, p.157). Praticamente todo ator está vivendo uma personagem a qual
“frequentemente se torna fetiche” controlando-o (ibid, p.158). Todas as pessoas com que
convivemos são personagens de uma história que “nós mesmos criamos, fazendo-nos autores
e personagens ao mesmo tempo”. O autor não somente se revela através de suas personagens,
mas também através daquelas que oculta. “somos ocultação e revelação”. “A identidade de
uma personagem constitui a de outra e vice-versa [...], como também a identidade das
personagens constitui a do autor tanto quanto a do autor constitui a dos personagens
(CIAMPA, 2004, p.60).
Considerando a identidade, como fenômeno social, ocorre uma interpenetração de dois
aspectos: a representação (representada) vista como dada e produto e a produção
(constituição). Salientando a estrutura social e o momento histórico que oferecem padrões de
identidade, o autor enfatiza o caráter de pressuposição e re-posição que a identidade pode
assumir:
Uma vez que a identidade pressuposta é reposta, ela é vista como dada e não como se dando, num contínuo processo de identificação. É como se, uma vez identificado o indivíduo, a produção de sua identidade se esgotasse com o produto. Na linguagem corrente dizemos eu sou filho; ninguém diz estou sendo filho. Daí a expectativa generalizada de que alguém deve agir de acordo com suas predicações e, consequentemente, ser tratado como tal. De certa forma, reatualizamos, através de rituais sociais, uma identidade pressuposta, que assim é vista como algo dado (e não se dando continuamente através da reposição). Com isso, retira-se o caráter de historicidade da mesma, aproximando-a mais da noção de um mito que prescreve as condutas corretas, reproduzindo o social (ibid, p.163, grifos do autor).
100
Desta forma, a identidade é considerada como algo atemporal, uma revelação de algo
preexistente, cuja reposição é vista “como simples manifestação de um ser sempre idêntico a
si mesmo na sua permanência e estabilidade” (CIAMPA, 2004, p.67; 2008, p.164). E por esse
motivo
Milhares, talvez milhões, de pessoas são impedidas de se transformar, são forçadas a se reproduzir como réplicas de si, involuntariamente, a fim de preservar interesses estabelecidos, situações convenientes, interesses e conveniências do capital (e não do ser humano, que assim permanece um ator preso à mesmice imposta) (CIAMPA, 2008,p.165, grifos do autor).
Este caráter atemporal da identidade pressuposta e sucessivamente reposta, oculta o
verdadeiro caráter – temporal e de metamorfose – da identidade, porque materializa uma
aparência de estabilidade e ausência de movimento em que o ser humano assume a
“identidademito, comandada pelo fetiche de uma personagem” que ele se identifica, o é
identificado e coisificado (ibid, p.178).
Como é impossível expressar “a totalidade de mim”, ao comparecer frente ao outro,
“estou sendo o representante de mim mesmo” (ibid, p.170) e quase sempre utilizando uma
identidade pressuposta que “não é uma simples imagem de mim-mesmo, pois ela se
configurou a relação com outrem, que também me identifica como idêntico a mim mesmo”
(ibid, p.173).
Quando o representar adquire tríplice significado: representação de mim; desempenho
de papéis resultantes das minhas posições e reposição do que tenho sido no presente,
reiterando a apresentação de mim, coopera para o “jogo da má-infinidade”. A conseqüência
deste fato é o bloqueio do “devir do homem-sujeito, seja por impedir que a metamorfose se
concretize, seja por escamotear o verdadeiro sentido da metamorfose sob a aparência de
mudanças que são meras re-posições, e não superações dialéticas” (ibid, p.183).
A “alterização da minha identidade humana”, ou seja, a “expressão do outro - outro
que também sou eu”- é permitida através da “negação da negação” ou da “eliminação de
minha identidade pressuposta (que deixa de ser re-posta) e no desenvolvimento de uma
identidade posta como metamorfose constante, em que toda humanidade contida em mim se
concretiza” (ibid, p.181). Desta maneira, o docente emancipatório surgirá no momento em
que sua atividade profissional deixar de se constituir num tríplice “re-presentar” das
identidades postas e re-postas pelas estruturas neoliberais e neoconservadoras capitalistas e
transformar-se numa atividade conscientizadora e transformadora de si e das relações sociais
101
que participar a fim de concretizar não somente o “devir do homem-sujeito” docente, mas
também de seus alunos vítimas fáceis do “jogo da má-infinidade”.
O homem é produtor de um mundo que o nega, um mundo desumanizador. Esta
contradição, se não for superada pela negação da negação, sempre será “reposta como mau
infinito” ou má infinitude. Ela, por sua vez, ao invés de restabelecer a “verdadeira infinitude
humana”, de possibilidades e de concretude (CIAMPA, 2008, p.228), inverte a metamorfose
em não-metamorfose, a atividade em re-presentar, a consciência em inconsciência e o
conhecimento em ilusão, “especialmente o conhecimento de si invertido como ilusão acerca
de si mesmo” (ibid, p.194, grifo do autor).
Ciampa (2008) conclui enfatizando a identidade como “movimento de concretização
de si, que se dá, necessariamente, porque é o desenvolvimento do concreto e,
contingencialmente, porque é síntese de múltiplas e distintas determinações”. A identidade se
torna abstrata se: perdermos a visão de totalidade- discutindo a importância do passado,
presente ou futuro; excluirmos a sua temporalidade; esquecermos a sua articulação da
diferença e da igualdade e sua unicidade do igual e do diferente (ibid, p.199).
4.2- REALCE ÀS MARCAS IDENTITÁRIAS NAS PRODUÇÕES CIENTÍF ICAS
No artigo “As identidades docentes como fabricação da docência”, os autores
Hypólito, Garcia e Vieira (2005) discutem as posições de sujeito atribuídas aos professores e
professores no exercício de suas funções concretas, bem como em relação aos discursos
representativos dos seus modos de ser e agir que circulam e alguns aspectos teórico-
metodológicos para se investigar a identidade docente. Para eles tal identidade é negociada
por múltiplas representações: discursos veiculados pelo espaço acadêmico, pela gestão do
Estado, pela mídia impressa, televisiva e cinematográfica. Por conseqüência tais discursos
acabam por produzir uma demanda para determinado tipo de identidade (cf. LOGUERCIO;
DEL PINO, 2003)
Com relação à investigação científica sobre a identidade docente, os autores
defendem que “talvez um caminho produtivo para a pesquisa seja buscar as diferenças, as
descontinuidades, as divisões dessa categoria, privilegiando as narrativas dos professores e
das professoras acerca de si mesmos e de seus contextos de trabalho (GARCIA; HYPÓLITO;
VIEIRA, 2005, p.54). Além disso, apontam um grande desafio: “sair do conforto de buscar
enquadrar a identidade profissional docente em alguns tipos ideais ou explicá-la a partir de
algum elemento fundacional [...] (ibid, p.55).
102
Partindo da mesma perspectiva – análise do discurso – Loguercio e Del Pino (2003)
analisaram os discursos que formam a identidade docente tendo como referência teórica
Michel Foucault e os estudos culturais. Estes autores destacaram a importância dos Estudos
Culturais por elucidarem a influência da cultura como constituidora substantiva e
epistemologia de nossas vidas e entidade permissiva de nossas práticas. Tais estudos
requerem “um modo de trabalhar com as narrativas e construções na e pela cultura e evidencia
os discursos e seus campos associados de significações.” (ibid, p.18). Sendo assim, os Estudos
Culturais constituem numa exímia referência teórica para analisar os discursos dos
professores que tentarão construir na referida pesquisa as marcas determinantes de suas
identidades.
Conforme os autores e com base numa leitura de Hall (1997) acerca da centralidade
da cultura, o ser humano é constituído por redes discursivas originárias da cultura. Ou seja, o
ser professor se constrói a partir dos diversos discursos: acadêmicos, sociais, históricos e
escolares. A cultura escolar é enfatizada pelos autores como classificadora e produtora de
identidades como os outros espaços sociais de convivência. Porém a sua singularidade reside
no fato de possuir uma autoridade conferida socialmente que atribui a sua classificação o
caráter oficial e determinante. Numa rede discursiva entre a concepção social e escolar
própria de ser professor/a se produzem as identidades docentes em que construções existentes
entram em contato com novas. Entretanto o poder cultural determinante é preponderante:
Os contra-discursos na escola e as resistências se fazem sempre presentes, porém continuam se reproduzindo professores/as padrões porque, entre outros aspectos, a estrutura física e administrativa da escola permanece inalterada e “padronizada” há séculos, com enunciados que se repetem e se reatualizam (LOGUERCIO; DEL PINO, 2003, p.21)
Além destas afirmações Loguercio e Del Pino (2003) propõem uma discussão da
identidade do professor através da relação dele com os saberes constituintes da sua prática.
Tomando como referência as contribuições de Tardif (2002) sobre a temática, os autores
defendem duas considerações importantes: a primeira se relaciona aos saberes da formação –
advindos de instâncias onde os professores não têm acesso como produtores, por isso são
“impostos” por cientistas, pedagogos e governos:
Os/as professores/as historicamente constituídos dentro de uma perspectiva da transmissão do conhecimento acumulado pela humanidade, naturalizado como imprescindível às novas gerações, sobre os quais têm o domínio e a guarda enquanto sabedores/as oficiais têm dificuldades tanto para perceber
103
a pluralidade deste saber quanto para identificar a sua produção fora dos locais oficialmente instituídos – universidades, laboratórios, etc (ibid, p.22)
A segunda consideração importante se refere aos saberes da experiência - saberes
adquiridos na prática docente:
A produção do saber durante o ensino básico e nas instituições escolares não é aceita pelos/as professores/as e, tampouco, pelas instituições de pesquisa, com raras exceções. Esse não reconhecimento da escola como produtora de um saber específico e próprio – diferente, portanto, do saber acadêmico e do saber produzido nos laboratórios de pesquisa – dificulta a valorização do saber escolar e de seus agentes professores/as e alunos/as, bem como o intercâmbio entre iguais (ibid, p.22)
Os autores concluem então o artigo enfatizando uma relação peculiar entre a escola, a
cultura e a identidade:
A estrutura escolar aceita comportamentos diferentes desde que se mantenha o status quo e que toda a “distorção” da ordem possa ser re-equilibrada. A identidade é, por vezes, tão definida por imersão na cultura que a diferença não aparece ou, ao aparecer, é classificada como outsider e, de novo, é naturalizada pelas redes discursivas sobre outsider, vencendo-se, assim, o novo ou reatualizando antigos enunciados.
Em outro artigo intitulado como “Os professores e a fabricação de identidades”, o
autor traz a ideia de que a gestão da identidade dos professores é crucial para a compreensão,
quer de sistemas educativos democráticos, quer totalitários. Para ele, a produção da identidade
do professor envolve os mecanismos estatais de controle por ser parte importante na gestão do
sistema educativo. A partir da análise do caso inglês, Lawn defende que as alterações na
identidade são manobradas pelo Estado, através do discurso, traduzindo-se num método
sofisticado de controle e numa forma eficaz de gerir a mudança. O autor conclui o artigo da
seguinte maneira:
O novo aspecto da identidade, promovido através do novo discurso de trabalho da escola e do discurso nacional da competição, é o de que os professores têm de ser disciplinados, obedientes, motivados, responsáveis e sociais. Coincidentemente, este é o novo aspecto do trabalho importado das práticas empresariais e das companhias privadas, para as escolas inglesas. O atributo principal deste modelo é o desempenho e a recompensa, substituindo as ideias de serviço nacional, num projecto do Estado. Como consequência destes desenvolvimentos, o professor está aberto a novas formas de elaboração da identidade e estão a ser produzidos modelos competitivos e diferenciados da identidade do professor. Identidades como os “caçadores” de bolsas, os especialistas em escolas com insucesso, os
104
empreendedores, os peritos comunitários estão a ser produzidas porque são eficazes para a obtenção de recompensas (LAWN, 2001, p.129).
Nos dois artigos a construção da identidade docente é focada em termos da influência
social através dos discursos representativos que constitui uma das peculiaridades do ‘tornar-se
professor’. Tal aspecto se refere ao fogo cruzado docente, quando o mesmo se depara tanto no
exercício do magistério e consequente busca de produção de sua identidade. Porém além
destes aspectos, a pesquisa objetiva compreender que outros elementos influenciam neste
processo de ‘tornar-se docente’.
Ao analisar os textos produzidos como Trabalho de Conclusão de Curso – TCC –
pelos alunos de um programa de formação inicial docente em serviço – Programa ADI-
Magistério4– os autores5 defendem que a construção da identidade é compreendida como um
processo contínuo que ocorre no fluxo das atividades sociais. Estas atividades necessitam de
uma compreensão dentro das relações de poder e, portanto caracterizadas como relações de
subordinação, cooperação ou competição, a depender do contexto e dos interlocutores e não
como instâncias estanques. Estes autores propõem pensar tal construção a partir da noção de
rede de significados a fim de conceber a posição de identidade articulada com outras vertentes
de identidade numa rede de relações e organizações sociais e históricas se afastando de um
modo linear de entender a relação entre as identidades.
A noção de "rede de significações" representa todos os sentidos que compõem o mundo para nós, não como soma, mas como um "sistema" em que cada sentido é determinado na sua relação com os outros; um mundo de significados latentes de que os sentidos de nossas percepções e pensamentos atuais são concreções singulares e provisórias. Como a rede não pode ser assumida como figura, nossas significações terão sempre um lado oculto para nós (além da obscuridade própria do Ser), e sua permanência ou mudança está menos no plano representacional da existência, ou nos significados claros de nossa linguagem, do que no sentido de nossa forma de agir, sentir e perceber. Quando agimos ou nos comportamos é toda a rede que atualizamos ou modificamos, embora estejamos explicitamente presentes apenas [em relação à] significados ou situações pontuais (FURLAN, 2004, p.51).
4 Programa desenvolvido sob a forma de curso normal de nível médio para qualificar profissionalmente os
auxiliares de educação infantil efetivos e estáveis das creches diretas, denominadas Centros de Educação Infantil – CEIs da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo
5 Zilma de Moraes Ramos de Oliveira; Ana Paula Soares Silva; Fernanda Moreno Cardoso; Silvana de Oliveira
Augusto, no artigo Construção da identidade docente: relatos de educadores de educação infantil
105
O artigo “Na voz do professor, a constituição de sua identidade” traz um recorte de
pesquisa de caráter qualitativo e abordagem fenomenológica-hermenêutca sobre a
compreensão dos sentidos da constituição da profissão professor a partir de suas próprias
vozes. Através de entrevistas individuais e narrativas com professores de um projeto piloto
realizado na região da AMVALI (Associação dos municípios do Vale do Itapocu - Jaraguá do
Sul/SC), Thevis defende que a constituição docente emerge das relações com os outros e seus
diferentes saberes e conhecimentos os quais fazem parte de diferentes tempos e espaços. As
práticas do outro, suas experiências, vivências e falas influenciam na formação do professor.
“A produção do outro contribui para nossa autoprodução como ponto de relação e de
comparação” (LOGUERCIO; DEL PINO, 2003, p.20). Ser professor se constrói,
Quando os/as professores/as fazem suas avaliações dos/as alunos/as, seja nos momentos informais das salas dos/as professores/as ou nos momentos oficiais nos conselhos de classe, estão posicionando e construindo sua identidade docente em relação aos/as alunos/ as e às discussões entre eles/as professores/as. Considerar um/a aluno/a, bagunceiro/a, inteligente, atencioso/a evidencia o que o/a professor/a pensa sobre a sala de aula, sobre as práticas permitidas ou não e sobre o que é ser professor/a. (op.cit)
A construção da formação docente está vinculada aos saberes docentes produzidos
pelas relações do professor no seu meio social, pessoal e profissional. Desta forma, Thevis
define duas grandes marcas que determinam a identidade docente importantes para a referida
pesquisa cujo objetivo será especificar outras marcas possivelmente atreladas a estas. A autora
conclui seu registro percebendo que:
[...] a identidade se constrói a partir de elementos sociais, históricos e culturais e como todos estes conhecimentos expostos num ambiente coletivo podem se cruzar por meio de vozes, ações e formar novos conhecimentos como também novas compreensões, principalmente em sujeitos que estão em processo de identificar-se profissionalmente que buscam em outros, referências e modelos para uma prática estruturada e pensada como uma grande profissão (THEVIS, 2007, p.281).
No estudo “O ‘ser’ professor: falar de mim, falar com os outros: caminhos e
identidade”, os autores6 analisaram as narrativas de construção da identidade do professor e
de escolha da profissão a fim de compreender melhor como se efetivaram as escolhas
individuais no momento de reflexão sobre as interpretações entre o espaço de vivência e as
6 Cairo Mohamad Ibrahim Katrib e Gislane Pires Gonçalves utilizaram-se das através das experiências como
professores da rede pública de ensino e também trabalhando com formação de professores nos cursos de Pedagogia em Catalão-GO,
106
experiências em meio à vontade de ser professor e o trabalho cotidiano docente. O texto
destaca a vocação como uma marca histórica carregada pela educação brasileira na rotulação
da identidade do professor. Marca herdada da antiguidade clássica onde o mestre além de
precisar de um conhecimento intelectual latente, necessita de vocação para ensinar. No
entanto esta associação docência/vocação não trouxe muitos frutos à profissão visto que ser
professor no Brasil atualmente não é uma tarefa fácil haja vista a indelével desvalorização e
desprestígio profissional do professor e as profundas dificuldades materiais e pedagógicas do
processo de ensino.
Outra marca determinante da identidade docente focalizada pelos autores são as
experiências negativas ou positivas vividas durante a escolarização básica e formação
acadêmica. Destacam-se nas narrativas das alunas do curso de pedagogia os traços da
educação tradicional caracterizada pela centralização na figura superior do professor como
transmissor de um saber absoluto absorvido mecanicamente pelos alunos. Estas marcas
provocam mudanças significativas tanto na escolha profissional quanto nas posições de
sujeito a serem assumidas no exercício do magistério. Neste caso específico as experiências
negativas serviram de incentivo à docência pelas futuras professoras numa ressignificação das
marcas negativas do ensino básico tradicional vivenciado. Entretanto as experiências
negativas como positivas podem ser incorporadas de maneira diferenciada conforme a
subjetividade docente e promoverem emoções e sentimentos igualmente diferentes.
Os artigos lidos e a pesquisa exploratória possibilitaram a construção das respectivas
categorias para análise do fenômeno em questão: marcas das experiências de vida no mundo
cultural, marcas escolares, marcas da formação, marcas institucionais e marcas da profissão.
Nas marcas da experiência de vida no mundo cultural estão incluídas todas as marcas de
maneira geral da convivência do professor e os inúmeros outros em sua vida: familiares,
colegas de trabalho, alunos, autores lidos, discursos midiáticos e culturais legitimados pelo
senso comum ou pela ciência. As outras dimensões de marcas são delimitações da primeira a
fim de focalizar ambientes e atores sociais específicos. As marcas escolares englobam as
experiências entre professor-aluno, entre coordenadores, disciplinas, diretores e normas da
escola. As da formação se referem às interações e vivências durante a formação acadêmica.
As marcas institucionais vinculam-se as experiências com as instituições normatizadoras do
processo educativo: as políticas educacionais. E as marcas da profissão têm a ver com todas
as relações engendradas no ato de exercer o magistério. Vale ressaltar que tais marcas são pré-
construções analíticas para ver o fenômeno da identidade docente que poderão ser tanto
107
desconsideradas como acrescentadas de outras ou até mesmo reformuladas durante o processo
de pesquisa.
Lima (1995) objetivou investigar os elementos da identidade da professora
alfabetizadora em sua constituição e os reflexos deste processo no cotidiano escolar,
enfatizando a pertinência de se levar em conta estes elementos como caminho possível de se
efetivar mudanças significativas na atuação do professor. Utilizando a abordagem qualitativa
de pesquisa e das entrevistas e observação participante, a autora centrou-se em professoras da
rede pública estadual do Ceará, tomando como pano de fundo o Programa de Capacitação
Permanente do magistério implementado em 1991 pela Secretaria de Educação cearense, para
constatar que a identidade da professora continua fragmentada7, reiterando desta forma a
afirmação de Silva (1995) que, ao se debruçar sobre a identidade do professor de 1º grau,
acrescenta que esta referida identidade apresenta-se confusa e desagregada, por causa da
crescente expropriação das suas condições de afirmação e realização (ibid, p.34). Segunda a
autora as professoras tem dificuldades em tomar consciência dos determinantes sócio-
econômicos, culturais e históricos de sua profissão e de se apropriar do saber específico da
sua referida função na educação- alfabetizadora.
A autora destaca os elementos que enriquecem e norteiam a construção da identidade -
a família, a escola e o Estado e que foram referenciais percebidos na pesquisa exploratória na
construção das pré-categorias de análise parcialmente definidas.
Partindo do pressuposto de que o professor é uma categoria em construção e sua
identidade, a bússola para sua atuação plena no meio social, Lima (1995) verifica alguns
elementos da constituição da identidade das professoras que podem ser analisadas com as pré-
marcações construídas na pesquisa exploratória. Quando as professoras apontam a vocação e
a missão de cuidar dos alunos como as razões da escolha profissional do magistério,
evidencia-se uma marca institucional de caráter familiar e cultural que causa o imobilismo e a
falta de consciência política, também elementos apontados como predominantes nas falas das
professoras. Embora que no momento em que são indagadas sobre a sua situação política e
econômica elas enfatizem o salário como a maior queixa, entre outras como, excesso de
trabalho e dificuldades de aprendizagem e acompanhamento das crianças (ibid, p.154), essa
7 Identidade fragmentada ou desagregada foi uma tipificação realizada por Silva (1995) a fim de localizar a
relação entre a identidade e o caráter geral das sociedades. Este tipo de identidade é característica de conjunturas sociais conservadoras onde o indivíduo não tem condições de se questionar e discernir-se, por si mesmo, os traços de sua identidade, prevalecendo assim o conformismo e o sentimento de inutilidade. O autor também outro tipo de identidade- a consistente ou transformante que são próprias das conjunturas sociais democráticas e os sujeitos constroem sua identidade num processo de autodeterminação e vir-a-ser contínuo.
108
queixa maior é colocada como uma vontade de aceitação social e valorização por agentes
externos como o Governo, por exemplo, mas sem uma motivação de mobilização e
participação na construção desta valorização por parte das falantes. Essas queixas podem ser
enquadradas como marcas da profissão e estão resultando atualmente no maior elemento de
repulsa tanto dos que almejam o magistério quanto dos que o exercem.
Esta marca cultural – o discurso de que para ser professor é necessário amor, doação e
dedicação franciscana – ou seja, o magistério como um sacerdócio e não como uma profissão
que requer saberes, técnicas e reconhecimento social específicos, é constante e veemente nos
discursos das alfabetizadoras, conforme a pesquisadora, as professoras acreditam que tal
abnegação é a condição sine qua non para exercer o magistério, mostrando certo descaso com
a qualificação técnica e teórica como também a conscientização dos determinantes políticos e
ideológicos da educação e de sua profissão, bem como um movimento de reivindicação por
melhores condições.
Na pesquisa de Silva (1995) tal marca assume relevância nos relatos dos professores
de 1º grau. A reprodução desta ideologia – magistério como sacerdócio – é tão recorrente na
cultura brasileira que inunda também os processos formativos dos professores configurando-
se como uma marca da formação imobilizadora da reflexão crítica do fazer e pensar docente,
participação e mobilização da categoria. O salário péssimo, “a razão básica, senão primeira,
do processo crescente de desvalorização dos professores de 1º grau” (ibid, p.84), talvez de
todos os professores brasileiros e as precárias condições de trabalho, como marcas viscerais
da identidade docente, são ressignificadas por esta ideologia que significa o exercício
responsável e honesto da profissão mesmo diante das dificuldades inerentes.
A internalização da condição de vítima também apontada por Lima (1995) é
ressonância desta marca, pois atuando na sala de aula e na escola de acordo com sua vocação
e missão é uma forma de exercer o “chamado” que lhes são próprios e as recompensas-
salários dignos e reais condições de trabalho- virão consoante ao exercício fiel a este
chamado, que é o ato de ensinar. Pensar financeiramente neste campo massageado por tal
marca é ser no mínimo herege, pecador ou desumano. As professoras se colocam como
salvadoras das crianças analfabetas, no seu afã de difusoras do saber e conhecimentos
sistematizados (ibid, p.165).
Outra ressonância, destacada por Silva (1995), é a crença no amor ao próximo como
competência essencial ao magistério, que atua como outro bloqueador da percepção crítica do
professor e gera mistificação e naturaliza o masoquismo da profissão. Tal marca acaba
também por interpenetrar em outros elementos da construção da identidade como é o caso nas
109
marcas da formação contínua: as professoras alfabetizadoras enfatizaram que é “preciso
apenas dar algo de bom aos alunos”, visto que o discurso do amor e emoção pelo trabalho
camufla a alienação e a realidade da má formação presentes, pois para a autora “ a professora
continua sem inserir em sua identidade profissional o sentido de qualificação de si como
trabalhadora e da importância desta para a atividade que exerce. Avalia a formação como uma
coisa boa, mas não enfatiza como necessária ou indispensável” (LIMA, 1995, p.170).
No caso dos estudos de Silva (1995), a formação acadêmica é apontada pela grande
maioria dos professores de 1º grau como insuficiente, tendo como características o
academicismo, teórico, desvinculação entre a teoria e prática, divórcio com a realidade escolar
e ausência de estágios e práticas. Este autor aponta a carência de seriedade e vínculo com a
realidade escolar dos atuais cursos de formação além da confirmação das características
mencionadas acima pelos professores. Sobre esta marca da formação acadêmica, o autor
conclui da seguinte maneira, opinião também compartilhada de certa forma por Lima (1995),
e que pode ainda se considerar como uma forma de ressignificação desta marca pelo
professor:
As debilidades e carências existentes na fase de formação dão margem ao surgimento de um nefasto ponto de vista: o de que a natureza da relação pedagógica é sempre pautada pelo inusitado, pelo imprevisível e, por isso mesmo, o curso de magistério e/ou a faculdade pode(m), no máximo, dar uma visão gral e ligeira sobre os ossos do ofício. Isso parece querer dizer que, com ou sem preparo acadêmico prévio (teórico-prático), qualquer sujeito pode ser professor; abre-se aqui, mais uma vez, uma possibilidade de fortalecimento da dimensão afetivo-sentimental do ato de ensinar – se ela, exclusivamente, estiver presente na sala de aula, o ‘ensino’ fluirá como uma decorrência natural (ibid, p.90)
E no tocante aos saberes necessários à função de alfabetizadora, as professoras
demonstram imprecisão quanto ao seu desempenho, mais uma vez destacam a afetividade e
sensibilidade do fazer pedagógico, entretanto na observação da prática nem sempre foram
evidenciados estes destaques e a autora conclui: “a prática reflete a não clareza conceitual
sobre alfabetização e sobre o que deve ser o papel do educador” (LIMA, 1995, p.179).
Silva (1995) defende que no magistério brasileiro os atributos diferenciadores de
identidade de um professor (ensinar, transmitir o saber, produzir conhecimentos, entre outros)
são negados, enfraquecidos ou escamoteados pelos próprios professores. Tal atitude deixa a
impressão de que “para o exercício de suas funções, os professores devam ser ou realmente
são esculpidos à imagem de Cupido, Jesus Cristo e/ou Madre Teresa de Calcutá” (ibid, p.27).
Para ele, motivado também pelo horizonte de mudança social, ou seja, num confronto pela
110
aceitação e reprodução da escola e da sociedade existentes, afirma que o núcleo do ser
professor vem sendo deteriorado pela estrutura social onde o mesmo parece viver numa
confusão extrema de sua construção identidária. Ele propõe que os constituintes deste núcleo
deveriam ser “a revitalização intelectual contínua, a reafirmação ou reformulação de valores e
a recomposição de si mesmo por meio das aulas ou encontros com diferentes grupos ao longo
dos anos” (ibid, p.68)
Conforme Lima (1995) a identidade fragmentada das professoras é confirmada quando
estas interiorizam o papel maternal e vocacional sem questionamentos, refugiando-se nos
papéis paralelos de mãe, irmã e amiga, enfim missionária a fim de construir um núcleo
identidário necessário ao vazio de significação da identidade profissional, pois nas colocações
elas “mantém uma identificação com atribuições que em nada se referem a do ensino-
aprendizagem. Definem seu papel com características que outras pessoas poderiam
desenvolver. [...]. Apresenta apenas fragmentos de identidade, destituída da competência
técnica.” (ibid, p.162). Os sem número de funções e tarefas (dentro e fora da escola) das
professoras do 1º grau, causados pela concretização da ideologia patriarcal machista e falta de
verbas, funcionários e materiais, pode, segundo Silva (1995), haver uma perda qualitativa no
exercício numa delas e a mais sacrificada parece ser a do ensino. Relacionado a este assunto,
o autor traz esclarecimentos sobre uma indelével marca da profissão docente apontada pelos
sujeitos de sua pesquisa e as da Lima (1995):
A falta de tempo gera implicações nos processos relacionados à conquista da autonomia e da criatividade pelo professorado. (...), a única saída parece ser a da dependência dos conteúdos pré-fabricados (livros didáticos, módulos, manuais, apostilas etc.,), dos especialistas (coordenadores, supervisores) ou então a do escudar-se por detrás do autoritarismo, revanchismo, psicologismo, democratismo, corporativismo e outras atitudes que nada mais fazem do que reforçar a presença – e a identidade- do quebra-galho no âmbito do magistério (ibid, p.95).
Todavia, Lima (1995) fala de criatividade, inovação, aprendizagem e compromisso ao
se perceber analisando detalhadamente o perfil das professoras alfabetizadoras, corroborando
o lado conflitivo da identidade que pode, segundo a autora, abrir caminhos para mudanças e a
construção de uma identidade mais consistente (ibid, p.167).
Perguntadas sobre sua vida pessoal, evidencia-se de forma unânime em suas falas a
dificuldade de conciliar o magistério e as outras ocupações da vida como a de mãe, de mulher,
companheira, esposa, leitora, viajante e etc. Tal dificuldade pode ser considerada como
também a de criar e buscar inovações no fazer pedagógico e o conseqüente apego às formulas
111
prontas, apontadas por elas, como uma ressonância da marca da profissão cujo exercício
requer uma carga horária de trabalho estafante e absurda. Assim resta pouco tempo para o
lazer, diversão e vida social e pessoal, onde este tempo restante ainda vai ser disputado com
as atividades extraclasses imprescindíveis ao fazer docente: planejamento de aulas; busca por
novas técnicas e métodos de abordagem dos conhecimentos; correção e elaboração de
trabalhos e avaliações; reflexão sobre o próprio fazer; e estudos de atualização e crescimento
intelectual.
Neste sentido, a falta de tempo, como marca da profissão, vai marcando a identidade
docente ao ponto de justificar, talvez justamente, as imperfeições e o descaso frente a
atualizações pedagógicas e imersões em lutas mais diretas no enfrentamento por melhores
políticas de valorização da categoria e de melhorias da situação da educação como um todo.
Outra marca considerada da profissão e das instituições, pois foi produzida tanto na cultura
brasileira quanto interiorizada pela cultura educacional e docente, é a sutil ideologia de que
nunca a situação vai mudar colocada também pela autora, de que se alguém quer exercer o
magistério tem que ter vocação mesmo, pois sempre será assim. Esta ideologia marca a
identidade docente produzindo posições-de-sujeito caracterizadas pela imobilidade,
conformismo, alienação, ingenuidade crítica e intelectual
Esta marca da profissão – a falta de tempo – causada principalmente pelas negligentes
políticas neoliberais da educação na organização do magistério brasileiro, ou seja, uma marca
cultural e institucional da educação brasileira, pode se tornar mais ressonante se tomarmos
como foco a possibilidade de reprodução e socialização deste mesmo processo de marcação
identitária nos professores universitários que são os futuros marcadores da identidade dos
iminentes profissionais do magistério. Instaura-se um círculo marcador vicioso cuja superação
é necessária à mudança social via educação.
A insuficiente infra-estrutura da escola e a falta de condições materiais de realização
do trabalho docente apontadas na pesquisa de Silva (1995) constituem marcas institucionais
que comprometem a qualidade deste trabalho e o seu controle por parte do professor. A busca
por melhorias é massageada pela ideologia da miséria “que afirma serem apenas necessários o
professor e o aluno para a ocorrência do processo ensino-aprendizagem” (ibid, p.99). Percebe-
se aqui mais uma vez o poderoso papel ressignificador de marcas da ideologia. Outra marca
institucional é a presença dos especialistas da educação – coordenadores, supervisores,
diretores e orientadores – que, segundo os dados de sua pesquisa, trata-se de um “exército de
desocupados, usando rótulos hierárquicos de fachada, sem nenhum interesse ou conhecimento
que sirva de apoio ao trabalho executado pelos professores”. Uma das conseqüências desta
112
marca é a crença de que os professores estão sozinhos nos seus locais de trabalho frente à
implementação dos respectivos planos de ensino (ibid, p.106).
Na avaliação do currículo feita pelo autor, a não-integração, o arcaísmo,
conservadorismo e a deficiência de sequenciação (no sentido de que certos conteúdos ou
conceitos servem de base para conhecimentos ou assuntos mais complexos) destacam-se
como opiniões dos sujeitos. Isso leva o autor a considerar que alguns critérios básicos da
organização curricular – a unidade, integração e seqüência – são negligenciados pela escola,
como também a ausência de diálogos, supervisão eficiente e os mecanismos de redundância,
improvisação e espontaneísmo vão corroendo o currículo e marcando a identidade do
professor ao ponto de comprometer a qualidade de sua ação e consistência de uma cultura
profissional docente.
Silva (1995) elucida da seguinte maneira os contornos identidários do professor de 1º
grau. Ele se encontra cada vez mais expropriado do seu salário, saber, prestígio e de seu poder
político. Nele prevalece uma mentalidade conservadora pouco preocupada com
transformações (ibid, p.115). Sua identidade está marcada pela desagregação, submissão,
carências fransciscanas e identificações com outros papéis (pai, mãe, faxineira (o), secretaria
(o), amiga (o), semeadora (o), assistente de caridade, etc.), enfraquecendo o núcleo que
diferencia a especificidade do trabalho docente (ibid, p.117).
O professor não se reconhece em sua atividade, não problematiza o real e nem se
problematiza que faz parte deste real. Marcado pela fetichização, reificação e mistificação,
resta “a ignorância, o padecimento, a perda da autonomia e certa indiferença ou impotência
em relação intencional ao sofrimento e à tristeza”. Massageado continuamente pela ideologia,
ele incorpora em sua identidade, os comportamentos de passividade e inércia. Têm-se a
impressão de que as crises, desequilíbrios e tensões da profissão se tornaram partes do senso
comum. As energias liberadas pelas instabilidades da profissão têm como hipótese, segundo o
autor seguir dois caminhos: “ou são sublimadas por meio da atitude da indiferença, caindo
logo no esquecimento, ou são reaproveitadas pelo e dentro do próprio processo de alienação
no sentido de alienar ainda mais” (ibid, p.116). Sendo assim, o autor resume de forma
interessante o magistério brasileiro:
Maré de mesmices – o magistério como prolongamento das tarefas maternas; a habilitação como um zero à esquerda; a atualização como dois zeros à esquerda; a couraça do caráter na timidez e no fingimento. Ordem. Submissão. Segurança. Burocracia. Sentido compulsivo do dever. Uma certa disposição, cá entre nós, para aceitar e valorizar o trabalho repetitivo e carente de significado. Maré de burrices (ibid, p.115)
113
O autor conclui sua pesquisa destacando a participação política como fator
imprescindível para mudanças significativas nos elementos determinantes da identidade do
professor. Sem ela, ele continuará sem voz, debilitado, sem autonomia e dignidade. E aponta
caminhos para a construção de uma identidade alternativa pelo docente possível com a
condição de que haja, fundamentalmente, “uma problematização coletiva da sua própria
situação de opressão, da reflexão coletiva sobre os determinantes históricos, econômicos e
políticos do trabalho pedagógico escolarizado e da atuação conjunta sobre as suas
circunstâncias de vida” (SILVA, 1995, p.107).
A dissertação analisada de Lima (1995) foi de suma importância para tanto fazer uma
reflexão inicial sobre a validade das categorias apreendidas na pesquisa exploratória quanto
atentar para uma exímia prerrogativa balizadora do olhar do pesquisador frente ao objeto
proposto: as marcas da identidade docente ou humana são processuais, dinâmicas e estão em
constante metamorfose ou ressignificação e, além disso, elas estão consistentemente se
interpenetrando e remarcando as formas de pensar, agir e sentir do sujeito que busca uma
identidade para si a priori.
A delimitação do objetivo de pesquisa ocorreu no momento da análise dos estudos
feitos por Silva (1995). Como este autor centrou seu olhar sobre os contornos da identidade
do professor do 1º grau, resta saber se estes mesmos elementos estão presentes na identidade
do professor do ensino médio, numa possibilidade de tais elementos virem a se tornar marcas,
ou seja, efeitos ou aprendizagens que determinarão a identidade do professor no tocante às
posições assumidas na sala de aula e no mundo social. O objetivo se completa na tentativa de
identificar esta recorrência, como também atentar para a repetição de traços percebidos na
professora alfabetizadora (Lima, 1995), mas, sobretudo enfocar na identidade do professor do
ensino médio, quais as marcas peculiares determinantes e como ele vai ressignificando-as.
Assim, o referido trabalho engendra a possibilidade de se construir uma reflexão mais
abrangente sobre a identidade do professor da escola pública brasileira.
Neste sentido, a partir dos autores citados, a identidade docente mantém uma
articulação com identidades familiares, religiosas, de gênero, raciais, de classe, oficiais,
científicas e sócio-culturais que são marcas de contradições sócio-históricas destacáveis nos
relatos orais ou escritos construídos pelos professores sobre si mesmos.
Os discursos sobre si, elementos fundantes da identidade são constantemente
confrontados e ressignificados pelos diversos interlocutores que o professor se relaciona
durante sua vida: as legislações oficiais do ensino e docência, as cobranças e pressões sociais
114
e de seus pares, as exigências científicas e os desejos individuais. A identidade docente, como
um conjunto significante de ser, pensar e agir individual e profissional do professor é o
resultado destes discursos engendrados entre esses interlocutores.
115
CAPÍTULO 5
AS MARCAS QUE CONSTROEM E/OU RECONSTROEM O SER DOCENTE
Olha eu já fui marcada por tudo nessa vida, um aluno já me marcou, um professor já me marcou, uma situação já me marcou, uma escola já me marcou, uma sala por inteiro já me marcou, mais tanto positivamente como negativamente, mais eu diria que mais positivamente, porque em cada uma dessas marcas eu fui percebendo que eu tinha como prosseguir, como por exemplo, eu já fui ameaçada de morte por um aluno,[...] (Professora Elizabeth).
No capítulo anterior foram apontadas determinadas categorias de análise para se
refletir sobre as marcações sentidas pelo professor no contexto de construção da sua
identidade. Tais categorias – frutos da pesquisa exploratória e testadas previamente por uma
breve revisão da literatura que trata da identificação docente – foram mantidas e se tornaram
os fundamentos para a elaboração das perguntas norteadoras das entrevistas e para os olhares
e escutas durante a observação participante realizadas na escola em questão.
A “categoria-mãe” – marcas das experiências de vida – da qual foram retiradas as
outras, marcas institucionais (escolares, da formação), da profissão e discentes se mostraram
essenciais para se pensar a identidade tanto no seu processo de construção, altamente
relacionada com as marcas da cultura a qual participa determinados professores, como
também na possibilidade da emergência ou não de uma docência emancipatória.
Inicialmente na cena principal estarão como “atores notáveis” as marcas que
determinam o ser professor sobralense, bem como considerações pertinentes acerca das
mesmas. Na segunda cena, o tema enfocado será o fogo cruzado. Das marcas analisadas,
destacaremos aquelas que “queimam” a identidade docente e consequentemente retardam ou
inviabilizam o surgimento do docente emancipador. A metáfora de “atores notáveis” para as
marcas objetiva enfatizar o caráter de quase vida própria, pois no decorrer deste capítulo
ficará claro que algumas realidades que produzem determinadas marcas, como também as
próprias marcas se tornaram fetiche, controlando a produção de personagens da articulação
subjetiva dos professores.
Os sujeitos da pesquisa foram entrevistados e observados em quase todos os espaços
de convivência relacionados ao seu trabalho: reuniões de planejamento de área, intervalos
para o lanche, planejamentos mensais e encontros de formação continuada na 6ª CREDE. Não
116
era objetivo de a pesquisa observar a atuação docente em sala de aula. A não identificação foi
a maior e mais enérgica exigência dos que iam sendo entrevistados. Muitos inicialmente se
contrapuseram a colaborar, visto que não adiantaria ser entrevistado porque não poderiam
dizer o que realmente sentiam e defendiam, pois eram “temporários”, contratados pelo
governo para atuarem na escola somente por um determinado período de tempo.
No caso desta escola, do corpo docente, somente quatro professores são efetivos e
destes apenas dois estão em sala, porque um está afastado para cursar uma pós-graduação e
outro está ocupando o cargo de regente de multimeios – biblioteca. O restante, sem contar
com os professores das disciplinas profissionalizantes, é temporário e por esse motivo
claramente declaravam não se sentirem seguros para falarem sobre si e sobre a profissão
temendo represálias da gestão da escola e até do próprio governo, haja vista que os resultados
da pesquisa ficariam registrados e ao alcance do público em geral. Foi por conta disso que
depois de algumas conversas esclarecedoras sobre os reais assuntos das entrevistas é que os
professores que se disponibilizaram a colaborar solicitaram a máxima supressão de
substantivos ou predicados que possibilitassem a identificação mais específica deles: “olha
tira as coisas aí que pode me identificar né, tu entende né, isto aqui é o meu ganha pão, não dá
pra ficar desempregado na altura do campeonato” (terceira vez que este professor pedia isso).
É tanto que arbitrariamente foram escolhidos pseudônimos para uns e alguns ofereceram uma
relação de possíveis pseudônimos a fim de serem escolhidos futuramente.
Ficou absurdamente claro como essa estratégia política atual de dominação neoliberal-
terceirização, contratos por tempo determinado, prestação de serviços ou trabalhos sem
vínculos empregatícios reais e estáveis- inviabiliza a construção de uma consciência e atuação
política de classe, como também a vontade de um trabalhador de desabafar, de ao menos
compartilhar com alguém as suas marcas. O Ceará possui atualmente 45% dos professores
com contratos temporários, ou melhor, professores descartáveis (11.257) 8. Como construir
uma representação política atuante e aguerrida com tal realidade?
5.1-MARCAS DA PROFISSÃO
O professor, como qualquer profissional, não possui uma identidade profissional
totalmente diferenciada e alheia à sua identidade enquanto pessoa, indivíduo participante de
inúmeros grupos culturais cujas experiências advindas destes promovem a constituição destas
identidades interdependentes e interarticuláveis.
8 Fonte: informativo especial- Sindicato APEOC. Fevereiro/março 2010.
117
A identidade profissional estudada por muitos teóricos - Pimenta (1999), Codo (2006),
Arroyo (2000) – começa a ser construída e é constantemente reconstruída pela identidade
pessoal, ou melhor, pela “identidade-mãe” – configuração do indivíduo que é constituída
pelos valores, sentimentos e pensamentos nucleares e referencias para a construção de todas
as outras identidades necessárias ao convívio social. Essa “identidade-mãe” vai sendo
construída e reconstruída pelo indivíduo a partir de todas as experiências vivenciadas por ele
as quais se constituem nas situações marcadoras do ser humano.
Por esse motivo, falar de identidade docente é refletir sobre esse processo de
identificação do ser professor durante toda sua vivência enquanto ser humano. É pensar sobre
todas as marcações que o mesmo sente e ressignifica para que no terreno da experimentação
docente- a formação universitária- possa fazer pré-escolhas sobre determinadas características
identitárias que serão negadas, confirmadas ou rearticuladas no exercício real do magistério.
O objetivo desta pesquisa não é analisar “todas” as marcas que participam desta
construção identitária, mas sim refletir sobre as marcas identitárias que são conscientemente
lembradas pelos sujeitos e as que concretamente atuam nesta marcação da identidade no atual
contexto cultural cearense a partir da observação participante.
A família, como primeiro e mais importante grupo social marcador da identidade
humana, é frequentemente destacado e criticado tanto pela teorização educacional quanto
pelos professores, pais de alunos e religiosos no geral, como a “única” salvação para os
grandes problemas morais, éticos, políticos, econômicos e educacionais que atravessam todos
os países do mundo. De acordo com os professores, os alunos são desinteressados, violentos e
desrespeitadores porque a família está desestruturada. Pai e mãe não participam mais da
educação de seus filhos. Entregaram tal ação educadora para os “educadores midiáticos”-
programas televisivos, revistas de entretenimento, jogos virtuais, produções cinematográficas,
e as maravilhas da internet.
Assim por falta de tempo, capacidade e até de vontade, os pais e a sociedade como um
todo delegaram aos professores esse outro papel – educar à semelhança da família, ou seja,
socializar valores e princípios culturais consensualmente aceitos para se viver numa sociedade
justa, pacífica e humana. Além disso, os professores terão que enfrentar o poder de influência
e de socialização dos outros educadores pós-modernos liderados pela mídia e pelo mundo
virtual.
Uma quase generalizada tensão acompanha atualmente a vida profissional do docente:
como então assumir estes dois papéis- professor (a), pai e mãe? Será que os professores foram
capacitados para assumir estes papéis, como também os de psicólogo, e orientador
118
vocacional? A formação acadêmica instrumentaliza estes profissionais para assumirem estes
papéis? São perguntas que necessitam não somente de respostas, mas de saber por que elas
estão se tornando tão corriqueiras na esfera educacional?
Os professores entrevistados foram unânimes em afirmar que nas entrelinhas a
sociedade e as políticas educacionais já tomaram tal realidade como a essência do magistério:
“o professor deve e tem que ser tudo, se o aluno está bagunçando a coordenadora diz que sabe
que ele vem de uma realidade de família desestruturada, mas a gente deve incutir novos
valores, nós devemos assumir este papel”(Professor Prometeu). Não é a toa que entre os
professores, durante os encontros de formação, certos enunciados são veementemente
proferidos e certamente interiorizados pelos participantes: “professor é aquele que ensina para
vida”, “professor é aquele que se preocupa em educar os alunos em todos os sentidos”, “se a
família não educa mais, alguém deve assumir este papel e como a gente fica muito tempo com
eles cabe a nós assumir esta missão”.
A grande questão que surge então é se isto está sendo possível e de que forma está
sendo recebida pelos alunos? Será que os alunos aceitam esses novos pais e psicólogos? Ou
esta situação está afastando cada vez mais os professores dos alunos ou o contrário? Os
entrevistados respondem que de certa forma nos momentos de conflito o primeiro ataque
verbal dos alunos aos professores é que eles não são seus pais e, portanto não têm a
legitimidade de cobrar certas atitudes e responsabilidades. Entretanto com alunos que têm pais
e mães ausentes por trabalharem muito, serem separados ou por outro motivo, a situação é
diferente, mesmo com aqueles considerados indisciplinados.
Estes alunos passam a manter uma relação mais amigável com os professores e os
considerarem como “amigos”, pelo menos ouvindo esses educadores que atua neste novo
papel social docente. E são justamente estes alunos que promovem a aceitação deste novo
papel pelos educadores e fazem com que a “pobreza” de formação acadêmica para ensinar ou
orientar como lhe dar com essas novas funções seja ressignificada para uma atitude de busca
por capacitação, mais leituras, cursos e trocas de experiências com os seus pares. Ou seja, a
marca da profissão – exigência de novos papéis na atuação do magistério – em vez de, talvez,
afastar os professores para a realização destes, com a articulação de outra marca – alunos que
realmente precisam de “um ombro amigo e de alguém pra lhe dar um norte” (Professora
Elizabeth), é ressignificada e os professores passam a interiorizar estes novos predicados na
sua identidade e confirmá-los a partir de sua prática professoral.
Numa sociedade capitalista não é de se estranhar que a cultura docente seja marcada
claramente por um ambiente competitivo e individualista de busca por reconhecimento
119
personalizado a partir das premiações concedidas pelas agências contratantes: cargos
burocráticos, status de “professor-formador” e algumas regalias internas, como por exemplo,
ser convidado sempre para as reuniões e conferências temáticas promovidas pelas secretarias
de educação do Estado e do município. Tal fenômeno certamente fomentado pelas políticas
neoliberais objetiva incluir e “reconhecer” os professores que atingem as metas educacionais
e incitar ou promover a “entrada da linha” dos “zoadentos”, os que reclamam muito do
sistema, não atingem os índices e constantemente questionam as diretrizes da escola. Este
ambiente na escola estudada vem gerando uma disputa interna por maior visibilidade frente à
gestão e um profundo descontentamento daqueles que já se conscientizaram da estratégia
política.
Segundo a professora Pérsia, os discordantes acabam concordando numa espécie de
falsificada gestão democrática da escola, porque o discurso gestor é que se não se chegar a um
acordo, a desorganização vai imperar e os objetivos não serão atingidos. Ou seja, para ela ser
professor do Estado é necessário presentificar9 um “professor-calango”, só acenando com a
cabeça dizendo que sim a todas as diretrizes e situações edificadas, dizendo sempre amém.
“Se você viver de boquinha fechada você consegue alguma coisa no Estado”. Entretanto tal
realidade não passa das estratégias neoliberais e neoconservadoras – a despolitização e a falta
de conscientização crítica ou enfraquecimento do poder mobilizador dos atores sociais.
Os descontentes se chateiam muito também por causa de outra prática adotada pelos
gestores a fim de efetivar seus objetivos numéricos: as comparações feitas entre os
professores, ou seja, os elogios “rasgados” a certos professores que conseguem atingir as
metas e logo em seguida cobranças e pedidos de explicação para aqueles que não as
atingiram.
Eu odeio comparações, se é para comparar substitua. Se na hora que achar que eu não sirvo, substitua, eu não vou é fazer o que eu não posso, eu tenho limites. Eu fico chateada é com as admirações, além das comparações. Eu não agüento mais, eu vou sair da educação, definitivamente não é meu lugar (Professora Pérsia/diário de campo).
Neste desabafo fica claro como esse ambiente competitivo marca a identidade desta
professora ao ponto da mesma planejar a desistência de tal identidade- ser docente. E também
expõe outra marca institucional das políticas atuais: o total desprendimento e cobrança das
escolas por uma absoluta disponibilidade para com os assuntos escolares (posturas docentes
emprestadas pelo discurso da vocação ao magistério tão corriqueiro nas formações e discursos
9 Termo cunhado das afirmações de Ciampa (2008) acerca da identidade humana.
120
inflamados dos neoliberais), mas que não há retorno. Os professores quando precisam daquele
“tempo a mais” que ficaram depois do expediente dos assuntos do seu trabalho e precisam
deste tempo para resolver alguns problemas pessoais, a intolerância impera e a imparcialidade
surge como a ordem do dia. Marcados assim ficam e as ressignificações disto variam muito,
geralmente: “Vou deixar de ser besta, ninguém é besta pra mim. Eu não fico mais nenhum
minuto fora o meu horário, eu não ganho pra isso. já me disseram que eu tenho que inventar
que estava doente para ir atrás dos meus documentos” (Professora Santos/diário de campo); “e
eu nem se for obrigado” (Professor Bill/diário de campo); “A gente tem que burlar as regras”
(Professora Pérsia).
No afã de conseguir os cargos ou as regalias vale qualquer astúcia: bajular os gestores
e representantes da 6ª CREDE, como também “anarquizar com o coordenador e pela frente
faltar lamber os pés dele” (Professora Persia/Diário de campo). Todavia vale ressaltar que o
status, prestígio e o respeito proferido para os docentes que conseguem determinados cargos-
coordenação, direção ou superintendência, além de serem fomentados pelas políticas
educacionais, estes sentidos são interiorizados e validados pela cultura docente porque a
grande maioria dos professores participa desta batalha no seu cotidiano, sonhando nos dias em
que estarão exercendo cargos de chefia a fim de se vingar de todos os mandos e situações de
servilismo que passaram e fundamentalmente fugir do “inferno que se transformou o convívio
em sala de aula das escolas públicas brasileiras” (Professora Pérsia/diário de campo).
Este ambiente competitivo e de reconhecimento docente a partir da indicação de
cargos inundam e convencem tanto a sociedade civil quanto a categoria discente ao ponto
deles emitirem algumas “pérolas”: “é professor bom, foi pra Crede”, “aquele professor se
garante agora é coordenador” (Professora Santos/diário de campo). Não é que se deseja com
tais afirmações desmerecer a capacidade deste professores de atuarem nos respectivos cargos.
O que se quer enfatizar é que grande parcela dos professores está se preocupando muito com
disputas políticas dentro do magistério e esvaziando certos aspectos imprescindíveis na
melhoria da educação: mobilização política na luta por melhores condições de aprendizagem
e de trabalho.
Tal competição engendrada pela cultura escolar e pelas políticas educacionais
juntamente com outras marcas institucionais ou sociais- a desvalorização social e financeira
promove certamente uma desmobilização política da categoria e impossibilita o surgimento de
uma consciência de classe que é enterrada pela inoperância dos sindicatos representativos e os
insucessos nas lutas por melhorias. Destarte toda e qualquer luta por essas bandeiras fica
reduzido ao plano individual. Cada qual cuida do seu posto conseguido e tenta ascender para
121
um relativamente superior através de ações e atitudes de obtenção de visibilidade e
reconhecimento.
Assim sendo as diferenças entre os espaços trabalhistas de produção e as escolas se
reduzem drasticamente. A greve como mobilização específica de luta coletiva por
determinadas condições de trabalho e direitos reivindicáveis é considerada pela sociedade via
massageamento ideológico do Estado neoliberal como uma baderna, uma maneira de
descansar ou de fugir do trabalho. Os grevistas são preguiçosos, subversivos e
inconseqüentes, pois não pensam na educação dos jovens e tiram dos mesmos o direito de
aprender. Em suma, o slogan: greve – agressão aos direitos humanos e um obstáculo para o
ensino de qualidade para todos – penetra na subjetividade de muitos professores e assim se
concretiza a total desarticulação da docência enquanto categoria política de luta e só apenas
de busca por se dar bem a todo custo mesmo que à custa do sucateamento da educação e da
negação de uma educação de qualidade.
Os professores brasileiros cursam geralmente quatro a cinco anos numa modalidade de
formação universitária denominada de licenciatura que a priori fomenta a aquisição tanto de
conhecimentos científicos específicos de cada área específica – Língua Portuguesa,
Matemática, História, Geografia, Sociologia e outros – quanto de conhecimentos didático-
pedagógicos referentes à futura atuação deste profissional no seu espaço de trabalho. Neste
meio acadêmico ocorrerá uma maior estruturação de sua identidade profissional a partir da
procura de modelos e representações ou até de personagens de docentes que se “encaixem”
com sua subjetividade. Esta procura se dá por meio de observações dos professores
universitários, da ressignificação das marcas escolares - professores da escola básica - e
também dos modelos e propostas de docentes oferecidos pela teorização educacional.
Um dos aspectos que marcam a entrada do professor no magistério e que alguns
entrevistados denominaram como “choque”, “despertar pra realidade” ou “acordar para o
pesadelo” tem a ver com a receptividade sentida pelos “novos professores” ofertada pelos
“velhos professores”:
Tem escolas também que até os colegas te reprimem, quando você chega, você quer logo é desistir, você fica tão desmotivado, quando você chega, ah é por que é nova, ta começando agora, menina daqui cinco anos tu não agüenta mais não, olha inventado negocio de aula diferente, pra que isso menina, copia lá no quadro ai, ah eles não deixam assim não, copia logo essa aula todinha que eles ficam bem quietinhos, tá a gente escuta isso de professores, colegas, escuta de diretores, escuta de coordenador (Professora Florbela).
Os “novos professores” tentam se adaptar ou não a essa realidade de
desencorajamento, conformidade e “desidentificação” permanente que ocorre nas escolas
122
públicas brasileiras. Os modelos, propostas, objetivos e atitudes que constituíram a identidade
profissional sofrem esse grande impacto que requer inicialmente uma rearticulação identitária
a fim de evitar uma “despersonalização” maior. São muitos os sentimentos e reações-
marcações: vontade de desistir; ímpeto de lutar contra essas intempéries; busca por
alternativas menos “despersonalizantes”. Em todas essas marcações, os sentimentos
identitários serão fundamentais na tomada de decisões. Um professor que não se vê fazendo
outra coisa senão ensinando, seja qual for a finalidade – ensinar para vida, para cidadania, a
ler e escrever, uma disciplina ou qualquer outro fim – e que possui em sua história de vida
marcações que subjetivamente confirmam essa vontade, desejo ou vocação pelo magistério
dificilmente desiste e tenta ressignificar essa marca da profissão:
E ai, e no fundo, assim no finalzinho das contas a gente já tava é, não entendendo mais tava até tentando ver que essas pessoas elas já estão nessa situação por que elas talvez já tentaram de alguma maneira “né” eu penso assim, eu tenho uma visão muito boa das pessoas “né”, eu penso que de alguma maneira elas já tentaram ser diferentes, já tentaram fazer alguma coisa boa e o que motivou, ou foram desmotivadas e acabou que no final elas se entregando “né”, e eu tenho medo disso, de me entregar também, deu não fazer mais nada, so copiar no quadro. (Professor Florbela).
Porque hoje pra ta na sala de aula, entrar numa sala com quarenta e cinco cabeças diferentes, cada um tem seu modo de pensar, com certeza hoje você passar o ano numa sala de aula é conseguir muita coisa, eu já vi muitos colegas desistir, então agora mesmo no nosso planejamento teve, teve um colega que veio dois dias, no terceiro dia ele desistiu antes de ir pra sala de aula, ele não foi capaz nem de chegar até o primeiro dia de aula e ver realmente, ele desistiu no planejamento. Aí sim, uma pessoa dessa realmente é reprovado porque não tem coragem nem de enfrentar “né” ,chegar... (Professora Coralina).
Todavia estes “velhos professores” não só marcam negativamente os neófitos
docentes:
Os professores que já tá “trocentos” anos em sala de aula, experiência tem muita, mas não tem mais paciência pra discutir nada não, qure se aposentar, quer discutir nada não, mas sabe que é uma pessoa que não vai levantar discussão, não vai questionar muita coisa, manda ele mesmo praquela reunião, pra não ter confusão “né... eu reprovo demais a falta de posicionamento, essa neutralidade me incomoda, apatia, é o descaso com a escola pública, tem professor na escola pública que dar aula maravilhosamente bem nas escolas particulares, vai pra escola pública é a folga deles, eles se sentam e manda os alunos fazer qualquer coisa, tem muitos desses também “né” e esses profissionais que são professores que assume direção de escola e ai parece que nunca foi professor na vida, acha que tudo a culpa é do professor (Professora Rosa).
Mas também podem servir de bons conselheiros e facilitadores neste processo inicial
de adaptação à cultura escolar e docente através da socialização de macetes, estratégias e
aprendizagens em geral.
Até um colega meu me falou isso ai mesmo, ele já dava aula há muito tempo no ensino médio e disse oh se você quer dar aula no ensino médio você pegue um livro e estude porque a faculdade não lhe prepara pra da aula no ensino médio não. Teve um professor “né” lá na escola Antonio Mendes “né”, [...], que eu nunca tinha dado aula, foi a primeiro dia que fui da aula, me angustiei lá, ele
123
chegou pra mim e disse “né” como era lá, ele passou pra mim certa segurança “né preparando logo, “oh” é assim, assim, você é capaz, você sabe muito mais do que eu, então não se preocupe, deu todo um apoio, acho que isso ai marcou isso ai “né”, já entrei na sala eu já preparado vamos dizer assim “né”, já munido já que, já sabia o que ia encontrar de certa forma, e pontos positivos são esses conselhos, que me marcou muito isso ai, até hoje eu me lembro das palavras dele “né”, você, na sala de aula você é a pessoa que tem muito mais conhecimento, você tem domínio, você é capaz de estar, você mereceu está ali, foi o que marcou (Professor Dido).
E estes colegas de profissão marcam também no sentido de se constituírem modelos
identitários a serem seguidos de imediato ou num futuro próximo dependendo da
possibilidade de concretizar os determinados elementos subjetivos que possuem, que, ás
vezes, podem não ser identificáveis com a própria personalidade dos que estão almejando
certas identificações:
Eu tive uma colega que, primeiro ela muito, muito mansa, uma pessoa muito mansa e segundo ela trabalhava com muitos projetos, projetos assim, do tipo ela levava os meninos pra conhecer laboratórios de outras escolas, ela levava os meninos pra aulas de campo na instituição, e eu achava assim que era muita coisa pra um aluno, no caso, essa professora, a [...]10, ela era professora do sétimo ano, ela lecionava no sexto e no sétimo, e eu lecionava no quinto e no sexto, ela levava esses meninos pra fazer aula de campo e eu achava que era tanta coisa pra aquela idade, eu achava que era tanta coisa que ela fazia pra aquela série, mas ela, ela, eu percebi que eu acreditava que ela tinha crença neles, ela acreditava no futuro deles a,acreditava que eles eram capazes, então ela realmente trabalhava com muitos projetos, levava visitas pra escola, levava enfermeiros pra dar palestras essas coisas.[...] e atualmente eu tenho uma pessoa que me marca muito, uma colega de trabalho, aqui mesmo na instituição pública que é a professora Renata, ela me marca por que, ela não se altera, eu acho impressionante o professor que não se altera,[....] mas ela é impressionante, ela é mansa, fora, dentro e fora da sala de aula e eu gosto de conviver com pessoas que são mansa, gosto muito de conviver com pessoas, principalmente professor, professor manso eu acho tudo de bom (Professora Elizabeth).
Além desse “choque de realidades”, “sonho e pesadelo”, tempos de experiência na
faculdade e os tempos reais do magistério, as próprias condições de trabalho do professor
brasileiro dificultam até o ideal de educação neoliberal, sem falar dos objetivos pretensiosos
de uma educação emancipatória. Pelo menos em Sobral, os professores que trabalham
quarenta horas semanais, possuem apenas destas oito horas para planejar, estudar e pensar
sobre as suas trinta e duas horas obrigatórias (um professor que no momento de lotação não
conseguir as trinta e duas horas não é lotado, deverá procurar outra escola ou hora aula para
completar sua carga horária); ganha um salário ridiculamente defasado- na década de 80, o
estado do Ceará pagava dez salários mínimos para professores que trabalhavam quarenta
horas semanais e hoje paga 2,60 salários mínimos, o sexto pior salário do Brasil, ou seja,
remunera a quantia de R$ 1.327,65 para professores graduados11; atua em salas de quarenta a
10
Supressão do nome para manter o anonimato.
11 Fonte: informativo especial- Sindicato APEOC. Fevereiro/março 2010
124
cinqüenta alunos geralmente; é desvalorizado politicamente e socialmente; e perdeu o poder
ministrador de sua própria aula o qual foi entregue aos especialistas da educação ou
tecnocratas neoliberais. Segue um depoimento acerca desta enervante marca da profissão
docente:
Eu me deprimo sabendo que os técnicos de informática e de enfermagem trabalham menos do que eu e ganham muito mais, fazendo a mesma coisa que eu ensinar. Eu trabalho o dia inteiro feliz e no dia do pagamento eu tenho depressão. Eu não tou feliz com o salário. O que me deprime é o salário. O trabalho me deixa feliz. Trabalho com que eu gosto (Professora Monalisa/diário de campo).
No caso das escolas estaduais de educação profissional esta marca toma outra
proporção. No estado de Pernambuco, há uma gratificação justamente por causa do horário
integral e dedicação exclusiva. “vai ter 35% de aumento salarial podendo chegar a 55%”
(Professor Caim/diário de campo). Em Sobral, além desta gratificação ficar apenas na
promessa, os professores das disciplinas técnicas recebem R$25,00 por hora/aula enquanto os
professores do ensino regular apenas R$5,88. Quando eles ficaram sabendo foi um grande
alvoroço na escola e mais promessas foram feitas para acalmar a “categoria”. Para ilustrar
como isso marcou a identidade, segue um comentário desta desvalorização financeira ou
descaso: “Os professores técnicos não têm vínculo, são bacharéis, sem formação pedagógica e
ganham isso tudo e nós que passamos quatro anos se preparando para ser professor ficamos
horrorizados com certos descasos” (Professor Sócrates/diário de campo). A situação ficou
marcante quando os professores souberam – até o fechamento deste texto – que eles não
precisam elaborar planos de aula, preencher diários e fichas de acompanhamento e muito
menos participarem da aprovação automática. Prova disso é que num dos planejamentos o
núcleo gestor estava anunciando os alunos reprovados em algumas disciplinas
profissionalizantes e que deveriam ser transferidos, pois não há dependência neste caso.
Atualmente a escola trabalha com uma ficha de acompanhamento individual
preenchida por cada professor em todas as salas de aula. É muito importante porque ela
objetiva saber como o aluno está se comportando com relação aos critérios de
aproveitamento, participação, disciplina e trabalhos de casa. Utilizam-se os conceitos
excelente, ótimo, bom, regular e insatisfatório para avaliar cada critério no tocante ao
percurso escolar discente. Esta ficha é preenchida por cada educador no final do mês e
entregue ao diretor da turma12 correspondente a fim de servir para elaboração de um relatório
12
Política adotada pelas escolas profissionalizantes do Ceará em 2008 importada de Portugal. É um professor indicado pelo núcleo gestor a fim de ser o mediador de conflitos e “padrinho” de determinada turma no processo de escuta, discussão e solução de problemas que possam aparecer nas relações entre alunos, professores e a escola. Além deste relatório, os diretores também monitorar os rendimentos e a freqüência dos alunos. No caso
125
o qual constituirá num instrumento para as futuras conversas com pais e alunos sobre os
rendimentos escolares. Os professores concordam sobre a importância dessa ficha, porém se
sentem prejudicados pelo tempo insuficiente para se dedicar com mais afinco não só no
preenchimento da mesma como também na reflexão sobre a prática pedagógica que poderia
emergir dela.
A política de diretor de turma é mais uma estratégia das atuais políticas de encontrar
soluções, embora que necessárias, mas que paliativas. Se os professores não tivessem salas
tão numerosas e uma excessiva carga horária, eles teriam tempo para se aproximar e entender
melhor os seus alunos. Identificar os problemas, buscar alternativas e construir laços de
amizade. Como o objetivo do neoliberalismo não é solucionar totalmente os problemas
sociais e educacionais, pois ele pode precisa deles futuramente, cria-se um placebo – diretor
de turma – que utiliza apenas três horas por semana de trabalho para realizar o
acompanhamento de uma sala, em vez de diminuir três horas de trabalho para cada sala que o
professor ensinasse a fim de realizar a mesma função.
Por conta destas condições, o professor tenta sobreviver na profissão ou passa a atuar
sofrivelmente, no caso dos professores efetivos, esperando conseguir “algo melhor”. As
tentativas de sobrevivência confirmadas durante a observação de campo são as seguintes.
Uma busca desenfreada por capacitação profissional: cursos de pós-graduação,
especializações, mestrados e doutorados, na sua grande maioria, realizados em instituições
particulares aos sábados, visto que há uma dificuldade enorme de concessão de afastamentos
para os professores a fim de realizar estes cursos por parte da administração pública estatal. A
realização destes cursos objetiva o aumento salarial e em poucos casos, conforme as
conversas docentes, pretende-se uma real capacitação, com a finalidade de melhorar as
práticas pedagógicas de atuação em sala de aula.
Uma segunda tentativa também de aumento salarial, mas fundamentalmente de busca
por valorização e reconhecimento é uma competição excessiva e individualista por cargos e
ascensões funcionais nos espaços intra e extramuros escolares a fim de trabalhar nos setores
burocráticos da secretaria estadual de educação. Tal busca é realizada a partir de
demonstrações exorbitantes e festivas de experiências bem sucedidas por parte de alguns
professores com relação aos grandes problemas enfrentados pela educação como um todo:
de muitas faltas, eles chamam os pais para conversar e detectar os motivos das ausências. O diretor de turma possui três horas/aulas do seu tempo de trabalho para realizar suas funções. É uma política interessante e que o governo do Estado está implantando neste ano inicialmente no caráter experimental em todas as escolas estaduais.
126
desinteresse dos alunos, precários níveis de aprendizagem e indisciplina escolar. Essas
demonstrações são inicialmente objeto de espetáculos nas suas escolas de origem e depois
passam a ser assunto principal na pauta dos encontros de formação continuada das Credes,
aonde chegam não como propostas a serem pensadas e avaliadas, mas sim como imposições
marcando da seguinte maneira: “Eles pensam que só porque deu certo naquela escola, com aquela
sala vai dar certo com todo mundo, a impressão que dá é que eles pensam que a gente não faz nada pra
mudar o quadro da educação, pois vira e mexe eles sempre trazem uma receita pronta pra gente
aplicar” (Professora Santos).
Como então esperar que os graduandos de licenciatura se identifiquem com uma
profissão que possui estas características? Será que o esvaziamento crescente das licenciaturas
brasileiras não se deve ao fato de que os alunos não querem mais trabalhar como professor?
Entretanto, os dirigentes afirmam que a situação é bem diferente, pois no último concurso de
4.000 vagas para professor do Estado do Ceará finalizado recentemente em abril de 2010,
houve 25.153 inscritos, com aprovação de 3.84213 candidatos, ou seja, as pessoas querem sim
trabalhar como docentes no Ceará. Porém, uma dimensão importante pode ser esquecida para
os desavisados. Esta procura pelo concurso pode ser que sejam realmente pessoas querendo
ser professor, mas fundamentalmente é a conseqüência de uma marca cultural do
neoliberalismo que desumaniza o trabalho: vivemos numa ambientação social em que o
trabalho humano é considerado como descartável e instrumento de enriquecimento, ou seja,
não há mais preocupação em estabilizar empregado nenhum e sim apenas explorá-lo ao
máximo e se este máximo não estiver ao alcance do próprio explorado ele é banido
rapidamente do processo. Esse é o verdadeiro motivo que levaram essas doze mil pessoas,
mesmo sabendo das reais condições de trabalho: estabilidade que atualmente só os serviços
públicos ainda oferecem através de concorridíssimos e necessários concursos públicos. “o que
é pior sofrer num emprego tendo algum dinheiro no bolso pra comer e vestir ou não ter
emprego e sofrer por causa da fome e do desemprego” (Professor Prometeu).
Intrigante que no momento de discutir melhorias na educação, os professores são
apontados como os exímios “soldados” para vencer essa “guerra” que se caracteriza como o
sulcateamento da educação. São inúmeros os trabalhos científicos que discutem a formação
acadêmica docente atentando para novas aprendizagens, novas didáticas e metodologias para
13
Fonte: http://www.apeoc.org.br/cursos/1950-professores-aprovados-em-concurso-serao-nomeados-em-breve.html. Acesso em 31/05/2010 às 15:00.
127
que o professor consiga realmente efetivar um significativo processo de ensino-aprendizagem.
Assuntos e conceitos como professor-reflexivo, professor-pesquisador, “professor-tudo”
tornaram-se recorrentes e chamam atenção para fatores e aspectos louváveis da formação
profissional docente. Entretanto se não houver uma reforma “estrutural” na educação, esses
personagens docentes que se espera serem interiorizados pelos professores em atuação e os
que estão em formação, não passarão de personagens confinados nos bastidores do teatro que
é a sala de aula e a vida humana em si mesma. Não somente as condições de trabalho- marcas
da profissão- inviabilizam a concretização destes personagens pelo professor, mas
especificamente a estrutura das instituições escolares e as próprias políticas educacionais-
marcas institucionais:
A principio é difícil, por que você quer, quer construir, quer dar aquela coisa maravilhosa, linda que você aprendeu lá na faculdade, aquela aula brilhante, aquela aula show chamada, e ai tem ai o, uma digamos a metade, do meio da sala pra metade ta ali por que foi jogado lá, por que a mãe mandou, mas se for perguntar, isso num é eu que to dizendo não, eles mesmo dizem, to cansada de ver, eu to aqui por que minha mãe mandou e tal. E ai a escola como uma instituição ela tem, tem normas, tem regras que você acaba tendo que cumprir você, por exemplo, ta lá mais da metade criado sem fazer nada, você vai tentar aplicar uma, uma brincadeira, uma dinâmica, uma aula show, uma coisa assim, muitas vezes você é barrada até pela escola, pela direção, “né” pela, pelas normas, ei que bagunça é essa ai? Foi o que aconteceu, no, na primeira aula que eu fui dar, em escola pública “né”, eu sempre trabalhei em escola pública, ai a diretora vinha, vinha o coordenador, o que é isso? A sala revirada, não, não pode ser em circulo não, tem que ser é a forma assim, por que copie do que ta aqui, ela dizia, mais por que? A gente vai tentar uma forma diferente, não copie do que ta aqui, eles já estão acostumados, se você for inventar uma coisa diferente vai dar transtorno na sala, vai bagunçar, e talvez até dá mal exemplo pros outros, pras outras salas, pros outros professores. Sabe tem certas coisas nas instituições que eu já tenho ministrado que vão deixando agente desmotivados, tristes, agente vai fraquejando algumas vezes “né”, tem, tu não vai ficar desesperada, tu tem que prezar teu nome mas, mas tem momento que a gente fraqueja e acaba se deixando mesmo levar pra uma aula e você ter que ta lá copiando mesmo, vou copiar, vou fazer uma aula, vou ter que copiar essa aula aqui, vou copiar e os meninos vão responder de qualquer jeito, pela, pela situação mesmo, pela situação da instituição de, as salas são lotadas, de, bloquear o trabalho da gente algumas vezes, em relação a direção, essas coisas, mas não foi todos, foi algumas[...] (Professora Florbela).
Este exemplo clarifica a relação que há entre aqueles professores que querem
concretizar os personagens docentes que melhorariam de certa forma o ensino e as marcas que
são impressas em sua identidade advindas destas tentativas: desmotivação, fraqueza e tristeza,
que são ressignificadas: fazer o que todos fazem se entregar às padronizações construídas pelo
contexto escolar determinado. É lógico que existem sim professores que, não se identificam
com o ato de ensinar, que estão na profissão somente porque não encontraram “coisa melhor”,
porque “o mercado tinha muita carência né principalmente na minha área”; “os efetivos né
muitos deles acabam se acomodando né esse é o problema que eu vi e vejo ainda em alguns
casos”; e sem contar daqueles que não tiveram uma formação universitária de qualidade.
Todavia a própria teorização educacional já disponibilizou através de suas reflexões e
128
resultados de pesquisa, consideráveis mudanças que devem se processar tanto na formação
acadêmica docente quanto na própria estrutura institucional da educação como um todo desde
a esfera infantil até o ensino superior.
A professora Rosa destaca um aspecto crucial que deve ser levado em conta. Como “a
escola não é atrativa, ela não é interessante, não é” sobra para o professor. Os alunos não se
motivam para ir à escola por causa da sua estrutura ou dos “aperitivos” que a mesma deveria
possuir a fim de seduzir a juventude tão apaixonada por outras “escolas”. Assim os alunos
depositam uma esperança colossal de serem motivados pelo professor das escolas públicas
que tem a função, inerente ao seu ofício, de “temperar” bem este “angu’ que muitas vezes se
apresenta aos jovens os conhecimentos científicos- sem gosto, cheiro e utilidade prática. Eis o
grande desafio: transformar o “angu” num “prato saboroso” que produz “salivações”- lê-se
desejo, vontade e curiosidade de conhecer e aprender - antes mesmo de saboreá-lo, ou melhor,
estudá-lo. Além disso, e correlato a esta função,
O professor tem que ser muito bom, tem que ser uma pessoa muito bem resolvida com eles, pra ele fazer tudo isso pela escola, pro aluno querer ir pra escola só por causa dele, vou por causa daquela professora ali, eu acho que aí é jogar muito peso nas costas de um professor que recebe tão mal, que dá aula de tudo no mundo, que não pode dar só o que ele é formado, pra completar a carga horária e nos turnos tudo doido, manhã, tarde e noite, primeiro, segundo, terceiro, tá no terceiro vai pro primeiro, depois vai pro segundo, depois vai pro terceiro de novo.
A complementaridade da carga horária de vinte ou quarenta horas com disciplinas que
nem sempre são da “autoridade cognitiva” do professor juntamente com os horários
totalmente quebrados durante os três turnos de trabalho e a exigência de lecionar nas três
séries do ensino médio marcam profundamente a identidade profissional docente. A primeira
marca exige tempo para estudo, pesquisa e planejamento. Se estas atividades já são
necessárias para o docente que leciona em sua disciplina de formação, imagine quando o
mesmo se vê na responsabilidade de outra disciplina mesmo que seja considerada da mesma
área. Por exemplo, a área de Ciências Humanas é constituída pela História, Geografia,
Sociologia e Filosofia. Geralmente ocorre que as duas últimas têm apenas uma aula por
semana em cada sala, os professores complementam a sua lotação com as restantes. Pode
acontecer também de a complementação ser a única solução tanto para o docente conseguir
lotação quanto para não ser lotado em quatro ou mais escolas.
Como os professores do ensino médio trabalham por hora-aula de certa maneira esta
distribuição durante os três turnos compromete as suas outras atividades tanto pessoais quanto
profissionais. Fica difícil procurar outras escolas – caso seja a opção de alguns para
suplementar os seus rendimentos – como também de se separar certo tempo para se dedicar
129
aos trabalhos extra-escolares que são muitos e não é contabilizado e remunerado: correção de
avaliações e trabalhos; pesquisas e aprofundamento sobre temáticas e planejamento de aulas e
diferenciação metodológica e didática através de análises da “personalidade” de cada sala.
Além disso, esta marca está vinculada com uma terceira: o professor quase sempre atua nas
três séries que possuem conteúdos disciplinares previamente estabelecidos e diferentes. Neste
sentido, um professor de História deverá saber lecionar História Antiga e Medieval na
primeira série do médio, História Moderna na segunda série e História contemporânea e do
Brasil na terceira. Na Universidade, o professor geralmente leciona aquela disciplina para a
qual ele foi selecionado.
Entretanto o que mais marca a identidade profissional docente e que imprime um novo
significado para estas marcas anteriores próprias da docência cearense senão brasileira é a
falta de tempo para justamente se preparar, estudar e se dedicar tanto às suas disciplinas de
formação quanto às de complementação. Por causa desta marca da profissão e institucional, o
professor se vê constantemente angustiado por ter que atender as expectativas dos alunos,
“temperar” um angu, às vezes, angu até pra ele mesmo e ainda dar conta das cobranças por
resultados favoráveis das políticas educacionais vigentes. É exemplar e preocupante o
depoimento desta professora: “fui falar das camadas da terra e troquei tudo. Enchi lingüiça a
torta e direita desde quando eu comecei a dar aula de Geografia” (Professora Pérsia). Quantos
educadores estão na mesma situação da Pérsia, que não querem perder o emprego e aí se
submetem a lecionar disciplinas que nem gostam na maioria das vezes. Talvez essa situação
esclareça um pouco a realidade do ensino fracassado que se apresenta.
Este marca – falta de tempo – própria da organização institucional da docência
brasileira adquire um poder de marcação ainda mais “queimador” quando vem acompanhado
pelas intensas cobranças tanto no sentido de melhorar os índices dos rendimentos discentes e
no exercer das tarefas burocráticas (preenchimento dos diários, planos e demais fichas) quanto
para efetivar os inúmeros projetos e promoções que os governos estaduais e federais
desenvolvem além da concretização dos conteúdos curriculares oficiais de cada disciplina:
“Tu já fez o teu plano, preencheu os diários. Não sei aonde ele arranja tanto tempo”
(Professora Electra/diário de campo); “já eu tou virando um zumbi, pelas madrugadas”
(Professor Caim/diário de campo); “é muita cobrança não temos mais tempo para descanso,
até na hora do intervalo vem os avisos da coordenação” (Professor Dido/diário de campo); “o
negócio é que tem que ter pressa. A confusão é tão grande de coisa aqui que ninguém se
ouve” (Professora Monalisa/diário de campo); “mais coisa pra gente e se a gente não fizer, ela
vai dizer que tinha dado com antecedência. a gente não tem tempo, não é má vontade. Eu não
130
trabalho por pressão, eu faço uma porcaria” (Professora Santos/diário de campo); “SPAECE e
OBMEP em novembro e [...]14ainda quer que resolva a APAcrede15 com os alunos. Tem
recuperação paralela na próxima semana e eu só tenho três matérias para dar este mês. Acho
que não vou dar nenhuma” (Professora Geórgia/diário de campo);
Também o fato de, a, não ter tempo pra planejar “né”, a carga horária do professor ta sendo muita, assim, é tá prejudicando o próprio processo de, do ensino-aprendizagem, porque o professor não tem tempo pra estudar, pra preparar a aula, não tem tempo principalmente, o cara do laboratório, disciplina em sala, tese, você tem que procurar material pra tese e prática e vivencia,uma disciplina que tem aqui também, então são varias coisas que são jogadas em cima “né” do professor, cadê o tempo pra poder, pra se preparar, então essa questão de tempo que ele tem que ter um tempo livre pra poder preparar suas aulas, acho isso ai fundamental, depende da qualidade da aula isso ai, preparação “né” e acho que é isso (Professor Dido).
Vinculado a essa falta de tempo está outra marca da profissão, que poderia ser
focalizada na próxima seção- marcas institucionais, mas como já faz parte do ofício docente
cearense será enfatizado neste espaço. A extrema burocratização além de consumir o pouco
tempo que os professores têm, ela impossibilita a pesquisa, estudo, discussão sobre temas
relacionados à educação, aprendizagem, as condições de trabalho e de ensino. Ela é uma das
marcas que fazem parte do fogo cruzado, pois “castra” não só o pensamento crítico docente,
mas também porque mecaniza a prática docente. Transforma este profissional num simples
executor de normas, diretrizes, planos de aula, às vezes, previamente estabelecidos, como é o
caso das aulas do Primeiro Aprender onde é cobrado na versão de “pedido” a execução passo
a passo como orienta o manual de apoio do professor.
Negativamente me marca a extrema burocratização da pedagogia, né, não da escola, não do meu superior, não, o estadual né, a burocracia governamental, eu acho que a vida podia ser muito mais simples. É faz uma ficha a cada dia, a cada semana, colocar no projeto, colocar não sei o que no outro lado, passar três ou quatro chamadas diferentes no mesmo dia. No mesmo dia se a pessoa entrou na primeira aula faz a chamada da escola, a chamada da aula... ”(Professor Prometeu).
E essa burocratização escolar prejudica tanto a aprendizagem discente no sentido que
peca contra o tempo pedagógico, principalmente nas disciplinas que possuem somente uma
14
Supressão do nome do representante da gestão para manter o anonimato.
15 Avaliação Permanente Acompanhamento da Cédula de Desenvolvimento da Educação- prova escrita de língua
portuguesa e matemática de múltipla escolha aplicada mensalmente pela Superintendência em todas as escolas estaduais de Sobral. A escola observada a fim de “alinhar” e aumentar seus índices aplica periodicamente uma avaliação com questões semelhantes tanto a APACREDE quanto ao SPAECE- Sistema Permanente de Avaliação do Estado do Ceará - a fim de preparar sempre seus alunos na resolução destas avaliações externas. Assim um aluno regular da EEEP Dom Walfrido tem durante o período de três meses mais ou menos: as avaliações parciais e globais de cada disciplina; a APACREDE, a APA da escola, além de outras provas que surgem das inúmeras promoções fomentadas pelo MEC e SEDUC, como por exemplo, OBMEP- Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas e a de Língua Portuguesa.
131
hora-aula por semana e no contexto de desinteresse e indisciplina dos alunos da escola básica:
“Nesta hora tira dez minutos da chamada, tira cinco minutos pra organizar a sala, outro cinco pra calar
os, os indisciplinados, você vai ficar com o quê? Com vinte e cinco minutos, vai ler o Primeiro
Aprender. Limita muito né, a burocratização tira a liberdade do ensino...” (Professor Prometeu).
Por causa dela, o tempo de oito horas dos planejamentos de área- caso se tratar de
professores que tem duzentas horas de trabalho- fica insuficiente se somado a isto eles ainda
forem tratar de planejar ou organizar a elaboração dos projetos e promoções externas. Planejar
aulas, preencher uma ficha de acompanhamento de alunos e estudar formas de execução de
projetos pedagógicos fazem parte do ofício do professor. O que marca é o tempo disponível e
a quantidade de fichas e planos a serem elaborados e preenchidos. Um exemplo é a
elaboração do plano anual, mensal e semanal. Detalhe, por causa do tempo alguns professores
estavam repetindo os planos semanais se caso fosse a mesma série. O núcleo gestor começou
a cobrar a diversificação – e com razão – da prática pedagógica mesmo se forem dez turmas
de primeira série, justificando que cada sala é um mundo e o professor deve conhecer as
especificidades discentes ou o “termômetro” da sala antes de escolher a metodologia e as
atividades a serem trabalhadas.
Todos docentes contratados no regime de 40h devem ensinar trinta e duas aulas. No
caso dos professores de Filosofia, Sociologia, Espanhol e Artes – que possuem uma aula em
cada turma – durante a semana conseguirão em oito horas elaborar um plano diferenciado
para suas trinta e duas turmas? E mesmo com as outras disciplinas – História, Geografia,
Inglês, Química, Física, Biologia – que deverão criar dezesseis planos, seguindo a exigência
inteligível da gestão, também conseguirão fazer isso em oito horas?. É por esse motivo que tal
marca “queima” a identidade docente, porque é sumariamente cobrada uma predicação que
não há condições de se realizar, só se ele for elaborar esses planos em sua residência, como
também se tornou uma marca da profissão – “levar trabalho para casa”: correções de prova e
trabalhos, feição de planos de aula e até de outras fichas burocráticas, além do já estabelecido
estudo e pesquisa sobre os assuntos a serem lecionados. “Infelizmente este planejamento é só
burocracia” (Professora Pérsia/diário de campo).
Neste sentido nos encontros de área assuntos como pesquisa, discussão política, troca
de experiências, problemas educacionais e a realidade sociocultural – momentos de sublime
importância na melhoria da educação escolar – perdem sentido, pois tanto para
superintendência quanto para gestão escolar o que é mais importante é o preenchimento das
fichas mesmo que seja de maneira displicente e insensível objetivando apenas a prestação de
contas junto às entidades fiscalizadoras. “É por causa de toda essa burocracia. pudera eu ter
132
tempo pra pensar várias coisas” (Professora Pérsia/diário de campo). Durante a observação de
campo se verificou algumas tentativas frustrantes de discutir certos assuntos polêmicos:
aprovação automática, greve, burocratização ou condições de trabalho. Os que iniciaram
foram tolhidos pelos colegas que se mostraram indiferentes e até desencorajaram
veementemente: “cuida dos teus planos senão vai sobrar pra ti mais tarde quando a super
chegar” (Professor Caim/diário de campo).
Você fica lá “né” dia de estudo, tem o dia de estudo de área, a nossa área geralmente é dia de [...].16, agora não dá tempo preencher, a gente não estuda mais não, só preenchendo papel, preenche plano de aula, diários, agora tem que preencher o plano de aula semanal e tem que ter o plano de área mensal “né”, aí você planeja o mês todinho, mas você não sabe o que vai dar no dia seguinte porque você não pode estudar, não pode ler o conteúdo que você vai trabalhar, não discute com o colega, não debate nada, vamos dizer assim, cientificamente, não faz um semidiscurso no grupo,... (Professora Rosa).
De uma maneira ou outra a seguinte citação da professora Rosa tanto resume um
pouco a situação profissional deste trabalhador como também exemplifica o fogo cruzado que
o mesmo é jogado diariamente:
É uma profissão sofrida, professor sofre quando vai pra sala de aula, ele começa a segunda pedindo a Deus que chegue sexta, olhando pro calendário se tem um feriado, imprensado, uma coisa qualquer por que ele entra na sala de aula, ele já entra desanimado, achando que vai ser um inferno “né’ e ai ele tem que dar o conteúdo do livro, tem que cumprir o programa, o aluno não ta interessado no programa, ele não tem mais do que isso, ele quer é o salário no fim do mês, quando ele só quer o salário no fim do mês e é a maioria, ai nada presta mesmo não, nem mesmo, nem ele ta feliz, nem o aluno ta feliz, nem a escola vai pra canto nenhum, mas são esses professores que ficam anos e anos no magistério, os professores que faz diferente geralmente fica ai um tempão procurando escola pública, sem ter, mas os colegas poucos dentro de uma escola assim de dez vamos dizer que três tão preocupados com o que tão e com o futuro dos meninos, com o presente dos meninos e com o futuro “né” eu acho que pode ser uma visão pessimista “né”.
Se esta realidade corresponder ao estado atual da docência e da educação pública,
medidas e transformações devem ser iniciadas com urgência na estrutura da escola e da
Universidade e nas políticas públicas de organização da profissão e do processo educativo.
Esta professora ainda continua com suas análises no mínimo realistas sobre a escola
defendendo a inexistência da autonomia docente e da democracia no ensino público que
possui atores que servem,
De cobaia, cobaia eu não vejo outra coisa cobaia testa aí pra ver se dar certo o primeiro aprender, se der bem se não der faz outro, testa aí a infrequência pro professor fazer se der resultado ótimo se não der tem nada não a gente tira, testa aí um programa curricular único como vamos discutir agora a Crede vai chamar pra discutir, vai testar se der bem se não der. e vamos ver como é que vai ser essa discussão “né” (Professora Rosa).
16 Supressão do nome a fim de manter o anonimato da professora.
133
Além disso, ela ainda enfatiza que os professores que buscam autonomia ficam
“marcados” pelos núcleos gestores e pelos próprios colegas de profissão: “fica sendo aquele
professor que ninguém quer, ele é marcado porque ele contesta as coisas, contestar é proibido,
embora não se digam ‘né’, aí ficam só”.
Algumas mudanças lentamente se processam na pesada e medieval estrutura
universitária, porém as mudanças estruturais na escola básica não saem das discussões dos
eventos científicos acadêmicos e das promessas políticas em tempos de campanha eleitoral.
Disto conclui-se que não basta oferecer novos personagens e novos papéis aos personagens
antigos da identidade docente, é necessário fazer o que não se fez até agora - mudar a
estrutura da educação: ensino emancipador e não conteudista medido por avaliações de maior
depósito de conteúdos; salas menos numerosas; descentralização do currículo nas disciplinas
científicas e contemplação das artes modernas e dos desportos como elementos constituintes
do currículo oficial e não como meras atividades a ser realizadas algum dia extraclasse;
construção de mais escolas e universidades instrumentalizadas- bibliotecas, laboratórios, salas
de dança, teatro, pintura, música e quadra esportivas; professores bem pagos com
disponibilização de material didático e tempo para planejar e estudar suas aulas, que não
precise trabalhar duas ou três escolas para completar seus rendimentos; e gestão realmente
democrática nas instituições educacionais.
5.1.1-MARCAS DISCENTES
A essência da docência é a aprendizagem discente seja qual for seu tipo. Sem os
alunos não existiria esta profissão. O sentido da mesma está vinculado ao aluno. “Os alunos
são ótimos, os alunos são umas bênçãos que Deus coloca na vida das criaturas, sem os alunos
ia ficar a onde a nossa diversão, a nossa felicidade, a nossa paixão por essa coisa boa que é ser
professor” (Professora Elizabeth). É por esse motivo que esse tipo de marcas profundamente
“queimam’ a identidade docente de forma peculiar.
As principais marcas discentes eleitas pelos sujeitos foram a indisciplina e o
desinteresse pelos estudos:
Nem todo mundo tá íi interessado em aprender, muitos deles, às vezes ou a uma pequena quantidade eles não assimila o conteúdo que você dá, ele não corresponde as suas expectativas e não correspondendo essa expectativa é que você toma um choque “né”, é mais fraco, nem todo mundo é interessado (Professor Dido);
Negativamente o que me marcou, a indisciplina, não estar habituado a ver um número tão grande de tantos jovens que não querem nada... Tem muitos jovens que positivamente negam ter a transmisssão desses valores humanos, que riem na cara da gente quando vem propor um valor, riem da nossa cara, chamam de palhaço, nos xingam, somos procurados como matar a aula, não levam a sério o projeto
134
que a escola tem para eles, e isso como profissional é de certa forma frustrante né (Professor Prometeu).
Não sabia me comportar com desinteresse deles eu ficava com ódio, gritava com eles, chamava eles de desinteressados , era pior, quanto mais eu gritava com eles mais eles chacoalhava da minha cara, aprendi na experiência foi triste “né” e achando que tava dando aula maravilhosa e eles nem ai, e eu digo como é que pode rapaz aula tão boa e esses meninos num querem assistir minha aula e eles nem ai (Professora Rosa).
O desabafo da Professora Santos (diário de campo) é o mais relevante e perturbador,
principalmente se ele não for o único no cenário da educação brasileira :
Eu tou pra explodir com isso. Eu tive vontade de chorar. Uns estavam dormindo, outros de costas, outros conversando. O que me dá raiva é porque era 80% da sala, já era a segunda aula. Mulher, minha aula não estava chata. Quando o conteúdo está chato, eu brinco, mulher. Mal eu comecei a explicar. Eu senti que os meus cinco anos na faculdade não tivessem servido de nada. É sério na educação dá vontade é de chorar, mas eu não vou dá o gosto pra eles. Eu só consigo dar aulas na base da ameaça. Eu tou com a cabeça tão nervosa, que eu não tou conseguindo resolver uma questão besta de [...]17
Alguns fatores também podem estar contribuindo para esses desinteresses dos alunos
como a rotina integral de oito horas de trabalho escolar naquela estrutura de ensino
ultrapassada e tradicional onde são raras as exceções: exibição de vídeos, palestras, atividades
artísticas e culturais ou esportes. E essa rotina fica mais fatigante e revoltante para alunos que
são matriculados na escola para serem castigados pelos pais ou porque querem evitar que seus
filhos entrem no mundo da delinqüência, conforme as denúncias de um representante da
gestão escolar.
O professor Sérvio ao se pronunciar sobre os desabafos da professora Santos defende
certo tipo de prova de fogo para quem é realmente um professor de vocação: “eles querem
resultados não importa onde você está. Só digo que você é professor se você passar dez anos
em sala de aula com duzentas horas e se você resistir e conseguir sorrir! Eu consigo sorrir
mesmo depois de vinte anos em sala de aula”.
A ressignificação destas marcas se diferenciava na subjetividade docente: “a vontade
que tem é dar pontos, passar prova muito fácil” (Professor Bill/diário de campo); ”eu avalio
tanta coisa que não tem como não ser boas minhas médias, se o aluno der um sorriso, eu dou
um ponto”(Professor Sócrates/diário de campo); “Tá chegando no meu limite, a gente precisa
exigir, exigir. Eu tive que fazer duas filas e dá aulas para eles e pronto. A escola não dá
limites e quando a gente dá, a gente é ruim, não presta. Quando dizemos algo com alunos
somos logo chamado atenção” (Professora Pérsia/diário de campo).
17 Supressão da palavra identificada do assunto específico da disciplina da professora.
135
Eu tou agindo naturalmente “né”, mas não é que eu aceite “né”, que aceite isso “né" a gente procura fazer o máximo pra que as aulas sejam interessantes, que eles se entusiasmem pelo conteúdo pela matéria, veja a relação entre ela e o seu dia-a-dia sabe, sabemos que é difícil não é fácil, mas a gente vai levando “né” (Professor Dido).
Não somos deuses para suprir essa carência tão grande né [a falta de transmissão de valores humanos pela família] e por fato da escola... Tem essa riqueza pra ofertar [ o professor fala justamente dos valores humanos que são trabalhados nas disciplinas práticas e vivência e Tese] seria melhor a escola puder aceitar somente os jovens que estejam dispostos a aceita essa proposta, que se não, é tirar o tempo dos que realmente querem...(Professor Prometeu).
De ta chamando nome com os alunos, tratando os alunos mal, não dizer uma brincadeira, ai senta, mais eu já ouvi falar de professores que tratam mal os alunos, ai que fulano de tal, realmente sendo sincera a gente se estressa em sala de aula, mais tem que se controlar pra não chegar a esse extremo (Professora Coralina).
Então ele acaba sendo vitima mesmo, de toda a situação, um adolescente, um jovem do ensino médio, eles são ainda é muito jovem, não tem discernimento pra saber ainda, exatamente o que é o melhor, nem o que é o pior, eles vão pelo que é mais fácil, porque nós fomos adolescentes, a gente sabe disso, a gente acaba indo pelo que é mais cômodo, mais fácil e infelizmente a sociedade, os pais, a sociedade num todo acaba é, é permitindo muitas coisas e acaba também jogando a escola joga pra família a família joga pra escola as responsabilidades e acaba sendo vitima disso tudo(Professor Florbela).
Mais reprovo é o profissional que acusa o aluno, mesmo que o aluno esteja errado, mesmo que o aluno esteja errado eu reprovo a atitude do profissional, do professor, que acusa, que aponta o dedo no aluno porque ele não vai ta ajudando, não vai ta ajudando a ninguém nem a ele nem o aluno, nem a sociedade que ao meu ver é a função maior é, é pensar na sociedade. Quando um profissional da educação deixa de ter esperança é outra coisa terrível, é outra coisa terrível um, um, a meu ver não tem como esta no magistério sem ter esperança, não tem como, ta ali só passando o tempo, ta ali só passando o tempo e uma das posturas que eu admiro, uma delas é o respeito ao aluno do jeito que ele é com toda a sua vida. Uma das posturas também que eu acho assim brilhante é um professor que consegue acreditar pelo aluno, ele consegue convencer o aluno de que ele é capaz, porque quando todos falam que ele não é capaz ele mesmo já começa a acreditar, o próprio aluno já começa a acreditar e começa a agir conforme essa verdade que ele já traz dentro de si (Professora Elizabeth).
Que o professor quando ele não quer dar aula o caminho mais fácil é ele copiar a matéria, porque os alunos gostam, acham que é isso dar aula, quando ele quer conversar muito e a confusão comendo “né” e o professor se irrita é pior, aí eu aprendi na sala de aula a levar na esportiva quando é possível, porque nem sempre é “né”, aprendi a levar na esportiva , levar na brincadeira”né”, a usar a linguagem deles “né”, até pra eles perceberem o ridículo que eles dizem, professor você não vacile não, rapaz quem ta vacilando é tu “né” porque a gente entende e aí eles acabam entendendo “né” o quanto é ridículo quando eles tentam fazer isso com a gente “né. Não adianta ficar gritar com eles, é pior você se aborrece, eles lhe aborrece mais ainda e o ódio é mútuo e aprendi também que não adianta também chamar coordenador pedagógico pra tirar aluno de sala, a pior besteira que o professor faz é chamar um coordenador pra mandar o aluno pra coordenação, o coordenador fica lhe tesourando, que você não tem domínio de sala, o aluno lhe esculhamba lá “né” e depois o coordenador diz assim, pronto conversei com ele, ta de volta, e dar na mesma coisa, você mandou, ele conversa e leva de volta e o menino ta do mesmo jeito ainda diz assim(Professora Rosa).
O professor Prometeu toca em dois assuntos polêmicos na educação – a massificação e
a inclusão na escola pública. Longe de querer referendar as práticas seletivas e competitivas
do sistema neoliberal, será que a escola ou as políticas educacionais querendo uma maior
quantidade de números tanto de matrículas quanto de aprovação não estarão “excluindo” os
136
alunos interessados de um ensino de “qualidade” e os desinteressados de seguirem os
caminhos que escolheram muitas vezes contrários à escolarização? Ao “incluir” os alunos
indisciplinados e desinteressados junto aos interessados numa mesma sala que por reclamação
unânime é demasiada numerosa, a escola em última instância exclui os últimos de um maior
desenvolvimento intelectual, porque o professor constantemente tentará organizar a sala, que
será perturbada pelos indisciplinados, para que o processo de ensino aconteça. E também
exclui os primeiros por não oferecer um atendimento personalizado não somente no aspecto
pedagógico, mas também psicossocial. Da mesma forma, através da aprovação automática, a
escola exclui os alunos de realmente aprenderem os conhecimentos disciplinares. Ou seja,
objetivando uma massificação das matrículas e tentando evitar a repetência e a evasão
escolares, a escola não “educa”, apenas “empurra” os alunos para a série seguinte tendo como
conseqüência direta a necessidade de elaborar projetos intervencionistas para acabar com as
deficiências tais como o Primeiro Aprender.
O que está em discussão não é a defesa da exclusão dos indisciplinados das salas de
aula, mas sim uma política escolar mais preocupada em analisar as razões da indisciplina e
tentar atacá-las. Uma realidade é legitimamente defendida pelos professores: fazer “vista
grossa” e exigir que os mesmos continuem na sala quando praticam os seus atos ilícitos e
culpabilizar o professor pela falta de “controle” e por conseqüência de liderança, está
aumentando significativamente a própria indisciplina e um sentimento de desistência e
descaso dos educadores. O aluno deve pelo menos ser responsabilizado e conscientizado das
conseqüências maléficas para aprendizagem dos demais colegas de seus atos que muitas vezes
são calculados e detém o pretenso objetivo de realmente atrapalhar o processo de ensino-
aprendizagem.
Com esta roupagem a inclusão tão disseminada pelas mídias e discursos oficiais
promove a exclusão e é interessante que prejudica fundamentalmente aqueles alunos que
poderiam aumentar os índices da escola. Mais uma contradição do neoliberalismo. Sem um
ensino personalizado e diferenciado, esta “inclusão ao contrário” poderá acarretar em último
caso na indisciplina e desinteresse dos inicialmente disciplinados e interessados. O professor
Prometeu destaca que os alunos podem pensar que se não existem maneiras de enfrentar a
indisciplina então eles podem fazer de “tudo” na sala de aula e como esse tudo é naturalizado,
os outros também se sentirão autorizados para fazer os mesmos atos, pois não acontecerá nada
contra eles, somente um ou dois dias de suspensão e pronto.
Aquele ciclo vicioso de, de permissividade que tem na escola, tudo é permitido “né”, então entre aspas tudo é permitido assim no sentido de que o aluno pode tudo, e ele vai só jogando ah eu vou
137
passar mesmo, de qualquer maneira pra quê que eu vou estudar, e até os bons como eu falei “né” acabam entrando nesse ciclo também (Professor Florbela).
Este excessivo “ciclo vicioso de permissividade” utilizado pelas políticas
educacionais para evitar o decréscimo nos índices de matrícula, frequência e aprovação
discentes acabam por criar uma atmosfera de onipotência juvenil que não somente inviabiliza
a socialização legítima dos alunos como também a impraticabilidade dos ideais de
aprendizagem estabelecidos, porque intensifica a indisciplina, o conformismo, a acomodação
e a displicência da classe discente com relação aos estudos e a escolarização como um todo.
O cruzamento da aprovação automática e a onipotência juvenil com a expropriação
docente e a desvalorização de certa maneira impossibilitam a emergência de alternativas “pro-
indisciplina”. Os professores perderam a gestão de suas salas e todas as suas ações são
crivadas e validadas pela gestão escolar panóptica. A “desautorização” pedagógica docente
resquício do terror das práticas tradicionais de autoritarismo e punição exercidas pelos
professores em determinado contexto histórico, corrobora também para a perda da integridade
física, psicológica e profissional destes profissionais. Os atuais docentes se sentem inseguros
dentro do seu espaço de trabalho. A gestão não oferece mais o “escudo institucional” tão
necessário para legitimar o trabalho docente como também para efetivar o respeito, confiança
e autoridade. Se a escola não respeita o professor e constantemente o desautoriza nas suas
decisões como esperar que os alunos se comportem. Os professores estão desprotegidos frente
à indisciplina, violência física e delinqüência juvenil. Qual profissional estaria motivado para
trabalhar num ambiente que não oferece segurança nenhuma?
A professora Santos relata que constantemente passa por atos desrespeitosos e o mais
marcante foi quando alguns alunos através de bilhetes e grafitagens anônimas como também
apelidos dúbios denegriram sua inteireza moral e sexual. A reação dela foi a seguinte: “meu
deus, o que estou fazendo aqui, me mostre outro caminho”.
É durante a recuperação paralela e as sessões do alinhamento que a falta de interesse
ganha um maior poder de marcação. Muitos alunos entregam as provas de recuperação em
branco ou até tentam resolvê-las tirando uma nota até mais baixa do que a primeira. Vale
destacar que quase todos os professores aplicam a mesma prova. Ou seja, nem o trabalho de
rever e “decorar” os procedimentos de resolução das questões da prova já entregue e corrigida
os alunos não querem. “sabe o que é conversa, é conversa demais. Tem aluno que quando eu
marco a prova ele falta” (Professora Socorro); “estou decepcionada, pois na sala toda só teve
três notas azuis e eu passei a prova tal e qual a passada só faltei resolver as questões e, além
disso, teve várias questões em branco” (Professora Geórgia/diário de campo); “Acabei de
138
passar uma prova, foi uma negação. O caba faz uma prova de cinco questões e o aluno não faz
nada. Isto é destruição. Que que eu tou fazendo aqui. Eles estão pensando que é loteria. Onde
está o problema, às vezes eu me pergunto. Fizeram nada na minha prova” (Professor
Sky/diário de campo). Os professores ficam mais impressionados porque modificam quase
sempre sua metodologia e o tratamento didático dos conteúdos disciplinares e não há
mudanças significativas.
Terminado o período de recuperação, os momentos de alinhamento começam e com
ele as cobranças por melhores resultados, a culpabilização pelo fracasso e a crescente
expropriação e desrespeito ao trabalho docente realizado. Neste fogo cruzado os professores
podem ressignificar de várias maneiras: analisam suas práticas e se comprometem de buscar
novas estratégicas metodológicas e didáticas; desistem do próprio processo engendrado pela
gestão – aumento dos índices – pois já estão cansados desta responsabilização delegada; ou
tentam assegurar sua prática identitária fazendo algumas adaptações com relação aos ditames
da gestão escolar: “Oh quer então eu dou um sete em tudim, veio pra sala, está freqüentando,
mesmo tirando zero eu dou a média, quero ver se esses gráficos não aumentam. Não posso me
culpar por tudo na educação, antes eles conseguiam fazer isso, hoje eu me perdoei”
(Professora Pérsia/diário de campo).
A professora Santos destaca uma realidade intrigante e que pode se constituir numa
das razões do desinteresse discente:” a gente pensa que os alunos estão entendendo e quando
chegamos no[sic] particular a gente vê as dificuldades”. Pode ser que eles não entendem
porque não querem realmente ou porque não conseguem, pois não possuem conhecimentos
considerados pelos sujeitos-professores, como “básicos” no ensino no desenvolvimento e
aprendizagem dos conteúdos disciplinares.
Um último questionamento é pertinente em relação ao desinteresse discente. Será que
a escola, o professor ou ensino conseguem fazer com que os alunos esqueçam, principalmente
os de escola pública, todos os seus problemas sejam econômicos ou psicossociais e se
concentrem ou se motivem para aprenderem? O sistema escolar está estruturado e preparado
para exercer um poder de convencimento, deslumbramento ou motivação de seu “produto’ –
os mais variados conhecimentos – em comparação a outros sistemas educacionais tais como
as mídias, os grupos sociais vinculados a todos os tipos de drogas e os outros de
ideologização consumista (práticas excessivas de festas, bebedeiras, erotismo e delinqüência).
A resposta negativa é um tanto óbvia.
Os alunos possibilitam intensas e necessárias aprendizagens aos professores em
exercício. Aprendizagens que constituirão num conjunto de saberes da experiência (TARDIF,
139
2007), ou práticos que orientam a profissão, atualizam a ação docente e julgam tanto a
formação anterior quanto a formação no decorrer da carreira. Eles constituem “a cultura
docente em ação” (p.49). “Ouvir os alunos, com certeza, hoje principalmente não é o
professor chegar e achar que a sala é dele, que só ele pode falar, mas sim ter uma, fazer uma
aula num todo, uma equipe, deixar que os alunos também participem, dê a opinião deles,...”
(Professora Coralina).
Em algumas situações no seu dia-a-dia “né”, não adianta você querer bater é boca com aluno “né”, você tem que mesmo levar na esportiva “né” isso é uma das coisas que a gente viu, eu percebi é que nem todos são iguais “né”, você tem que vê as diferenças e é como é a maneira de ensinar também, eu vejo eu tiro a minha maneira de ensinar pelas turmas que já passei que já dei aula, ai toda vez que dou aula eu já vejo, já analiso se aquela aula foi boa ou não, se não foi vê onde posso melhor, então me baseio muito pela aprendizagem dos alunos em cada sala “né” que eu vou pra dar aula você aprende, em cada aula que você dá você aprende, você ta aprendendo uma nova forma de dá aula, você tá se melhorando, melhorando sua didática sua aula “né”. Então acho que é, seria esse ponto ai lhe dar com a turma, é ter um bom relacionamento com a turma, ter um bom relacionamento né, o que você deve é, as atitudes você deve tomar, com quem você deve falar com quem não deve, o que deve fazer e o que não deve, é isso ai. (Professor Dido).
Eu aprendi a tolerar mais, sabe, quando eu, quando eu inicie apesar de toda, de toda a oportunidade que eu tinha de pessoas que me influenciaram, eu ainda, às vezes eu queria bater muito de frente com alguém, eu queria ser aquela, tentei ser aquela professorar rígida, a professora mandona, “menino” eu vou tirar um ponto teu! Sabe, tentando ameaçar de uma forma ou outra, e ai eu percebi que esse caminho ai não adiantava não, ai eu acabei me tornando mais tolerante, eu acabei me tornando mais amiga “né”, mais compreensiva, ao ponto de entender esse lado ai. A gente escuta muita coisa, muita coisa e a gente acaba, quando a gente acaba vendo eles como vítima disso tudo como eu coloquei, como, é sem ter grande, pessoas que não tiveram muito incentivo, grandes oportunidades, então você passa a querer oportunizar mais coisas a eles, mais, mais vai se doar “né” pra... Então eu acho que é possível com o aluno também você estabelecer essa postura e amizade, de proximidade com eles, de tentar entende-los, mas deixando claro que você tem que ser respeitado, enquanto educador, na sua postura que você esta ali, que existe isso também que eles tem que respeitar (Professora Florbela).
Coisa que eu tenho aprendido muito com os meus alunos, tenho aprendido mesmo de verdade é não deixar para amanhã o que você pode fazer hoje, porque essa questão de eles não possuírem é, uma visão de futuro, essa questão de a gente ter que despertar neles até mesmo essa visão de futuro, assim que a gente entenda o quanto que a vida da gente é curta, o quanto a vida realmente tem que ser vivida o quanto antes. [...], porque não é só o professor que influencia o aluno, claro aluno também influencia muito o professor, influencia até diretor, influencia até o governo, porque o governo faz projetos os alunos é que acabam direcionando se vai ou não vai dar certo a continuidade do projeto. [...], essa questão de ser muito realista, essa questão de tá sempre com pé na realidade, sempre de maneira mais concreta de ver as coisas com mais objetivos, digamos assim, porque eles têm essa necessidade pra eles o estudo passa a ter muito mais sentido quando eles começam a entender o valor social, quando eles começam a entender que aquilo tá na realidade deles, que de uma certa forma eles estão a conviver com essa situação no dia-a-dia deles, quanto eles percebem que a vida deles passa é longe daquilo que se quer transmitir, é uma barreira grandiosissima, mas do contrário eles começam a perceber que o professor ta disposto a participar do mundo dele, participar da vida dele, a aceitá-lo do jeito que ele é, ele também começa a aceitar o professor do jeito que ele é (Professor Elizabeth).
A professora Rosa destaca o conformismo e a alienação como as marcas que mais
incomodam na profissão e fomenta a sua atitude ressignificadora frente a tal realidade:
140
Então ou são apáticos ou são fáceis de serem manipulados e os que não são nenhuma coisa e nem outra, não tão nem aí, tem uns que tem bem claro eu vou estudar, o que eu não entender na sala eu pergunto o professor no corredor , ele vai me explicar eu vou entender, eu faço e o resto que se dane “né” é aqueles que tanto faz como tanto fez tão lá por ta, nem querem uma coisa e nem querem outra e isso incomoda muito, isso incomoda muito, acho que isso me faz tentar provocar neles, despertar neles essa consciência neles que eles são apáticos, eu acho que a maioria não tem nem consciência de que é apáticos, eu acho.
Marcando de forma contrária, ou melhor, no sentido de estímulo e fortalecimento da
identidade docente que foi jogada no “fogo” pelas marcas citadas, estão o interesse e a
dedicação de poucos alunos numa sala numerosa: “então aqui nos tem aluno que pelo, pelo
esforço que eles fazem a gente dá vontade de continuar e tentar passar um pouco pra eles do
que a gente sabe e aprender, por que a gente aprende muito com eles”(Professora Coralina);
“Tem coisas que compensa, o retorno dos poucos alunos compensam, eu me sinto gratificada,
eu me sinto principalmente quando eles falam comigo, professora deu certo, isso me
recompensa, são poucos poderiam ser muito mais né” (Professora Rosa).
Menos mal porque há gente que quer e entrar nesse projeto, aceita, se interessa, que por eles vale a pena, por eles vale a pena, é marcante sim, até pela situação pessoal da qual eu estou, é iniciar uma nova forma de vida né,[...] apesar da grande dificuldade que tem a escola pra ofertar os grandes valores que tem pra ofertar (Professor Prometeu).
Outra classe de alunos marca também a professora Rosa e que pode ser um ponto de
partida para se compreender a indisciplina e o desinteresse discentes que muitas vezes podem
significar uma resistência ao processo de escolarização, visto que
A escola já nasce com a finalidade da prisão pra cercear, só pra moldar o aluno “né” e hoje ela não consegue moldar o aluno, o aluno percebeu que ela, a escola não diz nada pra ele, não serve pra nada, e ele vai só pra infernar mesmo, e eu acho que inconscientemente ele percebeu, querem me moldar, eu não vou deixar a escola me moldar, eu não vou deixar essa professorazinha que não sabe nada de mim, dizer com que é que eu devo aprender “né”.
No encontro de área do dia 30/09/09 um estagiário presente na discussão sobre a
onipotência juvenil, aprovação automática e expropriação docente, comenta que tinha ouvido
algumas reflexões de um porteiro da escola em que trabalhava que o marcou profundamente:
A educação não presta, não dá certo, porque tiraram todos os direitos do professor e deram todos os direitos para os alunos. Os alunos podem tudo hoje e o professor sempre é o culpado por eles não quererem nada nem com os estudos e com a vida. Se um aluno faz alguma coisa na escola, apronta, todos já dizem é aluno do professor tal, como se o professor fosse responsável pelo mal comportamento do aluno fora e dentro da escola.
Esse depoimento suscita as reflexões que estão sendo desenvolvidas pelo capítulo
corrente. Parece que o horror pelas práticas tradicionais causou também a permissividade
discente e a conseqüente onipotência juvenil. Talvez não seja o caso retomar as práticas
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repudiadas, mas sim resgatar o conceito de disciplina tão erroneamente assemelhado com os
conceitos de autoritarismo, tortura, punição e desumanização como um todo.
5.2- MARCAS INSTITUCIONAIS
As instituições sociais como um todo são espaços de marcação identitária por
excelência na identidade humana. A família, a escola básica, a universidade, o local de
trabalho e os meios de comunicação de massa foram destacados aqui como as principais
instituições marcadoras da identidade docente conforme a fala dos entrevistados.
Alguns entrevistados conferiram poder de marcação da família de várias formas na sua
identidade. Algum familiar faz parte do magistério – “Então primeiro na minha família né, a
minha mãe é professora, acho que isso ai pesa um pouco” (Professor Florbela) – como
também atitudes e práticas no seio familiar despertadores da motivação à docência:
Por que assim, eu, eu penso que foi de lhe dar com os meus irmãos mais novos, eu penso, que foi, por que a minha mãe, meu pai sempre trabalhou fora, meu pai é motorista de barco, e a minha mãe sempre viajava ao encontro dele, então ela sempre me deixou como responsável, não só pela casa, mas inclusive pela tarefa da escola, que eu tinha que olhar se eles tinham feito, eu tinha que ajudar se eles não entendesse, então sempre fui responsável até mesmo por essa área da educação dos meus irmãos mais novos, e eu gostava de fazer aquilo, eu gostava de falar não é assim é desse jeito, eu gostava de falar você tem que ler esse livro, eu gostava de ler história pro meu irmão mais novo, a minha mãe é professora, então a minha mãe o que ela mais, o que ela mais questionava quando ela ligava pra saber se tava tudo bem, era se eu ainda estava lendo para os meus irmãos mais novos, e a professora não tinha feito nenhuma reclamação, por que até na escola ela falava que eu estava como responsável, “né” e qualquer coisa poderia falar comigo, então isso ai foi, foi crescendo dentro de mim esse sentimento de está ensinando... (Professora Elizabeth).
Atitudes e práticas despertadoras do objetivo a ser perseguido na docência:
É me marcou sim o ambiente acadêmico no caso né, ah, a sala dos meus pais é uma biblioteca, talvez maior do que a biblioteca daqui da escola [risos]. Nós não tivemos brinquedo que, eu me lembro que poucos brinquedos nós tínhamos, nossos presentes eram livros didáticos, inglês, física, literatura... Então esse ambiente familiar destacado é que me marcou, positivamente, aliás, porque meu, meu robby é leitura, meu robby, é leitura (Professor Prometeu).
Como sua identidade profissional foi marcada por esse ambiente familiar:
Quero formar alunos que gostem de leitura, que gostem da formação permanente, que seja humanos... Estudar é ler, leitura de compreensão, sínteses, fazer resumos dos resumos, gráficos e aprender o gráfico, utilizando a lógica poderá tirar proveito.... em ser professor?Nada. A nível de valores sim...( Professor Prometeu).
ai vem também a questão de eu ter uma, sempre, desde criança um convívio muito grande com a leitura, minha “Vó” era a Mariazinha contadora de história, eu cresci ouvindo história, ai eu gosto, gostava de ouvir, e ai acabei também tendo o gosto de passar essas histórias, ai essa ai é uma das influencias, “né” a questão da família (Professora Florbela)
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Outras formas de marcação foram o desencorajamento para a profissão: “Por que eu
morava com um tio, e ele não queria que eu fosse professora, ele queria que eu tentasse, tanto
foi que eu fiz vestibular pra enfermagem, pra medicina, mas passei pra matemática, meus
cálculos nunca foram optar por uma questão de gosto” (Professora Coralina);
Fui desmotivada [risos] a minha mãe ficou louca quando eu disse que queria ser..., mas a maioria das mulheres vai pra pesquisa, ela vai ser cientista, mas quando eu fui mesmo pra prática pra sala de aula, foi uma, um, eu senti até um pouco, ela disse eu não queria que você fosse, que você fosse professora, eu não queria, porque, ela foi professora muito nova, e ela apesar que conseguiu educar os filhos que sempre soube dar o melhor, na questão da educação, mas ela sabe que é árdua a profissão de professor, ela não queria não, então eu não fui motivada não, pelo contrário, eu fui desmotivada a ser professora, mas que filho de gata gatinha é , né e a mãe sempre teve uma influência forte na minha vida, tanto é que ela gosta muito de me acompanhar como professora, sempre queria um conselho dela, talvez ela nem saiba tão grande influência que ela tem né, muito tempo convivendo comigo já[risos]. (Professora June).
É interessante que no exemplo acima, os conselhos da mãe para ela não se tornar
professora não foram suficientes para apagar o desejo de ser professora quando surgiu no
início da experiência no magistério. A própria imagem e representação de professora que se
formou na subjetividade da filha observando a mãe foi crucial na ressignificação desta
desmotivação advinda do próprio estímulo modelar de ser professora, que era sua própria
mãe. O xeque-mate da ressignificação ocorreu então quando a filha, motivada pelo modelo de
professora que era sua mãe, inicia sua carreira no magistério. Tal exemplo prova que a
ressignificação das marcas no processo de identificação humana é sumariamente contingente,
como a própria identidade.
Além disso, teve mais quatro professores entrevistados que não conseguiram perceber
a marcação da família nem pra motivar nem pra desmotivar a escolha do magistério.
Entretanto, todos foram unânimes em afirmar o poder de marcação familiar na questão dos
valores que constituem a sua personalidade docente e fundamentalmente nos princípios que
construíram o tipo de profissional e de professor que concretizam. Corroborando as
afirmações da Psicologia do desenvolvimento de que a base psíquica de formação da
personalidade e identidade humana advém dos primeiros anos de socialização encabeçados
pelo agrupamento familiar e seus correlatos.
5.2.1- CURRÍCULO E IDENTIDADE: RELAÇÃO INDISSOCIÁVE L
Considerando o currículo como o núcleo da educação e uma questão de identidade, ou
seja, ele está centralmente vinculado “naquilo que somos, naquilo que nos tornamos”
(SILVA, 2007, p. 15), percebe-se que, analisando as marcas que determinam a constituição da
identidade docente dos sujeitos durante os seus percursos de vida pessoal e profissional, de
143
certa maneira, possibilitará compreender como o currículo escolar, acadêmico e cultural estão
sendo efetivados e marcando seus respectivos ‘alvos’. Ou seja, será possível fazer uma
relação entre as marcas da identidade docente e as do currículo que são submetidos os atores
sociais durante suas existências enquanto indivíduos-professores, pois uma das marcas a
serem enfocadas na pesquisa serão as marcas da formação e da profissão que estão vinculadas
intrinsecamente com a marcação curricular da identidade.
O currículo neste trabalho é entendido como uma rede de relações e produção de
significados cuja matéria-prima é um conjunto de conteúdos sócio-culturais selecionados que
se efetivam nos espaços humanos de convivência instituídos tanto na formalidade ou
explicitação quanto na informalidade ou velação com a pretensão de formar determinados
tipos de pessoas ou possibilidades de identidades. Cada grupo cultural ou agrupamento
humano num dado espaço-tempo tem seu currículo formal ou não-formal, explícito ou oculto,
por exemplo, a família, a escola, a vizinhança, o grupo de amigos, os estudantes, os docentes
e as universidades. Silva (1995, p.195) define o currículo como uma prática cultural que nos
constrói como sujeitos específicos, destacando a indissociável relação entre a identidade e o
currículo:
O currículo não é, assim, uma operação meramente cognitiva, em que certos conhecimentos são transmitidos a sujeitos dados e formados de antemão. O currículo tampouco pode ser entendido como uma operação destinada a extrair, a fazer emergir, uma essência humana que pré-exista à linguagem, ao discurso e à cultura. Em vez disso, o currículo pode ser visto como um discurso que, ao corporificar narrativas particulares sobre o indivíduo e a sociedade, nos constitui como sujeitos – e sujeitos também muito particulares. Pode-se dizer, assim, que o currículo não está envolvido num processo de transmissão ou de revelação, mas num processo de constituição e de posicionamento: de constituição do indivíduo como um sujeito de um determinado tipo e de seu múltiplo posicionamento.
Percebe-se a relação do currículo na marcação da identidade, entretanto o objetivo de
relacionar o papel que o currículo exerce na impressão destas respectivas marcas foi apenas
um dos objetivos da pesquisa e que poderá ser retomado em outro momento, pois se constatou
a grande influência que a formação acadêmica exerce na marcação identitária a partir das
vozes docentes escutadas. O currículo acadêmico e as práticas curriculares engendradas
podem fomentar uma identidade mais definida e menos facilmente indeterminável pelas
labaredas do fogo cruzado.
Tancredo Lobo (2005) objetivou em sua pesquisa algo parecido, porém o movimento
de investigação proposto aqui é inverso. Este autor tem como interrogação básica, qual o
lugar que ocupa o currículo no processo de formação da identidade profissional do pedagogo
144
na Universidade Regional do Cariri – URCA. Ele se concentra nas marcas curriculares da
identidade do pedagogo. As diferenças essencialmente se resumem no movimento de
investigação do objeto, os sujeitos da pesquisa e o nível de ensino, além de outras mais
específicas quanto aos procedimentos metodológicos e escolha dos sujeitos, justificativa e
problematização. Enquanto que Lobo tem dois objetos de investigação – o currículo e a
identidade – o presente estudo tem apenas um: a identidade docente. O currículo apareceu
como uma das marcações necessária para se compreender o processo de marcação da
identidade no sentido de “prática social geradora de significado”, pois o currículo entendido
como percurso e possibilidade “participa da construção da identidade, tanto no sentido
unitário da modernidade quanto em abordagem complexa própria dos paradigmas atuais onde
prevalece a imagem de uma construção multirreferencial” (LOBO, 2005, p.16).
Se o objetivo do currículo é modificar as pessoas conforme uma seleção de
conhecimentos, saberes, valores e princípios, ele também se constitui numa marcação de
identidade. É no desenvolvimento curricular que se vai produzindo as identidades, haja vista
que a pergunta que antecede o quê na escolha dos conhecimentos a serem corporificados no
currículo, é: que tipo ideal de pessoa se quer formar?
O tornar-se professor é um processo de contínua e inacabada busca tanto por
diferenciação em oposição aos movimentos de adequação, anulação, resistência e indignação
engendrados pelas instâncias sociais de legitimação do magistério: escolas, políticas
educacionais e o imaginário cultural, quanto pela ressignificação das marcas deixadas pelas
situações vivenciadas desde os tempos escolares, passando pela formação acadêmica, a
experiência real do ofício e o relacionamento com a escola administrada. Esta ressignificação
acompanha diariamente a existência do professor e é o principal aspecto no processo de
construção da identidade docente.
5.2.2- MARCAS ESCOLARES OU DOS TEMPOS DA ESCOLA BÁSICA
Quando se falou nas marcas da escola básica no tocante a construção de suas
identidades docentes, o (a)s entrevistado (a)s foram unânimes em destacar inicialmente os
seus professores, bem como suas formas de ser, pensar e agir, aprovadas e reprovadas por eles
no passar dos tempos, seja por meio do crivo da experiência profissional, da constituição
subjetiva de valores e objetivos a respeito do próprio processo educativo e a função docente
ou através da própria experiência formativa. Levando a pensar que a busca por modelos de
professor na constituição de sua identidade profissional inicia com os primeiros contatos com
estes profissionais principalmente durante a escola fundamental e média.
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A primeira marcação escolar significativa foi relacionada pelos sujeitos às suas
motivações com relação às escolhas da própria profissão como também da área ou disciplina
que iria prestar vestibular ou atuar no magistério:
Provavelmente não foi a única influencia essa, mas com certeza foi uma influencia de ser não em si professora, mas professora de portuguesa gramática e literatura, com certeza foi influencia de uma professora que eu tive no ensino médio de literatura, então a escolha não em si da profissão, mas da área foi ligada a isso a professora de literatura. (sussurros). Por que assim eu sempre gostei muito de ler “né”, de estudar, ler principalmente poesia, e ela fez ainda despertar mais ainda essa vontade, pela maneira como ela ministrava suas aulas, pela doçura, pela alegria, pelo, pela emoção que eu sentia, então pelo sentimentalismo que ela colocava nas aulas de literatura... (Professora Florbela).
O fato foi que no ensino médio, na escola estadual, foi onde eu estudei, o professor... O professor de matemática que me ensinou o Luis Carlos... Ai foi quando comecei gostar, eu já gostava de matemática, mais ai quando eu vi ele dando aula, a maneira dele de dar aula foi que me incentivou a gostar mais da matemática e estudar.[...] da maneira que ele dava, ele dava uma aula e não tomava... Base em nada, ele dava a aula dele, a matéria sem olhar livro nada, a maneira dele dar aula, o jeito dele, foi que, que comecei a gostar, por que eu já gostava da matemática, mas não gostava, tanto foi que segundo ano, eu não sabia nem se eu ia tentar vestibular, por que eu não sabia o por que, que eu ia fazer “né”, ai quando ele me ensinou no terceiro ano foi que eu comecei a ver, a questão do professor, ai me deu vontade, e tentei vestibular e passei. (Professora Coralina).
Mas teve um professor é, professor, estudava lá em Massapê, o Tremal que me ensinou história no segundo ano, ele me influenciou também “né”, porque toda vida eu achei que eu ia fazer letras, letras, letras, que eu gostava muito de poesia e de literatura, mas no segundo ano chegou o Tremal, e o Tremal trouxe a outra discussão da história que eu nunca tinha visto até então, só tinha visto aquela decoreba, no segundo ano ele começou a abrir os caminhos, ai no terceiro eu decidi por entrar pra história então teve, dele que eu me lembrei teve o Tremal,... (Professora Rosa).
O interessante é que não havia nenhuma disciplina que eu gostasse, e as pessoas sempre perguntavam: Tu vai ser professora de quê? Eu não sabia dizer a disciplina que eu mais gostava, então eu não sabia exatamente de que eu seria professora, qual disciplina, se português, inglês, ou matemática, más, eu comecei a gostar muito do inglês, com uma professora que eu tive a partir do quinto ano, essa professora ela, a professora Liduina, ela cantava muito, cantava muito, trabalhava com muita música, colocava a gente pra cantar, e com (?) despertou em mim, um profundo gosto pela língua inglesa, então eu já tinha mesmo essa vontade de ser professora acabei prestando concurso pra o estado pra professor de inglês... (Professora Elizabeth)
A segunda marca, não menos importante, mais fundante da própria identidade
profissional, pois os sujeitos iam pontuando algumas atitudes, procedimentos didático-
metodológicos e comportamentos dos professores da escola básica que serviram de referência
para construção do ser docente que eles tentam presentificar no cotidiano da sala de aula:
“Questão assim do professor, não assim, matemática você não decora “né”, a maneira dele em
saber todo o conteúdo, o jeito dele passar foi que me incentivou...” (Professora Coralina); Eu
objetivava a segurança com a qual ele falava é, ele dava pra nós, psicologia, História,
Geografia, [...] essas matérias que ele passava pra nós todas. (Professor Prometeu);
Época da escola sim, os professores de literatura especificamente, que literatura é muita emoção, é muito sentimento “né” poesia, é arte então ela passou essa maneira de conduzir as
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aulas com toda essa sensibilidade que é extremamente necessário para um professor de arte e de literatura.[...] Bem as aulas dela, sempre foram aulas que envolvia muito sentimento, então assim se ela utilizava uma disciplina, uma matéria que tivesse um filme relacionado, ela tava colocando aquele filme emotivo de acordo com a temática, uma musica e eu, sobretudo que ela deixa a gente ouvir, porque na minha época a gente sabe que, e as coisas, os professores tinha muito aquela coisa da imposição e ela era uma professora muito doce de ouvir, meiga, saber o que o aluno pensa sobre aquilo, de deixar a gente expor a sua opinião, e não aquela coisa pronta ah você tem que responder esse questionário do jeito que tá aqui ela era muito subjetiva, deixava a gente responder, expor sua subjetividade...(Professora Florbela).
Tinha um professor de literatura que eu gostava muito dele, inclusive ele é daqui o Adeilton “né”, o Adeilton eu acho que eu me espelhei nele, o Adeilton trabalhava muito com poesia, com teatro, chegava dizendo uns poemas, ninguém gostava “né”, em Massapê, o pessoal, mas eu gostava... (Professora Rosa).
Que influenciou mais foi teve a professora de português que eu achava interessante como ela dava aula “né, o domínio que ela tinha em sala, pela leitura e o gosto mesmo “né” de ensinar, eu tinha essa vontade, eu gostava de ensinar “né” de dar aula então foi por isso ai, mais por isso.(Professor Dido).
O único professor que eu recordo com clareza e que eu recordo com carinho é essa professora de inglês que foi um espetáculo, foi tudo de bom, essa professora foi realmente um must, ela cuidava da gente, ela se importava, ela ia na casa, ela ia lá em casa, ela acho que ela conhecia a casa de todos, então hoje eu tenho contato com essa professora [...]foi a única professora, é a única professora que eu me recordo, em todo sentido, pelo o ensino, pelo carinho, pela influencia, pela disciplina, é a única professora que eu recordo.(Professora Elizabeth).
E nos processos de ressignificação, os elementos determinantes da identidade iam sendo
selecionados:
Com certeza, com certeza, sempre tive nas minhas aulas, é essa coisa da sensibilidade, de dar voz o aluno, de deixar ele falar, de também ouvir, de tá pronta para ajudar quando necessário, e jamais utilizar essa coisa do formular, sobretudo na disciplina de literatura, que é algo muito subjetivo né como História e Geografia e eu acho isso assim abominável, questionar, ah, análise do poema tal tem que ser assim, tá assim, escreva do jeito que eu coloquei no quadro, não é muito subjetivo, tudo o que subjetivo é, participa de varias opiniões, desde que a opinião tenha uma certa coerência a gente vai tentando conduzir isso para que os alunos adquira essa, esse discernimento, sabedoria.(Professora Florbela).
Como por exemplo, dar aula pros alunos com livro, dúvidas que os alunos tinham na sala de aula perguntava pra ele, se ele não soubesse, ele dizia não sei, mais vou dar uma olhada em casa e na aula seguinte eu tiro a dúvida, e ele achava, era capaz de admitir que não sabia do conteúdo, mais ficou claro, ele pesquisava e tirava a dúvida no dia seguinte .(Professora Coralina).
Eu acho que a vontade de fazer os meninos pensar, ele fazia muito isso com a gente, ele chegava na sala e não dava nem boa noite, começava a declamar um poema, no primeiro dia que ele entrou na sala ele entrou declamando um poema, e foi do Augusto dos Anjos “né” um poema bem, ai do poema ele ficava em silêncio e a gente ficava sem saber o que fazer “né” ele causava uma inquietação na gente, a gente tinha que dizer alguma coisa ele não dizia nada, e a sala ficava em silencio era incrível, ele dizia o poema ficava parado sentado no birô olhando pro tempo, e a gente sem saber o que fazer, se falava, se num falava, é eu acho que essa atitude dele de provocar a nossa reação, eu busco mas não tenho, tenho consciência que eu não tenho essa atitude dele ainda não, “né” mas eu acho que essa, o desejo de inovar, trabalhar com muito com imagem, ele trabalhava muito com
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imagem com a gente, com filme, levava fotografias, “né’, isso ai eu tenho comigo, e foi no terceiro ano.(Professora Rosa).
Eles eram formados mesmo nas áreas mesmo, matemática, português e de física não era mais era um cara, o rapaz era bom, bom assim porque ele sabia dá o conteúdo tinha controle de sala, primeiramente tinha controle da turma, e dava a matéria porque tem professor que não tem controle de sala “né’”, mas não tem controle de turma, esse não lá ele tinha o controle e dava o conteúdo “né”, ao contrario das pessoas que não davam. (Professor Dido).
Por que ela era uma boa professora, e ela cobrava, ela cobrava muito, mas a gente não se sentia pressionado, eu sempre comentei isso como os colegas da faculdade, eu, eu tive, eu dizia eu tive uma professora que ela cobrava, cobrava era a única que cobrava, mais a gente não se sentia pressionada, ela passava umas musica pra casa, umas musicas em inglês [...]Uma das coisas que eu acho que eu mais me internalizei realmente na Tia Lidú, foi a questão de cobrar do aluno, sem deixar ele se sentir pressionado, por que, nisso a gente, vai conseguindo fazer com que, ele queira, com que ele tenha um amor, aquela, aquela, disciplina, por que se você não despertar primeiramente o amor, todo o restante fica mais difícil, todo o restante fica mais difícil, a gente sabe que qualquer disciplina dentro do magistério, ela um dia mais cedo ou mais tarde ela vai ter sua função social, com certeza, mas se não for despertada pelo amor vai ser muito mais difícil, dele entender isso, porque hoje em dia o mundo oferece tanta coisa, “n” coisa de, infinitas diversões, atrações, uma série de outras coisas fora a escola, onde se torna mais interessante estar la fora do que na escola.[...] Então eu acho que são duas coisas, o tom de voz que ela tinha, ela tinha um tom de voz manso, num lembro dela ter gritado, acho que ela nunca gritou, e a aproximidade que ela tinha, ela se aproximava muito de cada um, ela não escolhia um ou outro não, ela se aproximava dos alunos, eu penso que seja isso... (Professora Elizabeth).
Na didática que ele lecionava então, ele chegava e dava sua aula, fazia com tanta paixão e com tanta segurança, que prestava, aliás, que forçava você naturalmente prestar atenção, só saia da sua sala perturbado de ouvir a sabedoria dele, saia com vontade de ler, de estudar mais, isso o que chamou atenção nele,ora pra se qualificar, [...]errou, errou, não tem ponto de recuperação não. Mas nunca brigava com ninguém, brigava consigo mesmo quando errava, chamava-se assim mesmo de bruto, bruto, desculpa ele corrigia, detalhe incrível da boa intensão dessa pessoa, da boa formação e da sua humildade, o cara sábio desse pedir perdão a um aluno por ter errado, é, isso contagiava a vontade da sala. (Professor Prometeu).
Intrigante como as marcas são ressignificadas. No episódio descrito pelo Professor
Prometeu no qual seu modelo de profissional se autodenomina de “bruto” por ter errado e
pedido desculpa, o que é interiorizado para sua identidade é o sentimento humildade por ter
pedido desculpa, visto que o mesmo era um profissional docente altamente sábio e
conhecedor de vários campos do saber. Todavia, essa mesma atitude pode ser interpretada
como um professor tradicionalista e conteudista que não consegue lhe dar com os possíveis
erros de sua capacidade de memorização que poderia talvez causar um pouco de aversão às
professoras Florbela, Coralina e Rosa numa situação hipoteticamente imaginada no caso.
Na fala da Professora Florbela, Coralina e Rosa, outra marca, agora da própria
instituição escolar- o ensino tradicional de prática conteudista e de memorização. A aversão a
este tipo de ensino aparece como importante elemento da constituição do tipo de professora
escolhido como também o único tipo que o sujeito não aceitaria ser:
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É a questão mesmo do, do ser flexível, de não ser aquela, aquela é, rígida, é mandona, aquela coisa de chegar na sala é, olha é do jeito que eu quero, é assim, não, de negociar, de conversar, de dialogar com os alunos, de saber a opinião, quê que eles consideram melhor, mais interessante, graças a Deus eu tenho muito, tenho muito isso, eu jamais vou me sentir diminuída, menor por que eu tenho que ouvir um aluno, como eu já vi outros profissionais dizer, ah... eu vou me diminuir para um aluno, “nam” eu chego lá eu digo as regras do jeito que eu acho que é melhor que é pra eles sentir logo no primeiro dia com quem ta lhe dando, não eu jamais vou agir assim “né”, eu acho que isso eu, é uma herança que eu tive dessa formação que eu recebi, já que era uma formação mesmo no rumo pra vida mesmo, não de oprimir. (Professora Florbela).
Eu me lembro da minha professora de história que eu formei, eu me formei em história “né” mais eu lembro com a figura de que, ela era aquilo que eu não queria ser, “né” ela era aquela pessoa (?), que entrava e todo mundo se calava, num dava um pio e a gente decorava aqueles questionários imensos de trinta questões, parece que ela tirava dez na prova “né”, mas eu não me esqueci dela “né” embora ela tenha sido autoritária, com esse modelo que a gente chamou de decoreba, mas eu nunca me esqueci dela,... (Professora Rosa).
Um fato novo aparece agora na fala dessas professoras que é a negação do tipo de
professor enciclopedista ou “sabe tudo” tão disseminado pela cultura docente universitária e a
escolar básica. Tal crença coloca uma carga muito pesada nas costas de um ser humano que
possui uma limitação de memorização e impede até a concretização de um ensino interacional
e focalizado no desenvolvimento intelectual discente, contrário às práticas de exposição
magistral conteudista defendidas geralmente pelos atuais profissionais da docência brasileira.
E estes professores dos tempos da escola básica se constituiram num “núcleo de
controle identitário” no sentido de ou nunca fazer ou pensar daquela maneira daquele(a)
professor (a), além de servirem como modelos para os futuros professores a serem formados
pela Universidade e pela experiência real do magistério e marcarem a escolha no magistério e
da disciplina a ser escolhida. Certas posturas e práticas reprovadas e até odiadas ou aquelas
posturas e práticas louváveis eram consideradas como referência no intuito de prosseguir na
construção de uma identidade para si e de preferência, fazendo quase sempre as alterações
cabíveis advindas da própria relação indissociável: subjetividade, formação e experiência no
exercício da profissão. Entretanto esse processo de ressignificação de marcações identitárias
constante se dá também com o relacionamento dos futuros docentes entre os professores do
ensino superior, os tipos ideais defendidos pela teorização educacional, os socialmente aceitos
pelas políticas educacionais e os que constituem a cultura docente – os colegas de profissão.
Da mesma forma que podem motivar na escolha do magistério, os professores podem
afastar os alunos do futuro profissional docente:
Porque você vê que eles não vão pra aula motivados, que eles chegam à sala de aula, extremamente estressado “né”, que eles estão ali, como tinha professores que diziam que estavam alia, diziam claramente que estavam ali só pelo salário que não tinha emoção nenhuma em está ali, animo nenhum, motivação nenhuma pra está ali, era única e exclusivamente pra cumprir a carga horária deles e ter o salário no final do mês. E a gente sente isso “né” na maneira de expor, a gente sente na
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maneira como alguns professores expõe com mais emoção com mais vontade de dá aula e outros não “né”, a gente sabe da dificuldade, mas tem professor que ele se desempenha melhor, ele se doa mais e outros ele simplesmente já lavou as mãos como se diz “né”, ta ali mesmo só pra cumprir o papel, a carga horária dele, sem nenhum papel de professor, na carga horária. (Professor Florbela).
Bem, a minha escola que era no interior, [...], lá não tinha, poucos professores que tinha lá formados mesmo na área e... Os professores muito deles “né”, eu via que, tipo assim eles não davam aula, química, por exemplo, eu passei um ano, aliás, três anos com, vendo um livro do primeiro ano, livro do primeiro ano de química o cara pegou e dividiu pra dois anos, ele não deu química não, a parte geral da química, segundo e terceiro inglês também, a gente viu muito pouco o inglês e só aproveitei mais por que na época eu comprei uns livros novos, por que o governo não oferecia livros didáticos então eu comprei livros e estudava em casa “né”, foi assim que eu me sobressai “né” dessa forma.(Professor Dido).
Foi os professores que eram diferentes, eu achava as aulas imensamente tediosas, cansativas, arrastadas, quando tinha um professor que fazia uma diferença “né”, isso marca, a gente lembra do professor (Professor Rosa)
Como também suas práticas podem marcam profundamente a personalidade de seus
alunos:
Eu tinha professores maus, ruins, não no segundo grau, no primeiro, eu tive professores ruins. Pouca preparação. Na época costumava bater, costumava humilhar o aluno, é esse o professor ruim [risos].issoé para mim ser ruim. Se, se usava o método de humilhação, lembro casos, por exemplo, quem são os melhores da turma e quem são os piores, e entre os piores da turma eram sorteados pra ver quem votava, porque o professor tinha que colocar seis deficientes e publicar o nome dos seis deficientes, uma metodologia bastante cruel, né, havia sete deficientes, pois os alunos votava, fulano, fulano, fulano, indicava como deficiente.[...] havia dez deficientes pois os alunos escolhiam os três que seriam salvos todas situações humilhantes para os alunos né.[...], ficava humilhado por resto da sua vida, complexado[risos], o que mais tu quer.[...] era uma luta,era uma luta macho quem era o melhor. (Professor Prometeu)
De acordo com o Professor Prometeu as marcas dessa metodologia humilhante foi
superada com a própria vida, “ela vai te ensinando a perdoar aquilo, no segundo grau já tive
professores, realmente bons né”. Talvez a ressignificação desta marca e que também
concorreu pra estruturação de sua identidade veio com um professor do segundo grau:
Bom professor, muito exigente, mas muito humano (grifo do entrevistador) que sabia transmitir seus enormes conhecimentos, me marcou muito positivamente, [...] tinha muitos conhecimentos pra sua área, e sendo muito exigente era também muito próximo dos jovens, e já é uma pessoa maior, idosa, já, mas é muita experiência bem próxima da juventude, então pra mim era uma pessoa realizada enquanto [...] enquanto professor.
Esse fato foi tão marcante que algumas atitudes e características de sua identidade
docente são justificadas da seguinte maneira:
Acho que marcou muito na minha infância, pelo aspecto de ser humilhado, não aceito ser humilhado, não aceito a mentira e inclusive marca minha personalidade, é uma fraqueza de minha personalidade. Não pretendo humilhar ninguém de forma incontrolada já ocorreu comigo aqui na escola, é entre vinte minutos pra tocar o intervalo, um aluno xingando-me saiu da sala, dois minutos voltou e [...] o que está fazendo aqui, já lhe avisei vá para direção, e mandou-me para o inferno, para o inferno vá
150
você, já esperado também você e palavrão, desabafo né, [...] aí chegou à sala da diretoria, a diretora com toda vergonha, me chamou atenção de forma muito educada e compreensiva, me chamou atenção, aí ficou. Não devia ter acontecido devia ter me controlado, mas o inconsciente reage [risos] entendeu? (Professor Prometeu).
Esse episódio talvez seja um exemplo dos inúmeros conflitos que ocorrem na escola
pública haja vista o conjunto de problemas psicossociais e econômicos que os alunos e
professores vivenciam e as políticas educacionais fazem “vista grossa’. Mas é óbvio, as
políticas educacionais defendem atualmente a polivalência, autocapacitação e o equilíbrio
emocional docente como atributos irrevogáveis de um ser docente, como também atributos a
serem ensinados aos alunos a fim de concentrar na vida destes sujeitos toda a
responsabilidade sobre suas reais condições de existência. Assim professor que ganha mal e
cujos alunos são indisciplinados, acabam sendo culpados por não controlarem suas salas e não
procurarem fazer cursos para aumentarem seus rendimentos.
Da mesma forma alunos que não se interessam pelos estudos e terminam o ensino
médio e não conseguem entrar na massa de assalariados, também são culpados pois lhe é
ofertado uma mísera quantia de vagas nas Universidades e ele não passa por pura
incompetência dificultando assim a busca por melhores empregos. Quantos alunos são
violentos, indisciplinados por motivos de problemáticas psicológicas que sofrem? Quantos
professores sofrem tensão, depressão e outros problemas psicológicos por não conseguirem
atingir as metas educacionais e por serem culpados por toda a derrota do processo ensino-
aprendizagem? Será que a formação universitária prepara professores para serem psicólogos
ou psicanalistas de seus alunos e paralelamente psicanalisam seus professores em formação?
Não está na hora de defender a presença do psicólogo educacional na escola como
profissional permanente e necessário ao sucesso do ensino? Talvez respondendo essas e
outras perguntas relacionadas a essa temática poderemos ter uma melhor compreensão das
motivações que levam alunos a serem altamente violentos e desinteressados com a
aprendizagem e entender um pouco mais a vida docente.
5.2.3- MARCAS DA FORMAÇÃO ACADÊMICA
À Universidade geralmente cabe a função de preparar os futuros profissionais para as
diversas esferas do trabalho na cultura. Nesta preparação espera-se que o profissional conclua
sua faculdade ‘capaz’ de exercer com autoridade as funções correlatas a sua profissão e
possua os saberes necessários na investidura dos cargos específicos.
Do professor exige-se o “domínio” dos conhecimentos específicos da área que vai
atuar como também os conhecimentos relacionados à maneira de atuação na sua profissão - os
151
pedagógicos. É na interação dos formandos com os saberes específicos e a forma que estes
saberes são trabalhados e discutidos – o fazer docente dos professores universitários – é que a
identidade profissional começa a ganhar uma estrutura baseada fundamentalmente nas
marcações advindas da escolarização básica. Também aqui a escolha de modelos docentes é
buscada tanto nas teorizações quanto nas observações diretas em sala de aula. Em suma, os
professores universitários estão constantemente sendo testados pela subjetividade dos
acadêmicos a fim de se tornarem representações aceitas e louváveis ou repudiadas do ser e
fazer docente.
De acordo com os entrevistados, a Universidade – no caso a UVA – como também seu
currículo, profissionais e práticas engendradas possuem algumas “falhas” no sentido de
satisfazer as expectativas e necessidades do educando a caminho do magistério das escolas
públicas brasileiras. Somente dois profissionais não concluíram suas licenciaturas na UVA:
Professora Florbela e Prometeu. Os entrevistados destacam a atuação de seus professores
como determinante nas suas preferências metodológicas e didáticas tanto no sentido de
exaltação como de rejeição: “Então era a forma dele falar com a gente era uma forma muito
diferente também “né”, ele era uma pessoa muito educada e ele falava muito baixo e não precisava
ficar gritando, nem precisava, ele não tinha a preocupação de mostrar que ele sabia [...] ”(Professora
Rosa).
Já tive também outra, outra benção de ter professores que sempre exaltaram mais a questão da leitura, da interpretação e pouco exploraram a questão da gramática “né” de, de supervalorizar a gramática normativa como algo ‘né’, assim que ah é o mais importante pro aluno, pouco pouco gente trabalhou, o que eu sei de gramática foi estudando sozinha em casa pegava a gramática e estudava, então a maioria dos professores, eles tava mais voltados pra leitura, pra interpretação “né”, todas as disciplinas, até as disciplinas que era pra ser de português um, dois, que era pra ser mais estudo gramatical, eles não levavam pra esse lado, então foi assim determinante isso, por que eu passei a valorizar muito mais do que eu já valorizava ainda, principalmente como aluno o texto “né”, do texto e você chegar aquilo que você quer, ao conteúdo que você quer, e também tive muitas disciplinas de literatura, que explora muito a sensibilidade, pra trabalhar em sala de aula, o aluno, é como conseguir entre aspas controlar a turma “né’, através do respeito a eles, respeitando “né”, dando as oportunidades a eles de se expressar de, de falarem “né”. Então isso ai foi, foi assim marcante, foi maravilhoso. Por que se eu tivesse tido aquela rigidez na faculdade, aquela, toda aquela metodologia de estudo gramatical, de chegar na sala e já ter que jogar o conteúdo, aquela preocupação demais conteudista “né”, talvez a minha pratica pedagógica fosse muito assim também, talvez eu fosse uma coisa muito, muito mais arbitraria “né”pra situação que a gente vive hoje, o aluno ele e, não e precisa já ta, somente dessa coisa do conteúdo, por que sabe que é todo um conteúdo que a gente tem que trabalhar, Por que se eu tivesse recebido essa informação, dessa maneira, de muito conteúdo rígido de dar muito valor, digamos a disciplina em sala talvez , talvez eu fosse, talvez uma, uma professora, a, amedronta os alunos, a rígida, “né” e eu não enveredei por esse caminho, até pela formação que eu recebi, ainda bem (Professora Florbela).
Eu senti, tive essa dificuldade em algumas disciplinas que eu fiz na faculdade, que professores jogam conteúdos, capítulos e num faz exemplo, não resolve exemplos com os alunos, porque se você tem um exemplo ali e você vai resolver o problema, você tendo a maneira que foi resolvido um fica mais fácil
152
ver e resolver os outros, são as dificuldades que eu senti em algumas disciplinas do curso da [...] 18.(Professora Coralina).
E a ressignificação vem logo em seguida: “Eu acho que quando as pessoas sabem, não
precisa se preocupar em mostrar que sabem mesmo não, aí ele não se preocupava não, ele
pensava lá e começava a discutir e pronto, quem quiser, aí o pessoal participava, né”.
Minha formação acadêmica, eu tive poucas influências, poucos professores que me ajudaram a desenvolver, me enviar a habilidade de magistério, por que, não sei, não sei se por que, que comigo, não sei se por muitos alunos na sala, mas eu só recordo desse professor de latim mesmo, que eu estava na UECE, e depois quando eu cheguei aqui na UVA, tive algumas influencias? Tive, mas como? Em situações que o professor simplesmente soltava na mão e a gente tinha que resolver, era um seminário, era uma apresentação, curso, por que no curso [...]19 a gente da muito curso pra comunidade, o curso [...] aqui da UVA ta constantemente promovendo cursos pra os alunos das, das escolas públicas, ou então “praqueles” mesmo que nem estão estudando mais que estão dispostos a fazer um curso ai, os cursos pra comunidade são muito comum [...], simplesmente ele, ele dizia todos os professores que promoveram o curso foi assim. Bom esse é um semestre de curso, vai ter o curso, quando vocês terminarem a programação, todo o calendário, toda a agenda ai me passem, por favor, e os nomes, e só. Mas professor mesmo não, por que nem um deles chegou pra conversar ou pra expor algum, alguma característica necessária ou importante, isso ai eu confesso que realmente não teve não. (Professor Elizabeth).
No caso desta professora, é interessante frisar como tal marca das práticas curriculares foi
ressignificada:
Aliás, talvez não seja mesmo pra ter, ás vezes a gente tem que aprender mesmo é encarando a situação, por que talvez se eles ensinassem a gente iria querer obedecer só aquilo que foi ensinado e o dom que a gente tem talvez até ficasse um pouco esquecido, eu já cheguei ate a pensar talvez vendo o lado positivo da coisa, “né” talvez seja isso, mas no meu tempo assim de formação acadêmica, o que mais me ajudou foi estar à frente deste curso “né” que se eu não me engano foram quatro, “né”...
Dito de outra forma os professores servem de referencial na construção da identidade
profissional e outros de parâmetros para as ações que não se vinculam à mesma. O contrário
não interiorizado e não identificável é de extrema importância para a confirmação ou
cristalização dos elementos de preferência subjetiva construtores da identidade docente.
Foi também uma professora marcante de literatura, trabalhando a leitura associada ao cinema, é a junção de todas as artes, música, a valorização da arte, da arte contemporânea é, ligada a literatura contemporânea, então teve essas coisa que marcaram muito também, acho que, teve professor que também tava lá só pra encher a barra, tinha também, não vou negar “né”, assim como tinha no ensino médio, tinha na também na faculdade, mas isso ai num... é aquela coisa, foi uma coisa que passou, num marcou de forma negativa pra mim, eu fui, eu fui indiferente a eles, professores que iam lá jogavam lá um seminário, dividiam a turma, e acho que foi tão pouco número de professores assim, a maioria além dessa que eu já citei, teve outros professores também muito empenhados também na questão de cultura, cultura brasileira, a professora muito empenhada também nisso, então foi significativo,, com esses professores foi significativo.(Professora Florbela).
18 Supressão do nome do curso para manter o anonimato da professora.
19 Supressão do nome do curso para o anonimato da professora.
153
Formação acadêmica muito séria, aí o que marcava era a exigência do curso e não importava já tanto o professor porque o professor direcionava a leitura e exigia a leitura, né, respondia questões e dava material para ler, não marcava tanto porque o trabalho era feito pessoal (Professor Prometeu).
Os professores... Tem o Zeca, foi ele deu a disciplina pra mim no inicio da faculdade, era um professor que ensinava, dava a matéria não era muito de ta cobrando prova e pro aluno estudar, ele num cobrava por que eu acho que, hoje, claro que tem prova na escola mais existe vários fatores que, no dia da prova você não ta bem consegue tirar uma nota ruim “né”, como tanto é que hoje na escola não é só cobrada a nota a participação dos alunos e pra eles isso contava muito. Tem muitos, na UVA a, a maneira de dar aula, às vezes não agrada como hoje a gente ver em escola também no ensino médio, só a metade dos professores que sabe o conteúdo, mas não sabe passar pro aluno... (Professora Coralina)
Pedagogicamente falando é, porque as aulas na faculdade eram tradicionais o professor vai pro quadro dá a matéria dele e ponto. A não ser nas disciplinas pedagógica “né” que ai sim vem toda uma parte “né” pedagógica, mas eu gostei muito do professor, pronto, de cálculo um, professor de cálculo um dava muito material (?) e ela tinha didática, pedagogicamente aquela professora é boa, aquela ali sim, acho que se enquadra, acho que ela, ela é uma professora ideal sendo esse ponto, que é esse ponto que se quer “né”, ele da o conteúdo direitinho e todo mundo entendia, ela tinha didática sim ela sabia é passar o conteúdo “né” e de uma forma que todo mundo entendia, então eu considero da faculdade é, seria ela, professora [...] de cálculo um, de cálculo dois alias, de cálculo dois, seria um modelo ideal (Professor Dido).
O?20 é muito bom professor, mas ele é totalmente neutro, ele não opina em nada no colegial, ele não opina o negócio dele é dá as aulas dele, e dá bem, mas não tem posição política no colegial, o pessoal pinta e borda com ele, e ele fica calado, eu acho que isso faz com que ele não seja modelo, acho que o professor além dele ser bom professor, ele tem que ter uma postura política, uma posição diante das coisas, e ele não tem, ele não tem, se ele tem é discretíssima, por que eu nunca percebi, o ? já teve essa posição, tanto que foi embora por que quis sair no murro como o coordenador do curso ‘né” foi, mas foi embora não pode ficar “né”,(Professora Rosa).
É a professora, [...]21 e eu me senti, eu me, eu me senti influenciada, ela me marcou mais por que, assim não foi exatamente uma situação pedagógica ou uma situação do magistério que ela propôs e que ela orientou que ela cuidou, mas era assim a própria atitude dela, por que ela era uma professora que ela colocava recadinhos nas avaliações que a gente fazia, uma simples atividade, um simples relatório que era dado a ela, ela devolvia não tinha um que não tinha o recado dela, ela aconselhava em questão de estrutura em questão da estética em questão da letra, em questão de, de palavras bem colocadas, tudo isso ela orientava em formas de recadinhos, eu ficava até pensando, poxa ela trabalha tanto “né” dedicava, uma professora tão dedicada, tem tantas disciplinas, e tem tempo, só pode passar a noite em claro, não vinha uma atividade da mão dela sem um recadinho, as vezes era um “recadão”, um recadinho carinhosamente, “né” mas as vezes era um“ recadão” “né” um lado da folha era um, a atividade e o verso era o recado da professora... As atividades que eram feitas pelos alunos, as produções que os alunos faziam, quando o aluno não fazia, ela sabia, fulano e fulano não entregou, quando é que pode me entregar? Podia ser as vezes o semestre inteiro ela tava disposta a receber e mesmo aquele trabalho que depois ficava por ultimo, ainda assim ela colocava, aquela atenção dela, se expressando por meio de, de, da redação dela (Professora Elizabeth).
E a entrevistada expõe como essa prática foi ressignificada e que também favorece a
reflexão de como todo e qualquer ato docente é ressignificado pelos alunos-universitários ou
20
O ponto de interrogação remete à supressão dos nomes a pedido da entrevistada.
21 Supressão do nome do curso para o anonimato do professor
154
escolares marcando a identidade dos mesmos das mais diferentes formas, visto que tais
marcas vão se relacionar com outras marcas já existentes em sua subjetividade.
Percebi um zelo, uma preocupação, eu percebi uma questão de, de despertar mesmo pra, pra realidade por que muitas vezes as pessoas não gostam de ouvir. Então eu penso que ela teve até esse pensamento ai, por que a pessoa quando não gosta de ouvir, você pode procurar falar o melhor pra ela, ela não vai entender que, que é um bom conselho, ela não vai entender que você ta querendo o bem dela, so vai querer, a pessoa quando não gosta de ouvir ela só entende que é imposição, ela só entende que é querer ser mais, ela só entende que é você querer ser autoritário, então eu penso que escrever foi a maneira mais fácil que ela encontrou de se aproximar dos alunos, os alunos amavam nem que fosse um recado detestável, podia ser o pior recado, olha foi uma atividade que não foi nada legal, ó você precisa melhorar isso, melhorar nisso e várias coisas precisando melhorar, a pessoa ficava feliz, que viu que teve a visão daquela professora.
A ressignificação identitária é neste sentido resultado da interação e conflito entre as
representações da profissão recebidas durante a formação acadêmica.
Assim na escola a gente acha que antigamente o professor, era o professor que ia dava o conteúdo dele saia da sala e pronto, hoje não o professor tem uma ligação com o lado pessoal do aluno, é chama muito a atenção da gente [...]. Converso, o dialogo que eu sempre tenho apesar de ensinar[...]22 numa sala de aula eu paro, tem dia que eu paro na aula quatro, cinco minutos e começo a conversar a relação deles com os colegas, com a família, eu gosto sempre de conversar, de falar pra eles que o importante não é eles terminarem o ensino médio, tentar o vestibular mais seguir realmente o que eles querem, que realmente eles se identifiquem e não parar, terminar o ensino médio e parar não, tem que continuar estudando(Professora Coralina).
Eu defino como professor que, eu me preocupo com o conteúdo que tem que ser dado certo, com o aprendizado dos alunos, eu acho que tem que dá matéria, não chegar na sala e ficar embromando, enrolando, também com a parte de controle de turma “né”, acho que eu consigo controlar a turma direitinho, controlo “né”,[...] eu brinco com os meninos “né”, eu não chego diretamente criticando ah, caso alguém cometa algum ato assim eu levo na esportiva na brincadeira não é, mas é pra ver se ele entende né e, que mais, e didática eu acho que tenho uma didática não é, você passar um conteúdo da forma que eles entendam “né”, eles absorvem a matéria realmente a ser dada, só no casos daqueles que não queiram, que isso ai existe em toda sala, em toda turma vai existir, mas considero nível didaticamente bom e também na parte de ter domínio de sala e tudo mais (Professor Dido).
Eu acho que quem construiu minha identidade base nesse daí que tu, que pode ser chamado de certa forma de modelo “né’ no, no dá aula com prazer, procuro dar aula com prazer, nem sempre é possível, nem sempre, mais eu procuro, procuro dar aula com prazer e... (Professsora Rosa).
Uma grande reclamação foi posta por alguns entrevistados: o relacionamento das
disciplinas cursadas com a realidade do ensino público brasileiro é quase inexistente, ou seja,
currículo que não prepara o professor pedagogicamente no ensino real da disciplina numa
escola pública. A maioria das práticas curriculares das Licenciaturas não está estreitamente
vinculada à sala de aula da escola básica e sim, fundamentalmente na continuação do 22
Supressão do nome da disciplina
155
educando na vida acadêmica- realização de cursos de pós-graduação ou ligadas à iniciação
docente no ensino superior.
Já tá mudando algumas alguma disciplina, mais as disciplinas que a gente faz, em quatro anos e meio de faculdade, você, no meu caso eu posso dizer que eu aproveitei umas quatro, cinco disciplinas pra sala de aula, por que o restante que a gente ver lá num é de acordo com o que a gente vai passar em sala de aula pro ensino médio e fundamental “né”. Aqui, quando, eu trabalhava no presídio, quando eu sai de lá, eu fiquei pensando porque devido o curso que não era totalmente ligado, não era ligado com a sala de aula, então a pessoa que faz, aqui, no inicio quando eu comecei a faculdade, o curso não era, liga o professor com a sala de aula, há umas disciplinas que não dava, eu já tava até desistindo de ser professora, quando eu saí do outro trabalho eu tava pensando em procurar outro trabalho que não fosse nessa área, só que eu parei, eu vi que eu tava terminando a faculdade e que pra mim não dava, mas que saia mais difícil eu tentar outra formação começar, ai foi quando surgiu a vaga, eu vim trabalhar aqui (Professora Coralina).
E formação no inicio da faculdade ela é direcionada pra você prosseguir na vida acadêmica, quando eu cheguei lá, a grade que eu vi no curso de [...]23 na época, não sei hoje porque já foi alterada já, mas o que você vê lá prepara você para uma especialização, para um mestrado, os conteúdo não, você não vê conteúdo que realmente prepare você para da aula no ensino no básico “né”, você vê matéria de ensino superior, de grau acima, então se você quer dar aula no ensino médio você tem que pegar o livro e realmente estudar, agora o que vai servir de lá da faculdade é a parte pedagógica “né”, você vê, estagio era pouco só tinha duas cadeiras de estagio “né”, então o problema era esse tinha pouco estagio “né” e a questão de a, o conteúdo que você vê ele não esta direcionado pro ensino médio “né”, realmente é pra ensino superior, mas se você vai dar aula no ensino médio, você tem que pegar o livro e estudar .[...] porque a faculdade não passou isso, ela passa um negocio bem acima “né” a confiança é que você tenha aquela base, porque se não tiver a base, acho que ela não ta muito voltada para o ensino básico não, ta voltada mais para ensino superior, agora a parte de estagio é um grande ponto positivo e a parte de pedagogia “né”, parte pedagógica “né” (Professor Dido).
Para a professora Carolina foi o ambiente escolar e alguns segmentos – colegas e
alunos motivados que a fizeram continuar na profissão e até aprender a gostar de ser
professora, algo que a faculdade apenas a distanciou pela falta de “ligação com a sala de
aula”. Já o professor Dido teve que individualmente fazer a transposição didática dos
conteúdos científicos para sua atuação pedagógica longe de uma orientação acadêmica. Ele
também destaca um ponto positivo em sua formação – a presença dos estágios
supervisionados – que, embora sendo poucos, é de extrema importância na formação de um
professor.
Mas, além da UVA, possuir certas “falhas”, ela consegue ofertar excelentes modelos
docentes para a construção identitária de seus alunos e marcam positivamente determinados
formandos:
E positiva seria a parte prática de laboratório que a gente via “né”, muito bom porque nesse projeto aqui toda semana tinha que dar aula prática de laboratório, então é um ponto positivo da faculdade
23 Supressão do nome do curso para o anonimato do professor.
156
que consegui extrair dela, as aulas práticas “né” e as aulas de pedagogia, a parte pedagógica, estrutura principalmente do ensino médio, isso ai é interessante, positivo (Professor Dido).
A marcação docente em seus alunos se efetiva de várias formas: pelas metodologias
adotadas, as didáticas engendradas, as formas de interação e tratamento discente fomentadas e
também pelos discursos proferidos tanto a respeito dos conhecimentos científicos quanto com
relação à própria profissão. Segue um exemplo:
No primeiro semestre, quando o professor de latim, dá primeira aula de latim, uma aula que já veio acontecer no meio do semestre já quase por terminar, parecia que nem ia mais ter essa disciplina de latim, quando o professor resolveu aparecer e ao aparecer ele foi e falou “né” que ele ia dar aula pra quem já era professor, por que quem pretendia se formar em [...]24 já era pra pretender ser professor, então aquilo foi despertando em mim, e ele usou palavras muito fortes, muito fortes, disse que era uma profissão, que não tinha como você trabalhar, se não fosse por vocação, que todas as outras profissões você poderia tentar e poderia até dar certo, mas a única profissão que só da certo pela vocação era o magistério,... (Professora Elizabeth).
Foi tão impactante tal discurso que ele foi ressignificado da seguinte maneira pela
professora: “Eu achei aquilo muito lindo, eu comecei a me lembrar da infância, me lembrei da
professora de inglês, do colegial, então foi realmente a gota d’água foi o professor de latim
que veio da ênfase a questão do magistério, no primeiro semestre da faculdade de [...]25”.
Outra marca da formação que também é impressa nas escolas básicas e até pela família
é o desencorajamento através dos discursos dos professores universitários. Muito mais sério
na Universidade, pois são cursos de Licenciatura – formar professores – que sentimentos
identitários podemos esperar nos recém-formados que experimentam tais situações:
Assim da minha formação acadêmica também eu sinto algo negativo, professores sempre colocavam de um modo geral, de um modo geral os professores sempre colocavam que não era uma boa profissão, não era uma boa profissão exatamente por você não ter o retorno do seu trabalho. Quem vai pra escola particular eles diziam não vai ser feliz porque os pais vão manipular, quem vai pra escola pública menos feliz vai ser porque daí os próprios alunos é quem vão manipular. Então esse aspecto é tremendamente negativo tremendamente eu acho que só realmente passando por um curso ..., um professor ser capaz de fazer essas afirmações eu acho que só chega ao magistério realmente quem traz em si a vocação, porque a pessoa passa quatro, cinco anos da faculdade ouvindo noventa por cento dos professores falando: Porque vocês resolveram fazer esse curso? Porque vocês resolveram ingressar no magistério? Porque se eles pudessem, eles estão lá por uma questão assim, de estar num nível já do ensino superior, então se eles pudessem, a minha professora [...]26, por exemplo, ela sempre me aconselhou a ser [...], muito atenciosa, uma professora fantástica, mas nunca me aconselhou a lecionar, me aconselhou a ser [...], me aconselhou a fazer parte de uma revista, com um artigo sobre culturas, novas culturas. Então era sempre assim os professores não, não tinha o, a
24 Supressão do nome do curso.
25 Supressão do nome do curso.
26 Supressão de nomes para preservar o anonimato da professora e da função que foi sugerida à entrevistada em
contraposição ao magistério.
157
orientação devida não nos incentivavam, não colocavam como ponto positivo de estar na sala de aula. (Professor Elizabeth).
Nesta citação há dois aspectos que merecem destaque. O primeiro está relacionado ao
mecanismo de defesa engendrado por Elizabeth para evitar a fragmentação de sua identidade
ou uma crise de valores e sentidos identitários – o discurso da vocação. Este discurso talvez
seja o mais importante mecanismo utilizado pelos professores para não desistir do magistério
e fortalecer a sua identidade profissional. O segundo aspecto é a elucidação mesmo que
superficial do fogo cruzado da docência pública e particular que está vinculada ao ambiente
social de desvalorização cultural e financeira impedindo a emergência da autonomia e
reconhecimento docentes.
E o discurso da vocação, paixão pelo ato de educar, continua sendo utilizado pela
subjetividade da professora Elizabeth para se defender dos discursos desencorajadores:
Os professores na época de estagio pediam pra gente ir sem relógio, sem nenhum acessório que pudesse chamar atenção, por que os alunos eram terríveis, eram marginalizados, antes que a gente conhecesse, e mesmo assim eu, eu queria ir, queria estar lá, [...] vocês vão estagiar na escola tal, e tal e tal, só não é bom que vocês andem só, não é bom que vocês escolham o turno da noite, não é bom que vocês cobrem uma atividade se perceberem o desânimo dos alunos ... Palavras como essas palavras como essas, ou de, eu até te confesso, que muitos desistiram, muitos desistiram...
Entretanto o sentimento vocacional estava amparado por um elemento considerado
mais forte e de certa forma mais objetivo e assegurado contra fraquezas. A busca incessante
pelo enfrentamento dos desafios frente aos obstáculos postos pela vida cotidiana não só foi
considerado como o núcleo identitário desta professora, mas também importante na
ressignificação das marcas da formação acadêmica:
Então é elemento que realmente contribuiu com a minha identidade foram os desafios, é a questão de tudo estar contra e eu achar que dá certo, e eu achar que eu dava pra coisa, professores universitários em plena formação acadêmica ao invés de construir em mim pensamentos de pensamentos positivo, pensamentos de sucesso, não, eram, eram palavras desertivas, eram palavras pequenas, palavras realmente assustadoras, eu afirmo, mas, no entanto pra mim, eu queria era, eu queria era ver se eu não dava conta, eu queria era estar lá. Então eu considero esses, esses elementos ai eu considero, os desafios, os desafios que são mais precisamente os argumentos contra, os argumentos contra que até, que apareceram no percurso acadêmico, na cabeça, “né” e enquanto eu desejava ser uma professora quando era criança, enquanto eu curtia a tia Lidú, tava tudo muito bem, mas eu penso que na formação acadêmica, que era pra ter melhorado o dobro, toda aquela imagem de professor que eu tinha quase cai, quase cai, mas não caiu por quê? Por que eu aceitei o desafio,... Eu confesso que foram os contras que eu tive “né” os desafios que eu tive que encarar.
Neste momento em que a grande maioria dos professores se apresenta desestimulada
pelas atuais condições de trabalho engendradas nos ambientes neoliberais de educação torna-
se preocupante a existência de um desencorajamento desta espécie. Até mesmo os ideais de
educação neoconservadora ficam comprometidos pelo possível abandono ou indiferença dos
158
professores quanto às finalidades estabelecidas do ensino em questão- preparação para o
mercado capitalista. Assim percebe-se a enorme necessidade de investigar com maior atenção
as marcas da formação acadêmica a fim de saber até que ponto a identidade dos professores
recém-formados está sendo fortalecida para entrar no campo de batalhas da educação
brasileira. Que marcas estão sendo impressas na subjetividade dos formandos através das
práticas curriculares? A formação universitária ajuda na construção do docente
emancipatório? Que tipo de currículo é engendrado pela Universidade, no caso a UVA e que
tipo de professor ele objetiva e que tipo está sendo formado? A formação acadêmica encoraja
ao mesmo tempo em que prepara os alunos na investidura do cargo?
Essas e outras questões são importantes para se pensar também algumas características
marcantes dos profissionais da educação na atual conjuntura: alienação, despolitização,
tradicionalismo, apatia e conformismo. Talvez essas marcações da docência além de serem
impressas pelas políticas educacionais podem ter sido fomentadas pelas políticas e práticas
curriculares do ensino superior. Com os resultados da investigação proposta tanto poderemos
confirmar ou não tal hipótese como refletir sobre formas de na formação possiblitarmos um
referencial identitário de fomento ao aparecimento de tais características contrárias a estas
tendo sempre uma conscientização crítica sobre o contexto sociocultural mais amplo de
marcação identitária que limita tal aparecimento.
5.2.4 - MARCAS DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS OU DAS AGÊNCIAS
CONTRATANTES
É unânime a insatisfação, a raiva e a tristeza sentida pelo (a)s professore(a)s
entrevistado(a)s a respeito das formas de organização e gerenciamento da educação
sobralense ou melhor nacional. “O Estado é o lugar onde pago minhas contas e derramo
minhas lágrimas. Ele é a minha cruz e minha redenção” (Professora Santos/Diário de campo).
São inúmeras as marcas que imprimem sentimentos de expropriação, fragmentação
identitária, desistência, descaso e indiferença em relação à razão de existência do ser docente
– a educação dos discentes.
As políticas neoliberais e neoconservadoras de gestão mercantil além de objetivar a
formação de um exército de trabalhadores-reserva, preocupam-se também com a criação de
uma sociedade de consumidores. Os valores da empresa e da produção fabril invadem e se
expandem vertiginosamente nos espaços educacionais – a Universidade não está isenta. Os
professores universitários constantemente estão sendo cobrados para publicarem artigos,
aprovarem projetos de pesquisa junto às agências reguladoras, ou seja, aumentarem a
159
“produção” da instituição.
Na escola pública, a “produção” é sinônima de aumento dos índices nos rendimentos
internos dos alunos como também a aprovação dos mesmos nas inúmeras avaliações externas
(SPAECE, SAEB, ENEM, APACREDE) e nas competições cognitivas (Olimpíadas de
Português, Matemática, Química e outras). E o mais arriscado para uma educação de
“qualidade”, é que uma maior produtividade- maior índice nos resultados destas avaliações- é
também considerada sinônima de aprendizagem significativa ou educação e não como
realmente poderia ser – mais instrução. Mas não é espantoso, pois a educação brasileira
continua tradicional, positivista de viés instrucional. A prova disso é a forma de ingresso nas
universidades públicas e até particulares- o vestibular, que recentemente o governo federal
pretende unificá-lo ou pelo menos direcioná-lo com a criação do novo ENEM, que
infelizmente não perdeu o caráter enciclopédico e cumulativo, mesmo com as defesas de seus
idealizadores de conseguir explorar melhor a capacidade de raciocínio lógico, discursivo e
crítico dos alunos.
E os sujeitos criticam numa reunião de área: “se a educação é produção, vamos ser
Grendene27” (Professor Sócrates); “a tendência é piorar, tira-se a responsabilidade do estado e
coloca no professor, política neoliberal” (Professora Afrodite); “se reivindicar qualquer coisa
vai pra rua” (Professor Mercúrio); “se não tiver acompanhamento, pode ser a melhor escola, o
aluno não progride, eles, o governo, querem são números, resultados. A realidade é esta”
(Professora Afrodite); “no Brasil é o mercado que cria a escola e não o contrário” (Professora
Pérsia).
Na busca por melhores índices nos rendimentos – prova de que a “educação”, ou
melhor, a instrução neoliberal está obtendo resultados – uma das primeiras preocupações do
sistema educacional são com as reprovações, seguidas com os baixos índices e por último
com a evasão e desistência escolar. Talvez este seja o pior aspecto porque fora do controle
educacional os alunos ficam entregues a qualquer outra regulação ou experiência:
delinqüência, assaltos, homicídios, vadiagem, drogas, ou seja, à desordem do capitalismo
oficial. Desta forma, entregues ao capitalismo não-oficial – empresas e grupos que lucram
com a produção e o consumo de objetos “escusos” (drogas ilícitas, objetos pirateados e armas)
– o capitalismo “normal” e lícito não lucra e acaba frustrado com tais concorrentes.
27
Empresa nascida em Farroupilha no interior de Rio Grande do Sul que possui sete unidades no total de 13 na cidade de Sobral. Maior fabricante de calçados do país chegou na cidade em 1993 na gestão do atual governador do Ceará. Ela emprega cerca de dez mil funcionários em Sobral (dados referentes a 2009). Fonte: www.grendene.com.br. Acesso: 15/07/2010.
160
Para evitar as reprovações e queda dos índices que são certamente algumas das causas
que levam à evasão e desistência escolar, os sistemas educacionais adotaram uma política
denominada pelos teóricos e que já fazem parte há algum tempo do vocabulário dos
professores que é a aprovação automática. Tentando uma definição, é um conjunto de regras,
normas e políticas que impede o aumento dos índices de reprovação ou até objetiva-se anulá-
los. Dentre os mecanismos que constituem esta política estão os oficiais: as inúmeras fases da
recuperação tanto paralela – após cada bimestre ou período do ano letivo – quanto às finais; e
as dependências – o aluno, pelo menos na escola estudada, pode ficar reprovado em até três
disciplinas, passar de ano e ficar entregando trabalhos aos professores responsáveis pelas
disciplinas- tal prática já recorrente nas escolas particulares.
Os não-oficiais ou meramente locais são aqueles “conselhos-exigência” ou “pedidos-
cobrança” para que os professores tenham cuidado com o número de reprovações em suas
disciplinas, pois podem baixar os índices da escola. Nesta vertente, estão práticas de, por
exemplo, aumentar a nota do aluno ou acrescentar pontos automaticamente mesmo em alunos
não merecedores. Quando isso não acontece e o professor não obedece às metas de aprovação
da escola tanto ele é chamado a se explicar para a gestão da escola quanto é mal visto pelos
próprios colegas que mesmo acreditando na existência da aprovação automática ainda cobram
de tais professores melhores índices para que futuramente possa vir alguma gratificação a
mais no salário sofrido. E tal cobrança coletiva é resultado das marcações das políticas
neoliberais – produção de trabalhadores altamente competitivos, individualizados,
egocêntricos, apolíticos e consumidores dos padrões capitalistas de existência.
Mas essa atitude contraditória – crítica da política adotada e cobrança dos colegas que
não cumprem tal política – é própria de trabalhadores estrategistas que tentam sobreviver nos
espaços de trabalho competitivo e defendem nos seus discursos certos princípios tanto para
agradar “gregos e troianos” quanto para perderem totalmente certos sentimentos identitários
escolhidos para si mesmos. Os entrevistados (a) relatam como essa marca se acomoda na sua
identidade: “ Quando eles saem sem saber de nada a culpa é nossa. Paralela, levar a prova,
passar o aluno a força, esse sistema tá muito ruim. Eu não gosto de passar aluno que não sabe
não” (Professora Electra/diário de campo); “A gente já chega a ser mal visto porque a gente já
falou sobre o aluno levar a prova pra casa e apostila Primeiro Aprender. A gente já está
cansado de reclamar, não adianta. Essa prova global não representa a aprendizagem dos
alunos” (Professor Caim/diário de campo).
Todo mundo passa, tem isso não. E eu já comecei a ver que passa mesmo. Eu reprovei 60% que não merecia passar e a coordenação disse o que houve?O que aconteceu, não pode ser, e eu disse, não
161
estudaram, e ela disse, mas não pode e aí iniciei passando vários trabalhos pra aumentar a nota (Professor Prometeu/diário de campo).
E pontos negativos eu aprendi que tem essa questão, eu acho que o estado, ele quer que o aluno com, acredite ou não chegue o final do ano ele “teja” reprovado, seja aprovado, tanto é que existem vários, tem a recuperação, depois tem outra recuperação que é pra não deixar esses alunos reprovados, eu acho que deveria reprovar realmente, por que tem alunos que a gente nota que não tava capacitado pra passar pra uma serie a frente (Professora Coralina).
Quantos alunos ficaram reprovados, não passa, vamos fazer um conselho vamos aprovar, sabe, então eu acho que enquanto tiver essa preocupação com essa quantidade,com o número, essa coisa do número, acredita no número, lá é preocupante, enquanto não tiver uma preocupação maior com a qualidade, enquanto, uma avaliação, uma sistemática de, de aula, de avaliação, de recuperação, de tudo que prime pela qualidade, que ative o aluno, realmente o aprendizado dele aí sim, enquanto não houver a preocupação com essa qualidade, eu acho que num, num a gente vai ficar nadando mesmo no seco, e a gente ta vendo muito hoje isso, a preocupação com a quantidade.(Professor Florbela).
É a questão da recuperação, eu acho... Uma coisa assim absurda quando ela, ela estão em excesso, por que muitas recupera, recupera as pessoas “né”, você acaba recuperando notas “né”, é uma forma, a gente ver professor ai fazendo, ah faz um trabalho ai qualquer ao copia lá, faz uma copia lá do trabalho pronto tirou dez, se ele não tinha conseguido tirar nem dois na primeira prova e ai todo bimestre ele tem essa chance de fazer essa recuperação e pior chega no final do ano ele ainda tem mais um tempo, tempo ai pra estudar, uma prorrogação do ano letivo “né” já conhecido e essa prorrogação é mais uma “enrolação” ele vai lá fecha umas duas aulinhas, não faz nem prova muitas vezes, faz um trabalho “né” ou se faz uma prova, é a chamada prova pesquisada que é também assim meio duvidosa e ai eu acho que essas coisa ai não são legais acaba marcando a gente negativamente, a gente acaba entrando na onda também, logo, volta e meia a gente ta fazendo a mesma coisa que a gente abomina, por exemplo final do ano recuperação dessa o professor ah esse menino ai já é a terceira chance lá vai mais uma prorrogação pra ele “né” especificamente pra aqueles são tidos como e criados como não quer nada ai o professor já vai pra lá mal, muito mal, ele vai porque ele tem que ir, por obrigação ai chega lá ele vai acabar agindo de uma forma que ele nem queria, que ele muitas vezes abomina e vai acabar agindo da mesma maneira, menino ta aqui, o assunto é esse, pronto, olha amanhã tem a prova, ta aqui, estuda desse jeito aqui, esse questionário “né” até porque ele sabe que no final ainda tem o conselho se ele não passar ali, daquela maneira ele vai acabar passando porque o colégio passou “né”, pelo conselho porque ele tem o direito, então no final o professor ele já ta internalizado que o aluno ele vai passar no final do ano de qualquer jeito, que ele vai ter que passar de um jeito ou de outro, então ele já acaba se sentido meio desmotivado (Professora Florbela).
O Professor Caim compartilha com a opinião da Florbela: “a recuperação não
recupera, muitos são automaticamente azulados” (Diário de campo).
Nesta citação a Florbela chama atenção para as práticas de recuperação engendradas
pelo docente: provas pesquisadas, trabalhos que não passam de cópias de determinado
assunto, às vezes, de sites da internet e as várias atividades que o professor passa a fim de
melhorar a nota do aluno. Enfatiza que as sucessivas práticas de recuperação só recuperam as
notas- aumento dos índices e não recupera o aprendizado. Destaca outro mecanismo legal de
aprovação discente que é utilizado constantemente pelas escolas para atingir as metas: o
conselho escolar. E por último explica como o professor, em sua opinião, ressignifica esta
marca institucional: depois de tentar de tudo para que o aluno aprenda durante todo o ano
162
letivo e a cada 50 dias nos momentos de recuperação paralela e sabendo que muitos realmente
não estão interessados em melhorarem suas notas, para quê perder tempo e se estressar mais
ainda? “Façamos o que a gestão escolar pede, aprovamos”, ou seja, mesmo contra seus
princípios e tanto como forma de sobrevivência no espaço de trabalho quanto como maneira
de se defender de mais aborrecimentos ou chateações, presentificam a identidade que lhe
estão atribuindo.
Uma prática escolar local vem causando inúmeras críticas e desconfortos na cultura
docente da escola estudada. Tal prática concretiza os reais interesses dos sistemas
educacionais públicos – busca não por aprendizagem e sim elevação de índices num
espetáculo de demonstrações. A partir de agosto de 2008 – metodologia importada de uma
escola estadual de Fortaleza – os alunos começaram a levar a prova global para casa a fim de
respondê-la e tirarem boas notas no dia de aplicação das mesmas, pois neste dia eles
respondem a mesma prova. O que é mais vergonhoso é que alguns professores ainda corrigem
esta prova antes dela ser aplicada.
Aquele questionário já marcado, aquelas questões já selecionada, ele vai ter curiosidade, preocupação de estudar algo além daquilo, do que vendo ali, vai não, não vai , ele vai estudar não, ele vai memorizar o que ta ali, e aonde fica a capacidade maior deles de interpretação, de ir além do que ta ali, “né” eu acho que num seria mais uma fábrica de, de decoreba, de robô, vão ta repetindo só aquilo que ta ali, prescrito no papel, seria uma forma prescritiva, eu não gosto, eu não concordo não, mas...(Professora Florbela).
Conforme a professora Pérsia “é uma balela dizer que é uma nova metodologia e sim é
uma forma de melhorar os índices de desempenho, os gráficos, porcentagem de
aprendizagem”, pois o diretor sempre coloca que os resultados destes índices traduzem a
atuação da gestão. Nesta última afirmação descobre-se mais um detalhe: as políticas
educacionais cobram dos gestores- cargos de confiança- e talvez deixem bem claro que os
baixos índices é resultado de uma ineficiente gestão. Os gestores, por sua vez, cobram dos
professores e defendem que se a realidade de não aprendizagem continua é porque os
responsáveis pelo ensino não estão vivenciando “um novo modo de ser, ouvir e sentir os
jovens” – jargão proferido sempre pela gestão quando ocorre a cobrança por melhores índices
e detestado por todos que se pronunciaram durante a observação de campo.
Os mesmos instrumentais – gráficos de rendimentos – que a escola utiliza para medir a
aprendizagem discente estão provando que levar a prova global para casa e até corrigi-la antes
de sua aplicação não aumenta as médias dos alunos. Durante uma sessão de alinhamento,
momento de demonstração dos gráficos, cobrança aos professores e busca por soluções frente
aos resultados – que ocorreu no segundo semestre de 2009 – verificou-se uma crescente
163
derrocada dos índices nos gráficos demonstrados. A conclusão é simples, não funcionou fazer
com que os alunos decorassem as questões da avaliação, pois o problema é mais complexo e
de vertente individual e social. Os alunos são desmotivados e desinteressados e ainda estão
freqüentando uma estrutura escolar fadada ao fracasso. Antiga, enciclopédica, sem gosto,
triste e esquizofrênica. Professores desestimulados, mal pagos e mal preparados relutantes em
transmitir essa “anguzada” que é são os conteúdos disciplinares.
Esta prática de levar a prova atesta o já constatado desinteresse discente, pois muitos
entregam a prova em branco e continuam tirando nota baixa. Não há interesse nem em
“azular” os seus boletins de rendimentos, pois “qualquer um que leva a prova pra casa e se dá
o trabalho de dar uma olhada tira uma nota razoável” (Professora Pérsia/diário de campo).
Mas para que “azular” os boletins se eles estando “avermelhados” serão aprovados de
qualquer forma. Para os professores desta escola é este o pensamento parasita que impede um
maior engajamento dos alunos nos estudos. “Estudando por força, leva a prova não estudam,
trazem respondidas para colar, de que adiantou. Estamos formando jumentos, sairão daqui
aprovados, mas ignorantes, ok, que aprofunda nosso problema, não sei, não sei e o pior
jumentos com título de técnico” (Professor Prometeu).
Outro “calcanhar de Aquiles” vinculado a toda prática docente das escolas do Estado
cearense é a intervenção curricular adotada no ano de 2008 em todas as disciplinas regulares
inicialmente nas primeiras séries do ensino médio e que em 2009 foi ampliado para segundas
séries e há uma pretensão de mais ampliação de acordo com um dos representantes da
SEDUC na formação continuada do dia 15/09/09. Tal projeto que se transformou numa
política curricular foi denominado por seus idealizadores de Primeiro Aprender, nome
altamente sugestivo, mas que é explicado da seguinte maneira: os alunos que ingressam no
ensino médio não sabem ler e nem interpretar textos da língua portuguesa, prova disso são os
vergonhosos resultados nas avaliações externas.
Então foi necessário elaborar apostilas para todas as disciplinas com textos simples a
fim de se trabalhar durante todo o ano letivo, a leitura e a interpretação primeiro, para depois
os alunos conseguirem aprender melhor os conteúdos específicos de cada ciência (grifo
nosso). Sem estas duas competências fica muito difícil se conseguir uma educação de
qualidade. Justificado desta forma as apostilas foram distribuídas em todas as escolas e sua
utilização fiscalizada pelos gestores e pela superintendência – órgão criado também no
mesmo ano e que pretende atuar na supervisão de todo o processo de ensino-aprendizagem
desde a sua organização, gestão e planejamento como também pedagógico e didático.
O Primeiro Aprender estrategicamente nasce de uma realidade comprovada por
164
inúmeros estudos sobre o assunto – o analfabetismo brasileiro. Alunos que terminam a escola
básica sem conseguir se sair bem no tocante à leitura, interpretação e escrita da língua
portuguesa. Entretanto esta deficiência estrondosa do ensino brasileiro tem inúmeras causas
que vão desde a própria estruturação escolar – currículo e pedagogias adotadas – passando
pela formação de professores e afunilando no aluno – desinteresse, falta de motivação e
problemas sociais que enfrentam. Todavia o discurso proferido pelos idealizadores da
intervenção é de que ela “tenta corrigir as falhas do trabalho docente”. Ou seja, novamente a
política de culpabilização do professor ganha novos reforços.
Se a escola e o professor não conseguem efetivar um processo de aprendizagem
plausível e reproduz cegamente a política de aprovação automática cobrada pelas agências
contratantes, como esperar por uma “qualidade” se não se preocupam em acompanhar o
aluno, detectar as deficiências e trabalhar em cima delas e somente aprovar quando o mesmo
adquiriu determinadas aprendizagens. As deficiências aqui são em todos os sentidos não só
cognitivas, pois é humanamente impossível querer que um aluno aprenda esquecendo sempre
dos problemas que ele enfrenta todos os dias. Um dia ele fraqueja e onde está a escola para
apoiá-lo ou o professor? Estão presos nesta busca desenfreada por resultados ou então
interessados- e com razão- nos seus problemas também.
Em suma, a realidade que o Primeiro Aprender quer remediar pode ser evitada de
outra forma que não seja “caçando as bruxas”. A deficiência que este projeto tenta findar
continuará existindo se o sistema educacional não for modificado e a política de aprovação
automática permanecer o “motorista” do trem aprendizagem. O que se percebe facilmente é
que a preocupação dos políticos em relação aos problemas sociais não é resolvê-los por
completo e sim apenas construir paleativos que possam ser automaticamente transfigurados
em “necessárias obras públicas” de grande visibilidade para a população e excelentes degraus
eleitoreiros. Enquanto a educação e outros bens públicos – segurança, saúde, habitação e
criação de empregos – estiverem ou nas mãos da política oportunista ou nos interesses
lucrativos do mercado, não podemos esperar mudanças significativas.
São inúmeras as reclamações do Primeiro Aprender: é um método de exclusão porque
os alunos que anseiam mais conhecimentos são obrigados a estudar as apostilas e assim é um
atraso principalmente para aqueles poucos que pretendem fazer o exame vestibular; as
apostilas são pobres de conteúdos e as atividades de fixação são muito infantis ocasionando
certa resistência discente; não há um aprofundamento cognitivo fundamentalmente nas
disciplinas que envolvem cálculos – Matemática, Física e Química. Segue alguns
depoimentos: “O aluno Davison foi para o colégio Sant’ana dizendo que aqui é muito fraco,
165
que ele não vai sair preparado para o vestibular, pois só vemos o Primeiro Aprender”
(Professor Caim/diário de campo); “se a gente for colocar outras coisas, a gente vai atrasar
muito e a prioridade é o Primeiro Aprender. Ninguém passa no vestibular sabendo só
interpretar textos. Com o Primeiro Aprender os meninos não vão sair preparados para mundo”
(Professora Electra/diário de campo).
As políticas educacionais agora intervém no currículo com esse negócio do primeiro aprender, que agora o governo a SEDUC chegou e disse olha o programa curricular que vocês fizeram o ano todinho, projetaram tudo bonitinho, não serve de nada vocês não sabem dar aula, volta aqui o primeiro aprender, agora vocês vão aprender a dar aula, botem esses meninos pra ler, se eles lerem ta bom a SEDUC pressupõe que os aluno no primeiro ano não sabe ler, aí você para o programa curricular que você fez, ... Aí o primeiro aprender chega e fica discutindo coisas que parece que ta chovendo no molhado a gente não sabe, mas a SEDUC vem intervém dizendo vocês vão dar isso e a gente tem que dar, tem que dar. E aí cadê a autonomia do professor? (Professora Rosa).
E eu acho que não tem nada pior pra formação acadêmica que limitar a um caderno, por outro lado, eu vejo que tem aspectos positivos, como ter material para nossos alunos ter uma base, ao menos, para estudar né, por muitos pobres que sejam nestes aspectos do Primeiro Aprender, por muitos defeitos que tenha, gramaticalmente incluso né, é,uma base para os alunos né, pior seria se não tivesse, se as circunstancias a gente que liga a isso né, difícil nossos alunos comprarem livros didáticos bons né, é difícil como ter apostilas excelentes, já que o governo pode ofertar está bem, de todos os males está bem, não é pra mim o ideal para aprender [...]28, como o mínimo tá bem (Professor Prometeu).
Vale enfatizar a seguinte reflexão. O professor Prometeu leciona uma das seis
disciplinas que não possui livro didático: Sociologia, Filosofia, Inglês, Espanhol, Artes e
Educação Física. Ele enfatiza a positividade do Primeiro Aprender por oferecer um
determinado tipo de material didático a estas disciplinas renegadas que até recentemente eram
constituídas pela História e Geografia. Entretanto se o governo tem recursos para elaborar
apostilas para os 19 mil estudantes cearenses em todas as disciplinas a serem trabalhadas
durante todo o ano letivo porque ele não se interessa na compra de material didático para as
disciplinas renegadas?
Por dois grandes motivos: a prioridade dos governos em todos os níveis são as
consideradas habilidades básicas para o trabalho capitalista servil atual: ler, escrever, contar e
interpretar textos de língua portuguesa; e outro a política de intervenção curricular além de
atender uma deficiência real poderá dar grande visibilidade eleitoreira, algo que a compra de
livros didáticos para disciplinas renegadas não daria, visto que a própria população não
enxergaria desta forma e sim como apenas um dever do Estado e cumprimentos de deveres ou
obrigações reconhecidas não ganham status político. O que ganha é o espetáculo, são as
construções faraônicas – lê-se qualquer obra, medida ou ação governamental que é travestida
28 Supressão do nome da disciplina para manter o anonimato solicitado pelo docente.
166
de novidade, eficácia e necessidade nunca antes feita por alguém, mesmo possuindo o caráter
de paliativo. O mais interessante disso tudo é que nenhuma “obra faraônica” eleitoreira, por
mais que nasça de uma necessidade real, pretende suprir de vez tal necessidade. Sempre o
suprimento é parcial. Quando é total, é justamente porque ela mesma criará outro problema
social, ou seja, um cenário para a construção-espetáculo de uma nova “obra faraônica” tão
necessária ou até mais do que a que lhe causou anteriormente.
Na formação continuada do dia 07/10/09, o palestrante respondeu rigidamente às
reclamações de alguns professores quanto ao aprofundamento dos assuntos trabalhados nas
apostilas: “as explicações filosóficas, sociológicas ou coisa parecida ficam pra outro
momento, pois o objetivo da SEDUC é a leitura e interpretação dos textos”. Afirmação
correta, porque não é o objetivo do projeto discutir os conteúdos e muito menos dar suporte
didático para isso. Entretanto como os professores devem utilizar tais apostilas e só podem
voltar aos seus planos de aula e matérias específicos depois de finalizada cada lição estipulada
para cada semana, não resta tempo para este aprofundamento. Os conteúdos, segundo os
entrevistados, são apenas anunciados na maioria das vezes. Assim, a escola dependerá dos
alunos que realmente se interessam e já possuem um conjunto de saberes apreendidos para
elevar os seus índices como também aprovar gente nos vestibulares- outro objetivo
perseguido agora pelas escolas estaduais que contraditoriamente é dificultado pelo Primeiro
Aprender. Prova concreta disso é a colocação de um painel enorme na fachada da 6ª CREDE
com a quantidade dos alunos aprovados pelas escolas de Sobral no início do ano de 2010.
Mas como as deficiências não podem ser extintas e sim transformadas em plataformas
políticas, o Estado cria outro programa – Pré-Vest das escolas públicas – justamente para
preparar os alunos, que deveriam ter sido preparados no ensino médio- para conseguirem ser
aprovados nos vestibulares estaduais e nacionais. Na verdade, as políticas de exclusão-
natureza do neoliberalismo- são mascaradas por medidas de falsa inclusão criadas com a
intenção de paleativos de promoção política.
Nesta política de avaliação adotada pelo Estado cearense, o que mais se destaca são a
passividade, apatia e inconformismo velado dos professores:
Uma política que sempre me marcou desde o princípio, desde quando eu ingressei “em questa” vida é a política da avaliação a, a verdade é que eu não consigo nem tecer muito comentário porque, é algo não que me marca mas que me toca porque são questões que eu não aceito, são questões que eu não sei como não aceitar, são questões que eu vejo muitos colegas não aceitando e nada resolvendo e nada buscando e tudo permanecendo na mesma.[...] é na verdade o que de mais me inquieta no magistério é a política da avaliação da instituição pública, é razão pela qual eu sinceramente não gostaria de fazer maiores comentários[...]eu gostaria de acrescentar que eu não acho condizente, não acho eficiente, não acho, muitas vezes até nem são necessárias,...(Professora Elizabeth).
167
Eu não concordo com esse negocio de aprovação automática jamais, negocio de aprovação automática, de facilitar muito pro aluno não, porque se não ele não vai levar a serio nunca a educação “certo”, acho que um dos pontos negativos da escola é isso ai, [...] você não pense que o mundo lá fora vai ser igual a escola não, que lá o negocio é serio, ou você estuda e faz as coisas certas e direito da primeira vez ou você não tem outra chance, acho que a escola dá muita chance pros alunos, enquanto ela se preocupar só com a quantidade e não se preocupar com a qualidade mesmo, vai ter esses problemas ai, a gente tá jogando o pessoal no mercado de trabalho despreparado, vão achar que chega lá eles vão ter várias chances de entrevista, vão, os chefes deles vai ser complacentes como são aqueles professores e diretores da escola, acho que deveria cobrar mais do aluno em relação a qualidade mesmo “certo” (Professor Dido).
E a revolta ou mobilização embrionária é logo sufocada pelo sentimento de impotência
perante as agências contratantes: “nessa profissão nos ensina a sentir as coisas e não a falar.
Se eu falar o meu dinheiro não pode estar lá” (Professor Caim/diário de campo); a gente vai se
vender por pouca merda! O próprio sistema nos castra, eu fico triste quando os colegas
reproduzem isso aí “(Professor Sócrates/diário de campo). É interessante como a indignação
fica somente no plano do discurso, pois estes professores – que são temporários – reclamam
que quem deveria iniciar as mobilizações e cobrar melhorias seriam os professores efetivos
que segundo eles estão mais preocupados em se tornar coordenador, diretor, chefe de alguma
coisa do que mudar a realidade da educação.
A falta de interesse e seriedade pelos estudos e aprendizagem dos alunos- marca
discente que frequentemente desmotiva o professor, tem como uma das causas a política da
avaliação adotada pelas escolas públicas indubitavelmente. Muitos professores relatam que os
alunos “chacotam” nas suas aulas principalmente quando aqueles cobram mais atenção e
interesse dos alunos utilizando o tradicional reforço negativo de que tal assunto vai “cair na
prova”. Isso não funciona mais, porque os alunos respondem em uníssono que “para que
estudar se no final todo mundo passa, só somos reprovados se a gente faltar muito”. O mais
preocupante é que de acordo com o depoimento da professora Pérsia, os alunos do ensino
fundamental II – quinta a nona série – já interiorizaram este discurso conforme os
depoimentos de um grupo de professores numa palestra que ela foi assistir recentemente.
Além dos resquícios latentes de ensino tradicional na fala do professor Dido – rigidez
no ensino através da aplicação de avaliações reprovativas para medir os que sabem ou não dos
conteúdos disciplinares – ele destaca um fato curioso: como num sistema educacional
precisamente ligado ao modo de vida mercantil e consumista não se preocupa com a
qualidade do ensino das competências e habilidades dos futuros consumidores e
trabalhadores, atendo apenas com a questão de aumento de índices que supostamente acredita-
se significar qualidade na aprendizagem? A resposta pode ser um pouco fácil: primeiro não se
almeja qualidade, boa educação ou exímia instrução, pois o objetivo não é o todo e sim alguns
168
– os “interessados” ou mais “capazes” – que são premiados de alguma forma pelo professor,
escola ou pelas avaliações externas.
Ao restante caberá o status apenas de cadastro de reserva trabalhista– que também é o
lugar dos “interessados”, pois a inclusão social e consumista não está assegurada para todos
eles. Os excluídos também serão alvos dos aparelhos ideológicos do capitalismo que
fomentarão no decorrer dos anos, longe ou não da escola, um sentimento de culpa e de
autoaprendizagem a ser conseguida por outras instâncias educacionais – cursos supletivos,
cursinhos pré-vestibulares e cursos técnicos profissionalizantes particulares – a fim de que os
mesmos se incluam na sociedade de consumidores e se a “sorte” bater na porta, na sociedade
dos assalariados. Ou seja, sendo assim, a sociedade neoliberal já possui um mercado
educacional para aqueles que não se interessarem pelos estudos durante a escola regular
básica. Ainda, a grande massa dos alunos excluídos- desinteressados ou resistentes ao sistema
educacional vigente ou simplesmente “não-aprendentes” – poderá ser alvo de outro mercado
capitalista “não-oficial” concorrente do “normal” que são os “grupos” sociais que vendem o
crime, a delinqüência, o vício e a destruição como elementos de satisfação para as
necessidades sociais dos excluídos.
Aqui, ao contrário do sistema oficial mercantil de exploração da espécie humana, o
princípio educativo é de total inclusão, quanto mais gente no tráfico, no massa de
consumidores de drogas e nas quadrilhas dos mais variados tipos, melhor. Nesta esfera
também capital – os seus donos também lucram e muito – não há muitos requisitos ou
competências para ser incluído, basta vontade e às vezes um pouco de sentimento de
inferioridade e revolta latente. Mesmo indivíduos com índole boa, isso não é problema, pois o
mercado capitalista “não-oficial” possui um excelente mecanismo educativo pautado na
segurança, proximidade e satisfação dos relativos “egos reprimidos” ou negligenciados pela
atual conjuntura oficial e “normal” do capitalismo.
Tal situação se constitui numa contradição, mas que pode ser explicada. O mercado
quer apenas “alguns” e quer que estes possuam diversas competências – trabalhador e cidadão
polivalentes, mesmo antes do aluno investir no ensino superior. Então como fica a questão da
qualidade? Como formar futuros trabalhadores nas competências desejadas pelo sistema
capital se adotamos uma política de aprovação automática? Duas soluções: joga-se a culpa na
capacidade da escola e especificamente no professor de realmente engendrar um ensino de
péssima qualidade e espera-se que os profissionais do ensino entrem a fundo na competição
pelo aumento dos índices escolares fomentando desta forma uma melhor “aprendizagem”
justamente daqueles que são considerados bons alunos – alvo de poucas empresas. E é
169
precisamente a falta de capacitação e polivalência a justificativa encontrada pelo mercado
para não incluir no rol dos admitidos estes alunos. Expressão bem sucedida atualmente e
interiorizada pelos professores desavisados da cínica e mascarada pretensão de admissão
maciça trabalhista.
Está na hora da escola e a docência se conscientizarem de que as políticas
educacionais de mercado vigentes não conseguem obter sucesso no enfrentamento dos
problemas da educação pública porque simplesmente estes problemas são intimamente
ligados à própria organização cultural ou porque é muito arriscado uma grande maioria dos
jovens aprendendo, professores satisfeitos e bem preparados. A conseqüência da melhoria
educacional seria a busca por uma mudança estrutural da sociedade. Ou então, uma cobrança
pela massificação dos direitos humanos e sociais e dentre eles dos postos de trabalho, que o
mercado vem extinguindo vertiginosamente e transmitindo a ideologia de que não há gente
qualificada para os novos postos criados. Mas como? Novamente uma estratégia discursiva e
ideológica, pois como exigir tal qualificação se nem a organização educacional pública se
reestruturou ainda para atender essas demandas. Assim, o próprio mercado satisfaz essas
demandas por capacitação, visto que uma reestruturação da escola pública é dificultada
justamente pelos “donos do mercado” que estão imersos em todos os setores da sociedade.
Ora, novos postos de trabalho são criados justamente para alimentar o próprio mercado
sequioso por lucro e eternamente atormentado por crises de satisfação desta sede.
A superintendência, já citada acima, é um órgão fiscal que imprime muitas marcas na
identidade docente. Sua ação vinculada ao apoio administrativo e não pedagógico, conforme
um dos integrantes da mesma atua de forma “militar” pelo menos na escola estudada. O
responsável pela EEEP Dom Walfrido, conforme os professores, freqüenta a escola apenas
buscando “coisas erradas”, ou melhor, fora dos padrões estabelecidos pelo órgão: alunos
dentro de sala de aula; professores reunidos nos planejamentos de área elaborando seus planos
e preenchendo diários e as demais fichas; núcleo gestor presente e fazendo alguma coisa;
representantes da biblioteca fazendo alguma tarefa. Em suma, ele não pode ver ninguém sem
fazer nada – ler um livro ou um artigo e estar no computador que não seja preenchendo os
planos de aula já são considerados suspeitos. Tudo deve ser padronizado e qualquer aspecto
que fuja aos modelos já é razão suficiente para que o núcleo gestor receba advertências que
nem sempre são bem vindas:
Ela chega dando ordens: coloca fulano no lugar de fulano, desocupa o proinfantil e faz o planejamento lá. Sou a favor do acompanhamento, mas ela deve conhecer a realidade da escola, a dinâmica interna, o que está acontecendo, as dificuldades... A Seduc manda ao mesmo tempo dez
170
projetos pra efetivar, como realizá-los sem interferir no cotidiano regular de sala de aula?Não elogia não, nós vamos mandar três alunos dos nove do Ceará no projeto Jovens Embaixadores. Eu sei que eu disse o que eu queria dizer, não sei se falei demais (Representante da gestão/diário de campo).
Até a gestão escolar que, muitas vezes é serva das normas e diretrizes das políticas
educacionais, chateia-se com certas atitudes e práticas realizadas pelos órgãos do Estado.
Agora os depoimentos dos professores: “porque ela não chega e pergunta se pode ajudar,
como? Por que ela não cria vínculo com os professores? (Professor Sérvio/diário de campo);
“quem foi que disse que temos que ter medo dela. Porque temos que ter medo de
coordenador, diretor...?(Professor Caim/diário de campo); “Ela entra e só bota a cabeça, será
que ela agüentaria ficar duas semanas ensinando Química aqui? A nossa super [apelido que
vem da palavra superintendente e um ser humano superdotado] diz que tem que garantir o
tempo pedagógico” (Professor Sócrates/diário de campo); “Uma vez ela chegou na portaria e
perguntou a secretária se o diretor estava no colégio, responderam que não, aí ela colocou no
relatório que o diretor não estava, mas ele estava, aí ele foi bater lá no Crede tomar
satisfações. Ela não cumprimenta a gente só pastora e generaliza” (Professora Monalisa/diário
de campo). Algumas reivindicações não serão atendidas tão cedo, visto que a função da
superintendência é realmente um apoio administrativo da Secretaria de Educação, fiscalizar se
tudo está andando nos padrões. Manter vínculo talvez não seja interessante para esses agentes
que objetivam imparcialidade para melhor cobrar e avaliar. Ajudar e se conscientizar dos
problemas da escola seriam ações altamente frutíferas, mas para isso devemos esperar a
criação de outro órgão pela Seduc. Vale ressaltar que essa confusão entre apoio
administrativo, fiscal e apoio pedagógico se deve ao fato de que nas formações continuadas
ministradas por seus agentes, a superintendência abre espaço para que os professores
socializem suas experiências inovadoras que muitas vezes são interessantes e servem de
reflexão aos professores presentes. Entretanto o objetivo é padronização, as socializações
recebem feição de imposições e quase sempre os presentes não acordam para tal estratégia. E
a maioria dos professores que socializam tais experiências tem objetivos de ascensão
funcional frente à própria superintendência.
Duas estratégias discursivas e de caráter ideológico – massageador da consciência –
foram citados pelos sujeitos da pesquisa. A primeira é o discurso inicial utilizado no momento
da entrevista dos candidatos a fazerem parte da equipe de professores da escola estadual de
educação profissional. Aderência ao projeto da escola – “você está aqui porque quer, ninguém
lhe obrigou” (Representante da gestão/diário de campo). Esse discurso vai ser repetido e
usado sempre que houver resistência ou revolta dos docentes com relação às normas
171
estabelecidas: “se você não está contente com a escola, procure outra escola” (Representante
da gestão/diário de campo). A segunda, proferida como reforço da primeira, e que justifica a
extrema burocratização, a profusão de projetos e avaliações externas e o também exigido
sentimento vocacionado (dedicação super-exclusiva ou aproveitamento do tempo de lazer e de
descanso com os assuntos da profissão – lê-se da escola). É constituída pelos seguintes
enunciados: “devemos lutar por uma educação de qualidade para todos” e “a escola é
dinâmica”.
A marca do neoliberalismo mais visceral apontada por todos é a culpabilização direta
dos professores pela falta de aprendizagem, desinteresse e insucessso escolar dos discentes.
Numa das reuniões de planejamento algumas reclamações foram proferidas: “quando a escola
não vai bem o primeiro a ser punido é o professor” (Professora Monalisa/diário de campo);
“já se tem o culpado” (Professora Pérsia); “no seminário que eu fui sobre avaliação, os
gestores, todos, a maioria, diziam que a educação não funciona porque a culpa é do
professor”(Professora Santos); “o aluno é sempre que precisa de ajuda”(Professora Monalisa);
“quem incentiva o professor?”(Professora Pérsia). Quando menos se espera, surge uma
possível resposta para esta estratégia política de culpar sempre o docente: “discurso
estabelecido para não investir nas políticas públicas” (Professora Monalisa); ora “é mais fácil
trocar um professor do que investir na escola” (Professor Bill).
Por mais que a escola pública seja “oca” sem vida e alegria, continue arcaica e
desinteressante, se tivermos bons professores essa realidade perde sentido. O aluno só vai pra
aula então por causa do professor. Justifica-se deste modo a cobrança excessiva ao professor e
as reformas estruturais da educação são consideradas apenas um ornamento, uma questão de
estética.
Esta marca também é resquício de outra marca do neoliberalismo a desvalorização, a
flexibilização e terceirização do trabalho humano. No caso dos professores, a conseqüência
desta “bimarcação”, culpa e desvalorização excessiva, é o movimento de “gestão terceirizada”
da sala de aula, ou seja, todos – especialistas, gestores, cidadãos – sabem melhor ensinar do
que os professores. Estes são apenas executores das normas e conselhos destes “sábios e
verdadeiros gestores”. Bem, se o trabalho docente é alvo de críticas constantes e não é
confiável, é necessário que ele seja constantemente avaliado, cobrado, substituído ou até
excluído. Se a docência é vista com desconfiança e insegurança pelas políticas educacionais
via escola e sociedade convencida, os culpados diretos do “fosso” educacional são os
professores, porque não seguiram as normas e diretrizes estabelecidas, não foram bem
preparados ou não querem realmente presentificar as suas reais funções de professor e estão
172
na profissão apenas por sobrevivência – “ganhar no mole”.
Vale ressaltar que a opinião destes atores não está criticada por sua validade, um
porteiro, o secretário e fundamentalmente os especialistas educacionais podem ter inúmeras
contribuições a fazer para a educação brasileira. O foco da crítica é a anulação docente e de
sua prática pedagógica exercida pela gestão. O ideal é que houvesse um diálogo entre esses
atores e o professor. Mas nesta ambientação é praticamente impossível, pois o docente por ter
menos autonomia, confiança e segurança no que faz e nos seus saberes dado aos constantes
ataques, sua atitude é mais de defesa, tentando ainda manter os elementos identitários que o
constituem e desta forma permanecendo cegos e surdos para algumas contribuições cruciais
na efetivação de um processo educativo melhor.
Decerto duas reflexões advêm deste movimento. A primeira é a expropriação que o
professor vem sofrendo, uma das causas da crise identitária que se arrasta na docência
brasileira. O docente vem perdendo a cada dia certas características de seu ofício – autonomia
pedagógica, intelectual e de gestão. A segunda é que essa “bimarcação” põe em xeque a
própria formação acadêmica. Se o professor não sabe mais ensinar então a culpa é do seu
próprio desinteresse ou sua formação não foi suficiente. Mas como as políticas educacionais
neoliberais não querem nem investir nas reestruturações universitárias e muito menos romper
com este movimento “bimarcador” tão favorável ao “desapoderamento” da docência enquanto
categoria importante no processo de mudança social, uma nova estratégia se constitui: a
autoformação ou autoaprendizagem.
É absolutamente comum nos círculos universitários – reféns do neoliberalismo – a
máxima: toda formação é autodidata. Não que tal pensamento não tenha um fundo de
verdade. Ninguém forma ninguém. Toda formação é dependente direta da subjetividade de
cada um, das experiências vivenciadas e dos valores e aprendizagens apreendidos e
descartados. Mas tal máxima desresponsabiliza a Universidade como também a escola e os
professores destas instituições quanto à intervenção pedagógica no sentido de orientação,
acompanhamento e socialização de saberes constituídos historicamente e reconhecidos pela
cultura. Dito de outra maneira, não é somente necessário uma política forte de investimento e
mudança na organização da formação de professores, pois este espaço é apenas o início deste
processo de constituição do ser professor que é fortemente dependente dos seus esforços de
aprender sozinho ou de aprender na experiência – nova estratégia que as formações de
professores utilizam quando são acusadas de não conseguirem vincular os conhecimentos
teóricos com os práticos. É legítimo considerar que a educação e a sociedade são dinâmicas e,
portanto mutáveis. Mas será que é impossível a construção de pelo menos um arcabouço de
173
conhecimentos práticos a fim de constituírem com referências na construção da identidade
profissional docente?
Outra marca que corresponde aos professores das disciplinas de Inglês, Espanhol,
Sociologia, Filosofia e Educação Física, Artes é da falta de material didático no ensino médio,
nem livro didático e muito pouco material de pesquisa nas bibliotecas escolares para os
alunos. Assim muitos professores necessitam copiar resumos ou esquemas sobre os assuntos,
pois os alunos da escola básica geralmente não têm o hábito de anotarem trechos da fala do
professor no momento das exposições. O professor às vezes passa a aula inteira copiando,
pois ele já gasta, numa aula de cinqüenta minutos, quinze a vinte com freqüência e disciplina
na sala. E o mais grave é que “tem professor que acha o máximo copiar a aula inteira,...
quando terminam, na próxima aula eu explico, é uma aula inteira, e essa aula é interessante? É
não, pra mim não é, e eu não gostaria” (Professora Rosa). A ressignificação desta marca é
sentida de várias maneiras: “no final a gente descobre é que a gente não tem chance. Filosofia
e Sociologia a gente tem que aceitar tudo” (Professora Pérsia/diário de campo).
Juntamente com os professores de História, Geografia, Biologia e Química, estes
professores reclamam uma preocupação excessiva com as disciplinas de Língua Portuguesa e
Matemática. Nenhuma atividade escolar deve parar as aulas destas disciplinas tais como
palestras, seminários, aplicação de avaliações externas. Todas as outras aulas podem ser
interrompidas. É nos conselhos de classe – reunião entre professores e núcleo gestor – para
definir quantos dos reprovados serão aprovados ou ficar de dependência, estas disciplinas são
claramente privilegiadas. O aluno pode ter sido reprovado em todas as outras disciplinas,
como nos conta a Professora Rosa, mas se ele tiver obtido média em Português e Matemática,
os gestores “pedem-exigindo” que repensem o histórico do aluno ou coisa parecida. Em suma,
ele não fica reprovado em hipótese alguma, só se o mesmo tiver faltado exageradamente.
5.2.4.1 - ALINHAMENTO
O ano letivo das escolas estaduais cearenses está dividido em quatro períodos de
cinqüenta dias totalizando assim os duzentos dias exigidos pelas leis específicas. No final de
cada período ocorre um momento de reunião entre todos os segmentos da escola ou
educadores. Na escola profissional, todos os funcionários são considerados educadores. Um
exemplo: os porteiros, agentes administrativos e o pessoal dos serviços gerais são chamados
de educadores não-docentes.
O alinhamento ocorre também na semana pedagógica – início do ano letivo – sempre
com o propósito de discutir os resultados de aprendizagem – os números e seus gráficos – e
174
reforçar a padronização das metas e objetivos de todos os funcionários da escola: “educação
de qualidade para todos os alunos”. “Se um professor tem uma meta diferente da meta geral
da escola, a escola nunca vai atingir a sua” (representante do núcleo gestor). O termo é
originário da própria filosofia de gestão das escolas profissionalizantes – TESE – e que se
constitui numa das práticas cotidianas de qualquer escola que adote tal filosofia. Na situação
de pesquisa foi possível observar a alinhamento do núcleo gestor com cada grupo de turmas-
1º, 2º ou 3º anos de informática e enfermagem – e o mesmo que ocorreu com os professores
executado por área nos dias referentes ao planejamento específico – na terça, linguagens e
códigos e suas tecnologias, na quarta, ciências humanas e na quinta, ciências da natureza. O
alinhamento com os educadores não-docentes não foi assistido por não ser interessante ao
foco da pesquisa em questão.
É precisamente neste espaço que se efetiva o processo de marcação identitária que
joga o professor no fogo cruzado. Aqui certas marcas da profissão – desvalorização social e
financeira, falta de tempo, burocratização – se juntam às marcas discentes – desinteresse,
indisciplina e descaso – e às marcas institucionais – excessiva burocratização, culpabilização
e expropriação docente, aprovação automática (inúmeras recuperações paralelas e levar a
prova para casa) e Primeiro Aprender. Inicialmente alguns apontamentos sobre o alinhamento
com os alunos de cada série ocorridos no auditório da escola.
Depois que os representantes mostram os gráficos de rendimentos por disciplina, os
alunos são interpelados a se justificarem. Ao tentarem se desculpar por causa das baixas notas
geralmente foi apontado como o grande culpado o professor pelos índices. Frases são
lançadas no auditório: “é porque o professor não sabe ensinar”; “a aula é muito chata”, “tá
faltando é aula dinâmica”; “dar o conteúdo de forma diferente”; “a rotina está estressante todo
dia é a mesma coisa”; “tá tendo aula até demais”; “estamos assistindo filme que não tem nada
a ver” (a exibição dos filmes acontecia no ano de 2009 quando os professores regulares eram
chamados a substituir a carência das disciplinas profissionalizantes que não havia ainda
professor para assumi-las).
A escola funciona de sete da manhã às cinco da tarde com três intervalos pontuais: o
primeiro às nove e meia; o segundo às três da tarde – ambos de quinze minutos – e o terceiro
às onze e meia para o almoço, no caso duas horas. O restante do tempo é dedicado ao sistema
tradicional de ensino, professor e aluno dentro de salas numerosas – quarenta e dois alunos
em média – cuja metodologia docente se resume a exposição oral do conteúdo e depois
aplicação de exercícios de fixação do mesmo – modelo jesuítico. Não há muita “dinâmica”. A
chatice se agrava nos momentos que antecedem a aplicação das avaliações externas e de
175
acompanhamento, pois os professores adotam o método puro expositivo e cobram ainda mais
a resolução de exercícios. Assim ficar o dia todo numa escola organizada desta maneira é
realmente estressante principalmente para adolescentes “ávidos” por movimentos e novas
experimentações engendrados ou não por outras realidades: internet, grupos e turmas de
jovens de finalidades diversas.
A rotina só é quebrada quando eles saem de sala ou para assistirem um filme – que de
muito ser utilizado causou certo repúdio – ou para praticarem as aulas de educação física que
são realizadas no pátio da escola, pois a mesma ainda não possui quadra esportiva. Pautados
num currículo científico e positivista, a educação pública e privada continuará desinteressante.
Talvez uma “válvula de escape” para essa antipatia pela escola vinda dos alunos seria uma
reforma curricular: implementar as manifestações artísticas e esportivas nas práticas
curriculares- aulas de dança, teatro, música, pintura, desenho- como também amostras e
festivas de divulgação das expressões dos alunos como forma de avaliação e integração das
referidas disciplinas. Já que há tempo, pois o aluno passa, neste caso, nove horas sentado
numa carteira desconfortável e num ambiente quente, visto que os ventiladores perdem feio
para o clima quente e árido da cidade sobralense.
As reclamações por aulas dinâmicas e por novas formas de ensinar os conteúdos
constituem vertiginosamente as realidades que podem explicar o extraordinário desinteresse
discente. A confirmação de tal hipótese somente poderá ser conseguida quando
majestosamente os professores refletirem sobre suas práticas e, mesmo “queimados” pelo
fogo cruzado, engendrarem mudanças significativas no trato com o conhecimento, com o
aluno e consigo mesmo.
Entretanto, alguns alunos da platéia defendem que a culpa não é só da escola ou do
professor: “a gente precisa de dedicação”; “tem aluno dormindo nas aulas”; “tem aluno que
passa a aula toda conversando e vive pedindo pra sair”; “tem uns que não estudam na hora do
estudo”; “tem cara que entrega a prova em branco”. Em face destas denúncias o núcleo gestor
intervém: “pode ser a melhor aula do mundo se você não quer você não aprende. Ninguém
quer assumir responsabilidade”. E aproveitando o momento o membro da gestão inicia a
discussão sobre as atitudes de vandalismo ocorridas recentemente. Carteiras e armários
riscados e quebrados. Portas das salas, dos banheiros e dos armários arrombadas. E uma aluna
enfatiza algo importante: “não adianta você falar se não houver punição, as coisas vão
continuar do mesmo jeito”. O gestor pede então a ajuda dos alunos na denúncia dos vândalos
e as risadas continuam, porque estavam sendo expostas imagens dos objetos depredados.
Terminada a seção com os alunos, o núcleo gestor faz quase a mesma prática com os
176
professores por área de ensino. Inicia-se da mesma forma com a demonstração dos gráficos
por disciplina e a cada uma o professor correspondente é interpelado: “o que houve”; “vamos
melhorar isso gente”. Os discursos dos gestores sobre a finalidade da escola, da educação e do
magistério são cruciais para se entender a presentificação almejada da filosofia adotada pela
escola e também para perceber as raízes de determinados movimentos de ressignificação das
subjetividades docentes.
A TESE defende literalmente uma atitude de liderança de todos os professores do
ensino a fim de se conseguir efetivar o lema das escolas profissionalizantes do Estado: “um
novo modo de ver, sentir e cuidar da juventude”. O líder tem que ser capaz de resolver os
problemas de sua sala, fazer as coisas acontecerem, “servir para gerar resultados” e ter
consciência “das suas limitações para trabalhar em equipe” e “da importância da comunicação
para estabelecer parceria com confiança” (LIMA, 2007, p.8). Por isso que uma das
reclamações do núcleo gestor foi:
Tem determinados problemas que o professor tem a condição de resolvê-lo. Cadê nossa postura de liderança em sala se não conseguimos resolver o problema do sumiço do chinelo do menino em sala. Vocês devem se apropriar das suas capacidades de liderança. Não podemos perder as características do líder (representante do núcleo gestor/diário de campo).
Dois professores concordam: “os professores perderam o controle de seus alunos, tem
escola que o Ronda não sai da porta” (Professora Electra/diário de campo); “tem coisas que
não precisa ir pra coordenação”(Professor Caim/diário de campo). E outros três ficam
cabisbaixos e com expressão de não concordância.
Há um reconhecimento das limitações do líder então. Todavia no discurso do
representante da gestão, as emoções nunca podem ser o empecilho para a atuação do mesmo.
Ou seja, essa limitação deve ser superada sempre, pois “nós somos mais capazes de controlar
nossas emoções do que os alunos” e é “nos momentos que estamos tristes, nossa liderança
está baixa. Alguns conflitos que houve em sala de aula foi porque deixamos aflorar nossas
emoções e isto atrapalha” (membro da gestão/diário de campo).
É consensualmente aceito que o professor já seja um indivíduo adulto, preparado para
lidar com muitas subjetividades, principalmente as oscilações e inquietações dos jovens, pelo
menos. É isso uma das atitudes que se espera que os professores tenham conseguido durante
sua formação acadêmica e desenvolvido na sua vida profissional. Porém, afirmar um total
controle emocional frente às atitudes de desrespeito, ameaça, desmoralização, agressão
psicológica e até física que se tem observado nas salas de aula brasileiras, é estrategicamente
tentar construir um modelo docente – um “super-professor’ – calcado na ideologia do
177
magistério vocacionado, santo e sacerdote tão acreditado e disseminado pela cultura docente e
acadêmica. Assim sendo este “super-docente” não deve se abalar, pois o seu desequilíbrio
emocional é a causa dos conflitos em sala de aula. Em primeira instância, um professor que se
entrega a qualquer provocação dos alunos não conseguirá dar sua aula, mas esperar total
imparcialidade e insensibilidade frente a atitudes extremas é tentar desumanizar o professor e
em última instância apoderar exageradamente os alunos.
A gestão escolar defende que o líder é a base da organização e por isso não pode se
descontrolar e nunca reagir aos desconfortos da sala de aula e da profissão, visto que a
docência é um chamado divino e os alunos são inconseqüentes não sabem o que fazem. Desta
maneira, é muito problemático vincular a imparcialidade, controle emocional e
insensibilidade à própria identidade humana do professor. A liderança que é almejada e
cobrada se parece, pelo exagero do autocontrole, como elemento identificador de outro ser- a
máquina. Ainda não foi possível o capitalismo transformar todos os trabalhadores em
máquinas, mas a insensibilidade, desumanização e alienação já fazem parte da vitória deste
sistema em muitos habitantes deste planeta.
A disseminação da sinonímia de liderança ao total controle emocional é condição para
efetivação da aprendizagem – que não é de todo irracional – juntamente com outra marca
institucional já citada – a desvalorização social e financeira da docência – está autorizando o
desrespeito, a indisciplina, a expropriação e a violência física e psicológica da sociedade e
principalmente dos alunos em relação ao professor. Portanto, este ser humano perde sua
autoridade e autonomia na efetivação do processo educativo e consequentemente na
concretização da sua identidade de preferência.
Destarte essas realidades promovem justamente uma situação paradoxal: a perda de
confiança e de autoridade docente, elementos tão necessários para a construção da liderança
que é defendido energicamente pela atual filosofia da gestão escolar. Como a escola defende a
atuação de um líder se não condições de o mesmo se estruturar – inexistência de autoridade e
autonomia e falta de confiança da sociedade e do aluno com relação aos saberes e
discernimentos docentes causada pela expropriação do trabalho docente? Autoridade perdida
é sinônima sim de docência fracassada. Quanto mais existir a multiplicação destas realidades
menor será a capacidade de se construir a autoridade docente- lê-se liberdade, prestígio e
crédito para agir.
A perda da autoridade docente – marca institucional perigosa que constitui numa das
causas decisivas para a emergência e aprofundamento da crise da identidade profissional
docente – é intensificada pelas políticas de aprovação automática e de dependência dos
178
estudos como também falta de disciplina na escola, ou seja, de uma regulamentada limitação
da ação discente no ambiente escolar. A expulsão dos alunos por condutas ilícitas e a
reprovação tanto por causa destas condutas ou pelo baixo nível de aprendizagem, que em
última instância, concedia mais autoridade ao professor, mesmo que fosse do tipo ditatorial,
foram práticas do ensino tradicional abolidas a fim de manter o confinamento juvenil nas
escolas e evitar o aprofundamento da delinqüência na sociedade e também para aumentar o
número de matrículas e freqüência nas escolas públicas brasileiras objetivada pelas agências
contratantes. Contudo, o repúdio exagerado e a total inexistência destas práticas causaram
precisamente aquilo que a anulação das mesmas queria evitar – o desinteresse dos alunos e
uma aprendizagem não significativa.
Dito de outra forma, objetivando a negação do professor-ditador, as reprovações em
massa e o caráter punitivo do ensino tradicional, as tendências pedagógicas atuais
promoveram de certa maneira, a indisciplina discente, a aprovação automática e o
desinteresse pelos estudos. Não que seja objetivo da seguinte discussão defender estas práticas
tradicionais educativas. Mas a inexistência de um ambiente organizado e regido por regras de
convivência limitadoras de ações juvenis – vandalismos, agressões físicas e psicológicas e
desrespeito – que prejudicam o andamento do processo educativo é imprescindível. Sem
disciplina seja do aluno, professor ou da própria “disciplina” não há educação. Ela é
necessária para que se obtenham objetivos planejados sejam eles de transformação e
conscientização social ou de apenas fomento a construção de “enciclopédias ambulantes”.
A onipotência juvenil – resultado da anulação total da disciplina na escola e do
confinamento dos jovens a fim de evitar a delinqüência dos mesmos por meio da política de
aprovação automática e da ideologia da “inclusão” social gerado pelas políticas sociais e
educacionais – não só destrói a autoridade do educador como também promove uma
“patifaria” na onisciência e panopticismo das atuantes orientações neoliberais na educação.
Como então manter os alunos na escola, aumentar os índices e evitar que a indisciplina e o
desinteresse provoquem conflitos na produção dos resultados? A solução é enfatizar o
professor-líder na resolução desses conflitos e na motivação dos indisciplinados para a
aprendizagem. Ou melhor, a solução não é melhorar a condição social dos alunos e investigar
as fontes da indisciplina e do desinteresse e sim focar nas atitudes polivalentes e
salvacionistas do “super-docente”, que se encontra em crise e não possui uma formação, se é
que exista, que o prepare para enfrentar tamanha missão.
O controle emocional, ou a presentificação do personagem professor-líder, exigido
pela gestão da escola torna-se impraticável frente à onipotência discente. Outro paradoxo
179
estratégico: exige-se uma liderança na docência disponibilizando condições contrárias para
sua efetivação- onipotência juvenil. Enfraquece-se a autoridade docente através desta
onipotência também para evitar o apoderamento do professor enquanto trabalhador social
fomentador das rupturas sociais necessárias. Em contrapartida, as agências contratantes
defendem o sacerdócio, a autocapacitação e o controle emocional, como elementos
identitários indispensáveis para os docentes atuais. Questões como currículo, estrutura
escolar, princípios filosóficos e ideológicos são tomados como realidades já prontas, acabadas
e legítimas, portanto, não são raízes dos problemas educacionais. Outras reflexões devem ser
feitas: como delegar onipotência a quem ainda não tem muito equilíbrio emocional – de
acordo com os gestores e alguns teóricos da educação? Porque então negar ou pulverizar
autoridade a quem se elege como “a base da organização”?
Com a pretensão de que estas questões não sejam respondidas, os discursos
ideológicos das políticas educacionais entram em cena: culpabilização docente, falta de
formação eficaz e inexistência da capacidade de liderança. Por conseguinte o professor passa
a acreditar que “as coisas são mesmo desse jeito, as coisas vão custar muito mudar. O
magistério é uma profissão que requer muito sacrifício, inclusive de nossas vidas pessoais,
mas quem entrar já sabe que vai ter que ter dedicação, responsabilidade” (membro da gestão
numa mensagem a respeito do dia do professor/diário de campo).
O professor precisa lutar e se preparar todos os dias, “dá um jeito pra não reagir às
provocações” e não pode desistir nunca de seus alunos, conforme o discurso do membro
gestor tomando como referência as palavras de Cipriano Luckesi numa recente palestra
ocorrida na cidade cuja marcação foi muito grande na identidade do professor, principalmente
porque este teórico foi bastante elogiado por todos os núcleos gestores segundo os professores
da escola: “o que você pode fazer quando ele não quer nada? Luckesi diz você continua
tentando, então temos que dar chance sempre aos alunos”(Professor Sérvio/diário de campo);
“eu tou pra vim fantasiado”(Professor Sócrates/diário de campo);
LOUCKESI e não Luckesi. Esses pedagogos nunca tiveram em sala de aula. Louckesi deveria dar aula no [...]29. A paciência que nunca deve esgotar é do professor e do aluno? Gostaria de perguntar pra ele se pudesse. A gente deve insistir com o aluno até o último minuto, sim meu amor já insisti até o último minuto. Casa e batiza, faz a gente de palhaça... (Professora Pérsia/diário de campo);
Os pedagogos lá de cima os técnicos não aceitam que os problemas sociais afetam a sala de aula. Eles acreditam num aluno ideal. Nós é que se cansamos, ficamos desmotivados. Eles ganham pra isso. Eles não aceitam, hipótese nenhuma que a vida familiar interfere na aprendizagem e sobra pra gente.
29 Supressão do nome para manter o anonimato da sala de aula especificada pela professora.
180
Colocam coisas do primeiro mundo num país de terceiro mundo (Professora Afrodite/diário de campo).
A professora Afrodite enfatiza algo muito essencial – a influência social e familiar no
processo de aprendizagem. As políticas educacionais não descartam tal influência, mas se
defendem ao jogar a culpa nas políticas sociais que não mudam a realidade social, não
promovem a melhoria de vida da maioria oprimida, mas, ao mesmo tempo, e com maior
ênfase chama os professores para não ficarem parados e esperando que as mudanças sociais se
concretizem para depois efetivarem uma aprendizagem de qualidade. Se não fosse a excessiva
culpabilização estratégica do neoliberalismo o chamado por si só é sumariamente necessário
para qualquer tipo de docência.
Se o magistério no imaginário brasileiro cultural é um sacerdócio cuja origem está
relacionada a um chamado divino, o professor que aceita esta missão já deve estar sabendo
que será uma luta constante contra todas as “provações” possíveis de confirmação do seu
verdadeiro caminho- indisciplina, desinteresse e desrespeito dos alunos, péssimas condições
de trabalho e intensas desvalorizações sociais e financeiras.
Nas escolas profissionais, este discurso “veste” outra roupa mais adaptada à filosofia
de mercado. Cada professor – como também todos os funcionários da escola – tem o seu
negócio e este vai lhe ocupar “sem descanso” durante todo o magistério, ou seja, de acordo
com estes dois discursos, o magistério estará presente em todos os minutos de sua existência a
qual se confundirá com ele. Assim a divisão de identidade pessoal e profissional perde
sentido. Como também perde sentido remunerar o tempo que o professor gasta nas suas
residências planejando aulas, corrigindo avaliações e elaborando projetos pedagógicos. Perde
sentido também a luta por mais tempo e condições de trabalho na docência e a idéia de
efetivação do piso nacional, sancionada em 2008, ainda não aceita pelo Estado cearense se
“desmancha no ar”.
Interessante que esta idéia de vinculação inteligível do magistério à própria vida do
professor vem seguida contraditoriamente com a sua expropriação e desvalorização social. E
o mais espantoso que tal vinculação, atualmente disseminada pelo neoliberalismo, vem
acompanhada por uma espécie de campanha pela desumanização e despersonalização dos
professores travestidas pelos ideais válidos de profissionalização e capacitação docente,
muitas vezes, calcados em reconhecidas considerações teóricas e resultados de pesquisas de
teóricos renomados. Contudo, estes ideais deveriam fomentar uma consistente formação de
professores a fim de evitar – às luzes divinas da vocação – que qualquer indivíduo entre na
profissão sem os conhecimentos básicos da área de atuação e pedagógicos necessários e neste
181
sentido defender a valorização profissional enfatizando as condições essenciais para ser
professor. Em vez disso, eles servem para elencar padrões e modelos profissionais
“polivalentes”, “multitarefas” ou de “super-docentes” a serem perseguidos pelos aspirantes ao
cargo e pelos que já estão na labuta.
Contrário às finalidades de valorização profissional, os agentes neoliberais elencam
como princípios norteadores da docência a desqualificação eterna, expropriação e exclusão
trabalhista a fim de manter os professores sempre “conectados” com os objetivos da educação
neoliberal. Valorizar, qualificar e disponibilizar o conforto da inclusão permanente seriam
ações perniciosas para o mercado, porque fomentaria o conformismo, a displicência quanto às
metas de aprendizagem e a mobilização política docente quanto às melhores condições de
trabalho. Não é à toa que em todo discurso de culpabilização determinados imperativos
aparecem: o professor deve sempre se atualizar, se profissionalizar ou se capacitar. Não que
estas realidades e movimentos docentes não sejam imprescindíveis ao exercício da docência.
O que se critica é a finalidade impositiva e desestabilizadora perseguida pelo neoliberalismo.
Destarte muitos professores freqüentam cursos de extensão e de pós-graduação não para se
“capacitar”, ou melhor, fomentar um processo de ensino-aprendizagem mais significativo,
mas sim para não ser excluído do sistema de trabalho e ser aceito pelo mesmo.
Na corrida para se “profissionalizar” e ser incluído no sistema, mesmo que seja uma
inclusão temporária, não é objetivo do neoliberalismo uma inclusão permanente e por isso são
criados e exigidos novos cursos e capacitações. Esse ambiente é necessário para instaurar uma
identidade amedrontada e ansiosa escrava da sobrevivência individual e adversa aos valores
da coletividade e de classe. Procurando sempre uma “formação continuada” e ao longo da
vida como requisito para estar parcialmente incluído no emprego, os valores, atitudes ou
personagens identitários vão sendo modificados ao ponto de que a sua identidade para si se
perde na tentativa de efetivar uma identidade para o Outro. O maior perigo é que esta última
domine ou pulverize a primeira dificultando assim a emergência de um docente
emancipatório. Tal dominação – objetivo das políticas de mercado educacional – está se
processando e por isso fala-se de crise de identidade. Ou esta crise será resolvida por cada
professor ao concretizar seu personagem emancipador, autônomo, reflexivo e crítico social e
pesquisador. Ou continuará lutando por mais capacitação e tenso diante desse duelo
identitário, deixando que a dominação se realize e a “identidademit’ se torne a identidade
dominante onde os personagens docentes preferidos do sujeito serão guardados ou até
excluídos de sua subjetividade.
Diante dessa situação como agir com autonomia e autoridade se todas as decisões dos
182
professores são desfeitas ou redimensionadas pela onisciência da gestão – apoiadores e
fomentadores da onipotência discente e pelo cunho julgador da sociedade e da Academia?
Esse é um exemplo típico do fogo cruzado: de um lado as exigências e cobranças da gestão
educacional; de outro a sociedade e a teorização educacional – uns querendo que o professor
presentifique o papel de transformador e outros de reprodutor do sistema social mascarado por
idéias moderadoras; numa ponta o que os alunos querem e reagem no tocante à ação docente;
na outra ponta o que o professor responde a esse cruzamento de realidades; e no centro se
encontra a identidade docente – suas preferências filosóficas, sociológicas, morais e
cognitivas – que será constantemente marcada por esse cruzamento sendo necessária uma
contínua ressignificação identitária a fim de atuar na sua ocupação social específica.
Continuando o alinhamento, a gestão inicia por disciplina a exigência de um maior
comprometimento e uma melhora nos índices enfatizando certas atitudes que traduzem a falta
de liderança e de controle emocional: “Às vezes a gente usa arrogância exagerada, atende
celular na sala, mas a gente tem que se policiar. Sabemos que a culpa é muito deles, mas
podemos melhorar. Tem professor que já diz em sala de aula que o aluno já está reprovado.
Tem professor que é muito grosso diz os alunos”. Como ensinar bem ou até trabalhar bem um
indivíduo que frequentemente não há retorno positivo em seu lugar de trabalho? Educação é
um ato de amor como defendia o mestre Paulo Freire, caso o professor não ame a profissão e
nem a disciplina como fomentará a empatia necessária para motivar os alunos para
determinados conhecimentos? É lícito que o fogo cruzado impossibilita a identificação
docente de preferência como também aprofunda a crise identitária desmotivando e
entristecendo a categoria docente. Porém as maiores vítimas de toda esta configuração social
e que se constitui na essência do agir educativo são os alunos mesmo com suas indisciplinas,
desinteresses e onipotências desenvolvidas:
Pra eles seria ainda pior, primeiro porque estão numa fase de adolescência, de muita indecisão, de não saber exatamente como é que vai ser o futuro, de dúvidas, de incerteza e ai eles já têm que tomar uma postura, tem que assumir responsabilidades que muitas vezes ele não recebeu em casa, então o aluno ele é o reflexo daquilo que ele é na família ai acaba sendo vítima maior por isso, porque ele muitas vezes, ele não tem culpa de agir daquela maneira, de tá na sala de aula ali só pra não tá em casa como eles respondem “né”, quando eles estão inquietos a gente pergunta, meu filho pra quê que você veio, fica em casa hoje descansando, eu não, eu vim pra eu não ter que trabalhar com meu pai, fazer isso, lavar prato as meninas “né”, então assim, são vítimas, são vitimas porque não lhe foi dado essa coisa da perspectiva, da melhoria, do estudo como uma forma de ascensão desde infância, [...], como se a escola fosse um depósito de jogar, [...] o que seria é digamos assim, seria o papel da escola mesmo enquanto instituição pra educar, pra formar, pra dá oportunidade de ascensão, e ai o aluno ele já se sente desmotivado em casa, ele chega na escola desmotivado e ele encontra também professores já desmotivados e ai assim, ele encontra uma escola que desmotiva também, forma um ciclo de desmotivações [...]que no final ou ele é, desiste, não chega até o final ou ele entra na dança de ir empurrando com a barriga,(Professora Florbela).
183
As cobranças aumentam e os ânimos também:
Querer aprender- eis a palavra-chave. Se eles não quiserem apenas, não adianta intervir (Professor Prometeu)
A gente precisa fazer um esforço para eles quererem aprender (representante da gestão)
O esforço a gente já faz. A metodologia pode ser a mais bonita, se eles tiverem nem aí, não adianta. O professor precisa ficar nu pra chamar atenção. Levam a prova respondida e passam o final de semana e ainda não respondem a prova e tiram nota baixa. Se não estudar não se aprende e não tem ninguém que possa estudar por nós. As notas do [...] 30 seriam as piores notas se não tivesse passado um trabalho. Só conseguem aprovar e não conseguem aprender (Professor Prometeu/diário de campo).
Neste diálogo é claro a preocupação com a aprendizagem que é impossibilitada tanto
pela falta de interesse dos alunos quanto da política de aprovação automática que de certa
forma também torna o aluno desleixado e displicente com sua aprendizagem. Outra professora
tenta mudar aquele momento num ambiente menos marcador: “Porque a gente não tira um
momento para discutir sobre a sala, principalmente uma sala que todos os professores
reclamam? O que você propõe para o aluno que não quer fazer nada em sala?”(Professor
Elizabeth/diário de campo).“Eu não tenho solução o que se pode fazer é tratar com cada
aluno, chamar pai e mãe de novo. Sentar e discutir a sala, discutir o aluno e encontrar
soluções” (Membro da gestão/diário de campo).
Na discussão acima surge um fato interessante. Os pais estão matriculando os seus
filhos contra a vontade dos mesmos nas escolas profissionalizantes a fim de confiná-los, pois
eles passam o dia inteiro – de sete da manhã às cinco da tarde. O representante da gestão avisa
que irá selecionar esses alunos infelizes e rebeldes e chamar seus pais a fim de expor a
situação e emite um pensamento irrepreensível: “a escola não é um castigo. Quem vai sofrer
são os professores. Leve ele pra outro lugar. Aqui não é lugar pra castigo de ninguém não”.
Vale lembrar quantos pais não fazem isso? Este comportamento de forçar o aluno a
permanecer na escola tanto dos pais quanto de muitos centros educacionais públicos
compromete até a emergência do interesse pelos estudos, porque “jogam” os alunos em
situações de pressão e coerção.
Uma grande reflexão é necessária se fazer aqui: e os alunos que não são forçados a vir
para escola, porque não se interessam? Em algum momento aqueles alunos que vêem a escola
como espaço de lazer, de azaração, de bagunça ou de encontro com os amigos rejeitando os
ideais de estudar e aprender aceitarão ser transferidos, mesmo se forem altamente
30
Supressão do nome da sala.
184
indisciplinados? Um professor confessou que no final do ano de 2008, um aluno fez de tudo
para permanecer na escola: reclamava na 6ª CREDE, no conselho de educação e até na justiça
local para não sair e sempre era atendido. A escola só conseguiu transferi-lo quando teve
testemunhas de que ele constantemente ameaçava os professores.
Depois de acalorada discussão sobre os baixos índices e tentativas de encontrar os
culpados e até de defender alguns deles, o representante da gestão pede a palavra para dizer
que “temos que recuperar estas metas”, pois no geral “se terminassem as aulas hoje, mais da
metade dos alunos estariam reprovados”. Imediatamente a professora Monalisa se defende e
enfatiza: “então nós temos que chamar estes alunos e falar com eles”. Por fim a gestão expõe
as reclamações dos alunos com relação aos professores destacando algumas: exibição de
filmes legendados e desvinculados com os conteúdos disciplinares; atendimento de celulares
na hora de aula; arrogância e estupidez quanto ao trato com os alunos. O professor Prometeu
se defende: “a maioria que não quer, vai sempre criticar tudo”. O professor Caim: “eles não
querem mais vídeo então eles vão ver o que é bom”. O membro da gestão entra no debate e
atenta para fatos indispensáveis: “a gente tem que saber receber as críticas. Filmes
legendados, eles já estão indispostos, estão quase dormindo. Trazer filmes que você nunca
assistiu [...]. A sessão finaliza com uma reclamação do professor Prometeu que foi proferida
de vez em quando pelo restante do grupo de professores: “por estar sempre esperando castigo
para entender que precisa calar e estudar os alunos só obedecem por medo”.
Muitos professores admitem que quase sempre para manter disciplina e silêncio – lê-se
não necessariamente concentração e interesse para aprender – é necessário ser rígido, colocar
alguns para fora de sala e até ameaçar – baixar notas ou, o contrário, prometer pontos para
quem ficar quieto. Que resultados esperar de uma sala que deve ser silenciada para o
professor “mostrar” que sabe dos conteúdos disciplinares? Será que as marcas institucionais
têm esse poder de fragilizar tanto a ação docente? Os professores realmente estão desistindo
de seguirem os grandes preceitos da educação no tocante a motivação discente? Algumas
inferências podem ser oferecidas. Nesse tipo de sala a grosso modo não há nem instrução e
sim adestramento, os alunos ficam quietos para o professor ministrar sua aula esperando que
os interessados aprendam algo. Onde fica então a inclusão tão disseminada na mídia política?
É possível inclusão num ambiente de desmotivação, indisciplina e adestramento. Parece que
não.
Tomando como exemplo os sujeitos da pesquisa em questão, os professores
encontram-se numa atmosfera de desistência e descaso diretamente influenciados pelas
marcas discentes e fundamentalmente pela falta de valorização, apoio e reconhecimento.
185
Como poderia ficar marcada uma identidade que não é reconhecida nem pela “Outra-agência
contratante” e pelo “Outro-discente”, que se constitui na essência do trabalho docente? Talvez
uma forma de fortalecer a identidade docente no enfrentamento dessas realidades concretas
poderia ser justamente o enfraquecimento ou diminuição das labaredas causadas pelas marcas
institucionais que tanto “queimam” sua subjetividade.
Na segunda sessão de alinhamento a sequência permanece a mesma – demonstração
dos gráficos e índices de rendimento discente e depois cobrança por justificativas para cada
professor. Aqui a ênfase é nas causas do insucesso escolar apontadas pelos próprios alunos:
falta de interesse, preguiça e sono. Em seguida os gestores chamam atenção para os motivos
da transferência de alguns estudantes: reprovações nas disciplinas profissionalizantes,
emprego, saturação pela rotina da escola e envolvimento com gangues, drogas, roubos e
prisões. E termina com a seguinte reflexão, principalmente vinda logo após de certas
afirmações: “Será que a gente está conseguindo vivenciar o lema da escola? Novo jeito de
agir, sentir e cuidar da juventude”.
Tanto a cobrança pelos resultados quanto pela “direta” exigência de que os
professores precisam melhorar sua prática a fim de evitar que esses jovens enveredem por
caminhos ilícitos, é confirmada pela chateação do representante da gestão ao apontar certas
práticas docentes ocorridas e denunciadas pelos alunos: grosseria, atender telefones durante as
aulas, falta de pontualidade e “conversinhas, certas coisas que vão minando, um disse me
disse que não constrói, não são divergências de idéias”. “Os alunos disseram que alguns
professores não têm nada pra fazer em sala” e “às 16h30min não tem mais aula, não tem mais
nada a fazer a gente anda e observa, os alunos ficam muito soltos, isto vai de encontro à nossa
liderança e a tese diz que o líder é a base, ele tem que coordenar, integrar e educar”(diário de
campo). Tais práticas confirmam o descaso de certos professores.
A gestão enfatiza que os índices devem ser elevados não somente por “um grupinho ao
redor do nosso birô”. É necessário “incluir todos no processo”. A professora Santos confessa:
“Eu faço de tudo, anoto os que estão fazendo atividades, digo que vou entregar aos
respectivos professores e mesmo assim eles não fazem, saem da sala. A gente faz de tudo
(diário de campo/ assunto da discussão – hora de estudo)”. A professora Grenda tenta
conscientizar que os gráficos não são o simples resumo da aprendizagem da escola fazendo a
seguinte reflexão: “o [...]31 participa, gera discussões em comparação com as notas, não teve
muita diferença do [...] que não participa e a maioria não quer nada. Olha que engraçado!”
31 Supressão do nome da série.
186
(diário de campo).
Outro representante do núcleo gestor entra na discussão um pouco chateado pelas
práticas denunciadas e pelos baixos índices:
Temos que reverter isso aí. Não é facilitar, porque vêm as avaliações externas e eles não fazem nada, a gente tem que mostrar nossa preocupação, interesse. O aluno tem que ver no professor que ele deseja que ele aprenda. A gente vê vocês correndo, fazendo e a gente não vê resultados (diário de campo).
Mesmo com tom de cobrança e culpabilização docente, a representante do núcleo gestor
prioriza aspectos indispensáveis para ação docente:
A gente vê nos planos de vocês que a metodologia é igual a todas as aulas. Você não pode deixar que a sala lhe desestruture. Não se frustre. Sempre planeje assim, metodologias diferentes para salas diferentes. A aula é preparada para o aluno. Para cada sala repense a metodologia. Não insista em metodologia que não deu certo. Tenha sempre uma carta na manga” (diário de campo).
Mas como fazer isso, que é crucial, pois cada sala é um mundo e tem diversos alunos
com múltiplos ritmos de aprendizagem, se o professor tem várias salas numerosas e há uma
escassez de tempo e condições para planejar, estudar e criar novas metodologias de ensino?
Ou seja, essa atitude plausível – ensinada idealmente nos cursos de formação – que poderia se
constituir numa exímia marca da profissão que não se concretiza. Entretanto, na medida do
possível, alguns professores da escola, mesmo com pouco tempo para refletir e construir
novos fazeres, já seguem tal prática que se constitui numa marca de suas identidades. Assim
finaliza o representante tentando relembrar conhecimentos didáticos talvez esquecidos ou não
praticados: “chegue na[sic] sala, organize, arrume, recepcione os alunos, não é perda de
tempo, não chegue e vá logo para o quadro”.
Não só o fogo cruzado, mas fundamentalmente o próprio sistema de ensino de certa
forma vai limitando a repetição e naturalização destas preocupações didáticas. Um currículo
positivista, enciclopédico e cumulativo imprime uma aceleração no ensino brasileiro como
um todo. O professor deve ensinar determinadas quantidades de conteúdos naquele período do
ano letivo. Caso não o faça é considerado atrasado e passa a ser cobrado não apenas pela
gestão, mas também via políticas educacionais através das avaliações externas. Já se elencou
um padrão de cognição a ser atingido em cada série e para se atingir o mesmo a paciência e o
respeito aos ritmos diferenciados é um pecado mortal.
Por mais que a gestão não considere a falta de tempo, há todo um sistema velado de
cobrança para se atingir certos níveis de resultados – maior produtividade – que muitas vezes
exclui a reflexão, concentração, o silêncio e a desaceleração tão necessários à aprendizagem e
a criação humana. É por esse motivo que a educação brasileira é uma instrução com
187
roupagem ideológica de formação para a vida e cidadania. As falas podem melhor comprovar
os ideais da educação: “ O primeiro relatório foi bom no ano passado então é mais
responsabilidade, pois o próximo deve ser ótimo, porque assim não houve crescimento. Se
formos se basear pelas avaliações internas nós vamos cair. O ideal é que o grupo tenha um
ritmo crescente”(representante da gestão/diário de campo).
Na terceira e última sessão de alinhamento, além da repetição dos fatos e discussões
das duas primeiras, o principal acontecimento foi quando a gestão defende que o objetivo do
ensino deve ser o nivelamento dos gráficos de rendimentos em 100% em todas as disciplinas
e isso foi demais para a professora Grenda:
Eu não acredito em 100%, a sala inteira, uma sala tirar a média em uma disciplina? Eu não acredito em 100% quando um aluno amassa a prova na nossa cara. Numa sala de quarenta e cinco alunos, tem no máximo cinco alunos que não querem nada, ou por falta de expectativa, ou falta de base, defasagem. Isso é mentira, não há 100%, o professor facilita, baixa o nível (diário de campo).
Como somente esta professora questionou a meta de aprovação de 100% e os outros
cinco permaneceram “imóveis”, os representantes da gestão pediram para ela deixar de ser tão
pessimista, pois essa atitude não é vinculável a um professor de escola pública. Terminada a
reunião a chateação da professora com os presentes foi tamanha que os mesmos tiveram que
se justificar a fim de amenizarem a situação: “não adianta reclamar, essas coisas entram num
ouvido e saem pelo outro” (Professor Dido/diário de campo). Mais três docentes concordaram
com a opinião do Dido.
Durante as três sessões verificou-se que apenas dois professores possuíam bons
resultados em quase todas as salas. Nas reuniões de área, os mesmos foram acusados por
camuflarem as notas ou “dar ponto demais” na média. Fato interessante é que um deles negou
conceder entrevista sem ao menos ouvir do que se tratava. Este ficou jogando no computador
enquanto o alinhamento “pegava fogo”. Ora ele já tinha feito sua parte e estava protegido por
seus altos índices. O outro professor, categoricamente acusado: “vou seguir o professor Bill,
pois os alunos não sabem de [...] e os gráficos estão altíssimos, 90%, 95%”(Professora
Pérsia/diário de campo), defendeu no momento da entrevista com “unhas e dentes” as
diretrizes e as normas da escola. Neste caso específico seria necessário analisar as práticas
destes docentes a fim de perceber realmente se camuflam os dados ou são exceções no
processo de ensino-aprendizagem.
Nos encontros de área que se seguiam os professores mostravam como esta marca
institucional ia sendo ressignificada na sua identidade e ação pedagógica: “Tou me
queimando porque eu digo o que não gostei pra direção, quem fica de ruim da história sou eu.
188
Pra mim só presta prova. Se for dar nota pelo comportamento é zero” (Professora
Santos/diário de campo);
Tudo agora vale ponto. Cheguei a dar ponto pra quem vier fazer a prova. Um ponto para quem trazer a apostila. Ponto vai ser o meu sobrenome. O que eu não agüento é ser responsabilizada pelo fracasso dos alunos. Somos nós os culpados. O governo parou de perceber a educação como algo complexo e sim algo simples de resolver é o professor, cobre dele (Professora Pérsia/diário de campo).
5.2.4.2- FORMAÇÕES CONTINUADAS
Nos momentos de formação continuada promovida pela 6ª CREDE tanto existiam
professores que iam apenas para elogiar as políticas adotadas como, por exemplo, a
intervenção curricular – Primeiro Aprender – tão criticada desde o início da sua adoção em
2008 por todos os professores da escola pesquisada como também docentes que eram
convidados para exporem suas metodologias e atividades pedagógicas que davam certo. Eram
esses professores que motivavam os sujeitos da pesquisa de continuarem a freqüentar tais
reuniões. Por quase unanimidade, os sujeitos destacavam que o que mais detestavam eram as
“babações”- professores tentando “aparecer”, ser bem visto para quem sabe ser convidado
para fazer parte da equipe da 6a CREDE. Quase sempre as aberturas das reuniões se
constituíam nas cobranças por melhores resultados a partir da análise de gráficos referentes a
determinada avaliação que acaba de ser aplicada.
Numa das formações – 06/10/2009 – um professor de Língua Portuguesa no afã de
sempre trazer alguma coisa “pra mostrar serviço” e “não perder o status frente à Crede”,
sugeriu uma atividade “tão boba” e já deveras utilizada que suscitou reações contrárias em
cadeia pelos participantes: “Meu deus, ele pensa que a gente é um burro, ou um acadêmico de
letras ou sei lá o quê?; “hoje é só isso.preferia estar na escola fazendo meus planos de
aula”(diário de campo). Vale ressaltar que os que freqüentam as formações devem entregar
seus planos até o fim de semana. Assim se não for satisfatória, eles terão perdido tempo e
deverão fazer seus planos na “calada da noite”, pois a superintendência cobra a pontualidade
dos planos toda semana.
Muitos professores defendem que o único aspecto positivo destas formações e que
poderia ser ampliado é o momento de contato, discussão e troca de experiências. Infelizmente
só pode ir um representante de cada área causando o sentimento de exclusão pelos que
anseiam ir. Alguns já até não desejam tanto por causa dos relatos ouvidos – “só cobrança e
babação”.
189
Nesse mesmo dia, um professor-formador depois de descrever suas experiências
claramente defendendo que são possíveis de serem adotadas em qualquer sala de aula –
infalíveis, enfatiza uma realidade discutível: “Faça uma aula diferente, pra chamar atenção
dos alunos, se não souber tocar, leve alguém ou peça para um aluno tocar” (diário de campo).
O assunto era canção. Discretamente surgiram alguns comentários que expressavam como
aquilo era recebido pelos docentes: “agora tenho que ser tudo, psicólogo, pai, padre, professor
e agora até cantor”; “E o tempo... Cadê o tempo pra planejar essa aula diferente, ir atrás de
cantor, pesquisar na internet, ir atrás de aluno, violão, onde é que ele arranjou esse tempo,
pois o meu... Acho que ele não tem vida,... Não tem mulher, filhos ou sei lá, não tem lazer
nenhum” (diário de campo).
Curioso que este último depoimento enfatiza a marca da profissão – falta de tempo –
como um dos empecilhos da melhoria da ação pedagógica. Onde conseguir tempo para
pesquisar sobre assuntos a serem abordados e elaborar planos e estratégias para promover a
inclusão de todos em cada turma- solicitação da gestão no alinhamento? Cadê o tempo
também para as tarefas burocráticas e a vida pessoal – lazer, diversão e família? É preciso
enfatizar que o professor não necessita da divisão de seu tempo, pois ele é um ser
vocacionado e, portanto o seu “negócio” – ensino – deve lhe ocupar sem descanso. Essa
mistura de vocação e sacerdócio com os princípios empresariais constitui uma das melhores
formas de dominação e estruturação da educação feita pelo neoliberalismo.
Muitos sujeitos da pesquisa concordam que assumir realmente o compromisso de fazer
uma aula diferente e ser um professor “diferente” e responsável por uma aprendizagem
significativa nas reais condições de trabalho só é possível quando o docente coloca para
escanteio algumas ou até várias atividades pessoais a fim de se dedicar a sua profissão.
No dia 07/10/09, um formador considera a figura do professor-pesquisador: “o
professor deve se tornar um pesquisador, produzir seus próprios textos a partir de estudos
feitos pelos próprios professores” (diário de campo). Além da falta de tempo, a concretização
deste personagem identitário depende de dois grandes obstáculos. Primeiro a subjetividade
docente, será que o professor realmente quer presentificar esse novo personagem? O que lhe
motivaria para tal empreitada? E o que lhe impediria, caso quisesse? Talvez o próprio fogo
cruzado impossibilite esta presentificação. Ou mais precisamente as marcas que atualmente
constituem a sua identidade citadas no decorrer deste trabalho. Entretanto, pode ser que o
professor não se identifique com este personagem e apenas objetive presentificar o
personagem de instrutor assalariado por simples escolha identitária ou porque já se encontra
desiludido pelas experiências da vida profissional que o fizeram acreditar que a estrutura
190
contratante é impossível de ser modificada.
Em segundo lugar vem a questão da formação. Os cursos de licenciatura do país
formam professores-pesquisadores? Os docentes em exercício estão tendo oportunidades para
apreender este tipo de personagem bem como as suas predicações? Os professores de
professores são suficientemente preparados para fomentar o aparecimento do professor-
pesquisador? Os professores que terminam suas licenciaturas realmente sabem fazer
pesquisa? Seria necessária, diante destas interrogações, uma séria investigação a fim de
contribuir nas possíveis respostas.
O palestrante finaliza da seguinte maneira: “transforme sua sala numa comunidade de
investigadores”. Mesmo depois do “boom” da pedagogia construtivista, a educação brasileira
continua tradicionalista cujo foco é no saber enciclopédico docente como necessário à
aprendizagem discente. É mais válido um professor-enciclopédia do que um professor
fomentador de pesquisas. Não é a toa que mais da metade dos temas das formações são
metodologia e didática no magistério, como se o “como ensinar” melhorado resolveria o
problema da educação e dos baixos índices nas estatísticas de aprendizagem. Em suma, o “o
que ensinar” e o “para que ensinar” tão debatidos pela teorização crítica educacional, não
passassem de perca de tempo ou tentativas de “enrolar a aula”.
O professor deve ser considerado um mediador do conhecimento, um companheiro.
Assim, tiraria uma carga muito pesada colocada nas costas deste profissional pelas políticas
educacionais e pela sociedade de certa forma influenciada pelos discursos ideológicos. É
legítimo que ele pode e deve atuar na motivação discente e excitação para a aprendizagem.
Uma das maneiras é incitando os alunos a investigarem, buscarem respostas, soluções e
conclusões para suas inquietações e as que se referem às disciplinas especificamente.
O foco da sonhada educação construtivista- construção do saber discente- está
presente apenas nos discursos e em documentos oficiais como também raramente em algumas
salas de aula do país.
No geral, a educação brasileira, ou melhor, falando, a instrução deveras enciclopédica,
positivista e mercantil tenta disseminar a idéia do sucesso escolar dependente apenas de
mudanças no fazer docente e conferir status de dogma a questão do currículo, finalidade
educacional, estrutura e gestão da escola. O que é mais perigoso é que muitos professores já
foram ideologizados e engrossam a campanha do neoliberalismo de que é perda de tempo
discutir esses assuntos, pois já se achou onde está a falha: o método de ensino docente.
191
5.3- FOGO CRUZADO
Todas essas marcas que constituem a identidade docente do professor sobralense não
são imprensas isoladamente. Elas estão constantemente se cruzando com outras marcas já
presentes na subjetividade docente. Em cada experiência de vida pessoal e profissional é um
momento potencial de marcação identitária. Dependendo da subjetividade determinada marca
terá ou não seu poder marcador aumentado. E outro mecanismo de aumento do poder de
marcação é justamente outra marca que está se processando simultaneamente. Partindo destas
considerações o fogo cruzado é utilizado como uma metáfora para se compreender esse
cruzamento de marcas e suas ressignificações que vão constituindo a identidade docente. O
vocábulo fogo serviu para enfatizar o caráter de destruição e pulverização que as identidades
de si ou de preferências vem sofrendo com o cruzamento de determinadas ações e políticas
institucionais e sociais como também de ações discentes. Segue alguns exemplos concretos:
Me vejo como educador, como formador e como acompanhante. Olha como educador, no sentido original da palavra educar, tirar de dentro, é como formador, como aquele que propõe algo novo ao aluno, e como acompanhante, como alguém que caminha com eles, né, vou ver se reformulo esta idéia que eu tinha de mim mesmo, porque aqui a realidade é diferente,... Dez numa escala que aceitam ser acompanhadas, educar a cinqüenta dos quais vinte não querem te ouvir e dez estão distraídos com esses vinte e vinte e cinco,portanto vou ter que aprender a trabalhar com essas diferenças. Então eu acho que o objetivo pra mim agora, tem que ser de que forma propor estes valores às pessoas que realmente querem aceitar estes valores, como formador. [...] há muitas e sérias dificuldades pra cumprir isso aqui na escola, pelo número, pela situação pessoal de cada aluno que não querem. Acompanhar é impossível são muitos homens e não há tempo e não tem estrutura para fazer isso, formar tu transmite os valores e vê na frente, trata de falar,, de incentivar o diálogo,... Mas vinte que tu toca cinco que estão prestando atenção, ou menos, então é muito difícil educar,... Olha pra deixar educar, para deixar te acompanhar tu tens que querer (Professor Prometeu).
As marcas institucionais – políticas educacionais neoliberais – constituíram a primeira
labareda. O neoliberalismo objetivando a produção de mão-de-obra barata e capacitada
impregnou a educação dos valores mercantis. Fruto da era pós-moderna caracterizada pela
aceleração, desapego, individualismo e consumismo das relações humanas, a escola pública
reproduz as relações empresariais quase que unilateralmente. Nesta ambientação, os
trabalhadores adquiriram a eterna marca de descartabilidade. Todos podem se transformar em
lixo do dia para a noite. E se todos são um passo a menos para se tornar lixo, não é preciso
valorizá-los. A desvalorização financeira e social docente como também de todos os
trabalhadores surge como uma estratégia capitalista tanto para incutir uma ansiedade e terror
pela perda do emprego, portanto das condições de sobreviver quanto para aprofundar o
processo de alienação, despolitização e “desidentificação” dos indivíduos em prol de uma
maior padronização, dominação e “identificação de massa”. Eis o objetivo perseguido e quase
192
alcançado – por causa do aprofundamento das crises de identidades humanas e profissionais –
fazer com que todos os que não são reféns do poder dominante presentifiquem uma única
identidade atribuída: consumista, alienada, autoculpada por seus sucessos e erros e
autoresponsável pelos malogros de sua vida pessoal e profissional como também da
inexistência em seu contexto específico dos bens considerados outrora públicos e direitos da
cidadania: educação, saúde, segurança, alimentação, lazer e habitação.
A comunidade escolar reproduz essa ideologia e os próprios vitimizados também. Os
trabalhadores passam a se autoflagelar e crucificar seus pares utilizando as categorias
interiorizadas. Os professores são um exemplo disso. Marcados pela desvalorização social e
financeira reproduzem, quase que na sua maioria, os ideais de competição e sucesso em seus
ambientes de trabalho. Cobram dos seus pares e de certa maneira ajudam na interiorização
destes princípios pela cultura discente. Os gestores, por sua vez, legitimam o modelo
educacional a partir das suas funções de promoção, fiscalização e punição para os que relutam
ainda.
Como a “mente vazia é a oficina do diabo”, a estruturação do sistema educacional
precisa “ocupar” os professores com intensas atividades burocráticas- lêem-se automáticas ou
mecânicas- e também com um número excessivo de aulas para que o diabo- politização,
conscientização, mobilização e autonomia- possam marcar a identidade dos professores. para
ajudar nesse processo de subordinação, o discurso vocacional e religioso é acrescido com
nova roupagem – negócio sem descanso – a fim de justificar as péssimas condições de
trabalho marcadoras da profissão: falta de tempo, salas numerosas, salário péssimo,
burocratização e expropriação pedagógica.
Nesta ambientação religiosa do magistério elege-se o “pecado mortal”: os discursos
ideológicos, mais uma vez alienam os docentes, alunos e sociedade oprimida, no sentido de
que fazer greve, se revoltar e buscar mudanças mais estruturais significam comprar o seu
passaporte para o “inferno”.
A desvalorização social e financeira é justificada pela falta de capacitação – pretexto
para proletarizar sempre até as ditas profissões intelectuais – e sustentada pelas intensas
sensações de terror e ansiedade para não ser excluído do mundo trabalhista e também do
mundo consumista. No caso dos professores essas marcas se cruzam com a falta de tempo
acompanhada pela intensa burocratização e organização das salas de aula. Não há tempo nem
para melhorar o processo de ensino-aprendizagem com a presentificação de certos
personagens – professor-reflexivo e pesquisador – avalie para discussões políticas e críticas-
sociais sobre o processo educativo. A ressignificação aqui pode ser uma busca por mudanças
193
nas condições formas adaptativas de conviver com as predicações exigidas- burlar as regras,
fingir que exercem as normas- ou então fingir que atua como professor, atuando como simples
palestrante insosso numa sala de jovens que dormem, conversam, escutam músicas,
maquinam vandalismo e promovem indisciplina, ou seja fazem de tudo menos aprender os
conhecimentos estabelecidos.
Vale ressaltar que de maneira geral essas duas realidades estarão presentes como
nucleares ressignificações identitárias, ou seja, referencias na tomada de decisões e
rearticulação da subjetividade docente frente às labaredas do fogo cruzado.
A segunda labareda é constituída pelas marcas da escola tanto da época que o
professor era aluno quanto da sua atual condição onde o mesmo é apenas um trabalhador
social que às vezes tenta optar pela mudança. Quando aluno – momento de escolhas
identitárias marcantes – os professores são os principais referencias na construção dos futuros
personagens. É no jogo de “bem me quer e mal me quer” e as sucessivas ressignificações
futuras advindas da formação acadêmica e da experiência do magistério é que os aspirantes à
docência constroem seus núcleos identitários.
Curioso que os sujeitos da pesquisa descartaram aqueles professores que puniam e não
tinham uma proximidade com os alunos a fim de compreendê-los melhor. Até destacam que
sem isso não há ensino de qualidade. Defendem a disciplina porque desde os tempos escolares
perceberam que na indisciplina e certa desorganização não se atinge os objetivos
educacionais. E todos escolheram como referencias identitárias aqueles professores que
ensinavam com amor, alegria e sentido os conhecimentos disciplinares. Motivando porque
estavam motivados.
Muitos não escolhem logo de início estes referenciais e quando se vêem numa
licenciatura retomam esses tempos escolares a fim de estruturar suas identidades profissionais
referendadas agora pelos professores universitários e pelas teorias pedagógicas. Sem a
pretensão de sobrecarregar a formação universitária, mas sua função deveria ser além de
fornecer os subsídios teóricos para o docente se sair bem frente aos conhecimentos
disciplinares específicos, deve ser também um laboratório de reflexão, análise e rearticulação
dos possíveis personagens identitários que reconhecidamente poderiam melhorar o processo
de ensino-aprendizagem. As práticas de ensino e os estágios adquirem neste caso extrema
importância no processo de constituição das identidades docentes que nunca estará concluída
e sua permanente reconstrução ganhará um novo elemento marcador que é a real experiência
de ensino.
A identidade de preferência vai se constituindo a partir da “peneira” subjetiva dos
194
predicados escolhidos e repudiados pelos aspirantes em relação aos seus professores da escola
básica e os da Universidade. E ainda tem os personagens docentes teóricos também
escolhidos para serem ou validados no decorrer da vida profissional.
Definido sua identidade de preferência ou núcleo identitário, o local de trabalho – a
mesma escola que ajudou na “peneira” subjetiva dos personagens docentes – joga os
professores na fogueira de queimação da identidade. A escola como tentáculo das políticas
educacionais neoliberais aumentará esta fogueira por geralmente impedir que muitos
personagens escolhidos sejam presentificados. Como a escola neoliberal depende de um
processo de massificação ou padronização identitária, algumas características docentes devem
ser eliminadas- autonomia pedagógica, participação democrática e gestão do processo de
ensino-aprendizagem. A interferência da gestão em todo o trabalho docente a partir da
aprovação automática e da fiscalização do seu fazer pedagógico via visitas e avaliações in
loco do agir docente pelos coordenadores comprovam este processo.
A “identidademito” ou atribuída pelas políticas neoliberais é constantemente
perseguida pelo ambiente escolar. Para isso, ela obedece aos ditames destas políticas e
continuam o processo de marcação: burocratização, aprovação automática, intervenção
curricular, culpabilização pelo insucesso discente e fomento a um ambiente competitivo e
individualista de pretensão despolitizadora e solidária à categoria docente. Como então o
indivíduo continuar numa profissão em que os elementos que o aproximaram dela estão sendo
destruídos ou negados? De que maneira suportar a concretização de personagens identitários
que não são condizentes com sua subjetividade?
Se o professor se ajusta tranquilamente é porque conseguiu presentificar este
personagem requerido. Na sua subjetividade existiam elementos que se aproximavam das
características exigidas. Se o professor não consegue, ele é jogado no fogo cruzado e a crise
identitária – resultado deste fogo – aumentará requerendo o movimento de ressignificações do
ator social a fim de que consiga permanecer na profissão caso seja esta a opção feita. Assim
ele pode “fazer ouvido de mercador” às exigências da escola- isso com muito cuidado, pois
nem os efetivos estão imunes ao processo de flexibilização, terceirização e despersonalização
do mundo capitalista.
A terceira labareda do fogo é justamente todas as preferências, os desejos e as
finalidades do professor que devem se adaptar aos ditames do sistema educacional e as reais
condições de trabalho. Essa labareda é acesa intimamente e se cruza com a identidade que é
exigida do professor. Desse cruzamento, algumas marcas podem ser fatais para ambas,
principalmente porque as labaredas estão reunidas num único fogo. As marcas se cruzarão
195
com outras inúmeras marcas não somente profissionais, mas também pessoais. Uma grande
ressignificação desse cruzamento que ocorre inicialmente a partir do conflito entre a
identidade para si e a identidade atribuída são a desistência velada do ato de educar. A
displicência e o descaso pode ser tanto com relação aos objetivos educacionais exigidos pela
escola quanto aqueles eleitos pelo professor. Um exemplo, um professor que se identificava
como construtivista pode nem atuar de forma plausível na instrução exigida pelas escolas
públicas.
As marcas, ou seja, as lenhas que aumentam esta labareda são precisamente a
expropriação do professor de suas até seculares marcações: autonomia pedagógica e gestão da
sala de aula, ou seja, liberdade de escolher metodologia, procedimentos didáticos e de formas
de avaliação da aprendizagem discente. Para efetivar essas expropriações foi necessário o
cruzamento das marcas institucionais e sociais: marcas líquidas de existência pós-moderna-
desapego, instabilidade trabalhista e filosófica, aceleração, superficialidade e descartabilidade
dos laços amorosos e volubilidade das identidades propostas culturalmente; e das marcas
político-educacionais: desvalorização social e financeira, proletarização do trabalho docente;
culpabilização pelo insucesso escolar e aprovação automática vinculada ao fomento da
onipotência juvenil.
A última labareda ou fator que constitui a “fogueira” que constantemente queima a
identidade docente está relacionado aos alunos. As “lenhas” – marcas – que formam esta
labareda são precisamente a indisciplina e a falta de interesse ou descaso pela aprendizagem.
“Os alunos de hoje não querem mais nada” é uma reclamação unânime dos sujeitos da
pesquisa. Esse “não querer nada” é suficientemente marcador porque o professor fica se
questionando se a falha está nele, na sua metodologia, sua forma de socializar os
conhecimentos ou de se relacionar com os alunos. Depois que “testam” várias metodologias
em determinadas salas de aula, os docentes se sentem fraquejados nesse processo de
aprendizagem. A labareda inicia mesmo a “queimação” da identidade docente quando essas
marcas discentes se cruzam com as marcas institucionais principalmente as cobranças
empresarias por aumento dos índices de rendimentos que é seguida por uma clara e enérgica
culpabilização pelo insucesso escolar. O cruzamento se completa quando paralelo a essa
cobrança as políticas educacionais fomentam certo tipo de onipotência juvenil a partir da sua
prática de aprovação automática e expropriação pedagógica do magistério.
Resumindo o professor é cobrado e até certo ponto culpado pela não aprendizagem
dos alunos e em determinado grau pela motivação discente. Se os alunos não querem estudar
é porque o professor não conseguiu “fazer uma aula diferente” que em última instância não
196
deixa de ser uma afirmação que deve ser analisada. Motivado ou coagido pelas cobranças
inicia um processo de busca por novas metodologias e didáticas e ao aplicá-las não atinge um
resultado satisfatório para toda sala, às vezes, somente para os alunos que já são interessados
desde o início do ano letivo. Chegam os períodos de avaliações internas e externas e as notas
continuam péssimas, as cobranças então aumentam. As possíveis ressignificações diante de tal
“fogueira” são desistir e atuar disfarçadamente a fim de obter seu salário no fim do mês,
porque os alunos realmente não querem nada mesmo. Pode continuar refletindo sobre sua
prática para encontrar alguma saída. Ou se convence de que a culpa não é somente sua, o
desinteresse e a indisciplina não são causados diretamente pela sua ação e passa a considerar
que são fenômenos sociais de origem na própria estruturação social e escolar e que está ligado
aos valores e princípios subjetivos de cada aluno.
A sociedade possui atrativos que prometem satisfações prazerosas melhores do que
estar sentado numa carteira desconfortável durante quatro a oito horas escutando um professor
muitas vezes desmotivado e/ou pressionado pela elevação de índices e pela indisciplina da
sala. Além disso, na maioria das vezes, a educação pública está lidando com indivíduos
provenientes de famílias oprimidas e desestruturadas caracterizadas por marcantes problemas
econômicos e psicossociais que acabam afetando os alunos que elas “entregam” para a
escolarização.
Outro fator é a subjetividade discente. Além dos alunos serem presas fáceis das
estratégias alienantes e escravizantes de agentes comerciais ou grupos delinqüentes, deve ser
considerada as preferências juvenis, principalmente no ensino médio. A maneira como o
ensino é estruturado no país não atrai ou seduz o jovem de forma alguma. Não há movimento.
Inexiste a preocupação com as inteligências múltiplas discentes. As artes e os esportes não são
protagonistas do currículo. Há sim apenas uma perturbada empreitada para que os alunos
saibam ler, escrever, interpretar textos e fazer os cálculos matemáticos básicos –
competências para os futuros proletários. Não há uma escuta dos problemas que os alunos
enfrentam e os motivos de seu desinteresse. As políticas educacionais já sabem. Entretanto
como a raiz dos problemas são sociais e estruturais, elas tentam ludibriar os que se interessam
pelo assunto – escola e comunidade popular – difundindo alguns culpados tais como a
metodologia, comprometimento e formação docente como também romantizando demais a
solução dos problemas ao concentrar em fórmulas mágicas um pouco difíceis de realizar: se o
professor conseguir ser líder em sala de aula os problemas cessarão; se a escola tiver bons
profissionais conseguirá 100% de aprovação.
197
O cruzamento que forma esta labareda se dá no momento em que o professor de
depara com o tipo de aluno que gostaria de trabalhar ou “formar”, o tipo de aluno almejado
pelo sistema socioeducacional e o tipo de aluno que é possível – o aluno real que não se
conforma nem com as modelagens da escola e muito menos com as do professor. Isso
“queima” a identidade porque toda a concepção de educação e docência que o profissional
possui e acredita tem como resultado ou conseqüência os tipos de aprendizagens que deverão
ser absorvidas por esse formato de aluno desejado. Quando o professor se depara com a
indisciplina e o desinteresse discentes, a “queimação” aumenta porque nem um dos dois tipos
de alunos será possível. Esta impossibilidade é mais marcante visto que ele já vem sofrendo
as marcas institucionais apontadas anteriormente.
O interessante é que se por um lado os alunos indisciplinados e desinteressados
constituem a principal labareda do fogo cruzado, são os poucos alunos interessados,
disciplinados e amorosos que diminuem o poder de “queimação” desta labareda. São esses
alunos que fortalecem as identidades de preferência docentes como também apóiam o
processo de ressignificação das demais labaredas e motivam os professores a continuarem
lutando. Todos os professores da pesquisa destacaram que se não fossem esses tipos de
alunos, a permanência na profissão seria eminentemente quase impossível.
As marcas discentes também servem para construir os saberes da experiência. Muitos
professores enfocam que são os próprios alunos que ensinam como querem ser tratados e
como se deve ensinar para que eles mesmos se sintam motivados. Não é raro certos alunos
criticarem e exigirem uma ação docente diferente ou mais contextualizada, principalmente
quando se tratar de professores iniciantes na carreira do magistério. Às vezes esses macetes ou
conselhos são oferecidos pelos colegas de profissão que outrora sentira essas intervenções
discentes.
As quatro grandes labaredas que constituem o fogo cruzado docente foram elucidadas
a partir da análise das marcas, ou seja, das “lenhas” que os sujeitos da pesquisa exteriorizaram
nos momentos de entrevistas e durante os espaços de convivência observados. Não é
pretensão desta discussão afirmar que as marcas analisadas constituem todas as marcações
sentidas e impressas na identidade docente no decorrer de sua existência pessoal e
profissional. É lógico que a ênfase que os sujeitos deram a estas “lenhas” pode ser explicada
pelo contexto cultural em que os mesmos estão inseridos. Poderão existir outras categorias de
marcas ou até novas marcas relacionadas às delimitações divisórias elaboradas nesta ocasião
de investigação. Destarte a maior contribuição desta foi atentar para os processos de marcação
198
identitária e seus cruzamentos no movimento de ressignificação da identidade docente frente
ao seu conflito entre a “identidadedemito” e a identidade para si. Conflito que talvez sempre
faça parte do processo de identificação humana, visto que os indivíduos na busca por
diferenciação a partir da “igualdade-amalgamática” estarão procurando uma condição de “ser-
para-si” a fim de dar significado e valor a sua individualidade e subjetividade que não pode
ser totalmente avessa às predicações e condições ofertadas pelo Outro que de certa forma
legitima ou não a possibilidade de inclusão adaptada e criativa diante das identidades
atribuídas das identidades para si.
Quando a crise identitária é aumentada pelo fogo cruzado e não mais socorrida pelo
discurso da vocação e sacerdócio educacional, os professores tornam-se vítimas latentes da
síndrome burnout: “síndrome através da qual o trabalhador perde o sentido de sua relação
com o trabalho, de forma que as coisas já não o importam mais e qualquer esforço lhe parece
ser inútil” (CODO; VASQUES-MENEZES, 2006, p.238). Por causa do desgaste extremo
sentido pelo professor ao se envolver afetivamente com seus alunos e com a escola, bem
como as respectivas marcações destas instâncias, este profissional desiste. Os três
componentes desta síndrome – “exaustão emocional”, “despersonalização” e “falta de
envolvimento pessoal no trabalho” são identificados na maioria dos sujeitos da pesquisa: as
professoras Santos, Pérsia, Afrodite e Grenda e os professores Sócrates, Prometeu e Sky.
Conforme estes autores, o termo burnout surge como uma metáfora “para exprimir o
sentimento de profissionais que trabalhavam diretamente com pacientes dependentes de
substâncias químicas”. Não há uma definição única. O consenso é que “seria uma resposta ao
stress laboral crônico”:
Atitudes e condutas negativas com relação aos usuários clientes, organização e trabalho; é assim uma experiência subjetiva, envolvendo atitudes e sentimentos que vêm acarretar problemas de ordem prática e emocional ao trabalhador e à organização (ibid, p.240).
Eles defendem que o burnout é um fenômeno real, preocupante e internacional de
“desistência de quem ainda está lá. Encalacrado em uma situação de trabalho que não pode
suportar, mas que também não pode desistir. O trabalhador arma, inconscientemente, uma
retirada psicológica, um modo de abandonar o trabalho, apesar de continuar no posto” (ibid,
p.254). Como fica então a educação brasileira e mundial comandada por professores em crise
identitária, jogados no fogo cruzado e por conseqüência com síndrome burnout? Os alunos
não são tão menos desprovidos de inteligência emocional para não notarem a presença destes
profissionais em sala. Um dos reais motivos do desinteresse dos alunos, além dos que foram
199
tratados nesta discussão, talvez seja essa desistência docente que inunda diretamente as
maneiras de conduzir, perceber e articular o processo de ensino-aprendizagem. A desistência
pode tolher não somente a vontade e a esperança de continuar lutando por uma melhoria na
prática e na educação como todo como também pode obstruir a capacidade criativa no sentido
de encontrar novos instrumentos de luta contra o fogo cruzado quanto contra o atual sistema
educacional.
Os autores ainda enfatizam as possibilidades de desistência que foram sentidas durante
a pesquisa:
Há os que estruturam um feroz discurso contra o sistema, uma crítica radical a tudo e a todos. Quando se espera em seguida uma ação transformadora, nada aparece e nada a substitui, era mentira, desculpa apenas para desistir. Há os que simplesmente desistem, com base em frágeis argumentos circunstanciais, ou simplesmente baseados em argumento algum. Há os que desistem se entregando mais ainda ao desamparo, ao desespero de tentar fazer, como se estivessem, a cada momento, queimando um último cartucho. Enfim, todos os modos são possíveis para quem desiste, todos os modos são modos capazes de esconder o burnout.(ibid, p.249).
Com relação aos sujeitos da pesquisa, o modo de desistir mais observado foi a busca
desenfreada para demonstrar que são excelentes professores, pois suas metodologias devem
ser consideradas como infalíveis, a fim de sair justamente da sala de aula e atuar nos serviços
burocráticos da Secretaria de Educação. Ora se realmente eles não tivessem desistido, não
iriam fazer de tudo para se tornar um gestor ou membro da Superintendência, por exemplo. A
desculpa vem em seguida. Eles alegam que indo para estes setores poderão ajudar muito mais
o processo educativo. Pode até ser aceitável, em última instância, todavia não existe melhor
maneira de ajudar a educação para professores tão bem sucedidos em suas práticas do que
continuar no seu local de trabalho fomentando a aprendizagem e formação discentes como
também socializando suas experiências de sucesso com os colegas de profissão que estão ou
não prestes a desistirem.
200
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na era líquida as identidades são flutuantes. Umas, escolhemos, outras são impostas
pelos Outros. As primeiras – identidades de preferência – deveriam ser defendidas frente ao
duelo ou negociação sempre pendente entre as demais identidades possíveis.
O “eu postulado” – resultante da interação entre o indivíduo e a sociedade – é uma
construção a ser inventada (Bauman) ou uma “metamorfose em processamento” (Ciampa). Na
sociedade pós-moderna, as possibilidades de identidade são múltiplas.
A identidade docente, moldada pela cultura, é construída e negociada a partir das
inúmeras relações sociais ocorridas em determinados contextos específicos: escola, família,
universidade e os microespaços culturais, por exemplo, reuniões entre professores, rodas de
conversas, seminários, palestras e cursos. Cada interação que ocorre deixa uma marca que
articulará o processo de identificação do professor. As marcas podem tanto possibilitar a
identidade como invenção, metamorfose e articulação do ser humano quanto pode gerar uma
“identidademito” ou “identidade-fetiche” atribuída pelos Outros impedindo a condição de
“ser-para-si” necessária à emergência de certos personagens docentes que em última instância
são personagens que os Outros objetivam atribuir ao professor no pretexto de melhorar a
educação escolar: autônomo, emancipador, reflexivo, pesquisador, construtivista,
acompanhante, facilitador da aprendizagem, formador e amigo. O processo de atribuição
destes personagens é afastado caso o professor consiga ter a liberdade de escolher diante
também de outras opções possíveis: tradicional, jesuíta, reprodutor, instrutor e “repassador”
de conteúdos.
A fabricação da identidade docente pode ser explicada como uma “identidade de
palimpsesto”, uma inconclusa e contingente “raspagem” e “reescrita” dos elementos,
características e marcas que as constitui. A construção de uma identidade emancipatória
balizadora de uma docência crítica e negadora da sociabilidade capital – pressuposto fundante
deste trabalho – deve ser conseguida através da “raspagem” das marcas do mundo da
mesmice ou da padronização identitária priorizada pelas políticas neoliberais.
Mesmo considerando que a identidade é um postulado de si perante os Outros, tendo
como referência estes Outros para as contingentes articulações – exigências, valores sociais,
perspectivas e aceitações dos grupos culturais – tornar-se um docente emancipado requer um
processo de luta e negação dos “referenciais-fetiches” identitários a fim de presentificar
outros. É lógico que tal processo encerrará uma dinâmica de conflitos, renegociações e
posicionamentos estratégicos do sujeito tanto no sentido de articular e/ou manipular as redes
201
discursivas do contexto cultural quanto na possibilidade de efetivação empírica dos
predicados vinculados aos personagens identitários escolhidos para si.
As marcas que constituem as identidades são impressas no decorrer das experiências
de vida pessoal e profissional. São incontáveis porque são numerosas as relações
intersubjetivas vivenciadas. Os sujeitos da pesquisa elencaram algumas, talvez as mais
conscientemente lembradas ou de maior poder de marcação identitária. E deste elenco,
algumas podem ser consideradas pertencentes à cultura docente e outras especificamente ao
sujeito-docente. Todavia, foram selecionadas aquelas que poderiam ser consideradas as
“lenhas” para a constituição das “labaredas” do fogo cruzado. A análise destas marcas e dos
seus processos de ressignificação – objetivo da pesquisa – foi satisfatória se fizermos um
paralelo com as questões que iniciaram a investigação.
O professor tem a função de efetivar um determinado tipo de processo ensino-
aprendizagem no qual, muitas vezes, não se identifica. Numa relação humana com inúmeras
subjetividades – os alunos – sempre conflitantes, seu trabalho torna-se desumano por não
existir reais condições de exercê-lo: grande quantidade de alunos em sala de aula; carga
horária exagerada; processo formativo acrítico e desvinculado com a prática educativa; falta
de tempo para atualização nos estudos; escassez de suficientes recursos didático-
metodológicos e carência social e cultural por uma valorização gratificante e financeira.
O neoliberalismo na educação tanto triunfa quando aprofunda a crise da identidade
docente e expropria os professores, quanto fracassa, pois nem todos eles conseguem efetivar
os objetivos do sistema educacional – elevação dos índices de aprovação nas escolas e nas
avaliações externas – num ambiente de “queimação’ de suas “identidades para si” a fim de
concretizar somente as “identidades para o Outro” – requeridas pelas políticas neoliberais.
É gritante o poder de desencantar e “queimar” a identidade docente destas políticas –
primeiro grande fator ou labareda de constituição do fogo cruzado – ao ponto de fomentar a
desistência de muitos ou a atuação sofrível desinteressada e prejudicial de outros na profissão
até que consigam “algo melhor”. A desvalorização social e financeira, aprovação automática,
falta de tempo, burocratização do agir docente e intensas cobranças via culpabilização pelos
malogros da educação formam as lenhas – marcas – que compõem esta primeira labareda da
fogueira incineradora das identidades de preferência dos professores.
Com tal desvalorização, os professores se sentem desestimulados. Não existe uma
preocupação com a motivação docente, eles são considerados como “superindivíduos”
prontos a enfrentar qualquer realidade. E esta exigência da profissão é a conseqüência secular
da hegemonia ideológica do discurso da vocação, do desprendimento, da missão sacerdotal
202
franciscana, que dentre as inúmeras questões castra a mobilização política, a preocupação
com a profissionalização e com a reestruturação dos sistemas de ensino. Além disso,
possibilita a concretização do professor-executor ou simplesmente do instrutor sem o interesse
pela conscientização e criticidade discente.
Como esperar um docente emancipatório de um ser humano desmotivado e
preocupado em apenas terminar o expediente pensando e lutando para conseguir uma nova
escola para aumentar os seus rendimentos? Ou então cotidianamente angustiado na busca por
reconhecimento e mérito para se sentir seguro no seu posto haja vista a instabilidade
empregatícia conseguida pelos atuais moldes de desenvolvimento do capitalismo? Como
melhorar a educação pública brasileira se fazemos tudo diferente: desvalorização do trabalho
docente, falta de incentivo à profissionalização do magistério, inexistência de elogios e
reconhecimento e desumana cobrança por resultados – 100% de aprovação? A categoria,
imersa numa dilacerante luta competitiva por sobrevivência capitalista, satisfação consumista
e de valorização através da realização de cursos de pós-graduação – quando é possível – e de
demonstração excessiva e individualista de suas práticas bem sucedidas a fim de obter cargos
e ascensões funcionais na máquina estatal, tenta fugir da sala de aula como o “diabo foge da
cruz”.
A escola como reprodutora e executora das políticas educacionais neoliberais
constitui a segunda labareda. Ela funciona como um “combustível” inflamável na medida em
que, através dos discursos ideológicos, defende uma gestão democrática e participativa e no
cotidiano escolar, estes discursos “se desmancham no ar”. Objetiva uma frenética busca pelo
aumento dos índices e o alcance de metas através de um currículo enciclopédico e de uma
padronização identitária que marcam a identificação docente. Os referencias identitários
escolhidos tanto nos discursos teóricos da Universidade quanto nos exemplos advindos dos
tempos escolares e da formação são obrigatoriamente adaptados aos modelos docentes
requeridos pelo sistema educacional. Este conflito entre o “querer ser” e o “poder ser” –
natural na profissão docente – ganha uma maior força de “queimação” da identidade docente
quando tal conflito se cruza com as marcas institucionais citadas acima.
Os neófitos docentes além de enfrentarem tal contexto, muitas vezes desconhecido por
causa da “enferrujada” formação universitária, têm que assegurar certas construções
identitárias em meio ao ambiente de trabalho profundamente desencorajador e expropriador.
Raro são os “velhos” professores que marcam de forma positiva através de conselhos ou
truques imprescindíveis no desenrolar da profissão, visto que a realidade cultural é
essencialmente mutável e dificilmente esgotada pela teorização educacional ou formação
203
docente.
Na formação acadêmica, a grande marca ressaltada foi o não relacionamento das
disciplinas cursadas com a realidade do ensino público brasileiro. A maioria das licenciaturas
citadas não prepara pedagogicamente os docentes para exercerem suas funções na profissão e
muito menos os capacitam de um pensamento crítico e emancipatório em relação ao processo
educativo como um todo. Os cursos, destacando a importância dos saberes e conhecimentos
científicos de cada área específica em detrimentos dos saberes e conhecimentos pedagógicos,
enfatizam a continuidade dos acadêmicos na vida universitária – pesquisas e realização de
cursos de pós-graduação – ou estimulam o ingresso dos alunos na docência superior
destacando suas melhores condições de trabalho. Alguns sujeitos da pesquisa também
defenderam que tiveram certo trabalho de ressignificação identitária- asseguramento de seus
núcleos identitários – a fim de combater os incessantes discursos desencorajadores dos
professores universitários no quesito educação básica.
Ora se não podemos esperar que o sistema educacional promova a valorização docente
e a emergência de uma educação libertadora e emancipatória, cabe às Universidades e os
cursos de formação iniciarem um processo de conscientização crítica e encorajamento político
dos professores a fim de serem mais criativos, politizados e “guerreiros” na busca e
construção de novos relacionamentos no meio escolar os quais possam “queimar” menos a
sua identidade, como por exemplo: maior afinidade e empatia com os alunos através de
inovadoras maneiras de gerir a sala de aula; abertura significativa na tomada de decisões
utilizando recursos discursivos de persuasão frente ao núcleo gestor do que poderia ser melhor
no tocante ao processo de ensino-aprendizagem e mudança social.
Os cursos de formação são de suma importância porque caso os professores queiram
adotar posturas interdisciplinares em sala de aula, a fim de estimular a iniciativa, criatividade,
solidariedade, coletividade entre os alunos ou transformarem suas aulas em processos
iniciáticos de investigação científica32, eles precisam estar preparados para tal feito. E quem
deve fornecer, pelo menos uma formação inicial sólida de qualidade sobre estas alternativas
plausíveis de melhoria da educação e conseqüente diminuição da “queimação” da identidade
docente são a priori as universidades.
O ensino superior pode contribuir muito no processo de mudança desta situação de
“queimação” identitária, todavia a revolução inicial para este fenômeno se concretizar é a
reconceptualização do currículo universitário para que o mesmo paralise, ao menos em seus
32
A esse respeito ver MORAES, 2005.
204
territórios específicos, a disseminação do ensino enciclopédico, positivista, jesuítico,
disciplinar, masculino e hierárquico. Neste sentido surgem alguns questionamentos: por que,
mesmo com reconhecidos teóricos defendendo a interdisciplinaridade, o professor reflexivo e
pesquisador, o currículo integrado, as relações e práticas curriculares universitárias não
expressam significativas mudanças? Serão os próprios professores que dificultam tal
transformação através das lutas de poder, reconhecimento e status dentro dos departamentos
universitários? Seria um problema interessante para uma investigação noutra ocasião.
Entretanto, na mesma linha de questionamento, faz-se necessário investigar com mais
afinco as marcas da formação acadêmica. Analisar como a Universidade, mais
especificamente a Universidade Estadual Vale do Acaraú está marcando os professores
recém-formados. Será que realmente as Licenciaturas desta Universidade desestimulam os
alunos a ingressarem na escola básica conforme a denúncia dos sujeitos da pesquisa? Por que
isso acontece? Que personagens docentes as licenciaturas conseguem socializar dentre os
futuros professores tanto com relação aos modelos teóricos quanto aos “modelos vivos”- os
professores universitários em exercício?
Neste cenário desmotivador, o discurso da vocação e do sacerdócio ou paixão pela
educação surge como um “agente socorrista” da fragmentação identitária ou crise que é
aprofundada ou socorrida pelas marcas discentes - os alunos - a última labareda do fogo. Esta
labareda é alimentada pelo desinteresse dos estudantes pelos estudos, pela indisciplina e
delinqüência que, na maioria das vezes, estas marcas são fomentadas pela inexistência de um
“escudo” institucional de proteção ao educador e pela onipotência juvenil vinculada ao
cenário brasileiro de impunidade e excessiva permissividade e ao cenário escolar de
aprovação automática, ausência de disciplina escolar e “desautorização” docente de suas
funções gestoras específicas.
Contudo, os educadores são socorridos fundamentalmente pelo “oposto marcador”
vindo de uma significativa parcela de alunos: interesse, carinho, dedicação, carência afetiva,
respeito, gratidão e disciplina. Estas marcas impedem que os professores desistam da
profissão e talvez fomentem a concretização do professor emancipador, principalmente se elas
vierem acompanhadas e consideradas como a prova cabal do sentimento vocacional inerente à
identidade docente.
A terceira labareda do fogo cruzado está relacionada à identidade docente de
preferência ou identidade para si. Ela é constituída pelas preferências metodológicas,
didáticas, filosóficas e éticas selecionadas durante a escola básica, a formação acadêmica, as
intensas vivências culturais mais amplas e especificamente no “chão de sala de aula”. São os
205
personagens docentes escolhidos e louvados no decorrer da vida profissional e pessoal.
Estas marcas identitárias de diferenciação e reconhecimento de si frente aos Outros,
resultante de constantes processos de ressignificação das experiências de ser, estar e pensar o
mundo cultural entram em cruzamento com as outras três labaredas “queimando” o núcleo
identitário docente. Um detalhe importante nesta labareda é que pode ser que os personagens
docentes escolhidos entrarão em conflito ou negociação com os personagens escolhidos tanto
pelos alunos quanto pelas políticas educacionais. Assim sendo, a “fogueira” está constituída e
pode levar à síndrome burnout.
Através da identidade pressuposta e reposta de certa forma pelas labaredas do fogo
cruzado, o professor por falta de liberdade e condição de concretizar sua identidade de
preferência, assume a “identidademito”, comandada pelo fetiche, no caso, do personagem
docente: executor de normas e padrões pré-estabelecidos e reprodutor do sistema educacional
vigente. Identifica-se com tal personagem por incapacidade de reação, necessidade de
sobrevivência ao sistema e comodidade, ou por individualismo, falta de criticidade, alienação
ou derrotismo.
A metáfora do fogo cruzado não objetiva vitimizar o professor pelas acusações ou
marcações que ele sofre a fim de absolvê-lo da culpabilização que permeia toda sua prática.
Também não se pretende eximir o docente de sua capacidade de transformação e ruptura, ou
melhor, fuga desta “fogueira” e engendrar uma educação emancipatória, porque sempre será
possível, na medida das reais condições sócio-culturais, de escolher e presentificar
personagens docentes reconhecidamente importantes para a melhoria da educação: o
professor construtivista, o pesquisador, o reflexivo, o amigo, o companheiro e o emancipator.
O objetivo foi de elucidar os desafios e as realidades que o professor enfrenta desde que
assume o magistério. A presença ou não destes ou dos inúmeros desafios como também a
especificidade no enfrentamento das cotidianas e incessantes realidades do ser e estar docente,
ou seja, as ressignificações identitárias e da sua subjetividade, são diretamente dependentes da
história de vida pessoal e profissional de cada indivíduo imerso num determinado contexto
cultural.
Se pudermos falar em essência da profissão docente, ela se constitui num fogo cruzado
que será peculiar a cada contexto cultural em que o professor está inserido. Este contexto
marcará no aspirante à docência: a sua escolarização básica – onde ele terá os primeiros
contatos e escolhas frente aos tipos de professores observados; a formação acadêmica – os
professores universitários e os personagens docentes teóricos legitimados pela determinada
configuração e mentalidade de Universidade; e seu local de trabalho, a escola, no caso a
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pública – que estará sujeita a específicas políticas educacionais de estruturação não somente
do processo educativo como também numa tentativa de padronização e atribuição de
identidades profissionais de seus contratados. Assim em cada conjuntura social existiu ou
existirá uma determinada organização das marcações identitárias constituintes de diferentes
“fogos cruzados” da docência.
O presente trabalho tentou compreender a formatação do fogo da docência brasileira
na atual configuração pós-moderna de viés neoliberal. Seria interessante investigar as
formatações desse fogo cruzado no decorrer da história da educação no Brasil ou até da
sociedade humana se não for pretensão. Com base nesta investigação seria necessário analisar
como determinadas marcas – lenhas da fogueira – vão aparecendo ou se constituindo, ou até
se algumas delas vão sendo apagadas e as causas desta extinção, objeto talvez de interesse do
campo da Psicologia. Outra questão de estudo seria perceber quais marcas permanecem no
decorrer da história educacional brasileira e porque não foram apagadas, ou seja, que
elementos culturais e individuais promoveram a permanência destas.
Um essencial objetivo de pesquisa seria analisar como as marcas identitárias são
ressignificadas, ou melhor, que identidades docentes conseguem se impuser no decorrer da
educação do Brasil. Se no atual contexto cultural de fetichização identitária onde existe uma
suposta padronização de uma ‘identidademito’ em detrimento das identidades de preferência,
como, em cada configuração cultural, os professores conseguiam efetivar os seus personagens
de preferência ou se isso nunca foi possível?
Se se pressupôs no início da discussão que o fogo cruzado é que dificulta a emergência
do docente emancipatório e que aprofunda a crise identitária docente, a confirmação de ambas
merece alguns esclarecimentos. Primeiro somente dois professores dos dezesseis sujeitos da
pesquisa almejam presentificar este personagem e destacam que são impedidos pelo sistema.
No restante dos professores foi percebida a tentativa de concretizar apenas o professor
jesuítico e neoliberal – talvez pela alienação e massageamento ideológico promovido tanto
pelas políticas educacionais quanto pela própria formação acadêmica. Uma última explicação
seria a de que muitos já tentaram e não conseguiram. Então desistiram de tentar. A maioria
dos professores se justifica desta maneira. Por estarem “calejados” perderam a vontade e a
força para lutar contra o sistema educacional. Assim confirma-se a pressuposição.
O segundo esclarecimento é conseqüência direta das análises das marcas da formação
acadêmica. Os professores reclamaram do ensino enciclopédico, positivista, jesuítico e
“caolho” da Universidade Estadual Vale do Acaraú. Como presentificar um personagem que
não se conhece e nem se sabe suas predicações? Como ser um professor-pesquisador,
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reflexivo ou emancipatório se os professores não foram apresentados a eles? Como ser um
professor interdisciplinar exigido pelas atuais leis da educação brasileira se ele é fruto de uma
formação docente fragmentada e linear (MORAES, 2005)? É lícito que o fogo cruzado
impede de certa maneira a ação emancipatória docente, mas a formação universitária
brasileira deveria oferecer um momento em que os atores-docentes possam discutir,
apreender, presenciar e até encenar estes personagens. Talvez um espaço propício fossem os
Estágios Supervisionados onde os graduandos vão conhecer a realidade de ensino e praticar o
ofício de educador.
Está se cobrando que os professores construam sua identidade docente profissional
tendo como referência estes personagens através de simples leituras de livros acadêmicos. Se
fosse tão fácil assim, no ato de presentificar tais personagens docentes, não seriam necessárias
certas disciplinas e discussões nas licenciaturas. É por esse motivo que se faz necessária a
investigação das marcas da formação de professores. Em suma, estes personagens identitários
– professor-reflexivo, pesquisador e emancipatório – são efetivados e encorajados pelas
políticas e práticas curriculares da universidade brasileira?
Pensar num projeto de formação é tentar compreender como o currículo foi
constituído. Investigar como as licenciaturas da UVA marcam a identidade docente é
questionar o poder de marcação curricular. E antes desta etapa seria crucial analisar o
currículo desta instituição, ou melhor, o seu “coração”, de onde é bombeado através das
“veias e artérias” – práticas e políticas – o “sangue” social, ou seja, as mensagens, princípios,
relações, formatações e códigos que encerram um tipo de socialização a ser realizada.
É importante destacar que a presente investigação qualitativa que elucidou algumas
marcas da identidade docente não objetiva encerrar o assunto ou muito menos abarca a
realidade em questão. As análises e considerações feitas neste trabalho constituem apenas
uma determinada interpretação do fenômeno realizada por certo pesquisador que como
qualquer ser humano está em constante marcação subjetiva e identitária. É lógico que as
ressignificações destes processos de marcação sempre serão contingentes e diferentes. Cada
pesquisador vê o seu objeto de pesquisa a partir de seus referenciais teóricos de preferência
como também, e não menos importante, pelas relações e práticas vivenciadas tanto nos
tempos da formação quanto nas incessantes situações vividas no cotidiano social partilhado
com outros seres humanos também marcados e exímios marcadores identitários. Em outras
palavras, dependendo das marcações sentidas e do processo formativo acadêmico ou escolar
vivenciado, cada leitor poderá contribuir haja vista suas interpretações sobre as considerações
e questionamentos construídos nesta investigação.
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