Marcelo da Silva Bueno INTRODUÇÃO
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Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT
Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9
Cenário ou paisagem? A representação da natureza na pintura brasileira do século XIX
Marcelo da Silva Bueno*
INTRODUÇÃO
A representação pictórica da natureza sempre constituiu um importante componente
das mais diversas modalidades de obras de arte, adquirindo particular relevância a partir do
Renascimento. Na pintura, e, em especial, após a popularização da tinta a óleo, no século XV,
os artistas alcançaram uma notável qualidade técnica na produção de imagens retratando o
corpo humano, as paisagens – virgens ou modificadas pelo homem – e os componentes da
fauna e flora que as povoam. Atuando como elementos que se articulam como coadjuvantes
de um tema virtuoso na pintura histórica, ou apresentando-se como principal objeto de
trabalho da pintura paisagística, as imagens produzidas a partir da observação da natureza
conheceram inúmeras formas de expressão mais ou menos idealizadas, até a grande ruptura
estética produzida pelo Impressionismo, no final do século XIX.
A despeito dos grandes avanços produzidos no estudo das ciências naturais a partir do
século XVI, na hierarquia dos gêneros de pintura cultivados nas academias de artes, a de
paisagem, assim como a de costumes, ocuparia, até as primeiras décadas do século XIX, um
lugar subalterno, em detrimento da prestigiada pintura histórica. Essa precedência foi
estabelecida no bojo da formulação de uma sistemática de formação artística que fosse capaz
de transmitir de geração em geração, por meio de um ambiente institucional, valores estéticos
pretensamente atemporais, além de fomentar uma cultura artística que estabelecia uma clara
distinção entre a natureza das obras produzidas por artistas e aquelas produzidas por artesãos.
Na concepção do ensino acadêmico da pintura, a habilidade manual, manifesta principalmente
por meio do desenho, encontrava-se indissociável do processo racional de composição, que,
por sua vez, dependia não apenas de recursos de ordem técnica, mas, também, de ordem
intelectual. Enquanto ao artista caberia o papel de criar, de conceber imagens a partir de todo
um corolário de referências legadas pela antiguidade clássica e suas releituras posteriores, ao
artífice estaria reservada a execução de tarefas de modelagem, montagem e acabamento de
objetos e artefatos.
* Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas de Epistemologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – HCTE/UFRJ e Professor do Colégio de Aplicação da UFRJ.
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A partir do momento em que começou a receber um destaque um pouco maior no
ambiente acadêmico europeu, em princípios do século XIX, impulsionada de um lado pelo
movimento romântico e, de outro, por seu potencial de contribuição às atividades científicas,
a pintura de paisagem iniciou um processo de rompimento com a tradição classicista –
caracterizada pela representação idealizada de espaços naturais que atuavam como majestoso
cenário para o retrato de episódios da Bíblia, da mitologia greco-romana ou da História antiga
–, caminhando progressivamente em direção à elaboração de registros visuais realizados
inteiramente ao ar livre. Pioneiros nessa seara, artistas como William Turner (1775 – 1850),
John Constable (1776 – 1837) e Caspar Friedrich (1774 – 1840) serviriam de inspiração para
toda uma geração de pintores, que elevariam a pintura paisagística a um patamar inteiramente
novo, culminando, a partir de meados da década de 1870, com uma ruptura em relação à
tradição acadêmica.
O presente artigo buscará analisar a evolução da representação da natureza na pintura
brasileira – particularmente no gênero de paisagem – no contexto do século XIX. Para isso é
necessário, antes de mais nada, identificar alguns aspectos importantes para delimitar a
conjuntura que se pretende investigar. Em primeiro lugar, cabe o esclarecimento de que a
discussão ora conduzida acerca dos artistas e das obras produzidas na arte brasileira
oitocentista, remete, essencialmente, à Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) e ao
contexto onde ela se encontrava inserida: a corte do Rio de Janeiro. Uma segunda
consideração importante é a de que o tema será desenvolvido em torno da reforma promovida
pelo governo imperial na AIBA, em 1854, por entender que esse evento constitui um marco
importantíssimo para definir a atuação da Academia no cenário cultural do Segundo Reinado
brasileiro.
OS PRIMÓRDIOS DO ENSINO FORMAL DE PINTURA PAISAGÍSTICA NO BRASIL
Pode-se dizer que o ensino da pintura paisagística foi formalmente introduzido no
Brasil pelo grupo de artistas franceses que vieram para o país em 1816 e, ligados a Joachim
Lebreton (1760 – 1819), participaram da organização da primeira instituição brasileira de
ensino artístico – a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, que posteriormente viria a tornar-se a
Academia Imperial de Belas Artes (AIBA). Entre eles estava Nicolas-Antoine Taunay (1755 –
1830), pintor que gozava de certo prestígio junto à corte de Napoleão e cujo talento fora
reconhecido pela Academia francesa ao conceder-lhe, no ano de 1784, o cobiçado lugar de
pensionista em Roma (Cf. SCHWARCZ, 2008: 136 – 137). Tendo retornado à França em
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1821, Nicolas-Antoine deixou no Brasil dois filhos que, como ele, dedicariam seus talentos à
representação pictórica da natureza: Adrien (1803 – 1828), morto precocemente quando
atuava como desenhista na Expedição Langsdorff, e Felix-Émile (1795 – 1881), que viria a
tornar-se um talentoso paisagista e um dos mais importantes diretores da AIBA no século
XIX.
Desde sua criação, a AIBA enfrentara problemas de toda ordem, a começar pela
indecisão governamental acerca de suas finalidades e a demora de 10 anos até dispor de
instalações próprias para desenvolver suas atividades; orçamentos minguados, a falta de
reconhecimento social do trabalho dos artistas – traduzida inclusive nos salários dos
professores, com valor inferior aos docentes de outras instituições de ensino na corte –
também contribuíram para dificultar ainda mais a inserção da AIBA no cenário cultural
brasileiro. A gestão de Felix-Émile Taunay à frente da Academia Imperial de Belas Artes
(1834-1851) buscou consolidar o ensino artístico no Brasil e projetar a instituição no cenário
cultural da corte do Rio de Janeiro, promovendo as primeiras Exposições Gerais de Belas
Artes, à moda dos Salons da Academia francesa, além de instituir o prêmio de viagem à
Europa, para os alunos que se mais destacassem nos concursos realizados pela AIBA. Ainda
assim, o governo imperial permaneceu insensível aos modestos aumentos de verba solicitados
por Taunay para a instituição e, em meados do século, já havia quem defendesse nas Câmaras
do parlamento o fechamento da Academia, por considerá-la um sumidouro de verbas
públicas, que não produzia nada de útil como retorno ao dinheiro nela investido pelo país (Cf.
SQUEFF, 2004: 173).
A REFORMA DE 1854 NA ACADEMIA IMPERIAL DE BELAS ARTES
Os problemas nas instituições públicas de ensino à época não eram poucos, nem
exclusivos da AIBA, e o governo imperial rendeu-se à necessidade de organizar e modernizar
o sistema educacional em todos os níveis, propondo um ambicioso programa de reformas a
ser coordenado pelo ministro dos negócios do Império, Luís Pedreira do Couto Ferraz.
Celebrizada como “Reforma Pedreira”, o conjunto de ações conduzidas por Couto Ferraz
entre 1854 e 1857 incluiu uma proposta de reestruturação da AIBA, tarefa confiada ao artista
Manoel de Araújo Porto-Alegre, que fora aluno (1827 – 1831) e, posteriormente, professor da
instituição (1837 – 1848). O nome de Porto-Alegre não fora, evidentemente, escolhido ao
acaso e, a despeito das boas relações políticas que ele possuía com o governo, esse parece não
ter sido o principal critério para sua indicação. De acordo com as palavras do próprio Porto-
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Alegre, as primeiras gestões nesse sentido teriam se dado em uma audiência com D. Pedro II,
ocorrida em 04 de agosto de 1853:
Sua Majestade perguntou sobre as Escolas Municipais que propus, e animou-me a
realizar este pensamento com os termos os mais benignos e lisonjeiros que se podem
desejar da boca de um príncipe.A propósito destas escolas falou-me da Academia
das Belas Artes e ordenou-me que lhe escrevesse as minhas ideias sobre os meios de
uma reforma radical, assim como o que eu pensasse acerca dos meios de fomentar o
gosto das artes no país; [...] e aí mesmo me disse que havia mandado propor nas
Câmaras uma cadeira de História das Artes, a qual me destinava, assim como me
pretendia nomear-me diretor, e para isso me fosse dispondo.”(PORTO-ALEGRE,
1853 apud GALVÃO, 1959: 33)
Partidário do ideal de progresso e imbuído dos valores românticos, incorporados ao
longo dos anos em que viveu e estudou na Europa, na década de 1830, Porto-Alegre
participava intensamente da vida pública da corte, atuando em inúmeras frentes e exercendo,
entre outras, as atividades de pintor, arquiteto, cenógrafo, poeta, crítico de arte e político.
Criticara severamente a postura do governo brasileiro de declinar – sob a alegação de não ter
produções para apresentar – o convite para participar oficialmente da primeira exposição
universal, ocorrida em 1851, na cidade de Londres; sustentava que, com essa atitude, o Brasil
teria se passado “por uma terra inculta, sem artes e sem indústria”. À época que foi investido
da missão de elaborar o projeto para reformar a Academia, Porto-Alegre já integrava o quadro
de sócios do IHGB e dirigia, desde 1842, a Quarta Seção de Numismática, Artes Liberais,
Arqueologia, Usos e Costumes das Nações Modernas no Museu Nacional.
O projeto de reestruturação idealizado por Porto-Alegre para a AIBA, parecia refletir
todas as suas facetas, ao mesmo tempo em que resgatava, de certo modo, as ideias originais de
Lebreton em relação à organização da Academia e aos propósitos a que ela deveria atender:
um ramo da instituição seria destinado a formar artistas, enquanto o outro, seria reservado à
habilitação de artífices, tendo como público alvo preferencial os filhos das famílias mais
humildes e com um grau mínimo de escolaridade.
Na reforma que implementou, Porto Alegre buscou fortalecer a Academia naquilo
que era seu maior objetivo: a formação de artistas. A ênfase dada a uma formação
prática vinha da convicção de que, em vista do baixo nível de instrução de alunos (e
mesmo de professores), era preciso fornecer aos futuros “artistas” da instituição uma
formação sólida, que os tornasse aptos a desempenhar as encomendas
governamentais. Ao subdividir o curso da Aiba em técnico e artístico, Porto Alegre
operaria uma cisão – até então inexistente – entre artífices e artistas. Separados por
normas precisas, que demarcavam disciplinas cursadas, tempo de curso, tipo de
formação etc., artífices e artistas poderiam ter papéis mais bem definidos na
sociedade da corte. (SQUEFF, 2000: 114)
O projeto de Porto-Alegre embutia, ainda, um forte componente nacionalista, cujos principais
veículos de expressão seriam a pintura histórica – encarregada de glorificar os feitos e
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conquistas do Império brasileiro, além de promover valores morais e patrióticos – e a pintura
de paisagem, por meio da qual seria possível “criar retratistas desta nossa fecunda, bela e
variada natureza para a tornar conhecida em todo o orbe por meio de fiéis transuntos”
(PORTO-ALEGRE, 1853 apud GALVÃO, 1959: 51). O próprio Porto-Alegre produziu
alguns trabalhos no gênero paisagístico, mas eles não tiveram uma expressão muito
significativa no conjunto de sua obra, apesar de traduzirem de forma bastante clara as ideias
do artista a respeito de como acreditava que deveriam ser representadas a pujança e os
aspectos peculiares da fauna e flora nacionais. A conformação das paisagens, bem como a
relação que Porto-Alegre estabelece entre elas e a caracterização dos personagens humanos –
quando estes se fazem presentes na composição – revelam traços de sua crença no progresso
e, ao mesmo tempo, de sua veia romântica: o homem que domestica a natureza, desvenda-lhe
os mistérios e a coloca a serviço de seus propósitos é igualmente capaz de contemplá-la com
sensibilidade e perceber, no seu esplendor, a magnitude da criação divina.
A QUERELA DO PROGRAMA DA AULA DE PAISAGEM
Embora entre os muros das academias artísticas europeias, o ensino da pintura de
paisagem obedecesse mais ou menos às mesmas referências clássicas, alguns artistas
passaram a se interessar pela busca por uma representação objetiva da natureza, estimulada
pela intensificação das “viagens filosóficas” e as expedições de História Natural a partir de
fins do século XVIII. Remetendo a um verbete produzido Claude-Henri Watelet para a
Encyclopédie méthodique – Beaux-arts, Gomes Junior (2011: 108) aponta, na obra citada, a
identificação de três vertentes distintas no âmbito da representação pictórica da paisagem: as
vistas, as paisagens mistas e as representações idealizadas da natureza campestre; ainda
segundo o autor, haveria entre essas categorias “um gradiente que articula, em um extremo, a
representação fiel da natureza e, noutro, a representação idealizada”. (GOMES JÚNIOR,
op.cit,: 108)
A parte pedagógica do projeto de reforma da AIBA concebido por Porto-Alegre,
incluia, além da introdução de novas disciplinas, a organização de novos estatutos e a
reformulação de programas de ensino, que passariam a ser submetidos anualmente à
aprovação pela congregação de professores. Como todos os demais colegas, Augusto Müller
(1815 – ca.1883), lente titular da cadeira de Paisagem, Flores e Animais redigiu um
documento no qual expunha sucintamente seu método de trabalho e as etapas a serem
cumpridas pelos alunos ao longo do curso. A sistemática por ele apresentada denotava total
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obediência aos preceitos acadêmicos que norteavam o ensino da pintura paisagística:
iniciando seu curso com a cópia de estampas, os alunos que já se encontrassem em “estado de
pintar” passariam a copiar quadros de mestres clássicos. Em seguida, aqueles considerados
“suficientemente adiantados” pelo professor, procederiam aos exercícios de cópia do natural,
sendo acompanhados por Müller “aos pontos mais pitorescos”, onde fariam seus estudos sob a
direção dele. Ainda de acordo com o programa, esses estudos deveriam “servir de norma aos
quadros” que os alunos viriam a pintar na respectiva aula (MUSEU D.JOÃO VI, 1855a: 1)
A produção artística de Porto-Alegre, bem como os registros que fez em seus
“Apontamentos Biográficos” e suas observações a respeito dos trabalhos remetidos por Victor
Meirelles quando este era pensionista da AIBA na Europa, permitem inferir que o artista
pendia para a defesa de uma abordagem científica na representação da natureza – tanto no
caso das paisagens quanto no caso da figura humana – embora, sendo pintor histórico,
transitasse com desenvoltura de um extremo ao outro da escala referida por Gomes Júnior.
Assim, diante do teor do programa apresentado por Müller, Porto-Alegre sentiu-se impelido a
fazer ponderações acerca dos aspectos – em particular os de caráter metodológico – que
julgava necessário alterar no documento, de modo a adequá-lo aos propósitos preconizados
pela reforma da AIBA.
As considerações feitas por Porto-Alegre em relação ao programa apresentado por
Müller foram lidas perante o corpo acadêmico em 29 de outubro de 1855. Em tom
professoral, o diretor discorre sobre os problemas percebidos em cada uma das etapas e
procedimentos enumerados pelo titular da Aula de Paisagem:
A falta absoluta que temos de exemplares americanos em suas formas, é oque
conduz o sr.Professor a lançar mão dos exemplares europeus, a fim de adestrar o
aluno na prática manual do desenho; porém parece-me que o seu sistema se tornará
incompleto e infrutífero para o fim da reforma da Academia, que é o de satisfazer as
necessidades do país e dos alunos, como passarei a demonstrar. Depois desses
exercícios, vão os alunos a pintar logo a óleo, isto é, copiar quadros frescos, até se
habilitares na prática das cores, para então passarem ao estudo do natural. Estas
ideias [...] têm o inconveniente de demorar o estudo da nossa natureza, o de habituar
os alunos a tocarem os objetos da nossa variadíssima botânica da mesma maneira
com que acentuam os artistas europeus os da sua, o que pode nos conduzir aos
resultados que se observam nos painéis do Conde de Clarac, e mesmo naqueles que
aqui foram feitos por Nicolau Taunay, que era um paisagista de primeira ordem, mas
que não pode apanhar devidamente o caráter da nossa vegetação, da conformação
dos terrenos, porque em todos os seus admiráveis painéis ressumbra sempre aquele
aspecto peculiar à Itália. (PORTO-ALEGRE, 1855 apud GALVÃO, 1959: 51)
As críticas às obras de Clarac e Taunay reiteram a hipótese anteriormente postulada de que as
ideias de Porto-Alegre a respeito da representação pictórica da natureza afastavam-na da
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idealizada abordagem clássica e seus maneirismos, passando a adotar um caráter que a
aproximava da ilustração científica:
As florestas virgens que aqui vimos do sr. Buvelot eram incompletas e tinham os
mesmos defeitos que o sr. Conde de Castelnaux encontrou na do Conde de Clarac. O
toque da folhagem das árvores, das parasitas, das bromélias, das gramíneas ou
taquaras, e das plantas aquáticas, não era exato, nem a colocação destas plantas
localizada convenientemente; há defeitos na forma geral e característica, há
desroporção entre sua grandeza, e infidelidade no tipo geral que especifica as regiões
intertropicais.
[...] O paisagista é um auxiliar poderoso do viajante, do geógrafo e do naturalista.
(PORTO-ALEGRE, 1855 apud GALVÃO: 52)
Embora as “breves reflexões” feitas pelo diretor da AIBA tenham ensejado a
equivocada interpretação de que Müller não recorria à realização de estudos ao ar livre em seu
sistema de ensino – conforme observou apropriadamente Cavalcanti (2002: 3) –, a crítica de
Porto-Alegre não se referia à ausência dessa etapa no curso, mas à situação em que a ela se
apresenta: é a penúltima, quando na opinião de Porto-Alegre deveria uma das primeiras. Além
disso, advoga o emprego da técnica da aquarela como recurso indispensável para que os
alunos possam colher, no exercício de observação direta da natureza, registros mais precisos
de luz, cores e formas, eximindo-os da necessidade de gravar todos esses aspectos na
memória, para reconstituí-las, posteriormente, ao executar uma pintura a óleo no atelier. Para
reforçar seus argumentos, Porto-Alegre recorre à imagem do pintor viajante – uma das
ocupações que vislumbra para os alunos da AIBA formados sob sua gestão:
Tendo nossos Estatutos consagrado esta aula ao ensino da paisagem, flores e
animais, parece-me que os meus alunos antes de pintarem a óleo deveriam ter um
exercício intermediário entre o lápis e a palheta, como seja o da aquarela, porque
esta pintura participa de um ou de outro trabalho. Esta transição, penso ser muito
necessária, mormente pela comodidade que oferece pela economia nas despesas, e
pela perfeição a que atingiu nos nossos dias.
O que faria um de nossos alunos viajando, ou adido a uma expedição científica no
interior do país? Onde iria ele buscar os cômodos que pede a pintura a óleo, ou
como poderia ele conservar a fidelidade do colorido com o lápis somente?
[...] O artista que se achar no mar alto, no cume dos Andes, no centro das florestas
virgens, no quartinho de uma estalagem, num pouso, ou em um outro qualquer sítio
incômodo, pode por meio da aquarela fazer seus estudos e levá-los à força e brilho
do colorido da pintura a óleo[...] porque não há nada mais cômodo do que um
estirador, uma caixinha com pastilhas ou tijolinhos de tinta e um pouco d’água.
(PORTO-ALEGRE, apud GALVÃO, 1959: 52-53)
Antes de lançar sua ofensiva final contra o programa de Müller, Porto-Alegre retoma o
discurso que remete ao conhecimento científico como elemento necessário à interpretação
pictórica verossímil do mundo natural.
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Se o pintor histórico viaja pelo mundo que já foi, pelo da imaginação poética, ou
pelo presente, para reproduzir a ação moral por meio do homem, o paisagista se
apodera do mundo físico para com ele instruir ou deleitar.[...]
Se o professor de paisagem não tiver noções gerais de botânica, geologia e mesmo
de meteorologia, nunca poderá perceber a diferença que existe entre as diversas
formações de terrenos, nem o caráter peculiar das rochas, segundo sua primitiva ou
secundária estrutura, nem as plantas que convém situar nestes lugares e em seus
climas próprios.
Não digo que ele seja um sábio, mas que tenha uma tintura das coisas para não fazer
um ensino puramente material, as considerações gerais sobre a marcha ascendente
ou descendente da criação devem ser lidas e meditadas por ele, e aplicadas à sua
arte; porque Lineu, Cuvier, Tournefort, Humboldt, Flourens, nos ensinam a pintar,
assim como os anatomistas, matemáticos, poetas, filósofos, físicos e fisiologistas.
(PORTO-ALEGRE, 1855 apud GALVÃO: 53-54)
Devido à concordância manifestada pela congregação de professores em relação às
considerações feitas Porto-Alegre sobre o programa de Müller, este acabou acatando,
contrariado e após uma áspera discussão com o diretor, a sugestão de incluir o ensino da
aquarela em seu programa (MUSEU D. JOÃO VI, 1855b). É dispensável ressaltar que as
palavras de Porto-Alegre enfureceram Müller, mas seria procedente observar que esse
episódio se insere em um contexto mais amplo, que inclui a ocorrência muitos outros
conflitos entre os dois artistas.
O professor de Paisagem tomara as críticas de Porto-Alegre como uma ofensa pessoal
porque, de acordo com os registros no diário deste último, a relação dos dois encontrava-se
estremecida há algum tempo – desde agosto de 1853, mais precisamente – por conta de uma
série de eventos, o primeiro deles ocorrido logo após a audiência em que Porto-Alegre
discutira a reforma da AIBA com o Imperador:
No dia 4 [de agosto de 1853] fui à casa do Sr. Müller, que, apesar de suas
originalidades, tinha-o em conta de homem sisudo e meu amigo, e contei-lhe, em
confiança, o que se passara [na audiência com o imperador], e no dia seguinte, o
mesmo Sr. Müller contou tudo na Academia, acrescentando a meu respeito,
conceitos bem mal cabidos, e conjecturas a que não estava autorizado a fazer,
porquanto sempre o tratei com a maior franqueza e urbanidade (PORTO-ALEGRE,
1853 apud GALVÃO,1959: 34)
Por aquela época, os dois certamente já se conheciam há bastante tempo – ambos tinham sido
alunos de Jean-Baptiste Debret (1768 – 1848) nas primeiras turmas da academia, em fins da
década de 1820, e quando Porto-Alegre tomou posse como diretor da AIBA, em 11 de maio
de 1854, Müller já era professor da instituição há quase vinte anos.
É possível que Müller, assim como outros professores da AIBA considerassem Porto-
Alegre um esnobe, por ter realizado parte de seus estudos na Europa sem ter conquistado um
prêmio de viagem – sua viagem fora custeada por amigos, dentre os quais o jornalista
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Evaristo da Veiga – e por defender uma série de ideias a respeito da formação artística que
não encontravam eco na Academia. Além disso, havia também a questão da desavença entre
Porto Alegre e Felix-Émile Taunay – a quem Müller sucedeu como professor titular na
cadeira de Paisagem – que dera lugar a uma áspera troca de acusações, veiculadas por meio de
cartas enviadas aos jornais cariocas entre 1849 e 1850, na qual se envolveu diretamente – a
favor de Taunay – o pintor José Correia de Lima, de quem Müller era colega desde o ingresso
de ambos na Academia como alunos, em 1829.
Embora lecionasse na Aula de Paisagem, Flores e Animais, a obra de Augusto Müller
notabilizou-se mais por seus retratos do que pelas pinturas paisagísticas. Não era, portanto,
um artista incompetente, mas a principal qualidade observada nos retratos que produziu – a
representação realística – contrasta com o aspecto idealizado e maneirista empregado nas telas
em que representou diversas imagens panorâmicas do Rio de Janeiro. Chama particular
atenção nesses últimos trabalhos, o uso da luz “italiana” – características das obras de pintores
clássicos, como Claude Lorraine (1600 – 1682) e Nicolas Poussin (1594 – 1665), principais
referências para o ensino da pintura de paisagem nas academias de arte –, aspecto que
apresenta semelhanças com as pinturas congêneres produzidas por Nicolas-Antoine Taunay,
primeiro professor de paisagem da AIBA, mas, ao mesmo tempo, revela substancial
conservadorismo, no aspecto formal, em relação às obras de Felix-Émile Taunay, que, como
já foi observado, antecedera Müller em sua cátedra.
Assim, quando foi investido do cargo máximo da AIBA, Porto-Alegre já devia prever
as adversidades que teria pela frente e, a despeito de adotar um tom conciliador ao longo de
seu discurso de posse, não se furta a atacar mais uma vez, e logo de início, o sistema de
ensino até então vigente na instituição:
A minha reaparição, e o caráter da missão de que me incumbiu o Governo Imperial,
justificam até certo ponto que as minhas antigas previsões eram fundadas, e que
aquelas ideias que aqui sustentei teriam de triunfar logo que o correr dos anos e de
infrutuosas experiências viesse demonstrar a necessidade da sua prática.
[...] A experiência já demonstrou que o sistema de iludir a mocidade e os altos
poderes do Estado só foi útil ao bem temporário de alguns homens; e que esse
antagonismo outrora tão pronunciado, não foi mais que uma luta do egoísmo contra
princípios generosos.
Para que possamos progredir, para que possamos ser úteis, é necessário doravante
combater os hábitos do passado e suas tradições [...].
[...] Olvidemos, pois, os hábitos do passado, e vamos trabalhar com amor e
dedicação; pois que a flama do meu patriotismo consumiu e purificou todas essas
recordações no momento em que meu Augusto senhor ordenou-me que para aqui
viesse. E eu [...] farei tudo quanto em mim couber para que este estabelecimento se
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torne útil e respeitado, e para que as artes e os artistas se tornem merecedores de tão
alta proteção e conquistem nesta nova terra o alto apreço em que são tidos nos países
civilizados [...]
[...] Livre todas as peias do egoísmo [...] estou esperançado de que a mocidade
brasileira ganhará mais nestes sete anos vindouros do que o que se fez nos vinte e
oito que se estão a completar, todos consumidos em rivalidades estéreis, que só
serviram para atraso das artes e descrédito desta Academia.[...] (PORTO-ALEGRE,
1853 apud GALVÃO,1959: 37- 41)
Poucos dias depois desse seu pronunciamento, Porto-Alegre e Müller tiveram mais um
desentendimento. Irritado por julgar que partes do discurso foram dirigidas contra ele, o
professor de Paisagem recusou-se a recepcionar um grupo que visitava a AIBA acompanhado
do diretor, permanecendo de costas para todos quando ingressaram no recinto em que
lecionava. Esse episódio acabou por dar origem a mais uma violenta discussão entre Müller e
Porto-Alegre, que ameaçou representar junto ao governo contra o colega. A querela em torno
do Programa da Aula de Paisagem, que viria a ocorrer pouco mais de um ano depois,
contribuiria para assinalar o momento em que Porto-Alegre já se dava conta da magnitude dos
problemas que ainda teria pela frente na direção da AIBA. Os registros da instituição – atas,
correspondências, ofícios, etc. – que dão conta dos dois primeiros anos da gestão de Porto-
Alegre, revelam que, a despeito de encontrar algumas resistências internas naquele período, o
novo diretor mostrava-se otimista, obtendo do governo praticamente tudo o que dele
reivindicou, conseguindo realizar obras de expansão e requalificação do espaço físico da
instituição, além de organizar uma biblioteca especializada, uma pinacoteca e incorporar o
Conservatório de Música à Academia.
Os últimos dois anos na direção, no entanto, minaram o ímpeto de Porto-Alegre.
Apesar de sua incansável dedicação ao ambicioso projeto que idealizou para a AIBA, o artista
foi, progressivamente, perdendo apoio interno e externo – particularmente após a saída do
ministro Couto Ferraz da pasta de Negócios do Império. Politicamente enfraquecido e atacado
internamente na Academia por uma parcela do corpo docente, Porto-Alegre pediria sua
exoneração do cargo de diretor da AIBA em 02 de outubro de 1857; desiludido, jamais
voltaria a integrar os quadros da instituição, que, dois anos depois, sofreria uma nova reforma.
Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT
Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9
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