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 113 O marxismo de Caio Prado Júnior LINCOLN SECCO 1 Na segunda edição, de 1947, o autor trocou sugestivamente no subtítulo a palavra “materia- lista” por “dialética”. [O livro está hoje em sua 47 a  edição, publicado pela Brasiliense. (N. E.)] 2 Revista Acadêmica, Rio de Janeiro, n. 9, 1934. Nada parecia indicar que o jovem Caio Prado Júnior se tornaria o principal marxista brasileiro. Em 1931, ele ingressou no Partido Comunista do Brasil (PCB). Dois anos depois, viajou para a União Soviética. Naquele mesmo ano, publicou uma obra clássica, Evo- lução política do Brasil , mas carregada do jargão comunista da época e cujo subtítulo era Ensaio de interpretação materialista da história brasileira 1 . No ano de 1934, proferiu palestras no Clube dos Artistas Moder- nos, em São Paulo, em que exaltava a construção do socialismo soviético. No mesmo ano, datilografou as palestras e mandou publicá- las no livro URSS: um novo mundo . Ainda naquele ano, num inqué- rito realizado por uma revista 2 , Caio Prado Júnior apontou os livros que considerava indispensáveis para se iniciar no marxismo. Com exceção de Anton Menger (1841-1906), socialista de cátedra aus- tríaco, todos os outros eram autores russos: Plekhanov, Bukharin, Lapidus, Ostrovitianov e Lenin. De Bukharin, Caio Prado Júnior traduziu, em 1933, Teoria do materialismo histórico: manual popu- lar de sociologia marxista .    L    I    N    C    O    L    N     S    E    C    C    O O M A R X I S M O  D E  C  A I O  P R A D O  J Ú N I O R  Margem 11 Final.pmd 6/5/2008, 17:51 113

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O marxismo de Caio Prado Júnior 

LINCOLN SECCO

1 Na segunda edição, de 1947, o autor trocou sugestivamente no subtítulo a palavra “materia-lista” por “dialética”. [O livro está hoje em sua 47a edição, publicado pela Brasiliense. (N. E.)]2 Revista Acadêmica, Rio de Janeiro, n. 9, 1934.

Nada parecia indicar que o jovem Caio Prado Júnior se tornariao principal marxista brasileiro. Em 1931, ele ingressou no PartidoComunista do Brasil (PCB). Dois anos depois, viajou para a UniãoSoviética. Naquele mesmo ano, publicou uma obra clássica, Evo- 

lução política do Brasil , mas carregada do jargão comunista daépoca e cujo subtítulo era Ensaio de interpretação materialista da 

história brasileira 1.No ano de 1934, proferiu palestras no Clube dos Artistas Moder-

nos, em São Paulo, em que exaltava a construção do socialismosoviético. No mesmo ano, datilografou as palestras e mandou publicá-las no livro URSS: um novo mundo . Ainda naquele ano, num inqué-rito realizado por uma revista2, Caio Prado Júnior apontou os livrosque considerava indispensáveis para se iniciar no marxismo. Comexceção de Anton Menger (1841-1906), socialista de cátedra aus-tríaco, todos os outros eram autores russos: Plekhanov, Bukharin,Lapidus, Ostrovitianov e Lenin. De Bukharin, Caio Prado Júniortraduziu, em 1933, Teoria do materialismo histórico: manual popu- 

lar de sociologia marxista .

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Era normal que visse na Rússia o centro de difusão do pensamen-to marxista. Sua fé no comunismo histórico e sua leitura da produçãoteórica de um tipo de marxismo que, mais tarde, seria considerado

 vulgar mantiveram-se mesmo depois da invasão da Hungria, em 1956,do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em1956 (em que se denunciou os crimes de Stalin), da cisão entreChina e União Soviética, em 1961, e da invasão da Checoslováquia,em 1968. Portanto, nada indicava que ele seria o marxista maisoriginal do Brasil.

Da história à filosofia

No período mais criativo de sua vida intelectual, Caio Prado Júnior dedicou-se à história política e à história econômica. Esseperíodo compreendeu os anos entre 1933 e 1945. É evidente queaqui se fala em preponderância, pois como seus manuscritos de1937 a 1939 mostram, ele já se interessava por psicologia e filoso-fia. Algo, aliás, não improvável nos marxistas de sua geração. Livio Xavier traduzira Hegel nos anos 19303 e o levantamento de EdgardCarone registra alguns títulos de filosofia marxista4, embora ostextos mais conhecidos fossem os de Lenin, Max Beer, Stalin e osmanuais soviéticos, alguns deles compilados mais tarde por Nel-son Werneck Sodré.

Entre as fontes do marxismo de Caio Prado Júnior figuram comdestaque as traduções francesas de Marx, Engels e Lenin. Ele as enco-mendou no início dos anos 1930 e certamente leu O capital  na tradu-ção francesa de J. Molitor5. O marxismo predominante na AméricaLatina e no sul da Europa era o francês, aliás o termo apareceu pri-meiro na França: marxisme   começou a ser usado em 18806. CaioPrado Júnior lia também muitos autores traduzidos para o inglês,especialmente de filosofia.

3 Friedrich Hegel, Encyclopedia das sciencias philosophicas: em compendio  (trad. Livio Xavier,São Paulo, Imp. Commercial, 1936).4 Edgard Carone, O marxismo no Brasil: das origens a 1964 (Belo Horizonte, Dois Pontos,1986).5 Karl Marx, Le capital  (trad. J. Molitor, Paris, Costes, 1924-26).6  Albert Dauzat et al., Dictionnaire étymologique et historique  (Paris, Larousse, 1971), p. 449.

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Nos anos 1940, ele escreveu suas principais obras de história doBrasil7. Tais obras faziam parte de um amplo projeto da história brasi-leira desde o período colonial até o presente, tanto é que a primeira

delas trazia o complemento: colônia . Como diz Florestan Fernandes:“Mais depurado, como marxista e historiador, propõe-se uma ambiçãociclópica: uma devassa em quatro volumes da formação e evolução doBrasil, do regime colonial escravocrata à contemporaneidade”8.

O autor parece ter abandonado o projeto, porque em 1945 apre-sentou uma segunda obra em que declarava que a primeira partedo livro (provavelmente os capítulos 1 a 12) era um resumo da obrade 1942. O abandono desse projeto coincidiu com duas coisas: suaeleição para deputado estadual, em 1947, e seu mergulho nos estu-

dos de filosofia. Ele parece ter se convencido de que deveria partirpara uma nova prática política, informada por uma melhor siste-matização do método dialético que ele empregara em suas obras dehistória e pelo aprofundamento nas reformas que o país necessitava.Por isso sua insistência, ao lado da filosofia, no estudo da economia. Assim, nos anos 1950, escreveria duas obras econômicas: Diretrizes 

 para uma política econômica brasileira  e Esboço dos fundamentos da 

teoria econômica 9.

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Portanto, no início dos anos 1950, ele se voltou mais detidamentepara a filosofia e, no fim do decênio, para a discussão da economiakeynesiana e a elaboração de propostas econômicas para o Brasil. Aquestão agrária foi seu tema mais proeminente entre 1960 e 1966.Mas, ainda no outono de sua vida, ele manteve um vivo interessepela filosofia, escrevendo até mesmo um opúsculo10. Era um histo-riador de saber enciclopédico e de interesses variados. Excetuada a

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Caio Prado Júnior, Formação do Brasil contemporâneo: colônia  (São Paulo, Martins, 1942) eHistória econômica do Brasil  (São Paulo, Brasiliense, 1945). Esta incluía uma introduçãometodológica que foi retirada das edições posteriores.8 Florestan Fernandes, “Obra nasce da rebeldia moral”, Folha de S.Paulo, 7/9/1991.9 Caio Prado Júnior, Diretrizes para uma política econômica brasileira (São Paulo, Urupês, 1954)e Esboço dos fundamentos da teoria econômica  (São Paulo, Brasiliense, 1957).10 Idem, O que é filosofia  (São Paulo, Brasiliense, 1982, col. Primeiros Passos), publicado antesem Almanaque, São Paulo, n. 4, 1977.

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crítica literária e a literatura, pela qual se interessou quase que so-mente na juventude, tudo lhe chamava a atenção. Da filosofia daciência à geografia, da economia à ciência política, do direito às ciên-

cias físicas, à botânica e à matemática.Todavia, suas obras filosóficas não deixaram rastro de discussões

acadêmicas, salvo por poucos artigos que se referiram a eles, princi-palmente os que foram escritos na época, pois ele diz em uma obraposterior: “Depois da publicação de Dialética do conhecimento , al-guns críticos o acusaram de ‘hegeliano’ e idealista porque fazia dadialética uma lógica e, portanto, um fato mental!”11.

Em textos mais atualizados, o mais comum foi buscar em sualinguagem os elementos para considerá-lo um marxista esquemático

quando tratou de filosofia, embora tivesse sido um “bom historia-dor”. Para alguns12, ele seria mesmo um positivista, por empregarexpressões como “fatos”.

Influenciado pelo positivismo lógico, na opinião de Jacob Gorender,Caio Prado Júnior aceitava a noção de que os objetos só são signi-ficativos na relação com outros objetos. O positivismo lógico deslo-cou a filosofia para a análise da linguagem e caracterizou-se, gros- 

so modo , pela negação de enunciados metafísicos. Estes seriamdesprovidos de sentido. Assim, Wittgenstein13 distinguiu os enun-ciados factuais relativos a coisas existentes e os enunciados analí-

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, que não podem ser empiricamente comprovados, porémsão verdadeiros se e tão-somente se  forem explicados em função  dospróprios termos que os compõem. Seriam tautologias. Um enuncia-do significa algo se puder ser empiricamente comprovado ou sefor válido dentro de um sistema de relações. Um exemplo do pri-meiro caso seria: “Carlos V de Gand existiu”. Um enunciado do se-gundo tipo seria: “Todos os vivos são não-mortos”. Ou, para usarum exemplo do próprio Caio Prado Júnio, o verde é verde tam-bém porque não é amarelo ou outra cor qualquer. Estes são enun-ciados tautológicos.

11 Caio Prado Júnior, Notas introdutórias à lógica dialética (São Paulo, Brasiliense, 1959), p. 5,nota 1.12 N. Viana, “A dialética positivista de Caio Prado Júnior”, Espaço Acadêmico, n. 70, mar. 2007.13 Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus  (São Paulo, Edusp, 1994).14 N. Abbagnano, Diccionario de filosofía (México, FCE, 1998), p. 400.

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Tais opções filosóficas levaram Caio Prado Júnior ao universo damatemática, disciplina que sempre admirou na escola e considerava“relacional por excelência”15. Além disso, elas reafirmaram sua esco-

lha pelas formas, pela circulação, pela formação histórica do Brasil enão pelas definições categóricas de objetos isolados de seu contexto.Leia-se bem: formação, pois o sufixo rejeita a noção de estruturaestática (econômica ou espacial) e carrega consigo a idéia de dura-ção e de evolver16.

Mas embora visse mais as relações do que os entes relacionados,ele não se considerava por isso um idealista. Ao contrário, criticavao idealismo de Wittgenstein, baseado em “modelos e padrões pura-mente gramaticais”17. Entretanto, quando quis formalizar a dialética,

o projeto mostrou-se inexeqüível. Ele se propunha uma finalidadeque contradizia seus próprios pressupostos. Já havia criticado oDicionário de filosofia , editado por M. Rosenthal e P. Yudin sob osauspícios do Instituto de Filosofia de Moscou, por “falta de rigor eprecisão”. Assim, o que se propunha era dar o “ponto de partidapara a explicitação de um método científico”, para usarmos suaspróprias palavras. Mas ao mesmo tempo ele afirmava que a dialéticamaterialista deveria ter uma “finalidade prática, tornando-se efetiva-mente (e não apenas por intuição e vago pressentimento) um méto-do explicitado capaz de orientar a elaboração do Conhecimento e a

pesquisa científica. Isto em qualquer terreno”. Notemos que elefalava sobre “qualquer terreno”, ou seja, tinha a pretensão de que omarxismo era “capaz de teorizar todas as esferas da existência aomesmo tempo”18.

15 Caio Prado Júnior, Dialética do conhecimento (São Paulo, Brasiliense, 1952), t. II, p. 698.16  A totalidade é composta de relações e não de coisas. Todas, no entanto, subordinadas aoevolver da história. O espaço geográfico, por exemplo, é uma simultaneidade de relações. Masele não distingue verdadeiramente uma zona da realidade do tempo histórico. A separação é

apenas metodológica. O tempo histórico é uma sucessão, mas é também espacial e o espaçoé histórico, pois varia quando observamos suas escalas humanas em cada época. Para CaioPrado Júnior, porém, “qualquer experiência sensível reflete sempre, em rigor, uma sucessão”,mesmo que seja uma sucessão de simultaneidades. Ver Caio Prado Júnior, Dialética do conhe-

cimento, cit., t. II, p. 534.17 Caio Prado Júnior, O que é filosofia (17. ed., São Paulo, Brasiliense, 1990).18 Retiro a expressão de F. Novais, Outorga do título de professor emérito a... (São Paulo, Gráficada FFLCH, jan. 2008), p. 25.

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Para realizá-lo, o historiador na pele do filósofo saltou sobre osmanuais soviéticos e promoveu, como fariam os marxistas renovado-res dos anos 1960, uma volta a Marx. Ao pular sobre o abismo, des-

cobriu que não havia uma escora para se apoiar, pois Marx nãochegara “a desenvolver sistematicamente seu método. Limitou-se emprincípio a aplicá-lo” e é só a partir disso é que se podia ver in flux 

“seus procedimentos metodológicos”, como ele escreveu.Ora, é exatamente isso que Caio Prado Júnior fez em suas obras

dos anos 1940! Fez de certa forma como o velho Marx: formulou ummétodo marxista adaptado à realidade brasileira ao estudá-la ! Elenão buscou previamente a sistematização de uma teoria para aplicá-la “em qualquer terreno”, inclusive o da história.

Logo, o projeto de uma teoria marxista do conhecimento levouCaio Prado Júnior a uma aporia, como diriam os filósofos, a uma situa-ção sem saída: ele precisava sistematizar um método que não foi sis-tematizado por Marx, pois a análise dialética da realidade só havia sidofeita em contato com essa própria realidade. E, para fazê-lo, precisavaingressar nos intrincados meios de uma teoria do conhecimento, meiosde resto escassos ou ausentes no Brasil de então. Não havia, nos anos1950, uma massa crítica de filósofos capaz de gerar o ambiente intelec-tual em que tal discussão pudesse frutificar. Tal coisa só seria possíveldepois do advento do “marxismo uspiano” dos anos 1960. Assim, em-

bora a obra filosófica de Caio Prado Júnior tivesse muitos méritos erevelasse algo de suas escolhas como intérprete da revolução brasilei-ra, ela caminhava a passos largos da dialética para a metafísica. Afinal,pode a dialética ser “manualizada” por um historiador sem promover aseparação de sujeito e objeto? Sem distanciar o historiador de sua prá-tica concreta que é a análise da própria história?

Pioneirismo

 A obra filosófica19 de Caio Prado Júnior não deixou de apresen-tar pioneirismos. Ele talvez tenha sido o primeiro, entre nós, a ques-

tionar sem rodeios a obra Dialética da natureza , de Engels, quan-do as leis dialéticas encontradas na natureza eram um dogma domarxismo soviético. Como ele mesmo cita, a dialética foi resumida

19 Obra esta que aqui não nos propomos a analisar profundamente, pois demandaria outrosespaços, outros tempos e outras competências de que não dispomos.

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por Engels em três leis: 1) a transformação da quantidade em qua-lidade; 2) a ação recíproca (ou interpenetração dos opostos); 3) anegação da negação.

Para Engels, essas leis não pertenceriam à esfera do pensamento,como em Hegel, mas da natureza. Crítica “justa, mas formulada demaneira infeliz”, diz Caio Prado Júnior20. O que não se podia fazer eraconsiderar a quantidade e a qualidade, os contrários e a negação comofatos imanentes na natureza. Eles são “conceitos, fatos do pensamento,portanto, e não feições da realidade exterior ao pensamento”21.

Enfim, “por natureza, ele define em geral o objeto do conhecimento,a realidade contraposta ao pensamento, e não necessariamente umadimensão dessa realidade, a saber, a que se distingue dos fatos histó-

ricos e sociais”

22

. Assim, o significado de uma dialética da natureza sópode se referir a uma natureza social e histórica e não a uma nature- 

za meramente natural , sem a ação humana. Ao contrário daqueleúltimo Engels de Dialética da natureza , Caio Prado Júnior fala deuma materialidade social, de uma segunda natureza .

 A dialética do conhecimento buscada por Caio Prado Júnior era atentativa de formalizar o que ele já conseguira em seus estudos dahistória do Brasil, e que voltaria a conseguir em seu livro sobre A 

revolução brasileira 23. Encontramos nele próprio as razões de seucaráter inacabado.

Ele queria que a dialética não fosse mais a simples oposição àmetafísica, a uma visão global e estática do mundo que separa sujeitoe objeto. Essa seria a ideologia do mundo das classes. A dialéticadeveria ser uma expressão ideológica da construção do mundo semclasses que ele já via em marcha nos “povos da União Soviética”, nas“democracias populares e na China” e “tão próximo já no restante dahumanidade”24. Ora, aquele socialismo ruiu e desapareceu, mas na-quele momento o Partido Comunista da União Soviética, depois de

20 Caio Prado Júnior, Dialética do conhecimento, cit., t. II, p. 528.21 Idem.22  J. A. Grespan, “Teoria da história de Caio Prado Júnior: dialética e sentido”, Revista do IEB,no prelo.23 Caio Prado Júnior, A revolução brasileira  (4. ed., São Paulo, Brasiliense, 1972).24 Idem, Dialética do conhecimento, cit., t. II, p. 539.

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25  J. C. Reis, As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC (5. ed., Rio de Janeiro, FGV, 2002), p. 181.26 Numa reunião do conselho da revista Práxis, nos anos 1990, este autor perguntou a JacobGorender sobre essa questão. E Gorender lembrou que Caio Prado considerava sua obra filosófica tão importante quanto sua obra de historiador.27  J. C. Reis,  As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC, cit.

seu XX Congresso, pregava a emulação pacífica com o capitalismo ealguns comunistas previam para um futuro próximo (alguns decê-nios) a construção do comunismo e do homem novo.

Conclusão

Caio Prado Júnior promoveu uma inversão na operação intelec-tual dos marxistas brasileiros que procuravam constituir um métodopara depois aplicá-lo  à nossa realidade. Procurou conhecer o Brasilem primeiro lugar e dialogar com sua história, de modo que seumétodo se desenvolveu na sua prática de historiador. Quando quisconstituir uma sistematização do método dialético como corolário desuas investigações iniciais, já sabemos que não obteve “muito sucesso

com suas obras filosóficas”

25

. Mas isso não quer dizer que não tivessena mais alta conta seus estudos de filosofia26. Pode-se dizer, entretan-to, que mesmo como historiador suas preocupações eram, de certaforma, “filosóficas”, ainda que fossem em história política, econômi-ca ou agrária. Ele se preocupava com a origem e o destino, com a

 formação  e o sentido, e a forma escolhida era o ensaio e a síntese.Ele não deixava de perguntar como filósofo. Só que suas respostaseram as do historiador: ele “não especulava, pesquisava”27.

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