Marco Teórico Tese Versao 1.0

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Historicamente, as políticas que legitimavam o tratamento em saúde mental se constituíram como formas de exclusão e de marginalização. A situação de abandono, violência e cronificação dos pacientes nos supostos locais de tratamneto, no entanto, passou a gerar inúmeras críticas e propostas de mudanças, principalmente após a segunda guerra mundial. Segundo Marques; Nicacio e Pessoa (200 ) os problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas eram abordados sob uma ótica moral ou legal. Dessa forma, o usuário era percebido como criminoso ou como doente, devendo ficar sobre a responsabilidade da justiça e da medicina. As alternativas de tratamento se baseavam em modelos de exclusão do convívio social e em grupos de alto-ajuda que apontavam a abstinência como única solução. Percebemos na clínica que a maioria dos pacientes chega ao CAPS passaram por esses grupos, onde aprenderam definições para descrever a si mesmo e a sua relação com a droga. Muitos incorporaram esses rótulos e se definem a partir do enquadramento na categoria “dependente químico”. Com essa categoria meio médica, meio moral, apresentam pouca permeabilidade a outras possibilidades de perceber com suas próprias questões, suas singularidades. O movimento de Reforma Psiquiátrica Segundo Tallemberg, 200 , o movimento da Reforma Psiquiátrica, como crítica às práticas e ao modelo asilar,

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Historicamente, as polticas que legitimavam o tratamento em sade mental se constituram como formas de excluso e de marginalizao. A situao de abandono, violncia e cronificao dos pacientes nos supostos locais de tratamneto, no entanto, passou a gerar inmeras crticas e propostas de mudanas, principalmente aps a segunda guerra mundial. Segundo Marques; Nicacio e Pessoa (200 ) os problemas relacionados ao uso de lcool e outras drogas eram abordados sob uma tica moral ou legal. Dessa forma, o usurio era percebido como criminoso ou como doente, devendo ficar sobre a responsabilidade da justia e da medicina. As alternativas de tratamento se baseavam em modelos de excluso do convvio social e em grupos de alto-ajuda que apontavam a abstinncia como nica soluo. Percebemos na clnica que a maioria dos pacientes chega ao CAPS passaram por esses grupos, onde aprenderam definies para descrever a si mesmo e a sua relao com a droga. Muitos incorporaram esses rtulos e se definem a partir do enquadramento na categoria dependente qumico. Com essa categoria meio mdica, meio moral, apresentam pouca permeabilidade a outras possibilidades de perceber com suas prprias questes, suas singularidades. O movimento de Reforma PsiquitricaSegundo Tallemberg, 200 , o movimento da Reforma Psiquitrica, como crtica s prticas e ao modelo asilar, convoca outros espaos e estratgias como modos de interveno e produo de real social para os sujeitos acometidos por transtornos mentais. Entre eles, esto lazer, cultura, trabalho, moradia e a circulao pela cidade. Estas estratgias de produo de real social reunidas fundam um novo campo de prticas e saberes denominado como Reabilitao Psicossocial. E continua Nos conflitos e embates do dia-a-dia, nas dobras rotineiras do cuidado, repetio e surpresa se interpenetram, cuidadores e usurios intensificam e dispersam, simultaneamente, suas identidades, compondo jogos de foras heterogneos.

problematizar algumas prticas em reablitao psicossocial utilizando como operador analtico o espao das oficinas, tomando-as como dispositivos privilegiados no engendramento e consolidao das prticas de reabilitao.

A Reforma foi se constituindo como um movimento, deflagrando transformaes na assistncia psiquitrica e posteriormente, interferindo e se consolidando nas propostas e modos de operacionalizao das polticas pblicas,

Este Movimento preconiza a substituio do manicmio e de sua ideologia por uma rede de ateno integral sade mental, que compreende no somente assistncia mdica e psicolgica qualificada e digna ao portador de sofrimento psquico, como tambm a criao e difuso de polticas para o setor, adotando um novo paradigma onde esto circunscritos o conceito de cidadania e incluso social, bem como capacitao tcnica dos profissionais envolvidos neste novo cenrio.

Mediante este cenrio, estamos vivenciando e protagonizando uma certa unanimidade, onde um nmero considervel de servios de assistncia em sade mental no s so corroborados mas tambm ganham certa institucionalidade devido as atuais polticas adotadas oficialmente pelo Ministrio da Sade. Tais servios congregam-se em torno de prticas e princpios eticamente desejveis que se situam para alm dos limites estritos da assistncia, explorando e interrogando outros espaos, seus usos e modos:famlia, trabalho, lazer, rede social, etc; deslocando-os como formas de inventar e gerir o cotidiano de sujeitos que, devido s prticas manicomiais de confinamento, foram privados de vivenci-lo de forma autonmica.

Estes espaos viabilizam a construo de novos territrios existenciais e sobretudo polticos, que comportam outros sentidos para a doena mental, que buscam escapar da lgica dos processos de excluso social, apresentando novas modalidades de servios municipalizados como os CAPS (I, II, III, iII e adII) , em suas diferentes categorias e atribuies, mas especialmente outras formas de fazer funcionar e organizar os mesmos, adotando e inventando no somente outras tecnologias como uma transformao radical na relao entre cuidador-cuidado e sujeito-do-cuidado.

As brevssimas consideraes acima permitem a inferncia de diversos pressupostos e mltiplas interpretaes no que se referem a criao e consolidao das diferentes experincias que tm sido construdas e circunscritas no domnio da Reabilitao Psicossocial, por exemplo, a multiplicidade de estratgias que envolvem produzir suporte residencial, laborativo, entre outros, apontando a diversidade de tecnologias e experincias que tangenciam este termo. Como ento os servios, mais especificamente os Caps tm instrumentalizado esta produo? Tanto legalmente como no cotidiano destas instituies esta produo tem se legitimado atravs do legado das oficinas. Oficinas que lidam com as mais diversas materialidades e contextos.

No cotidiano institucional dos Caps, as oficinas funcionariam como dispositivos privilegiados na criao e instrumentalizao de estratgias que viabilizem a produo de vida de seus usurios. Contudo, se esta proliferao de estratgias apontam inicialmente para uma riqueza e formas inusitadas de produo de subjetividade no que se concerne a construo do cotidiano como produo de vidas, tambm indicam que estas tecnologias fortemente marcadas pelo mbito da prtica, podem diluir sua dimenso crtica no que se refere a construo e problematizao de conceitos que legitimem e questionem tais prticas.

Neste contexto, pude constatar que havia uma enorme lacuna na execuo das prticas que efetivamente experencivamos com a possibilidade de exerccio crtico das mesmas. Esta dimenso crtica esvanecia-se no cotidiano, muito embora fosse este o palco onde esta mesma dimenso irrompia de forma abrupta, surpreendente, desestabilizadora, seja nos gestos e falas dos usurios, como tambm nas reaes despertadas nos profissionais a partir das mesmas, ou seja, ou respondia-se reativamente a estas vozes e falas dissonantes, remetendo-as redutivelmente ao lugar do caso clnico, ou estas simplesmente assumiam automaticamente o lugar de uma indiferena. A possibilidade de responder ativamente a estas falas do ponto de vista de problematizar as prticas de cuidado que sustentam o cotidiano, e que relaes de saber-poder estabelece parece-me questo vital na afirmao tico-poltica de enfrentamento das prticas e ideologias manicomiais ainda existentes no s erigindo muros invisveis na cotidianeidade, mas tambm o fascismo que est em todos ns, que ronda nossos espritos e nossas condutas cotidianas (Foucault, 1996:199).

Na ausncia de perguntas, estratgias e intervenes se despotencializam, despolitizando qualquer possibilidade e espao de construo de cidadania ativa dos usurios dos servios.

A desinstitucionalizao se coloca como um processo de interveno no s ao nvel dos estabelecimentos asilares, mas especialmente ao nvel das lgicas que a reproduzem, isto , no se remete somente a desconstruo concreta do aparato manicomial, mas das relaes institudas que operam e conservam o binmio doena-cura, doena-excluso. Na trade doena- tratamento-cura as premissas de interveno esto calcadas no tratamento e centralizadas em estratgias adaptativas e de remisso de sintomas, impelindo o paciente para uma marcha progressiva em direo cura a partir da qual seria ofertada a possibilidade de obter uma vida exterior aos esquadros sociais necessrios que a tica asilar impe. Esta marcha progressiva, na promessa de uma cura totalizadora, inscrevem os indivduos num vazio a-histrico; o sujeito-da-cura despolitiza sua presena quando sua histria, atravs do tratamento torna-se caso clnico, cujo carter sempre de uma entidade psicopatolgica individual.

A desinstitucionalizao ento se configura como um processo complexo, amplo, interminvel, que convoca diferentes atores sociais (entorno social) a construirem espaos e estratgias de operacionalizao no sentido de produzir a vida, expandindo seu campo o quanto for possvel, no mais dirigindo-se a um ideal de cura.

A Reabilitao Psicossocial ento seria o conjunto de prticas, de tecnologias, e estratgias que permitem reorientar-se do plano da doena para o plano da sade, da produo de vida, evocando outros espaos anteriormente pouco pensados como trabalho, moradia, lazer, cultura, etc.

O exemplo acima ilustra uma situao recorrente nos servios tipo Caps, onde coexistem prticas com muitos vestgios do modo de funcionamento asilar, contudo, escapar deste modelo, no necessariamente exige que se adote um outro na expectativa de diluir ou mesmo exterminar os paradoxos existentes e resultantes da dinmica institucional, mas transitar nos/entre os paradoxos, na conflitualidade; podem constituir-se como formas produtivas que propiciam a argio dos limites das prticas, fomentando um processo em constante experimentao, ebulio, e que se configura como algo inacabado, inconcluso posto que sua tica, mediante um estatuto de alternatividade a de criao/ recriao de seus prprios limites. na luta, e numa ambigidade de foras cuja relao blica; que se demarcam e se instituem novas prticas, e ento outros saberes igualmente se renovam, esmorecem ou at se extinguem.

1.1 O Dispositivo Oficina XE "1.1 O Dispositivo Oficina" Neste captulo pretendo apresentar o conceito de dispositivo na obra de Michel Foucault em intercesso com a leitura que Deleuze realiza de sua obra, e neste entrelaamento, realizar uma problematizao no contexto da reabilitao psicossocial, evitando desperdiar esta ferramenta-conceito como mero jargo ou clich no discurso da Reforma Psiquitrica, e situ-lo no interior de suas prticas.

O conceito de dispositivo em Foucault, aparece no texto de 1975, Vigiar e Punir, denominado como uma srie de tcnicas disciplinares, minunciosas, que objetivam docilizar os corpos, atravs da capitalizao de seus ritmos e movimentos, acumulando suas foras. Este acmulo de foras se constituiria no substrato privilegiado na consolidao dos modos de produo capitalista, no sentido de que os ritmos do corpo se constroem e se exercem como prosseguimentos, projees da mquina. Como no lembrar, para efeitos de ilustrao, do filme de Charles Chaplin Tempos Modernos, onde numa cena impagvel, o operrio em plena sintonia com o fluxo contnuo da mquina ( na imagem da esteira rolante que no pra de funcionar) em seu movimento de aparafusar, o reproduz automaticamante ao disparar seu olhar e suas mos para todos os objetos semelhantes a um parafuso: a roda dos automveis, os botes dos vestidos das damas; o que momentaneamente o enlouquece.

Estas tcnicas de docilizao dos corpos, so instrumentalizadas atravs de modelos institucionais como a escola, os quartis, a priso, a fbrica, que esquadrinham o tempo, os corpos tornando-os dceis, operando no interior deles uma srie de penalidades, com o objetivo de cercear comportamentos que desviassem do esquadrodesejado.

Foucault citando o modelo das oficinas, da escola, do exrcito, aponta para certas configuraes comuns nas diferentes instituies que garantiriam operaes de vigilncia, controle e punio, atravs das disposies arquitetnicas, temporais, econmicas e sobretudo funcionais. Sem dvida uma das contribuies mais instigantes na concepo de dispositivo em Foucault , sua articulao entre corpo, histria e produo capitalista, marcadamente de inspirao nietzschiniana:

Pensamos (. . . ) que o corpo tem apenas as leis de sua fisiologia, e que escapa histria. . . ele formado por uma srie de regimes que o constroem; ele destroado por ritmos de trabalho, repouso e festa; ele intoxicado por venenos alimentos ou valores, hbitos alimentares e leis morais simultaneamente; ele cria resistncias.

O corpo no s objeto natural, ele funciona tal qual um palimpsesto, como pura superfcie de inscrio. Sobre o corpo os acontecimentos se aderem, se fixam, para ento pulverizar, apagar e arruinar este mesmo corpo, imprimindo suas marcas, seus rastros, matria viva, pulsante, nos processos de produo da subjetividade.

Se, em princpio, o que Foucault parece destacar na ordem do dispositivo seu poder coercitivo, por outro lado, existe uma dimenso produtiva, ou mesmo subversiva, e justamente esta subverso que Deleuze, a partir da obra de Foucault parece afirmar, o que em escritos posteriores Foucault, indiretamente, iria colocar, como a face produtiva do poder, que no somente da ordem da coero e da opresso, mas da ordem daquilo que subverte, dobra, resiste.

neste ponto de inflexo que gostaria de pensar o dispositivo oficina, no delicado e perigoso fio da navalha, daquilo que oprime, adestra, dociliza, mas que tambm sabota, transgride e resiste. Podemos situar e analisar as instituies citadas por Foucault, neste registro, visibilizando os movimentos delicados na ordem e nos jogos das potncias institudas e instituintes, tal qual proposta pela anlise institucional:

. . . mas acontece que uma escola no s alfabetiza, no s instrui, no s educa dentro dos objetivos manifestos do institudo, seno que ela tambm prepara a fora de trabalho (alienado), ou seja, uma escola tambm uma fbrica. Por outro lado, uma escola, de acordo com a concepo de ensino, que ela tenha, consegue manter os alunos presos durante seis, a oito horas por dia, e alm de ensin-los a ler e escrever, o que lhes ensina fundamentalmente a obedecer e o que basicamente lhes transmite um sistema de prmios e punies. Neste sentido que uma escola tambm um crcere. Mas uma escola tambm um mbito onde se tem a ocasio de formar um agrupamento poltico-escolar, um clube estudantil; uma escola tambm um lugar para se aprender a lutar pelos direitos; uma escola tambm lugar onde se pode adquirir elementos para poder materializar as correntes instituintes, produtivas; numa escola tambm pode-se aprender a lutar contra a explorao, a dominao. Ento uma escola tambm tem um lado instituinte, neste sentido pode ser tambm, uma frente de luta revolucionria, de lugar de exerccio da solidariedade.

(Baremblitt, 1992:37)

Neste sentido podemos pensar na idia de dispositivo como um novelo, um emaranhado de linhas e foras.

Deleuze a partir da leitura da obra de Foucault tenta destacar o que estaria disseminado por toda obra foucaultiana. Primeiramente os dispositivos demandam trazer a ao. Seriam compostos por linhas de diferentes natureza, linhas de visibilidade e dizibilidade ou enunciao, de fora e de subjetivao. As duas primeiras se referem aos regimes de luminosidade que vigoram em determinadas pocas. O que pode ser visto e o que pode ser dito, o que possvel tornar-se visvel, audvel e enuncivel.

Nas linhas de fora, podemos destacar as linhas de saber-poder, que poderiam ser ilustradas como os jogos do instudo e do instituinte. A dimenso do poder no mais descrita como algo exterior, que oprime, que coage, mas como algo muito mais complexo e sutil, como puro jogo. As linhas de subjetivao seriam aquelas que comportariam a criao de modos de existncia, modos diferenciados de experimentar o mundo.

Como ento cartografar todas estas linhas no que tange ao dispositivo oficina e a que serviriam tal ao? No dispositivo oficina, encontramos linhas mais ou menos duras, outras fortemente cristalizadas, algumas que no nos permitem ouvir ou mesmo ver. Num dispositivo em ao, estas linhas misturam-se, afetam-se mutuamente, produzem aes e formas de pensar, perceber, ouvir, enunciar, desejar, e o movimento, sempre coletivo destas linhas que podem engendrar outros vetores de existencializao, produo de novos territrios, e de experimentao contnua.

1.1.1 Histra das oficinas ou a oficina da histria como modo de experimentao/problematizao XE "1.1.1 Histra das oficinas ou a oficina da histria como modo de experimentao/problematizao" Neste tpico gostaria de discutir o mandato, a especificidade que o fazer na oficina propiciaria em termos de produo de subjetividade e o que a levaria ser amplamente empregada nos processos de reabilitao psicossocial. Para tanto, recorro ferramenta da histria, no no sentido de realizar uma historiografiados usos das oficinas na Sade Mental, trabalho j realizado com eficincia e esmero por muitos, como os estudos de Lima ( 2003), Guerra ( 2000), entre outros; mas pensar quais linhas, foras e processos esto em jogo, tornando-as dispositivos privilegiados: - coloca-se ento a pergunta de inspirao foucaultiana Porque o dispositivo oficina e no outro? As oficinas, num rpido recorte histrico, eram pequenos grupos (Corporaes de ofcio) de trabalho domstico, onde eram produzidos determinados artefatos, como sapatos, roupas, etc, sem a utilizao de mquinas, onde o trabalho era predominantemente manual; apresentando carter pr-industrial, ou seja, onde os artesos no s imprimiam o seu prprio ritmo de produo, como tambm tinham acesso e interferiam ativamente em todas as etapas deste processo, tambm no havendo um compromisso em se produzir um excedente (Huberman, 1982). Tambm eram, no sculo XVI, locais de grandes transformaes, onde lidavam com a transformao de diferentes materialidades, onde os limites entre a arte, e uma cincia ainda nascentes eram indiferenciados; por exemplo, no havia uma delimitao clara do que era uma oficina, um atelir, ou mesmo um laboratrio proto-cientfico, o importante eram os processos de transformao da matria fossem eles da ordem da arte, da cincia, da artesania: todos eles comportavam a arte de fazer o artificial. (Beltran, 2002).

A palavra oficina tambm encerra uma etmologia curiosa que aponta para algumas conexes no que se refere ao mandato que as oficinas exibem, e seu uso nos servios substitutivos. Ofcio (do latim officiu), expressa dever, onde o modo de fazer, alm de transmitido artesanalmente de uns a outros, tem um sentido introjetado de dever, de compartilhamento, de experncia partilhada, de um todo necessrio para que a atividade acontea.

Uma peculiaridade nas corporaes de artesos na idade Mdia era de que todos que se ocupavam de um determinado trabalho, fossem ele aprendizes, mestres, artesos pertenciam a mesma corporao. Tanto mestres como ajudantes podiam fazer parte da mesma organizao e lutar pelas mesmas coisas, pois a distncia entre trabalhador e patro no era muito grande. Era regra, e no exceo, fazendo parte de um certo thos, tornar-se aprendiz, com o tempo mestre. Os aprendizes tinham direitos iguais, o mesmo ocorrendo com os mestres e artesos. Certamente havia uma organizao de classes, mas na relao entre elas predominava a igualdade, assim como o trnsito entre as classes, de aprendiz a mestre, no estavam fora do universo dos trabalhadores.

Podemos compreender um pouco mais sobre as corporaes artesanais na Inglaterra, atravs dos estatutos de 1346, e de seu modo de organizao:

(1). . . Se qualquer pessoa do dito ofcio sofrer de pobreza pela idade, ou porque no possa trabalhar. . . ter toda semana sete dinheiros para seu sustento, se for homerm de boa reputao.

(2). . . E ningum tomar o aprendiz de outrem para seu trabalho durante o aprendizado, e se algum do dito ofcio tiver em sua casa trabalho que no possa completar. . . . os demais do mesmo ofcio o ajudaro, para que o dito trabalho no se perca.

Este pequeno trecho permite mostrar como as corporaes se preocupavam com os seus membros, estabelecendo uma relao de pertencimento a um determinado grupo, bem como uma relao de cuidado e valorizao da contribuio em termos de trabalho que o arteso j havia desempenhado.

O segundo item aponta que as corporaes funcionavam tambm no sentido de fomentar e estabelecer uma relao de solidadriedade entre seus componentes, tanto na questo de valorizar a contribuio daqueles que no mais podiam contribuir, mas evidentemente, havia um interesse comercial em no se atrasar as encomendas solicitadas, mas este no era baseado na competio. Cada arteso, no interior de cada corporao funcionava no sentido de manter uma espcie de monoplio do seu produto, contudo este monoplio no implicava estritamente na questo do lucro ou de uma espcie de reserva de mercado, mas na marca registrada de determinada corporao, que apontava para o acabamento e a qualidade do produto, como tambm a habilidade, a percia, o trabalho exercido, que valorizado em sua singularidade se constituia como uma espcie de trao, que se baseava na excelncia do produto, mas tambm nas habilidades e processos de trabalho que o tornavam singular. Dito de outra forma, o artesanato se constituia como uma experincia, que mobilizava, criao, tcnica, percia, organizao e tambm disciplina, cuja resultante era o produto; diferentemente do modo de produo capitalista onde no h produto, no sentido de uma resultante, de uma experincia-processo, mas mercadorias que so fetichizadas, que desligando-se dos processos diluem e perdem seu trao singular.

Como ilustrao, cito uma pequena histria que Bourdieu apresenta em seu livro O Desencantamento do Mundo, onde um pequeno arteso, pertencente a um povoado igualmente pequeno confeccionva bonequinhas baseadas no folclore local. Todas as bonequinhas eram diferentes: em seus traos, expresses faciais, cores, vestimentas. Ao ver trabalho to esmerado, um visitante encantado com o possvel valor comercial de seu produto, prope ao arteso que ento realizasse uma produo em srie de um dos modelos de suas incontveis bonequinhas e lhe oferece um preo mais barato, posto que seu desgaste seria menor, pois dispenderia menos tempo tanto em sua execuo como em sua elaborao para confeccion-las, uma vez que produziria em srie. O arteso, ao contrrio, retruca que produzindo em srie o mesmo modelo, o preo deveria ser mais caro, pois seria muito custoso e os esforos muito maiores, pois teria que suportar realizar a mesma tarefa incontveis vezes sem que elas fizessem sentido em sua vida.

Esta repetio desconectada do plano de produo da vida, estabelece uma espcie de mortificao na ordem do trabalho, bem como as diferenas nos ritmos das tarefas no modelo industrial e pr-industrial . No trabalho artesanal permitido ao homem sonhar, narrar, experimentar:

O trabalho solitrio do tecelo era bem menos penoso. Por qu ? Por que lhe permitia sonhar. A mquina no permite nenhuma divagao, nenhuma distrao. Se se quer por um momento diminuir-lhe a marcha para apress-lo mais tarde, no possvel; o infatigvel carro de cem agulhas , assim que recua , volta a atacar. O tecelo manual tece rpida ou lentamente , conforme respira lenta ou rapidamente; age como vive; o ofcio se conforma ao homem. Aqui, preciso que o homem se conforme ao ofcio, que o ser de carne e sangue , em que a vida varia conforme as horas, sofra a invariabilidade desse ser de ao.

( Michelet, 1988: 51)

Walter Benjamin, em seus estudos sobre a obra de Baudelaire, problematiza a frmula da srie e da repetio, denunciando o que ele chama de sempre-igual, que se constitui como uma paralizao das foras produtivas. Benjamin ilustra a presena do sempre igualatravs da figura do jogador, presente na obra baudelairiana, comparando-a ao operrio na linha de montagem, estabelecendo uma relao bastante interessante para nossas anlises. Como o operrio, o jogador, est como que condenado, aps cada lance, de dados, cartas, a recomear novamente, sem qualquer sentido, ligao ou conexo com seus gestos anteriores, enfim com sua histria. Desta forma, ele se constitui como um fantasma, ou um anjo, que privado de viver a experincia est condenado ao recomeo perptuo:

a inutilidade, o vazio, a impossibilidade de completar seja o que for. . . cada gesto com que maneja a mquina to estanque com relao ao anterior como o lance de um jogo de azar estanque com relao ao outro, e por isso a corvia do assalariado, sua maneira, constitui uma contrapartida da corvia do jogador. ambos os tipos de trabalho so igualmente vazios de contedo. . . O eterno recomear a partir do nada a idia reguladora do jogo, como do trabalho assalariado.

(Walter Benjamin, Sobre alguns temas em Baudelaire, apud Rouanet 1990:96)

Em outro texto intitulado O Narrador, Benjamin articula o fim da tradio, e a arte de narrar histrias, como sendo a passagem dos modos de produo pr-capitalista, do fazer artesanal, ao modo capitalista, com o advento das fbricas, das mquinas e da produo em srie; estabelecendo assim uma correlao interessante entre os processos de produo econmicos, a histria e a produo de subjetividade. Neste texto explora o ato de narrar como possibilidade de intercambiar experincias, o que aconteceria, preferencialmente, nos processos de produo da vida material circunscritos numa outra relao com o tempo ( um tempo que certamente no o do tear mecnico), isto , enquanto o arteso tece o tecido que o aquecer no frio, tece sua existncia, compartilhando-a com outros, num entrelaamento coletivo. Vale ressaltar que o plano de produo da vida material est em plena conexo, ou mais que isso, est totalmente mergulhado no plano de imanncia da vida. Em duas belas passagens do texto, ele aponta para este mergulho:

Contar histrias sempre foi a arte de cont-las de novo, e ela se perde quando as histrias no so mais conservadas. Ela se perde porque ningum mais fia ou tece enquanto ouve a histria. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que ouvido. Quando o ritmo de trabalho se apodera dele, ele escuta as histrias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narr-las. Assim se teceu a rede em que est guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, h milnios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual.

( Benjamin, 1993:204)

O papel da mo no trabalho produtivo, tornou-se mais modesto, e o lugar que ela ocupava durante a narrao agora est vazio. ( Pois a narrao, em seu aspecto sensvel, no de modo algum o produto exclusivo da voz. Na narrao, a mo intervm decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experincia do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que dito). A antiga coordenao da alma, do olhar e da mo, que transparece, tpica do arteso, e ela que encontramos sempre, onde quer que a arte de narrar seja praticada. Podemos ir mais longe e perguntar se a relao entre o narrador e sua matria a vida humana no seria ela prpria uma relao artesanal. No seria sua tarefa trabalhar a matria-prima da experincia a sua e a dos outros transformando-a num produto slido, til e nico?

( Benjamin, 1993:221)

Nesta primeira citao, gostaria de me deter sobre esta passagem: que a arte de contar histrias a arte de cont-las de novo. Benjamin no sugere que a histria se repita sempre do mesmo modo, ao contrrio, ela acrescida e incorporada experincia de quem as conta e de quem as ouve, portanto uma histria, por mais trgica que seja, nunca sempre cinzenta, ela recebe as cores inusitadas da experincia. A expresso de novo, tambm alude ao carter de inacabamento, de incompletude da histria, fazendo referncia em O Narrador, ao estilo seco, aberto, de Herdoto, cujas histrias nada explicavam ou concluiam , e por isto mesmo abriam-se a vrios possveis, desdobrando-se em uma multiplicidade. Multiplicidade aqui tomada no como conceito filosfico (embora possa imiscuir-se a este, especialmente na obra de Deleuze e Guattari ), mas tal qual empregado por Italo Calvino em uma conferncia que leva o mesmo ttulo, onde se refere ao texto multplice, que substitui a unicidade de um EU pensante, que estilhaado, fragmentado, ao abrir-se multiplicidade de sujeitos, objetos, vozes, olhares sobre o mundo, incorporando escrita, e por que no dizer, experincia a idia de rede:

Chego assim ao fim dessa minha apologia do romance como grande rede. Algum poderia objetar que quanto mais a obra tende para a multiplicidade dos possveis, mais se distancia daquele unicum que o self de quem escreve, a sinceridade interior, a descoberta de sua prpria verdade. Ao contrrio, respondo quem somos ns, quem cada um de ns seno uma combinatria de experincias, de informaes de leituras, de imaginaes? Cada vida uma enciclopdia, uma biblioteca, um inventrio de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possveis.

Mas a resposta que mais me agradaria dar outra: quem nos dera fosse possvel uma obra concebida fora do self, uma obra que nos permitisse sair da perspectiva limitada do eu individual, no s para entrar em outros eus semelhantes ao nosso, mas para fazer falar o que no tem palavra, o pssaro que pousa no beiral, a rvore na primavera, e a rvore no outono, a pedra, o cimento e o plstico. . .

Tanto o recorte histrico como as contribuies de Benjamin, demarcam alguns pontos valiosos que indicariam caractersticas importantes do uso das oficinas nos servios de sade mental: - o primeiro seria em relao ao tempo; ou seja, no existiria ainda um objetivo claro de se produzir um excedente, ou mesmo em srie, a produo apresenta e instaura seu prprio ritmo, de acordo com a relao singular que cada arteso estabelece, simultaneamente ao processo de produo.

Um segundo ponto consistiria em que, os processos de produo teriam a capacidade de conter/produzir um coletivo, uma coletividade ou mesmo uma comunidade. Acredito ser necessria desenvolver esta idia da oficina se constituir como um territrio capaz de produzir/ conter um coletivo, no que se refere as prticas atuais institudas nos servios de sade mental. A palavra continncia apresenta um sentido bastante instigante e provocador.

Evidentemente no se trata de virtuosismo ou falsa erudio pensar sobre a etmologia e o sentido das palavras, elas podem abrir caminhos para que possamos pensar as palavras e os enunciados no como vocbulos neutros, mas em sua tessitura poltica, em suas modulaes e inscries na histria. Continncia, deriva do latim continentia que significa capacidade de conter algo, como por exemplo grande massa de terra como na palavra continente; mas tambm apresenta um sentido moralizante, se referindo absteno de prazeres, moderao, comedimento. Conter ou ser continente para algo no que tange s oficinas desdobra-se na capacidade de ancoragem, de um certo movimento da loucura, daquilo que radicalmente est deriva, irremediavelmente fora.

A idia de trabalho , no a instituio trabalho como a concebemos, mas o trabalho enquanto obra e exerccio de um ofcio, tambm guarda algumas peculiaridades que convidam a problematizar a relao oficina e reabilitao psicossocial. Etmologicamante trabalhar provm do latim tripaliare, como ato de martirizar com o tripalium ( instrumento de tortura utilizado na Inquisio); neste sentido trabalhar se constituiria como a ao de infringir sofrimento ao outro. Lembremos a citao de Michelet ,do infatigvel carro de cem agulhas que assim que recua, torna a avanar , presentificando o instrumento de tortura no cotidiano das fbricas de tecelagem muitos anos aps a Inquisio.Em seu duplo, trabalho tambm se contituiria como ato de ocupar e aplicar um ofcio, e novamente a idia de ocupao do tempo, como relao de pertencimento e no de desperdcio , mas um tempo que se traduz em obra, que coloca o arteso e a subjetividade tambm como resultante do processo em obra nas oficinas. Contudo seria importante cartografar os movimentos nas/das oficinas e problematizar quando estas derivam para o outro sentido de continncia, como moderao, instaurando as oficinas como territrios com possibilidades de interveno normalizadoras ( moderadora), despotencializando sua capacidade de produo em prol de uma atitude de regulao. Evidentemente no se trata de cair na cilada, at certo ponto ingnua, de tentar restituir um certo modo de organizao e funcionamento na esfera da produo atravs de uma concepo de oficina datada historicamente; claramente nos diferenciamos ao longo da histria, e no concebemos as coisas como concebamos antes, mas trata-se de empreender uma anlise de ns mesmos como seres historicamente determinados, utilizando o modo de operar as oficinas como um intercessor na construo do dispositivo oficina no campo da sade mental.

Nesta atitude de empreendermos uma anlise de ns mesmos, a histria abandona sua tarefa de historiografar o percurso das oficinas ao longo do tempo, mas ao contrrio, toma para si a tarefa de construir a prpria histria como oficina, isto , lugar de transformaes, onde o continuum se rompe, abrindo-se s experimentaes.

Podemos acrescentar a esta anlise as contribuies de Deleuze (2001:95) em suas leituras da obra de Hume, no sentido de articular subjetividade e experincia; tomando-a como um processo de artificializao de si, um desdobrar-se, um tornar-se outro , efetuando um movimento de ultrapassagem, de ruptura de seus prprios contornos, criando outros no limite mesmo de sua ultrapassagem.Hume e tambm Deleuze colocam o problema: Como o sujeito se constitui na experincia? Ao que acrescentaria: Como o sujeito se constitui na experincia das oficinas?

Deleuze inscreve a experincia, ou melhor , nega qualquer possibilidade de fechamento e de inscrio completa do sujeito a partir da experincia, ao contrrio, esta reserva algo de incompleto, de inapreensvel e se configura como uma sucesso movimentada de percepes distintas; onde tudo que separvel discernvel e tudo que discernvel diferente; ou dito de outra forma, a experincia, em seu movimento de ultrapassagem , em sua radicalidade, sempre experincia da diferena, ritmo de sensaes sem sistema, pura multiplicidade, tal qual descrita por Calvino .

No espao das oficinas no s a matria esgarada , manipulada e inventada: neste processo de artificializao ,o prprio sujeito se apresenta como invento.

1.1.2. O dispositivo oficina como intercessor nas prticas dos servios substitutivos XE "1.1.2. O dispositivo oficina como intercessor nas prticas dos servios substitutivos" Como pr em prtica a atual poltica de sade mental onde o processo de singularizao tomado como compromisso tico em contrapartida aos processos de cronificao e institucionalizao promovidos pela ideologia manicomial que atualmente se configuram num cenrio ps-manicomial? Que tipos de intervenes nos servios podemos oferecer que propiciem esta singularizao como um motor na prpria produo de vida dos usurios?

Como ento os servios substitutivos, mais especificamente os Caps tm instrumentalizado esta produo? Muitas perguntas, que no necessariamente precisam ser respondidas. Talvez possamos ficar , sem pressa, junto a elas; para que de fato elas nos despertem um impulso, um desejo de esboar um problema.

Tanto legalmente como no cotidiano destas instituies esta produo tem se legitimado atravs do legado das oficinas. Oficinas que lidam com as mais diversas materialidades e contextos. Mas do que se trataria uma oficina?

Segundo Rauter (2000) se trataria sobretudo de uma ao inclusora, de recuperar indivduos encarcerados, enquanto cidados atravs da mediao e produo na esfera do trabalho, em atividades artesanais, ou fornecer-lhes acesso a comunicao, etc.

No por acaso que as oficinas sejam empregadas como dispositivos privilegiados, devido a sua prpria maneira de produo, ser mais ampla, flexvel, fluida, capaz de acolher diferentes formas de ser e estar no mundo, diversos modos de existncia, compondo e afirmando movimentos de singularizao. Contudo, por si s um dispositivo de oficina abarcaria naturalmente estes vetores e possibilidades de singularizao? Citando mais uma vez Rauter, avanamos em direo ao problema. Rauter articula a partir de Deleuze e Guattari, desejo e poltica, desejo como criador de mundos e produtor de vidas conseqentemente, mas problematizando suas relaes e condies de possibilidades:

Deleuze utiliza a palavra construtivismo quando fala de desejo. O desejo um construtivismo, diz ele. Trata-se de construo no de espontaneismo. Normalmente quando profissionais psi falam de desejo, referem-se a fantasias, interioridades, intimidades. Sim, esse o modo de funcionar a que est reduzida a produo desejante no capitalismo. Mas o desejo por si mesmo revolucionrio por ser produtor no apenas de fantasias, mas de mundos, e por isto que a questo das oficinas se reveste de um carter imediatamente poltico. As oficinas sero teraputicas ou funcionaro como vetores de existencializao caso consigam estabelecer outras e melhores conexes que as habitualmente existentes entre produo desejante e produo da vida material. Caso consigam conectar-se com o plano de imanncia da vida, o mesmo plano com base no qual so engendradas a arte, a poltica e o amor.

(Rauter, 2000:270)

Evidentemente vivemos numa sociedade , onde os processos de trocas econmicas, afetivas, de comunicao , representao e simbolizao pertencem a um campo onde as produes so totalmente serializadas; todavia vivemos e morremos estabelecendo uma relao singular no encontro destes territrios-fragmentos que se afetam , se cruzam , se embaraam :

O que verdadeiro para qualquer processo de criao verdadeiro para a vida . Um msico ou pintor est mergulhado em tudo o que foi a histria da pintura , em tudo que a pintura em torno dele e, no entanto ,ele a toma de modo singular.Isso uma coisa , outra coisa a maneira como essa existncia, esse processo criativo ser depois identificado em coordenadas scio-histricas; isto no coincide com o processo de singularizao.

( Guattari, 1999: 69)

Retomamos a nossa pergunta-problema inicial: Do que se trataria uma oficina ?

Uma oficina se constituiria como um lugar de trabalho, no no sentido de espao onde se executam tarefas e manipulamos diferentes materialidades ; ou mesmo como setting teraputico, lugar privilegiado e protegido para se trabalhar uma espcie de matria subjetiva; mas atravessada por tudo isto, uma oficina s produzir sentido se tomada especialmente como uma certa forma de olhar e se posicionar: frente histria

( da a idia de oficina da histria ) se tomada como lugar de enunciao, de conhecimento, na contingncia entre o fazer a obra e o tornar-se obra.

Por ltimo gostaria de lembrar um pequeno episdio que me foi narrado.

Uma mulher, professora universitria, profissional ocupadssima, necessitava ir ao consultrio mdico e iniciar um tratamento que demandaria um certo tempo.

O mdico especialista lhe foi muito bem recomendado, e por isto seu consultrio estava sempre lotado com longas filas de clientes. A professora muito ocupada chega ao consultrio, muito apressada e se pe a reclamar da longa fila, e fica muito irritada, mas recolhe suas emoes ao perceber um tom de censura nas demais mulheres que igualmente aguardavam por atendimento. Censura e constrangimento que a fizeram parar, respirar fundo e olhar ao redor e reparar que todas as mulheres que l estavam, apresentavam muita tranquilidade e at. . . certa felicidade em estar numa fila.

As mulheres que ali esperavam, quase todas carregavam e se ocupavam de um bordado, um tric, uma costura, e absortas em sua atividade punham-se a falar de histrias, situaes, de seus afazeres, de suas dores, de sua vida. A sala de espera certamente no era a do psiclogo, nem do psiquiatra, muito menos do psicanalista, e suas falas no eram a de um grupo de mtuo-ajuda, e as vivncias no eram os traumas infantis nem to pouco eram do tipo EU tenho, EU sou, muito embora estes fragmentos atravessassem as histrias contadas, o ato de narrar permitia uma abertura, um distrair-se de suas identidades, forjando a histria no como curso, mas como desvio.

A multiplicidade que certamente rondava e se alojava na fila de espera, enredava as mulheres em outras falas que emaranhavam-se formando um novelo, tecendo outras redes.Elas falavam da novela das oito e da poltica atual, como tambm falavam da receita da av que guardava um segredo, do gato da vizinha, de uma travessura de criana, de uma traio, de uma perda, de um conselho da madrinha.

Passado algum tempo, claro que nossa profissional continuou apressada e incomodada com a situao, como tambm no se iniciou em nenhuma arte de trabalhos manuais, muito menos trocou de mdico. Ela simplesmente percebeu que aquelas mulheres, inventaram para si, no mais inspito e improvvel dos locais - uma fila de espera - uma relao de puro desvio, totalmente diferenciada com o tempo e consigo mesmas que, naquela situao aflitiva, ajudavam a sustentar aquela experincia, e mais que isso, as mergulhavam dentro mesmo de uma experincia, onde histrias e fazeres se conectavam e teciam um outro tecido, existencial talvez.

Penso na experincia do adoecimento psquico, experincia-limite da ordem do indizvel, e das formas de confinamento e excluso que se no interrompem, abalam drasticamente os fluxos da vida, inscrevendo os sujeitos num tempo opaco, contnuo, sem histria.

A situao da fila de espera, um tanto anedtica, nos aponta em que medida usamos o dispositivo oficina: - para recolocar os sujeitos na histria, na vida, reinventando-as; que como anjos, so resgatados e reencarnados, com seus gestos, apreendidos na experincia do trabalho, do fazer, do criar, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que dito, e do que, num fluxo inacabado, ainda se abre por dizer.

1.2. Vida: - instrues de uso XE "1.2. Vida\: - instrues de uso" Como foi visto no captulo anterior, o poder disciplinar, como descrito por Foucault incide, e produzido sobretudo na interface corpo-histria, imprimindo aos corpos ,ritmos, frequncias, tornando-os dceis, adestrados, individualizados; no sentido de acumular e capitalizar suas energias, apontando para a concretude, a materialidade das relaes de poder: Na verdade, nada mais material, mais fsico, mais corporal do que o exerccio do poder (...); indicando os tipos de investimentos do corpo necessrios ao funcionamento, manuteno, apropriao e recriao em uma sociedade capitalista, da os regimes austeros nas fbricas, casernas, escolas, oficinas, famlias, etc. Contudo, no cerne mesmo dos dispositivos disciplinares, encontramos a sua contraface, as tticas, os arranjos, sabotagens, as resistncias na ordem do poder.

Neste captulo pretende-se abordar as concepes de biopoltica e vida nua, respectivamente, na obra de Foucault e Giorgio Agamben, como superfcie privilegiada para problematizao do conceito de produo de vida no campo da Reabilitao Psicossocial.

Nos cursos de 1976, no Collge de France, Foucault desenvolve um novo deslocamento da problemtica do poder: do homem-corpo ao homem-espcie, isto , uma dimenso do poder que se abria e se ampliava sobre o homem enquanto ser vivo, ao que denominou de biopoder e de biopoltica.

Foucault aponta para um corte, ao final do sculo XVIII, de uma descontinuidade na instrumentalizao das tecnologias de poder, diferentemente do poder disciplinar, mas coextensivo a este. Trata-se do conjunto de processos e saberes que tero como objeto as taxas de natalidade, mortalidade, longevidade, prevalncia, incidncia e de intensidade das doenas; procedimentos e aplicaes que visavam o controle no mais do homem-corpo, mas a uma outra concepo de corpo, ou da multiplicidade de corpos, ao corpo unificado, compactadode todo o segmento da populao:

. . . a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade dos homens pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos.

. . . a nova tecnologia que se instala se dirige multiplicidade dos homens, no na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma uma massa global, afetada por processos de conjunto que so processos como o nascimento, a morte, a produo, a doena, etc. Logo, depois de uma primeira tomada de poder que, por sua vez no individualizante, mas que massificante, que se faz em direo no do homem-corpo, mas do homem-espcie.

(Foucault, 1999:289)

Neste contexto, o conceito de doena no mais encarado como algo a ser removido da ordem social, como no caso das epidemias, mas como fenmeno ameaador permanente, espreita, no sentido de subtrair e alterar o potencial das foras produtivas, e conseqentemente, diminuio nos ritmos de trabalho, afetando economicamente os fluxos dos modos de produo do capitalismo. A doena ento se traduziria em fenmeno populacional, e a idia de morte, no mais como aquilo que incide brutalmete e eventualmente, numa dimenso trgica ou conjuntural, mas a morte que vive espreita, sorrateira, que penetra e se alastra, consumindo e enfraquecendo a vida; fomentando uma srie de saberes e instituindo novas disciplinas como a higiene em sua dimenso de poltica pblica, construindo estratgias preventivas como a medicalizao da populao.

Fnomenos que anteriormente se apresentavam como resultantes do curso natural da vida, como o nascimento e especialmente a velhice ,so tomados como indicadores de um fluxo de vida que esmorece, que debilita a capacidade de produo, donde o que se apresentava como movimento de errncia nos verbos da vida, excludo, isolado, preferencialmente erradicado, assim como as enfermidades e anomalias diversas.

A concepo de vida ento esquadrinhada, esteticizada, vasculhada por uma srie de procedimentos: - Vida : instrues de uso, apontando uma srie de tecnologias que objetivam a manuteno da capacidade produtiva dos viventes, atravs de regras de bem viver e de produo da longevidade, atravs de dietas, da medicalizao, autorizando inclusive em sua obsena radicalidade o extermnio, o holocausto.

Foucault e posteriormente Giorgio Agamben, indicam o Nazismo como uma prtica genuinamente biopoltica, pois atravs de uma srie de procedimentos radicais de controle, excluso e extermnio, executam seu projeto de apurao da raae de embelezamento do mundo, levando a uma estetizao da poltica, o que pode ser ilustrado nas propagandas oficiais de glorificao do corpo, tendo como pice os filmes de Leni Riefenstal, como Triunfo da Vontade e Olimpia que mostram toda grandiosidade e perfeio dos comcios e marchas dos exrcitos da SS, bem como a exploso do corpo perfeito, no auge de sua capacidade produtiva, nos Jogos Olmpicos de 1936.

notria a perseguio de Hitler aos movimentos artsticos e arquitetnicos que escapavam da ideologia e do ideal da forma nazista, pintores como Van Gogh, e movimentos como a Bauhaus foram banidos e proibidos na Alemanha, pois afirmavam em suas obras a forma singular, errante, desviante como processos imanentes, de experimentao e constituintes da forma-vida.

Vale tambm ressaltar, que um dos primeiros alvos da perseguio nazista em seu ideal de perfeio, foram os portadores de anomalias fsicas e mentais. A analogia, nos filmes de propaganda, aos doentes mentais, posteriormente aos judeus, com insetos que deveriam ser eliminados em massa, da a concepo das cmaras de gs. O belo, mas perturbador filme Arquitetura da Destruio ( Alemanha/Sucia, 1989, direo Peter Cohen), ilustra bem o projeto biopoltico e esttico do nazismo, e de como a subjetividade da populao era investida. A biopoltica do estado nazista no foi inveno de um louco visionrio, mas produo endossada pelo sonho pequeno-burgus da sociedade alem:

Os nazista eram faxineiras no mau sentido do termo. Trabalhavam com esfreges e vassouras , pretendendo purgar a sociedade de tudo o que eles consideravam podrido, sujeira , lixo: sifilticos, homossexuais, judeus, sangues impuros , negros , loucos. o infecto sonho pequeno-burgus da limpeza racial que subentendia o sonho nazista. ( Foucault, 2001:21)A biopoltica nazista aquela que opera uma indiferenciao no cerne da vida nua, natural, e da vida politicamente qualificada, em sua ao de diferenciao. Neste processo, a vida nua fagocitaas formas de vida ( em suma ,as diferenas), subsumindo-as vida nua.

Walter Benjamin, ele prprio vtima da perseguio nazista, postulava como contra-movimento estetizao da poltica, a politizao da arte, especialmente no que se refere ao cinema e a suas possibilidades enquanto meio de comunicao para as massas. Em sua radical inverso, no mais como veculo de manipulao destas, mas como ferramenta crtico-esttica; citando o teatro de Brecht e os filmes de Eisenstein como ferramentas-manifestos de politizao da arte. Se a estetizao da poltica homogeneiza, indiferencia os fluxos da vida, em contrapartida, a politizao da arte, a ao de estranhamento, que estilhaa, atravessa, arruna e diferencia, numa operao de singularizao.

O processo de homogeneizao prossegue e incide, deslocando da idia de vida, a forma vida, isto , vida como percurso singular e no como otimizao de erros.

A vida ento passa a ser compreendida como administrao dos erros, isto , como um tentar manter-se no bom caminho, sem desvios, evitando e erradicando qualquer possibilidade de desregramento: vida como algo totalmente preenchido, macio, homogneo, sem lacunas, sem faltas.

Neste processo de preenchimento, onde o projeto e porque no dizer o desejo de nada faltar, paradoxalmente, engendra no plano dos investimentos da subjetividade capitalstica, a supresso da produo do imperfeito, do faltante:

A falta arrumada , organizada, na produo social (...) Nunca primeira: a produo nunca organizada em funo de uma falta anterior mas ,sim , a falta que se aloja, se vacualiza, se propaga, segundo a organizao de uma produo prvia. arte de uma classe dominante, essa prtica do vazio como economia de mercado: organizar a falta na abundncia de produo , fazer vacilar o desejo pelo grande medo de falhar, fazer depender o objeto de uma produo real que se supe exterior ao desejo ( as exigncias da racionalidade), enquanto a produo do desejo passa para o fantasma ( e s para o fantasma).

( Deleuze & Guattari, 1995:32)

A vida como modo de vida, como singularidade, como errncia, perde progressivamente sua expresso, especialmente nos modos de produo do capitalismo, onde a subjetividade totalmente investida, seu capital mais bem preservado, visando constantemente reintegrar ao seu esplio, os vetores, as errncias, massificando-as.

No belo texto de 1984, Foucault, em homenagem a Georges Canguilhem, A vida: a Experincia e a Cincia procura afirmar a dimenso real , imanente da vida como pura errncia:

. . . Ele mostra como o problema da especificidade da vida foi recentemente desviado em uma direo, na qual se encontram alguns problemas que se acreditava pertencerem propriamente s formas mais desnvolvidas da evoluo.

No centro desses problemas, h o erro. . . pois, no nvel mais fundamental da vida, os jogos do cdigo e da decodificao abrem lugar para um acaso que, antes de ser doena, dficit ou monstruosidade, alguma coisa como uma perturbao no sistema informativo, algo como um equvoco. No limite, a vida da seu carter radical o que capaz de erro. E talvez, ou melhor a essa eventualidade fundamental que preciso pedir explicaes sobre as mutaes e os processos evolutivos que elas induzem. Tambm preciso interrog-la sobre esse erro singular, mas hereditrio, que faz com que a vida desemboque, com o homem, em um vivente que nunca se encontra completamente adaptado, em um vivente condenado a errar e a se enganar.

Se admitimos que o conceito a resposta que a prpria vida d a esse acaso, preciso convir que o erro a raiz do que constitui o pensamento humano e a histria.

(Foucault, Ditos e Escritos II, 2000:364)

E mais adiante, abala, e desestabiliza as certezas das cincias e do conceito, que em certa perspectiva esto circunscritos na ordem da verdade, problematizando-a, ou seja, a verdade como inveno singular, como um modo de vida:

Canguilhem diria talvez (. . . ) que ela (a verdade) , no enorme calendrio da vida, o mais recente erro; ou mais exatamente, ele diria que a dicotomia verdadeiro-falso, assim como o valor atribudo verdade constituem a maneira mais singular de viver que foi inventada por uma vida, que do mago de sua origem trazia em si a potencialidade do erro. Para Canguilhem, o erro a contingncia permanente em torno da qual se desenrola a histria da vida e o futuro dos homens.

(Foucault, 2000:385)

Giorgio Agamben ( 2002: 9 ), a partir da obra de Foucault e de seu postulado sobre biopoltica, complexifica o problema, recuperando a dimenso vida na concepo dos gregos, que serviam-se de dois termos distintos para express-la: zoe, que exprimia o simples fato de viver, a vida nua, comum a todos os seres, inscrevendo-a portanto no estatuto do vivente ( animais, plantas, homens); e bios que implicava a forma ou maneira de viver prpria de um indivvuo, ou de um grupo, no sentido dos atos que a singularizam e a qualificam. Uma das aes responsveis, no mundo grego, por qualificar a vida, produzindo-a e afirmando-a em sua diferena era a atividade poltica exercida na polis.

Em duas passagem de sua Poltica, citadas por Agamben, Aristteles nos aponta uma interessante tenso entre as concepes do termo vida e sua articulao com a poltica, como um modo de singularizao:

Uma cidade construda por diferentes tipos de homens; pessoas iguais no podem faz-la existir (...)

Este ( o viver segundo o bem) o fim supremo seja em comum para todos os homens, seja para cada um separadamente. Estes, porm, unem-se e mantm a comunidade poltica at mesmo tendo em vista o simples viver, por que existe provalvelmente uma certa poro de bem at mesmo no mero fato de viver; se no h um excesso de dificuldades quanto ao modo de viver, evidente que a maior parte dos homens suporta muitos sofrimentos e se apega vida ( zoe), como se nela houvesse uma espcie de serenidade e uma doura natural.

(Agamben, 2002:10)

com referncia a esta ltima passagem que Foucault, no texto A Vontade de Saber circunscreve no limite, nas bordas da Modernidade, a incluso da vida natural, como pressuposto essencial nas tecnologias e mecanismos do poder estatal, vertendo-se em uma biopoltica:

Por milnios, o homem permaneceu o que era para Aristteles: um animal vivente e, alm disso, capaz de existncia poltica; o homem moderno um animal em cuja poltica est em questo a sua vida de ser vivente.

(Foucault, 1976:127)

Retomo, a partir das ferramentas apresentadas, a questo da produo de vida nas polticas e prticas de Sade Mental, especialmente no campo da Reabilitao Psicossocial.

Certamente existe um paradoxo que encerra o prprio termo reabilitar, isto , em seu sentido de tornar algum competente, habilitado e adaptado, naquilo que momentaneamente se encontra faltoso, irregular, deficitrio. Por outro lado, Foucault no texto sobre Canguilhem afirma que faz parte do plano de imanncia da vida o erro, alis a vida, ela mesma se confirmaria atravs de sua vertente errante. A relao do vivente com o tecido de sua vida nunca de plena e completa adaptao, mostrando que os processos de produo de vida so essencialmente precrios e incompletos.

No convvio com portadores de transtornos mentais, um desafio se coloca cotidianamente: os trabalhadores em sade mental habitam e circulam na linha tnue da vida como diferena ou errncia, que afirmam as potncias de vida para alm dos sintomas, das habilidades, das inadequaes; reposicionando-as como possveis modos de existncia. Por outro lado, as polticas pblicas mesmo aquelas que procuram resguardar as chamadas diferenas,podem produzir estratgias e mecanismos refinados de homogeneizao em nome de processos e polticas de incluso social. , abolindo e erradicando a forma-vida em sua singularidade, em seus modos, e neste movimento, despolitizam a prpria vida.

Os portadores de transtornos mentais so enredados por um forte movimento de institucionalizao, tanto aqueles que se referem concretude dos muros e ritmos asilares, como aqueles a cu aberto, em seu embarao e contrangimento ao entrar num nibus, sentar num banco de praa absorvidos por um mundo no compartilhado.Controles a cu aberto, atualizados nas senhas dos cartes, das cmeras que no mais necessitam ser ocultadas.

A produo de vida se construiria ento a partir dos movimentos mais delicados, nas estratgias mais banais como: escolher uma roupa, comer com garfo e faca, passear pela cidade, preparar um currculo, ir a uma entrevista de emprego. Nestes pequenos gestos esto guardadas as possibilidades da vida restituir-se, engendrar-se, e afirmar-se na realizao de suas virtualidades:

E contra esse poder ainda novo no sculo XIX, as foras que resistem apoiaram-se sobre aquilo mesmo que ele investira ou seja, sobre a vida e o homem na medida em que ele um vivente.Desde o sculo passado, as grandes lutas que pem em questo o sistema geral de poder no se fazem mais em nome de um retorno aos antigos direitos (...) ;o que reveindicado e serve de objetivo a vida , entendida como necessidades fundamentais , essncia concreta do homem , realizao de suas virtualidades, plenitude do possvel.Pouco importa se se trata ou no de utopia; tem-se a um processo muito real de luta ; a vida como objeto poltico foi de algum modo tomada ao p da letra e revirada contra o sistema que se esforava em control-la. a vida muito mais que o direito que se tornou ento foco das lutas polticas , mesmo se estas se formulam atravs do direito. O direito vida , ao corpo, sade , felicidade, satisfao das necessidades. ( Foucault,,1985:137)

No percurso sugerido, tendo Foucault e Agamben como interlocutores, algumas brechas so encontradas na ordem do que se apresenta como inexorvel , definitivo, sufocante, referidos aos processos de controle e modelizao da subjetividade cada vez mais sofisticados, cada vez mais invisibilizados.Brechas que tornam vulnerveis uma dimenso na ordem do poder que inicialmente se mostra como macia, incombatvel, em outras palavras: no mesmo domnio em que incide a dominao biopoltica , da vida reduzida e confinada vida nua , trata-se de vasculhar e reencontrar aquele trao singular, aquela uma vida , tanto na sua beleza nfima, singela, quanto na sua capacidade , sempre presente, de fazer variar suas formas, de inventar-se, e dar-se forma.

1.3 Um nome e vrias histrias: o Caps Rubens Corra e o movimento de sua criao XE "1.3 Um nome e vrias histrias\: o Caps Rubens Corra e o movimento de sua criao"

O Caps Rubens Corra foi inaugurado em 5 de junho de 1996. No municpio do Rio de Janeiro, no existiam ainda dispositivos com o formato Caps, mas prticas e instituies em sintonia com o iderio da Reforma Psiquitrica que funcionavam ainda acopladas ou no interior de hospitais psiquitricos, como era o caso do Naps Heberth de Souza situado em Niteri, funcionando como uma extenso do hospital psiquitrico de Jurujuba; assim como o CAIS e o CAD, ambos hospitais-dia situados respectivamente no Hospital Psiquitrico Phillipe Pinel e Instituto de Psiquiatria da UFRJ (IPUB), bem como o EAT (Espao Aberto ao Tempo), situado no Instituto de Psiquiatria Nise da Silveira, este ltimo, o hospital psiquitrico pblico de referncia da rea Programtica 3. 3, da qual o bairro de Iraj faz parte.

Em So Paulo funcionava o Caps Luiz Cerqueira; fundado desde 1989, como referncia prtica e concreta para os servios em fase de implementao. As experincias institucionais, com excesso de So Paulo, ainda eram muito embrionrias e no contavam com apoio e fora poltica suficientes para se consolidarem como polticas pblicas de sade. Neste contexto, uma equipe composta por trs profissionais elaborou o projeto do Caps Rubens Corra que ento foi apresentado ao ento Secretrio de Sade Raul Gazzolla.O projeto visava assistir portadores de transtornos mentais graves em servio territorializado, com uma grade de funcionamento dirio, de 8:00h s 16:00h, exceto finais de semana com objetivo de atender a demanda da rea, e especialmente desarticular o circuito internao-desinternao que se mostrava como nica interveno possvel ao tratamento de transtornos mentais.

A equipe ocupa o espao da LBA (Legio Brasileira de Assistncia) em Iraj e realiza sua capacitao tcnica com os profissionais do IPUB/UFRJ.

Os profissionais so lotadas e iniciam o levantamento da demanda da rea, alguns tcnicos realizam revezamento para atuarem na porta de entrada do Hospital Nise da Silveira, afim de encaminharem a clientela preferencial para o Caps, tentando interferir diretamente no circuito internao/desinternao. O Caps funcionava com horrio parcial, no oferecendo neste momento almoo para sua clientela. Mesmo funcionando precariamente, com poucos profissionais: uma coordenadora, um mdico-psiquiatra, duas psiclogas, uma terapeuta ocupacional e uma auxiliar de enfermagem o Caps diminuiu sensivelmente o nmero de internaes, bem como uma estabilizao dos quadros clnicos. Em seu percurso institucional de oito anos, o Caps apresentou trs surpervisores.

Num primeiro momento a superviso clnico-institucional de Paula Cerqueira imprime um sentido de orientao e formao da equipe do Caps, com Regina Benevides a superviso ganhava um significado novo, consolidando a equipe como coletivo co-responsvel, onde foram colocados em anlise os dispositivos oferecidos pelo Caps como as oficinas e grupos, bem como os processos de gesto e de trabalho em equipe, como tambm o papel do Caps como ordenador da rede de ateno em sade mental, o que num primeiro instante significava que a instituio tomaria para si a responsabilidade de circulao, encaminhamento e acompanhamento de todas as aes em sade mental da AP3. 3, conforme declara a portaria 336 do Ministrio da Sade.

Neste segundo momento afirmamos a discusso, organizao e gesto dos processos de trabalho em equipe, atravs de um projeto de planejamento, avaliao e gesto anual 2001, uma Odissia do Caps, para alm da simples hierarquizao de tarefas, rompendo com o hbito e o clich do modo de produo organizacional-burocrtico, mas ao contrrio, como estratgia de interferncia no plano do coletivo. Com esta proposta ganha flego as problematizaes em relao ao estatuto do Caps, enquanto dispositivo clnico-poltico, produzindo desdobramentos claros em seu esquema funcional. A Assemblia Geral do Caps assume seu papel irradiador, como dispositivo preferencial de interveno, atravs da qual, transitam e se atravessam os demais dispositivos, como as oficinas, grupos, atendimentos individuais, todos estes em articulao com a clientela atravs dos projetos teraputicos individualizados (PTIs), que periodicamente seriam avaliados, e modificados, de acordo com os movimentos e desejos da clientela.

Outro problema que tambm se colocava era a da superlotao do servio com um montante de quinhentos clientes, o que nos forou a negociar, no final de 2002, com a gerncia de sade mental o fechamento da porta de entrada do Caps. neste ponto de bifurcao da histria do Caps que inicio meu trabalho como psicloga e oficineira atravs de um convnio do Caps com a Universidade Federal Fluminense, onde realizava o curso de Especializao Clnica Transdisciplinar e Instituies Pblicas. Apresento um projeto/experimento de oficina denominado Sucata, onde inicialmente a partir de objetos desvalorizados pelo consumo, poderamos recriar e produzir novos valores: ticos e estticos.

Esta concepo de trabalho foi sendo circunscrita no cotidiano do Caps paulatinamente, sofrendo transformaes ao longo de seu processo de instaurao, uma delas seria de afirmao de um espao e uma prtica hbrida de entre-lugares, onde vrios vetores de existencializao pudessem e necessitassem se afetar mutuamente: vetor trabalho, teraputico, de convivncia, da arte. Esta experincia seria passvel de sustentao? A Sucata vai se transformando processualmente mais do que uma proposta, mas numa metodologia de investigao clnico- institucional: Sucata, do rabe sugat, que significa reunir, fundir, arranjar o que estava fragmentado. As fragmentaes, no apontavam para uma fragilizao das prticas, mas ao contrrio eram vivas, concretas e proliferavam afirmativamante no cotidiano: fragmentao do corpo psictico e do corpo das prticas em reabilitao fragmento, cruzamanto de falas nos livros de registro, que para nada servem, a no ser registrar: registro-sobra, registro-detrito, registro-sucata. Se por um lado sucata denota na lngua corrente aquilo que est desgastado, desvalorizado, caberia inverter e subverter tal lgica: a partir do fragmento, do discurso entrecortado, do lixo do cotidiano, produzir valor, produzir saber: no se tratava mais de conhecer para transformar, mas de transformar, inverter, transgredir as lgicas para conhecer; por exemplo, que prticas temos estabelecido e delimitado no campo da reabilitao e na prtica com as oficinas.

Na anlise dos livros de registro este contexto e as nuances deles decorrentes ficam explicitadas, como os pontos de inflexo em sua trajetria histrica, tenses e embates: se num primeiro momento a equipe estava mais centrada em prticas clnicas strictu sensu, centradas na remisso de sintomas, e de internaes; apresentando uma prtica muito mais privatizada, individualizante, do que num segundo momento onde a esfera poltica comea a ser melhor enunciada, arguindo inclusive a dicotomia entre clnica e poltica.

Atualmente com a superviso de Eduardo Passos outras questes emergiram, como por exemplo colocar em anlise a prpria instituio da superviso;entendendo que esta possa funcionar como um permanente e desconcertante processo instituinte, ou permanecer como um mero reprodutor do institudo. Como estratgia analisadora das prticas, no sentido de manter em constante movimento de circulao as potncias instituintes no cotidiano, optou-se coletivamente pela articulao de trs vetores: discusso dos casos clnicos e das ferramentas conceituais que balizam nossas prticas, e o papel dos dispositivos no limite delas. Outro aspecto que deflagrava uma crise ainda era a porta de entrada fechada e o esgotamento em termos de trabalho em decorrncia da superlotao do servio.

Neste cenrio, uma categoria funcional se colocava como vetor privilegiado dos modos de enunciao e visibilidade contidas nesta experincia de crise: - a categoria de tcnico de referncia. As discusses que se seguiram apontaram para a criao de um novo dispositivo: o grupo-tcnico de referncia, composto por um mdico, um tcnico e um estagirio, que acompanham um grupo de clientes.

Nesta perspectiva vem se desenhando outros tipos de experimentao na relao da equipe com os PTIs e com os demais dispositivos do servio, que esto sendo acompanhados com avaliaes peridicas dos impasses e avanos detectados.

2.- A Oficina da Histria XE "2.- A Oficina da Histria" Um dia, em terras africanas dos povos iorubs, um mensageiro chamado Exu andava de aldeia em aldeia procura de soluo para terrveis problemas que na ocasio afligiam a todos, tanto os homens como os orixs. Conta o mito que Exu foi aconselhado a ouvir do povo todas as histrias que falassem dos dramas vividos pelos seres humanos, pelas prprias divindades, assim como por animais e outros seres que dividem a Terra com o homem. Histrias que falassem da ventura e do sofrimento, das lutas vencidas e perdidas, das glrias alcanadas e dos insucessos sofridos, das dificuldades na luta pela manuteno da sade contra os ataques da doena e da morte. Todas as narrativas a respeito dos fatos do cotidiano, por menos importantes que pudessem parecer, tinham que ser devidamente consideradas. Assim fez ele, reunindo 301 histrias, o que significa, com o sistema de enumerao dos antigos iorubs, que Exu juntou um nmero incontvel de histrias. Realizada esta pacientssima misso, o orix mensageiro tinha diante de si todo o conhecimento necessrio para o desvendamento dos mistrios sobre a origem e o governo dos homens, mulheres e crianas e sobre os caminhos de cada um na luta cotidiana contra os infortnios que a todo momento ameaam cada um de ns, ou seja, a pobreza, a perda dos bens materiais e de posies sociais, a derrota em face do adversrio traioeiro, a infertilidade a doena e a morte.

. o babala aprende essas histrias primordiais, que relatam fatos do passado, que se repetem a cada dia na vida dos homens e mulheres. Para os iorubs antigos, nada novidade, tudo que acontece j teria acontecido antes. . Identificar no passado mtico o acontecimento ocorrido no presente a chave da decifrao oracular. (Reginaldo Prandi, Mitologia dos Orixs, pg 17)

. curioso relembrar destas coisas agora, nesta discusso sobre Assemblia. So tantas as coisas, detalhes que esquecemos, e quando paramos comeamos a recordar e pensamos na nossa histria, no nosso trabalho, nas oficinas, no Caps. No nicio no tnhamos experincia, tudo era muito novo, estvamos aprendendo a trabalhar . Lembro que numa Assemblia escrevemos uma espcie de procedimento, cartilha, caso isto ocorresse agiramos assim, paciente agiu de determinada forma, agiramos de tal jeito, isto foi discutido em assemblia e depois de um tempo notamos que a assemblia estava se esvaziando, agora estamos aqui discutindo novamente.

(Psicloga do Caps, na superviso do dia 2. 04. 2003, cujo tema era o dispositivo assemblia)

A tradio iorub nos aponta alegoricamente na arte e nos jogos da decifrao oracular o encontro do passado com o presente, como exerccio de uma obra aberta, em constante construo, que se apresenta de acordo com as agruras, dores, surpresas, batalhas e felicidades que compem o tecido sempre renovado da vida. A tarefa ou ato de decifrardiferentemente de qualquer tipo de interpretao ou valor hermenutico, nos mostra uma espcie de redeno e libertao, no choque de um passado com um presente, uma vez que a partir deste que so produzidas alianas profanas, heresias, estranhamentos que nos arrancam de um certo contexto, rompendo sua continuidade, e transportando a outros que se abrem possibilidade de outros olhares, despertando e criando novas matrias, despontando para uma multiplicidade dos possveis que cabem numa histria: possveis que no falam s de um nome, mas de todos os nomes, como tambm faz falar aquilo que no tem palavra como a rvore do outono e da primavera, a pedra, o ferro, o cimento e o plstico. . . Alianas profanas que permitem tradio iorub desagregar-se de si para encontrar-se com a memria e perplexidades do especialista do Caps, produzindo o desejo de interrogar, se desacomodando com o esvaziamento dos espaos e tambm da prpria histria, deslocando certezas que eram anteriormente confirmadas numa Carta de Convivncia.

O carter alegrico aqui exposto no se trata de recurso meramente estilstico, mas como afirmao e mtodo de pensamento, de seu movimento, de seu ir e vir; a alegoria ento expressa uma fico que apresenta uma coisa para dar idia de outra, se configurando numa multiplicidade. Esta multiplicidade requer uma desconfiana insupervel da marcha natural das coisas, sua demarch a destruio e fragmentao de contextos orgnicos, para que outros apaream, quebrando uma linearidade temporal, onde passado e presente se justapem, numa temporalidade intensiva. O historiador-alegorista e sucateiro trabalha neste registro de uma temporalidade intensiva, que estilhaando uma linearidade temporal, recolhe os cacos, as runas da histria, para com eles construir outras imagens que se oferecem ativamente aos sentidos, percepo, aos discursos, histria.

Utilizar a histria como forma de instigar e engendrar o pensamento, no visa apenas contar as muitas histrias que atravessaram o cotidiano institucional, no ato flagrante de rememorar-festejar vidas que perpassaram pelo Caps ou de que forma o Caps atravessou essas vidas.

O ato de conspirar com a histria (e muitas vezes contra ela), de ficcionar a partir dela, se transforma no desejo de composio, de efetuar montagens tal como num caleidoscpio, que rene fragmentos, restos e produz a partir da fratura de seus pedaos, surpresas bruscas, solavancos, lampejos no olhar, visibilidades, encantamento e assombro em vislumbrar uma outra imagem. Recolher os escombros do passado no significa aprisionar-se a eles, trata-se de uma postura tica e poltica em comp-los como uma espcie de presente que se oferece ao momento atual e que se deixa para o futuro, salvando as imagens e experincias do passado, ricas e significativas, ameaadas pelo esquecimento. Rememorar aqui toma o sentido de um olhar preciso e cortante ao tempo presente, especialmente a estas estranhas ressurgncias do passado no presente, que no significam simplesmente no esquecer o passado retendo-o nas mos, mas tambm e apesar dele, agir sobre o presente, como movimento crtico, de problematizao e transformao.

Retornando idia de alegoria que procura abrir algumas brechas e se confunde com o prprio movimento da histria, isto , ela inscreve as imagens, e os pensamentos por ela inspirados numa concretude histrica, temporal, efmera, transitria, onde a precariedade do mundo se afirma, arruinando a unicidade das imagens e dos discursos que se tecem a partir delas. Comparativamente, na dimenso simblica h uma aglutinao entre significante-significado (Todorov, 1976 apud Gagnebin, 1999: 36), na alegoria esta continuidade entre significante e significado radicalmente rompida, estilhaada. Se no registro do smbolo os diamantes so eternos, encravados no corao da terra ou fetichizados (eternizados) como jias, em sua transparncia e dureza at o final dos tempos, no procedimento alegrico, ao contrrio, os diamantes habitam a superfcie da terra, se misturando ao lodo, sofrendo a ao do tempo: - tornam-se opacos, desgastam-se, agregam-se a outras coisas da natureza, criam porosidade, rolam o leito dos rios, transfiguram-se em seixos, renunciando a sua eternidade.

Esta concepo de histria, que coleciona fragmentos, cacos e os recupera para transformar-se em outra coisa, revela o trabalho discreto e artesanal da histria como oficina: coletar, compor e transformar sua matria, vivific-la, atualiz-la. Esta perspectiva encerra uma crtica da histria contnua, progressista e acima de tudo da histria- trofu dos vencedores. Neste caso a crtica mescla-se histria, no sentido de explodir um certo continuum da histria, de uma concepo naturalizada, triunfalista, de uma histria dos vencedores que d as costas a conflitualidade e se remete a uma unanimidade, a um tempo vazio. Segundo BenjaminA histria o objeto de uma construo cujo lugar no o tempo homogneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras. (Benjamin, , 1993;229).

Walter Benjamin, em sua obra inacabada e fragmentria intitulada O Trabalho das Passagens, que reune vrios textos sobre a cidade de Paris do sculo XIX, versa sobre diversos subtemas, como a histria, a arte, o cotidiano, a burguesia, a poltica, o marxismo, compondo um belo e atordoante mosaico da modernidade.

Nesta construo bastante original, gostaria de destacar a relevncia de seus escritos sobre histria, tanto nas formulaes de 1940 Sobre o conceito de Histria, como nos fragmentos N do Trabalho das Passagens, onde esboa (e nos estimula) tanto conceitualmente como metodologicamente qual o projeto de se fazer histria ou mais especificamente A que serviria fazer histria?, de inspirao fortemente nietzschiana, evocando o texto de 1874 Da Utilidade e Desvantagem da Histria para a Vida.Benjamin nos apresenta uma concepo de histria no reativa, apontando algumas feridas incurveisde um certo discurso marxista, compreendendo a histria como um transcorrer linear, apontando exaustivamente para a luta de classes e a pulverizao sistemtica do passado que forneceria, incondicionalmete, a promessa de uma vida a partir da revoluo. Benjamin, ao contrrio, pensa na contramo tanto de uma historiografia burguesa, que concebe e mantm a histria dos vencedores, evocando um passado macio e eterno; como de uma concepo cientfica, cujos fatos histricosse encaminhariam atravs de uma marcha em direo ao progresso.

A contramo e a infmia do pensamento benjaminiano reside no na concretizao da promessa de uma vida a partir da revoluo (seja ela tecnolgica, ou das classes operrias), mas da possibilidade revolucionria de uma vida. Esta fora revolucionria de uma vida, aparentemente sufocada, invisibilizada, justamente porque esta habita no os grandes atos da histria, mas o que h de mais banal, frgil e precrio. Ela no cessa de se afirmar, combatendo com armas mais sutis, abrindo clareiras atravs de astcias, ironias, jogos, que sempre questionaram o triunfo da histria oficial; produzindo rachaduras, brechas, as mais tnues, as quais o historiador/pesquisador deve se manter atento no sentido de perceber as emergncias do presente.

Nos pequenos gestos e atividades do cotidiano nos deparamos com repeties tediosas, astcias nos fazendo escapar da rotina, surpresas, minsculos embates, com narraes de modos de existir indissociveis do mundo que aparentemente encontra-se do outro lado dos limites do dia-a-dia. Na cotidianeidade a histria se faz atenta experincia do sujeito definido no por sua individualidade ausente de mundo, ou pela soberania da conscincia, mas por presenas e outras narrativas de experincias, por gestos e aes inconclusas compondo um coletivo heterogneo o sugerindo a agir. Atravs do cotidiano a histria marca a sua fora decompondo significados compactos e abstratos do que seja ser o sujeito, ou do humano.

(Baptista, 2000:2) no ordinrio da vida que as emergncias se instalam, no para serem descobertas, desveladas, mas que, ao tropearmos nelas, desatentos, elas nos toquem, nos violentem a ponto de irremediavelmente sermos arrancados e banidos a outros regimes de visibilidade:

Um problema central do materialismo histrico que finalmente deveria ser observado: se a compreenso marxista da histria tem de ser adquirida necessariamente ao preo da visibilidade da prpria histria. Ou: por qual caminho possvel unir visibilidade intensificada e aplicao do mtodo marxista?O primeiro passo deste caminho ser assumir o princpio da montagem na histria. Erigir, assim, as grandes construes a partir de minsculos elementos confeccionados de modo ntido e preciso. E mesmo descobrir, na anlise do pequeno momento particular, o cristal do acontecimento total. Romper, portanto, com o naturalismo histrico vulgar. Compreender a construo da histria enquanto tal. Detritos da histria.

(Benjamin apud Ferrari, 1997:75).

No fragmento apresentado, dar visibilidade se traduz metodologicamente atravs do artifcio da montagem, visibilidade esta tornada possvel posto que atende e explode como especificidade, puro acontecimento. No se trata tambm de uma viso totalizante, mas entrecortada, dilacerada que possibilita ao historiador construir as imagens dialticas. A materialidade bruta dessa visibilidade so os acontecimentos da vida social, nfimos, banais, quase imperceptveis: os fatos da vida cotidiana, da alimentao, do vesturio, das habitaes, dos costumes familiares, do direito privado, das relaes na sociedade, que o historiador tradicional rejeita. (Benjamin apud Muricy, 1999:225)

na possibilidade de montagem fundada no movimento crtico entre passado e presente que construirei minhas ferramentas de anlise no sentido de problematizar e explicitar as prticas que tm se instrumentalizado nos dispositivos de oficinas. Executar esta montagem, visibilizar os detritos da histria inventariar/criar image dialtica, no aspirando uma sntese, ou mesmo a necessidade de suportar a possibilidade da contradio, mas habitar mesmo os interstcios, as frestas da histria como afirmao de uma infmia, de uma diferena. Segundo Gagnebin, situando o conceito de imagem dialtica na obra de Walter Benjamin (1994:47):

Se pode haver uma salvao do passado no e pelo presente, porque o passado nunca volta como era. Ao ressurgir no presente, ele se mostra como sendo, ao mesmo tempo irremediavelmente perdido enquanto passado, mas tambm transformado por este seu ressurgir: o passado outro e, no entanto semelhante a si mesmo. Por isso a sua imagem no simples cpia, reproduo do mesmo. uma imagem dialtica como a chama Benjamin. Dialtica porque junta o passado e o presente numa intensidade temporal diferente de ambos; dialtica tambm porque o passado, neste seu ressurgir, no repetio de si mesmo; tampouco pode o presente, nesta relao de interpelao pelo passado, continuar igual a si mesmo. Ambos continuam a ser passado e presente mas, no entanto, diferentes de si mesmos na imagem fugitiva que ao reuni-los, indica a possibilidade de sua redeno.

O uso do conceito de dialtica na obra benjaminiana exige um certo exerccio de delicadeza e de certa atitude de estranhamento do pensamento, posto que ao longo do tempo, vrias disciplinas como a Filosofia e a prpria Histria se encarregaram de matiz-la nos mais diversos registros. Atualmente esta diferenciao se torna urgente, especialmente quando em tempos ps-modernos, o termo dialtica poderia evocar ideologias slidas, ultrapassadas, que se esvaneceram e se desmancharam no ar, arrastadas pela fluidez das correntes neo-liberais, que anunciam como a derradeira verdade o fim das utopias;ou ao contrrio, aludir a uma espcie de benfeitoria metodolgica universal, tomando o termo dialtica como verdade, como leis absolutas da histria ou da natureza. Os escritos de Marx, sem dvida influenciaram as concepes de histria, cultura e arte em Benjamin. Portanto, encaminharemos a discusso para o delicado percurso do conceito de dialtica, em seu sentido etimolgico, para depois o situarmos em Marx, e por ltimo na obra benjaminiana.

A palavra dialtica, do grego dialgestai composta pelo prefixo dia que significa aquilo que perpassa atravs do todo, ou o que divide, decompondo o que anteriormente estava unido; e pela palavra lktikos ou lgein, que significam a aptido ao discurso, de dizer algo. Portanto dialtica se traduziria como o discurso que, com uma disposio que atravessa a totalidade do que dito, desdobra este todo, mostrando seu sentido, tornando deste modo possvel o dilogo. Os gregos conceberam a dialtica a partir de sua experincia iminentemente poltica da gora, isto , local pblico onde os cidados, atravs de um dilogo aberto aos ali presentes, tomavam as decises comuns da plis. A dialtica em Marx, tambm guarda peculiaridades, que se pretendem esclarecer, especialmente, no que tange a uma inverso da proposta hegeliana. Mais do que uma inverso e de uma simplificao da dinmica do real, composta por momentos contraditrios, que obedeceriam a relao de tese-anttese e sntese e assim sucessivamente. A dialtica em Marx segue, segundo Escobar (1996: 45):

...um sentido de uma ttica conceitual to aberta quanto complexa, que retrata mimeticamente as formaes sociais reativas assim como as conceitua. A dialtica pelo primeiro aspecto, o totem capitalista por excelncia na medida que esmera o axioma capitalista e incorpora sempre potenciais de renovao de sua imagem.

Tomando a citao acima, em seu movimento de contnua remodelao, o capitalismo incorpora diferentes formas, atualizando-se em novas modelagens, o que ultrapassa claramente a frmula simplificada do modelo da contradio, pois para incorporar potenciais de renovao em sua imagem, seu movimento dever ser flexvel, captando diferentes fluxos que escapam ao modelo. A idia da dialtica em Marx ento compreendida como uma ttica, como algo que perpassa, que atravessa uma pretensa totalidade, estilhaando-a (recuperando o sentido de dialgestai dos gregos), que se d a partir das foras, dos fluxos intempestivos da Histria, no sentido do que a prpria palavra denota , isto , como arte de guerra, que trata da disposio e da manobra de foras ante um combate, construindo um mtodo, meios que so postos em prtica, como puro desvio: das foras reativas, dos modelos, no caso o modelo capitalista.

Assim retornamos a Escobar, que a partir das anlises marxianas empreendidas no Dezoito Brumrio de Luis Bonaparte, coloca a questo mesma das diferenas na histria para alm dela (o que no significa uma falta de rigor), apostando em seus movimentos singulares, em seu devir:

. . . cabe apostar na irredutibilidade e singularidade na fsica e na histria. Isso no significa abdicar do saber histricoou do saber da natureza, mas impor em seu interior a temtica do devir e da multiplicidade. (Escobar, 1996: 34)

Dar-se conta do marxismo de Marx acabar de vez com esta histria de herana dialtica hegeliana e pressupor uma originalidade marxista como filosofia. Da mesma forma cabe lembrar que, ao contrrio do que se diz, Marx no rompe com esta dialtica (ou com toda a dialtica) impondo a ela a realidade, ou o real. Marx no ingnuo, nem pretende fazer dos fatos em si uma verdade tal qual. Marx sabe que os fatos se constituem em sentido ou em histria no meio das lutas de foras. Marx no examina a histria sem o risco (ele mesmo a alma dos sentidos e da histria enquanto fatos e artefatos), isto , sem assumir sua sensibilidade e sua inteligncia como concepo e interpretao.

(Escobar, 1996:47)

Agora situaremos a idia de dialtica na obra de Benjamin e suas relaes com seu projeto de fazer histria e suas ressonncias com o uso que Foucault faz desta em sua arqueo-genealogia.

A dialtica na obra de Benjamin apreende o sentido de ttica e mtodo em Marx, como tambm algo que perpassa, que atravessa, estilhaa e arruna o que foi dito, corroborando a dialgestai dos gregos, e que tambm estabelece, o ir-e-vir, as nervuras do discurso. Mais do que arruinar o que foi dito, ela se revigora e se atualiza na modernidade, decompondo sobretudo o que visto, o que confere um carter muito particular ao mtodo dialtico benjaminiano, ou seja, a dialtica em Benjamin no de natureza temporal, uma dialtica figurativa.

Este mtodo permite a Benjamin problematizar os regimes de visibilidade e dizibilidade no curso da histria. Esta visibilidade se nutre especialmente da matria nfima, ordinria, v, do cotidiano: a alimentao, os tipos citadinos, a arquitetura, as lutas clandestinas do lumpenproletariat, como ndices crticos da sociedade capitalista.

no cenrio da Paris do sculo XIX, no encontro das antigas construes de pedra com o ferro (primeiro material artificial a ser empregado na arquitetura), nas estaes ferrovirias que favorecem o trnsito na multido, e nos boulevares parisienses, que Benjamin visibiliza o encontro do antigo com o atual, estabelecendo uma correspondncia figurativa entre passado e presente.

O domnio privilegiado deste encontro, sem dvida a linguagem, pois as imagens construdas com palavras, so imagens de desejo de uma poca, dos sonhos coletivos; que se transfiguram nas mercadorias visveis atravs da transparncia apelativa e sedutora do vidro nas lojas e boulevares, bem como nas grandes Exposies Universais, que objetivavam entreter as classes trabalhadoras com seu festival de mercadorias.

Desta forma, o projeto benjaminiano prope ler o real como um texto.

Este real se refere realidade histrica, ao regime de luzes, do que vsivel em determinada poca e tambm dos regimes de dizibilidade, isto , quais as redes de inteligibilidade que os circunscrevem: a imagem que lida quero dizer a imagem no Agora da intelegibilidade - carrega, no mais alto grau, a marca do momento crtico, perigoso, que est no fundo de toda a leitura.

A dialtica, pois, radicaliza, rompe, e destroa a histria-continuidade, abrindo uma constelaode possveis, posto que para Benjamin fazer histria ato de pura construo, criar, forjar, estabelecer novas origens:

Em seus textos de maturidade, a origem se insere no contexto da histria, cuja relao com o tempo e sua interrupo nos leva crtica do conceito de progresso, como processo evolutivo natural e nos oferece uma outra possibilidade de progresso, inscrito na cultura, que se d por salto, por erro, por desvio. A teoria da linguagem de Benjamin norteia toda sua obra, por ser o medium das mudanas. E nesse medium que por ltimo trataremos das imagens do pensamento como expresso de uma dialtica que Benjamin chama de parada. (Dialektik in Stillstand). So imagens construdas com palavras que apresentam, num instantneo, a verdade. Com isto, Benjamin constri um mtodo que desvia da verdade enquanto conhecimento, adquirido atravs de uma cadeia lgica. O instantneo de verdade, nas imagens do pensamento, a derradeira forma.

(Cavalheiro, 2001)

E segundo Muricy (1993: 675):

Conceber dialeticamnte a histria para Benjamin estabelecer origem, isto , compreender que cada poca prope-se como inteiramente nova e cria um passado tambm novo.

Assim concebida, a metodologia dialtica encontra sempre novos objetos e novos mtodos.

As anlises de Benjamin sobre a lrica de Baudelaire e sua viso crtica sobre a Modernidade e por conseguinte, sobre a constituio do sujeito na atualidade, se mostram como tema tambm comum a Foucault em seus ltimos escritos, tanto sobre Kant em O que so as Luzes e Histria da Sexualidade: - O Uso dos Prazeres.

Neste ltimo, Foucault faz uma pequena, mas instigadora referncia a Benjamin e a seu projeto em discutir uma esttica da existncia, o que indicaria, para alm das diferenas entre estes autores, uma questo em comum que mobilizaria os fluxos do pensamento de ambos: a de saber em que medida o trabalho de pensar sua prpria histria pode liberar o pensamento daquilo que ele pensa silenciosamente, e permitir-lhe pensar diferentemente .

Nesta passagem Foucault cita Benjamin como um autor que se ocupou em estudar as artes da existncia , as tcnicas de si atravs de seus escritos sobre Baudelaire (Foucault ,1984:15). A histria assume um papel importante no percurso filosfico destes dois autores, cada um criando para si interfaces diferenciadas, mas convergentes no sentido de trabalharem especialmente na fronteira de diversos campos : enquanto Foucault trabalhou na fronteira da histria , sociologia, filosofia, poltca e arte; Benjamin trabalhou na fronteira da poltica, da arte , da cultu