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Maria Alice Gonçalves Antunes O RESPEITO PELO ORIGINAL Uma análise da autotradução a partir do caso de João Ubaldo Ribeiro Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós- graduação da PUC-Rio como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Letras. Orientadora: Profa. Dra. Marcia Amaral Peixoto Martins Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 2007

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Maria Alice Gonçalves Antunes

O RESPEITO PELO ORIGINAL

Uma análise da autotradução a partir do caso de João Ubaldo Ribeiro

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação da PUC-Rio como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Letras.

Orientadora: Profa. Dra. Marcia Amaral Peixoto Martins

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Maria Alice Gonçalves Antunes

O respeito pelo original – uma análise da autotradução a partir do caso de João Ubaldo Ribeiro

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo programa de Pós-Graduação em Letras do Departamento de Letras do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

________________________________________________ Profa. Marcia do Amaral Peixoto Martins

Orientadora Departamento de Letras – PUC-Rio

________________________________________________ Profa. Maria Paula Frota

Departamento de Letras – PUC-Rio

________________________________________________ Profa. Leila Cristina de Mello Darin

Faculdade de Comunicação e Filosofia – PUC-SP

________________________________________________ Profa. Maria Aparecida Andrade Salgueiro

Departamento de Letras Anglo Germânicas – UERJ

________________________________________________ Prof. José Luís Jobim de Salles Fonseca

Instituto de Letras – UERJ

________________________________________________ Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade

Coordenador Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 2007

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da universidade.

Maria Alice Gonçalves Antunes

Graduou-se em Letras (Inglês e respectivas literaturas) na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) em 1985. Cursou Especialização em Língua Inglesa pelo Departamento de Letras da UERJ de março de 1989 a dezembro de 1989. É Mestra em Lingüística Aplicada pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Ficha Catalográfica

CDD: 400

Antunes, Maria Alice Gonçalves O respeito pelo original : uma análise da autotradução a partir do caso de João Ubaldo Ribeiro / Maria Alice Gonçalves Antunes; orientadora: Márcia Amaral Peixoto Martins. – 2007. 270 f. : il. (col.) ; 30 cm Tese (Doutorado em Letras)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. Inclui bibliografia 1. Letras – Teses. 2. Autor-modelo. 3. Autotradutor. 4. Original. 5. Tradução. I. Martins, Márcia Amaral Peixoto. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Letras. III. Título.

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Aos meus pais, à minha irmã e à minha querida Clarinha, sempre.

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Agradecimentos

A João Ubaldo Ribeiro, pela generosidade.

À professora Dra. Susan Bassnett, pelo interesse demonstrado através de

contribuições valiosas e do diálogo constante.

Às professoras Dras. Maria Clara Castellões e Maria Paula Frota e ao professor

Paulo Henriques Britto (notório saber), pelas contribuições que fizeram por

ocasião do exame de qualificação desta tese.

Às professoras Dras. Leila Cristina de Mello Darin, Maria Aparecida Andrade

Salgueiro, Maria Paula Frota, Maria Cristina Batalha e Maria de Lourdes Duarte

Sette e ao professor Dr. José Luis Jobim, pela participação na Banca.

Às colegas do setor de inglês, em especial, e do departamento LAG, pelo apoio e

pelo interesse.

Aos amigos, pelo incentivo, pelas apresentações em seminários e conversas

produtivas e, principalmente, pela paciência.

À Luzia, Beatriz, Mônica e Lúcia Cláudia, pelo incentivo ao início de minha vida

acadêmica e pela amizade incondicional.

À jornalista Beatriz Marinho Strauss, por possibilitar meu primeiro contato com

João Ubaldo Ribeiro.

À Carolina Alfaro de Carvalho, pela revisão precisa e interessada.

À Francisca Ferreira de Oliveira, Secretária da Pós-Graduação da PUC-Rio, pela

eficiência e paciência infinitas.

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À CAPES, pela bolsa para Estágio na Universidade de Warwick, e à PUC-Rio,

pelo apoio financeiro.

E, em especial, à Profa. Dra. Marcia Amaral Peixoto Martins, minha orientadora,

pelo incentivo a minha entrada no Doutorado, pelo entusiasmo com que acolheu

meu desejo de pesquisar a autotradução e o caso de João Ubaldo Ribeiro, pela

leitura atenta deste e de outros trabalhos, pelas contribuições valiosas, e por tudo

aquilo que eu certamente esqueci de mencionar aqui.

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Resumo

Antunes, Maria Alice Gonçalves; Martins, Marcia Amaral Peixoto. O respeito pelo original – uma análise da autotradução a partir do caso de João Ubaldo Ribeiro. Rio de Janeiro, 2007. 270p. Tese de Doutorado – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Esta tese se insere no âmbito dos estudos descritivos da tradução e investiga a autotradução a partir do caso do escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro. Com base em uma nova concepção do autor-modelo (Eco, 1979a; 1979b; 1994), este estudo investiga se o exercício da autotradução pode ser visto, no caso do escritor brasileiro, como uma possibilidade de continuação, por assim dizer, do processo de escrita original. Para tal investigação, utiliza-se um corpus constituído por: (i) o artigo “Suffering in translation”, de autoria de João Ubaldo; (ii) entrevistas (publicadas ou não) e declarações diversas concedidas pelo escritor; (iii) os textos – original e tradução – produzidos por ele; (iv) resenhas escritas por críticos norte-americanos e publicadas nos Estados Unidos; e (v) livros escritos por críticos brasileiros sobre a obra do autor. Utiliza-se ainda instrumentos de pesquisa distintos: (i) a comparação entre original e tradução, freqüentemente feita por estudiosos da tradução; (ii) o modelo para análise de traduções de Lambert e van Gorp (1985); e (iii) a entrevista por e-mail (Mann & Stewart, 2000). Além da análise do corpus em si, este estudo apresenta um histórico da autotradução e relatos dos casos dos autotradutores Vladimir Nabokov, Samuel Beckett, Milan Kundera, escritores catalães e poetas escoceses. Esta apresentação tem por objetivo proporcionar o diálogo entre as diversas práticas autotradutórias.

Palavras-chave

Autor-modelo; autotradutor; original; tradução.

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Abstract

Antunes, Maria Alice Gonçalves; Martins, Marcia Amaral Peixoto Martins (Advisor). Respect for the original text – an analysis of self-translation based on the case of the Brazilian writer João Ubaldo Ribeiro. Rio de Janeiro, 2007. 270p. PhD Dissertation – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The present work presents a study of self-translation based on the case of the Brazilian writer João Ubaldo Ribeiro. Using in the revisited concept of model author, this thesis seeks to analyse whether the practice of self-translation can be seen, in the case of the Brazilian writer, as the continuation of the process of original writing. The elaboration of the answer to this question is based on the analysis of the corpus, which consists of: (i) the article “Suffering in translation”, by João Ubaldo Ribeiro; (ii) published and unpublished interviews given by the author; (iii) original and self-translated texts produced by João Ubaldo; (iv) reviews written by North American critics and published in the USA; and (v) books written by professional readers about João Ubaldo’s works. Also, the investigation uses different research instruments: (i) the comparative analysis between original and self-translated texts; (ii) Lambert and van Gorp’s model for the analysis of translated literature; and (iii) e-mail interview. Besides the analysis of the corpus, this study presents a brief historical account of self-translation and general critical reports of self-translators’ – Vladimir Nabokov, Samuel Beckett, Milan Kundera, Catalan writers and Scottish poets – works. Rather than provide readers with a detailed critical analysis of these writers’ texts, these reports seek to make the dialogue between distinct self-translation practices possible. Keywords

Model-author, self-translator, original, translation.

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Sumário

1 Introdução...................................................................................................... 11

1.1 Apresentação da questão ....................................................................... 11

1.2 As origens deste estudo sobre João Ubaldo Ribeiro, autotradutor ........ 15

1.3 A autotradução como objeto de pesquisa .............................................. 24

1.3.1 Objeto, corpus e questões do estudo de caso ................................ 25

1.4 A organização do trabalho..................................................................... 28

2 Considerações teóricas e metodológicas ....................................................... 30

2.1 Introdução.............................................................................................. 30

2.2 O autor-modelo de Umberto Eco .......................................................... 30

2.3 Metodologia........................................................................................... 47

2.3.1 O modelo de Lambert e van Gorp (1985)...................................... 49

2.3.2 A entrevista por e-mail .................................................................. 54

2.3.2.1 A entrevista por e-mail com João Ubaldo Ribeiro .................... 57

2.4 Considerações finais .............................................................................. 60

3 Autotradução ................................................................................................. 62

3.1 Introdução.............................................................................................. 62

3.2 Autotradução: conceituação .................................................................. 62

3.3 Breve histórico da autotradução e das pesquisas sobre o tema ............. 66

3.4 A autotradução na academia.................................................................. 75

3.4.1 A tese de Helena Tanqueiro: Autotradução – autoridade,

privilégio e modelo ........................................................................................ 76

3.4.2 A tese de Verena Jung: English-German self-translation of

academic texts and its relevance for translation theory and practice........... 95

3.4.3 A tese de Lillian DePaula Filgueiras: A invenção do original via

tradução, pseudotradução e autotradução.................................................. 112

3.5 Autotradução e autotradutores: motivações e questões teóricas ......... 121

3.5.1 O caso de Vladimir Nabokov (1899-1977) ................................. 122

3.5.2 O caso de Samuel Beckett (1906-1989) ...................................... 134

3.5.3 O caso de Milan Kundera (1929) ................................................ 143

3.5.4 O caso do autotradutores catalães................................................ 153

3.5.5 O caso dos autotradutores escoceses ........................................... 158

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4 O estudo de caso sobre João Ubaldo Ribeiro .............................................. 163

4.1 Introdução............................................................................................ 163

4.2 João Ubaldo Ribeiro: biografia resumida............................................ 164

4.3 O caso de João Ubaldo Ribeiro: as pré-condições e o tipo de

autotradução .................................................................................................... 169

4.4 O processo de publicação e os paratextos ........................................... 177

4.5 Original e tradução: análise comparativa ............................................ 194

4.5.1 Os itens de especificidade cultural .............................................. 209

4.5.2 O sergipês .................................................................................... 225

4.5.3 Os erros em Viva o povo brasileiro ............................................. 231

4.5.4 As alterações mais significativas................................................. 233

5 Considerações finais .................................................................................... 245

6 Referências Bibliográficas........................................................................... 252

7 Anexos ......................................................................................................... 267

7.1 Anexo 1 ............................................................................................... 267

7.2 Anexo 2 ............................................................................................... 268

7.3 Anexo 3 ............................................................................................... 269

7.4 Anexo 4 ............................................................................................... 270

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Introdução

Estes segredos... são parte de um grande conhecimento, conhecimento este que ainda não está completo, mesmo porque nenhum conhecimento fica completo

nunca, faz parte dele também que sempre se queira que ele fique completo. (Júlio Dandão, personagem de Viva o povo brasileiro, p. 211)

1.1

Apresentação da questão

A pesquisa que apresento aqui tem como objeto de estudo a chamada

autotradução – a tradução de um original pelo próprio autor – a partir de um caso

particular, o do escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro. Autor consagrado em

território nacional, membro da Academia Brasileira de Letras, é campeão de

vendas da editora Nova Fronteira, com aproximadamente três milhões de

exemplares vendidos até o momento1. João Ubaldo verteu2 para o inglês dois de

seus romances mais famosos: Sargento Getúlio ([1971]1982) e Viva o povo

brasileiro (1984), mas suas autotraduções não têm despertado a curiosidade de

acadêmicos e pesquisadores no Brasil (Gomes, 2005, p. 75) e no exterior, e

poucos são aqueles que já escreveram sobre o assunto, que considero

especialmente relevante por envolver uma série de questões relacionadas às

concepções de língua, tradução e autoria, como discutirei nas seções e capítulos

posteriores.

João Ubaldo Ribeiro não se declara (e jamais se declarou) tradutor. Afirma

não se interessar por traduções mais do que um leitor comum se interessaria (e-

mail, 03/12/2003). Nega qualquer tentativa de reflexão acerca do processo

tradutório (ibidem) e afirma, em e-mails a mim enviados, que não aprecia traduzir

nem os desafios que a atividade apresenta (e-mail, 08/10/2003, 06/11/2003).

Afirma também que não apreciou o processo de verter seus dois romances para o

1 Fonte: Valéria dos Santos, secretária do escritor na Nova Fronteira (e-mail, 24/11/2006). 2 O verbo “verter” é usado, em português, para descrever o processo de transformação de um texto em português para uma língua estrangeira e o verbo “traduzir” é utilizado para descrever o processo contrário (transformação de um texto em língua estrangeira para o português). Apesar de reconhecer a distinção entre os dois processos, neste trabalho utilizarei os dois verbos como sinônimos, bem como os substantivos “versão” e “tradução”, por motivos de ordem prática.

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inglês (Ribeiro, 1990, p. 3) e freqüentemente me responde por e-mail que não se

lembra de razões para suas escolhas tradutórias (e-mail, 18/07/2003; 25/07/2003;

02/09/2003; 18/10/2003; 03/05/2005; 20/09/2005) ou que se recorda apenas de

um “critério subjetivo” (e-mail, 25/07/2003). Em outros momentos, João Ubaldo

declara que nunca pretendeu apagar as marcas da cultura brasileira em seus textos

traduzidos (e-mail, 24/09/2003) e que teve problemas com seus editores, que

atribuíram algumas de suas soluções mais literais ao conhecimento falho que,

segundo editores norte-americanos, um falante não-nativo geralmente tem da

língua inglesa (Ramaswamy, 2006; Burkeman, 2006; Smith, 2006). Diz de forma

clara (e nas entrelinhas também) que a tradução é impossível (e-mail, 01/08/2003)

em virtude das “peculiaridades” de seu estilo, tais como ritmo, jogos de palavras e

rimas, por exemplo (e-mail, 07/08/2003). Evidentemente o longo período de

tempo que separa a autotradução de João Ubaldo de minhas questões sobre o tema

– cerca de 15 anos – contribui para que nem sempre seja possível discutir

mínimos detalhes. Entretanto, acredito que, além das informações por ele

fornecidas, são interessantes também as visões sobre aspectos da tradução que

construo através da leitura dos e-mails que o escritor generosamente me envia em

resposta a meus questionamentos.

Ao observar as declarações de João Ubaldo, além do trabalho de autores que

traduziram ou traduzem seus próprios originais, como Samuel Beckett, Vladimir

Nabokov e Milan Kundera, verifico, inicialmente, que a autotradução não é um

processo que se dá de forma coerente ou homogênea. Não se trata simplesmente

de um autor que traduz seu próprio original, como verbetes de enciclopédias e

dicionários de tradução tendem a nos informar. O processo autotradutório tem

características particulares que dependem do autor que realiza a tradução, de sua

visão acerca do que é a tradução, do tipo de texto traduzido, do propósito a que tal

texto se destina e do intervalo de tempo que separa a produção do original da

tradução. A autotradução de textos literários é vista, em certos casos, como

tradução stricto sensu, porém com marcas da liberdade do autor (Tanqueiro,

2002), enquanto em outros casos ela é tida como a produção de novo original

(Whyte, 2000; 2002; Jung, 2002). A autotradução de textos acadêmicos, por sua

vez, não é vista como uma atividade cujo produto é um novo original (Jung,

2002). Diante da complexidade da prática autotradutória (e do comportamento

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humano em geral) não será possível alcançar generalizações absolutas a respeito

dela. Como discutirei no capítulo 2 (seção 2.2), a generalização a que aspiro nesta

tese é aquela denominada “qualitativa” (Tripp, 1985, p. 33-34). Ou seja, é a

acumulação de estudos de caso que possibilitará a elaboração, processual e

constante, de um arcabouço teórico. Será possível, contudo, construir crenças que

informam a prática de João Ubaldo Ribeiro como tradutor de seus dois romances

e aquelas em que se baseiam reflexões anteriores sobre a prática de outros

autotradutores, como farei neste trabalho.

A função que textos autotraduzidos exercem no sistema literário a que se

destinam também não é sempre semelhante. Os textos autotraduzidos por Beckett

são apresentados como originais por seus editores e, na maioria das vezes,

analisados como tal por leitores profissionais. Nas vezes em que esses textos são

estudados como autotraduções, as marcas da presença do autor são

freqüentemente ressaltadas (Fitch, 1988; Connor, 1989). Os romances traduzidos

por Nabokov são apresentados como autotraduções realizadas em colaboração, e

as produções de Milan Kundera são divulgadas como “versões definitivas,

revisadas pelo autor”. Outras ainda, como as de Raymond Federman e Hector

Feliciano, são apresentadas como “traduções aumentadas pelo autor”. Finalmente,

o romance Cantique de plaines, traduzido do inglês para o francês pela própria

autora (a canadense Nancy Huston) e lançado ao mesmo tempo que o “original”,

Plainsong, foi premiado pelo governo do Canadá na categoria ficção, provocando

grande polêmica quando cinco editores quebequenses protestaram alegando que a

obra não poderia ter concorrido na categoria, já que, na visão desses editores, se

tratava de uma tradução. Cinco anos mais tarde, o livro The mark of the angel,

também uma autotradução da escritora, foi proibido de concorrer ao mesmo

prêmio na categoria ficção com a justificativa de que se tratava de uma tradução

(L’empreinte de l’ange havia sido publicado ao mesmo tempo que a versão em

inglês) (Almeida, 1995). Ou seja, a autotradução é uma atividade que oferece

inúmeras questões e possibilidades para novas discussões sobre temas

freqüentemente debatidos, tais como a noção de original e da tradução, ou sobre

assuntos que ainda não foram explorados pela comunidade de estudiosos, como a

influência que o fato de um texto ter sido traduzido pelo próprio autor terá no

processo de lançamento de uma obra junto a um novo público-leitor.

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Com base nas reflexões apresentadas acima defino agora o objetivo deste

estudo de caso sobre as autotraduções de João Ubaldo Ribeiro, com o qual espero

contribuir para a área dos estudos da tradução e também da literatura brasileira,

que tem nele um de seus escritores mais prestigiados. Com base na noção de

autor-modelo (Eco, 1979a; 1979b; 1994), pretendo verificar se ao exercer o papel

do leitor-modelo do texto original no processo de traduzi-lo, o autor introduz

alterações que serão atribuídas e permitidas ao autor-modelo desse original. Em

outras palavras, pretendo verificar se o exercício da autotradução pode ser visto,

no caso de João Ubaldo Ribeiro, como uma possibilidade de continuação, por

assim dizer, do processo de escrita da obra. Examinarei, conseqüentemente, se o

escritor brasileiro, no uso de sua autoridade sobre original e tradução, registra no

texto autotraduzido marcas que têm conferido a esse tipo de texto um status

diferente, com características específicas, distintas daquelas apresentadas pelo

texto traduzido propriamente dito.

Discutirei as noções de autor-modelo e leitor-modelo no segundo capítulo

desta tese. Por ora apresento o autor-modelo simplesmente como aquele que se

torna visível durante o ato cooperativo da leitura e a quem são atribuídas escolhas

registradas no texto narrativo (Eco, 1979a; 1979b; 1994). O leitor-modelo, por

outro lado, cumpre duplo papel: ele impulsiona o processo de escrita e, durante o

ato cooperativo da leitura, movimenta-se interpretativamente da forma que o

autor-modelo previu durante a geração do texto. João Ubaldo Ribeiro afirma que

foi “muito respeitoso com o original”, “não reescrevendo ou retocando nada”, já

que não queria “ser acusado de copidescar” sua própria obra (e-mail, 18/07/2003).

A partir da perspectiva de Eco, apresentada em detalhe no capítulo 2, considero

que João Ubaldo pretendeu que o autor-modelo reconstruído pelo leitor-modelo

do texto traduzido fosse semelhante àquele criado durante a leitura do texto

original. Entretanto, não será possível atingir tal objetivo, nem mesmo quando o

tradutor profissional é responsável pelo trabalho de tradução, já que o tradutor

transforma a obra para atingir outro leitor-modelo que, inserido em um contexto

estrangeiro, tem competência enciclopédica distinta, a qual utiliza ao cooperar

com o texto traduzido. Nessa transformação, o tradutor deixa suas marcas ao

explicitar o não-dito, simplificar a linguagem ou a mensagem, seguir modelos e

práticas da língua-alvo e homogeneizar características textuais (Baker, 1996, p.

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176-7), escolhendo formas que julga terem efeito sobre os novos leitores. Em

suma: o leitor-modelo registrado na tradução sempre será diferente daquele

registrado no original.

1.2

As origens deste estudo sobre João Ubaldo Ribeiro,

autotradutor

Dois momentos distintos, que registro aqui, motivam o que constitui meu

interesse pela pesquisa sobre autotradução. Em função da importância que os dois

momentos representam, descrevo-os a seguir.

Em dezembro de 2002, apresentei uma monografia à PUC-Rio como

requisito da disciplina LET 2379 – Tópicos em estudos da tradução (relações

entre tradução, cultura e literatura a partir de estudos de caso), ministrada pela

professora Marcia Martins no programa de Pós-Graduação em Letras, na área de

Estudos da Linguagem. Na monografia, fiz um estudo exploratório sobre os dois

romances de João Ubaldo Ribeiro traduzidos pelo próprio autor: Sargento Getúlio

([1971]1982) e Viva o povo brasileiro (1984). Apoiada no modelo investigativo

descrito por Lambert e van Gorp (1985), na teoria dos polissistemas literários

(Even-Zohar, 1990) e também nas idéias de Toury (1995), Venuti (2002) e

Lefevere (1990), procurei compreender a função dos romances traduzidos por

João Ubaldo Ribeiro dentro do polissistema literário norte-americano e as opções

do autotradutor brasileiro. Através da leitura e análise crítica de entrevistas

concedidas e artigos produzidos por ele, investiguei ainda como João Ubaldo

descreve sua atividade de traduzir e a compara com a atividade de escrever.

A teoria dos polissistemas literários (Even-Zohar, 1990) e os estudos

descritivos da tradução (DTS, doravante) (Toury, 1995) constituem parte

importante da pesquisa que relato nesta tese exatamente porque possibilitam sua

execução. Ambas as teorias serão discutidas de forma breve em seção posterior e,

neste momento, apenas saliento rapidamente a relevância deste arcabouço teórico

para esta pesquisa.

Em primeiro lugar, a teoria dos polissistemas postula a existência de um

sistema de literatura traduzida, o que se trata de uma proposta inédita, já que as

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traduções de textos literários não costumam ser vistas como fazendo parte da

literatura do sistema receptor. Por sua vez, os estudiosos descritivistas, ao

tratarem a tradução como um fato da cultura de chegada, consideram que todo

texto que funciona como tradução em uma dada cultura por algum tempo é um

objeto de estudo legítimo, mesmo que depois se constate que não se trata de uma

tradução no sentido estrito. Lawrence Venuti (2002) descreve como o livro Les

chansons de Bilitis, apresentado como tradução por seu autor Pierre Louÿs, foi

estudado por muito tempo como uma tradução antes que se percebesse que essa

obra havia sido inventada, ou que se tratava de uma pseudotradução (p. 71-72).

As autotraduções também são muitas vezes apresentadas como traduções, sendo,

contudo, dado a elas com certa freqüência, um status privilegiado, especialmente

quando são publicadas em edições bilíngües (Whyte, 2000). Mostrarei no capítulo

4 que resenhistas norte-americanos avaliam a tradução feita por João Ubaldo

Ribeiro. Assim, a noção de tradução apresentada por descritivistas é aquela que

adoto em meu trabalho. Esclareço, contudo, que ao partir da premissa de que João

Ubaldo faz traduções de seus romances, não excluo a possibilidade de concluir

que seus textos autotraduzidos trazem marcas do trabalho do autor que, ao

assumir o papel de leitor-modelo durante a leitura do original, introduz novas

marcas em seu próprio texto, marcas essas que não são geralmente permitidas aos

tradutores.

O segundo momento que motivou meu interesse pela autotradução são as

conclusões a que cheguei após a pesquisa descrita brevemente acima. Em uma

busca por autores que traduziram suas próprias obras e que discutiram o processo

de autotradução, encontrei o artigo de Rainer Guldin intitulado “Traduzir-se e

retraduzir-se: a prática escrita de Vilém Flusser” (s/d), onde o autor discute a

tradução como método de escrita do filósofo. Na epígrafe ao artigo, Vilém Flusser

afirma que “a única tradução verdadeira é aquela tentada pelo autor do original3”

[Grifo do autor]. Na mesma epígrafe, Jeffrey M. Green, ele mesmo um

autotradutor, afirma que “ao traduzir sua própria obra, o escritor bilíngüe

provavelmente produzirá uma versão paralela ao original e não uma tradução

propriamente dita” e que “se a versão produzida pelo autor é uma tradução

verdadeira, então todos os tradutores devem desejar produzir um trabalho 3 Todas as citações extraídas de originais em inglês foram traduzidas por mim e são de minha responsabilidade.

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semelhante”. As palavras lidas imediatamente levantaram algumas questões e me

fizeram procurar e comprar o livro de autoria de Green, onde ele afirma que, ao

traduzir seu próprio texto, toma liberdades que não tomaria caso não fosse o autor

do texto que traduz e que “faz o que quer com o texto” porque é o dono do

original (2001, p. 39). Não é rara em outras reflexões acerca da autotradução a

visão do autor que traduz seu próprio texto como o profissional que tem liberdade

para introduzir alterações. O autor pode mudar seu texto sem que seja julgado por

“traição” ao original, como acontece com outros tradutores. Sugiro uma breve

reflexão sobre as questões que as afirmações de Flusser e Green podem levantar.

Flusser afirma, sobre o “gesto da escrita”4, que “a única tradução verdadeira

é aquela tentada pelo autor do original”. É interessante observar que o filósofo

usava a tradução como uma espécie de instrumento para o refinamento do

significado. Seu processo de escrita se dividia em várias etapas. Na primeira,

redigia o original na língua que considerava apropriada para o tema sobre o qual

desejava escrever. Em seguida, produzia uma sucessão de traduções indiretas,

uma a partir da outra para diversas línguas, até re-traduzir o último texto para a

língua da publicação, aquela em que havia escrito o primeiro texto. Flusser nos

fala também da tradução como uma atividade cuja perfeição só pode ser atingida

se for executada pelo próprio autor de um texto. Creio que as palavras do filósofo

refletem opiniões de leitores profissionais – segundo Lefevere (1992, p. 3),

professores e alunos de literatura além de críticos literários. Afinal, quem melhor

do que o próprio autor de um texto para conhecer suas intenções, contidas no

original? Quem, além dele, saberá as palavras exatas para exprimir suas idéias,

emoções, sentimentos? Quem, senão o autor, interpretará a obra sem cometer

enganos? Quem, além dele, poderá selecionar com total liberdade os momentos

em que deseja manter-se apegado ao texto original ou libertar-se dele? Tudo

indica que essas questões expressam a percepção de leitores profissionais de uma

tradução, como, por exemplo, a estudiosa da autotradução Helena Tanqueiro

(2002).

No segundo excerto, Green expressa sua visão acerca da obra autotraduzida:

ela é “uma versão paralela ao original e não uma tradução propriamente dita”

4 O “gesto da escrita” é um conceito discutido em manuscrito inédito (com o mesmo título) de autoria de Vilém Flusser.

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(2001, p. 17). De fato, essa afirmação reflete uma questão presente nos estudos

sobre a autotradução. Em tese recente, Tanqueiro (2002) faz a defesa do autor

como tradutor ideal de sua obra (p. 50) e pergunta: “poder-se-á considerar um

autotradutor como tradutor?” (p. i). Ou, em outras palavras, será o produto do

trabalho do autor que traduz sua própria obra visto como uma tradução

propriamente dita? No caso do escritor irlandês Samuel Beckett, o resultado da

autotradução não tem sido considerado uma tradução e, sim, a produção resultante

de uma etapa do seu processo criativo (Fitch, 1988, p. 229), uma espécie de

rascunho produzido pelo autor do original em um processo infinito de lapidação

da obra. Além das pesquisas que relatam tal visão sobre a obra autotraduzida de

Beckett, comprovei através de investigação informal em sites de universidades

estrangeiras que os textos desse autor são tratados como originais, e sua obra é

estudada de maneira isolada na França e na Inglaterra, ou seja, em ambos os

países seus livros são considerados originais e estudados como tais.

Instigada pela mesma afirmação de Green (2001, p. 17), me pergunto por

que os romances Sergeant Getúlio e An invincible memory, sendo produtos do

trabalho do autor, são tratados por leitores profissionais como traduções e não

como novos originais, ainda que An invincible memory, especialmente, tenha um

status privilegiado, sugerido pela expressão translated by the author, impressa nas

páginas iniciais do romance. Em outras palavras, por que o produto do trabalho de

João Ubaldo Ribeiro é, contrariando a visão sobre as obras de Beckett,

considerado uma tradução por resenhistas? Creio, conseqüentemente, que outros

fatores influenciam a posição de uma obra no polissistema literário ao qual ela se

destina, como, por exemplo, o fato de o escritor ter adotado a segunda língua para

expressar-se originalmente ou ainda a consagração alcançada pelo autor no

polissistema que publica suas autotraduções. Os casos de Beckett e Nabokov

ilustram ambas as situações, já que os dois autotradutores adotaram a segunda

língua como língua de expressão original e atingiram o status de autores

canônicos nos polissistemas literários estrangeiros a que suas obras se

destinavam.

Em seguida, Green refere-se ao autor como o modelo a ser seguido pelo

tradutor em sua atividade, já que o autor é aquele que produz a tradução

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verdadeira (ibidem). Conseqüentemente, os procedimentos5 usados pelo

autotradutor para lidar com dificuldades inerentes ao fazer tradutório serão

aqueles que o tradutor deverá utilizar, pois eles refletem a “fidelidade” do autor a

suas “intenções”. É também essa a opinião de Helena Tanqueiro (2002). Por outro

lado, Green afirma que o autotradutor só será capaz de uma tradução

“verdadeiramente fiel ao original” (2001, p. 17) se a estrutura gramatical e lexical

das duas línguas envolvidas assim o permitirem, e se o autotradutor as conhecer

suficientemente bem. Ou seja, a partir da perspectiva de Green, pode-se dizer que

nem sempre o autor será o melhor tradutor.

Finalmente, Green descreve seu comportamento ao traduzir seu próprio

texto: “tom[a] liberdades que não tomaria caso o texto não fosse de [sua] autoria”

(2001, p. 39). Portanto, a fidelidade é obrigação do tradutor, mas o autor tem

liberdade quando traduz sua própria obra. Green conclui reafirmando sua

autoridade em relação ao original e sua liberdade para “fazer o que quiser com o

texto” (ibidem). O autor de Thinking through translation expressa a visão do

autor como proprietário exclusivo do texto, de forma que, ao se autotraduzir, é

livre para ir além dos limites impostos ao tradutor. Acredito que poucos autores

tenham expressado tão claramente a opinião compartilhada por leitores

profissionais.

As palavras de Flusser e de Green refletem, em meu entender, a visão que

parte do público tem sobre a autotradução – e, necessariamente, uma visão acerca

da tradução, que passo a apresentar aqui.

Flusser e Green acreditam na existência de uma tradução que é ideal,

verdadeira ou definitiva, o modelo que só pode ser produzido pelo próprio autor

do texto e aquela que o tradutor deve desejar produzir. Se essa tradução existe,

também é possível, conseqüentemente, resgatar significados contidos no texto

original, pois só essa presença poderá garantir a interpretação adequada do texto.

Na verdade, Flusser e Green parecem acreditar que “há no texto ou na realidade

5 A expressão “estratégia de tradução” é usada neste trabalho em referência ao conjunto de passos comportamentais usados para atingir um objetivo. As expressões “técnica de tradução” e “procedimento técnico de tradução” são usadas em referência à maneira escolhida para lidar com um problema específico (as referências culturais, por exemplo). A “domesticação” é, portanto, uma estratégia que implica a utilização de um conjunto de técnicas distintas, como, por exemplo, a “tradução integral do nome próprio” ou a “naturalização”.

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um significado ‘presente’, latente que, além de não depender do sujeito que o

‘compreende’, pode ser recuperado, descoberto ou resgatado em sua plenitude”

(Arrojo, 1992, p. 68). Ou ainda, a crença dos dois autores parece apoiada na

“concepção de um texto ‘original’, estável e imutável, depositário de intenções e

dos significados (conscientes, apenas) de um autor, recuperáveis através da leitura

[...] um processo neutro” (p. 74). Concluo que Green acredita em um “texto

‘original’ estável e imutável” que pode garantir a existência da “tradução

verdadeira”, que, por sua vez, só pode ser feita se o texto original, depósito de

significados estáveis, for compreendido sempre da mesma forma por um leitor

obrigatoriamente neutro. Além disso, verifico que Green crê ainda que o autor,

dono do original, pode mudar seu texto, reforçando assim uma já tradicional

percepção do autor e do original como superiores ao tradutor e ao texto traduzido,

respectivamente (Bassnett & Trivedi, 1999, p. 2). O autor é livre para introduzir

em sua autotradução as modificações tidas por ele como adequadas porque é o

dono do original, enquanto que o tradutor, por outro lado, ao fazer determinadas

mudanças será um “traidor”.

A concepção de Flusser e Green acerca da tradução e do papel do tradutor

não é, contudo, aquela que vem sendo defendida por teóricos da tradução

contemporâneos. O estudioso norte-americano Lawrence Venuti (1995, p. 1-2)

fala da “intervenção crucial do tradutor no texto estrangeiro” e afirma que “a

tradução pode ser considerada a comunicação de um texto estrangeiro, mas é

sempre uma comunicação limitada pelo público-leitor específico ao qual se

destina” (p. 8-9). Mais recentemente, no livro The translator as writer (Bassnett

& Bush, 2006), as intervenções conscientes do tradutor são destacadas em textos

escritos por vários profissionais da tradução, atividade que é obrigatoriamente

uma transformação, pois sofre sempre a “intervenção crucial” de um profissional

assujeitado a “valores, crenças e representações” do público e cultura alvos

(Venuti, 1995, p. 18). Entretanto, creio que será necessário, além de “insistirmos

na idéia de que o indivíduo é a elas [língua e história] inevitavelmente

assujeitado”, pensarmos também na “história particular de um sujeito” (Frota,

2000, p. 284) como influenciadora do processo tradutório. Em outras palavras,

creio que a tradução é, inevitavelmente, transformação feita por um sujeito que

intervém em um texto e, nesse processo, é influenciado por valores, crenças e

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representações circulantes na cultura-alvo, mas também influenciado por sua

própria história. É essa a concepção de tradução à qual me alinho. Entretanto, é

importante destacar que, a meu ver, a transformação não é ilimitada. Finalmente,

é necessário considerar que pensar a tradução como transformação não resolve a

questão do estabelecimento de fronteiras entre a atividade de traduzir e de

autotraduzir, por exemplo.

Em artigo intitulado “When is a translation not a translation?” (1998), Susan

Bassnett questiona a compreensão atual da tradução como uma operação que

envolve a transferência de um texto de uma língua para outra (p. 27) e argumenta

que questões como autenticidade e originalidade, poder e posse, dominação e

subserviência são discutidas com base nessa definição que classifica como

“tênue”. Bassnett pergunta então: “Mas podemos estar sempre certos de que

sabemos o que é uma tradução?” (p. 27) e discute tipos de textos, entre eles as

autotraduções, que demonstram a necessidade de reflexão acerca dos limites da

tradução e do papel do tradutor.

A leitura dos textos citados acima propicia o surgimento de outras

indagações: por que um texto autotraduzido nem sempre é visto como uma

tradução? Em geral, as pesquisas que advogam o status de um segundo original

para o texto traduzido pelo próprio autor tendem a calcar suas análises nas

diferenças introduzidas na tradução. Assim, a obra autotraduzida tende a ser

considerada um outro original porque o autor introduz mudanças consideradas

significativas por leitores profissionais que têm acesso aos dois textos – original e

tradução. Entretanto, todas as mudanças são permitidas se o autor do original é

também o tradutor. Por outro lado, o profissional da tradução que introduzir o

mesmo tipo de mudanças poderá ser, como no conto “O Tradutor Cleptomaníaco”

de Dezsö Kosztolányi (1996), condenado ao ostracismo porque o produto de seu

trabalho supostamente trai o original, mas, ainda assim, seu trabalho muitas vezes

será considerado uma tradução e tratado como tal.

Um texto traduzido pelo próprio autor pode ainda não ser visto como uma

tradução porque o tradutor é também o autor do original. Autor e, portanto, dono

do texto, i.e., conhecedor privilegiado da intenção autoral tão buscada por

tradutores, ele não precisa se preocupar com o resgate dessa intenção, pois a

conhece e parece natural que possa retrabalhá-la ou alterá-la sem que isso acarrete

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críticas da comunidade de leitores a que a obra se destina. O tradutor, por outro

lado, funciona como um transportador da intenção autoral sem poder para

modificá-la.

Se o profissional que traduz é o fator determinante das fronteiras entre a

tradução e a autotradução, pergunto-me se um romance vertido por um

profissional apresentado pela editora como tradutor será sempre uma tradução.

Provavelmente, muitos de nós já ouvimos falar de traduções que “traíram” os

originais, ou de tradutores como “traidores”. Contudo, mesmo as traduções

“traidoras” foram por muito tempo lidas, estudadas, criticadas como traduções.

Pensando ainda no profissional, lembro dos autores que foram ou são também

tradutores. Em estudo recente, Adriana Pagano (2001) analisa as estratégias

usadas pelo escritor e tradutor literário Érico Veríssimo durante o boom editorial

ocorrido no Brasil entre 1930 e 1950. A pesquisadora cita, entre outras

características desse período da história da tradução no Brasil e na Argentina, o

fato de que vários autores, hoje aclamados pela crítica em seus países de origem e

no exterior, trabalharam como tradutores para editoras emergentes. Entre eles,

Pagano cita Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Rodolfo Walsh, Julio

Cortázar, Silvina Ocampo e Alfonsina Storni na Argentina, e Monteiro Lobato, Érico

Veríssimo, Mario Pedrosa, Rachel de Queiroz, Cecília Meireles e Graciliano

Ramos no Brasil. Pagano demonstra, em seu estudo, que Veríssimo introduziu

várias alterações nos originais que traduziu e o próprio escritor, admitindo o

comportamento impróprio, confessa que “movido pelo enorme tédio causado pelo

livro, decidiu ajudar o autor e tomar algumas liberdades respeitando a trama, mas

mudando o estilo” (1972). A partir da perspectiva de Eco, portanto, Érico

Veríssimo introduziu alterações que marcam a atividade de um novo autor-modelo,

“tomando liberdades”, amparado e autorizado provavelmente por sua condição de

escritor respeitado no polissistema literário a que a obra traduzida se destinava. A

produção de Veríssimo pode dar margem a questões acerca do que significa

traduzir uma obra. Entretanto, em nenhum momento Pagano questiona o fato de

que Veríssimo produziu traduções, mesmo porque a pesquisadora não se propôs a

discutir a natureza da atividade de tradução. Em nenhum momento, o status

tradutório do trabalho de Veríssimo foi posto em dúvida (o que não significa que

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não deva ser em investigações futuras voltadas para a definição de fronteiras entre

adaptação, tradução, imitação, etc.).

Assim como esse, muitos casos que poderiam levantar dúvidas acerca do

status de uma obra traduzida não o têm feito. O público-leitor provavelmente

acreditava, em todos os casos descritos, estar diante de traduções. Ou talvez o

público-leitor aceite uma obra como uma tradução porque ela é apresentada como

tal no polissistema literário alvo. Sob essa perspectiva, a tradução de um original

produzida por um tradutor (profissional ou não) será sempre uma tradução, e as

possíveis diferenças entre os dois textos talvez sejam criticadas por leitores

profissionais, mas o status do texto produzido não será questionado. A tradução

de um romance realizada por outro autor será também uma tradução, e as

possíveis diferenças entre as obras também podem causar questionamentos do

mesmo grupo de leitores. Da mesma forma, o público-leitor não-profissional

poderá, no máximo, discutir a qualidade das traduções, mas raramente questionará

o fato de que está diante de traduções. Gideon Toury (1995) afirma que “quando

um texto é apresentado como uma tradução, ele é prontamente aceito bona fide

como uma tradução, sem questionamento” (p. 138).

Constato, depois de minhas reflexões, que a atitude de leitores profissionais

pode variar entre os dois extremos: ora o texto autotraduzido é tratado como uma

tradução, ora como um novo original. Pode-se adotar qualquer uma das posições,

mas não se pode deixar de reconhecer que as palavras translated by the author

escritas na capa de um livro ou em suas páginas iniciais alteram o status de uma

obra e sinalizam, de certa forma, que serão permitidas alterações mais

significativas ou que o tradutor é mais gabaritado porque conhece mais

profundamente seu texto. Minha tarefa, então, é a de interpretar a expressão

translated by the author verificando os sentidos que lhe têm sido atribuídos,

especialmente em relação aos trabalhos assim sinalizados, como os de João

Ubaldo Ribeiro.

Constato também, após exaustivas buscas sobre o tema, que a autotradução

não tem sido objeto de estudo freqüente. As muitas questões levantadas acima

refletem o fato de que a prática da autotradução tem sido pouco estudada ou

talvez pouco divulgada. Portanto, minha reflexão levanta também questões acerca

das características que definem uma tradução stricto sensu.

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1.3

A autotradução como objeto de pesquisa

Conforme constatei anteriormente, a autotradução não tem sido objeto de

pesquisa freqüente. Pude observar através de buscas em bibliotecas físicas e

virtuais que apenas três tentativas de preenchimento dessa lacuna nos estudos da

tradução foram feitas recentemente, por meio de pesquisas que serão discutidas

em detalhe posteriormente. São elas:

1. A tese de doutorado de Helena Tanqueiro (2002), defendida na

Universidade Autônoma de Barcelona, intitulada “Autotradução: autoridade,

privilégio e modelo”, que apresenta o trabalho do autotradutor como modelo para

traduções literárias e tenta descobrir, através da análise de autotraduções de

escritores catalães, normas que possam orientar o trabalho de tradutores e críticos

literários, bem como o ensino da tradução literária.

2. A tese de Verena Jung (2002), defendida na Universidade de Dusseldorf,

discute a autotradução de textos acadêmicos. Jung (2002) comparou textos

traduzidos por acadêmicos alemães contemporâneos às traduções dos mesmos

textos por um grupo de alunos. A autora pretendia descobrir “o que o autor quis

preservar, que nível da linguagem ou do conteúdo era considerado importante na

autotradução” (p. 13).

3. A tese de doutorado de Lillian DePaula Filgueiras (2002), defendida na

USP, que tem um objeto de estudo bastante original e, até certo ponto, curioso. A

pesquisadora estudou o trabalho de Reinaldo Santos Neves, autor brasileiro

contemporâneo que produziu uma pseudotradução em português, a autotradução

desta para o inglês e a retradução do texto autotraduzido para o português. Com o

objetivo de “problematizar questões referentes à originalidade, fidelidade e

criação na atividade tradutória” (p. 8), a pesquisadora acompanhou o processo de

autotradução do português para o inglês e a “retradução” (p. 10) do inglês para o

português, que estava sendo produzida durante a elaboração da tese, segundo

informação da pesquisadora.

Duas teses estão em andamento. Na Universidade de Edimburgo, Corinna

Krause estuda o caso dos poetas-autotradutores escoceses e na Universidade de

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Pavia, Luana Pasi estuda as autotraduções (feitas por Samuel Beckett) de suas

peças teatrais En attendant Godot / Waiting for Godot e Fin de partie / Endgame.

Essas teses não serão discutidas em detalhe aqui, pois ainda não foram

defendidas. Entretanto, alguns artigos de Krause e algumas conclusões iniciais de

Pasi serão citados no capítulo 3, em que apresento o caso das autotraduções de

Beckett e dos poetas escoceses.

Em minha tese, que envolve o estudo do caso do escritor brasileiro João

Ubaldo Ribeiro e suas autotraduções para o inglês, pretendo verificar se, ao

traduzir o próprio texto, o autotradutor introduziu alterações atribuíveis ao autor-

modelo original e assim contribuir para a discussão acerca de possíveis limites

entre tradução e autotradução. Finalmente, desejo ressaltar um ponto em

comum entre os estudos relatados por Tanqueiro (2002) e Filgueiras (2002): a

autotradução é vista como tradução, ou seja, diferentemente de estudiosos

contemporâneos como Brian Fitch (1988), que acaba por definir a atividade como

“parte do processo de escrita” (p. 70), as duas pesquisadoras conferem ao texto

autotraduzido o status de tradução. Helena Tanqueiro parte da premissa de que o

texto autotraduzido constitui um modelo para outros tradutores porque foi

produzido por um tradutor privilegiado, o autor do original, que sabe suas

intenções e que, por isso, seleciona procedimentos apropriados para lidar com o

texto. Jung (2002), entretanto, acrescenta que o caso da autotradução do texto

acadêmico – uma prática relativamente comum entre pesquisadores – é diferente.

Para ela, a definição proposta por Fitch (1988) sobre a obra literária pode ser

inadequada para uma classificação dos textos acadêmicos. Jung sugere, portanto,

que um texto literário traduzido por seu autor poderá constituir um outro original,

enquanto os textos acadêmicos traduzidos por seus autores serão sempre

traduções.

1.3.1

Objeto, corpus e questões do estudo de caso

Interessa-me como objeto de pesquisa, conforme relatado acima, o processo

de autotradução de Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro para o inglês. Na

tentativa de compreender esse processo, analisarei o seguinte corpus: (i) Sargento

Getúlio e Viva o povo brasileiro e as autotraduções de João Ubaldo para o inglês;

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(ii) entrevistas concedidas pelo escritor; (iii) o artigo “Suffering in translation”

escrito por João Ubaldo; (iv) artigos, resenhas e livros que têm a obra do escritor

brasileiro como tema; e, (v) entrevista por e-mail que vem sendo concedida a mim

desde 2003 por João Ubaldo.

Discutirei, no terceiro capítulo desta tese, as três pesquisas sobre

autotradução recentemente apresentadas: Tanqueiro (2002), Jung (2002) e

Filgueiras (2002). No mesmo capítulo, apresentarei uma discussão acerca do

trabalho dos autotradutores contemporâneos Samuel Beckett, Vladimir Nabokov e

Milan Kundera, além de grupos de autotradutores provenientes de regiões

(bilíngües ou não) em que a autotradução é uma atividade freqüente, como a

Catalunha e a Escócia contemporâneas. Evidentemente, outros autores – como a

canadense, anglófona Nancy Huston, autora de mais de 19 textos de ficção e não-

ficção e (auto)tradutora de três romances de sua autoria – traduzem seus próprios

textos, mas desconheço estudos sobre a prática desses autotradutores e relatos

minimamente detalhados dos próprios autores sobre o tema, o que, no momento,

impede minha reflexão sobre seus casos particulares.

Em minha análise acerca da autotradução, abordarei temas que até então não

foram discutidos, pelo menos profundamente, por teóricos da tradução. Devo

ainda esclarecer que discutirei a autotradução a partir dos casos dos autotradutores

estrangeiros citados acima para estabelecer, em minha análise, uma espécie de

diálogo entre eles e o autor brasileiro João Ubaldo Ribeiro. Enfatizo, entretanto,

que não pretendo discutir o trabalho dos autores estrangeiros em profundidade.

Eles servirão, fundamentalmente, para enriquecer minha análise do caso ubaldiano

através da comparação com informações advindas de outras fontes. Para tal, o

trabalho de Samuel Beckett, Vladimir Nabokov, Milan Kundera, de escritores

catalães e poetas escoceses, que tem despertado maior interesse de pesquisadores

em geral, fornece, por assim dizer, maiores possibilidades de diálogo. Considero

relevante destacar que minha discussão acerca do trabalho dos autotradutores

citados e de João Ubaldo Ribeiro constitui a primeira pesquisa formal que

abrange escritores localizados em situações distintas e que aponta particularidades

em cada processo autotradutório.

Na minha análise da autotradução em si e tal como praticada por João

Ubaldo Ribeiro, apresentada no capítulo 4, pretendo abordar noções como as de

criação e tradução a partir da discussão de Paulo Henriques Britto. Em artigo

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intitulado “Tradução e criação” (1996), o tradutor, professor e poeta contrasta o

processo de tradução de um poema ao processo de criação de outro, e conclui que

os dois processos têm características distintas. Britto afirma que “em ambos os

casos, há momentos de autonomização e de aproximação, mas enquanto na

tradução a estrutura é mais ou menos equilibrada, no caso da criação o movimento

de autonomização é claramente predominante” (p. 250-251). Minha análise se

concentrará na seguinte questão:

• o autotradutor João Ubaldo Ribeiro exibe movimentos de autonomização

em relação ao original ou de aproximação? Em que momentos?

As noções de autoridade e fidelidade serão abordadas nos capítulos 3 e 4.

Ainda que elas tenham sido exaustivamente discutidas por teóricos da tradução,

elas são estudadas de um único ponto de vista, ou do autor ou do tradutor. A visão

de outros sujeitos – os autotradutores por mim enfocados – poderá lançar novas

perspectivas e luzes sobre as noções. Entretanto, a fidelidade e a autoridade serão

discutidas, em especial, no capítulo 4, onde apresento o caso de João Ubaldo

Ribeiro. Algumas questões podem ajudar a iluminar a reflexão acerca dessas

noções, tais como:

• João Ubaldo Ribeiro introduz alterações permitidas por sua autoridade

para compreender o texto original? O grau das transformações as faz

diferentes daquelas introduzidas por tradutores profissionais?

• João Ubaldo se mantém próximo ao texto original, sendo fiel à sua

manifestação linear?

Além das questões acima apresentadas, tentarei, sempre que possível, lançar

luzes sobre os motivos que levam os autores estudados a traduzirem sua própria

obra: o autor traduz seu original porque, sendo o dono do texto, entende que este

não pode ou não deve ser traduzido por outro que não seja seu próprio autor? O

autor “desconfia” de tradutores de maneira geral? O autor gosta de traduzir e

prefere ver seu texto traduzido por si mesmo para que suas escolhas permaneçam

inalteradas? O autor tem motivos mais práticos: ele precisa da tradução, pelas

mais diversas razões, conhece os idiomas que a tradução envolve e então resolve

enfrentar o desafio? Os relatos dos autotradutores e as pesquisas sobre a

autotradução poderão fornecer respostas para tais questões.

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28

1.4

A organização do trabalho

Para que a compreensão de um processo tão complexo como a autotradução

tal como praticada por João Ubaldo Ribeiro seja possível, organizarei meu

trabalho da seguinte forma.

No segundo capítulo, trato dos conceitos de autor-modelo e leitor-modelo.

Com base nos trabalhos de Eco, The role of the reader (1979a), Lector in fabula

(1979b) e Six walks in the ficctional woods (1994), discuto esses conceitos e

procuro contribuir para uma revisão do primeiro. No mesmo capítulo, defino a

metodologia adotada e descrevo o contexto da pesquisa. Aqui discorro

brevemente sobre a validade do estudo de caso como metodologia de pesquisa

(Bassey, 1999) e sua adequação para a investigação aqui proposta. Os estudiosos

da tradução têm desenvolvido várias pesquisas desse tipo, o que comprova a

relevância da aplicação desse modelo. Entre eles, cito as pesquisas sobre

autotradução que listei acima, bem como os trabalhos de Marcia Martins (1999),

sobre os Hamlets brasileiros; Teresa Carneiro Cunha (1997), sobre Mário de

Andrade traduzido para o francês; Ofir Bergemann de Aguiar (1999), sobre o

papel da tradução dos folhetins na introdução de um novo gênero literário no

polissistema literário brasileiro; e muitos outros estudos sobre autores brasileiros

em tradução, especialmente para o francês e o inglês. No segundo capítulo, trato

também dos instrumentos utilizados em minha pesquisa: o modelo para a

descrição de traduções de Lambert e van Gorp (1985) e a entrevista por e-mail

(Mann & Stewart, 2000). A teoria dos polissistemas (Even-Zohar, 1990) e os DTS

(Toury, 1995 e Lefevere, 1990) serão brevemente discutidos durante a

apresentação do modelo de Lambert e van Gorp (1985). Considero tal discussão

relevante, já que um estudo sobre a autotradução só será possível dentro de uma

abordagem teórica que considera a tradução como um fato da cultura-alvo e,

conseqüentemente, define a tradução como dependente do sistema a que se

destina. Os estudiosos descritivistas não partem, portanto, de uma concepção a

priori da tradução, mas consideram como objeto passível de estudo todo texto que

for aceito como tradução por uma dada cultura (Carvalho, 2005, p. 40-41).

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No terceiro capítulo, a autotradução é discutida a partir da análise de três

teses recentes – Tanqueiro (2002), Jung (2002) e Filgueiras (2002) – e da análise

do trabalho dos autotradutores Samuel Beckett, Vladimir Nabokov, Milan

Kundera e dos grupos de autotradutores catalães e escoceses.

No quarto capítulo, trato da análise dos dados. Apresento uma breve

biografia do autor brasileiro que é objeto de estudo desta tese, enfocando dados

que considero relevantes para o processo da autotradução. Em seguida, apresento

minha análise dos romances Sargento Getúlio / Sergeant Getúlio e Viva o povo

brasileiro / An invincible memory, escritos e traduzidos por João Ubaldo Ribeiro.

As considerações finais versam sobre as questões que se sobressaíram na

discussão acerca do processo de autotradução em geral e de meu sujeito de

pesquisa, em particular.

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2

Considerações teóricas e metodológicas

O leitor-modelo acha e atribui ao autor-modelo o que o autor empírico pode ter descoberto ao acaso. (Eco, 1994, p. 44)

2.1

Introdução

Neste capítulo, tenho por objetivo discutir o conceito de autor-modelo de

Umberto Eco (1979a, 1979b, 1994), analisando-o criticamente e procurando

contribuir para a compreensão e o aprofundamento do mesmo. Em seguida, defino

a metodologia adotada e discorro brevemente sobre a validade do estudo de caso

como metodologia de pesquisa (Bassey, 1999). Trato também do modelo

investigativo proposto por José Lambert e Hendrik van Gorp (1985), da entrevista

por e-mail como instrumento de pesquisa (Mann & Stewart, 2000) e, finalmente,

da entrevista com o autor João Ubaldo Ribeiro.

Antes de iniciar minha análise do conceito de autor-modelo, considero

importante ressaltar que ele se mostrou apropriado para o estudo de caso sobre o

escritor brasileiro porque este vê o texto como o controlador do processo

autotradutório. Percebi, durante a análise do caso ubaldiano feita durante a

elaboração da monografia que descrevi brevemente no capítulo anterior, que, para

João Ubaldo, o texto escrito é uma peça fundamental que deve ser respeitada pelo

autotradutor. Assim, o conceito de autor-modelo de Umberto Eco, um construto

do texto, me pareceu apropriado. Passemos então a explorá-lo.

2.2

O autor-modelo de Umberto Eco

Acredito que a teorização de Umberto Eco – semioticista, crítico literário,

escritor e professor da Universidade de Bolonha – acerca do ato cooperativo da

leitura ilumina a análise do trabalho do autor que traduz a própria obra.

Entretanto, não pretendo aqui apresentar uma análise crítica acerca de todos os

pressupostos teóricos que Eco apresenta e nos quais se apóia em suas análises.

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Não pretendo discutir em detalhe todos os estágios do ato cooperativo da leitura,

já apresentados e discutidos por Eco em The role of the reader (1979a) e Lector in

fabula (1979b). Entretanto, explicarei alguns dos conceitos de Eco no decorrer

desta seção, pois eles são fundamentais para minha discussão e para a análise dos

dados que apresentarei no capítulo 4. São eles o autor e o leitor empíricos, a

competência enciclopédica, as circunstâncias de enunciação, a noção de vazio e o

sentido literal. Enfatizo, porém, que meu foco de interesse é o autor-modelo,

delineado por Eco nos volumes citados acima e em Six walks in the ficcional

woods (1994). A definição do autor-modelo depende, contudo, do entendimento

da outra via desse ato cooperativo – o leitor-modelo.

Eco, que já havia apresentado o conceito de “obra aberta” em seu livro de

ensaios Obra aberta (1962), inicia sua exposição do papel do leitor afirmando que

“um texto ‘aberto’ não pode ser descrito como uma estratégia comunicativa se o

papel de seu destinatário (o leitor, no caso do texto escrito) não tiver sido

considerado no momento de sua geração como texto” (Eco, 1979a, p. 3). Está

implícita nessa afirmação a crença na escrita como uma atividade comunicativa e

no fato de que, já que é comunicação, será preciso um leitor que exerça o papel de

destinatário da mensagem, sem que este seja, contudo, o único papel exercido por

ele. Para Eco, além de destinatário, o leitor é também co-participante do processo

gerativo de um texto, pois “o autor tem de prever um modelo de leitor (o leitor-

modelo) supostamente capaz de interpretar o texto da mesma maneira que o autor

previu durante o processo de geração do mesmo” (p. 7). Isto significa que o leitor-

modelo funciona como agente propulsor da produção escrita, levando o autor a

fazer escolhas apropriadas ao leitor que tem em mente e registrá-las no texto. O

fato de que Eco atribui ao leitor-modelo a tarefa de “interpretar o texto da mesma

maneira” pode levar-nos a crer que a interpretação é um processo de descoberta

de significados estáveis contidos em um texto. Entretanto, veremos mais adiante

que essa hipótese não será ratificada e que o leitor interfere, de certa forma, na

própria criação na medida em que elabora significados ao seguir pistas registradas

no texto, consciente ou inconscientemente, pelo autor do mesmo. Esclareço

também que o leitor-modelo está presente no texto sob a forma de uma estratégia

textual e que a interpretação consiste na reconstrução dessa estratégia, um

processo potencialmente sem fim, mas que tem limites, já que haverá

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interpretações que, por não serem sustentadas pela coerência interna do texto,

serão vistas como “sem êxito” por Eco (1979b, p. 41).

Considero a função do leitor como co-participante do processo gerativo de

um texto bastante pertinente e, de certa forma, semelhante àquela descrita por

Henry Widdowson, lingüista aplicado inglês, em seu artigo intitulado “New starts

and different kinds of failure” (1984, p. 54-67), em que ele apresenta sua visão da

escrita como atividade comunicativa. Para Widdowson, o escritor imagina um

diálogo entre ele e um leitor, e registra o resultado dessa interação em uma folha

de papel. Assim, o leitor impulsiona o processo de escrita e, ao ler o texto, dialoga

com o escritor recriando o significado, produzido pela interação entre os

participantes do processo comunicativo mediado pelo texto escrito (p. 58). Em

minha dissertação de mestrado, explorei exatamente o processo de interação de

professores de Expressão oral e escrita6 com aprendizes de inglês como língua

estrangeira, mediado pelas redações produzidas por esses alunos como parte dos

requisitos necessários para aprovação na disciplina Língua inglesa IV.

Investigando os comentários escritos pelos professores nas redações e o processo

de produção desses comentários através da utilização da técnica de protocolo

verbal (Faerch & Kaasper, 1987), meu objetivo foi o de verificar se os professores

assumiam o papel de leitores interessados na construção do significado (Antunes,

1994), ou, em outras palavras, na interação com os alunos, registrando esse

interesse em seus comentários escritos. Os resultados de minha pesquisa

introspectiva demonstram que a interação se dava durante o processo de leitura

das redações, quando os professores faziam observações em relação aos esquemas

de conteúdo ativados pelo texto, mas elas não eram registradas na forma de

comentários às margens de cada redação. Os comentários escritos veiculavam, na

grande maioria das vezes e como é freqüente, informações acerca de erros

gramaticais e da forma considerada gramaticalmente correta do uso de

determinadas estruturas. Concluí, com base em minha investigação, que: (i) o

conhecimento sistêmico é visto como essencial pelos professores que tomaram

parte de meu estudo; (ii) a correção gramatical é mais importante; e, (iii) a escrita

de redações é tida como uma atividade que proporciona a prática de estruturas

6 Expressão oral e escrita é um componente da disciplina Língua Inglesa, que integra o currículo do curso de licenciatura em Inglês e respectivas Literaturas, do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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morfossintáticas. Minha dissertação demonstra também (à luz do arcabouço

teórico que utilizo nesta tese) que há pistas ou marcas que sinalizam para o leitor

maneiras de cooperar com o texto. Voltemos então a Umberto Eco.

Durante o ato cooperativo da leitura, o leitor empírico – o “sujeito concreto

dos atos de cooperação” (Eco, 1979b, p. 45-46) ou, em outras palavras, qualquer

leitor que seleciona um texto para leitura – constrói hipóteses acerca do leitor-

modelo presente no texto e faz conjecturas acerca do autor-modelo (Eco, 1979b,

p. 45-46), atribuindo a este, e não às intenções do autor empírico – o sujeito

concreto do processo de escrita –, as pistas deixadas no texto. O leitor empírico é

quem formula hipóteses sobre o autor-modelo que, por sua vez, não espera

simplesmente que o leitor-modelo exista, já que nem sempre a competência do

leitor será semelhante à do autor. Na verdade, “todo ato de leitura é uma transação

difícil entre a competência do leitor e o tipo de competência que um texto postula

para ser lido de maneira econômica” (Eco, 2000, p. 84). Por isso, o texto deve

“[contribuir] para produzi-la” (p. 40)7.

A competência do leitor, ou sua competência enciclopédica, é uma noção

importante que passo a definir agora. Ela abrange “um complexo sistema de

códigos e subcódigos” (Eco, 1979b, p. 60): um léxico sob a forma de dicionário

básico elementar e que permite que o leitor identifique as propriedades semânticas

das expressões; conhecimentos gramaticais, relativos aos operadores de coesão

textual; as encenações comuns (conhecimento organizado de mundo partilhado

pela maior parte dos membros de uma cultura) e intertextuais (o conhecimento

que o leitor tem de outros textos e que nem todos os membros de uma

determinada cultura possuem); as seleções contextuais e circunstanciais que

permitem, por exemplo, saber quando e em que circunstâncias, uma dada

expressão é usada não em sentido literal, mas em sentido retórico; e, por fim, uma

dada perspectiva ideológica. Ou, nas palavras de Rabenhorst, podemos dizer que a

competência enciclopédica abrange o “registro de funcionamento de uma língua

em toda a sua complexidade, contemplando regras de significação e instruções

pragmaticamente orientadas” (2002, p. 8). Considero também que a competência

enciclopédica abrange um conjunto de competências – competência gramatical,

sociolingüística, discursiva e textual – além do conhecimento prévio do leitor

7 Um exemplo da construção da competência do leitor-modelo está em Lector in fabula (Eco, 1979b, p. 40).

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acerca do mundo que o cerca. Como dito acima, o autor-modelo contribui para a

construção da competência de seu leitor-modelo, mas devemos ressaltar que um

texto pode demandar o uso de uma competência enciclopédica que o leitor

empírico não tem e, por isso, este, talvez, não consiga seguir as pistas deixadas

pelo autor-modelo para a interpretação. Mas voltemos à construção da

competência do leitor-modelo.

Um exemplo desse processo se dá, na tradução, através do uso da técnica da

explicitação (Baker, 1996, p. 176), recorrente em textos traduzidos, como alguns

pesquisadores demonstram (Wools, 2000; Olohan & Baker, 2000). Quando lê

pela primeira vez um texto, o tradutor, leitor-modelo do original, constrói uma

interpretação dele. Mas ao iniciar o processo de tradução em si, o tradutor

imagina o leitor-modelo da tradução, diferente daquele do original e dotado,

necessariamente, de competência enciclopédica distinta daquela que a leitura do

texto-fonte demanda. O resultado da interação imaginária com o novo leitor

provoca a inserção de modificações que visam auxiliá-lo, porque a ele falta o

conhecimento acerca, por exemplo, da perspectiva cultural que informa o texto.

Quando explicita, o tradutor, entre outras possibilidades, adiciona informações a

respeito de um item cultural que julga desconhecido do público-leitor estrangeiro

e ao mesmo tempo, nas palavras de Eco, contribui para a construção de uma

competência que será necessária para o ato cooperativo da leitura. Vejo ainda a

explicitação como marca atribuída ao trabalho do tradutor presente no texto

traduzido. Conseqüentemente, o autor que traduz seu próprio texto estará agindo

como um tradutor típico quando, por exemplo, decide explicitar itens culturais.

Esse não é, contudo, o único tipo de atuação do autotradutor, como veremos

adiante, pois, a meu ver, ele também deixará marcas atribuíveis ao autor-modelo

original que demonstrarão que ele aproveita o processo de tradução para

aperfeiçoar o texto, recriando assim aquele que era tido como original.

A interpretação de um texto é, como descrevi acima, prevista durante o

processo de criação e o leitor-modelo, que compartilha a competência

enciclopédica com o autor, ajudará um “mecanismo preguiçoso” (Eco, 1979b, p.

37) – o texto – a funcionar. É o leitor quem dá a partida na interpretação e, sem

ele, ela não existe. Como já foi visto, o papel do leitor antecede a leitura

propriamente dita porque o autor constrói o texto prevendo a atuação do leitor-

modelo, mas não termina aí. Este atua também durante a leitura, quando constrói

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interpretativamente as previsões do autor, dando forma ao autor-modelo, também

um construto do texto, a quem são atribuídas as pistas para a interpretação (Eco,

1994, p. 44). O autor empírico não necessariamente poderá explicar as pistas que

deixou, já que elas nem sempre serão opções conscientes, e, por isso, o autor-

modelo é importante no processo de comunicação. No caso da tradução, é o autor-

modelo que será, de forma intuitiva, tomado como referência pelo tradutor e que

este (leitor-modelo do original) reconstrói na tentativa de ser fiel ao original. É

importante destacar mais uma vez que, para Eco, o autor-modelo não se

assemelha ao autor empírico, nem tampouco as escolhas registradas no texto

deverão ser investigadas com base na sua história ou suas explicações, até porque

nem sempre ele será capaz de explicar suas próprias estratégias (ibidem). O autor-

modelo é aquele a quem o leitor atribui a seleção de estruturas sintáticas, de itens

lexicais e de estratégias narrativas registradas na manifestação linear do texto e

que servem de pistas para a interpretação. Mas vejamos agora como se dá a

primeira etapa, obrigatória, na construção do autor-modelo.

O ato cooperativo da leitura8 se dá em vários níveis, que não pretendo

explicar em detalhe aqui, já que não é o propósito desta tese estudá-lo

criticamente. Desejo apenas fazer uma análise breve acerca da manifestação linear

do texto ou sua “superfície lexemática” (Eco, 1979b, p. 55), pois é com ela que o

leitor coopera no processo de recriação do significado e é lá que as escolhas do

autor-modelo aparecem registradas. Como afirma Eco, “só se pode partir da

manifestação linear; ou então, só se decide atualizar um texto quando este nos é

subministrado como expressão” (p. 53). É na manifestação linear do texto que

está indicado “um conjunto de instruções [...] um conjunto de frases ou outros

sinais” (Eco, 1994, p. 16) que servem de “guia para o leitor” (p. 27). Ao entrar em

contato com essas instruções, o leitor-modelo, obrigatória e imediatamente, as

relaciona às circunstâncias de enunciação que englobam “informações acerca do

emitente, da época e do contexto social do texto, suposições sobre a natureza do

ato lingüístico” (1979b, p. 56) e todas as informações possíveis sobre as

condições de produção de um material. Acrescento que os paratextos são

materiais importantes para a compreensão dessas condições e tendem a fornecer,

de forma explícita ou implícita, limites para a interpretação da obra e sua função

8 Os níveis de cooperação textual são discutidos em detalhe por Eco no livro Lector in fabula

(1979b).

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em um polissistema literário. Voltarei à questão dos limites em breve. Por ora,

continuo a discutir os primeiros passos, obrigatórios, do leitor em contato com a

manifestação linear do texto.

O segundo passo do leitor-modelo é a aplicação de um sistema de códigos e

subcódigos “fornecidos pela língua em que o texto foi escrito e pela competência

enciclopédica a que por tradição cultural aquela própria língua remete” (1979b, p.

60). Ou seja, o leitor recorre a sua competência enciclopédica e faz inferências

que permitirão um primeiro nível de interpretação do texto (p. 60-67). Mas na

manifestação linear não estão registradas todas as pistas. Eco afirma (1979b) que

o texto está “entremeado de espaços brancos, de interstícios a serem preenchidos

e quem o emitiu previa que esses espaços e interstícios seriam preenchidos e os

deixou brancos [...]” (p. 37). Uma das marcas que o autor deixa no texto fica,

portanto, definida, ainda que de forma breve: os “espaços brancos” ou

“interstícios”, ou aquilo que o texto não diz ou que não manifesta “em superfície”

(p. 36), mas que pressupõe, promete, implica e cujo preenchimento requer do

leitor “movimentos cooperativos, conscientes e ativos” (p. 36) e, por que não

dizer, criadores. Em Six walks in the ficcional woods (1994), Eco volta a fazer

referência aos “espaços brancos” ou “vazios” (p. 3) e se refere de forma direta à

teoria do efeito estético e ao leitor implícito de Wolfgang Iser (1978), apontando

diferenças entre o leitor-modelo e o leitor implícito (Eco, 1979b, p. 15-16) sem se

referir às possíveis diferenças entre os vazios por ele pensados e os vazios

iserianos. Contudo, essas diferenças existem e, sendo o vazio uma marca

importante deixada pelo autor-modelo, pois é ativadora do trabalho do leitor, ele

precisa ser definido.

Chamo a atenção, em primeiro lugar, para a concretude e abrangência, em

meu entendimento, dos vazios propostos por Eco. Eles são concretos, por assim

dizer, pois são “visíveis” na própria manifestação linear através, por exemplo, da

escolha do léxico. Quando o autor-modelo escolhe, digamos, a palavra “Senhor”,

ele seleciona um indivíduo humano do sexo masculino, adulto. Entretanto, outras

características inerentes a um indivíduo da raça humana (se pode ser negro ou

branco e ter cabelos negros, loiros, crespos ou lisos, por exemplo) permanecem

implícitas, pois o leitor não as atualiza a princípio. Ele só as atualizará no nível

das estruturas discursivas na medida em que o texto aponte para a importância de

tais características e essa atualização dá à leitura o aspecto de criação, pois nem

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sempre um determinado vazio será preenchido da forma que o autor imaginou.

Ou, em outras palavras, o autor-modelo escolhe um sistema lexical, mas não a

interpretação que o leitor-modelo fará desse sistema. Ao mesmo tempo, se o vazio

é tudo o que o texto não diz ou que não manifesta em sua superfície, ele torna-se

um conceito bastante abrangente9.

Já os vazios iserianos são, em meu entender, mais restritos. Para Iser (1978),

a função da ficção é comunicar e, apoiado na teoria dos atos de fala e em teorias

da psicologia e psicanálise, argumenta que os vazios são ocasionados,

fundamentalmente, pela indeterminação característica de toda relação de interação

e interpretação (1978, p. 72). De forma mais específica, Iser aponta para (i) a

despragmatização de normas (p. 184), (ii) o confronto entre as diferentes

perspectivas no texto literário (do narrador, dos personagens, da trama e do leitor

fictício) (p. 35), (iii) a técnica do corte (p. 191-192) e (iv) a justaposição abrupta

de segmentos textuais (p. 195) como origem dos vazios10, que funcionam como

propulsores da interação leitor-texto e causam a assimetria, provocadora da

comunicação. Para preencher momentaneamente os vazios e superar essa

assimetria o leitor usa suas próprias projeções, mas elas serão transformadas em

conseqüência da interação. Defensor de uma visão não-representacionalista do

texto literário, Iser vê a interpretação como um processo de construção guiado

pelo texto (1978)11.

Creio que os vazios propostos por Umberto Eco e Wolfgang Iser são

semelhantes, pois eles prevêem a participação ativa do leitor, sem o qual a

interpretação não pode existir. São semelhantes ainda porque não prevêem o tipo

de preenchimento em si, mas sim o fato de que ali há um vazio que precisa ser

preenchido. Entretanto, a participação do leitor nos dois casos é distinta. Não é

minha intenção discutir em detalhe as diferenças entre os pressupostos

epistemológicos em que Eco e Iser se apóiam. Entretanto, considero importante

ressaltar que, se para Iser o leitor preenche momentaneamente os vazios com base

em suas próprias projeções, para Eco o preenchimento desses espaços brancos

9 Há exemplos do processo de preenchimento dos vazios presentes no texto em Lector in fabula

(1979b, p. 36 e 163-170). 10 O processo de interpretação do texto e a função dos vazios são apresentados extensa e detalhadamente em The act of reading (Iser, 1978). 11 Além dos “vazios”, as “negações” também instruem o leitor no processo de interpretação (Iser, 1978, p. 212-225).

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será limitado por uma enciclopédia “acessível” aos membros de uma cultura, que

funciona como uma espécie de guard-rail da interpretação.

Voltarei à questão dos limites da interpretação em seguida. Por ora, ressalto

que, em meu estudo, adoto a noção de vazio de Eco e analisarei as escolhas do

autotradutor no tratamento dos itens de especificidade cultural (Franco Aixelá,

1996) que dependem da cooperação do leitor para o preenchimento do vazio que

cada um desses itens selecionados pelo autor-modelo espera. Compartilho com

Eco a crença de que será impossível atualizar um texto sem primeiramente

investir de conteúdo as expressões registradas em sua manifestação linear (1979b,

p. 57). Nesse sentido, ao traduzir seu próprio texto tendo em vista o leitor-modelo

estrangeiro, o que faz João Ubaldo Ribeiro? Que expressões e itens de

especificidade cultural decidirá utilizar? Ele auxiliará o leitor-modelo a investir de

conteúdo os itens que seleciona?

Outras marcas atribuídas ao autor-modelo são descritas por Eco. Ele afirma

que “todo tipo de texto seleciona um modelo bastante geral de leitor possível

através da escolha (i) de uma língua, (ii) de um tipo de enciclopédia, (iii) de um

dado patrimônio lexical e estilístico” (1979b, p. 40). Além dessas formas, um

texto pode selecionar seu leitor de forma explícita – como quando um livro é

destinado ao público infantil, por exemplo (p. 40). Vale destacar também que

ambos, autor e leitor modelos, estão presentes no texto narrativo por meio das

escolhas que os definem. De fato, Umberto Eco afirma que “emissor e receptor

estão presentes no texto” (p. 10).

Acredito que a terceira marca – o patrimônio lexical e estilístico – pode ser

mais explorada. Atribui-se a um autor-modelo um idioleto que pode passar a

caracterizar suas obras. Assim, por exemplo, é atribuída ao autor-modelo de

Sargento Getúlio e de Viva o povo brasileiro, a seleção de um patrimônio

específico que marca os dois romances. Rodrigo Lacerda (2005) se refere à

“impressionante argamassa de linguagem que é o monólogo de Sargento Getúlio”

(p. 70) e apresenta aquilo que identifica como as “marcas de estilo”, nas palavras

de Umberto Eco, atribuíveis ao autor-modelo:

erros intencionais [...]; evoluções sonoras [...]; onomatopéias [...]; fusões de palavras [...]; frases encurtadas [...]; frases retorcidas [...]; interjeições oralizantes [...]; corruptelas do inglês [...]; palavras arcaicas ou eruditas [...]; expressões arcaicas ou eruditas [...]; estruturas sintáticas arcaicas [...]; ditados populares [...]; neologismos completos [...]; marcas de sotaque regional [...]; repetições intencionais [...]. (p. 72)

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João Carlos Teixeira Gomes (2005) aponta marcas semelhantes presentes em Viva

o povo brasileiro ao citar “a riqueza do recheio vocabular” (p. 93) e a “criação

vocabular” (p. 100). O escritor brasileiro explora, com mestria, a língua

portuguesa através do uso de um vocabulário e registro lingüístico que caracteriza

de forma contundente os personagens dos dois romances. Portanto, o leitor-

modelo brasileiro construído pelo autor-modelo é um leitor competente e ao

mesmo tempo disposto a construir a competência enciclopédica necessária

durante a leitura.

Finalmente, é importante destacar que Eco não argumenta a favor da

presença de autor e leitor empíricos no texto, pois ambos são “papéis actanciais

do enunciado” (1979b, p. 44) e não sujeitos da enunciação. A presença do autor

no texto se dá através da utilização de uma estratégia textual (p. 45), que poderá

ser a seleção de uma narrativa em primeira pessoa, por exemplo, além de seu

próprio patrimônio lexical e estilístico. Autor e leitor modelos não são, portanto,

realidades empíricas, pois ambos só têm vida no texto e “a cooperação textual é

fenômeno que se realiza [...] entre duas estratégias discursivas e não entre dois

sujeitos individuais” (p. 46). Ou seja, para Eco, o autor empírico não tem papel na

interpretação do texto. Ele o escreve e, para escrevê-lo, precisa imaginar um

interlocutor – o leitor-modelo – que será capaz de cooperar com sua criação.

Cooperando com ela, seguindo as pistas e marcas lá registradas, o leitor-modelo

recriará o autor-modelo, sem que o autor empírico tenha um papel a exercer aí.

Eco considera, inclusive, que o conhecimento acerca do autor empírico poderá

causar dificuldades na cooperação do leitor com o texto. O semioticista afirma

que “nem sempre se pode distinguir tão claramente o autor-modelo” (ibidem) e,

por isso, é comum que o leitor empírico tente contribuir com seus conhecimentos

acerca do autor empírico para a construção do autor-modelo presente no texto.

Entretanto, Eco argumenta que essa tentativa do leitor empírico tende a “ofuscar”

o autor-modelo.

Mais recentemente, entretanto, Eco argumenta que a

idéia de interpretação textual como a descoberta da estratégia com intenção de produzir um leitor-modelo, concebido como a contrapartida ideal de um autor-modelo (que aparece apenas como uma estratégia textual), torna a idéia da intenção do autor empírico radicalmente inútil. Temos de respeitar o texto, não o autor enquanto pessoa assim-e-assim. Todavia pode parecer um tanto rude eliminar o

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pobre autor como algo irrelevante para a história de uma interpretação. (2001a, p. 77)

Eco ratifica, a princípio, sua visão do autor empírico como uma figura indesejável

que atrapalha a cooperação do leitor com o texto, mas, por outro lado, o professor

italiano se sente forçado (talvez por sua própria condição de romancista) a

reconhecer que o “pobre autor” não pode ser simplesmente eliminado da história

da interpretação. Também acredito que o autor empírico não pode ser excluído

por completo, mas é necessário redefinir seu papel na produção de autor e leitor

modelos.

Esclareço que não é meu desejo discutir a intenção do autor, pois não

acredito na intenção “verdadeira” ou “original” vista como fonte de explicação

para a obra. Contudo, isso não quer dizer que pretendo descartar a figura do autor

empírico ou tomá-la como agente que atrapalha o processo de cooperação. Na

verdade, creio que o autor empírico pode exercer um papel importante na

construção do autor-modelo. Por isso, volto às “circunstâncias de enunciação”

definidas anteriormente.

Quando está diante de um texto, o leitor imediatamente o relaciona às

circunstâncias de enunciação. Uma das primeiras perguntas que faz concerne o

tipo de texto que ele tem diante de si: é um artigo científico, um relato biográfico,

um romance? Acredito que o autor empírico já começa a se “intrometer” no

processo de interpretação nesse momento. O nome João Ubaldo Ribeiro escrito no

início de um texto dificilmente indicará que o leitor pode encontrar ali um artigo

científico, por exemplo. Assim, as informações que o leitor tem sobre o autor

empírico farão com que seu leque de opções se restrinja. O leitor faz também

suposições acerca de “esquemas retóricos e narrativos que fazem parte de um

repertório selecionado e restrito de conhecimento” (Eco, 1979b, p. 66), baseado

em suas leituras prévias de outros textos de João Ubaldo e de outros romances da

época em que determinada obra foi escrita. O leitor faz suposições acerca das

condições de produção de um texto e estas o impedem de “desrespeitar o mundo

possível da obra e o sistema lexical de seu tempo” (Rabenhorst, 2002, p. 11).

Assim, se o autor-modelo imagina uma trama que se passa no interior do Brasil

nos anos 1970, existem condições que ele respeita, tais como um léxico

característico daquela região e época, que atuam como limites para a

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interpretação. Um exemplo fornecido pelo tradutor, professor e poeta Paulo Britto

mostra como o tradutor literário enfrenta os limites que as condições de produção

de um texto impõem à sua tarefa.

Por e-mail (15/11/2006), Britto conta que, em 1984, traduziu Os

subterrâneos de Jack Kerouac para o português. A trama se passa nos anos 1950 e

contém muitas gírias associadas ao uso de drogas comuns entre negros e beatniks

nessa década nos Estados Unidos, mas que só com a contracultura dos anos 1960

vieram a se difundir no Brasil. Ao traduzir o romance, Britto optou por termos

usados no Brasil somente a partir do final dos anos 1960, substituindo joint por

“baseado” e high por “barato”, por exemplo. O poeta e tradutor estava consciente

do anacronismo, mas decidiu mantê-lo em vez de lançar mão de expressões que

soariam pouco naturais, tais como “cigarro de maconha” ou “um tremendo efeito

psicológico”. De fato, frases como “me dá esse cigarro de maconha” ou “estou

sentindo um tremendo efeito psicológico” seriam exemplos de falta de

naturalidade. Ou seja, diante das duas opções, ambas vistas como problemáticas

por Britto, ele optou pela “menos ruim” (os anacronismos, no caso). Britto conta

ainda que um resenhista criticou a tradução de maneira bastante dura exatamente

por causa dos anacronismos. Entretanto, diante do pedido do tradutor, em carta

enviada ao jornal, para que o resenhista fornecesse as (inexistentes) gírias de

drogas no Brasil dos anos 1950, o assunto se encerrou. A partir da perspectiva de

Eco, podemos dizer que o resenhista cobra de Paulo Britto o respeito ao sistema

lexical da época em que a obra foi escrita (um dos limites da interpretação) e o

“acusa” de traição. Britto, por sua vez, responde que ele, o tradutor, foi além dos

limites conscientemente, fazendo a escolha que considerou a melhor entre as

possíveis. Em outras palavras, o tradutor responde que há momentos em que os

limites são ultrapassados em nome, no caso, da fluência da tradução.

Também João Ubaldo Ribeiro (1990), o autor empírico, aponta para o

respeito ao sistema lexical como um fator limitador da interpretação. Ao discutir

seus problemas de tradução, ele afirma que “certos nomes científicos de árvores e

frutos jamais poderiam sair da boca de um escravo brasileiro do século XVIII” (p.

4). Ou seja, a partir da perspectiva de Eco, o mundo possível da obra – a

escravidão brasileira do século XVIII – e o sistema lexical de seu tempo

restringem as escolhas lexicais atribuídas ao autor-modelo e também as escolhas

do tradutor. Diante dos limites, o tradutor Paulo Britto optou pelo anacronismo e

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justifica sua escolha. Já João Ubaldo vai usar o caso relatado para afirmar sua

crença na impossibilidade da tradução. Voltarei às opções de João Ubaldo em

capítulo posterior. Por ora ressalto que Britto vê o limite, mas não se lamenta

diante dele porque considera sua escolha justificada.

Eco segue afirmando que o “repertório selecionado e restrito de

conhecimento” (1979b, p. 66) não é comum a todos os membros de uma cultura.

Haverá leitores que, possuidores de um vasto conhecimento cultural e

competência intertextual, estarão mais motivados a cooperar com um texto e

interpretá-lo com base nas pistas que ele oferece. Entretanto, há um autor

(empírico) que foi capaz, consciente ou inconscientemente, de selecionar

determinados esquemas retóricos e narrativos ou determinadas estratégias

textuais, impulsionado por um leitor-modelo, durante o processo de geração do

texto. Esse autor possui em seu repertório um arsenal de possibilidades que têm

por base sua própria competência enciclopédica construída, inclusive, a partir de

outras leituras. Se, como afirma Eco (p. 64), “nenhum texto é lido

independentemente da experiência que o leitor tem de outros textos”, considero

que nenhum texto é tampouco escrito sem levar em conta a experiência que o

autor empírico tem de outros textos. Tal experiência inclui as normas, os valores e

a poética a que todos os textos e autores estão sujeitos e que podem questionar

(Iser, 1978). Normas, valores, coerções e poética são discutidos por André

Lefevere em relação à tradução, mas também se aplicam ao fenômeno da escrita.

É minha crença que os escritores, estando sujeitos a normas, valores, coerções e

poética – que também estão entre as condições de produção de uma obra –, os

utilizam, consciente ou inconscientemente, de propósito ou ao acaso, durante o

processo de geração de seus textos. É impossível então considerar que um autor

empírico não esteja sujeito a esses fatores quando escreve e que eles não

influenciem o processo criativo. Na verdade, acredito que o autor empírico

responde a seu leitor-modelo, construído a partir da visão que aquele adquire

sobre este na sua relação com o mundo e com outras obras. Esse mesmo autor,

que novamente se apresenta quando traduz seu próprio texto, o relê, assumindo

agora o papel do leitor-modelo imaginado durante a geração da obra e, ao mesmo

tempo em que coopera com seu próprio texto, ele tem de imaginar outro leitor-

modelo – inserido em outro contexto – e recriar o autor-modelo inscrito no

original, que está sujeito a outras condições de produção que influenciam e

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limitam a tradução. Não quero afirmar com isso que o autor seja o melhor leitor-

modelo possível ou que um tradutor não possa exercer tal papel. Pelo contrário. O

papel de leitor-modelo poderá ser exercido por todo aquele que desejar (ou estiver

apto a) interpretar o texto, respeitando seus limites. Entretanto, diferentemente do

tradutor que não é o autor do texto que traduz, o autotradutor tem autoridade e

liberdade para ir além de limites sem ser tachado de traidor e deixará marcas

atribuídas ao autor-modelo original e permitidas somente a esse autor.

Mas as condições de produção de uma obra não são o único limite da

interpretação. Além deles, há a coerência interna de um texto, já que toda

interpretação deverá ser confirmada ou rejeitada pelas demais partes do mesmo

(Rabenhorst, 2002, p. 10). Finalmente, há o sentido literal das formas lexicais,

cuja aplicação precede “qualquer ato de liberdade por parte do leitor” (Eco, 2000,

p. xviii). Em Os limites da interpretação (2000), Eco reafirma sua crença na

existência de um “sentido literal das formas lexicais, que é o que vem arrolado em

primeiro lugar no dicionário, ou então aquele que todo cidadão comum elegeria

em primeiro lugar quando lhe fosse perguntado o que significa determinada

palavra” (p. xviii), especialmente se for fora de contexto. No mesmo volume, ao

reavaliar o sentido figurado da linguagem, em especial o sentido metafórico, Eco

continua a construção do conceito de literalidade. Ele afirma que “um intérprete

pode tomar a decisão de considerar metafórico qualquer enunciado, desde que sua

competência enciclopédica lho permita” (p. 123). Isto significa que a

interpretação depende da interação com a mensagem e essa interação depende,

por sua vez, da competência do leitor.

Ressalto assim que o sentido literal para Eco não está calcado em uma visão

de estabilidade do significado. Dizer que o sentido literal é o “mais comum” não

significa dizer que ele é estável, inerente à unidade lexical, mas sim que há um

contexto em que determinada forma é mais freqüentemente utilizada e, por isso,

um significado acaba por adquirir uma espécie de primazia sobre outros. Por

exemplo, a expressão home run imediatamente ativa a competência enciclopédica

do leitor-modelo de um texto, relacionando-a ao beisebol. Isso não quer dizer que

há um sentido atrelado à própria expressão, pois “o sentido arrolado em primeiro

lugar no dicionário ou aquele que o cidadão comum diz em primeiro lugar” não

antecede a interpretação. De fato, a questão que se coloca ao cidadão comum que

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coopera com um texto deve ser posterior à leitura. Sendo assim, ao cooperar com

um texto, qual é o sentido que o leitor constrói?

Finalmente, quero destacar que o tradutor encontra-se duplamente limitado,

por assim dizer. Ele lida com limites representados pelo autor-modelo do original

inscrito no texto e com aqueles representados pelas condições em que o leitor-

modelo da tradução está inserido. Assim, o tradutor profissional busca, em geral,

o equilíbrio para que o produto de seu trabalho seja um texto que promova a

comunicação com o leitor estrangeiro. O autotradutor, por sua vez, lida com os

mesmos limites, mas tem liberdade e autoridade, segundo a concepção mais

popular acerca da autotradução, para lidar com eles.

Teses recentes procuram demonstrar, através da análise do trabalho do

autotradutor, que a autotradução é tradução e não criação autoral no sentido

estrito, ao mesmo tempo em que buscam algo que distinga o trabalho do

autotradutor daquele do tradutor que não é o autor do texto que traduz. Ainda que

concluam que a autotradução é, de fato, tradução, e que o autor do texto atua

como tradutor quando traduz textos de sua autoria, uma idéia é subjacente a essas

teses: há algo de diferente no trabalho do autotradutor. Helena Tanqueiro e

Verena Jung explicitamente tomam o autotradutor como tradutor ideal, pois ele

tem acesso à “intenção original”, como afirma Tanqueiro (2002), ou à “memória

dessa intenção”, segundo Jung (2002). Porém, devemos considerar que são

freqüentes as declarações de autores que dizem não ter tido determinada intenção

atribuída a eles ou ainda que não se lembram das intenções que ocupavam seus

pensamentos no momento da geração do texto. Por isso, considero que a figura do

autor-modelo, aquele a quem essas intenções são atribuídas com base nas

escolhas registradas no texto, pode ser uma alternativa para a compreensão do

trabalho do autotradutor. Nas mesmas teses, há inúmeros exemplos tratados de

forma especial, por assim dizer. Tanqueiro (2002) menciona as modificações

motivadas pela liberdade do autor, Jung (2002) demonstra como aprendizes de

tradução não fazem determinadas alterações porque as consideram fora do escopo

do trabalho do tradutor e Filgueiras (2002) descreve a oportunidade de reescrever

uma obra que a autotradução dá ao autor. Mark Shuttleworth e Moira Cowie

afirmam que “o autor-tradutor se sentirá justificado ao introduzir mudanças no

texto traduzido [...] onde um tradutor ‘comum’ hesitaria em fazê-lo” (1997, p. 13).

O que os pesquisadores afirmam implicitamente é que na tradução da obra pelo

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próprio autor há traços da sua presença. Ou, em outras palavras, há, nas obras

traduzidas pelo autor, marcas da presença do autor-modelo original.

Outra característica que as teses de Tanqueiro (2002) e Jung (2002) têm em

comum é a crença na possibilidade de que o trabalho do autotradutor se torne um

modelo para o trabalho do tradutor, que deverá utilizar os mesmos procedimentos

adotados pelo primeiro em situações específicas. Não acredito, contudo, que o

trabalho do autotradutor possa ser considerado um modelo, por razões que

esclarecerei posteriormente. Acredito, sim, que o trabalho do autotradutor precise

ser investigado, já que o conhecimento desse processo pode fornecer novas

possibilidades de compreensão da tradução propriamente dita. Além disso,

conhecer a autotradução e percebê-la como atividade que tem características

especiais ajudará na construção de possíveis fronteiras entre as duas atividades.

Investigar o trabalho de João Ubaldo Ribeiro, portanto, ajudará na construção

desses limites. Minha hipótese é que, ao traduzir, João Ubaldo introduz

modificações em seu texto que serão atribuídas ao autor-modelo original, ainda

que esse não seja seu objetivo ou sua vontade, como ele mesmo afirma (e-mail,

18/07/2003). Se as traduções são, para Eco, “quando bem sucedidas, um exemplo

de cooperação interpretativa posta em público” (1979b, p. 163), a autotradução

mistura a visibilidade da interpretação ao ato de geração de um novo leitor-

modelo e, paralelamente, de um novo autor-modelo: o autor-modelo da

autotradução. Entretanto, na autotradução o autor-modelo se dividirá em dois

tipos de atuação. Por um lado, ele é reflexo do leitor-modelo impulsionador da

tradução e deixa marcas que podem ser atribuídas a qualquer tradutor. Por outro,

o autor empírico assume o papel de leitor-modelo, relê a obra e, durante o

processo de tradução, pode deixar marcas que serão atribuídas ao autor-modelo

original, dando continuidade ao processo de escrita criativa. É o que

verificaremos durante a análise do caso de João Ubaldo Ribeiro. Introduzo agora

dois esquemas. O primeiro ilustra a concepção de autor-modelo do original

(autor-modeloOr) e o segundo ilustra o autor-modelo da autotradução (autor-

modeloAT/Or):

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(i)

(ii)

normas

valores

coerções

poética

autor-modeloOr/leitor-modeloOr

autotradutor

autor-modeloAT/Or

+

leitor-modeloAT

poética

normas

coerções

valores

autor empírico

autor-modeloOr +

leitor-modeloOr

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47

2.3

Metodologia

Qualquer processo de autotradução será um fenômeno bastante singular e

complexo. Por isso, a investigação da atividade de autotradução de João Ubaldo

Ribeiro demanda a utilização de uma metodologia de pesquisa que permita a

aproximação do objeto pesquisado: o estudo de caso, que possibilita um estudo

detalhado de uma unidade particular e complexa. Como demonstrei na introdução

a esta tese, esse tipo de estudo tem sido freqüente nos estudos da tradução. Passo

agora a apresentar as características do estudo de caso do escritor brasileiro,

objeto de minha pesquisa.

O estudo de caso sobre João Ubaldo Ribeiro situa-se entre os limites de um

estudo de caso intrínseco e um estudo instrumental (Stake, 1995, p. 16-17), já que

analiso o processo de autotradução do escritor brasileiro para compreender uma

situação específica, sendo esse meu objetivo principal (daí o caráter intrínseco

deste estudo), mas pretendo também fornecer pistas para a compreensão do

fenômeno da autotradução e do estabelecimento de limites entre essa modalidade

de tradução e a tradução propriamente dita (daí o caráter instrumental do estudo).

É importante observar também que será investigado o contexto a que as traduções

de João Ubaldo se destinam, uma característica comum dos estudos de caso. As

autotraduções foram realizadas em momentos específicos da história da tradução

no Brasil e nos Estados Unidos e tal fato não pode ser descartado. Lambert e van

Gorp argumentam que “é absurdo desconsiderar o fato de que uma tradução ou

um tradutor mantém relações com outras traduções e outros tradutores” (1985, p.

51).

Outra característica do estudo de caso, segundo Lüdke e André (1986), é a

variedade de fontes de informação, pois ela permitirá, entre outros aspectos, “o

cruzamento de informações” (p. 19) provenientes de fontes distintas. Leo van

Lier, estudioso da aprendizagem de línguas em sala de aula, afirma que “muitos

pesquisadores defendem o uso da triangulação, ou seja, a utilização de dados e

métodos diferentes além de uma variedade de instrumentos de pesquisa” (1988, p.

13). Para Lier, a triangulação aumenta a confiabilidade dos resultados. Assim,

sendo meu objetivo apresentar resultados confiáveis acerca do processo

(auto)tradutório de João Ubaldo Ribeiro, utilizo uma variedade de fontes de

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informação, bem como diferentes instrumentos de pesquisa. Entre as fontes de

informação que utilizo estão: (i) o artigo “Suffering in translation”, de autoria de

João Ubaldo; (ii) entrevistas (publicadas ou não) e declarações diversas

concedidas pelo escritor; (iii) os textos – original e tradução – produzidos por ele;

(iv) resenhas escritas por críticos norte-americanos e publicadas nos Estados

Unidos; e (v) livros escritos por críticos brasileiros sobre a obra do autor. Além da

triangulação de informações, utilizo ainda instrumentos de pesquisa distintos: (i) a

comparação entre original e tradução, freqüentemente feita por estudiosos da

tradução; (ii) o modelo para análise de traduções de Lambert e van Gorp (1985); e

(iii) a entrevista por e-mail, instrumento até então pouco utilizado nas Ciências

Sociais (Mann & Stewart, 2000). As informações coletadas através da utilização

desses instrumentos serão analisadas qualitativamente.

É importante esclarecer que não pretendo que minhas conclusões acerca do

processo de construção do autor-modelo expliquem todos os outros processos

tidos, à primeira vista, como semelhantes. Não pretendo tampouco que minhas

conclusões acerca de João Ubaldo Ribeiro se apliquem a todos os outros

autotradutores da história, já que não acredito na possibilidade de generalizações

absolutas acerca do comportamento humano. No caso da autotradução, os

processos se revelam tão cheios de peculiaridades que dificilmente as conclusões

de um estudo se aplicariam, em toda a sua extensão, a outros. Evidentemente, as

semelhanças existem, mas não creio que elas sejam absolutas. A generalização a

que aspiro, como já afirmei anteriormente, é aquela denominada por David Tripp

(1985, p. 33-34) como “qualitativa”.

Em resumo, ao estudar o caso do escritor brasileiro pretendo contribuir para

a construção do conhecimento acerca da autotradução e de possíveis diferenças

entre a autotradução e a tradução propriamente dita. A metodologia adotada

proporcionará a exploração de características particulares e relevantes do caso de

João Ubaldo Ribeiro. A seleção de materiais provenientes de fontes distintas (a

obra, o escritor brasileiro e leitores profissionais) tem por objetivo assegurar a

triangulação dos dados (Lier, 1988). A palavra do autor é explicação de seus atos,

mas não deve ser considerada a única nem aquela que deve prevalecer sobre todas

as outras. Considerá-la dessa forma significa acreditar no autor como origem

única de explicações possíveis sobre sua obra, crença da qual não partilho. Suas

explicações serão contrastadas com suas escolhas e também com estudos de

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autoria de especialistas em sua obra para que uma interpretação mais elaborada e

cuidadosa do trabalho do autotradutor João Ubaldo Ribeiro seja alcançada. Não

pretendo com isso afirmar que meu papel é o de uma pesquisadora neutra,

transportadora de significados advindos de outras fontes. Uma pesquisa de base

interpretativista (Moita Lopes, 1994), como esta que realizo, é calcada na

concepção de que o significado é construção do sujeito que o interpreta e, por

isso, uma pesquisa jamais revelará significados construídos de forma imparcial ou

neutra, já que o pesquisador também interpreta. Contudo, isso não quer dizer que

qualquer interpretação será permitida, e a triangulação de dados tem por

finalidade aumentar a confiabilidade de minhas interpretações.

A utilização de instrumentos de pesquisa distintos também contribui para a

maior confiabilidade dos dados, como afirmei anteriormente. A micro-análise do

original e do texto traduzido, que envolve a comparação entre eles, é comum entre

os estudos da tradução e é fundamental para a compreensão do processo

tradutório. Por sua vez, os dados obtidos através dessa micro-análise se

complementam com a análise de paratextos. A entrevista por e-mail pode se

transformar em metatexto importante, pois permite um contato direto com o

sujeito da pesquisa. Entretanto, ela é um instrumento ainda pouco utilizado e, por

isso, carente de análise de sua validade. Passo agora a uma discussão acerca do

modelo investigativo proposto por Lambert e van Gorp para em seguida descrever

brevemente as características da entrevista por e-mail e algumas das vantagens e

desvantagens de sua utilização que se sobressaem no caso da entrevista com João

Ubaldo Ribeiro.

2.3.1

O modelo de Lambert e van Gorp (1985)

Apresento agora o esquema para descrição de traduções proposto por José

Lambert e Hendrik van Gorp (1985), que julgo apropriado para o estudo de caso

sobre João Ubaldo Ribeiro, já que possibilita o exame de fatores que influenciam

todo o processo tradutório. Considero, porém, que antes da apresentação do

esquema em si, será necessário discutir, ainda que brevemente, as teorias e os

estudos em que Lambert e van Gorp se apóiam para a elaboração de seu modelo

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50

heurístico de análise. São eles: (i) a teoria dos polissistemas (Even-Zohar, 1990) e

(ii) os DTS (Lefevere, 1990 e Toury, 1995)12.

Foi Itamar Even-Zohar quem desenvolveu a teoria dos polissistemas, com

base na noção de sistema dos formalistas russos. O estudioso da Universidade de

Tel-Aviv considera que um contexto sociocultural é composto por sistemas

distintos que se relacionam de forma dinâmica entre si na disputa por um lugar

hegemônico (Gentzler, 2001, p. 114). Entre esses sistemas está o literário, que,

por sua vez, contém sub-sistemas – de literaturas infantil, homoerótica, traduzida,

entre outros – que também se comportam dinamicamente, fato que favorece sua

evolução ao mesmo tempo em que impede sua estagnação. A literatura traduzida,

objeto de interesse de Even-Zohar, é vista como integrante de um sistema

literário, podendo ocupar nele uma posição central (no caso de um vácuo na

literatura local, por exemplo) ou periférica (no caso de sistemas literários bem

consolidados como o francês e o norte-americano) (Even-Zohar, 1990, p. 47).

Ressalto a dinamicidade e o permanente estado de tensão entre os elementos

de um sistema, característicos da teoria de Even-Zohar (1990), como

contribuições importantes para o estudo da literatura em geral e da literatura

traduzida em particular. Estudos que se apóiam na teoria dos polissistemas, como

o de Ofir Bergemann de Aguiar, que demonstra como os folhetins importados

foram “relevantes para a introdução da forma da prosa na literatura brasileira do

século passado” (1999, p. 150), vêm mostrar, por exemplo, que a literatura

traduzida nem sempre tem um papel secundário na história da literatura.

É importante apontar ainda algumas críticas feitas à teoria dos polissistemas.

Entre elas, está a crítica à visão binária que prevalece na teorização de Even-

Zohar. É ingênuo acreditar que um polissistema esteja dividido entre centro e

periferia, cânone e margem, já que, como afirma Martins (2002, p. 43), “hoje, de

um modo geral, teorias da diferença, que privilegiam um dos elementos da

oposição, dão lugar a teorias da complexidade, em que o modelo alternativo do

‘ou/ou’ se vê substituído pela fórmula do ‘e+e+e’”. De fato, a delimitação de

fronteiras entre o canônico e o não-canônico é mais difícil hoje em dia. O exemplo

de Paulo Coelho ilustra a questão, pois apesar de eleito para a Academia

12 Revisões detalhadas sobre a teoria dos polissistemas e os DTS podem ser encontradas em Vieira (1996), Martins (1999; 2002) e Carvalho (2005).

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51

Brasileira de Letras, com versões de suas obras para uma infinidade de idiomas, o

autor é rejeitado no meio acadêmico e, muitas vezes, no meio literário.

Sem formar um grupo único e espalhados por diversas partes do mundo, os

estudiosos descritivistas, que têm no sub-sistema de literatura traduzida seu foco

de análise, compartilham de vários pressupostos teóricos. Entre eles, está a

abordagem da tradução literária voltada para o texto-alvo, que faz com que os

descritivistas não tenham como preocupação central a verificação do grau de

equivalência entre original e tradução, mas sim a investigação das normas (Toury,

1995) que governam o processo tradutório, percebido para além dos limites dos

textos – original e tradução. As normas são, de acordo com Toury, “a tradução de

valores gerais e idéias compartilhadas por uma dada comunidade com relação ao

que é certo e errado, adequado e inadequado, em instruções de desempenho

aplicáveis a situações específicas, desde que não sejam (ainda) formuladas como

leis” (p. 39) e podem ser hipoteticamente reconstituídas através da análise do texto

traduzido e através dos “paratextos (prefácios e notas que acompanham uma

tradução) e metatextos (comentários, resenhas e críticas publicadas em revistas,

jornais, livros e obras de referência em geral)” (Martins, 2002, p. 59). Por

inserirem-se em um contexto sociocultural, as traduções estariam ainda sujeitas a

coerções que não se limitam aos sistemas lingüísticos em questão e incluem as

dimensões da política e do poder (Lefevere, 1992). Ou seja, há limites que

circundam, explícita ou implicitamente, o processo tradutório, já que a própria

seleção dos textos a serem traduzidos, por exemplo, não se dá em um vácuo

histórico e social, nem é um processo apolítico ou no qual não se verificam

relações de poder. Tampouco a tradução propriamente dita é um processo que não

sofre influências, e as estratégias utilizadas, consciente ou inconscientemente,

pelo tradutor dependem dos sistemas em que autor, original, tradutor, tradução e

leitores estão inseridos e das relações que mantêm entre si.

A meu ver, uma contribuição importante dos estudos descritivos vem a ser

exatamente a visão sobre tradução, que a coloca sob uma nova perspectiva muito

mais abrangente. O processo tradutório não se inicia quando o tradutor começa a

produzir a tradução e tampouco termina quando o tradutor escreve a última linha

de seu trabalho; na verdade esse processo tem início quando um texto é

selecionado para publicação em um país estrangeiro e se estende até o momento

em que a obra é revisitada por leitores – profissionais ou não – e seu impacto é

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verificado no sistema-alvo. Outro ponto interessante é a preocupação com a

descrição do processo tradutório, para melhor entendê-lo e explicá-lo, e não com a

prescrição de normas para a tradução em geral. Outra contribuição importante é a

abordagem da tradução literária como um fato da cultura-alvo. Para os

descritivistas, o status de tradução, atribuído a um dado texto por leitores

profissionais do sistema literário alvo, o tornará um objeto de estudo de interesse

para os pesquisadores da área. Textos autotraduzidos vistos como representantes

de um original em uma dada cultura-alvo são, portanto, possíveis objetos de

análise dentro dos DTS, e a obra autotraduzida de João Ubaldo Ribeiro, foco desta

tese, não poderia ser analisada de outro ponto de vista. Contudo, é importante

destacar que o status atribuído inicialmente a tais textos poderá ser questionado.

É importante observar que o fato de os estudiosos descritivistas estarem

preocupados com a descrição de um processo de tradução não implica uma atitude

acrítica. Martins aponta que essa atitude pode ter sua origem na reação inicial dos

estudiosos a abordagens prescritivistas que dominavam o cenário da pesquisa até

então (2002, p. 43). Entretanto, a pesquisadora ressalta que “não há, na

bibliografia básica da disciplina, estudos que endossem ou encorajem uma

observação acrítica” (p. 44). A meu ver, a própria seleção de um determinado

autor ou texto já demonstra algum posicionamento do estudioso.

O esquema proposto por Lambert e van Gorp (1985) tem por objetivo

auxiliar o exame das relações entre sistemas literários das culturas fonte e alvo (p.

44) e entre os elementos desses sistemas, tais como autores, tradutores, originais,

traduções e leitores. Assim, ele é um esquema extremamente relevante para

aqueles que adotam uma abordagem descritivista no estudo do texto traduzido. A

proposta de Lambert e van Gorp compreende quatro etapas: 1) os dados

preliminares; 2) o nível macro-estrutural; 3) o nível micro-estrutural, e 4) o

contexto sistêmico.

A primeira etapa consiste no estudo de aspectos extra-textuais que permitem

que o leitor construa uma idéia geral a respeito da obra. Nessa fase, o pesquisador

verifica, por exemplo, se o texto é apresentado como uma tradução, se o nome do

tradutor é mencionado, se o editor inclui metatextos e examina aspectos tais como

a editora, data de impressão, título, capa, paratextos e a estratégia geral de

tradução. As descobertas feitas durante essa etapa propiciarão a construção de

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hipóteses acerca da estratégia geral de tradução que serão confirmadas (ou não)

nos níveis macro e micro-estrutural.

No segundo estágio, baseado nas hipóteses levantadas no nível anterior, o

pesquisador verifica se o tradutor acrescenta ou omite palavras, frases, parágrafos

ou capítulos e avalia as conseqüências desses acréscimos ou omissões.

Comparam-se aspectos da estrutura do texto-fonte e do texto-meta que incluem a

divisão de capítulos em parágrafos e destes em frases, títulos de capítulos e a

numeração destes, além de características dos diálogos e da narrativa para que as

hipóteses anteriores possam ser confirmadas ou reconstruídas. Nessa fase, a

ênfase é na estrutura principal do romance, e as descobertas de tal análise

fornecerão pistas para o estudo no nível micro-estrutural.

No terceiro estágio do esquema de Lambert e van Gorp (1985), o

pesquisador verifica se o tradutor sempre segue as normas reconstruídas nas

etapas anteriores ou se há exceções. A comparação entre a tradução e o original é

aprofundada através da análise de trechos selecionados anteriormente, e tem por

base as hipóteses levantadas durante a análise macro-estrutural.

No quarto estágio do modelo, o pesquisador analisará metatextos para

compreender a posição da tradução no contexto sociocultural estrangeiro. São

considerados comentários, resenhas e críticas publicados em revistas, jornais,

livros e obras de referência em geral. Outros aspectos importantes são o número

de edições, re-impressões, novas traduções ou mesmo eventuais obras publicadas

sobre o autor.

O esquema proposto por Lambert e van Gorp (1985) é importante para a

construção de um quadro geral do tema de interesse de um pesquisador. Como

mencionei na introdução a esta tese, utilizei o esquema para desenvolver uma

monografia e assim pude construir um rico panorama sobre João Ubaldo Ribeiro e

suas autotraduções. Pude também verificar aquela que considero uma

desvantagem do modelo: a quantidade de dados coletados pode crescer de forma

infinita. O advento da internet como fonte de informações contribui de forma

decisiva para esse crescimento e, conseqüentemente demanda do pesquisador a

habilidade de selecionar fontes confiáveis. Por outro lado, uma utilização eficiente

do esquema propicia resultados extremamente ricos. De fato, minha pesquisa

sobre a obra autotraduzida de João Ubaldo Ribeiro contou com a internet como

importante fonte de informações acerca do autor.

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Finalmente, é importante destacar ainda que Lambert e van Gorp (1985)

sugerem que se estabeleçam prioridades na análise de traduções (p. 47), ou seja, o

estudioso deverá priorizar a(s) etapa(s) do esquema que melhor atendam a seu

interesse de pesquisa. De fato, nesta tese, meu foco de interesse é o nível micro-

estrutural, com o objetivo de verificar se o exercício do papel de leitor-modelo do

texto original produz alterações que serão atribuídas e permitidas ao autor-

modelo. Essa ênfase, contudo, não descarta a análise de paratextos, metatextos e

do nível macro-estrutural, para que o lugar sistêmico de João Ubaldo Ribeiro e

sua obra no polissistema literário norte-americano possa ser discutida.

2.3.2

A entrevista por e-mail

A entrevista por e-mail nasce das entrevistas tradicionalmente conhecidas

como face-a-face, um dos instrumentos mais utilizados em pesquisas de base

qualitativa (Mann & Stewart, 2000, p. 64). Entre as características mais gerais

destas estão a presença dos participantes (entrevistador e entrevistado) em hora e

local previamente determinados, as tarefas do entrevistador (o primeiro contato

com o entrevistado, o acordo sobre local e horários, a elaboração prévia de

questões ou temas a serem debatidos) e a tarefa do entrevistado, que consiste,

basicamente, na resposta às perguntas do entrevistador (Gubrium & Holstein,

2001, p. 3). Lüdke e André (1986) apontam o caráter interativo da entrevista face-

a-face, a possibilidade de “captação imediata e corrente da informação desejada”,

o “aprofundamento de pontos levantados por outras técnicas” (p. 34) e a

possibilidade de “correções, esclarecimentos” (p. 34), que tornam a técnica

extremamente eficaz para a obtenção da informação de que o pesquisador

necessita. Acrescentam ainda que, dependendo do tipo de entrevista – estruturada,

semi-estruturada ou não-estruturada (p. 33-38) –, o entrevistador terá maior ou

menor responsabilidade pela elaboração das questões.

Uma entrevista estruturada demandará a elaboração prévia de todas as

perguntas e envolverá uma maior responsabilidade do entrevistador sobre elas, já

que a formulação de questões pouco objetivas poderá, por exemplo, levar a uma

coleta de dados pouco elucidativos. Esse tipo de entrevista assemelha-se a um

questionário e não dá ao entrevistador “liberdade de percurso” (p. 34). Uma

entrevista semi-estruturada divide a condução da entrevista entre os dois

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participantes, e o entrevistador faz as adaptações necessárias para a obtenção da

informação de que necessita, já que algumas questões são formuladas previamente

enquanto outras serão suscitadas pela própria entrevista. Finalmente, uma

entrevista não-estruturada dá a ambos, entrevistador e entrevistado, liberdade de

percurso, assemelhando-se a uma conversa mais formal em alguns casos. Esses

três tipos de entrevista têm, contudo, uma característica que lhes é comum: seu

caráter assimétrico (Gubrium e Holstein, 2001, p. 3). Em geral, é o entrevistador,

conhecedor dos objetivos da entrevista e do tema a ser abordado, que se encontra

em posição de supremacia sobre o entrevistado, que, via de regra, tem apenas uma

idéia geral acerca dos objetivos da entrevista e do tema proposto. Creio,

entretanto, que o grau de assimetria pode ser menor se a entrevista for do tipo não-

estruturada ou ainda se o relacionamento entre entrevistador e entrevistado for

mais próximo. Vejamos agora como essas características se aplicam à entrevista

por e-mail.

Essa técnica vem sendo utilizada por pesquisadores de várias áreas do

conhecimento (Mann & Stewart, 2000, p. 76). Em geral, uma lista de perguntas é

enviada por e-mail ao possível entrevistado, que, depois de respondê-las, as envia

de volta ao entrevistador. Ela é semelhante à entrevista face-a-face em alguns

aspectos: depende da participação de entrevistador e entrevistado, e ao

entrevistador cabem as tarefas de contatar os possíveis participantes e de elaborar

questões; pode proporcionar a coleta imediata de dados e a retificação ou

ratificação de informações obtidas através da implementação de outras técnicas. O

envio de uma lista de perguntas torna a entrevista por e-mail mais semelhante a

uma entrevista estruturada, na qual as questões são pré-estabelecidas pelo

entrevistador e não há “liberdade de percurso”. Por outro lado, há também

diferenças entre a entrevista face-a-face e a entrevista por e-mail que causam certa

divergência sobre a eficácia da segunda. Os problemas mais freqüentemente

apontados pelos críticos incluem a falta de envolvimento, o formato muito rígido

marcado fundamentalmente por perguntas e respostas, a falta de interatividade e a

possibilidade de que as perguntas sejam simplesmente ignoradas por possíveis

entrevistados. Vejamos cada um desses problemas isoladamente.

Uma das principais críticas é a falta de envolvimento na entrevista por e-

mail. Pesquisadores (Hewson et al., 1996; Kiesler et al., 1984; Short et al., 1976)

relatam que esse tipo de entrevista, assim como a comunicação mediada por

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computador (CMC) de maneira geral, é impessoal e distante, fato que contribui

para que os dados sejam menos ricos do que aqueles coletados através da

entrevista em que ambos, entrevistador e entrevistado, estão fisicamente

presentes. No contato da entrevista face-a-face o entrevistador tenta “quebrar o

gelo” e aproximar-se de seu entrevistado, avalia a interpretação que este faz de

suas perguntas e, quando necessário, a corrige imediatamente. Em muitos casos, o

entrevistador avalia também o grau de sinceridade da resposta. Já a distância do e-

mail pode fazer com que a relação entrevistador-entrevistado seja tão impessoal

que, para Mann & Stewart (2000, p. 147-152), a utilização da entrevista por e-

mail como instrumento de pesquisa pode ser até mesmo invalidada.

Outro problema é a possibilidade de que o entrevistado não responda às

questões ou nem mesmo à solicitação de entrevista, ocorrência real e constante na

correspondência eletrônica. Fulk et al. argumentam que os sujeitos de uma

pesquisa podem simplesmente não gostar da “conversa eletrônica” ou podem

ainda recear que a “criação de um texto escrito permanente os exponha à crítica

ou talvez ao ridículo” (1992, p. 17). Outros podem ainda achar que a entrevista

por e-mail demanda um tempo de que não dispõem.

Debatidos os problemas, passo agora a analisar as vantagens da entrevista

por e-mail, uma das quais é a distância física entre os participantes, característica

da CMC. Em primeiro lugar, a distância pode fazer com que os participantes de

uma entrevista por e-mail sintam-se mais à vontade para expressar algumas

opiniões (Wallace, 1999, p. 125). Outra grande vantagem, especialmente no caso

de entrevistados com menor disponibilidade de tempo ou que residem em outros

países, é o fato de que esse tipo de entrevista é mais prático, pois entrevistado e

entrevistador não precisam, por exemplo, marcar dia e hora para possíveis

encontros graças à facilidade da assincronia, característica da comunicação

eletrônica (Paiva, 2004, p. 73).

Alguns pesquisadores do tema (Walther, 1992; Walther et al., 1994)

sugerem estratégias para que os problemas apontados acima sejam contornados ou

minimizados. Entre elas, está a duração (prolongada) de uma entrevista por e-

mail, que pode ter início com o envio de uma lista de perguntas a um grupo de

possíveis entrevistados e depois se transformar em um contato mais próximo com

o envio de e-mails àqueles que responderam às questões iniciais. Estendendo-se a

entrevista por um período de tempo mais longo, meses e até mesmo anos, a

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confiança e o envolvimento entre entrevistador e entrevistado tendem a aumentar.

Além do tempo de duração, a habilidade do entrevistador é também um fator

fundamental para o sucesso da entrevista por e-mail. Estudiosos sugerem que o

entrevistador explique claramente quais são os objetivos de sua pesquisa e assim

aumente a possibilidade de construção da confiança entre entrevistador e

entrevistado (Mann & Stewart, 2000, p. 136). Além disso, o entrevistador deve ser

hábil na condução de assuntos delicados, usando uma linguagem clara, explícita e

polida, já que a comunicação eletrônica não fornece informações visuais acerca

das reações dos participantes (p. 142).

Passo agora a discutir a aplicação das características apresentadas nesta

seção ao caso da entrevista com o escritor João Ubaldo Ribeiro.

2.3.2.1

A entrevista por e-mail com João Ubaldo Ribeiro

Meu primeiro contato com João Ubaldo Ribeiro aconteceu no primeiro

semestre de 2003 através de uma conversa telefônica, quando pedi a ele que me

concedesse uma entrevista face-a-face. O escritor, de imediato, respondeu

afirmativamente ao meu pedido, mas não foi possível acertarmos uma data e um

local naquele momento por causa de seus inúmeros compromissos profissionais.

Outros contatos telefônicos ocorreram sem que a entrevista face-a-face pudesse

ser marcada, mas, durante o processo de negociação, João Ubaldo me forneceu

seu endereço eletrônico, e resolvi enviar a ele um pedido de entrevista por e-mail,

mais uma vez prontamente atendido. Concordamos então que eu enviaria um e-

mail por semana; o escritor pediu que as perguntas não exigissem respostas

“compridas demais” e prometeu responder a meus e-mails (e-mail, 15/07/2003).

De fato, João Ubaldo respondeu generosamente a todos os e-mails que envio

desde 2003. Minha entrevista, portanto, não segue os padrões do formato de uma

entrevista por e-mail ou, pelo menos, não teve início da mesma forma, já que

nunca enviei uma lista de perguntas ao autor. Assim, ao utilizar o termo

“entrevista por e-mail”, me refiro aos muitos e-mails trocados com João Ubaldo

Ribeiro sobre o mesmo tema: a autotradução. Acredito que esse processo tem

características da entrevista por e-mail mais comum, conforme discutirei em

seguida.

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Em primeiro lugar, minha entrevista dependia fundamentalmente da minha

participação (a entrevistadora) e da participação de João Ubaldo (o entrevistado).

A mim caberia a elaboração das questões, mas elas não foram preparadas

antecipadamente. Enviei as perguntas na mesma medida em que minhas dúvidas

surgiam durante meu processo investigativo, o que revela uma grande vantagem

do tipo de entrevista que utilizei: uma lista de perguntas elaboradas antes de

minha análise dos dados poderia deixar de fora questões importantes. Além disso,

novas visões surgiram a partir da descoberta recente de outros estudos, e uma lista

de perguntas não teria permitido o esclarecimento de algumas informações. A

participação de João Ubaldo consistia nas respostas e, como mencionei acima, o

escritor cumpriu sua promessa e foi um entrevistado extremamente solícito,

respondendo sem demora às minhas perguntas. Assim, posso afirmar que a

entrevista que conduzi proporcionou a coleta imediata de dados.

Meu relato inicial também demonstra aquela que é, a meu ver, uma das

principais vantagens da entrevista por e-mail: a assincronia (Paiva, 2004, p. 73). O

fato de que os participantes da entrevista não precisam estar presentes na mesma

hora e local facilitou de forma decisiva nossa interação. Os compromissos

profissionais do escritor e o processo de escrita de um novo romance tornaram a

entrevista face-a-face um evento de realização impossível.

Minha entrevista também apresenta dificuldades, mas que foram

minimizadas, enfatizo mais uma vez, pela disponibilidade demonstrada pelo

escritor. Entre os problemas da comunicação mediada por computador (Hewson et

al., 1996; Kiesler et al., 1984; Short et al., 1976) estão a impessoalidade e a

distância. No caso da entrevista com João Ubaldo, ou com qualquer outro

profissional tão popular e respeitado como ele, esses fatores não chegam a

constituir um problema. Na verdade, o computador contribui para que esses

problemas sejam minimizados. Acredito que minha presença física entrevistando

um escritor famoso sobre um assunto que ele prefere não discutir tornaria,

provavelmente, o encontro face-a-face ainda mais impessoal e distante. Com

efeito, a possibilidade de entrevistá-lo por e-mail permite que eu faça perguntas e

expresse opiniões que, provavelmente, não faria ou expressaria se estivéssemos

frente a frente (Wallace, 1999, p. 25).

O tempo de duração da entrevista não contribuiu para a construção de um

maior envolvimento entre entrevistador e entrevistado, que faria com que, por

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exemplo, discussões mais profundas sobre um tema pudessem acontecer. A falta

de maior envolvimento, no caso da entrevista que conduzi, contribuiu para que

João Ubaldo, de maneira polida, se recusasse a responder determinadas questões

ou a aprofundar temas levantados por suas respostas (e-mail, 18/11/2003;

03/12/2003; 16/02/2004). Por outro lado, o fato de que a entrevista alcançou um

tempo de duração que considero bastante longo contribuiu para que João Ubaldo

me incluísse em seu caderno de endereços. Durante a entrevista, recebi e-mails do

escritor avisando, por exemplo, que estaria viajando e não poderia responder

perguntas durante certo período de tempo. Tais e-mails, contudo, não demonstram

envolvimento, mas sim a polidez do escritor e seu compromisso de respeito e

generosidade para com o público-leitor (profissional) do qual faço parte.

Outro problema da entrevista por e-mail é seu formato rígido, marcado por

perguntas e respostas, que dificulta e por vezes impede a retificação de

informações, por exemplo. De fato, apesar de não ter apresentado uma lista de

perguntas, minha comunicação com João Ubaldo se resume a questões que são

regularmente respondidas por ele em e-mails que contêm, geralmente, a resposta

que procuro. Entretanto, o tipo de entrevista que conduzi com o escritor

possibilitou a ocorrência de retificações. Em algumas ocasiões, quebrei o

compromisso de enviar um e-mail por semana e, ao receber uma mensagem sobre

a qual eu precisava de algum tipo de complementação, enviava outra

imediatamente a João Ubaldo, que respondia sempre, embora eu estivesse

“descumprindo” nosso acordo inicial. Em outras ocasiões tentei “quebrar o gelo”

e fiz observações a respeito de fatos da vida do escritor que aparecem publicados

em vários jornais e revistas cariocas. De forma geral, ele respondeu sempre

polidamente, mas demonstrou também que nosso contato deveria manter-se

dentro dos padrões que havíamos concordado anteriormente: minhas perguntas

seriam sobre a autotradução de seus romances. Sendo meu interesse principal seu

trabalho como autotradutor, o cumprimento de nosso acordo favoreceu minha

coleta de dados.

É interessante observar também o receio da criação de um texto permanente,

da exposição à crítica ou ao ridículo (Fulk et al., 1992, p. 17), considerado um dos

motivos pelos quais entrevistados deixam de responder às listas de perguntas.

Percebi que o autor demonstrou preocupação com o tema quando perguntei a ele

se eu poderia utilizar suas respostas em minhas apresentações em congressos, pois

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João Ubaldo permitiu a utilização desde que suas respostas não contivessem erros

(e-mail, 08/10/2003). Isso indica que o escritor tem consciência do caráter de

permanência dos e-mails, situados entre a comunicação oral e a comunicação

escrita, e de que seus textos são, na verdade, públicos ainda que tenham sido

enviados a uma pessoa em particular. Sendo públicos, os textos devem ser

corretos, na opinião do autor. Voltarei à questão da correção durante minha

discussão acerca do papel do leitor-modelo estrangeiro.

É importante destacar que João Ubaldo, muitas vezes, contraria sua própria

orientação e escreve e-mails bastante longos para responder a algumas de minhas

perguntas. Contraria também aquela que é descrita como uma característica da

comunicação via e-mail, constantemente apontada em manuais de estilo: os

usuários devem ser breves (Crystal, 2001, p. 57). Felizmente, ao contrariar sua

própria orientação, João Ubaldo está contribuindo para o enriquecimento dos

dados que informam a minha pesquisa.

Finalmente, enfatizo mais uma vez que a entrevista por e-mail que realizei

fugiu aos padrões de utilização do instrumento, mas esse fato trouxe vantagens

para meu trabalho. Além disso, acredito que a internet e a revolução operada com

a sua introdução devem fazer da entrevista por e-mail uma possibilidade mais

freqüente em um futuro próximo e também introduzir outras modificações

decorrentes de características específicas de cada situação.

2.4

Considerações finais

Neste capítulo procurei discutir os conceitos, os instrumentos e a

metodologia que utilizo, suas vantagens e desvantagens. Considero que a

metodologia precisa ser detalhada para que o leitor possa olhar a discussão a partir

de perspectiva semelhante àquela do pesquisador e chegar às suas próprias

conclusões.

Como verifiquei, o contraste entre dados provenientes de fontes variadas

deverá possibilitar uma discussão rica acerca da autotradução. A entrevista por e-

mail também se revela um instrumento bastante eficaz e suas limitações devem

ser reconhecidas e superadas, como desejei fazer.

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Terminadas, por ora, as considerações teóricas e metodológicas pertinentes,

passo a discutir a autotradução.

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3

Autotradução

É o autor mesmo, ele faz o que quiser13.

3.1

Introdução

Neste capítulo, tenho como objetivo principal definir a autotradução, já que

tal definição será o ponto de partida para uma melhor compreensão dessa

modalidade de tradução. Inicio traçando um breve histórico dessa prática para, em

seguida, apresentar um histórico das pesquisas sobre o tema que vêm sendo

desenvolvidas desde 1961, quando o artigo “Samuel Beckett self-translator”,

escrito por Ruby Cohn, foi publicado. Finalmente, farei uma apresentação crítica

das teses de Helena Tanqueiro (2002), Verena Jung (2002) e Lillian DePaula

Filgueiras (2002) e do trabalho de autotradutores, em especial os de Vladimir

Nabokov, Samuel Beckett e Milan Kundera, bem como o de autotradutores

catalães e escoceses.

3.2

Autotradução: conceituação

As definições de autotradução que introduzo agora são encontradas em duas

obras de referência sobre a tradução. A primeira é a Routledge encyclopedia of

translation studies (1998), organizada por Mona Baker e a segunda é o Dictionary

of translation studies (1997), organizado por Mark Shuttleworth e Moira Cowie.

Minha discussão parte das definições aí apresentadas, pois as duas obras dispõem

de muita autoridade no campo dos estudos da tradução e tendem a servir de

referência, ao menos inicialmente, para discussões acerca dos muitos temas que

apresentam. Assim, a autotradução será freqüentemente discutida em artigos e

13 Comentário proferido por uma tradutora experiente durante seminário por mim apresentado como parte dos requisitos necessários para a aprovação na disciplina LET 2379 – Tópicos em Estudos da Tradução (Relações entre tradução, cultura e literatura a partir de estudos de caso), ministrada pela professora Márcia Martins, no progama de Pós-Graduação em Letras, área de Estudos da Linguagem, da PUC-Rio.

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teses sobre o assunto com base nas definições obtidas nessas fontes de pesquisa

autorizadas.

Rainier Grutman, autor do verbete sobre a modalidade na enciclopédia

organizada por Baker (1998, p. 16), define-a, a princípio, como a atividade de

tradução do original pelo próprio autor ou o resultado de tal tarefa. É uma

definição bastante prática que não problematiza o processo, mas descreve-o de

forma bastante simplista.

No dicionário organizado por Cowie e Shuttleworth (1997, p. 13), o verbete

sobre a autotradução se baseia nas definições de Anton Popovič e Werner Koller.

Popovič declara que o produto da autotradução não deve ser considerado outro

original, mas “uma tradução verdadeira”, revelando, de forma implícita, o status

superior de uma tradução produzida pelo próprio autor de um texto.

Significativamente, Popovič usa a expressão “tradução autorizada” em vez de

“autotradução” para se referir ao produto desse tipo de trabalho, revelando assim

outra característica importante: o autor como autoridade absoluta e singular. Entre

os motivos que o levam a afirmar que o produto da autotradução é uma tradução

verdadeira pode estar a visão do autotradutor como o profissional que conhece seu

texto de uma forma que é inacessível a qualquer outro tradutor.

Na mesma linha, Koller afirma que a fidelidade assume características

distintas, pois sendo o autor também tradutor de seu texto, em princípio, ele não

poderia, por exemplo, ser acusado de infidelidade. Para ele, assim como para

Popovič e Grutman (Baker, 1998), a autoridade do escritor sobre o texto original e

sobre o texto traduzido é inquestionável. Grutman acrescenta que as traduções

feitas pelo autor do texto original “estão investidas de uma autoridade que nem

mesmo traduções ‘aprovadas’ podem alcançar” (p. 19). Percebo, assim, que

autotradução e tradução são apresentadas, implicitamente e de forma geral, como

práticas distintas.

Uma outra acepção de autotradução é apresentada por Gideon Toury (1995).

Ao discutir o bilingüismo, o estudioso define a atividade como aquela em que o

indivíduo bilíngüe traduz o que acabou de dizer para si mesmo ou para outros

indivíduos (p. 244). Em outro momento, Toury usa o mesmo termo para discutir o

trabalho de Samuel Beckett e pergunta qual deve ser considerado o texto original

produzido pelo escritor: aquele que é freqüentemente chamado de “original”

(porque foi o primeiro a ser produzido) ou a “tradução” (p. 75)? Sendo Beckett

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um escritor tido como central nos dois polissistemas literários, o inglês e o

francês, ficará difícil responder à questão proposta pelos estudiosos descritivistas

e que define a obra traduzida: em qual dos dois sistemas seu texto é tratado como

tradução? Ou será seu texto em algum momento tratado como tradução na

Inglaterra ou na França? Se é tratado como tradução em um dos países, o que o

define como tal? No livro intitulado Beckett and Babel: an investigation into the

status of the bilingual work, Brian T. Fitch, estudioso das autotraduções de

Samuel Beckett, afirma que

ao comentar os originais em inglês ou francês, o crítico freqüentemente não sentirá necessidade de apontar para o fato de que um determinado texto foi precedido por outro na outra língua e, menos ainda, de considerar a diferença de status na maneira de abordar o texto. O resultado é que todos os textos de Beckett, sem exceção, são considerados originais em ambas as línguas. (1988, p. 12)

No entanto, ele logo salienta que considera a atitude dos críticos equivocada, e

que os textos – original e tradução – precisam ser analisados comparativamente.

Acrescenta também que a atitude dos críticos provavelmente origina-se no fato de

que é o próprio autor quem traduz as obras.

Concluindo, observo que se para alguns estudiosos a precedência no tempo

define o original, para outros esse não é critério suficiente para defini-lo. Se a

autotradução é concebida como uma atividade que começa a partir do momento

em que o autor traduz seu mundo para as páginas de um romance, todos os

escritores seriam, essencialmente, autotradutores. E o primeiro produto, assim

como os outros – as traduções propriamente ditas – que porventura fossem

produzidos posteriormente, seriam etapas de um processo de representação ou de

construção da realidade, rascunhos em busca, talvez, de uma obra final, pronta,

acabada. Tal postura pode significar um certo apagamento da diferença entre os

dois (ou três) processos: de escrever e de (auto)traduzir.

Outra possibilidade inclui a categorização do primeiro texto como o

“original”, já que foi o primeiro e fonte para traduções para outras línguas de

modo que uma cultura possa dialogar com outra(s). Algumas mudanças nos textos

traduzidos são inevitáveis, já que o autotradutor, ao produzir a tradução, age

impulsionado por outro leitor-modelo, diferente daquele que impulsionou a escrita

original. A autotradução, portanto, não acontece em um vácuo social onde o

autotradutor se isola durante o processo tradutório. Ela é, isto sim, sempre um

movimento em direção ao outro (Laplanche apud Scheiner, 2002a). Durante o

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processo de autotradução, o autotradutor dialoga também com outra versão de si

próprio ao exercer o papel de leitor-modelo; conseqüentemente, a mudança, a

manipulação ou a transformação serão inevitáveis e necessárias. Resumindo,

mudanças introduzidas serão motivadas em parte pelo diálogo imaginário que o

autotradutor mantém com o leitor-modelo estrangeiro e em parte pelo diálogo

imaginário com a cultura original – e também consigo mesmo – quando exerce o

papel que havia estrategicamente previsto, de forma consciente ou não, para o

leitor-modelo original.

A meu ver, a autotradução é, essencial e fundamentalmente, uma atividade

de transformação, pelo próprio autor, de um original que foi escrito em uma

determinada língua (que não será necessariamente a língua materna de seu autor,

como veremos ainda neste capítulo) em uma outra obra que será,

obrigatoriamente, diferente da primeira. A diferença, inerente à atividade de

tradução, é essencial, já que o autotradutor estará transformando o texto que

produziu para apresentá-lo a leitores distintos daqueles que constituíram seu

público-leitor primeiro. A novidade dessa reflexão não está na transformação em

si, mas na pessoa do “transformador”, “dono” do original, livre para transformá-lo

sem que seja visto como traidor, e também nos motivos que levam à

transformação.

Em trabalho sobre Vladimir Nabokov apresentado na Conferência Anual da

Associação Norte-Americana de Literatura Comparada (2002a), Corinne Scheiner

faz afirmações com as quais concordo integralmente. Diferentemente de Brian

Fitch, por exemplo, que considera a autotradução um momento no processo de

construção do original para a produção de um resultado perfeito, e não resultado

de um diálogo entre autor e uma nova cultura, a pesquisadora da Universidade do

Colorado (EUA) afirma que

em primeiro lugar, ao traduzir seu próprio texto, o autor inicia um diálogo com o texto original, que se transforma em objeto de discussão na versão autotraduzida; muitas vezes essa discussão aparece na forma de comentário autoral. Em segundo lugar, pode-se falar na autotradução como um diálogo entre as duas versões do texto; nesse cenário, o texto autotraduzido pode ser visto como uma interpretação do texto original. Em terceiro lugar, ambos, original e tradução, participam de um diálogo intertextual com outros textos; muitas vezes, o autor introduz alusões novas no texto autotraduzido que fazem referência à tradição cultural do público-leitor a que a tradução se destina. Todas estas formas de diálogo são essenciais para a existência do texto[...].

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Ou, a partir da perspectiva de Eco, podemos dizer que, no primeiro estágio do

processo tradutório, o autotradutor exerce o papel de leitor-modelo de seu próprio

original e interpreta-o, seguindo as instruções lá registradas. No estágio seguinte,

quando inicia a tradução propriamente dita, inclui alterações atribuíveis ao autor-

modelo original e insere os chamados comentários autorais. Ainda nesse estágio, o

autotradutor imagina seu novo leitor-modelo e registra na manifestação linear do

texto escolhas atribuíveis ao tradutor – quando interpreta ou quando introduz

alusões novas para facilitar a cooperação do leitor-modelo estrangeiro,

impulsionador da tradução.

Nesta seção, apresentei o conceito de autotradução que tem sido base para as

pesquisas sobre o tema. Passo agora a apresentar um breve histórico da atividade

de tradução executada pelo próprio autor e das pesquisas sobre autotradução.

3.3

Breve histórico da autotradução e das pesquisas sobre o tema

A autotradução instituiu-se como prática de escrita quando Flavius Josephus

escreveu em aramaico e traduziu para o grego sua narrativa sobre a destruição de

Jerusalém e do Templo pelos romanos no século I. Seu objetivo ao traduzir seu

próprio texto teria sido a difusão da informação, pois “o grego era a língua mais

usada no Império” (Tanqueiro, 2002, p. 38). Julio César Santoyo (2002, p. 28)

acrescenta outros autores, judeus, ingleses e catalães, que traduziram seus próprios

textos durante a Idade Média. Santoyo afirma que “a versão da própria obra a

outro idioma floresceu de forma particular no século XV na Península Ibérica”

(ibidem) e explodiu, especialmente na tradução do latim para as línguas

vernáculas, nos séculos XVI e XVII (p. 29). Santoyo descreve também como a

autotradução continuou a ser feita até os dias atuais, contrariando a afirmação dos

dicionários e enciclopédias que consideram esta modalidade de tradução uma

prática pouco comum ou ainda uma atividade restrita a um determinado período

histórico.

Contemporaneamente, a prática da autotradução é observada de forma mais

acentuada em países ou regiões com mais de uma língua oficial, como é o caso da

Bélgica, da Catalunha e da Escócia. Nesses locais, o uso da língua considerada

materna é uma questão essencial para a construção de uma identidade própria,

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distinta daquela do “dominador” que impôs, entre outras coisas, uma “segunda”

língua como forma de expressão original por longo tempo. A conquista da

autonomia belga, catalã e escocesa passa, portanto, pela adoção de um idioma

próprio que só existirá se for efetivamente usado como forma de expressão

original em todos os contextos: cultural – a produção de literatura, por exemplo –

e sócio-econômico. É natural, assim, que a tradução e, muitas vezes, a

autotradução ocupem papéis centrais nesses países e regiões para que os escritores

possam atingir um público-leitor maior dentro e fora das fronteiras de suas regiões

de origem. Voltarei ao tema quando abordar, ainda neste capítulo, os casos dos

escritores catalães e dos poetas escoceses, mas descrevo ambos brevemente neste

momento, já que traço um perfil histórico da autotradução.

Entre os anos de 1935 e 1960, a Bélgica produziu um grupo de autores

bilíngües e faz-se importante notar as circunstâncias que envolveram o surgimento

de tais autores. A Bélgica é um país onde pelo menos duas línguas distintas têm

convivido ao longo dos anos: o francês (na Valônia e na capital, Bruxelas) e o

flamengo (em Flandres e também em Bruxelas) são línguas oficiais14, além do

alemão, nesse país desde 1963, quando a fronteira lingüística foi delimitada

depois de anos de uma alternância de hegemonia entre esses idiomas.

Há, porém, uma distinção marcante entre os autores bilíngües belgas, pois os

escritores mais idosos escrevem seus originais em francês para depois traduzi-los

para o flamengo, enquanto um grupo de escritores mais jovens percorre o caminho

oposto: escrevem os originais em sua língua materna – o flamengo – para depois

traduzi-los para o francês, alguns anos mais tarde. Essa mudança no caminho da

autotradução pode ser atribuída às transformações políticas ocorridas nesse

período. A fronteira lingüística só foi estabelecida em 1963 e o “Movimento

Flamengo”, que teve seu início no século XIX e prolongou-se até o século XX,

tinha por objetivo devolver ao povo flamengo uma identidade própria, perdida,

por assim dizer, depois de um período de dominação do idioma francês (v.

membres.lycos.fr/questione / perspectivas/neerlandes/neerlandes.html). Assim,

seria esperado que os autores mais jovens, identificados com a luta por uma

identidade flamenga própria, estivessem preocupados com a produção de textos

no idioma flamengo, o língua da resistência à dominação francesa.

14 Informação obtida por meio de consulta ao site oficial do consulado da Bélgica (www.belgica.org.br)

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É interessante também observar que os escritores belgas como um todo têm

objetivos distintos, ainda que os dois grupos escrevam e traduzam para uma

comunidade de leitores que apresentam características bastante semelhantes às dos

próprios escritores. Ambos, leitores e escritores são proficientes nos dois idiomas,

o francês e o flamengo. Entretanto, para os escritores mais idosos, a autotradução

não é uma atitude tomada para promover a sua inserção em um polissistema

literário mais forte ou maior, já que a escrita do original em francês por si só já

garante tal acesso. Antes, a autotradução marca, possivelmente, uma atitude

política de um grupo que pretende dar alguma visibilidade às produções em

flamengo e iniciar a construção de um polissistema literário na língua materna. Já

os escritores mais jovens escrevem em flamengo, a língua materna, portadora, por

assim dizer, de sua própria identidade. A tradução para uma língua que seus

leitores potenciais entendam – o francês – pode ser explicada pela vontade de

marcar tal língua (o francês) como estrangeira ou como aquela que em que não

conseguimos expressar quem somos, e ainda pela necessidade de atingir um

público-leitor maior. A autotradução marca assim uma atitude política de um

grupo (Baker, 1998) preocupado, como afirmei acima, com a construção de uma

identidade própria.

Na região da Catalunha, Espanha, onde dois idiomas, o castelhano e o

catalão, convivem por razões históricas, e onde os falantes, por questões práticas,

movem-se entre duas línguas, a autotradução sobrevive como prática de escrita.

Segundo Tanqueiro (2002), a Catalunha é um local onde muitos autores

traduziram (e ainda traduzem) seus próprios romances (p. 39). Penso que mais

uma vez a afirmação da identidade nacional, a catalã, no caso, move os escritores

na direção da escrita na língua materna. Carme Riera (2002) afirma que a única

língua para a qual traduz seus textos escritos em catalão é o castelhano, porque

esta é também a única língua, além da língua nativa, que conhece. Mas o

castelhano também é aquela na qual Riera não consegue expressar-se, pois não é a

que adotou como primeira (p. 12). Por outro lado, os mesmos escritores que

traduzem o próprio texto o fazem também porque desejam atingir “o maior

número possível de leitores, no maior número possível de línguas” (p. 11).

Na Escócia, onde o gaélico-escocês foi reconhecido como uma língua oficial

pelo Gaelic Language Act de 21 de abril de 2005 (v. http://www.scotland.gov.uk/

News/Releases/2005/04/21162614), a autotradução é contestada por alguns. A

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escrita e publicação de um texto unicamente nesse idioma significa alcançar um

público-leitor restrito, já que o gaélico-escocês é falado por apenas 1.2% da

população escocesa (v. http://en.wikipedia.org/wiki/Scottish_Gaelic_language

#Current_distribution_in_Scotland). Assim, a tradução para o inglês é

imprescindível se o escritor pretende alcançar um público-leitor mais significativo

dentro e fora das fronteiras da Escócia e do Reino Unido. Entretanto, para o poeta,

pesquisador e professor da Universidade de Edimburgo, Christopher Whyte

(2002), a autotradução para o inglês e a publicação de obras bilíngües podem

contribuir para a perpetuação da supremacia do inglês e a conseqüente

desvalorização do gaélico-escocês como língua oficial. Voltarei a essa questão em

seção posterior. Por ora, destaco a particularidade de cada uma das situações de

autotradução e, por isso, a necessidade dos estudos de caso como metodologia de

pesquisa para que uma investigação mais detalhada acerca da prática seja

possível.

Como afirma Tanqueiro (2002, p. 38), “a autotradução existiu ao longo da

história, só que não se lhe deu a importância que [...] tem, tanto do ponto de vista

sociológico como tradutológico”. Sendo prática freqüente, não seria de se

estranhar que fosse vista como garantia de boa tradução. Essa visão é ratificada

por Tanqueiro (2002), que afirma ser o autor o tradutor ideal, já que tem acesso à

intenção original. Ela segue afirmando que ao tradutor cabe traduzir o que o autor

quis dizer, segundo a tradição logocêntrica, e ser fiel à intenção original.

Com o tempo e a modificação dos costumes, a autotradução tornou-se

exceção como prática de escrita (Berman, 1992, p. 3). Tal escassez pode ter tido

entre suas causas o surgimento de associações como a Federação Internacional de

Tradutores (FIT) em 1953 e a Associação Americana de Tradutores (ATA) em

1959, que marcou o início da profissionalização da tradução e o aumento da

visibilidade social do tradutor e de sua prática profissional. Parece possível que

esse processo de construção oficial da profissão de tradutor tenha contribuído para

que a atividade passasse a ser exercida por tradutores profissionais. No livro Os

donos do saber: profissões e monopólios profissionais, Marli Diniz (2001) relata

como na segunda metade do século XIX, quando a profissão de engenheiro ainda

não era exercida de fato no Brasil, foi necessária a atuação de profissionais

estrangeiros, sobretudo ingleses, na construção de ferrovias, pontes, esgotos

sanitários e em vários outros grandes projetos (p. 51). Da mesma forma, os

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autotradutores podem ter atuado principalmente em épocas e locais onde os

tradutores ainda não exerciam profissionalmente sua atividade. Essa conclusão

não é, contudo, definitiva.

É um fato que as autotraduções de textos literários diminuíram, a princípio,

em número, apesar da argumentação em contrário de Julio César Santoyo (2002).

Reconheço que, em determinadas regiões, como a Catalunha e a Escócia, por

exemplo, há provavelmente um grande número de autores que traduzem seus

próprios originais (um número até mesmo maior do que temos notícia até agora).

Suspeito, depois da leitura do artigo de Santoyo, que deve haver um número

significativo de autotradutores em regiões tais como o País Basco, por exemplo,

onde o bilingüismo é condição de parte da população e onde ainda há um conflito

lingüístico. Entretanto, ao comparar o número de textos traduzidos por tradutores

ao número de textos traduzidos pelos próprios autores, considero poucos aqueles

que querem traduzir-se ou talvez sejam obrigados pelas circunstâncias a fazê-lo.

Entre eles, cito Rabindranath Tagore, Julien Green, James Joyce, Hector

Feliciano, Raymond Federman, Nancy Huston e também os já mencionados

Beckett, Nabokov, Kundera e João Ubaldo, além de alguns filósofos

contemporâneos como Vilém Flüsser e Hannah Arendt. As razões para que a

tarefa da autotradução seja executada por esses autores também diferem,

aparentemente, daquelas dos autores europeus do século XVI e dos escritores

belgas, catalães e escoceses. Por ser uma prática pouco freqüente, especialmente

entre autores vistos como canônicos, os estudos sobre o tema ainda são raros e,

conseqüentemente, o conhecimento sobre o assunto precisa ser aprofundado.

Somado a outros fatores, o pouco conhecimento sobre a autotradução gera uma

sensação de estranheza e perplexidade entre pesquisadores e muitas questões

surgem.

Em primeiro lugar, há os motivos que levam um autor a assumir tal

empreitada. Seria a sensação de que o original lhe pertence e, por isso, não pode

ou não deve ser reescrito ou traduzido por outro que não seja ele mesmo, autor do

original? Haveria um certo sentimento de desconfiança em relação aos tradutores

de maneira geral? Ou ainda, teria o autor gosto pela tradução e preferiria ver seu

texto traduzido por si próprio para que suas intenções e escolhas permanecessem

“intactas”? Ou teria o autor motivos mais práticos: ele precisa da tradução, por

motivos diversos, domina os idiomas que a tradução envolve e então resolve

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enfrentar o desafio? Que outros motivos poderiam existir? Em segundo lugar, há a

freqüência da experiência da autotradução. Teria o autor traduzido seus próprios

textos regularmente ou seria sua experiência limitada a poucas tentativas (talvez

uma única)? Que motivos levariam o autotradutor a repetir a experiência, ou a

desistir dela?

Finalmente, adotando-se agora uma perspectiva mais teórica, conceitos

como autoria, autoridade, fidelidade, liberdade, original e tradução merecem

discussão mais detalhada. Seria o autor de um texto a pessoa mais indicada para

traduzi-lo – um tradutor privilegiado, como conclui Helena Tanqueiro (2002) – e,

ainda que introduzisse modificações estaria sempre autorizado a fazê-lo pois é o

“dono” do texto? Não se deveria cobrar então do autotradutor nenhuma fidelidade

ao original, sendo alterações na forma e no sentido sempre permitidas? As

alterações introduzidas significariam que o autotradutor está em busca do original,

pronto, acabado, ideal (e inalcançável) do qual os dois textos – original e tradução

– serão talvez apenas rascunhos? As mudanças significariam uma tentativa feita

pelo autotradutor de aperfeiçoar seu texto original? Ou as possíveis mudanças

resultariam de um diálogo entre autotradutor e o público-leitor estrangeiro?

Voltarei à questão da opção pela autotradução e à discussão sobre a

fidelidade nas próximas seções, onde apresento criticamente as teses de Helena

Tanqueiro (2002), Verena Jung (2002) e Lillian DePaula Filgueiras (2002) e

discuto os casos de Samuel Beckett, Vladimir Nabokov e Milan Kundera e de

outros autotradutores pouco debatidos até o presente. Passo agora a apresentar um

breve histórico de pesquisas desenvolvidas sobre a autotradução desde 1961,

quando o artigo de Ruby Cohn inaugura, por assim dizer, a exploração do tema.

A autotradução não tem sido investigada com freqüência. Entre as poucas

pesquisas sobre o assunto destacam-se como objeto de estudo dois escritores

famosos, Samuel Beckett e Vladimir Nabokov, que traduziram seus próprios

originais. Milan Kundera e seu trabalho de tradução de A brincadeira para o

inglês é um tema mais recente de pesquisa. Outros autotradutores tais como

Cabrera Infante, Julien Green, Nancy Huston e João Ubaldo Ribeiro, além

daqueles não-consagrados ou localizados em polissistemas literários não

hegemônicos ou jovens, não têm sido objetos de estudo freqüentes.

Samuel Beckett foi, aparentemente, o primeiro autotradutor a despertar o

interesse da academia, apesar de não estar entre os primeiros que traduziram seus

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próprios textos, como constatei. Em 1961, Ruby Cohn publica o estudo que ainda

hoje serve como uma espécie de marco inicial da pesquisa sobre a autotradução:

“Samuel Beckett self-translator”. Nos anos 70, alguns poucos estudos foram

publicados sobre o mesmo autor e, na década de 80, Brian Fitch (1988) lança um

estudo detalhado sobre Beckett e a autotradução. Fitch aponta para aquela que era

a principal característica dos estudos sobre a obra beckettiana até então: os

romances e as peças teatrais de autoria de Beckett eram objetos de estudo das

literaturas inglesa e francesa isoladamente, e o fato de o escritor ter traduzido suas

obras acabou concedendo a elas o status de originais nas duas línguas. O ano da

morte de Samuel Beckett, 1989, assiste a uma renovação do interesse sobre a sua

obra, e entre os vários estudos publicados nesse ano inclui-se o artigo de Steven

Connor, intitulado “Traduttore, traditore: Samuel Beckett’s translation of Mercier

et Camier”.

Vladimir Nabokov e suas autotraduções despertaram o interesse da

academia alguns anos após a publicação da primeira pesquisa sobre Beckett. Nos

anos 1970, Jane Grayson (1977) compara os originais e as traduções de Nabokov

e conclui, entre outras coisas, que ele introduz alterações para adaptar seu texto a

um novo público-leitor (p. 167). Nos anos 90, o livro The Garland companion to

Vladimir Nabokov (1995) inclui, entre os mais de 70 artigos sobre toda a obra de

Nabokov, dois de Elizabeth Klosty Beaujour – estudiosa do bilingüismo –

intitulados “Bilingualism” e “Translation and self-translation”. Em 1999, um

artigo sobre as traduções de Nabokov (incluindo as autotraduções), de autoria de

Jenefer Coates, foi publicado no livro The practices of literary translation:

constraints and creativity e, em 2005, María Alhambra Díaz publicou o mais

recente artigo sobre Nabokov autotradutor de que tenho notícia: “The

metamorphosis of mnemosyne: literal and self-translation in Vladimir Nabokov’s

Speak, memory” no periódico In other words.

Milan Kundera e sua tradução de A brincadeira para o inglês são alvo mais

recente de interesse, e as alterações introduzidas pelo autor causam impacto entre

pesquisadores. Alison Stanger, na sua “Open letter to Milan Kundera”, afirma que

as omissões no texto autotraduzido seriam aprovadas por um editor preocupado

com a falta de familiaridade do leitor estrangeiro com aspectos da cultura tcheca

(1997, p. 4). Michelle Woods ratifica a opinião de Stanger ao afirmar que

Kundera domestica seus textos ainda que tenha criticado a domesticação adotada

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como estratégia por tradutores anteriores de sua obra. Contudo, Woods ressalta

que o escritor tcheco também altera os originais (escritos em tcheco) quando os

revisa e os adéqua ao público-leitor (Woods, 2001, p. 206). Ou, a partir da

perspectiva de Umberto Eco, podemos dizer que Kundera torna seus originais

adequados ao leitor-modelo, pois reconhece as limitações das novas condições de

produção para o texto. Em novo estudo sobre o escritor tcheco, Woods destaca,

principalmente, o papel central que os editores tiveram na tradução das obras de

Kundera na busca de “uma tradução acessível e fluente” (2006, p. 25).

João Ubaldo Ribeiro e seu trabalho como autotradutor têm despertado pouco

interesse. Entre as pesquisas sobre a tradução de Sargento Getúlio (1971) de que

tenho notícia está o trabalho de conclusão de curso de Fernanda Caroline de

Andrade (s/d), na Universidade Adventista de São Paulo (UNASP), intitulado “A

questão da fidelidade posta em prova a partir de uma breve análise da self-

translation na obra Sergeant Getúlio de João Ubaldo Ribeiro”. Em sua

monografia, Andrade analisa as escolhas tradutórias do escritor brasileiro e

conclui que

no caso da tradução da obra Sargento Getúlio, parece ter havido na auto-tradução de Ribeiro para o inglês mais perdas do que ganhos, caso consideremos a riqueza de expressões e neologismos regionais refletidos no texto de partida do autor, os quais não foi possível perceber no texto de chegada.

Já An invincible memory (1989), versão em inglês de Viva o povo brasileiro

(1984), despertou a atenção do pesquisador Luis Angélico da Costa, professor da

Universidade Federal da Bahia, que apresentou um trabalho sobre o romance no V

Encontro Nacional de Tradutores, realizado em Salvador, Bahia em 1994. Em

“João Ubaldo Ribeiro: tradutor de si mesmo”, Costa constata, através da análise

de vários exemplos, que o escritor brasileiro “factualmente traduziu para o inglês”

[grifo do autor] o romance de sua autoria (1994, p. 186). Em outras palavras,

Costa constata que em sua autotradução, João Ubaldo faz trabalho semelhante ao

do tradutor profissional, utilizando procedimentos de tradução. Há ainda dois

trabalhos, escritos pelo professor e pesquisador da Universidade de São Paulo,

John Milton, estudioso da tradução, que têm as autotraduções de João Ubaldo

como tema. Em “Translating Latin America”, Milton (1999) compara contos

escritos por Vargas Llosa, traduzidos para o inglês com a ajuda e sob a supervisão

do escritor peruano, ao trabalho de João Ubaldo Ribeiro e conclui que este não

apaga da autotradução o elemento estrangeiro, como fazem Vargas Llosa e seu

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tradutor. Em “The self-translations of the Brazilian novelist João Ubaldo Ribeiro:

‘thin’ translations” (2002), Milton conclui que as autotraduções do escritor

brasileiro seguem a linha inaugurada por outras traduções publicadas durante o

boom de literatura latino-americana traduzida para o inglês, nas quais a fluência e

a ausência de prefácios, glossários e posfácios são características comuns. Em

resumo, são poucos e esporádicos os estudos sobre o trabalho de tradução de João

Ubaldo, e o próprio autor afirma que ninguém se interessa por seu trabalho de

autotradutor (e-mail, 30/09/2004). Conforme mencionei na introdução a esta tese,

João Carlos Teixeira Gomes afirma que “tal fato passou despercebido pela nossa

crítica” (2005, p. 75).

Gostaria de destacar alguns fatos entre aqueles que apresentei acima. É a

partir da década de 1970 que os estudos sobre a autotradução começam a surgir

mais freqüentemente. Samuel Beckett e Vladimir Navokov são os primeiros

motivadores de estudos sobre a autotradução, o que não deve causar surpresa,

tratando-se de dois autores mundialmente consagrados. Além disso, constato que

esses autores continuam a ser aqueles que motivam o maior número de pesquisas

e publicações sobre a autotradução. Mais uma vez, o status canônico de ambos e a

sua inclusão em polissistemas literários fortes parecem constituir os fatores

causadores do maior interesse de pesquisadores do tema.

Mais recentemente, o interesse pelo trabalho de outros autotradutores tem

aumentado um pouco. Em 1997, realizou-se o primeiro simpósio dedicado à

autotradução dentro do “V Seminari sobre la traducció a Catalunya”, onde foram

debatidos os estudos de Antoni Marí, Carme Riera e Helena Tanqueiro. Em 2002,

o seminário “Self-translation / Translation of the self” foi realizado durante a

conferência anual da Associação Americana de Literatura Comparada. Nele,

comunicações tiveram como tema as autotraduções de Rosario Ferre e Pedro Juan

Sotto (escritores portoriquenhos), Etel Adnan (poeta libanesa) e Ungaretti (poeta

egípcio). Julgo importante ainda destacar o estudo de Corinne Scheiner, intitulado

“The dialogic task of the self-translator”, pois lança um novo olhar sobre a

autotradução tal como praticada por Nabokov. Também em 2002, a autotradução

foi tema de três teses, já mencionadas, cujas premissas e conclusões serão

apresentadas e discutidas mais adiante. Há, no momento, duas teses em

andamento. Na primeira, Corinne Krause, doutoranda da Universidade de

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Edimburgo, discute o trabalho dos poetas e autotradutores escoceses. Na segunda,

Luana Pasi, da Universidade de Pavia, estuda as autotraduções de En attendant

Godot e Fin de partie, de Samuel Beckett, do francês para o inglês. As teses de

Krause e Pasi não serão analisadas em detalhe por mim, já que não foram

concluídas até o presente momento, mas suas conclusões iniciais serão

mencionadas. Noto ainda que o interesse por autotradutores originários de regiões

específicas (como a Catalunha e a Escócia) e aqueles inseridos em polissistemas

não hegemônicos ou jovens começa a despertar a atenção da academia.

Apesar do interesse recente, pude observar que os trabalhos sobre

autotradutores provenientes de regiões bilíngües ou de polissistemas literários não

hegemônicos ou jovens não têm repercussão fora das fronteiras dessas regiões.

Além disso, as pesquisas sobre o tema se ignoram mutuamente. Minha tese sobre

João Ubaldo, além de constituir a primeira pesquisa que abrange as duas

autotraduções do escritor brasileiro, é também um trabalho pioneiro exatamente

porque reúne diversas pesquisas sobre o tema e procura relações entre os casos

estudados até agora. Contudo, não quero dizer com isto que meu estudo encerre o

debate sobre a autotradução - muito pelo contrário.

Depois de apresentados o histórico da autotradução e de pesquisas sobre o

tema, passo a fazer uma análise crítica das três teses defendidas em 2002.

3.4

A autotradução na academia

Antes de iniciar minha apresentação e análise das teses de doutorado

defendidas recentemente, julgo essencial ressaltar alguns pontos. Em primeiro

lugar, destaco que o autotradutor é visto nas teses de Helena Tanqueiro e Verena

Jung como o único profissional que será capaz de resgatar adequadamente aquelas

que foram as intenções originais do autor. Em segundo lugar, destaco a crença de

que o conhecimento das intenções, bem como os procedimentos de tradução que o

autotradutor considera adequados, conferem a ele uma posição privilegiada: a de

um profissional cujo trabalho deve ser imitado por profissionais da tradução bem

como por aprendizes – ou seja, serve como modelo para a prática da tradução de

qualquer tipo de texto. Conseqüentemente, as duas teses contribuem, de forma

geral, para ratificar a visão de tradução como cópia sempre inferior ao original,

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crença da qual não partilho. Já a tese de Lillian DePaula Filgueiras parte da

premissa de que a autotradução não se distingue da tradução. Julgo que a

generalização pode ser problemática, pois os casos de autores que traduziram seus

próprios textos são distintos e não será possível afirmar que um texto

autotraduzido é sempre uma tradução propriamente dita.

3.4.1

A tese de Helena Tanqueiro: Autotradução – autoridade, privilégio e

modelo

Em sua tese de doutorado, Helena Tanqueiro (2002) pretendeu verificar “se

o autotradutor atuava essencialmente como tradutor e até que ponto a sua

autoridade enquanto autor e a sua dupla qualidade lhe conferiam um estatuto de

‘tradutor privilegiado’” (p. i). Para responder sua questão de pesquisa, Tanqueiro

analisou o trabalho de dois autores catalães, Antoni Marí e Eduardo Mendoza, e o

do italiano António Tabucchi. Marí escreveu (em catalão) o romance El camí de

Vincennes e o traduziu para o castelhano (El camino de Vincennes); Mendoza

escreveu (em catalão) a peça de teatro Restauració e a traduziu para o castelhano

(Restauración); Tabucchi escreveu em italiano (sua língua materna) o romance

Sostiene Pereira, que tem como tema uma cultura estrangeira: a portuguesa.

Tanqueiro analisa comparativamente o original e a tradução de El camí de

Vincennes e Restauració para provar que os autores atuaram como tradutores

quando traduziram suas próprias obras. Em seguida, a pesquisadora analisa o

tratamento que o autor de Sostiene Pereira deu aos referentes culturais

estrangeiros (portugueses, no caso) para mostrar que, durante o processo de escrita

da obra, Tabucchi realizou trabalho semelhante ao de um tradutor, e que os

procedimentos utilizados para a tradução desses referentes culturais devem servir

de modelo para o trabalho de tradutores da obra para outros idiomas, exceto o

português. O tradutor do romance de António Tabucchi para a língua portuguesa

teve de usar outras técnicas, como demonstrarei adiante.

É importante destacar que Tanqueiro pretendeu, com seu estudo, oferecer

um modelo para o trabalho do tradutor literário e para o ensino da tradução

literária. Voltarei aos objetivos de Tanqueiro mais adiante. A partir de agora,

passo a analisar criticamente sua tese sem, no entanto, reapresentar cada passo da

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pesquisadora. Realçarei apenas pontos que me parecem relevantes para a

discussão sobre a autotradução e, portanto, para meu estudo de caso.

Inicialmente, Tanqueiro discute a tradução literária e apresenta uma síntese

das principais teorias na linha das quais ela tem sido analisada. Destaco aqui a

distinção entre artes produtivas e artes reprodutivas (Fulda apud Tanqueiro, 2002,

p. 1), que serve de apoio para a pesquisadora em sua síntese. Tanqueiro parte da

distinção entre os dois tipos de arte e demonstra que, ao longo da história da

tradução, as principais teorias nessa área de estudo têm se alternado entre a visão

de tradução como arte produtiva ou reprodutiva. Para a autora, entretanto, “o

tradutor se confronta com uma tarefa cuja complexidade não possui termo de

comparação, nem entre as artes produtivas nem entre as reprodutivas” (Tanqueiro,

2002, p. 1), já que o tradutor transforma a obra para adequá-la ao novo público-

leitor. Mostrarei adiante que alguns estudos demonstram que autotradutores como

Nabokov e Kundera, por exemplo, adequaram seus textos autotraduzidos ao novo

público-leitor. Mostrarei também como João Ubaldo Ribeiro evidencia, através de

suas escolhas, a preocupação com o leitor-modelo norte-americano.

Ressalto que Tanqueiro não problematiza a distinção entre arte produtiva e

arte reprodutiva, tomando-a como pressuposto básico. Entretanto, considero

necessário analisar brevemente esses conceitos, já que a pesquisadora volta a eles

e, a meu ver, contradiz sua própria crença. Observo que a definição de arte

produtiva adotada por Tanqueiro é calcada na concepção do autor como fonte de

significados originais, amplamente discutida e criticada por teóricos

contemporâneos como Roland Barthes (1978), por exemplo. Apontarei, no

decorrer da análise da tese de Tanqueiro, que a pesquisadora adere à visão do

autor (empírico) como fonte de explicação para a obra e, a meu ver, ajuda a rodeá-

lo “de uma aura quase sacral” (Fernandes, 2003, p. 99). Por outro lado, ela

também afirma que é difícil categorizar a tradução como arte produtiva ou

reprodutiva e prefere pensar a categorização como um contínuo ao longo do qual a

tradução se move influenciada por diversos fatores tais como o tipo de texto, por

exemplo. Portanto, Tanqueiro reconhece a dificuldade de recorrer a uma

classificação que tem pólos opostos como possibilidades únicas. De fato, como já

discuti anteriormente, as teorias da diferença dão lugar às teorias da complexidade

e as visões binárias vão sendo, conseqüentemente, abandonadas (Martins, 2002, p.

43). Assim, também acredito, que o trabalho dos tradutores, por exemplo, nunca

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se localizaria em um ou outro extremo de um contínuo e a mesma tradução

sempre exibe traços de maior criatividade e de maior aderência ao original.

Contudo, creio que a tradução nunca poderá ser classificada como mera

reprodução ou cópia, já que sempre implica transformação, assim como não

acredito que o autor empírico possa ser visto como fonte suprema e única de

explicação para sua obra. Na verdade, vejo o autor empírico como o estrategista

que, baseado no conhecimento que tem sobre seu adversário, escolhe as

estratégias que lhe parecem mais adequadas para lidar com ele. Entretanto, nem

sempre o autor, que imagina seu leitor-modelo, seleciona conscientemente e

consegue explicar as pistas que deixa na obra para que esse leitor possa segui-las e

cooperar com o texto. E, diferentemente do estrategista, que estuda o adversário

para derrotá-lo, o autor quer levar seu leitor a vencer ou, em outras palavras, a

seguir as pistas e ser bem-sucedido na sua interpretação (Eco, 1979b, p. 39).

Tanqueiro segue apontando as características da tradução literária e cita

aquela que considera a principal diferença entre o trabalho do autor e o do

tradutor. Para ela, o tradutor não é um “criador no sentido em que o termo

costuma ser aplicado em relação ao autor” (2002, p. 9), já que não cria um novo

“mundo ficcional” durante seu processo de trabalho. Voltarei ao conceito de

mundo ficcional mais adiante ao apresentar as razões dadas pela pesquisadora

para sua concepção do autor como tradutor privilegiado. Por ora, ressalto que essa

noção é importante para uma distinção entre autotradução e tradução.

A relação do tradutor com o autor e com a obra é outro aspecto discutido na

tese que analiso agora. Dessa discussão, destaco duas visões de Tanqueiro sobre a

fidelidade. Enquanto, segundo a pesquisadora (2002, p. 11), Günter Grass deseja

que suas intenções sejam respeitadas na tradução (o que pode requerer alterações

significativas na estrutura do texto), Milan Kundera e a autotradutora catalã

Carme Riera acreditam que a tradução literal (entendida aqui como aquela que

respeita a forma do texto, na medida permitida pela estrutura das línguas

envolvidas na tradução) será capaz de garantir a fidelidade. Demonstrarei mais

adiante que a defesa da tradução literal como procedimento garantidor da

fidelidade é freqüente no discurso e na prática de autotradutores, especialmente

nos casos de Milan Kundera, Vladimir Nabokov e João Ubaldo Ribeiro.

Destaco também a importância que Tanqueiro atribui à intenção do autor. A

relação próxima entre um tradutor e um autor empírico disposto a refletir sobre o

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processo de escrita contribui, segundo ela, para que o tradutor aproxime-se “mais

da intenção que está subjacente à obra produzida pelo autor” (2002, p. 15).

Entretanto, a própria pesquisadora reconhece a dificuldade de tal aproximação, já

que a correspondência absoluta entre fala e pensamento é impossível (ibidem).

Apesar disso, Tanqueiro argumenta que o diálogo entre o autor e o tradutor pode

beneficiar ambos, pois este conhecerá melhor a intenção do autor que, por sua

vez, poderá refletir sobre o processo de produção de sua obra “com vista à

realização de criações posteriores” (ibidem). De fato, acredito que o contato entre

o autor e o tradutor é importante, mas não porque o primeiro poderá revelar suas

intenções. Considero, sim, que o autor do original pode, por exemplo, ajudar o

tradutor a esclarecer aspectos da cultura-fonte, traços de estilo e, por vezes, dar

autorização para que alterações significativas sejam registradas na tradução.

Cartas trocadas entre Guimarães Rosa e seus tradutores para o italiano – Edoardo

Bizzarri – e para o alemão – Curt Meyer-Clason – publicadas separadamente em

2003 revelam o diálogo e colaboração intensos entre Rosa e cada um de seus

tradutores. Na correspondência, Bizzarri e Meyer-Clason pedem esclarecimentos

sobre os neologismos de Rosa e sobre a cultura brasileira, solicitam autorização

para introduzir mudanças e demonstram como o contato com o autor pode tornar-

se um importante recurso para o tradutor literário. Essa correspondência mostra

também que a comunicação entre eles é uma via de mão dupla e o autor pode

beneficiar-se nesse processo. Rosa afirma, por exemplo, que em uma nova edição

pretende “adaptar a passagem à versão que Meyer-Clason encontrou em alemão”

(Rosa, 2003, p. 3). Além de revelar a contribuição de seu tradutor para o alemão,

Rosa sinaliza ainda sua concepção da obra como processo, como construção

realizada em diálogo com a tradução.

A meu ver, é nesse momento que Helena Tanqueiro explicita sua crença no

autor como fonte de explicação da obra e da intenção original. Ao afirmar que o

autor pode esclarecer sua intenção original, ela parece demonstrar sua crença em

um significado estanque que, depois de registrado no texto, é independente da

cooperação com o leitor e tem de ser autorizado pelo autor porque só ele sabe o

que quis dizer. Ficam implicitamente ratificadas a inferioridade do tradutor em

relação ao autor e da tradução em relação ao original, além da visão da tradução

como uma atividade mimética, que Tanqueiro havia refutado antes. Além disso,

se, como ela mesmo afirma, a aproximação da intenção do autor é difícil, pois não

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há correspondência absoluta entre fala e pensamento, a tradução fica caracterizada

como uma atividade impossível.

Tanqueiro continua sua apresentação discutindo a relação do tradutor com a

obra. A pesquisadora afirma que a relação desenvolve-se em duas etapas,

uma em que o tradutor desempenha um papel mais passivo e outra em que é mais ativo. A primeira, em que o tradutor tem de assimilar a obra para poder captar tudo o que está subjacente à sua construção literária, corresponde à fase da leitura [...]. Na segunda fase, [...] deparamo-nos com o tradutor já envolvido com a obra, analisando-a, pesquisando até ao mais ínfimo pormenor, já como sujeito ativo que acaba por comunicar perfeitamente com ela, ao ponto de identificar-se com o autor. (2002, p. 15)

De fato, considero que a divisão do trabalho do tradutor em etapas é bastante

sensata e, incontestavelmente, a leitura exerce um papel fundamental na tradução.

Como afirma Heloisa Gonçalves Barbosa (2003, p. 59), o tradutor deve ser um

“leitor extremamente atento”. Paulo Henriques Britto (2003) sinaliza a

importância da leitura ao afirmar que o curso de formação de tradutores da PUC-

Rio “visa desenvolver no aluno as habilidades de leitura e escrita” (p. 91). Assim,

Tanqueiro aponta uma etapa essencial do processo de tradução. Contudo, julgo

que sua visão da leitura como um processo passivo contradiz teorizações nas áreas

de lingüística aplicada (Grellet, 1981; Kleiman, 1989; Moita Lopes, 1996), da

teoria literária (Iser, 1978), da semiótica literária de Eco (1979b) e da tradução

(Arrojo, 1992). Destaco as idéias de estudiosos da leitura (e do discurso) que

vêem a leitura como um processo em que um leitor usa seu conhecimento prévio

(lingüístico, textual e de mundo) para construir significados. Destaco ainda a

teoria de Wolfgang Iser (1978) e seu conceito de vazio, que convida o leitor ao

preenchimento temporário para que a experiência do efeito estético se concretize.

E ainda Umberto Eco, que descreve a cooperação do leitor como princípio que

governa a geração e a interpretação de textos em geral (1979a, p. 5). Em todos os

casos, o leitor desempenha um papel essencial, embora o seu grau de participação

varie conforme a teoria.

Finalmente, é importante mencionar que Tanqueiro dá ao tradutor a tarefa de

“captar tudo o que está subjacente à construção literária [da obra]” (2002, p. 15.

Meu grifo). Creio, contudo, que a exigência de que um tradutor seja capaz de

captar “tudo” o que está implícito em uma obra literária é irreal. Além disso,

considerar que só o autotradutor pode conhecer “tudo” (ainda que esta seja uma

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tarefa difícil, como a própria pesquisadora reconhece) equivale a dizer que

nenhum outro indivíduo estará capacitado a traduzir, e, portanto, o trabalho do

autotradutor será, de certa forma, infrutífero como modelo para a tradução.

Ressalto aqui que o autor-modelo de Eco não se confunde com a intenção do autor

empírico, mas está presente no texto através de escolhas lingüísticas e estratégicas

que podem ser reconhecidas pelo leitor, ainda que a interpretação seja um

processo potencialmente infinito.

Em sua tese, Tanqueiro utiliza os conceitos de leitor-modelo e leitor

empírico apresentados por Umberto Eco (1979a; 1979b). O leitor-modelo, como

discuti no capítulo anterior, é aquele “que se supõe capaz de enfrentar as

expressões de maneira interpretativa, do mesmo modo que o autor as encara de

maneira gerativa” (Eco, 1979a, p. 7). O leitor empírico, por outro lado, é apenas

um leitor entre os inúmeros leitores possíveis. Segundo Tanqueiro, “a grande

maioria dos autores costuma ter o seu leitor ideal que [...] se aproxima muito ao

leitor-modelo defendido por Eco” (2002, p. 17). Ela atribui ao tradutor o papel de

leitor-modelo e afirma que o primeiro precisa aproximar-se do autor tanto quanto

possível, através do contato direto com ele, de intensas leituras da obra, do

conhecimento de toda a sua produção literária, pensamentos, ideologia e estilo,

“para ser capaz de chegar aonde o autor queria, ou seja, conseguir apanhar as

‘migalhas’ semeadas por ele ao longo da obra” (p. 17). Por isso, segundo

Tanqueiro, o autotradutor é o “leitor ideal da obra que o próprio autor projetou ao

criá-la”, já que na visão da pesquisadora o escritor do original saberá onde

encontrar as pistas que ele mesmo deixou. Considero importante destacar que,

para Tanqueiro, a interpretação é um processo finito no qual o autor empírico tem

um papel extremamente importante, pois só ele pode explicar suas intenções.

Saliento, contudo, que Tanqueiro distancia-se do conceito de leitor-modelo

de Umberto Eco (1979a; 1979b). Em primeiro lugar, ela afirma que a grande

maioria dos autores costuma, ao escrever, construir um leitor ideal que se

aproxima do leitor-modelo. De fato, tal como Umberto Eco (1994), Tanqueiro

considera que o leitor-modelo é uma estratégia utilizada pelo escritor durante o

processo de geração de um texto. Considero essencial ressaltar, porém, que

Umberto Eco não vê o autor empírico como auxiliar no processo de interpretação.

Eco afirma ainda que o leitor empírico disposto a assumir o papel de leitor-

modelo atribui ao autor-modelo – um construto do texto, que é reflexo do

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primeiro – as pistas deixadas na obra. Desse modo, ambos, autor e leitor-modelos,

estão presentes no texto e são construtos teóricos, estratégias discursivas. Além

disso, o leitor-modelo é o leitor que o autor empírico imagina ao criar a obra, que

serve de propulsor para o processo gerativo e que se encontra registrado no texto.

Tanqueiro prevê ainda o contato com o autor empírico e o conhecimento

acerca dele como fatores importantes para a interpretação. A meu ver, é inegável

que tradutores profissionais atribuem importância ao contato com o autor, somado

a todo o conhecimento sobre sua obra, pensamentos, ideologia e estilo. Pude

constatar, através da leitura de Experiences in translation de autoria de Umberto

Eco (2001b), que ele mesmo descreve o auxílio – ou talvez permissão – que dá

aos tradutores de suas obras. Entretanto, Eco havia afirmado anteriormente que “o

leitor empírico tende a ofuscar [o autor-modelo] com notícias que já possui a

respeito do autor empírico enquanto sujeito da enunciação” (1979b, p. 46). Em

outras palavras, para Eco o conhecimento acerca do autor empírico pode tornar a

cooperação textual “perigosa” (p. 46). Diferentemente de Eco, Helena Tanqueiro

atribui ao autor empírico uma função essencial: a de fonte autorizada de

explicação sobre a obra.

Helena Tanqueiro finaliza sua discussão a respeito da tradução abordando a

relação entre o tradutor e a escrita da obra. Ressalto aqui a diferença apontada pela

pesquisadora entre o trabalho do escritor e o do tradutor. Para ela, o tradutor,

diferentemente do autor do original, “confronta-se com as limitações de um

universo ficcional acabado” (2002, p. 18) que ele tem que reconstruir “numa outra

língua que tornará [a obra] também acessível a outros num outro espaço

lingüístico e cultural” (p. 18). Para isso, precisará utilizar outros procedimentos,

passará por outros processos e será influenciado por fatores distintos daqueles que

influenciaram o autor durante a escrita da obra original. Para Tanqueiro a tradução

move-se na direção das artes reprodutivas quando o tradutor copia o “universo

ficcional”, mas tende para as artes produtivas quando o tradutor atende as

expectativas do público-leitor estrangeiro, transformando a língua do original.

Acredito que a pesquisadora trata aqui dos limites entre a tradução e a

escrita original calcando sua distinção na construção do “universo ficcional”.

Entre os componentes desse mundo Tanqueiro inclui as personagens, a situação,

as ações e o tema da obra. Nele o tradutor não tem autoridade para interferir. Por

outro lado, a pesquisadora deixa de fora do “universo ficcional” os aspectos

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lingüísticos do discurso narrativo que estão, esses sim, dentro da área de atuação

do tradutor, que obrigatoriamente os modifica para cumprir aquela que é a sua

tarefa fundamental: a comunicação com o leitor estrangeiro. As alterações no

código lingüístico estão entre as tarefas do tradutor, mas tais alterações não

incluem aquelas que descaracterizam, de acordo com a autora, o “universo

ficcional” de uma obra.

De fato, considero que não é difícil acreditar em um mundo ficcional

registrado nas páginas de um romance assim como não é difícil concordar com o

fato de que determinados personagens devem habitar situações com tempo e lugar

específicos imaginados por seus autores. Por outro lado, John Milton (1999, p.

167) indica que aspectos das culturas espanhola e portuguesa foram apagados em

traduções vistas como fluentes da ficção latino-americana. Destaco duas

conclusões tiradas por mim após a comparação entre as opiniões de Tanqueiro e

Milton. Em primeiro lugar, concluo que as escolhas de um tradutor podem não

estar relacionadas ao seu status de tradutor ou a procedimentos específicos da

tradução, mas sim às normas que governam traduções em lugares e épocas

determinados. Tanqueiro não discute possíveis normas não parece ver a tradução

como uma atividade influenciada pelos sistemas econômico, político e cultural,

além da poética que a circundam (Bassnett & Lefevere, 1990). Estando a tese de

Tanqueiro centrada no âmbito dos DTS, a pouca atenção às normas que governam

o processo tradutório é surpreendente. Em segundo lugar, acredito que o código

lingüístico não deve ser olhado isoladamente. As transformações lingüísticas

feitas pelo tradutor no exercício de sua tarefa necessariamente acarretam

alterações no universo ficcional – alguns personagens, quando traduzidos, podem

ter suas características alteradas de maneira fundamental, por exemplo –, como

apontam as descobertas de Milton (1999) e como demonstrarei em minha análise

do caso de João Ubaldo Ribeiro.

Depois da discussão acerca da tradução, Tanqueiro passa a definir a

autotradução. Em primeiro lugar, a autora se dedica à construção de um histórico

abrangente e elucidativo da atividade desde a primeira autotradução. Em seguida,

ela descreve a localização geográfica como uma característica importante da

autotradução. Em geral, segundo Tanqueiro, essa atividade é mais constante entre

autores que vivem em ambientes bilíngües e que pertencem a um polissistema

literário fraco ou jovem (Even-Zohar, 1990, p. 45-52), como os catalães estudados

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por ela. Em segundo lugar, a pesquisadora destaca a questão lingüística. Ela

demonstra que a autotradução para a língua minoritária não é comum, utilizando o

exemplo dos escritores catalães que traduzem seus próprios textos do catalão para

o espanhol. Pesquisas bibliográficas me levaram aos poetas escoceses, outro

grupo importante de autores que traduzem seus textos do gaélico-escocês para o

inglês, o que confirma a tendência apontada pela pesquisadora portuguesa.

Tanqueiro cita também depoimentos de autotradutores para confirmar o caráter

especial, por assim dizer, do texto autotraduzido. Cabrera Infante, por exemplo,

afirma que suas autotraduções para o inglês devem servir de modelo para futuras

traduções (apud Tanqueiro, 2002, p. 42). De fato, verifiquei que a atitude não é

rara. Também Milan Kundera atribui aos romances publicados em francês,

revisados por ele, o status (temporário) de “versões definitivas”, que devem servir

de base para outras traduções.

Finalmente, Tanqueiro cita depoimentos que sinalizam, segundo ela, a

confirmação de sua hipótese de que os autotradutores agem como tradutores ao

verterem suas próprias obras para outros idiomas. Ela afirma que Beckett,

Nabokov e Kundera “atuaram mais como tradutores do que como autores” (p. 44)

ao verterem seus textos. Julgo relevante apontar, contudo, que Tanqueiro não se

baseia em análises dos textos traduzidos por esses autores para ratificar sua

afirmação. Evidentemente, tais análises não poderiam, por questões de ordem

prática (as línguas envolvidas na tradução, por exemplo), estar incluídas em sua

tese. Entretanto, creio que a referência a outros estudos sobre esses autores

poderia ratificar (ou retificar) suas opiniões. Tanqueiro faz a afirmação baseada

nos motivos que ela mesma relata. No caso de Nabokov, a pesquisadora aponta

que o autor russo/norte-americano traduziu seus textos com a mesma finalidade de

qualquer tradutor, “ou seja, dar a conhecer a sua obra, sendo bilíngüe, a uma

comunidade lingüística distanciada da original” (ibidem). Em outras palavras,

para Tanqueiro, Nabokov atuou como tradutor porque tinha motivos semelhantes

aos de um tradutor ao verter uma obra. No caso de Beckett, a autora cita o fato de

que o escritor francês se referia a seus textos autotraduzidos como traduções e não

como novos originais (p. 45), pressupondo que é Beckett quem tem autoridade

para definir sua atividade. Finalmente, Tanqueiro declara a respeito de Milan

Kundera que ele “diferencia suas duas competências assinando a sua tradução

com um pseudônimo, marcando assim a distância entre o seu papel de autor e o de

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tradutor” (p. 44). Em conclusão, Tanqueiro afirma que os autotradutores

comportam-se como tradutores porque estão diante de um universo ficcional que

“já se encontra acabado, completamente concluído, tal como sucede com

tradutores de maneira geral” (p. 46) e reitera sua crença no privilégio do

autotradutor, que tem acesso à “verdadeira intenção” do autor-criador (ibidem).

Concluo que o conhecimento da “verdadeira intenção” e dos limites do universo

ficcional são de grande importância para a caracterização da autotradução, do

ponto de vista de Tanqueiro. Conforme demonstrei anteriormente, não acredito na

possibilidade de resgate de tais intenções, mas concordo parcialmente com a

importância do universo ficcional para a construção de limites entre a tradução e a

autotradução pelos motivos que já expus.

Tanqueiro (2002, p. 47-48) expõe, em seguida, sua visão de que uma

autotradução é uma tradução, ainda que privilegiada, e cita, em primeiro lugar, o

bilingüismo e o biculturalismo necessários ao tradutor e ao autotradutor. Sem

negar que ambos sejam características desses profissionais, acredito, contudo, que

é necessário definir o que significa ser bilíngüe (o que Tanqueiro não faz). Ao

analisar os autores estudados por Tanqueiro, verifico que, para ela, bilíngües são

essencialmente aqueles que vivem em países onde duas línguas são utilizadas

como meio de comunicação, como no caso dos escritores catalães. A esse tipo de

indivíduo bilíngüe somam-se aqueles que, nascidos em determinado país, às vezes

em famílias em que duas línguas eram usadas, tiveram de emigrar e adotar outro

idioma para se comunicarem no novo ambiente. Isabelle de Courtivron (2003, p.

4) descreve as situações que propiciam o bilingüismo, tais como as famílias cujos

pais falavam línguas diferentes, as culturas multilíngües ou, ainda, o exílio

político que impõe uma língua diferente. Tais características são discutidas por

Courtivron em seu livro Lives in translation: bilingual writers on identity and

creativity (2003) e, embora a autora não afirme claramente, podemos depreender

que o tempo de contato é um fator essencial para que um indivíduo seja

considerado bilíngüe, em geral convivendo com a segunda língua por um longo

intervalo de tempo ou mesmo por uma vida inteira. Entretanto, há outras

características que o definem.

O indivíduo bilíngüe, em uma acepção comum do termo, pode ser aquele

que atinge um bom nível de proficiência e é capaz de ler e escrever em duas

línguas distintas (Richards, Platt & Weber, 1985, p. 28). Maria Estela Brisk e

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Margaret M. Harrington (2000, p. 3-4) definem bilingüismo como a capacidade de

compreender (ler e ouvir), falar e escrever bem em duas línguas, seja essa

capacidade já bem desenvolvida nas duas línguas ou ainda incipiente em uma

delas. Além dessas características, Brisk e Harrington afirmam que o uso que

esses indivíduos fazem de uma língua pode variar desde conversas informais até

apresentações acadêmicas. A proficiência e o uso estão relacionados, já que a

proficiência facilita o uso e é, ao mesmo tempo, promovida por ele. Brisk e

Harrington acrescentam, ainda, que o nível de proficiência de um indivíduo

bilíngüe e a freqüência de uso de cada uma das línguas pode variar durante sua

vida. As autoras não mencionam o tipo ou o tempo de duração do contato como

condições para o bilingüismo. Para elas, o grau de proficiência é o fator

determinante. Como discutirei posteriormente, só posso considerar João Ubaldo

bilíngüe se levar em conta o grau de proficiência alcançado por ele como fator

determinante para o bilingüismo, já que ele não nasceu nem foi educado em

ambiente bilíngüe e também não adotou outra língua, além do português, como

meio de comunicação por um período de tempo tão longo como Nabokov, Beckett

e Kundera, por exemplo.

A outra característica apontada por Tanqueiro como fator em comum entre a

tradução e a autotradução é o biculturalismo. Evidentemente, também julgo o

conhecimento acerca dos sistemas culturais envolvidos em uma tradução como

uma característica essencial do profissional da tradução, seja ele tradutor ou

autotradutor. O grau de conhecimento varia, contudo, em função do processo que

levou à construção desse conhecimento. Um indivíduo que morou por longos anos

em um país estrangeiro tem, necessariamente, um alto grau de conhecimento de

uma cultura, entendida como “um estilo de vida específico de um povo, um

período ou um grupo” (Williams, 1976, p. 90). Por outro lado, certamente há

tradutores que conhecem bastante bem uma cultura sem que tenham vivido no

país estrangeiro, adquirindo esse conhecimento de forma indireta, através da

leitura, do cinema ou da TV.

Em seguida Tanqueiro menciona que a autotradução, assim como a

tradução, requer três etapas anteriores à sua concretização: “a da leitura, a da

definição das estratégias e a da escrita” (2002, p. 47). Ela destaca, contudo, uma

diferença entre as duas. Para a pesquisadora, o autotradutor não precisará ler o

texto tantas vezes quanto um tradutor antes do início da tradução propriamente

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dita. Creio, contudo, que o intervalo de tempo que separa as duas tarefas, escrita

original e tradução, pode ser um fator complicador da autotradução. Ao traduzir

um texto muitos anos depois da publicação do original, o autotradutor precisará

reler sua obra com cuidado ou mais de uma vez. Nabokov, por exemplo, só

traduziu para o inglês o romance Despair (Otchayanie), escrito originalmente em

russo, trinta anos depois de sua publicação nessa língua. Assim, é improvável que

tenha iniciado a tradução sem relê-lo com cuidado ou até mesmo mais de uma

vez.

Tanqueiro menciona também o impacto do novo público-leitor sobre a

escolha da estratégia de cooperação textual, fato que é levantado pela estudiosa

alemã Verena Jung (2002), como veremos adiante. Para Jung, que estuda a

autotradução de textos acadêmicos, é a preocupação com o novo público-leitor

que motiva alterações introduzidas pelo autotradutor. Observei que as pesquisas

acerca da autotradução de textos literários tendem a considerar mais relevantes as

alterações que demonstram que a autotradução caracteriza-se, essencialmente,

pela oportunidade real que o autor tem de reescrever o original. As alterações

provocadas por uma tentativa de aproximação de um novo público-leitor receptor

são atribuídas à própria natureza da tradução e por isso tendem a ser, de certa

forma, pouco debatidas por pesquisadores da autotradução de textos literários,

que, no entanto, não negam a existência de tais alterações.

Tanqueiro apresenta ainda o confronto obrigatório do autotradutor com uma

dicotomia: ele deve marcar sua tradução como tal ou como se fosse um original.

Em capítulo posterior, Tanqueiro discute o trabalho de autotradutores sem

construir uma distinção clara entre as marcas que seriam aquelas de uma tradução

ou de um original. Entretanto, depois da leitura da tese, concluo que as marcas da

tradução são aquelas que evidenciam a tentativa do tradutor de mediar o diálogo

do autor com o leitor estrangeiro. Assim, quando o autotradutor muda o texto para

aproximá-lo do leitor, ele exerce a tarefa de tradutor, e as condições que motivam

as mudanças devem servir de modelo para o tradutor. A análise dos exemplos

anexados por Tanqueiro revela também as marcas da presença do autor no texto

autotraduzido quando ele age motivado por sua autoridade sobre o original,

alterando o universo ficcional através da inclusão ou exclusão de informações.

Estudiosos descritivistas demonstram que a atividade da tradução deve ser

vista de uma forma mais abrangente. Amparada nessa abordagem, incluo entre as

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marcas que sinalizam traduções ou originais os paratextos, definidos por Genette

(1997, p. 1) como os prefácios, posfácios, títulos, dedicatórias, ilustrações e outros

fenômenos que servem de mediadores entre o texto e o leitor e que apresentam a

obra ao público-leitor. Como bem aponta Tanqueiro, os comentários dos autores e

as capas de livros, por exemplo, sinalizam traduções ou originais. Julgo

importante ressaltar, contudo, que em alguns casos nenhuma menção é feita ao

nome (ou à tarefa) do tradutor, sendo a obra marcada como original. Por outro

lado, a inscrição translated by the author aparece em algumas edições, como a de

An invincible memory (Ribeiro, 1989) marcando, a meu ver, o texto como

tradução de status superior.

Finalmente, Tanqueiro discute as razões que a levam a crer que o

autotradutor é um tradutor privilegiado. Entre os motivos arrolados estão uma

suposta distância zero entre a subjetividade do autor e a do tradutor, a autoridade

inquestionável do autotradutor advinda do fato que ele jamais comete erros

originários de leituras impróprias e, ainda, sua liberdade para complementar (mas

não para reconstruir) o mundo ficcional e para decidir quando pode desprender-se

do texto original ou manter-se apegado a ele.

Considero difícil defender a “distância zero” entre autor e tradutor. É fato

que a mesma pessoa (de um ponto de vista meramente físico) produz os trabalhos.

Contudo, ela o faz em momentos distintos e, por isso mesmo, quem poderá

garantir que o sujeito que produziu os dois textos, original e tradução, estava

assujeitado às mesmas condições nos dois momentos? Quem poderá afirmar que o

processo de identificação (Hall, 2000) foi suspenso para que o mesmo sujeito

produzisse dois textos exatamente iguais? Afirmar a possibilidade da produção de

dois textos iguais seria negar o papel da cooperação (essencial) do leitor na

construção do significado (Eco, 1979b). Acreditar em tal possibilidade

significaria, finalmente, a crença na possibilidade de uma tradução que transporta

significados sem alterá-los. Além disso, há uma contradição entre as

características propostas. Se o autotradutor possui uma autoridade inquestionável

em relação à tradução e à obra original, como afirmar que ele não possui liberdade

para reconstruir o “mundo ficcional” que ele mesmo, na visão de Tanqueiro,

criou?

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Enfim, desejo chamar a atenção para o fato de que, em Tanqueiro (2002), a

autotradução é vista como tradução, sem maiores questionamentos15. Tal

generalização contradiz a natureza do estudo de caso que, sendo uma metodologia

de base qualitativa, tem como pressuposto básico a impossibilidade do alcance de

generalizações absolutas acerca do comportamento humano (v. capítulo 2). Em

suma, as descobertas de Tanqueiro poderiam tê-la levado a afirmar que os textos

produzidos pelos autores por ela estudados são traduções, mas não que todos os

textos traduzidos por seus próprios autores são traduções no sentido estrito. Suas

descobertas podem, porém, iluminar outras pesquisas sobre a autotradução e,

ratificadas ou retificadas por outras conclusões, poderão contribuir certamente

para a compreensão do fenômeno.

Analisada a fundamentação teórica da tese de Helena Tanqueiro, passamos

agora à discussão de sua análise de dados.

O primeiro passo de Tanqueiro é a apresentação das reflexões de Antoni

Marí acerca da autotradução. A pesquisadora transcreve parte de uma conversa

que teve com o autor sobre a tradução de seu próprio romance e, em seguida,

destaca alguns dos pontos que considera importantes. Apresento agora alguns

aspectos que merecem reflexão mais profunda por levantarem questões

importantes para a compreensão da autotradução.

Em primeiro lugar, destaco o caráter mecanicista que, segundo Tanqueiro

(2002, p. 63), Antoni Marí atribui ao processo de “criação lingüística”, dissociado

do processo de “criação ficcional”. No processo de criação ficcional “estão

implicados, entre outros: a criação e construção das personagens, das relações

entre elas, a construção e definição do espaço e do tempo, da perspectiva do

narrador e da coerência da intriga” (p. 64). Acredito que a visão mecanicista do

processo de criação lingüística demonstra a visão de língua como reflexo do

mundo, que tem por função primordial nomear os objetos (concretos e abstratos)

que lá estão e que tem um significado essencial comum a todas as línguas. Essa

visão universalista do significado provém das concepções platônica e aristotélica

do mesmo (Martins, 2005, p. 439-473) e gera entre outras conseqüências a visão

de que a tradução é uma atividade mecânica em que o tradutor é chamado a

substituir rótulos, uma atividade que pode ser exercida com rapidez e facilidade.

15 É interessante observar que a discussão proposta por Bassnett (1998) não é mencionada por Helena Tanqueiro (2002).

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Em segundo lugar, ressalto que, segundo Tanqueiro, Antoni Marí pretendeu

dar “ao texto castelhano uma autonomia absoluta como texto em castelhano”

(apud Tanqueiro, 2002, p. 62). Assim, o autor ratifica a autonomia que costuma

ser concedida à obra traduzida pelo autor. Os casos de Samuel Beckett e Vladimir

Nabokov, cujas obras traduzidas são textos absolutamente autônomos, ilustram

também esse ponto.

Finalmente, destaco as justificativas para as mudanças que Marí introduziu

na sua versão para o castelhano. O autor afirma que as diferenças são causadas

pela “leitura mais acabada” (apud Tanqueiro, 2002, p. 62) do texto original e que

resultou, por exemplo, na supressão de repetições. Outro motivo para as alterações

é o fato de que novas idéias ocorreram a Marí quando ele traduzia o texto.

Portanto, a atividade de traduzir o próprio texto dá ao autor a oportunidade de

reescrevê-lo, uma idéia recorrente no discurso acerca da autotradução (Coates,

1999; Cockerman, 1975; Connor, 1989; Filgueiras, 2002; Jung, 2002). Ou, talvez,

a autotradução dê ao autor a oportunidade de lapidar seu texto, tornando-o mais

adequado ao seu leitor-modelo ao mesmo tempo em que o torna mais perfeito aos

olhos do próprio autor.

O próximo passo de Tanqueiro é a apresentação dos exemplos que sugerem

a liberdade do autor em relação ao seu próprio texto, e outros que sugerem a

aderência a ele. O objetivo da autora é o de apresentar um modelo da boa

tradução, já que as opções do autotradutor bem como as condições que as

motivam devem servir, na sua opinião, de guia para o ensino e para a prática da

tradução. As modificações introduzidas pelo autotradutor referem-se à correção de

erros, à introdução de explicações, à prosódia, ao ritmo, ao estilo e à necessidade

de conferir maior coerência e coesão ao texto traduzido. Tanqueiro (2002) salienta

que “tal como qualquer tradutor, o autotradutor dá-se conta de que já não pode

entrar no domínio da criação das personagens, nem da intriga, nem do espaço,

nem do tempo, embora tenha autoridade para traduzir sem se manter apegado ao

texto” (p. 71). Entretanto, Tanqueiro acha no texto de Marí modificações que são

atribuíveis à liberdade do autor, quando ele “toma a ação descrita no texto original

apenas como um ponto de partida para realizar uma nova descrição” (p. 72). O

que Tanqueiro não esclarece, a meu ver, é se, ao tradutor que optar por seguir o

modelo fornecido pelo autotradutor, cabem as modificações desse tipo. Mas, se os

procedimentos do autotradutor devem ser adotados como modelo para a produção

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de uma boa tradução, concluo que o tradutor também poderá, por exemplo, tomar

liberdades e realizar novas descrições, desde que respeite as condições em que o

autotradutor as executou. Finalmente, Tanqueiro menciona que o autotradutor

mantém-se apegado ao texto original em momentos cruciais da intriga, sugerindo

que o tradutor também deve manter-se apegado ao original em tais momentos.

Tanqueiro conclui sua análise afirmando que “o tradutor só terá de ser ‘fiel’ à

construção do reino ficcional já previamente fixada; todo o resto passa por uma

transformação que implica uma nova construção e constitui a tradução” (p. 75).

Concluo que o que Tanqueiro faz através de sua análise, além de provar que

o autotradutor permanece fiel ao mundo ficcional (definido por ela) previamente

construído, é fornecer limites entre a tradução e a autotradução, já que à tradução

cabem apenas as modificações no nível do código língüístico, mas nunca no

universo ficcional. O que me parece de certa forma surpreendente é que, embora

Marí afirme que novas idéias surgiram enquanto ele traduzia o texto, esses

possíveis exemplos não são explorados por Tanqueiro. Creio que duas conclusões

são possíveis: (i) a prática tradutória de Antoni Marí pode não corroborar seu

discurso acerca da autotradução, o que não é uma atitude incomum; ou, (ii) a

análise de Tanqueiro é apenas parcial.

Tanqueiro parte, em seguida, para a análise do trabalho de Eduardo

Mendoza, autor e tradutor para o castelhano de Restauració – Restauración, uma

peça de teatro. A pesquisadora divide sua análise do texto em duas partes: a

análise do que denomina “texto secundário” – formado pelas indicações cênicas –

e o “texto principal” – os atos lingüísticos realizados pelos personagens em

comunicação direta entre si (2002, p. 76). Na tradução para o castelhano, a peça

sofreu modificações, que Tanqueiro atribui à “necessidade de resolver questões

surgidas depois da primeira encenação em Barcelona” (p. 77), antes da montagem

em Madri. O autotradutor faz acréscimos e omissões no texto secundário por

questões de correção e coerência, e também no “texto principal” por questões de

ritmo, coerência, coesão, correção e para melhorar a caracterização dos

personagens. Todos esses procedimentos são considerados por Tanqueiro como

típicos da tradução. Entretanto, há também na tradução de Eduardo Mendoza

alterações atribuídas à liberdade do autor: a omissão de partes longas de uma fala

e a substituição de palavras e expressões para reduzir o tamanho da fala de um

personagem. Destaco, entretanto, que não se pode esquecer que o tradutor de uma

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peça teatral costuma adaptá-la ao público-alvo, muitas vezes junto com o diretor e

até mesmo com os atores.

Finalmente, Tanqueiro demonstra que Mendoza por vezes opta por manter-

se apegado ao texto original em momentos cruciais da ação, carregados de

“grande intensidade dramática e lírica” (p. 94), que “exigem por parte do tradutor,

independentemente de ser também o autor, o respeito não só à intenção do autor

mas também à língua, ao modo como elabora o discurso dramático” (p. 94). A

tradução literal aparece aqui como um procedimento capaz de expressar a

fidelidade às intenções do autor e à língua original. Mais uma vez, segundo

Tanqueiro, os procedimentos do autotradutor assemelham-se aos do tradutor.

O terceiro capítulo da tese de Tanqueiro é dedicado ao estudo das marcas

culturais e dos procedimentos empregados por António Tabucchi. A pesquisadora

justifica a escolha do caso afirmando que pretendeu “comprovar se em

determinados casos de obras originais [...] os autores já realizam tarefas do

tradutor” (p. ii) e apresenta sua definição operacional do conceito de “marca

cultural”, que transcrevo em seguida:

sob o conceito de “marca cultural” entendemos todas as denominações ou expressões ou referências presentes num texto literário a analisar cujo valor conotativo e/ou carga afetiva (no macro-contexto da obra literária e no micro-contexto do segmento em que aparecem) são entendidas e partilhadas, de forma implícita, pelo autor apenas com os integrantes da área cultural a que se dirige a obra e que estão vetadas ou provocam associações diferentes aos integrantes da área cultural a que vai dirigida a tradução. (2002, p. 127)

A definição adotada por Tanqueiro leva em conta os fatores que o tradutor terá de

considerar na análise da obra literária para decidir a estratégia que adotará para a

tradução das marcas culturais. É importante destacar que a relação autor-leitor (a

que o texto se dirige) é um fator fundamental para a decisão do tradutor. Em

seguida, Tanqueiro cita os tipos de leitores empíricos a que o autor poderá se

dirigir, a saber: “leitores da mesma língua e cultura; leitores de uma determinada

cultura dentro da mesma língua; leitores de outra língua, cultura e civilização; a

Humanidade” (p. 129). Para Tanqueiro, o grupo de leitores empíricos imaginados

pelo autor terá influência sobre o processo de escrita. O autor que se dirige à

Humanidade, por exemplo, tenderá, segundo a pesquisadora, “a explicitar, de

acordo com estratégias e recursos por ele definidos, as referências a esse mundo

ficcional de modo a que qualquer hipotético leitor, de qualquer língua ou cultura,

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possa compreender a obra na sua totalidade” (p. 130). O papel do tradutor,

segundo Tanqueiro, será então facilitado, especialmente no tratamento das marcas

culturais, já que ele terá somente de copiar as estratégias e os recursos utilizados

pelo autor. O trabalho do tradutor estará restrito, nas palavras de Tanqueiro, “a

uma tradução mais no nível da língua e da literariedade” (ibidem). O que

Tanqueiro não explicita é como se pode chegar a uma conclusão a respeito do tipo

de público que o autor previu. Porém, se ele é a fonte de explicação para a obra,

deve ser também responsável pela elucidação dessa questão.

Tanqueiro segue citando outros exemplos. Entretanto, quero chamar a

atenção mais uma vez para os conceitos de leitor empírico e leitor-modelo.

Leitores empíricos, para Eco (1994, p. 8), “podem ler de várias maneiras, e não há

lei que diga a eles como devem ler”. Eles poderão inclusive “recusar o papel de

leitor-modelo e usar o texto segundo suas próprias intenções” (2001, p. 81). O

leitor-modelo, por outro lado, é “o tipo ideal que o texto prevê como colaborador”

(p. 9) e sua cooperação “governa a geração e a interpretação de textos em geral”

(1994, p. 4). Para Eco, o leitor-modelo imaginado pelo autor durante a criação do

texto poderá ser “capaz de interpretar as expressões da mesma forma que o autor

imaginou ao criar o texto” (1979b, p. 7). Quando Tanqueiro fala da

“Humanidade” como público-leitor e fornece exemplos da influência desse tipo de

leitor sobre o autor e sobre o tradutor, ela se refere ao leitor-modelo (e não ao

leitor empírico de Eco), aquele que tem papel determinante na seleção das

estratégias e dos recursos utilizados pelo autor durante o processo de geração do

texto.

Tanqueiro conclui, depois da análise da obra (original) Sostiene Pereira, que

o trabalho do autor – bilíngüe e bicultural – António Tabucchi é semelhante ao

trabalho do tradutor, pois, ao tratar as marcas culturais, Tabucchi precisa “fazer

compreender aos seus leitores (italianos) tudo o que seria implícito para os leitores

da cultura em que se desenrola a ação da obra (portuguesa)” (2002, p. 135).

Nesse sentido, Helena Tanqueiro considera que “o autor atua como um mediador

cultural, um tradutor com a autoridade que lhe confere o seu estatuto de autor”

(ibidem). Aos tradutores da obra para outras línguas, exceto o português, caberá

usar os mesmos procedimentos que o autor usou ao “traduzir” as marcas culturais,

já que este, quando executa o trabalho do tradutor, é o modelo a ser seguido. O

tradutor de Sostiene Pereira para a língua portuguesa, por outro lado, não deverá

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utilizar os mesmos procedimentos, já que poderá fazer referências mais

específicas. Um exemplo utilizado por Tanqueiro torna a situação mais clara.

Quando o tradutor para o português confronta-se com a expressão “centro (da

cidade)”, usada por Tabucchi no romance original e traduzida literalmente pelos

tradutores para o espanhol e para o catalão, ele prefere utilizar o substantivo

“Baixa”. Tanqueiro argumenta que António Tabucchi não usa o termo “Baixa” no

romance original porque seus leitores italianos não entenderiam a referência. Já o

tradutor para o português pode usá-lo porque, segundo Tanqueiro, ele sabe que os

leitores portugueses estarão aptos a entendê-lo. Tanqueiro quer demonstrar aqui

que os papéis de tradutor e escritor foram invertidos. O autor usou um

procedimento de tradução enquanto o tradutor português funcionou “como se

estivesse a escrever o original” (2002, p. 137). A razão para tal conclusão reside,

aparentemente, no fato de que Tanqueiro acredita que o tradutor é sempre um

mediador entre culturas que tem a tarefa de aproximar-se do leitor estrangeiro. A

meu ver, o que Tanqueiro destaca aqui é o que define a tarefa fundamental do

tradutor. Um autor como António Tabucchi, bilíngüe e bicultural, que tematiza

uma cultura estrangeira em seu romance, realiza a tarefa do tradutor porque usa

técnicas de tradução na referência a marcas culturais da cultura portuguesa para

servir de mediador entre esta e os leitores italianos a que sua obra se destina. O

tradutor de Sostiene Pereira para o português, por sua vez, teria atuado como

escritor porque usou referências culturais conhecidas de leitores inseridos na

mesma perspectiva cultural que serve de pano de fundo para o romance – ou seja,

este tradutor não atuou como um mediador entre culturas distintas.

Finalizo apresentando uma análise breve da tese de Helena Tanqueiro, já que

minhas críticas foram explicitadas ao longo desta seção, em que discuto o trabalho

da pesquisadora portuguesa. Em primeiro lugar, quero destacar o histórico

construído acerca de uma atividade ainda pouco conhecida por estudiosos da

tradução e da literatura. Situada entre os limites da tradução e da criação literária,

a autotradução foi negligenciada por muito tempo e apenas recentemente ocupa

algum espaço dentro dos estudos da tradução. Assim, a tese de Tanqueiro

contribui para o resgate de uma atividade em que estão envolvidos fatores como a

localização geográfica, por exemplo, além do debate acerca da natureza da tarefa

do autotradutor. Em segundo lugar, Tanqueiro seleciona aspectos relevantes em

sua discussão acerca da autotradução, como o ato de traduzir, a relação entre autor

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e tradutor e a relação tradutor-obra. Entretanto, o conceito de leitor-modelo é, por

vezes, usado de maneira diferente daquela proposta por Umberto Eco (1979a;

1979b). Evidentemente, é plenamente aceitável que o modelo de Eco seja

revisitado, reexplicado e até mesmo complementado de forma que a teorização do

semioticista italiano receba contribuições provenientes de outros pontos de vista.

Contudo, Tanqueiro não apresenta a reconstrução dos conceitos propostos por Eco

entre seus objetivos. O leitor-modelo de Helena Tanqueiro é importante porque,

para ela, o autotradutor o personifica. Só ele será capaz de reconstruir – em um

processo finito – o leitor-modelo imaginado pelo autor durante a geração da obra

original, já que só o autotradutor sabe o que quis dizer e, por isso, é um

privilegiado. Na verdade, a tese de Tanqueiro apresenta o conhecimento da

intenção autoral como fator que dá autoridade ao autotradutor para traduzir seu

próprio texto, diferentemente de Eco. Ao fazer isso Tanqueiro contribui de forma

decisiva para que a tradução seja vista como uma tarefa impossível, pois se é

preciso conhecer as intenções originais para que um texto seja corretamente

traduzido, o tradutor jamais poderá fazê-lo. Ela contribui também para a

sacralização da figura do autor, o “gênio” criador de significados originais, uma

característica recorrente das pesquisas acerca da autotradução.

3.4.2

A tese de Verena Jung: English-German self-translation of academic

texts and its relevance for translation theory and practice

Na sua tese de doutoramento, Verena Jung (2002) pretendeu atingir uma

melhor compreensão da autotradução e questionar uma noção abstrata de

equivalência usada como parâmetro para avaliação de traduções. Ela parte da

premissa de que os textos autotraduzidos são caracterizados por uma

“equivalência subjetiva” (p. 33), pois os autotradutores os consideram

equivalentes aos textos originais, ainda que reconheçam as alterações introduzidas

por eles no texto autotraduzido. Jung se pergunta: “e se os critérios do crítico não

forem relevantes para o autor do texto original?” (p. 13) e sua questão central de

pesquisa é: “o que o autor quis preservar, que nível de língua ou conteúdo ele

considerou importante na autotradução?” (ibidem). Observo, desde já, na pergunta

que orienta o trabalho de Verena Jung, a concepção do autor como fonte da

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tradução correta, aquela em cuja estrutura superficial estarão registradas as

alterações e procedimentos que servirão de modelo para o ensino e prática da

tradução.

Jung analisa o texto informativo definido por Katharina Reiss16 e escolhe o

gênero “escrita acadêmica” definido por Geoffrey Swales17, deliberadamente

deixando de fora de seu corpus os textos literários. Os acadêmicos selecionados

para seu estudo foram Hannah Arendt, Rudolf Arnheim, Stefan Heym, Peter

Hutchinson, Klaus Mann, Monika S. Schmid, Wolfram Wilss e Magdalena

Zoeppritz. Na verdade, a prática da autotradução entre acadêmicos de culturas

não-anglófonas é comum. Diante da hegemonia do inglês como língua do

universo científico e acadêmico, pesquisadores dessas culturas tendem a traduzir,

eles mesmos, resumos e artigos destinados, por exemplo, à publicação em revistas

e periódicos especializados. O caso dos acadêmicos alemães é um entre muitos,

portanto. Curiosamente, a autotradução de textos vistos como técnicos tem

despertado ainda menor interesse do que a de textos literários. De fato, a

autotradução segue uma tendência dos estudos da tradução, cujo foco de interesse

principal tem sido o texto literário.

Em sua tese, Jung pretendeu verificar que tipo de alteração era comum em

textos acadêmicos traduzidos pelos próprios autores. Para tal, usou um corpus

constituído por textos originais escritos pelos acadêmicos alemães citados acima e

as autotraduções dos mesmos textos para o inglês. Jung (2002) acredita, contudo,

que a comparação entre o texto original e o texto autotraduzido não fornecerá, por

si só, informação acerca das especificidades da autotradução (p. 43), e seleciona

um grupo de controle com os mesmos originais e as traduções destes para o inglês

executadas por aprendizes de tradução. Jung explicita sua intenção de analisar

trechos variados, não se limitando a introduções, conclusões e resumos

tipicamente analisados por pesquisadores interessados na análise comparativa de

gêneros textuais, porque pretende focalizar estruturas do texto acadêmico menos

estudadas até então. Sua escolha de um “tipo de texto homogêneo” (p. 35) deve-se

ao objetivo de comparar os resultados de sua análise, o que não seria possível se

16 A análise de Jung fundamenta-se basicamente nas seguintes fontes: REISS, K. Texttyp und

übersetzungswissenschaft – wiener vorlesungen. Wien: WUV, 1982. 17 A análise de Jung fundamenta-se basicamente nas seguintes fontes: SWALES, G. Genre

analysis – English in academic and research settings. Cambridge: CUP, 1990.

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escolhesse tipos de textos diferentes. Além do corpus principal, Jung constrói

ainda um corpus com três autotraduções feitas por aprendizes de tradução.

Julgo importante ressaltar, desde já, que o grupo de controle selecionado por

Jung não obedece a condição principal sugerida por estudiosos para os grupos

desse tipo: “o grupo de controle representa a mesma população do grupo

experimental” (Seliger e Shohamy, 1989, p. 141). Em outras palavras, ao

selecionar traduções executadas por aprendizes de tradução e compará-las a

autotraduções, Jung está comparando produções que não são, em princípio,

passíveis de comparação sem alguns ajustes, tais como critérios e pesos diferentes.

Voltarei aos grupos comparados por Jung mais adiante e, por ora, sigo

apresentando as etapas de sua pesquisa.

Em primeiro lugar, Jung (2002) realiza uma análise comparativa entre

originais e autotraduções feitas pelos acadêmicos alemães. Em seguida, ela

compara seus resultados às traduções dos mesmos originais feitas por seus alunos

de tradução. Seu próximo passo é a classificação das escolhas tradutórias em três

níveis: a macroestrutura textual18, a “arquitetura” sintática do texto19 e o processo

de referência20. Baseando-se em estudos contrastivos da tradução21, Jung

categorizou os motivos que levam tradutores em geral a selecionar determinados

procedimentos de tradução em um contínuo cujos pólos são as diferenças entre

sistemas lingüísticos de um lado e, de outro, a decisão pessoal de “reescrever o

texto em vez de traduzir o original” (2002, p. 49). Entre os dois pólos estão a

18 Na discussão deste nível, Jung fundamenta-se basicamente em: DICK, T. v. Towards a theory

of text grammars. The Hague: Mouton, 1972. 19 Na discussão deste nível, Jung fundamenta-se basicamente nas seguintes fontes: DOHERTY, M. Reliability of observational data: towards a theory of comparative stylistics. In: TTR 4 (1), Montreal, 1991; FIRBAS, J. Functional sentence perspective in written and spoken

communication. Cambridge: Cambridge University Press, 1992; LONGACRE, R. E. The

grammar of discourse. Nova York: Plenum Press, 1996. 20 Na discussão deste nível, Jung fundamenta-se basicamente nas seguintes fontes: BEAUGRANDE, R. Text, discourse, and process – towards a multidisciplinary science of

texts. Londres: Longman, 1980; VATER, H. Einführung in die textlinguistic-struktur, thema

und referenz in texten, München: Fink, 1992. 21 A pesquisa de Jung fundamenta-se basicamente nas seguintes fontes: WILSS, W. The science

of translation – problems and methods. Tübingen: Narr, 1982; MALMKJAER, K. Underpinning translation theory. In: Target 5(2), 1993, pp. 133-148; HOUSE, J. Translation

quality assessment – a model revisited. Tübingen: Narr, 1997.

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cultura, o público-leitor e a otimização, que é uma “mudança no nível da estrutura

ou da informação que parece melhorar a qualidade do texto” (ibidem).

Destaco aqui o cuidado de Jung na caracterização dos textos que selecionou

e sua opção pela construção de um corpus de tamanho relativamente pequeno,

justificada pela decisão de dar conta de uma situação específica (a autotradução

por acadêmicos alemães de textos escritos originalmente em alemão para o

inglês). Entretanto, julgo importante ressaltar que a pesquisadora alemã não

discute o processo de elaboração do corpus em detalhe e não esclarece se utiliza

ferramentas eletrônicas em sua análise. Jung não define ainda o corpus que

construiu ou sua adequação para o tipo de pesquisa. A meu ver, a pesquisadora

alemã usa corpora paralelos, que são “aqueles constituídos por um conjunto de

textos em uma língua e suas traduções para outra” (Olohan, 2004, p. 24).

Finalmente, julgo importante destacar mais uma vez que Jung compara as

traduções feitas pelos próprios autores àquelas feitas por aprendizes, de modo que

o trabalho de tradutores profissionais não é analisado por Jung, uma vez que os

autotradutores são considerados modelos para o exercício da tradução. São os

autotradutores que vão fornecer, para Jung, os procedimentos mais adequados

para lidar com problemas de tradução específicos, pois eles têm acesso à memória

de uma intenção (2002, p. 30). Observo assim que o autor de textos acadêmicos é

uma figura, tal como os autores de textos literários, “sacralizada”. Observo

também que, em suas teses, Helena Tanqueiro (2002) e Verena Jung (2002)

contribuem de forma direta para a “ressurreição da noção problemática da

intenção autoral” (Filippakopoulou, 2005, p. 25) sem, entretanto, rediscuti-la. Elas

partem da premissa de que o autor, conhecedor dessa suposta intenção, é, por isso,

o tradutor modelo, ou privilegiado.

Jung decreve as pré-condições que têm caracterizado o exercício da

autotradução e também os quatro tipos dessa modalidade de tradução que ela

identifica a partir da análise do trabalho de autores já estudados pela academia.

Passo agora à discussão desses pontos.

A primeira pré-condição é o bilingüismo, que já foi discutido anteriormente

em minha análise da tese de Tanqueiro. Jung afirma que ele tem sido visto como a

única pré-condição necessária para a autotradução, mas acrescenta que é o

aprendizado de duas línguas em momentos diferentes da vida ou o aprendizado

das duas línguas em contextos diferentes – o bilingüismo coordenado – que tem

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caracterizado os autotradutores. Por exemplo, Samuel Beckett e Vladimir

Nabokov aprenderam as línguas envolvidas em suas traduções em momentos

diferentes de suas vidas. Jung destaca ainda que o bilingüismo “pode também

permitir a publicação direta, sem a necessidade da autotradução” (2002, p. 17); ou

seja, o autor bilíngüe pode optar pela escrita do original em uma língua

estrangeira, como nos casos de Beckett e Nabokov. Creio que a opção pela escrita

em língua estrangeira ou pela autotradução pode depender também dos objetivos

do autor. Se ele pretende que seu texto acadêmico atinja públicos distintos, poderá

ser obrigado a autotraduzi-lo. Se, por outro lado, ele precisa se dirigir somente ao

público estrangeiro cuja língua ele domina, a opção pela escrita em língua

estrangeira é mais comum. Elizabeth Beaujour destaca ainda que

o processo de autotradução pode tornar-se inesperadamente angustiante e [os autotradutores] decidem, ainda que contra sua vontade, que é menos doloroso escrever diretamente na segunda ou terceira língua do que traduzir a si mesmos de uma língua outra. (1995, p. 39)

De fato, Nabokov e Kundera passaram a escrever na língua estrangeira. Beckett

alternou-se entre a escrita direta na primeira e na segunda língua, mas é o francês,

a segunda língua, aquela em que o escritor mais produziu seus originais. João

Ubaldo Ribeiro é outro autotradutor que demonstra desapreço pela atividade de

traduzir (e-mail, 24/09/2003), mas tem raríssimas produções originais em uma

língua estrangeira (e-mail, 08/07/2006). O fato de o escritor brasileiro não ter se

exilado, voluntária ou involuntariamente em um país estrangeiro, como nos casos

dos outros autores citados é certamente um fator decisivo para que ele não escreva

originalmente em uma língua estrangeira.

Além do bilingüismo, Jung discute a dimensão cultural. Para a autora, a

autotradução tem exigido um indivíduo bilíngüe com um “status cultural nas duas

comunidades lingüísticas” (2002, p. 18). Isso significa para a tradução literária,

segundo Jung, que os autotradutores são (ou foram) leitores de textos semelhantes

àqueles que produzem (ou produziram). Como mostrarei na biografia de João

Ubaldo Ribeiro (v. seção 4.1), o escritor brasileiro foi um leitor voraz de clássicos

da literatura universal.

A última pré-condição discutida por Jung (p. 20) é o fato de que autores de

textos acadêmicos foram também revisores dos textos que eles mesmos

traduziram. Hannah Arendt, que traduziu alguns textos de sua autoria do inglês

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(uma língua estrangeira) para o alemão, exigiu ser também a revisora de suas

traduções, pois para Arendt as tarefas de escrita autoral, tradução e revisão

deveriam pertencer somente ao próprio autor (p. 22). Tal exigência, segundo Jung,

pode “estar ligada a seu biculturalismo e a sua sensibilidade às convenções

textuais diferentes em línguas diferentes” (ibidem). Jung acrescenta que o fato de

que “o tradutor é também o revisor da tradução pode ser descrito como uma marca

do status da autotradução” (ibidem). Considero, assim, que Jung trata o texto

autotraduzido como um texto de status privilegiado, se comparado ao texto

traduzido por um tradutor profissional.

Observo também que Jung (2002) não restringe seus exemplos ao caso da

autotradução dos textos acadêmicos, já que ela inclui autotradutores de obras

literárias. É até certo ponto surpreendente que os autotradutores literários sejam

citados como exemplos, já que, a princípio, o número de autotradutores de textos

vistos como técnicos é superior. Entretanto, a escassez de estudos sobre

acadêmicos que traduzem (ou traduziram) seus próprios textos (técnicos) é um

fator que influencia diretamente a seleção de exemplos feita pela pesquisadora.

Acredito ainda que a caracterização das autotraduções literárias pode ser

complementada, o que passo a fazer agora.

Os autores que traduziram suas obras até hoje foram, de fato, escritores

bilíngües e biculturais. A menção ao poder de autotradutores durante o processo

de revisão é feita por Michelle Woods (2006) a respeito de Milan Kundera. Ela

destaca que a boa relação do escritor tcheco com seu editor atual e seu sucesso de

vendas dão a Kundera grande poder durante o processo de publicação (p. 25-61).

Samuel Beckett revisou suas peças de teatro (Cockerman, 1975) e o texto por ele

revisado é aquele que foi impresso na edição bilíngüe de En attendant / Waiting

for Godot lançada em 2006. Os escritores catalães e escoceses são também

indivíduos bilíngües e biculturais, mas não há menção na literatura ao seu direito

de revisar os próprios textos traduzidos antes de sua publicação. Entretanto, é

importante ressaltar que o bilingüismo, o biculturalismo e a possibilidade de

revisar o texto podem não ser somente pré-condições da autotradução. A revisão

do texto pode também caracterizar a tradução propriamente dita, ainda que possa

não ser considerada uma pré-condição da tradução nas condições atuais. Na

maioria das vezes a editora entrega o texto traduzido para que outro profissional o

revise, e é comum ouvirmos lamentos (ou reclamações) de tradutores que

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apontam os revisores como responsáveis por falhas nos textos traduzidos.

Entretanto, é também fato que alguns tradutores exigem examinar o texto

traduzido antes de sua publicação, o que não é comumente permitido pelas

editoras. O tradutor e poeta Paulo Henriques Britto é um dos (poucos) tradutores

que têm esse privilégio, segundo suas próprias declarações22. Além disso, a

depender da definição de bilingüismo utilizada, João Ubaldo Ribeiro, por

exemplo, poderá não ser considerado um indivíduo bilíngüe.Vejamos agora os

tipos de autotradução definidos pela pesquisadora alemã.

Jung (2002, p. 22-29) descreve quatro tipos de autotradução produzidos até

2002. O primeiro tem a língua-alvo como traço distintivo. No âmbito desse tipo,

ela divide a atividade em duas possibilidades: tradução para a língua materna e

tradução para uma segunda língua. A autora prossegue afirmando que a maioria

dos autotradutores “prefere escrever na segunda língua e depois traduzir seu

próprio trabalho para a língua materna” (p. 22) e descreve casos de filósofos

alemães radicados em outros países que se ajustam a esse tipo. Entre os autores

estudados por Verena Jung não há exemplos de versões para uma segunda língua.

É importante observar, entretanto, que Verena Jung não define “uma

segunda língua” (ibidem). Aparentemente, a autora considera a segunda língua

qualquer uma que não seja a língua materna do escritor. Jung não leva em conta a

distinção entre segunda língua e língua estrangeira levantada por lingüistas

estudiosos da aquisição de uma língua. Istvan Kecskes e Tünde Papp (2000, p. 2)

argumentam que o ambiente sociocultural onde o processo de aquisição se dá e o

background lingüístico dos aprendizes marcam a diferença entre uma língua

estrangeira (LE) e uma segunda língua (L2), e todas as outras distinções entre LE

e L2 derivam desses dois fatores. A aquisição de uma L2 se dá em um contexto

onde os aprendizes estão expostos à língua-alvo em tempo integral, enquanto a

aquisição de uma LE está restrita ao ambiente de uma sala de aula. Considero essa

distinção importante para o estudo do caso do autor João Ubaldo Ribeiro, como

veremos em capítulo posterior.

O segundo tipo de autotradução, segundo Jung, está dividido entre a

execução solitária ou não da tarefa. Ela classifica a autotradução em duas

22 A declaração acerca de sua atitude em relação aos textos que traduz foi proferida pelo poeta, tradutor e professor Paulo Henriques Britto durante aula no curso da Pós-Graduação em Letras da PUC-Rio, disciplina LET 2377 – Teorias lingüísticas e literárias da tradução, ministrado por ele e pela professora Maria Paula Frota em 2003.

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possibilidades: aquela realizada em colaboração com um tradutor profissional e

outra feita sem ela (2002, p. 24). Um exemplo da tradução em parceria é o de

Jorge Luis Borges e Norman Thomas di Giovanni. A tradução dos contos

incluídos em The Aleph and other stories (1978) foi executada por di Giovanni

em colaboração com Borges. Milan Kundera, por outro lado, usou trechos de

traduções antigas (feitas por outros tradutores) e fez uma espécie de compilação

quando traduziu, ele mesmo, A brincadeira para o inglês (Stanger, 1997).

A terceira possibilidade apontada por Jung (2002) abrange as autotraduções

“fiéis” e “livres”23. Contudo, a autora considera impróprios termos como “fiel” e

“livre”, usados no julgamento de traduções, pois revelam uma dicotomia rígida

entre dois pólos e condicionam a fidelidade à preservação da estrutura formal do

texto original, não demonstrando preocupação com o skopos, ou seja, a função

junto ao público-leitor do original e da tradução. Visando expandir a terminologia

da teoria funcionalista de Katharina Reiss e Hans Vermeer24, Jung classifica as

autotraduções em homoskopic, aquelas que têm um skopos semelhante ao do

original e, por isso, podem ter uma estrutura bastante semelhante ou fiel, e

heteroskopic, aquelas que precisam ter estrutura diferente do original para atingir

uma função distinta junto ao público-leitor. Ela argumenta ainda que será difícil

classificar uma autotradução como “totalmente homoskopic ou totalmente

heteroskopic” (2002, p. 26). De qualquer forma, a classificação proposta aplica-se

principalmente, a meu ver, ao tipo de texto analisado por Jung em sua tese de

doutorado, o texto acadêmico.

Finalmente, Jung distingue as autotraduções simultâneas daquelas que foram

feitas após certo intervalo de tempo (p. 26). Para a autora, o intervalo de tempo

que separa a escrita do original da tradução pode ser um fator decisivo para a

introdução de mudanças significativas na obra traduzida, mas os autores de textos

acadêmicos não estão entre aqueles que produzem traduções simultâneas (Jung,

2002, p. 26). Entre os autotradutores de textos literários, destaco que a

simultaneidade das duas produções contribui de forma decisiva para o processo de

escrita do original no caso dos escritores catalães (v. revista Quimera, 2002).

Alguns deles declaram que a tradução, se realizada junto com a produção do

23 Jung (2002) atribui a utilização dos conceitos “fiel” e “livre” a Beaujour (1995), que assim caracterizou as autotraduções de Vladimir Nabokov. 24 A pesquisa de Jung fundamenta-se basicamente em: REISS, K. & VERMEER, H. Grundlegung

einer allgemeinen translationstheorie, Tübingen: Niemeyer, 1984.

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original, interfere no processo de escrita criativa. A partir da perspectiva de Eco,

julgo que a oportunidade de escrever e traduzir simultaneamente o próprio texto

provoca a revisão e reconstrução do autor-modelo original antes que a este tenha

acesso o leitor-modelo que, a princípio, a obra se destina. Voltarei a esse ponto em

seção posterior, onde discuto o caso desses escritores.

A categorização proposta por Jung (2002) certamente contribui para a

compreensão do fenômeno da autotradução. A pesquisadora concentra-se,

contudo, no trabalho de acadêmicos que traduzem ou traduziram artigos

científicos, apesar de mencionar escritores como Vladimir Nabokov e Samuel

Beckett na sua exemplificação. Assim, creio que uma análise de sua categorização

em relação aos autores de textos literários é necessária. Vejamos como a

classificação se aplica aos autotradutores que discuto em meu trabalho sobre a

autotradução.

No caso das autotraduções de textos acadêmicos, a escrita na segunda língua

e a posterior tradução para a língua materna do autotradutor é mais freqüente

(Jung, 2002, p. 23). No caso das autotraduções de textos literários, por outro lado,

a língua da tradução varia. Uma rápida análise dos casos de Samuel Beckett,

Vladimir Nabokov e Milan Kundera revela que Beckett escreveu em francês,

língua estrangeira que estudou no Trinity College, em Dublin, e traduziu para o

inglês, a língua materna, grande parte de suas obras. Entretanto, a autotradução

para o inglês não foi o único caminho de suas traduções, já que também traduziu

algumas de suas obras do inglês para o francês25. Nabokov traduziu sozinho dois

romances de sua autoria (Despair e Laughter in the dark) do russo, sua língua

materna, para o inglês, língua com a qual afirma ter tido contato desde a sua

infância, como veremos adiante. O autor traduziu também Conclusive evidence: a

memoir e Lolita do inglês para o russo26. O caso de Milan Kundera difere dos

casos de Beckett e Nabokov. Em primeiro lugar, o autor nunca traduziu para a sua

língua materna, o tcheco, mas revisou todos os romances “originais” lá publicados

até agora. Sua autotradução de A brincadeira é resultado de seu próprio trabalho

de tradução e da revisão do trabalho de tradutores anteriores da obra para o inglês.

Ou seja, Milan Kundera traduziu para o inglês, uma língua estrangeira. Entre os

autores catalães, sujeitos da pesquisa de Helena Tanqueiro analisada

25 Uma breve bibliografia do autor será apresentada em seção posterior. 26 Uma breve bibliografia do autor será apresentada em seção posterior.

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anteriormente, há somente casos de escritores que produzem seus originais na

língua materna – o catalão – e traduzem para a segunda língua – o castelhano. Já o

caso dos escritores escoceses é mais complexo, pois o gaélico-escocês não é uma

segunda língua, nem uma língua estrangeira e nem tampouco sua língua materna

propriamente dita. O fato é que os escritores escoceses engajados na luta por um

idioma próprio – o gaélico-escocês – escrevem nessa língua e traduzem para o

inglês, a língua materna de muitos deles.

Em relação à execução solitária ou não da tarefa, observo que Nabokov

traduziu a maior parte de seus romances em colaboração com seu filho, enquanto

que Samuel Beckett traduziu sozinho grande parte de suas obras. O trabalho de

Kundera é o único caso que apresenta características distintas, já que o autor usa

traduções anteriores na elaboração daquela que é denominada a versão definitiva

de sua obra. Obviamente, a classificação da autotradução como um trabalho

realizado sozinho ou em colaboração com um tradutor profissional não pode dizer

respeito, por exemplo, ao processo de trabalho isolado em um escritório, um fato

de difícil investigação por questões de ordem prática. Assim, a palavra do autor e

a indicação nos paratextos dos livros publicados são fundamentais para a

classificação. Kundera escreve no posfácio de A brincadeira que teve como

“textos-fonte”, além do original, traduções anteriores de sua obra, o que nos leva a

classificar seu trabalho como uma tradução em colaboração.

Quanto à classificação em autotraduções simultâneas ou não, Steven Connor

(1989) nos mostra que Beckett escreveu e traduziu simultaneamente suas últimas

peças de teatro. Os depoimentos publicados na revista Quimera (2002) nos

informam que alguns autotradutores catalães (revista Quimera, 2002) escreveram

um ou mais originais e traduziram-nos simultaneamente. Christopher Whyte

(2002) demonstra que poetas escoceses adotam a mesma estratégia. Já a

investigação acerca do trabalho de Vladimir Nabokov e Milan Kundera revela que

há sempre um espaço de tempo (bastante longo, por vezes) que separa o original

da tradução. Considero, como mencionei anteriormente, que o fator de maior

interesse constitui o possível impacto que tanto a simultaneidade das produções

quanto o intervalo (prolongado) de tempo causam no texto traduzido.

Finalmente, acredito que outras categorias podem ser acrescentadas àquelas

propostas por Jung (2002), especialmente quando os autotradutores de textos

literários são o alvo da classificação. Tanqueiro (2002) sinaliza algumas

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possibilidades de classificação que levam em consideração a localização

geográfica e o status da língua da escrita original – minoritária ou hegemônica.

Considero ainda que o polissistema literário de origem do autor pode revelar uma

categoria interessante. O autotradutor traduz de um polissistema literário forte

para um polissistema literário fraco ou vice-versa? Essa classificação pode

constituir uma categoria importante para as traduções literárias, pois parece

natural, a princípio, que a autotradução seja uma demanda em polissistemas não

hegemônicos, que não têm autores conhecidos cujos textos sejam habitualmente

selecionados para tradução. Assim, os próprios autores precisam traduzir-se para

que suas obras sejam publicadas em países estrangeiros. E, na verdade, esse tem

sido um caminho percorrido por autotradutores que buscam a inserção em um

polissistema literário forte, como veremos adiante.

Outra categoria poderia distinguir entre autores canônicos e não-canônicos.

Parece natural que autores não-canônicos optem pela autotradução, já que as

grandes editoras não costumam se interessar pela tradução de textos de autores

desconhecidos do grande público, de modo que a autotradução nasceria de uma

dificuldade prática. E, de fato, vários autores não-canônicos optaram pela

autotradução para o francês como a única solução para que seus textos,

provenientes em geral de polissistemas literários não hegemônicos ou jovens,

conseguissem obter um “certificado de literariedade” (Casanova, 2002, p. 169-

185). Como afirma Pascale Casanova, “a fim de ter acesso a uma verdadeira

existência e a um reconhecimento literários” (p. 177), ou a fim de ter acesso à

literarização, Nabokov e Beckett, além de Rabindranath Tagore, traduziram seus

próprios textos para o francês, em primeiro lugar, sendo que Beckett jamais

abandonou a prática, mesmo depois de alcançar sucesso internacionalmente. Há

que se destacar aqui que Casanova atribui à língua francesa o caráter de “rampa de

acesso à literatura” (p. 174), porque ela foi vista por muito tempo como uma

língua mais literária do que outras; ou seja, Casanova atribui ao francês um valor

intrínseco e, por isso, essa língua foi considerada por muito tempo a “língua da

literatura” para a qual se devia traduzir, pois só assim um autor conseguiria ter

acesso à “república mundial das letras”. Conseqüentemente, vários escritores

tiveram seus textos traduzidos, por eles mesmos ou por outros tradutores, para o

francês em primeiro lugar. A discussão de Casanova sugere, portanto, que há

outros motivos para o exercício de tal modalidade de tradução, diferentes de

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motivos práticos tais como a falta de interesse das editoras. Voltarei ao tema da

literarização em seção posterior, quando discuto o trabalho de Nabokov, Beckett,

Kundera, romancistas catalães e poetas escoceses.

Mas, se os motivos práticos não são os motivos mais fortes, qual seria então

a motivação do escritor? O que leva um escritor famoso a traduzir seu próprio

texto? Terá ele motivações pessoais, profissionais, políticas? Além das razões, a

freqüência da tarefa pode oferecer outra categoria, já que há casos em que a

autotradução foi uma experiência isolada na vida de um escritor, como Julien

Green, por exemplo, enquanto Samuel Beckett fez dessa prática uma experiência

freqüente. Voltarei às razões e à freqüência da autotradução em capítulo posterior,

quando apresento os casos de Vladimir Nabokov, Samuel Beckett, Milan

Kundera, romancistas catalães e poetas escoceses.

Finalmente, acredito que a tipologia da autotradução de Jung (2002) (e a

possibilidade de introdução de outros critérios para a classificação desta

modalidade de tradução) reflete a complexidade do fenômeno. Como afirmei na

introdução a este trabalho, a autotradução não é um fenômeno simples, facilmente

explicável, e tampouco é uma atividade que se dá de maneira homogênea, apesar

das aparentes semelhanças entre os processos autotradutórios de vários escritores,

como demonstrarei posteriormente.

Jung tece, ao final de sua classificação, outras considerações importantes

acerca da autotradução. Para ela, o texto acadêmico autotraduzido não pode ser

visto como um novo original, ao contrário do texto literário que tem sido

apresentado como tal (2002, p. 30). Para a pesquisadora, as autotraduções são

baseadas na compreensão que o próprio autor tem de seu original após uma leitura

cuidadosa desse texto, e isso é o fator principal que diferencia as autotraduções

das traduções propriamente ditas. A principal diferença entre a tradução e a

autotradução, segue argumentando Jung, é que os autotradutores têm o melhor

acesso à intenção original. Apesar de reconhecer que eles não terão acesso total à

intenção original ou ao inner text, Jung argumenta que os autotradutores podem

acessar a “memória de uma intenção” (ibidem), que é impossível para outros

tradutores.

Depois de definir o “fenômeno da autotradução” (2002, p. 15-31) e

descrever seu objeto de estudo, Jung passa a analisar os dados que coletou. Já que

a tese tem como objeto de estudo os textos acadêmicos, suas conclusões não se

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aplicam, em geral, à autotradução de obras literárias. Por isso, apresento-as aqui

de forma bastante breve.

Em primeiro lugar, Jung analisou o nível macroestrutural, ou a “estrutura

global do texto”. Sua análise mostrou que os autotradutores modificaram seus

textos, reorganizando a estrutura dos mesmos, enquanto os tradutores aprendizes

evitaram a reestruturação. Jung afirma que as reestruturações demonstram que os

autotradutores “acreditam que a tradução para uma cultura e um público-leitor

diferentes demanda ajustes no nível da macroestrutura” (p. 93). Jung acrescenta

que os motivos mais freqüentes para as reestruturações são a otimização e a

revisão, estratégias motivacionais próximas do pólo individual do contínuo. Jung

aponta também para uma certa desvalorização do estudo comparativo das

macroestruturas textuais entre original e tradução, mas argumenta, baseada em

suas descobertas, que essa desvalorização não é apropriada. Por outro lado, os

alunos mantiveram-se apegados ao texto sem alterar sua estrutura original (divisão

em parágrafos e ordem de apresentação dos argumentos, por exemplo) por

acreditar que um tradutor deve reproduzi-la fielmente. Alterá-la é decisão que

somente o autor poderá tomar. Ressalto então que há algo que é visto como

especial no trabalho dos autotradutores. As alterações da estrutura do texto são

tidas por tradutores aprendizes como proibidas aos tradutores e, por isso, os

primeiros não as fazem. Assim sendo, há no texto autotraduzido marcas atribuídas

ao trabalho do autor. Considero ainda que um desdobramento interessante da tese

de Jung seria a comparação dos mesmos textos agora traduzidos por tradutores

profissionais. Assim, seria possível verificar se as marcas que os alunos-tradutores

atribuem ao trabalho do autor tendem a desaparecer do texto traduzido por

tradutores profissionais.

A análise da sintaxe (Jung, 2002, p. 94-168) também mostra que os

aprendizes de tradução traduzem a estrutura superficial do texto e se mantêm

próximos ao original, o que causa em algumas ocasiões a produção de textos não

equivalentes do ponto de vista comunicativo. Os autotradutores, por outro lado,

procuram preservar o propósito comunicativo ou a função do texto e o

reestruturam sintaticamente.

A análise do processo de referência (Jung, 2002, p. 169-223) demonstra

também diferenças entre o trabalho do autotradutor e o do aluno-tradutor. Jung

analisa procedimentos utilizados para a tradução de termos específicos de uma

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determinada área do saber: a generalização (o termo utilizado é mais geral do que

aquele usado no original) e a diferenciação (um termo mais preciso é selecionado

pelo tradutor; um termo é explicado em detalhe; um termo é integrado à nova

cultura sem ser traduzido). Jung analisa também a utilização de termos idênticos

ou de sinônimos e conclui que os autotradutores vêem nesse procedimento a

possibilidade de manter a rede de referências que preservará, em conseqüência, a

estrutura de argumentação original. Assim, a tradução não é vista como a simples

transformação de frases ou itens lexicais de uma língua para outra, mas sim como

uma transformação estrutural, que como tal demanda alterações importantes na

organização do texto. Jung conclui ainda que as autotraduções tendem a ser mais

explícitas e transparentes do que os originais. As traduções executadas pelos

alunos, por outro lado, são menos explícitas e transparentes no que diz respeito à

rede de referências. Jung afirma que “há evidências de que os alunos traduziam a

maioria dos termos isoladamente, sem considerar usos anteriores ou posteriores do

mesmo termo” (p. 223). Outra conclusão interessante apontada por Jung é a

tendência demonstrada por alunos para a opção pelo termo na língua de chegada

que é mais semelhante ao original sem considerar se tal escolha contribuía para a

construção da coerência textual.

Depois de sua análise crítica e minuciosa dos dados, Jung discute a

lingüística contrastiva e as estratégias da autotradução. Para ela, a lingüística

contrastiva é relevante, pois os autotradutores por ela estudados usam estratégias

motivadas por diferenças entre as duas línguas envolvidas na tradução. Ou seja,

apesar de não fazerem uma análise contrastiva entre as línguas envolvidas, os

autotradutores demonstram, na prática, que as diferenças entre sistemas

lingüísticos são fatores causadores de reestruturações. Jung argumenta que

estudos de corpora “poderiam ser usados para destacar as diferenças entre as

línguas inglesa e alemã [...] e poderiam promover a consciência sobre diferenças

funcionais e sistêmicas entre as duas línguas” (2002, p. 224), mas deixa de lado a

utilização dos corpora para o estudo das possíveis características intrínsecas ao

ato de traduzir. Na verdade, Maeve Olohan (2004) aponta que os estudos com

base em corpora que têm a lingüística contrastiva como referencial teórico

tendem a “presumir que as escolhas na tradução são determinadas, quase que

exclusivamente, pelo sistema lingüístico” (p. 27). A meu ver, essa é uma

tendência que se mantém na tese de Jung, que presume que os problemas

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encontrados nas traduções feitas por alunos se devem, única e exclusivamente, ao

fato de que os aprendizes desconhecem diferenças entre os sistemas lingüísticos

envolvidos e não reflete sobre a possibilidade de que as características dos textos

traduzidos pelos alunos possam ser vistas como próprias da tradução, como alguns

estudiosos demonstram (Laviosa, 1998; Olohan & Baker, 2000) ou, talvez

principalmente, como próprias de um estágio do processo de aprender a traduzir

pelo qual aprendizes de tradução passam.

Jung argumenta em seguida que o autotradutor desconstrói o texto original,

voltando ao estágio da composição (anterior ao estágio da escrita) antes de iniciar

a tradução. Ela segue afirmando que muitas das estratégias utilizadas pelos

autotradutores “sugerem que eles recorrem à intenção original, à linguagem

interna ou a um intertexto específico durante o processo de tradução” (p. 228) e

apóia-se no modelo de geração de mensagens de Levelt27 para argumentar que o

autotradutor tem acesso a um estágio anterior ao da escrita do texto, que

possibilita a descoberta de equivalentes na outra língua (p. 228). Para a

pesquisadora alemã, a tradução deve, em conseqüência, ser vista como uma forma

de composição cuja particularidade é a existência de um texto que guia o processo

(p. 228). Jung descarta as conclusões de pesquisas sobre a autotradução de textos

literários que vêem o processo de tradução de um texto pelo próprio autor como a

oportunidade de reescrita do original porque inclui a inserção de novas idéias.

Como ela demonstra na sua análise dos dados, os autotradutores de textos

acadêmicos, de forma geral, não introduzem argumentos inéditos em suas

traduções. O que caracteriza a autotradução dos textos acadêmicos para Jung é o

acesso ao processo de composição do texto. Os alunos-tradutores, segundo ela,

parecem ignorar esse processo, que envolve questões acerca da intenção de um ato

de fala, por exemplo, e da estrutura mais apropriada para expressar tal ato.

Parecem também acreditar que o autor já fez esse tipo de escolha e que a tarefa do

tradutor é, mantendo-se preso ao original, reproduzi-la literalmente (p. 228), sem

fazer uma leitura cooperativa, a meu ver, do texto levando em consideração o

leitor-modelo a que a tradução se destina.

27 Na sua discussão, Jung apóia-se basicamente em: LEVELT, W. J. M. Speaking – from

intention to articulation. Cambridge: MIT, 1991.

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É interessante ainda destacar a semelhança entre as premissas das teses de

Jung (2002) e de Tanqueiro (2002), já que ambas consideram o acesso à memória

da intenção original – ou à própria intenção – como característica do processo de

autotradução (no caso de Jung) e um privilégio do autotradutor (no caso de

Tanqueiro). Na verdade, a possibilidade de tal acesso tem sido considerada por

alguns teóricos interessados na autotradução. Brian Fitch, estudioso da obra de

Samuel Beckett, afirma que

o escritor-tradutor parece estar em uma posição melhor para recapturar as intenções do autor do original do qualquer outro tradutor porque essas intenções foram, na verdade, suas. Se geralmente não é feita nenhuma distinção entre duas versões de uma determinada obra, isso se deve ao fato de que elas parecem dividir uma intenção autoral que é comum. (1985, p. 112)

Assim, a pesquisa de ambas as autoras persegue uma hipótese freqüente nos

estudos da autotradução. Não é meu objetivo discutir a possibilidade de acesso a

uma “intenção original” ou possíveis privilégios em minha pesquisa. Entretanto, a

meu ver, é inegável que o autor, ao traduzir seu próprio original, lembre de

algumas das intenções anteriores ao processo de escrita em si, pois essas intenções

se originam em um contexto que o influencia. Em outras palavras, o autor é

influenciado por normas, coerções e poética vigentes no polissistema literário em

que ele está inserido, que governam a produção do texto e são, de forma

consciente ou não, registradas nele sob a forma de uma estratégia textual ou de

outras marcas (v. capítulo 2). Contudo, nem sempre o autor saberá explicar suas

escolhas, como afirma Eco (1994, p. 44). Portanto, seu trabalho de autotradução

será, a meu ver, um trabalho de interpretação baseado na reconstrução do leitor-

modelo registrado no texto.

Jung faz, finalmente, a análise das traduções realizadas por alunos de seus

próprios textos. Vale ressaltar que os alunos introduzem mudanças em suas

autotraduções que não introduziram em suas traduções dos textos escritos por

outros autores. Além disso, vale destacar que, nas produções desses alunos, há

pouquíssimas reestruturações. Entre elas, são mais freqüentes as mundanças no

nível da referência do que no nível da macroestrutura textual e da sintaxe (2002,

p. 246). Segundo Jung, é o conhecimento superficial acerca das diferenças entre

os sistemas culturais e lingüísticos envolvidos na tradução (p. 247) que motiva o

número reduzido de alterações desse tipo. Os dados também revelam, contudo,

que alguns alunos que nunca alteraram a ordem de apresentação dos argumentos

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nos textos escritos por outros autores, o fazem quando traduzem seus próprios

textos. Jung atribui a alteração da macroestrutura textual ao poder do autor para

editar seu próprio texto e, conseqüentemente, esse tipo de alteração não é vista

como tarefa do tradutor. Jung aponta ainda que uma maneira de construir a

consciência acerca das diferenças entre sistemas lingüísticos e culturais é pedir

que os alunos façam traduções de seus próprios textos ou comparem outras

autotraduções a traduções propriamente ditas.

A seguir, Jung discute as contribuições de seu estudo para os modelos

teóricos de Juliane House, Kirsten Malmkjaer, Wolfram Wilss e Susanne

Göpferich28. Jung aponta as vantagens de cada modelo e a vantagem de um estudo

sobre corpora de textos autotraduzidos. Para a pesquisadora, a maior contribuição

de seu estudo para a teoria da tradução é o fato de que o conhecimento do tradutor

acerca do público-leitor a que sua obra se destina tem influência decisiva no

processo de tradução. Com base na teorização de Umberto Eco, julgo que Jung

atribui um papel relevante à adaptação de um artigo acadêmico ao público-alvo a

que ele se destina. Ou ainda, considero que o leitor-modelo de uma tradução

demanda alterações significativas na estrutura do texto efetuadas com base no

conhecimento que o autor empírico – o tradutor – tem do público a que ele se

dirige.

Considero, como já mencionei anteriormente, que há um fator que Jung não

leva em conta ao analisar o trabalho dos aprendizes de tradução que servem como

grupo de controle na comprovação de sua hipótese de pesquisa: as traduções são

produzidas por alunos. Seu status de aprendizes e, portanto, de profissionais ainda

em formação, sugere que esses alunos podem não usar procedimentos que

tradutores profissionais experientes utilizam. Na verdade, é fato que tradutores

profissionais levam em consideração o público-alvo, sendo assim modelos

possíveis para tradutores em formação. Não considero que isso invalide a pesquisa

de Jung, pois ela parte da premissa de que os autotradutores são modelos porque

28 A discussão de Jung fornece constribuições para os modelos teóricos apresentados em: HOUSE, J. Translation quality assessment – a model revisited. Tübingen: Narr, 1997. MALMKJAER, K. Underpinning translation theory. In: Target 5(2), 1993, pp. 133-148; WILSS, W. The science of translation – problems and methods. Tübingen: Narr, 1982; GÖPFERICH, S. Textsorten in naturwissenschaften und technik – pragmatische typologie – kontrastierung –

translation. Tübingen: Narr, 1995.

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têm acesso ao “prototexto”, ou à formação de um texto “mental” que antecede a

escrita em si e, por isso, o uso de autotradutores como modelo é justificado.

É importante ainda considerar que Jung não vê os autotradutores como

modelos porque eles fazem escolhas mais apropriadas no nível da manifestação

linear do texto, mas sim porque suas autotraduções mostram o nível do

significado que eles julgam importante preservar para que o texto traduzido seja

equivalente ao original: o nível macroestrutural. Um texto traduzido que copia a

macroestrutura do texto original poderá não ser um texto equivalente, e os

autotradutores demonstram através de sua prática que as reestruturações

macroestruturais são necessárias para que o texto traduzido “funcione” junto ao

novo público-leitor.

Antes de apresentar a conclusão de sua tese, Jung discute ainda a relevância

da autotradução para o ensino da tradução. Para a pesquisadora, ao realizarem

uma autotradução, os alunos podem ser levados a perceber que a tradução não é

mera cópia, mas sim produção de um novo texto – assemelhando-se assim ao

processo de escrita – que deve corresponder à suposta intenção da mensagem

original, ao propósito ou função da tradução e também se adequar ao público-

leitor a quem o texto se destina (2002, p. 265).

Jung conclui sua tese reafirmando a necessidade de equivalência no nível

conceitual que demanda reestruturações da forma do texto. As reestruturações nos

níveis da macroestrutura, da sintaxe e da referência são necessárias porque cabe

ao tradutor apresentar em uma língua estrangeira um texto que seja adequado ao

novo público-leitor a que a tradução se destina. E cabe ao professor de tradução

usar os textos autotraduzidos e as descobertas da lingüística contrastiva para

tornar seus alunos conscientes de que um texto cuja organização macroestrutural

seja análoga à organização original nem sempre é aquele que melhor transmite o

sentido pretendido pelo autor.

3.4.3

A tese de Lillian DePaula Filgueiras: A invenção do original via

tradução, pseudotradução e autotradução

Lillian Virginia DePaula Filgueiras defendeu sua tese na Universidade de

São Paulo no ano de 2002. No trabalho intitulado “A invenção do original via

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tradução, pseudotradução e autotradução”, Filgueiras, professora da Universidade

Federal do Espírito Santo (UFES), teve por objetivo problematizar questões

referentes à originalidade, fidelidade e criação na atividade tradutória e discutir as

relações da tradução com o poder. Sua hipótese de pesquisa não é esclarecida a

princípio e é durante a leitura da tese em si que percebemos seu objetivo de provar

que escrita original, pseudotradução e autotradução não têm fronteiras distintas

entre si, mas são formas de levar adiante o que se pretende preservar.

Filgueiras descreve seu objeto de estudo como uma trilogia: uma

pseudotradução e duas autotraduções de Reinaldo Santos Neves, natural de

Vitória-ES, escritor, tradutor e atualmente responsável pelo Núcleo de Estudos e

Pesquisas da Literatura do Espírito Santo (Neples), órgão vinculado ao Programa

de Pós-graduação em Letras da UFES. O primeiro texto, o romance A crônica de

Malemort (1978), foi apresentado como a tradução (feita por Neves) de um

manuscrito em francês. Entretanto, somos informados por Filgueiras que tal

manuscrito nunca existiu (2002, p. 57) e que o romance é, portanto, uma

pseudotradução. A apresentação de um texto como uma tradução e a informação

de que não existe um original correspondente em outra língua definem a

pseudotradução, segundo Toury (1995, p. 40). Somos informados também de que

Neves escreveu a introdução e o prefácio para explicar as origens do (inexistente)

manuscrito, transformando os paratextos em parte da ficção. Anos mais

tarde, Neves produziu An ivy leaf: the Alfield manuscript e o apresentou como sua

tradução do mesmo manuscrito original escrito em francês. O texto foi concluído

no ano de 2001, mas até 2002 não tinha sido publicado. Já que sabemos que o

manuscrito não existe, concluímos, a princípio, que An ivy leaf é uma

pseudotradução. Filgueiras, no entanto, define o texto como uma autotradução,

pois ele tem por fonte, segundo ela, o original em português, A crônica de

Malemort. Voltarei a este ponto mais adiante e, por ora, ressalto mais uma vez que

An ivy leaf não foi publicado e, por isso, aparentemente, apenas um público-leitor

profissional restrito tem (ou teve) acesso a esse material e, é este público restrito

que classifica e apresenta o texto como uma autotradução, em oposição à opinião

do próprio autor, como será visto adiante.

Na terceira etapa do trabalho, R. S. Neves iniciou a tradução de An ivy leaf

do inglês para o português, processo em andamento quando Filgueiras escrevia

sua tese. Considero que Filgueiras teve oportunidade de presenciar um processo

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extremamente singular e dificilmente observável. De fato, desconheço qualquer

outro caso, além deste, em que o pesquisador tenha tido a chance de observar, de

forma tão próxima, um processo tão particular como a autotradução. Quero

destacar, contudo, que as características de A folha de hera, a autotradução para o

português, e do processo de autotradução não são discutidas em profundidade por

Filgueiras. Passo agora a destacar alguns pontos da tese que me parecem

relevantes para um contraste entre a visão de Filgueiras acerca da pseudotradução

e da autotradução e as visões apresentadas nas teses que discuti anteriormente.

Filgueiras inicia sua tese descrevendo A crônica de Malemort, o romance

(pseudo)traduzido. A pesquisadora informa que a trama se passa na Idade Média,

período de interesse para R. S. Neves e que constitui também foco de atenção para

ela, que pretende examinar o

período medieval com detida atenção, pois teremos oportunidade de verificar que, curiosamente, o modo de fazer literatura, de fazer tradução, adotado durante o período visitado tem mais semelhança com as produções pós-modernas do que se poderia supor. (2002, p. 12)

R. S. Neves é caracterizado brevemente como um autor pós-moderno e o modo

que escolheu para fazer literatura e para fazer tradução é objeto de interesse na

referida tese, pois se assemelha ao estilo dos escritores e tradutores da Idade

Média. Por isso, Filgueiras apresenta um extenso relato acerca das práticas de

escrita nesse período.

No primeiro capítulo de seu estudo, Filgueiras dedica-se ao exame do que

chama de visibilidade dos tradutores medievais que, via de regra, não viam o

original como limitador, por assim dizer, das traduções. Ressalto que, para ela, o

modo como os escritores medievais “entrelaçavam mais de uma fonte e

combinavam diferentes modos de produção de escritura ao copiar, compilar e

traduzir textos alheios e inseri-los no novo texto” (2002, p. 40) para homenagear

os clássicos do passado é extremamente importante. É esta a idéia que vai

informar a análise do trabalho de Neves e que caracteriza, segundo a

pesquisadora, os autores pós-modernos. Ela afirma ainda que “a estranha situação

de uma tradução sem um original correspondente não é caso incomum em período

anterior à invenção de Gutemberg” (p. 41). O advento da imprensa é descrito

como transformador da visão que se tinha a respeito do original, e Filgueiras

esclarece que a novidade faz surgirem questões como o plágio, por exemplo, um

problema com o qual o escritor medieval não se preocupava. Assim, inicialmente,

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a pesquisadora capixaba preocupa-se em demonstrar que o conceito de “original”

assumia características bastante distintas em épocas anteriores ao advento da

imprensa escrita e que traduzir e escrever, por exemplo, eram práticas que não

apresentavam limites entre si, de modo que a questão dos limites não era

preocupação no período medieval. Filgueiras destaca que o que antes era

considerado uma forma de homenagem, pode se tornar, na modernidade, um ato

criminoso (o plágio). Finalmente, considero importante ressaltar que a idéia de

que não há um único Original, mas várias fontes e diferentes modos de produção

que se combinam, é de extrema relevância para a tese da estudiosa capixaba.

No segundo capítulo, a pesquisadora analisa o primeiro trabalho de R. S.

Neves, escrito originalmente em português, mas apresentado como uma tradução

de um manuscrito reencontrado. Filgueiras afirma, em primeiro lugar, que A

crônica de Malemort inclui um número abundante de referências explícitas ou

implícitas, através de “colagens, de fragmentos de outras histórias que não só

datam do período medieval, mas também de literaturas mais próximas” (p. 46).

Segundo a perspectiva de Eco, considero que o autor-modelo prevê o leitor-

modelo que deve reconhecer essa estratégia textual e se referir a outras fontes

durante o ato cooperativo da leitura. Além dessas referências, R. S. Neves

reconstrói a filologia e nos fornece “a chave para melhor abrir o mundo medieval

recriado nas páginas de Malemort” (Filgueiras, 2002, p. 45), usando estruturas

sintáticas e vocabulário pertencentes a esse período sem, ao mesmo tempo, deixar

de se fazer compreender pelo leitor contemporâneo. Tais procedimentos, segundo

Filgueiras, fazem de R. S. Neves um autor “bastante participante das tendências

de um autor pós-moderno” (p. 46) e de seu romance “outro texto bastante curioso,

do ponto de vista lingüístico” (p. 47). A partir da perspectiva de Eco, considero

que R. S. Neves preocupou-se com os limites que o sistema lexical do período em

que o romance era ambientado representavam para seu texto e procurou respeitá-

los. Assim, nesta seção de sua tese, Filgueiras verifica que Neves usa práticas de

escrita comuns entre escritores medievais, o que faz dele um escritor pós-

moderno, pois a pós-modernidade, segundo a pesquisadora, se caracteriza por um

desejo de revisitar a Idade Média. Filgueiras argumenta ainda, ingenuamente a

meu ver, que uma simples visita a uma livraria norte-americana nos leva a

constatar esse desejo de escritores pós-modernos.

Depois de discutir as características de A crônica de Malemort, Filgueiras

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116

passa então a apresentar o perfil do que ela classificou como a autotradução de

Malemort para o inglês, intitulada An ivy leaf: the Alfield manuscript. Segundo a

pesquisadora, Neves optara pela tradução de seu romance medieval, mas logo

percebeu a chance de reescrever sua obra ou de “aperfeiçoá-la” (p. 52) e, a meu

ver significativamente a descreve como “um ‘remaking of’ Malemort” (ibidem).

Nesse remaking, R. S. Neves utilizou o mesmo enredo e a mesma técnica de

composição que havia adotado para a produção do texto em português, mas, ao

traduzir o romance, o escritor capixaba buscou referências em outras fontes da

literatura medieval em língua inglesa e usou estruturas sintáticas e vocabulário

característicos desse período e local (ibidem). Ou, segundo a perspectiva de Eco,

as condições de produção de An ivy leaf, diferentes daquelas que limitavam A

crônica de Malemort e que limitam o novo leitor-modelo da (auto)tradução,

exercem papel fundamental na geração do que R. S. Neves denominou remaking

de Malemort.

Filgueiras aponta brevemente algumas diferenças entre Malemort e seu

remaking, mas ressalta que o original se desdobra “em quase o triplo” (p. 54),

pois, assim como os tradutores medievais “sentiam-se livres para aumentar,

diminuir ou adaptar as obras que traduziam” em função de motivos pessoais ou

dos leitores a que as obras se destinavam (p. 56-57), Neves também assumiu essa

liberdade diante do original que ele mesmo havia produzido. Assim, concluo que

a inflação do texto de Neves não é relacionada a uma característica típica do texto

traduzido – a explicitação –, como estudos da tradução com base em corpora têm

comprovado, mas ao fato de que o autotradutor optou por procedimentos típicos

das práticas de escrita medievais ao refazer o original. Além disso, a meu ver,

Filgueiras põe em relevo a liberdade com que R. S. Neves se relaciona com sua

própria obra, característica apontada também por Tanqueiro e Jung como

“própria” da prática autotradutória.

Depois de apresentar as características do trabalho de R. S. Neves que o

tornam semelhante a um tradutor medieval, Filgueiras passa a descrever a visão

do autor acerca de Malemort e An ivy leaf. Em primeiro lugar, Filgueiras

apresenta a justificativa do autotradutor para os inúmeros acréscimos ao texto

traduzido, mencionando que os novos materiais ou as fontes pesquisadas durante a

tradução para o inglês de Malemort mostravam-se tão “preciosos em termos

dramáticos” (p. 61) que o autor simplesmente não conseguia deixá-los de fora de

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seu novo texto. Ou seja, ao elaborar An ivy leaf e pesquisar novas fontes, o

material que se apresentava fez com que Neves produzisse, a seu ver, um romance

ampliado em relação ao original, com referências distintas. Mais importante ainda

é a afirmação de R. S. Neves em artigo publicado na revista Contexto: “o romance

em inglês torna automaticamente obsoleto o romance em português” (1999, p.

115). Assim, nas palavras de Filgueiras, temos aqui “a singular situação de um

original ser considerado, pelo seu autor, como inferior em relação a sua tradução”

(2002, p. 63). Na verdade, é importante ressaltar que a situação descrita por

Filgueiras não é, na verdade, a única. Há outros casos em que novas edições ou

traduções são tratadas como “definitivas”. Milan Kundera declara suas revisões

para o francês como as edições que devem ser utilizadas como fontes para futuras

traduções. Além disso, considero importante ressaltar que An ivy leaf não foi

publicado e assim o obsoletismo de Malemort é, a meu ver, apenas potencial, já

que ele continua sendo o texto que pode ser lido por leitores não-profissionais.

Some-se a isto o fato de que An ivy leaf é um texto escrito em uma língua

estrangeira e, portanto, grande parte do público-leitor do texto-base não terá

acesso a ele.

É interessante ressaltar também que o status de autotradução que Filgueiras

havia atribuído a An ivy leaf é negado pelo autor, quando este declara que, na

verdade, a tradução ofereceu a ele a oportunidade de “melhorar” A crônica de

Malemort introduzindo muitas outras referências que fazem An ivy leaf triplicar

seu tamanho. Na ausência de uma análise comparativa minuciosa das

transformações que causaram tal melhora, posso apenas concluir que a ampliação

do “original” contribui para seu aperfeiçoamento. Considero ainda importante

ressaltar que o intervalo de tempo que separa as duas produções – 20 anos – deve

ser apontado como um fator de forte impacto sobre a autotradução. Quando

assume o papel de leitor-modelo 20 anos depois da primeira composição, o autor

coopera com o texto, o interpreta e, impulsionado por sua leitura modelo do

original e por um novo leitor-modelo, constrói, na verdade, novo original

autorizado por sua liberdade de autor.

Destaco também a responsabilidade do autotradutor pelos paratextos que

acompanham a obra. Os paratextos não são tão raros entre as obras traduzidas, e

em várias traduções publicadas a palavra do tradutor acerca do seu trabalho pode

ser encontrada. Há que se considerar também que, em geral, os paratextos tendem

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a ser publicados nas thick translations (Appiah, 2000, p. 417-429) ou nas obras

vertidas por tradutores cujo trabalho atingiu certo status entre os profissionais da

área. Entretanto, os paratextos tendem, nesses casos, a apresentar motivações ou

explicações dos tradutores acerca de seu próprio trabalho, o que não acontece no

caso de Reinaldo Santos Neves. Nos romances do autor capixaba, os paratextos

servem para ratificar a ficção e, nas palavras de Filgueiras, levam o leitor “a

questionar o que é fato, o que é invenção, e onde termina a História e começa a

ficção” (p. 74). O que não fica claro na tese é como o leitor é levado a tal

questionamento, uma vez que o romance é apresentado como uma tradução e não

há pistas nos paratextos de que o manuscrito original não tenha existido. Pelo

contrário, eles certificam o leitor da existência do original e explicam

detalhadamente como o manuscrito chegou às mãos do escritor.

Finalmente, destaco que o texto que Filgueiras considera uma autotradução

não é de simples categorização. An ivy leaf foi apresentado como uma tradução de

um manuscrito reencontrado, o que sabemos não ser verdade através das palavras

da pesquisadora. Portanto, poderíamos atribuir ao romance An ivy leaf o status de

pseudotradução. Entretanto, R. S. Neves parte de um texto-fonte de sua autoria (A

crônica de Malemort, uma pseudotradução), inclui inúmeras referências distintas

daquelas que fez anteriormente e triplica o “original”. Assim, creio que o que

temos é uma autotradução aumentada, que tem uma pseudotradução como texto-

fonte.

No terceiro capítulo da tese, Filgueiras discute as relações da tradução com o

poder e ressalta que o tradutor, inevitavelmente, participa “da construção de um

modo de fazer e agir” (2002, p. 71), mas não se refere ao papel da ideologia, da

patronagem e da poética nessa construção (Lefevere, 1992). Considero as idéias

de Lefevere bastante relevantes, pois a tradução é diretamente afetada por esses

sistemas que atuam nos polissistemas a que textos traduzidos se destinam.

Filgueiras defende que a tradução não é uma “atividade servil, mas um trabalho

que repercute na formação e transformação de seres e nações” (p. 72), mas não

discute a influência que os sistemas que regem os “seres e nações” exercem sobre

ela. Textos são selecionados para tradução por motivos diversos que incluem,

entre outras razões, o interesse do governo de uma nação, como discutirei

posteriormente em relação ao caso de João Ubaldo Ribeiro. Filgueiras não se

remete às idéias de Lefevere, mas confere ao fato de que “só se traduz aquilo que

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se quer levar adiante” (ibidem) o status de causa fundamental para a tradução e

para as escolhas de R. S. Neves.

Filgueiras acentua, em seguida, o critério da inventividade adotado por

Neves na elaboração de sua trilogia (p. 81), já que o escritor capixaba utiliza uma

tradição do passado (ao reanimar cenas de outros livros esquecidos por leitores

contemporâneos) assim como procedimentos literários de nossa

contemporaneidade (a técnica do manuscrito reencontrado, por exemplo). A

pesquisadora discute como um texto manifesta sua relação com outros e se refere

à hipertextualidade e à paratextualidade (Genette, 1997) como práticas

especialmente importantes que resultam na ampliação do original porque

provocam a inclusão de referências, explícitas ou silenciosas, a outras obras e de

prefácios mais elaborados. Em seguida, Filgueiras discute a visibilidade do

autotradutor e destaca mais uma vez o “uso da liberdade incondicional que o autor

tem em relação a seu próprio texto” (Filgueiras, 2002, p. 92), mas também ressalta

que ele “optou pelas restrições e obrigações que amarram o tradutor ao original”

(ibidem). No entanto, ela não explicita essas “restrições e obrigações”. Segundo a

pesquisadora, em An ivy leaf, o uso da liberdade em relação ao texto original

(Malemort) é característica marcante enquanto o “método literal” (ibidem)

caracteriza a autotradução do texto em inglês para o português (A folha de hera).

Filgueiras destaca o trabalho de tradutores profissionais, como Haroldo e Augusto

de Campos e Suzanne Jill Levine, em cujas palavras é realçado o dever do

tradutor de “subverter e recriar o original” (p. 93). Para Filgueiras, escrita original

e tradução devem ser vistas como atividades complementares, cujo produto final,

sempre e inevitavelmente, faz referência a outros textos anteriores. Ressalto aqui o

fato de que Malemort (aquele que foi produzido em primeiro lugar, ou o original)

perde lugar para o texto em inglês, que passa a exercer o papel de texto-fonte para

o autotradutor. Destaco também que não há na tese exemplos que caracterizem a

liberdade ou a fidelidade de Neves em relação aos originais e que poderiam ter

enriquecido a argumentação de Filgueiras. Finalmente, saliento que o romance A

folha de hera, autotradução de An ivy leaf para o português cujo processo foi

“assistido” pela pesquisadora, é raramente mencionado durante toda a discussão.

No quarto capítulo, Filgueiras destaca a “visível originalidade na tradução,

pseudotradução e autotradução” (p. 113). Para tal, a pesquisadora usa o argumento

da falta de originalidade do original, por assim dizer. Vejo aqui a menção

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implícita às idéias de Roland Barthes ou à “morte do autor” como criador de

significados originais. Para Filgueiras, a diferença entre escrita original e tradução

é que a fonte da segunda é visível e diante dela, o texto traduzido pode ser julgado

(p. 114). Entretanto, contraditoriamente, essa diferença não é tida como

fundamental e Filgueiras considera que não há limites entre a escrita original e a

escrita tradutória.

A relação da pseudotradução e da autotradução com a originalidade é

destacada no quinto e último capítulo da tese de Filgueiras. Para ela, a

pseudotradução aponta “as características de um tipo de discurso” (2002, p. 122),

já que o “pseudotradutor” deverá manter as normas lingüísticas que caracterizam

(ou caracterizavam) o tipo de texto que ele imita. Assim, uma pseudotradução de

um texto epistolar, por exemplo, deverá manter as características desse tipo de

romance se o autor tem por objetivo produzir uma pseudotradução plausível.

Filgueiras ressalta ainda as contribuições que a lingüística de corpus pode fazer

com “extensivos exemplos de como uma língua interfere em outra” (ibidem).

Entretanto, a relação que a pesquisadora estabelece entre essa área de estudos

lingüísticos e a pseudotradução não me parece clara. Em sua discussão ela

menciona os benefícios que o acesso à internet sabidamente traz para o tradutor e

para o ensino da tradução de forma geral e como o acesso a uma infinidade de

textos proporcionou a triplicação do original de Reinaldo Santos Neves, mas não

há menções aos resultados de estudos da tradução com base em corpora ou às

implicações que esses resultados possam oferecer para seu estudo de caso.

Ao discutir a relação entre original e autotradução, Filgueiras destaca a

“fidelidade na variação” na atuação de autores bilíngües estudados por Verena

Jung29. Destaca também o trabalho dos poetas concretistas que, segundo

Filgueiras, defendiam a “tradução servil e pedagógica durante a etapa da

elaboração, do estudo” (2002, p. 129) e uma fase final em que se prevêem

movimentos mais criativos, por assim dizer. Desse modo, creio que ela vê a

liberdade como característica principal da relação da autotradução com o original,

já que a autotradução “abre um leque de possibilidades referente ao processo de

criação envolvido na elaboração de um original e de uma tradução” (ibidem).

29 O texto a que Filgueiras se refere é: JUNG, V. Self-translation as an exercise in identity creation: the example of Stefan Heym and Klaus Mann. In: Post-graduate seminar, Coventry: University of Warwick, 1997.

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Filgueiras conclui de que o original “é sempre repetição que, para evitar a

monotonia, introduz algo diferente” (p. 131). Ela cita como no romance História

do cerco de Lisboa, de José Saramago, o acréscimo da palavra “não” suscita

conseqüências distintas e como o Dom Quixote de autoria de Pierre Menard, no

conto de Borges, permanece inalterado com relação à manifestação linear do

original, mas provoca novas possibilidades de interpretação. Ela não discute,

contudo, que os dois casos são distintos. No romance de Saramago, a

manifestação linear do texto original foi alterada com a introdução de um novo

item lexical. Já no segundo caso, é o leitor que, inserido em outro contexto,

munido de outra competência enciclopédica, interpreta o texto de forma distinta.

A tese de Filgueiras destaca a impossibilidade de originalidade que faz com

que textos traduzidos, autotraduzidos ou pseudotraduzidos sejam sempre formas

de reinventar algo que já foi dito e que se julga importante preservar. Assim, não

se pode estabelecer fronteiras entre essas práticas, opinião da qual não

compartilho, especialmente porque os casos de autotradutores contemporâneos

apresentam características distintas. À tese de Filgueiras falta, a meu ver, uma

gama mais variada de exemplos que pudessem retificar ou ratificar suas visões.

Finalmente, um de seus objetos de estudo, a autotradução de An ivy leaf para o

português, é raramente comentada e não há exemplos do processo que a própria

pesquisadora testemunhou.

Terminada a análise da tese de Lílian de Paula Filgueiras, passo então a

discutir o trabalho dos autotradutores Vladimir Nabokov, Samuel Beckett e Milan

Kundera bem como o dos romancistas catalães e poetas escoceses.

3.5

Autotradução e autotradutores: motivações e questões teóricas

Para compreender a autotradução será necessário também conhecer, na

medida do possível, a prática de autotradutores. Apresentarei inicialmente um

estudo sobre aqueles que foram obrigados pelas circunstâncias a optar pelo

bilingüismo e enveredaram pelo caminho da autotradução por motivos diversos.

Para tal estudo, será relevante, através de uma análise de relatos dos próprios

autores e de estudiosos da autotradução, discutir possíveis motivos que levaram

Samuel Beckett, Vladimir Nabokov e Milan Kundera à autotradução. Além das

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causas, será também relevante resgatar suas visões acerca da fidelidade ao

original. Incluirei ainda uma reflexão acerca dos autotradutores catalães e

escoceses, que oferecem uma perspectiva distinta para a análise da autotradução.

Deixarei de lado, por ora, João Ubaldo Ribeiro, pois o estudo de caso sobre o

autor brasileiro será apresentado em capítulo posterior.

3.5.1

O caso de Vladimir Nabokov (1899-1977)

Nascido em família trilíngüe, o escritor Vladimir Nabokov foi, desde sua

infância, falante de russo, inglês e francês. O próprio autor se descreve como

“uma criança trilíngüe normal, membro de uma família com uma grande

biblioteca” (http://www.libraries.psu.edu/nabokov/bio.htm). Quando a família

exilou-se na Alemanha, por motivos políticos, o escritor foi para a Inglaterra, onde

estudou no Trinity College, em Cambridge. Vemos, portanto, que a língua inglesa

sempre foi uma língua que Nabokov usou para se expressar, pelo menos

informalmente. De volta à Alemanha após a conclusão de seus estudos, trabalhou

como tradutor, professor particular e também como professor de tênis e, nesse

período de sua vida, escreveu originais em russo, pois seu público-leitor era

constituído de emigrantes russos. Tais romances, publicados de forma seriada em

jornais e revistas, eram, contudo, desconhecidos fora da comunidade russa de

Berlim e de Paris (Casanova, 2002, p. 175). Nabokov mudou-se em seguida para a

França, onde residiu por três anos, publicou em fascículos o romance A defesa

Lujine (escrito originalmente em russo) e assinou contrato para sua tradução para

o francês, depois da recepção entusiástica da crítica local (ibidem). Vemos assim

que a publicação na França marcou o início da carreira internacional do escritor

desconhecido até então, mas vemos também que foi a escrita original em russo (a

língua nativa) que primeiro foi conhecida e aclamada pela crítica francesa e que

causou a primeira autotradução. Da França transferiu-se para os Estados Unidos,

onde lecionou literatura russa e literatura européia na Universidade de Cornell e

literatura comparada no Wellesley College. Foi também nos Estados Unidos que

Nabokov residiu durante grande parte de sua vida e onde alcançou fama

internacional como escritor. Em 1961, mudou-se para a Suíça, onde colaborou

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com seu filho na tradução de seus primeiros romances do russo para o inglês e

onde permaneceu até a data de sua morte.

O exílio nos Estados Unidos é um período importante na vida do autor, pois

provocou uma mudança definitiva na sua produção literária: abandonou a escrita

na língua materna e passou a produzir seus originais em inglês. Ou, nas palavras

de Salman Rushdie, tornou-se um “escritor traduzido” (apud Casanova, 2002, p.

178), aquele que substitui a escrita original na língua materna pela escrita em uma

segunda língua. O exílio provocou também o início das traduções de seus

romances do russo para o inglês, feitas, a princípio por ele mesmo, mas na maioria

das vezes em colaboração com seu filho. A tradução, sozinho ou em colaboração,

de seus próprios textos e de textos produzidos por outros autores, acompanhou

Nabokov por toda a sua vida de escritor, desde a mudança para os Estados Unidos

até a morte na Suíça. Apresento agora uma breve bibliografia para que possamos

conferir o trabalho de Nabokov.

Os romances escritos originalmente em russo e traduzidos para o inglês

foram Mashen’ka (1926) / Mary (1970), Korol’, dama, valet (1928) / King, queen,

knave (1968), Zashchita Luzhina (1930) / The defense (1964), Podivg (1932) /

Glory (1971), Kamera Obskura (1933) / Laughter in the dark (1938), Otchaianie

(1936) / Despair (1966), Priglashenie na kazn’ (1938) / Invitation to a beheading

(1959) e Dar (1952) / The gift (1963). Entre eles, somente Podivg e Dar foram

escritos e publicados fora de Berlim. Podivg foi publicado primeiramente em

Paris e Dar, em Nova York. Entre os romances listados acima, somente as

traduções de Laughter in the dark e Despair são creditadas ao trabalho solitário de

Nabokov.

É interessante ainda observar que os romances de Nabokov listados acima (a

única exceção é Laughter in the dark) foram traduzidos e publicados depois do

enorme sucesso que Lolita (1958) alcançou nos Estados Unidos e também

internacionalmente. Tal sucesso deu ao escritor poder considerável na negociação

para a publicação de suas primeiras obras. Como veremos adiante, na discussão

do caso de Milan Kundera, o sucesso de público e crítica confere aos autores

grande poder sobre os possíveis desdobramentos desse sucesso. Um escritor

consagrado adquire poderes que outros dificilmente obtêm, como, por exemplo, o

controle total sobre as traduções para outras línguas. Lolita, uma espécie de

divisor de águas na carreira de Nabokov nos Estados Unidos, é também o único

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romance traduzido pelo autor para o russo (a outra obra traduzida pelo autor para

o russo é sua autobiografia). Ele escreveu (em inglês) e publicou Conclusive

evidence (1951), Pnin (1957), Pale fire (1962), Ada, or Ardor: a family chronicle

(1969), Transparent things (1972) e Look at the harlequins! (1974), mas não as

traduziu para o russo.

As memórias de Nabokov escritas em inglês merecem um comentário

especial. Conclusive evidence (1951) foi traduzido para o russo por ele com a

ajuda de sua esposa Vera (www.fathom.com/course/10701032/session2.html) e

publicado nos Estados Unidos em 1954. Pode parecer curioso que uma tradução

para o russo tivesse sido lançada nos EUA. Entretanto, as obras de Nabokov

haviam sido proibidas na União Soviética, e o escritor tinha um público-leitor

bastante grande entre os emigrantes russos nos EUA e na Europa. A autobiografia

foi então retraduzida para o inglês pelo próprio Nabokov e publicada sob o título

Speak, memory: an autobiography revisited (1967). O autor justificou a

retradução afirmando que a oportunidade de “reviver ‘recordações russas’ em sua

língua nativa aguçou sua memória e chamou sua atenção para deficiências

encontradas em Conclusive evidence” (www.fathom.com/course/10701032/

session5.html). Destaco as “deficiências” que, como discutirei adiante, foram uma

preocupação constante para o escritor e que, aparentemente, tornaram-se um dos

motivos de sua opção pela autotradução e pela tradução em parceria com seu

filho. Chamo ainda a atenção para o fato de que a autotradução é vista por

Nabokov como um momento importante do próprio processo de escrita, já que

serve para que novos acontecimentos assim como novas visões sobre antigos

acontecimentos sejam incorporados à autobiografia. Ou, a partir da perspectiva de

Umberto Eco, considero que a autotradução é um momento em que um novo

autor-modelo é registrado no texto traduzido, motivado pelo exercício de leitor-

modelo que o autor faz ao traduzir seu original.

Há relatos de pesquisadores que indicam que, quando Nabokov leu a versão

para o inglês de seu romance Kamera obscura, feita por Winifred Roy,

considerou-a “livre, sem forma, descuidada, cheia de erros e falhas, sem vigor ou

frescor”, escrita em um inglês tão monótono e desinteressante que não conseguiu

lê-la até o fim (Nabokov apud Scheiner, 2002a). Concluo que as chamadas

“deficiências” são uma das razões para a opção de Nabokov pela autotradução.

Verifico que, embora não sejam definidas pelo escritor, neste caso elas parecem

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referir-se às marcas de um estilo sabidamente variado, características do autor-

modelo, traduzidas, na avaliação do autor, de forma “monótona” – um defeito

sério para um escritor que gostava de usar vários recursos lingüísticos disponíveis

para tornar o texto mais denso e, propositalmente, difícil para o leitor. Verifico

também que a autotradução foi a forma encontrada pelo escritor para controlar as

traduções de seus romances e impedir que seu estilo fosse transformado no de

textos traduzidos “deficientes”, diferente do seu porque é “monótono”.

As “deficiências” são mencionadas também no texto da estudiosa do

trabalho de Nabokov, Jenefer Coates (1999), membro do corpo docente da

Universidade de Middlesex. Entretanto, no relato da pesquisadora elas são de

outra ordem. Coates sugere que Nabokov recorreu à autotradução por julgar que

os textos de autores russos eram “adaptados” para atender às expectativas do leitor

norte-americano. Conseqüentemente, o estilo desses escritores ficaria escondido

do leitor. Nabokov preferia traduzir seus romances ou trabalhar em colaboração

com seu filho, descrito como um “tradutor dócil”, que era responsável pela

primeira versão – literal – da obra na língua-alvo (Coates, 1999, p. 98). A

participação do autor dava-se através de uma revisão criteriosa da primeira versão

produzida por Dmitri, quando Nabokov introduzia as mudanças que considerava

necessárias. Coates (ibidem) aponta ainda o desejo de manter total autoridade

sobre a tradução como um dos motivos que levaram Nabokov a trabalhar com seu

filho. De fato, o controle de autores sobre as traduções de seus textos não é raro.

Entre aqueles que o exercem (ou exerceram) estão, por exemplo, Samuel Beckett

e Milan Kundera, como veremos adiante. As “deficiências” e o controle total não

são, contudo, os únicos motivos para a opção de Nabokov pela autotradução.

Como discuti anteriormente, Pascale Casanova (2002) fala da autotradução

como uma etapa comum e crucial do processo de literarização (p. 174), que

acontece quando “um texto proveniente de uma região desprovida literariamente

consegue se impor como literário junto a instâncias legítimas” (p. 172), tais como

a crítica literária, por exemplo. Na verdade, a autotradução tem sido, em geral, a

primeira etapa de um percurso comum entre os autores “excêntricos” – aqueles

inseridos em polissistemas literários não hegemônicos ou jovens – na tentativa de

alcançar reconhecimento literário fora das fronteiras de seus países de origem. À

autotradução seguem-se, em geral, a tradução em colaboração e, por fim, a adoção

da língua estrangeira como língua da escrita original. Esse foi o caminho

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percorrido por Nabokov que lhe garantiu a consagração e o conseqüente “acesso à

visibilidade e à existência literárias” (p. 171). Autor, a princípio, de textos em

russo, ele percebeu que dificilmente se tornaria um escritor consagrado se

continuasse a escrever em sua língua nativa e optou pela autotradução, que lhe

garantiu, conforme afirma Casanova, a independência de “traduções

incontroláveis” (2002, p. 178) e a literarização. Note-se, contudo, que o francês

foi abandonado como língua da (auto)tradução e o inglês tornou-se a língua, a

princípio, da autotradução e, depois, da escrita original. Considero, assim, que

outros fatores – no caso de Nabokov, ligados ao universo político –, além das

possíveis características que fazem de uma língua a “língua da literatura”, atuam

diretamente para a consagração de um escritor. Exilado nos Estados Unidos, o

inglês foi para Nabokov a língua que lhe garantiu o acesso à visibilidade e,

conseqüentemente, à “república mundial das letras”. Note-se também, e como

apontei na Introdução a esta tese, que a autotradução garante uma autonomia que

um texto traduzido por tradutores profissionais dificilmente alcança. Ou, nas

palavras de Casanova, ela é “uma maneira de manter o controle sobre todas as

transformações de seus textos e portanto de reivindicar uma autonomia absoluta”

(p. 179), pois é uma produção do mesmo sujeito: o autor do original.

Conforme demonstrei, Nabokov adotou o inglês como “língua original”,

mas esse não foi um processo indolor para ele, que afirma no posfácio de Lolita

que “sua tragédia pessoal [...] foi a necessidade de abandonar sua língua materna,

o russo maleável, rico, dócil por um inglês de segunda categoria” (1958, p. 317).

Apesar de notar na declaração do escritor russo o lamento pela perda que a escrita

em uma língua estrangeira pode causar, observo, de acordo com a biografia do

escritor, que, no período vivido nos Estados Unidos, Nabokov produziu – em

inglês – seus romances mais aclamados pela crítica. Ou seja, constato que, depois

de atingir a consagração no polissistema literário estrangeiro inclusive através da

escrita original na língua estrangeira, ele nunca mais escreveu em sua língua

materna.

Foi também nos Estados Unidos que o escritor dedicou-se à tradução de

obras dos escritores russos Mikhail Lermontov e Aleksandr Pushkin e escreveu

vários livros que discutiam criticamente outras obras literárias. O exercício da

tradução proporcionou ainda vasta reflexão, na forma de paratextos e metatextos –

prefácios, posfácios e artigos em jornais e revistas –, acerca da autotradução e da

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127

tradução propriamente dita. Vejamos então como Nabokov vê as duas atividades.

Na discussão acerca do trabalho do autotradutor, utilizarei a divisão proposta por

Coates (1999).

Segundo a estudiosa inglesa, as traduções de Nabokov dividem-se em três

categorias. A primeira apresenta Nabokov escrevendo originalmente em russo e

traduzindo textos de outros autores para sua língua materna. Nesse momento, a

tradução era uma oportunidade para aprender a “produzir literatura” (a tradução

teve papel importante na construção de uma cultura nacional russa, e os tradutores

da época traduziam textos na tentativa de apropriar-se de estratégias, técnicas e

estilos literários), assim como para os poetas pós-modernistas brasileiros a

tradução foi encarada como “atividade propedêutica praticamente compulsória

para quem pretende aventurar-se pela criação poética” (Moriconi, 1997, p. 304).

Também Susan Bassnett (1991) discute o papel que a tradução exercia entre os

romanos e descreve uma função semelhante àquela exercida pela atividade na

construção de uma cultura nacional russa. Bassnett afirma que “o objetivo de

enriquecimento da língua nativa e da literatura [romanas] através da tradução

levou a uma ênfase em critérios estéticos ao invés da ênfase em noções mais

rígidas de ‘fidelidade’” (p. 44). Ao traduzir romances de outros autores para o

russo, também Nabokov parece ter enfatizado os “critérios estéticos”, já que o

objetivo dos tradutores russos era o de importar, por assim dizer, técnicas e estilos

para a construção de uma literatura russa. Em outras palavras, podemos dizer que

a função propedêutica da tradução foi essencial nesse período da vida profissional

de Nabokov e de tradutores russos, em geral.

Na segunda categoria descrita por Coates (1999), Nabokov escreve em

inglês e traduz textos de outros autores para esse idioma. O fato de Nabokov

traduzir com um propósito e para um público específicos merece ser ressaltado,

pois suas traduções são usadas em suas aulas e lidas por seus alunos de literatura.

O tradutor escolhe um procedimento que julga apropriado para atender aos

objetivos que tem em mente: ele traduz literalmente, para que o texto e o estilo de

seu autor sejam “captados” de forma integral, conforme sua crença acerca da

tradução, e para que seus alunos conheçam o “verdadeiro” Pushkin, por exemplo.

Em seu prefácio à tradução de Eugene Onegin (de autoria de Pushkin) para o

inglês, Nabokov reafirma sua crença no fato de que tradutores e colaboradores

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deveriam ser “tão fiéis ao original quanto as capacidades sintáticas e associativas

da outra língua permitam” (1990, p. viii) e que

a pessoa que deseja trasladar uma obra prima para outra língua tem um único dever: a reprodução exata do texto inteiro, e de nada além do texto. O termo “tradução literal” é tautológico, já que qualquer coisa que não seja isso não é uma tradução verdadeira, mas uma imitação, uma adaptação ou uma paródia. (1992, p. 134)

Ele defendia ainda a inserção de muitas notas explicativas para “descrever as

modulações e rimas assim como todas as associações possíveis e outras

características especiais” (p. 143). Ou seja, as notas explicativas somadas à

tradução literal transmitem, na visão de Nabokov, o conteúdo “integral” do texto

original. É importante notar também que as notas tornam-se parte constitutiva do

romance traduzido, sem as quais o conteúdo “integral” do original não pode ser

conhecido. Noto ainda a visão de tradução como uma atividade que tem por

objetivo a transmissão neutra de informações contidas em um original e também

que o texto traduzido, em si, não será capaz de provocar novas interpretações,

uma vez que o tradutor já fez as leituras possíveis e limitou a interpretação através

da tradução literal e de suas notas. Observe-se também que, diferentemente de

Umberto Eco, para quem o autor empírico, de certa forma, atrapalha o ato

cooperativo da leitura, Nabokov considera o conhecimento acerca desse autor, que

“camufla sua própria experiência” (p. 139) em seus textos, como informação

relevante para o processo de interpretação. Ao tradutor cabe conhecê-la, se quer

traduzir fielmente. Vejo que, para Nabokov, a fidelidade envolve não só o respeito

ao texto original em si, mas também o conhecimento acerca dos acontecimentos

da vida pessoal do escritor. Só com esse conhecimento o tradutor pode captar as

intenções que o texto traz “camufladas” na forma de alusões, por exemplo, a

outros autores que serviram de influência ao escritor em questão.

Como demonstrei anteriormente (v. seção 2.1), não creio que o autor

empírico seja uma figura descartável do processo de interpretação. Considero

inegável que o conhecimento que se julga ter sobre um autor influencia o ato

cooperativo da leitura. Afinal, quando optamos pela leitura de qualquer texto

também o fazemos com base em nossa competência enciclopédica, que inclui a

competência intertextual e nosso conhecimento prévio. Leio um romance de João

Ubaldo, por exemplo, baseada em meu suposto conhecimento sobre o escritor e

sua obra. Quando um romance é lançado em um polissistema literário estrangeiro

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o público-leitor não tem, em princípio, a mesma competência enciclopédica, mas

os paratextos situam o autor empírico e o texto em determinada posição, o que faz

o leitor em potencial selecionar suas leituras e também se remeter àquelas

informações que acredita serem importantes para a interpretação da obra. Assim,

acredito que o autor empírico é uma figura inevitável, não em virtude de suas

experiências pessoais, mas sim porque o conhecimento acerca do autor empírico –

sua origem, seu estilo, sua posição em determinado sistema literário – faz parte da

competência enciclopédica do leitor, que gera expectativas em relação à obra em

questão e que é essencial para a interpretação. Veremos no próximo capítulo como

os paratextos descrevem e situam João Ubaldo Ribeiro e seus romances. Voltemos

agora ao caso da tradução literal empregada por Nabokov.

De acordo com Coates (1999), o resultado do trabalho de tradução do artista

russo era um texto que apresentava dificuldades para os leitores, já que as técnicas

que utilizava, como a reinvenção de nomes próprios, o emprego de termos

arcaicos e fora dos padrões, a manutenção de traços da língua original, entre

outras, causavam estranhamento. Além disso, as muitas notas dificultam o

processo de leitura porque demandam constantes interrupções. Assim, a prática de

tradução defendida por Nabokov não replicava os ideais da boa tradução e não

promovia uma leitura fluente, uma característica do texto traduzido geralmente

vista como essencial. Coates (1999, p. 96) argumenta que Nabokov era um

tradutor resistente à apropriação cultural imposta pela domesticação e usava a

tradução como instrumento para externar essa resistência.

Lawrence Venuti também faz objeções a algumas normas empregadas por

tradutores norte-americanos. Em seu livro Os escândalos da tradução (2002, p.

16), o estudioso discute o relato que Norman Thomas di Giovanni faz acerca das

suas traduções da obra do escritor argentino Jorge Luis Borges. Di Giovanni

comparava seu trabalho de tradutor de Borges à limpeza de um quadro, pois só

após a mesma um espectador será capaz de ver traços que antes estavam ocultos.

Em outras palavras, o tradutor Norman di Giovanni reprimia “peculiaridades

literárias da escrita inovadora de Borges” (ibidem) durante o processo de revisão

para adequar os textos do escritor argentino ao público-leitor norte-americano.

Nas palavras do próprio Venuti, a prática de di Giovanni atendia aos interesses do

público-leitor estrangeiro (norte-americano), que preferia uma tradução

domesticada, acessível, de leitura fluente, limpa como a pintura. Ou, segundo a

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perspectiva de Umberto Eco, di Giovanni atuava em resposta a um leitor-modelo

cujas demandas acerca de textos literários traduzidos eram bastante bem

conhecidas pelo famoso tradutor das obras de Borges e de outros autores

contemporâneos.

Como Nabokov, Venuti ataca as traduções domesticadoras. Para o

estudioso, tais traduções apagam o ar de estrangeiridade que uma tradução deverá

sempre manter. Venuti argumenta a favor de uma “ética da diferença”, uma

postura que “insiste que as traduções sejam escritas, lidas e avaliadas com maior

respeito em relação às diferenças lingüísticas e culturais” (p. 20). Nabokov

também advoga a favor do respeito em relação às diferenças lingüísticas e

culturais. Entretanto, Nabokov preocupa-se com o autor-modelo (Eco, 1979a e

1979b) e com os limites da interpretação. O escritor russo acredita que a tradução

literal e as notas explicativas são a única possibilidade de auxílio ao leitor para

que este possa reconstruir o autor-modelo presente no texto original. Essa não é a

posição de Venuti. Ocasionalmente, a tradução literal poderá ser utilizada como

procedimento de tradução, mas ele não é o único disponível para o tradutor que

tem por objetivo a estrangeirização. Uma postura mais ética em relação ao

estrangeiro inclui ainda, na visão de Venuti, a escolha de autores não-canônicos e

a seleção de textos, a seu ver, representativos de uma cultura, não necessariamente

os mais vendidos, por exemplo.

Nabokov queria que um público específico – os alunos de seus cursos –

compreendesse a literatura russa em sua essência. O autor achava que o estilo de

Pushkin, por exemplo, era por demais domesticado em traduções “embelezadoras”

que não reproduziam o “verdadeiro” estilo de Pushkin e da literatura russa.

Desconheço o tipo de impacto das obras traduzidas por Nabokov sobre seus

alunos, mas sei que seus cursos eram bastante procurados e que os críticos

literários, de forma geral, não apreciavam os textos traduzidos por ele (Coates,

1999). Antes de prosseguir minha discussão acerca da autotradução tal como

praticada por Nabokov, creio que seja importante refletirmos sobre a tradução

literal.

Douglas Robinson (Baker, 2001, p. 125) define a tradução literal como

aquela que envolve a substituição de cada um dos itens lexicais do texto-fonte por

equivalentes na língua-alvo. Como aponta Robinson, o resultado é “quase sempre

um texto incompreensível” (ibidem) e, também por isso, as traduções literais

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passam a ser vistas como aquelas que seguem a manifestação linear do texto

original sempre que a estrutura das línguas envolvidas permite. E assim, quando

as características estruturais não permitem uma tradução literal, outros

procedimentos deverão, forçosamente, ser adotados. Conseqüentemente, a

tradução literal pode ser compreendida, a meu ver, como um procedimento

técnico de tradução (Barbosa, 2004, p. 65) e, como tal, é uma das técnicas que

serão utilizadas por um profissional da área, que opte por um texto mais

“obediente” à manifestação linear do original. É possível que um tradutor que, a

exemplo de Nabokov, defenda a tradução literal como transportadora de

significados, opte por um texto traduzido cuja estrutura seja bastante próxima à

estrutura do original, mas inevitavelmente sua seleção incluirá outras técnicas

além da tradução literal. Outro aspecto costumeiramente ressaltado na definição

da tradução literal é o fato de que sua utilização depende do tipo de texto que se

traduz. Em geral, ela é considerada apropriada para a tradução de textos vistos

como técnicos que, aparentemente, não podem prescindir de nenhum significado

apresentado no original. Porém, creio que o aspecto mais importante não está na

definição da tradução literal em si, mas nos pressupostos epistemológicos que a

sustentam. A compreensão da tradução literal baseia-se na crença em um sistema

lingüístico cujos significados são inerentes à sua estrutura gramatical e lexical e,

portanto, estáveis. Conseqüentemente, os significados estão presentes na estrutura

superficial do texto e são imunes ao ato cooperativo da leitura. Desse modo, o

leitor não terá papel de construir significados, mas sim de resgatá-los, já que não

dependem de sua cooperação ativa para existirem, pois foram pré-selecionados e

estão embutidos, por assim dizer, nas estruturas e nos itens lexicais selecionados

pelo autor-modelo, presente no texto. Na opinião de Nabokov, as escolhas

registradas no texto refletem ainda a opção consciente de um autor cujas

experiências pessoais interferem diretamente no significado que o leitor deverá

descobrir. Ou seja, diferentemente de Eco, que defende a existência de uma

estratégia textual que provoque determinadas ações do leitor sem, no entanto,

prever a interpretação que este construirá durante a cooperação com o texto,

Nabokov sustenta que o autor já selecionou os significados e cabe ao leitor

resgatá-los.

Finalmente, a terceira categoria descrita por Coates (1999) apresenta

Nabokov como autotradutor (para o inglês e para o russo). Nessa situação, o autor

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parafraseia, reescreve e defende a introdução de alterações necessárias para a

comunicação com um novo público-leitor (o norte-americano ou os emigrantes

russos). Coates sugere ainda que tais alterações eram necessárias e permitidas, já

que o tradutor era também o autor e tinha, portanto, autoridade sobre o texto (p.

92). Além disso, como afirmou Nabokov, o processo da autotradução “envolvia o

autor maduro revisitando os frutos mais verdes de sua juventude” (p. 99). Assim,

o autor argumenta que as mudanças são necessárias, já que o autor empírico

sofreu transformações ao longo do tempo e quer registrar novas marcas em seu

próprio texto. É interessante observar as duas categorias de leitores para quem

Nabokov se dirigia como autotradutor. Ao traduzir para o inglês, apresenta a

literatura russa para leitores que talvez nunca tenham tido contato com a cultura

russa. Ao traduzir para o russo, por outro lado, escreve para leitores que estão

familiarizados com a cultura norte-americana. Suas estratégias podem ter sido

distintas, especialmente se considerarmos a preocupação com o público-leitor

demonstrada por Nabokov, como visto anteriormente.

Outro dado importante acerca do processo de autotradução de Conclusive

evidence é o fato de que a autobiografia foi escrita primeiramente em inglês,

traduzida em seguida para o russo e do russo novamente para o inglês. O título da

segunda tradução foi inclusive alterado para Speak memory: an autobiography

revisited. A perspectiva do relançamento, depois de o autor ter alcançado a fama

com o romance Lolita, demandava do escritor, na sua opinião, uma revisão de seu

texto. O autor empírico mais experiente somado a um novo público em uma nova

época exigia um “novo” romance, apropriado a novas circunstâncias. Verifico

aqui que o original apresenta-se em construção, revisado e reescrito para atender a

novos objetivos do autor. Assim, a tradução não é apenas o meio para atingir um

novo público-leitor, mas também um meio de reconstrução do original, que pode

estar sempre em transformação. Na verdade, o caso de Nabokov não é único.

Outros autores introduziram transformações importantes em suas obras antes de

reeditá-las. O escritor brasileiro Cassiano Ricardo, por exemplo, fez modificações

em sete edições de Martim Cererê e considerou a sétima edição a versão

definitiva da obra (Jobim, 1996, p. 31). William Butler Yeats também modificava

sua obra “periodicamente, rearranjando-a e revendo-a continuamente” (ibidem).

Diferentemente de Cassiano Ricardo e W. B. Yeats, Vladimir Nabokov usa a

tradução para construir a obra, e a idéia de um texto inacabado se repete. Ressalto

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também que a edição considerada definitiva por seus autores funciona como um

palimpsesto, já que apaga, por assim dizer, as edições anteriores.

Algumas observações finais são importantes. Verifico que a tradução foi

uma profissão exercida por Nabokov, que também refletiu teoricamente sobre ela.

Todos os romances (de autoria do próprio Nabokov ou de outros autores)

traduzidos para o inglês trazem um prefácio ou posfácio onde Nabokov explica e

defende suas estratégias de tradução. Como afirma Scheiner, (2002b, p. 7), “esses

prefácios tendem a incluir uma afirmação direta sobre aquela tradução ou sobre o

ato de autotraduzir de maneira geral”. O autor publicou ainda artigos sobre

tradução. Em um deles, publicado em 1941 no jornal The New Republic, ele “usa

sua experiência para descrever os perigos da tradução e a distância que separa

lingüisticamente o russo do inglês”. Verifico, portanto, que a prática da tradução

informou sua reflexão acerca do tema. Há ainda artigos de Nabokov publicados

em coletâneas sobre a tradução, tais como Theories of translation: an anthology

of essays from Dryden do Derrida (Schulte & Briguenet, 1992) e The translation

studies reader (Venuti, 2000). Assim, concluo que suas reflexões sobre a

atividade de traduzir eram respeitadas pela academia.

É importante ressaltar também a apresentação das obras autotraduzidas por

Nabokov. Segundo o site Zembla, site oficial da Sociedade Internacional Vladimir

Nabokov mantido pela Universidade do Estado da Pensilvânia, “Vladimir

Nabokov, ocasionalmente (mas nem sempre), revisou e aumentou suas primeiras

obras durante o processo de tradução” (http://www.libraries.psu.edu/

nabokov/bio.htm). Logo, o autor da biografia de Nabokov publicada no referido

site sinaliza que o texto publicado como tradução é diferente do original. A

pesquisadora francesa Christine Raguet-Bouvart afirma que, por causa das

habilidades lingüísticas de Nabokov (falante de três idiomas), “o leitor nunca sabe

ao certo se está lendo a versão original escrita pelo autor, uma tradução feita pelo

autor, uma tradução revisada pelo autor, ou o trabalho de um tradutor” (s/d), ou

seja, é difícil categorizar o objeto de leitura. As palavras de Raguet-Bouvart

indicam ainda que, geralmente, o leitor não é informado do status do texto

(escrito, traduzido ou revisado por Nabokov) que lê. Existe assim uma questão

ética latente no caso do escritor russo ainda não estudada pela academia.

Verificaremos mais adiante que o caso Kundera apresenta uma questão

semelhante. Contudo, ainda que, na maioria das vezes, não haja informação acerca

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do tipo de texto que está sendo apresentado ao leitor, alguns paratextos refletem a

dificuldade na categorização das obras autotraduzidas por Nabokov sugerida por

Raguet-Bouvart. A análise da contracapa de Despair ([1965]1989) revela que o

texto foi “revisado de forma cuidadosa por Nabokov em 1965 – 30 anos depois de

sua publicação”, sinalizando a diferença entre a obra em inglês e a obra original,

motivada possivelmente pelo espaço de tempo que separa as duas produções. O

leitor de The gift é informado de que a obra é a última escrita por Nabokov em sua

língua materna, mas o livro não explicita quem fez a tradução. É possível que o

fato de que o público-leitor de Nabokov já sabia que ele traduzia suas obras tenha

influenciado a decisão do editor. Concluo, de forma definitiva, que as edições não

explicitam uma classificação uniforme do texto nabokoviano e que tal fato indica

que o texto autotraduzido por Nabokov é, na verdade, um texto localizado entre a

escrita tradutória e a escrita original.

Nabokov é a autoridade absoluta sobre seus textos traduzidos e os descreve

como a série de traduções definitivas de suas obras. O autor russo, assim como

Milan Kundera, considera que não haverá outra tradução legítima, já que existem

traduções cuja legitimidade lhes é conferida pelo fato de terem sido

“violentamente revisadas” pelo próprio autor. Mais uma vez, as mudanças são

autorizadas e legitimadas pela autotradução. Percebo ainda nas declarações de

Nabokov uma preocupação com as marcas do estilo de um autor, às quais o

tradutor deverá ser fiel a esse estilo, traduzindo literalmente textos de autoria de

outros escritores e inserindo notas que ajudem o leitor a “captar” esse estilo.

Quando o próprio autor é o tradutor, entretanto, a fidelidade à manifestação linear

do texto não é uma preocupação a ser encarada.

Vejamos agora o caso do escritor irlandês Samuel Beckett.

3.5.2

O caso de Samuel Beckett (1906-1989)

Nascido na Irlanda de família de origem francesa (por parte da mãe),

Beckett mudou-se para a França quando jovem. Antes de fixar residência no país,

viajou por toda a Europa e voltou à França, onde passou a maior parte de sua vida.

Um indivíduo bilíngüe, Samuel Beckett optou pela autotradução por motivos que

não me parecem claros; não há relatos específicos sobre as razões que o levaram a

escrever seus originais ora em inglês, ora em francês, para traduzi-los em seguida

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ou simultaneamente. Como demonstrarei em seguida, Beckett produziu grande

parte de seus originais em francês, e a tradução para o inglês é atribuída a uma

espécie de dívida com a língua materna. Ele produziu, no início de sua carreira,

originais em inglês, mas não é meu objetivo aqui apresentar e discutir

detalhadamente toda a sua obra. Restringirei minha discussão a textos que

exemplificam a sua atividade como autotradutor e que demonstram como ela foi

constante durante sua vida.

Entre os textos escritos por Beckett originalmente em inglês está o romance

Murphy (1938), publicado na França em 1947, naquela que foi sua primeira e

única tradução solitária de um romance de sua autoria do inglês para o francês. Os

outros romances de autoria de Beckett foram, em sua maioria, escritos

originalmente em francês e traduzidos por ele mesmo para o inglês. São eles:

Malone meurt (1951) / Malone dies (1956), L’Innommable (1953) / The

unnamable (1958), Comment c’est (1961) / How it is (1964) e Mercier et Camier

(1970) / Mercier and Camier (1974). Molloy (1951), também escrito

originalmente em francês, foi traduzido para o inglês em parceria com o tradutor

Patrick Bowles, como o site da livraria virtual norte-americana Front list

(www.frontlist.com) nos informa, e publicado em 1955. Ressalto que Bowles

aparece citado em alguns sites (v. www.alibris.com; www.randomhouse.com;

www.babelguides.com) como o tradutor que trabalhou em colaboração com

Beckett, mas seu nome não é mencionado na edição em inglês de Molloy.

Ressalto, contudo, que a omissão do nome do tradutor não era um fato incomum

entre as editoras.

Entre as peças de teatro escritas originalmente em francês e traduzidas para

o inglês cito En attendant Godot (1953) / Waiting for Godot: tragicomedy (1955),

Fin de partie (1957) / Endgame (1958) e Acte sans paroles (1957) / Act without

words (1958). A peça, Happy days (1961), escrita originalmente em inglês, foi

traduzida pelo autor para o francês com o título Oh les beaux jours (1963).

Como afirmei anteriormente, ainda que diante de uma breve bibliografia,

noto que a tradução acompanhou Samuel Beckett por toda a sua vida de escritor.

Noto também que o processo de literarização discutido em relação ao caso de

Nabokov (v. seção 3.5.1) se repete na história de Beckett. Seu primeiro passo foi a

autotradução para o francês para, em seguida, adotar a língua estrangeira como

língua de expressão original na maioria de suas produções. Entretanto,

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diferentemente de Nabokov, que traduziu em colaboração com seu filho a maior

parte de sua obra, Beckett traduziu, na grande maioria das vezes, solitariamente. É

importante apontar também que a escrita original em francês e a subseqüente

tradução para o inglês é o processo mais comum para Beckett, e o próprio escritor

afirma que tinha predileção pela escrita original em francês, pois, segundo ele

mesmo, nessa língua “é mais fácil escrever sem estilo” (Cockerman, 1975, p.

156). Noto ainda que Beckett não retornou, por assim dizer, à escrita original na

língua materna.

Além de traduzir suas próprias obras, Beckett traduziu também textos

(literários ou não) de outros autores, como por exemplo um importante texto

escrito pelo pintor francês Georges Duthuit, publicado no catálogo de uma

exposição da Pierre Matisse Gallery de Nova York (1954). Traduziu também para

o inglês uma antologia de poesia mexicana organizada por Octavio Paz (1985) e

peças de teatro, entre elas The old tune (1976), de autoria do francês Robert

Pinget. Noto que Beckett adotou o procedimento mais comum, aconselhado a

tradutores em geral: a tradução para a língua materna. Há que se notar, contudo,

que, apesar de atividade constante, a tradução (de seus próprios textos e dos de

outros autores) não era encarada com entusiasmo. Beckett escreve em carta a um

amigo em julho de 1957 que está “farto de traduzir” e que “a batalha [da tradução]

é sempre uma batalha perdida” (Fitch, 1988, p. 9). Fitch afirma ainda que “não há

dúvida de que Beckett não escreve sistematicamente uma segunda versão de suas

obras motivado pela satisfação que sente em fazer isso” (p. 10). Assim como

Beckett, João Ubaldo Ribeiro também não apreciou o trabalho de autotradução e

decidiu deixar a tradução de seus romances para o inglês a cargo do tradutor

profissional Clifford Landers, como veremos no estudo de caso sobre o escritor

brasileiro. Julgo, assim, que é possível creditarmos a Beckett o desejo de controlar

as produções de seus textos e por isso a opção pela autotradução, ainda que ela

não fosse uma atividade que apreciasse. O controle sobre o texto autotraduzido é

apontado como uma vantagem, como vimos anteriormente, no caso de Nabokov.

Vejamos agora as autotraduções do escritor irlandês têm sido tratadas pela

academia. Scheiner (2002a) identifica nos estudos sobre a autotradução, em geral,

e sobre Samuel Beckett, em particular, uma tentativa de caracterização da

modalidade como a busca de uma obra final ideal da qual original e tradução

seriam rascunhos. Connor (1989, p. 28) afirma que “grande parte das omissões

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[em Mercier and Camier] parecem resultar da impaciência de Beckett com

passagens que considerava ineficientes ou repetitivas”. Assim, verifico que,

aparentemente, a hipótese do rascunho pode ser aplicada. Os romances de Beckett

são vistos, pela maioria dos estudiosos dedicados ao contraste entre suas obras,

como romances em processo, e a tradução, como uma etapa desse processo de

produção de um texto ideal, perfeito e, a meu ver, inalcançável. É importante

ainda salientar que Beckett elaborava suas traduções com base em diversos

rascunhos, isto é, qualquer texto produzido durante o processo de escrita daquele

tido como original podia servir de fonte para a tradução, e vários rascunhos

podiam informar, por assim dizer, a mesma tradução. Assim, os resultados de

pesquisas sobre a obra traduzida de Beckett sofrem uma restrição importante, pois

sempre haverá rascunhos que contribuem de forma decisiva para a estrutura

“final” do texto traduzido e aos quais nem sempre será possível o acesso. De fato,

em seu estudo sobre o trabalho de Beckett, Fitch (1988) apresenta sua análise

acerca de apenas dois textos – Bing/Ping e Still/Immobile –, cujos processos de

produção podem ser estudados em detalhe (p. 63-78), já que seus rascunhos

encontram-se disponíveis para análise. Considerada essa importante restrição,

passo a analisar outros trabalhos sobre a obra de Beckett.

Steven Connor (1989) comparou original e tradução do romance Mercier

and/et Camier e analisou as conseqüências das várias omissões temáticas e

“cosméticas” para o leitor. Examinemos agora algumas dessas omissões. Connor

afirma que passagens em que Mercier e Camier planejam a recuperação de suas

bagagens ou tramam seus caminhos futuros são omitidas da versão em inglês.

Faltam nessa versão os trechos que enfatizam a pobreza dos objetivos do casal

bem como de seus equipamentos. Outras omissões de pequenos trechos podem

parecer incompreensíveis ou pouco importantes, na opinião de Connor, se forem

isoladas do contexto de outras omissões. Entretanto, quando observadas em

contexto, contribuem para o distanciamento de Camier de atividades rotineiras e

diárias.

Brian Fitch (1988) também comenta as omissões e o impacto das mudanças

no leitor. Ao comentar L’Innommable / The unnamable, ele resume as

divergências entre os dois textos (p. 59). Frases inteiras foram omitidas da versão

inglesa – “Je ne me poserai plus de questions” e “On dit ça” – e também algumas

expressões como “tôt ou tard”. Beckett adicionou expressões adverbiais e repetiu

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outras. Segundo Fitch, tais mudanças não alteram o texto de um ponto de vista

semântico, mas causam efeito estilístico distinto daquele causado pelo original.

Ou, a partir da visão de Eco, considero que as marcas de estilo atribuídas ao autor-

modelo original são apagadas do texto autotraduzido.

Fitch discute ainda as “dezessete frases do texto original em inglês Company

[que] faltam ao texto francês” (p. 97). Samuel Beckett omite objetos, situações e

eventos do texto em francês. O movimento dos pés – “Stilled when finally as

always hitherto they do”; expressões adverbiais – “From time to time”, “However

roughly”, “again and again”; frases inteiras – “Vague distress at the vague thought

of his perhaps overhearing a confidence when he hears for example, You are on

your back in the dark”, e a hipótese da existência de um outro protagonista –

“May not there be another with him in the dark to and of whom the voice is

speaking?”, são omitidos da versão em francês. Tais omissões simbolizam, para

Fitch, que “estamos lidando com universos ficcionais distintos” (p. 99).

Conseqüentemente, há um impacto diferente sobre o público-leitor. Considero, a

partir da perspectiva de Eco, que Fitch percebe no texto autotraduzido de Beckett

a presença do autor-modelo original, aquele a quem são atribuídas mudanças no

universo ficcional que são vistas com desconfiança quando são feitas por

tradutores.

Há que se considerar também a questão da confiança, que Lefevere (1990)

apresenta como uma das categorias básicas da história da tradução no Ocidente,

além da autoridade, da expertise e da imagem (p. 15). Para Lefevere, o público-

leitor, que não conhece o original, acredita que a tradução é sua representação fiel

porque confia no especialista que faz a tradução e naqueles que a analisam (p. 14-

15). O teórico da tradução aponta, por exemplo, como a Septuaginta, considerada

“na realidade, uma tradução ‘ruim’” (p. 15), continua sendo a versão usada pela

Igreja Grega até hoje em virtude da confiança depositada no processo de tradução

que resultou na sua produção. Destaco a confiança como um fator importante para

a tradução, mas em especial para a autotradução. Para ilustrar o peso do fator,

destaco dois casos recentes: o primeiro é a publicação de uma nova tradução para

o inglês, feita por Gregory Rabassa, de Grande sertão: veredas, de Guimarães

Rosa; o segundo é a publicação da primeira edição bilíngüe de En attendant /

Waiting for Godot, de autoria de Samuel Beckett.

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Em matéria publicada no jornal carioca O Globo (4/11/2006), Miguel Conde

relata que Grande sertão: veredas, de autoria de Guimarães Rosa, ganhará uma

luxuosa edição e novas traduções para o inglês e para o espanhol. As razões

apontadas para o acontecimento são o cinqüentenário da publicação do romance

no Brasil e, como declara a agente literária alemã Ray-Güde Mertin, a falta de

qualidade da versão para o inglês, em especial. A nova tradução será feita por

Gregory Rabassa (que, no entanto, faz questão de ressaltar que discorda da

avaliação de Mertin), descrito como “o mais importante tradutor americano de

livros em português e espanhol”. Na matéria, Conde procura enfatizar a qualidade

dos trabalhos anteriores de Rabassa através da descrição elogiosa que faz do

currículo do experiente tradutor norte-americano e da citação das palavras de

Gabriel Garcia Márquez, que qualifica a tradução de Cem anos de solidão para o

inglês, feita por Rabassa, como “melhor que o original”. Em outras palavras,

considero que Conde sinaliza claramente, através de sua estratégia discursiva, que

os leitores de Rosa poderão confiar na nova tradução para o inglês porque ela será

feita por um tradutor experiente, com competência comprovada em seu ofício,

inclusive, por declarações de autores consagrados que tiveram suas obras

traduzidas por ele. Vejamos agora que a confiança também é um fator importante

para a autotradução.

Destaco que En attendant / Waiting for Godot (2006) é a primeira e única

edição bilíngüe de uma obra de Samuel Beckett. Considerando-se a “rivalidade”

entre os polissistemas literários francês e inglês, que “disputam” o escritor, não

julgo o fato surpreendente. Uma edição bilíngüe reconheceria Beckett, oficial e

explicitamente, como um escritor dividido, por assim dizer, entre os dois

polissistemas fortes e “rivais”30. Ressalto que a tradução publicada na edição mais

recente é aquela que Beckett fez e revisou pela última vez nos anos 1950, sem que

os editores vissem a necessidade de uma nova tradução ou de uma nova revisão.

Evidentemente, é possível que a tradução tenha sido avaliada tão positivamente

que não tenha necessitado de alterações. Por outro lado, considero principalmente

que, por ser o autor o tradutor de seu texto (e tal fato é informado ao leitor nas

páginas iniciais da edição bilíngüe), não haveria outro profissional que pudesse

30 Em Paris, enquanto pesquisava a existência de uma edição bilíngüe dos poemas de Beckett, por várias vezes fui “informada” que tal edição não existia porque o escritor havia abandonado a escrita em língua materna para adotar o francês como língua de expressão.

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despertar tanta confiança no público-leitor, especialmente se levarmos em conta

que a tradução é geralmente tida como uma travessia cultural que envolve perdas

e “traições”.

Voltando ao impacto distinto sobre o público-leitor apontado por Fitch,

ressalto que não há, em seu estudo, uma indicação acerca dos métodos que o

pesquisador utilizou para chegar a conclusões a respeito do impacto dos romances

autotraduzidos por Beckett sobre seus leitores. Entretanto, é indiscutível que as

mudanças introduzidas nesses textos determinam alterações significativas na

manifestação linear do texto com a construção de um leitor-modelo distinto do

original e, conseqüentemente, de um novo autor-modelo que requer do leitor

movimentos cooperativos distintos daqueles que o original requeria.

Evidentemente, podemos argumentar que uma tradução stricto sensu também

promove cooperação diferente. Porém, o autotradutor, um escritor consagrado,

tem o poder de introduzir alterações que não são permitidas ao tradutor porque

escapam aos limites do texto original. No caso dos exemplos citados acima, o

sentido literal dos vocábulos registrados na manifestação linear do texto pode ter

sido um dos limites que o autotradutor extrapolou sem que, com isso, fosse

tachado de traidor.

Beckett é tratado na França e na Inglaterra como um representante “oficial”

do cânone literário de cada país, e suas obras são estudadas e avaliadas como

originais nos dois países. Fitch afirma que “os críticos francófonos tendem, em

sua grande maioria, a tratar todos os textos de autoria de Beckett como trabalhos

originais em francês. Os críticos anglófonos, por sua vez, tratam seus textos como

originais em inglês” (1988, p. 124). Nessa mesma tradição, os estudos sobre a

obra de Beckett não consideram o fato de determinado romance tratar-se de

tradução (pelo próprio autor) de uma obra publicada originalmente em outra

língua. Fitch atribui a causa dessa recepção pelos leitores profissionais ao fato de

que o próprio Beckett traduziu os originais de sua autoria (p. 125). Assim,

continua Fitch, as traduções feitas por Beckett desfrutam de autoridade e

autonomia que as traduções feitas por tradutores profissionais poucas vezes

obtêm, já que estas são sempre vistas como dependentes dos originais com que se

relacionam (p. 125). Essa mesma opinião é proferida por leitores profissionais

escoceses (Whyte, 2002) que conferem às obras traduzidas pelos próprios autores

um status diferente. As mudanças introduzidas pelo autor não são questionadas, já

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que elas são sempre vistas como produções do autor, autoridade máxima sobre os

textos que produz. Portanto, creio ainda que toda a discussão acerca da obra

traduzida de Beckett sinaliza bastante claramente que os textos produzidos por

ele, mesmo quando partem de (no mínimo) um outro, pré-existente em outra

língua, não são vistos como traduções ou, pelo menos, que eles têm características

distintas das traduções executadas por tradutores. Considero também essencial

destacar que a idéia de lapidação de um texto que, como um diamante, vai sendo

aperfeiçoado ou burilado durante o processo de autotradução, está presente nas

reflexões acerca do trabalho de Beckett.

Destaco ainda as informações fornecidas, implícita ou explicitamente, nos

paratextos que acompanham os romances e peças do escritor irlandês. As capas e

contracapas de How it is e Mercier and Camier não informam que os dois são

traduções do próprio Beckett para o inglês. Já o texto que aparece nas contracapas

de Murphy e Endgame informam que Beckett himself fez a tradução para o francês

e para o inglês, respectivamente. A utilização do pronome reflexivo himself depois

do nome próprio enfatiza o fato de que o autor é o produtor da tradução e aponta,

a meu ver, a confiança que deve ser depositada no trabalho e o status superior

dessa modalidade de tradução.

Desejo salientar também que a fidelidade assume características singulares

no caso do escritor irlandês, já que ele não se preocupava, aparentemente, com a

busca de correspondências entre o texto tido como original (a obra que foi lançada

primeiro) e a tradução. Na verdade, como discuti anteriormente, existem vários

rascunhos anteriores ao texto publicado em primeiro lugar. Além disso, as

traduções publicadas eram ainda revisadas cuidadosamente pelo próprio autor.

Waiting for Godot, por exemplo, foi traduzido e publicado pela primeira vez em

1954 e revisado por Beckett pelo menos três vezes: antes das montagens em

Londres (agosto de 1955), Dublin (outubro de 1955) e na Flórida (1956). Desse

modo, considero que Beckett não parece preocupado com a fidelidade à letra ou à

manifestação linear do texto, mas sim, provavelmente, com a fidelidade ao ideal

de produzir um texto mais “perfeito”, que vai sendo burilado na medida em que é

lido e relido pelo autor.

É importante destacar também que o trabalho de autotradução de En

attendant Godot é, atualmente, objeto de estudo de Luana Pasi, doutoranda na

Universidade de Pavia, na Itália. Na comunicação apresentada em um dos

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seminários para doutorandos no Centro de Estudos da Tradução da Universidade

de Warwick (2006), a pesquisadora sugere, diferentemente de Fitch, que Waiting

for Godot sofre transformações que podem ser atribuídas ao trabalho de qualquer

outro tradutor profissional, e demonstra, amparada por resultados de estudos da

tradução com base em corpora, como o texto autotraduzido por Beckett tem as

marcas de uma tradução stricto sensu. Assim, verifico que, como mencionei na

introdução a esta tese, o tipo de texto pode influenciar de forma decisiva o

trabalho do autotradutor e, conseqüentemente, os resultados de estudos de caso

sobre a autotradução.

Finalmente, julgo importante definir dois conceitos que sobressaem na

discussão acerca do caso de Samuel Beckett: rascunho e lapidação no processo de

escrita autoral.

Normalmente considerado um esboço que serve de base para um texto

definitivo, o rascunho é um material visto como menos importante, por assim

dizer, ou até mesmo descartável, mas que sinaliza uma etapa no processo de

produção de um texto. No caso de escritores consagrados os rascunhos não são

descartáveis. Na verdade, eles tornam-se uma espécie de relíquia que, quando

descoberta, pode fornecer subsídios importantes para estudos sobre a produção

literária. Para Beckett, o rascunho é, definitivamente, um estágio da escrita, mas

assume extrema importância. Em primeiro lugar, sendo o autor irlandês

consagrado internacionalmente, todas as suas produções, rascunhos ou não,

adquirem especial importância, pois documentam um processo de acesso difícil: a

escrita autoral (de um escritor consagrado). Além disso, os rascunhos na verdade

formam, junto com os textos publicados, um texto “único” que vai sendo

transformado, durante o processo de escrita, e que se caracteriza pela

incompletude. Rascunho, texto “original” e autotradução, especialmente no caso

das peças teatrais escritas e traduzidas pelo próprio Beckett, foram textos

efêmeros até sua morte.

A lapidação é, tecnicamente, um tratamento a que são submetidas as gemas

a fim de obter a forma que mais ressalte a sua beleza e que proporcione o máximo

de brilho (v.www.portaldasjoias.com.br). Assim, através da lapidação, o joalheiro

aperfeiçoa algo que já tem um valor intrínseco. Julgo que o processo de

autotradução de Beckett semelhante ao processo de lapidação por várias razões.

Em primeiro lugar, o rascunho já é um produto de valor, porque foi produzido por

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um autor consagrado. Além disso, os estudiosos da obra beckettiana sabem que o

rascunho será “refeito” pelo escritor em momentos subseqüentes até se tornar,

momentaneamente, o “original”. Em segundo lugar, os textos produzidos depois

do primeiro rascunho não apagam ou substituem os anteriores, que permanecem

como possíveis fontes de referência na fase da autotradução quando Beckett volta

às fontes para decidir o que deseja manter ou alterar. Assim, verifico que a gema

descoberta inicialmente (o primeiro rascunho) continua “presente”, mas é

aperfeiçoada para que a forma do resultado seja mais perfeito ao olhos do autor

porque atende às suas próprias expectativas como leitor-modelo do “original”.

Depois de refletir sobre o caso do escritor irlandês, passo a discutir o caso do

escritor tcheco Milan Kundera.

3.5.3

O caso de Milan Kundera (1929)

Nascido em família de classe média alta, filho de um musicólogo e reitor da

Universidade de Brno, na antiga Tchecoslováquia, Milan Kundera escreveu seus

primeiros poemas ainda jovem. Durante os anos 1950, trabalhou como tradutor,

ensaísta e escreveu peças teatrais. Seu primeiro romance, intitulado A brincadeira

na tradução para o português, foi publicado em 1967 em tcheco e, posteriormente,

traduzido para vários idiomas. O romance parece ter proporcionado a Kundera a

sua única experiência de autotradução para o inglês, a julgar pelo resultado de

ampla pesquisa bibliográfica. Entretanto, é importante mencionar que Kundera

revisou todas as suas obras traduzidas para o francês, e muitas delas são hoje em

dia as “versões definitivas”, aquelas que devem servir de base para outras

traduções (Woods, 2006, p. 2). Mas voltemos por ora ao romance A brincadeira

que, antes de ser traduzido para o inglês pelo próprio autor, foi objeto de três

outras traduções realizadas por profissionais.

A primeira tradução de A brincadeira para o inglês, feita por David

Hamblyn e Oliver Stallybrass, foi publicada em Londres em 1969 pela editora

Macdonald. Segundo declaração de Stallybrass publicada em The New York Times

review of books (1970), “Hamblyn produziu uma versão fiel, literal e completa”

que Stallybrass revisou, “tornando-a mais livre e fluente” sempre que julgou

necessário. É importante apontar aqui mais uma vez a crença no papel da tradução

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literal, entendida como uma técnica que permite o resgate do significado exato e

fiel contido no original, e também a demanda por alterações na cópia considerada

fiel para que ela se transforme em um texto mais apropriado para o público-leitor

(Nabokov, 1990, p. viii). Assim, o produto final do primeiro estágio é, segundo

Stallybrass (1970), um texto fiel mas pouco fluente, que necessita uma revisão

(feita, neste caso, por outro profissional da tradução) para garantir a publicação de

uma tradução mais próxima do público-alvo, que deixa o leitor em paz e leva o

autor até ele (Schleiermacher, 2001). Tal aproximação se dá através da omissão,

por exemplo, além de vários parágrafos e frases, de um capítulo inteiro em que

Kundera discute o papel da música folclórica da Morávia31. Note-se que o

discurso dos tradutores de A brincadeira é perpassado pela idéia de que será

necessária a liberdade (ou menor fidelidade) em relação ao texto original para que

a tradução seja fluente e, conseqüentemente, “publicável”.

A omissão do capítulo em que o folclore da Morávia é discutido justifica-se,

segundo Stallybrass, pela preocupação com a produção de um texto mais próximo

dos leitores a quem a tradução se destina. Na visão do tradutor, um capítulo

dedicado à discussão de um traço da cultura local ocasionaria, provavelmente, o

desinteresse de leitores estrangeiros e obstáculos à leitura causados pelo total

desconhecimento de um aspecto particular de uma cultura específica. A atitude

dos tradutores que omitem traços de uma cultura minoritária é criticada e

classificada como um dos “escândalos da tradução” (Venuti, 2002). Entretanto, é

inegável que a produção de uma tradução fluente através da aproximação do

leitor-alvo (que causa muitas vezes o apagamento do estrangeiro) foi uma escolha

freqüente entre tradutores. Na verdade, nos dias atuais também encontramos

tradutores que defendem a aproximação do leitor. Erik Borten, tradutor

profissional desde 1999, declara, em entrevista publicada no livro Conversas com

tradutores (2003, p. 80-87), que “o acerto é quando o leitor consegue entender as

idéias escritas, sem perceber que se trata de um texto traduzido, [...]. Um texto que

não flui é um erro” (p. 85-86), e complementa: “o tradutor deve sair do seu

pedestal e procurar adequar-se à realidade do seu leitor” (p. 87). Borten ratifica,

no seu depoimento, a importância da fluência e da proximidade do leitor como

31 A Morávia é uma região da Europa central que forma hoje em dia a parte oriental da República Checa, onde se situa Brno, cidade natal de Kundera. (http://pt.wikipedia.org/ wiki/Mor%C3%A1via)

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características da tradução apropriada. Tal transformação, entretanto, não foi

aprovada por Kundera, conforme mostrarei em seguida.

Ao ler a tradução produzida por Hamblyn e Stallybrass (depois de sua

publicação), Kundera não concordou com as omissões e externou sua insatisfação

em carta publicada no London Times literary supplement, onde escreveu que

“capítulos haviam sido encurtados, reescritos, simplificados, alguns omitidos. A

seqüência de flashbacks foi alterada” (Kundera, 30/10/1969). Ou seja, o autor

reclamava da falta de fidelidade ao texto original e, como veremos adiante, ao

estilo que caracteriza o autor-modelo. Na mesma carta, um Kundera furioso

apelava ainda para que os leitores ingleses não lessem o romance que classificou

como resultado do trabalho de manipuladores (ibidem), uma traição, portanto, ao

original (em tcheco).

A insatisfação explícita de Kundera provocou a publicação das respostas do

editor e de um dos tradutores no mesmo suplemento literário. Nessas cartas, o

editor esclarece que havia enviado uma carta à Kundera, pedindo permissão para a

introdução das alterações, mas, diante da falta de uma resposta do escritor,

resolveu realizá-las sem seu consentimento explícito. Apesar de concordar que um

editor não está autorizado a alterar um original, o editor considera sua atitude

justificada, pois ele tem a obrigação de “sugerir qualquer coisa que, na sua

opinião, ajude a esclarecer a obra para o leitor” (MacGibbon, 06/11/1969). Na

visão de MacGibbon, portanto, a adequação ao novo leitor-modelo é fundamental.

Mas essa opinião não é, aparentemente, compartilhada pelo autor que reclama das

omissões e das modificações que “traem” o original. A reação de Kundera

provocou também a publicação de duas edições posteriores de A brincadeira,

revisadas com base nas questões levantadas por ele. A primeira, lançada nos

Estados Unidos em 1969 pela editora Coward-McCann, baseava-se na versão de

Hamblyn e Stallybrass e respeitava a seqüência original, mas tornava o texto mais

curto, para decepção do autor. A segunda, lançada em Londres em 1970 pela

Penguin Books, incluía todos os capítulos na ordem original, mas ainda era,

segundo Kundera (p. 319), “muito livre”. Mais uma vez, o escritor tcheco exige

fidelidade ao original, sendo que agora, respeitada a forma, o autor enfatiza que o

texto traduzido tem outro tipo de problema. De fato, Michelle Woods (2001, p.

208) aponta que as mudanças introduzidas nas diferentes edições da obra afetam a

caracterização dos personagens.

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Milan Kundera leu, então, a tradução para o inglês de dois trechos de A

brincadeira traduzidos por Michael Henry Heim, professor norte-americano de

Estudos Eslavos, e publicados em um periódico especializado. A tradução

agradou Kundera, que entendeu o trabalho de Heim como um gesto de

solidariedade, já que o professor havia traduzido e publicado trechos omitidos nas

versões anteriores. Assim, quando sua editora norte-americana decidiu publicar

nova edição do romance em 1982, Heim foi escolhido para executar a nova

tradução, e Kundera escreveu um prefácio onde definiu a edição como “a primeira

versão válida e autêntica de um livro que fala de estupro e que foi tantas vezes, ele

mesmo, violado” (p. 321). Noto aqui a importância da chancela do autor para o

lançamento da nova edição, especialmente quando as anteriores já haviam

causado tanta polêmica pública e também, mais uma vez, o apelo à confiança que

uma tradução aprovada pelo autor pode despertar.

Observo também que Kundera utiliza a metáfora da violação para referir-se

às traduções anteriores. Tal metáfora nos remete àquelas utilizadas por

pesquisadores inseridos na área dos Estudos Culturais, que demonstram como a

tradução tem sido vista como cópia inferior do original assim como a mulher,

colocada às margens da sociedade ao longo dos anos (Munday, 2001, p. 131). A

violação, um gesto criminoso, macula o original, marcando-o de forma profunda.

É um ato ilegal que deverá ser evitado. Se as traduções anteriores de A

brincadeira são comparadas pelo autor a uma violação, há aí uma condenação

explícita e veemente. A meu ver, traduções desse tipo devem ser, portanto,

evitadas, pois não respeitam as marcas do autor-modelo presentes no texto

original.

A avaliação de Kundera nos remete também à discussão de Lawrence

Venuti (2002), que considera como um dos escândalos da tradução a utilização de

estratégias que neutralizam ou omitem referências culturais estranhas à cultura-

alvo, na tentativa de apagar o estrangeiro do texto traduzido, conforme já

mencionado. Também Milan Kundera reclama da exclusão de trechos – como o

capítulo em que discute o folclore local – que apresentam valores da cultura-fonte.

Outras avaliações tomam, entretanto, caminhos distintos. Em resenha publicada

no jornal The New York Times sobre o romance A brincadeira na tradução de

Hamblyn e Stallybrass, Michael Berman, professor do departamento de Línguas

Eslavas da Universidade de Harvard, afirma que the translation succeeds quite

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well in reproducing the tone of the original, but omits whole sentences,

paragraphs, and – in one instance – an entire chapter […] Fortunately, The joke

retains its bite even with the omissions (1970). Deve-se observar que a resenha foi

escrita depois das cartas publicadas no London Times literary supplement. Assim,

a discussão pode ter influenciado o resenhista, que não deixa, entretanto, de

reconhecer que a tradução tem qualidades, apesar das omissões, pois “reproduz”,

de certa forma, o original. Mas a história da tradução do romance A brincadeira

continua. Em 1990, Aaron Asher, o novo editor de Kundera, propôs nova

publicação e o escritor decidiu, então, examinar a tradução de Michael Heim

cuidadosamente antes de autorizar mais uma edição. Ele verificou então que

as palavras eram, com freqüência, muito distantes daquelas que havia escrito no original, a sintaxe também era diferente; havia erros em todas as passagens reflexivas; a ironia foi transformada em sátira; as vozes distintas dos personagens-narradores foram alteradas junto com suas personalidades (Ludvik, aquele intelectual pensativo e melancólico tornou-se vulgar e cínico [...]; [o tradutor] produziu o tipo de tradução que podemos chamar tradução-adaptação (adaptação ao gosto da época e do público-alvo, ao gosto, em última análise, do tradutor)). Essa é a prática normal hoje? É possível. Mas inaceitável. (Kundera, 1992, p. 322)

Mais uma vez, Kundera reclama fidelidade ao texto original e reprova uma prática

de tradução que ele mesmo reconhece como comum: aquela em que a demanda

por um texto fluente se sobrepõe a qualquer outro objetivo de uma tradução (como

o diálogo intercultural, por exemplo) e faz com que a cultura estrangeira seja

apagada. Além disso, aparentemente, não suporta ver suas escolhas serem, na sua

opinião, desrespeitadas. Kundera, assim como Nabokov, aparentemente acredita

que existe a possibilidade de escolhas que reproduzam com exatidão o significado

original pretendido pelo autor.

Acredito ser essa a visão que o autor expressa em The art of the novel

(2000). Para Kundera, “o autor determinado a revisar as traduções de seus livros

se vê caçando hordas de palavras como um pastor atrás de um rebanho de ovelhas

desgarradas – uma figura deprimente para ele mesmo, e ridícula para outros” (p.

121). Tão ridícula que Pierre Nora, editor da revista Le débat e amigo de Kundera,

sugere que o autor escreva um dicionário pessoal para esclarecer o sentido que

certos termos adquirem nos romances de sua autoria, sugestão que o escritor

acata. O “dicionário” de Kundera, incluído em The art of the novel, deve ser parte

de uma competência particular: a do leitor-modelo da obra do escritor tcheco.

Além disso, o dicionário é visto por ele como uma possibilidade de aprisionar o

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sentido das palavras que utiliza e assim diminuir a distância que separa o original

da respectiva tradução. No dicionário, Kundera descreve desde contextos

históricos e culturais de seus romances – como a Europa Central no século XVII –

, ou as condições de produção que limitam a interpretação, até conceitos mais

abstratos como, por exemplo, ironia, beleza e leveza. Acredito que, subjacente ao

trabalho de elaboração do dicionário, está a crença em um significado que deve

constituir um limite para a interpretação. Este não é um significado literal no

sentido que Eco atribui ao termo, já que é um significado selecionado, por assim

dizer, por Kundera.

Antes de dar prosseguimento à discussão acerca do caso de Kundera, quero

ressaltar um dado bastante importante: o papel essencial da editora norte-

americana Nancy Nicholas da Knopf Publishing Group. Michelle Woods (2006)

destaca que muitos problemas apontados por Kundera resultaram do processo de

edição da obra e não da tradução propriamente dita (p. 25). Na verdade, a causa

que, segundo Woods, está no cerne de toda a polêmica que cerca as traduções da

obra de Kundera é a busca por um texto fluente, acessível ao leitor estrangeiro,

principal preocupação dos editores. Fica demonstrado claramente aqui que o

processo de publicação de uma obra envolve etapas que estão fora do alcance do

tradutor, com quem, como afirmei anteriormente, alterações são raramente

discutidas. Entretanto, a responsabilidade pelo produto final – o texto traduzido –

é atribuída ao tradutor que, como conseqüência, é tachado de traidor.

Kundera decidiu, depois do exame detalhado da tradução de Heim, revisar o

texto junto com seu editor Aaron Asher e a nova edição foi publicada em 1992.

Essa edição de A brincadeira, a quinta revisão, contém um posfácio onde Kundera

explica o processo de tradução. Ele afirma que “em fotocópias ampliadas da

quarta versão introduziu traduções palavra-por-palavra do original” sem,

entretanto, omitir as escolhas fiéis dos tradutores anteriores da obra. A versão de

1992 é, pois, uma tradução executada a pelo menos dez mãos, já que inclui

trechos traduzidos por três tradutores, além de Aaron Asher e do próprio Kundera.

A versão definitiva é, na verdade, resultado do diálogo entre o autor, o original e

as várias versões não-definitivas de A brincadeira publicadas anteriormente. A

capa do romance traz impressa a inscrição definitive version fully revised by the

author, expressando a autoridade inquestionável do autor sobre o texto traduzido.

Woods (2001) também aponta para a intervenção de Kundera como o fator

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preponderante para a qualificação da nova edição como a “definitiva” (p. 203)

sem, contudo, indicar o poder advindo do processo de revisão, impresso na capa

do romance. No meu entender, é a revisão do romance (processo que demanda e

inclui a autotradução) que promove sua adequação a um novo público-leitor,

inclusive porque este é, em geral, um estágio final e definitivo no processo de

publicação de uma obra.

A 5ª versão de A brincadeira traz o autor dizendo a palavra final sobre sua

obra, já que é ele quem escreve o posfácio sobre a tradução, ao mesmo tempo em

que omite informações a respeito dos tradutores dos lugares mais visíveis do livro,

tais como sua capa, por exemplo. Os nomes dos tradutores aparecem na nota do

autor, onde Kundera aponta “a incapacidade do tradutor em produzir uma cópia à

imagem e semelhança do original” (Filipova, 2005). Ou seja, Kundera enfatiza a

infidelidade das traduções anteriores e a fiel precisão do novo trabalho. Creio,

entretanto, que a fidelidade precisa ser relativizada, pois nem sempre o tradutor

será fiel ao “original”.

Rosemary Arrojo (1993) discute uma resenha de Nelson Ascher, a réplica de

Paulo Vizioli e tréplica de Ascher publicadas no jornal A Folha de São Paulo

sobre a tradução de uma antologia bilíngüe da obra do poeta John Donne. Arrojo

analisa os textos e, depois de discutir a visão essencialista do significado em que,

segundo ela, se baseiam as opiniões emitidas por Ascher e Vizioli, conclui que “a

tradução de um poema, ou de qualquer outro texto, inevitavelmente, será fiel à

visão que o tradutor tem desse poema e, também, aos objetivos de sua tradução”

(p. 24). Em artigo em que analisa o discurso sobre a adaptação, Cristina Carneiro

Rodrigues também destaca que “a partir dos anos 1980 e 1990, partindo de

diferentes pressupostos, [os estudos sobre a tradução] passam a salientar [...] a

relatividade da fidelidade” (2005, p. 899). Será necessário, portanto, que nos

perguntemos a que os tradutores em geral e autotradutores em particular são fiéis

em suas traduções. Sendo o trabalho de autotradutores o objetivo principal desta

tese, vejamos como a fidelidade é encarada.

Na visão de Nabokov, a fidelidade deve ser a característica dos textos

traduzidos por tradutores profissionais, que deverão ser fiéis não só à “letra”, mas

também às experiências do autor empírico que o texto pode trazer implícitas,

enquanto o autotradutor é livre para alterar seu texto, adaptando-o ao leitor-

modelo estrangeiro. Beckett, por sua vez, parece explicitar, através de sua prática

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autotradutória, que procura ser fiel às suas expectativas de um texto burilado,

perfeito. O caso de Kundera e a tradução de A brincadeira é, aparentemente, mais

complexo, pois a editora entra em ação para demandar fidelidade às expectativas e

ao conhecimento de mundo do público-alvo como os editores normalmente fazem.

A princípio, somos informados de que Kundera não concorda com a demanda,

pois julga que o texto traduzido deve ser fiel, única e exclusivamente, à

manifestação linear do texto original. Mais adiante, no entanto, vou argumentar

que essa opinião não corresponde ao que acontece na prática.

Assim, acredito que o público-leitor do texto traduzido espera que, quando o

próprio autor executa a tradução, ele não introduza mudanças além daquelas que a

travessia entre idiomas naturalmente acarreta. Entretanto, em artigo sobre a

tradução de Milan Kundera publicado no New England Review (vol. 18, 1997),

Alison Stanger afirma que a “tradução definitiva para o inglês, ostensivamente

aquela que é a mais fiel possível, na realidade introduz muitas mudanças no texto

original”. Também Lawrence Venuti (2002) se manifesta sobre o assunto,

afirmando que Kundera “omite mais de cinqüenta trechos, tornando o romance

mais inteligível ao leitor anglo-americano, retirando referências à história tcheca e

também alterando personagens” (p. 19). Segundo Stanger, as mudanças

introduzidas por Kundera podem ser classificadas em três categorias: aquelas

feitas porque não há equivalente em inglês para o termo original em tcheco; outras

feitas por razões estéticas ou estilísticas; e, por fim, e mais relevantes na opinião

de Stanger, aquelas que omitem referências que situam A brincadeira em

território tcheco, em um determinado período histórico. Portanto, segundo

Stanger, Kundera, responsável final pela edição revisada publicada em 1992,

mantém mudanças que havia condenado nas traduções de David Hamblyn, Oliver

Stallybrass e Michael Heim e parece fazer a tradução-adaptação que havia

declarado inaceitável. Entretanto, Venuti e Stanger parecem desconhecer que

houve, na verdade, duas edições distintas publicadas em tcheco, na antiga

Tchecoslováquia.

Woods (2001) aponta para o fato de que a versão publicada em 1991 na

antiga Tchecoslováquia apresenta alterações do mesmo tipo. Em outras palavras,

Kundera também considerou necessárias alterações que aproximassem o romance

do novo público-leitor tcheco, ou de um novo leitor-modelo, diferente daquele que

havia impulsionado o processo de escrita da primeira edição. Portanto, Kundera

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constrói um novo leitor-modelo com base em sua compreensão do público-leitor

tcheco, que não é mais o mesmo quando a segunda edição é lançada. Igualmente

importante é a constatação de que a revisão do romance publicado na

Tchecoslováquia é feita com base na tradução para o francês que se tornou, depois

do trabalho de revisão, o “original autorizado”. Esse status é, no entanto,

temporário, já que depois do lançamento da nova edição tcheca, a edição em

francês retorna ao posto de “tradução revisada pelo autor” enquanto a 2ª edição

em tcheco é novamente promovida ao posto de original, texto-base para outras

traduções. Note-se aqui que, no caso de Kundera, o papel de texto-fonte para

traduções é, na verdade, uma função que será obrigatoriamente preenchida pelo

texto revisado pelo autor e não necessariamente por aquele que ele produziu em

primeiro lugar. Vemos que até hoje muitos dos romances escritos por Kundera e

publicados em francês continuam a ser usados como texto-base para traduções.

É importante discutir também a segunda obra não-ficcional de Milan

Kundera, intitulada Os testamentos traídos (Edições ASA, 1994). Na capa da

versão publicada nos Estados Unidos, intitulada Testaments betrayed (1995), o

resenhista nos informa que Kundera é um defensor apaixonado dos direitos do

autor e do respeito devido à obra de arte e às intenções autorais. Ao ler o último

capítulo do livro, que tem como título a frase “mas você não está na sua casa, caro

amigo”, vejo que Kundera defende enfaticamente os direitos do autor como

proprietário (que é) da obra. A frase foi escrita por Stravinsky em resposta a um

maestro que queria fazer cortes no balé Jeu de cartes, de autoria do famoso

compositor. Stravinsky proibiu os cortes e escreveu a frase em uma das cartas

para o maestro. Kundera (1995) define o que, para ele, é o cerne da contenda: “o

que está em jogo na disputa [...] são os direitos do autor Stravinsky; seus direitos

morais; a ira de um autor que não suporta que qualquer outra pessoa brinque com

seu trabalho” (p. 244).

Kundera define aqui aquela que é, a meu ver, a questão central de suas

objeções às traduções de A brincadeira. Não me parece que o problema das

traduções de Hamblyn, Stallybrass e Heim sejam as mudanças em si,

especialmente se considerarmos que o próprio Kundera introduziu várias

alterações no original em tcheco mostrando que a tradução significa uma

oportunidade de reconstrução de seus trabalhos. De fato, o que aborrece Kundera

são as modificações não-autorizadas, ou seja, o que está em jogo é a autoridade de

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quem introduz mudanças. O que está implícito nas declarações de Kundera é que

nem o tradutor nem o editor têm autoridade sobre o texto e, por isso, precisarão da

autorização do autor ou, talvez, sempre precisarão trabalhar em estreita

colaboração com o autor, este sim com direito de dizer quais serão os capítulos,

parágrafos ou até mesmo palavras que podem ser incluídos, omitidos ou alterados.

Ao ressaltar que o tradutor não está na casa do autor quando traduz,

Kundera, a princípio, sinaliza que a co-habitação jamais será possível. Entretanto,

a revisão cuidadosa da tradução, feita pelo autor, promove, por assim dizer, a co-

habitação, já que Kundera revisa os textos traduzidos por tradutores profissionais

para as línguas que conhece (francês, italiano, alemão e inglês) (Kundera, 1992, p.

321) e suas revisões servem de base para traduções futuras. Na verdade, o escritor

afirma que as versões francesas – as definitivas – deverão servir como base para

outras traduções até que o autor termine a revisão definitiva das obras em tcheco

(o que não aconteceu até o presente momento). Esse foi o caso de O livro do riso

e do esquecimento (Nova Fronteira, 1987), traduzido para o francês, revisado por

Kundera e depois retraduzido para o inglês por Linda Asher, atual tradutora das

obras do escritor e que trabalha em estreita colaboração com ele. Destaco aqui que

o “original autorizado” é marcado pela intervenção do autor, autoridade sobre a

obra.

A revisão, processo ainda pouco debatido dentro dos Estudos da Tradução,

tem um papel crucial na obra do autor tcheco, pois é nesse momento que decisões

que determinarão o resultado final a ser impresso e publicado são tomadas. De

fato, o revisor é um profissional determinante dentro do processo de tradução. É

ele quem deve ver possíveis falhas e fazer alterações, nem sempre discutidas com

o tradutor ou aprovadas por este antes da publicação.

O caso de Kundera é bastante rico e vejo que várias questões são levantadas

pelo autor-tradutor-revisor. Observo que é a intervenção deste profissional, no

exercício de um papel triplo, que produz a tradução “correta”, pois as outras

traduções, feitas por tradutores, eram, segundo Kundera, reduções do original e

transformações inaceitáveis. Enfatizo que as transformações eram consideradas

inaceitáveis do ponto de vista do autor do original, que acreditava que seu estilo

precisava e podia ser traduzido, isto é, as marcas do texto original podiam ser

mantidas. Contudo, se essas marcas eram mantidas pelos tradutores, elas eram

consideradas inaceitáveis pelos editores. É inegável, portanto, que o fato de

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Kundera ter alcançado consagração internacional, ou a chamada “existência

literária” (Casanova, 2002), deu a ele poder para exigir que o texto traduzido seja

aprovado por ele, o autor. Note-se ainda como a tradução para o francês, a

autotradução e a tradução em colaboração foram também etapas no processo de

“literarização” da obra de Milan Kundera. E ainda, como a tradução para o

francês, a princípio, foi fundamental para que Kundera alcançasse a consagração

fora das fronteiras de seu país de origem.

Finalmente, destaco a questão ética, não discutida em relação a este caso.

Entretanto, a carta de um leitor de A brincadeira na sua primeira edição em tcheco

chama a atenção para a questão. Depois de ressaltar que a controvérsia sobre o

texto traduzido para o inglês levanta “questões fascinantes”, H. G. Alexander

pergunta se esse texto deve ser apresentado ao público-leitor como uma tradução

(13/11/1969) e afirma que os editores devem indicar o tipo de material que

oferecem aos leitores. Considero que H. G. Alexander expressa uma questão

importante e, a meu ver, sinaliza que as autotraduções devem, antes de mais nada,

ser assumidas inicialmente como aquilo que efetivamente são: textos traduzidos

por seus próprios autores, informação que não pode, no meu entender, ser

escondida do leitor. Qualquer outra questão sobre a autotradução será posterior (a)

e dependente (de) essa resposta.

3.5.4

O caso do autotradutores catalães

A revista Quimera, publicada em janeiro de 2002, traz relatos dos autores

catalães Carme Riera, Francesc Parcerisas, Antoni Marí e Lluís María Todó e do

escritor galego Alfredo Conde, além de um artigo em que Julio César Santoyo

traça um panorama do “universo da autotradução” (Poch, 2002, p. 9). É este o

material que serve de fonte para minha análise do trabalho dos autotradutores

originários da região da Catalunha, na Espanha. Considero, por razões que

apontarei em seguida, que o caso catalão é diferente dos de Beckett, Nabokov e

Kundera.

Na Catalunha e na Galícia, regiões onde o catalão e o galego são idiomas

oficiais e onde o castelhano é a segunda língua da maioria da população, a

autotradução é uma prática bastante comum (Santoyo, 2002, p. 30). Como afirma

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o escritor catalão Lluís María Todó, o bilingüismo, condição que caracteriza a

maioria dos cidadãos da Catalunha, propicia a prática dessa modalidade da

tradução (2002, p. 18). Nos relatos dos autotradutores que citei acima há sempre a

referência à pré-condição proposta por Jung (2002), mas eles ressaltam outros

aspectos da atividade. Vejamos, então, quais são esses aspectos e como

aproximam ou distanciam esse grupo de outros autotradutores.

A intraduzibilidade da literatura é destacada por Carme Riera, que acredita

que é impossível traduzir a “manipulação lingüística” que caracteriza a linguagem

literária (2002, p. 10). Assim, Riera opta pela reescrita, entendida no caso dos

escritores catalães como a “reinvenção” do original pelo autotradutor. Nesse

processo, o autotradutor busca outros recursos lingüísticos que lhe permitam

contar “de uma forma diferente” a mesma história que contou no original (p. 12).

Vejo aqui que a impossibilidade reside na crença da tradução como reprodução

exata de significados e, se essa reprodução é impossível, a saída é então registrar

na manifestação linear do texto traduzido marcas que não demonstram a

proximidade com a manifestação linear do texto original. Considero importante

também apontar que, diferentemente de Samuel Beckett, que via o produto de seu

trabalho como tradução, Riera o classifica de forma distinta. Ainda que não

explicite sua crença, a “forma diferente” que Riera encontrou para contar a mesma

história só pode resultar em um produto de status diferente. Entretanto, julgo

importante ressaltar que toda tradução “conta a mesma história de forma

diferente” e é resultado de manipulação lingüística, a qual não é, contudo,

ilimitada. Considero importante ressaltar finalmente que o termo reescrita é usado

por Riera de forma diferente daquela usada pelo famoso teórico da tradução, o

belga André Lefevere. Para o teórico, a tradução é um dos tipos de reescrita que

abrange ainda a seleção de textos para antologias, a historiografia, a organização

de obras de referência e a crítica literária (1992, p. 4). Em outras palavras, a

reescrita envolve as práticas que fazem circular o capital cultural. Esclareço que,

nesta tese, o termo reescrita é usado na mesma acepção da catalã Carme Riera, já

que julgo que esta é recorrente nas pesquisas e relatos sobre a autotradução. Mas

voltemos ao caso dos escritores catalães e a visão que transparece em seus relatos

sobre o processo de traduzir o próprio original.

O status do texto traduzido pelo próprio autor como um texto que não é uma

tradução stricto sensu perpassa os relatos dos autotradutores catalães. Lluís María

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Todó, por exemplo, afirma explicitamente que seu agente tem instruções para

considerar a versão em castelhano (que seria vista como a tradução) tão original

quanto a versão em catalão ao negociar a publicação de seus romances em outros

países (2002, p. 19). O texto catalão e o castelhano se confundem porque o

produtor de ambos é o mesmo sujeito, que tem autoridade para declarar que eles

são originais, e, portanto, que o texto castelhano (autotraduzido) é diferente de

outras traduções propriamente ditas. Como já vimos no caso de Kundera, as

traduções para o francês têm o status temporário de texto-fonte obrigatório para

outras traduções. Todó, por sua vez, garante ao texto por ele traduzido o status

permanente de original.

A garantia é dada por Todó porque ele tem autoridade para afirmar que os

textos por ele produzidos são originais. É a autoridade que serve também como

razão para o “direito à livre criação” que tem o autotradutor (Parcerisas, 2002, p.

13), para a atuação “com liberdades” (p. 13) e para atuar com “liberdade que não

teria se estivesse traduzindo obra alheia” (Todó, 2002, p. 19) e que “um tradutor

de ofício não poderia permitir-se sem que o acusassem de traidor” (Marí, 2002, p.

16). De fato, as liberdades a que se referem os autotradutores – omissão ou

redução de frases, parágrafos e capítulos, a produção de descrições menos prolixas

– são freqüentemente consideradas traições ao original. O caso de algumas

traduções de Machado de Assis, com capítulos omitidos ou simplesmente unidos a

outros capítulos, ilustram as “traições” (Hatje-Faggion, 2004) cometidas por

tradutores profissionais que, na provável tentativa de tornar a leitura mais fluente,

acabaram transformando de uma forma bastante significativa a estrutura dos

textos-base e causaram impacto negativo, especialmente entre leitores

profissionais brasileiros que comparam os originais às traduções. Enfim, vejo que

se o produto de uma tradução feita por um tradutor pode ser considerado uma

traição, o resultado do trabalho do autotradutor é uma obra que mantém com a

primeira versão uma relação de autonomia, apesar de a ela permanecer “unida”

por meio de um universo ficcional semelhante e de uma “fonte” comum. Vejo

ainda que a autotradução contém marcas da presença do autor, representadas nas

suas “liberdades” ao traduzir seu próprio texto. Evidentemente, essas marcas

podem também ser creditadas ao trabalho do tradutor. Contudo, a liberdade do

autor é garantida por sua autoridade sobre os textos que produz, enquanto a

liberdade do tradutor é cerceada.

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A fidelidade é outro dos temas a que se dedicam os autotradutores em seus

relatos publicados na revista Quimera, em que defendem a fidelidade a suas

intenções. Antoni Marí (2002), por exemplo, afirma que “pretendeu que a língua

de chegada fosse fiel à vontade do autor” (p. 15). Alfredo Conde (2002) acredita

que “ninguém [além do autor] pode saber melhor o que quis dizer” (p. 24). Lluís

María Todó (2002) descreve a sensação de, no momento da tradução, ter se

situado “num ponto anterior à enunciação lingüística” (p. 19), um ponto que o

tradutor pode imaginar através da leitura do texto, mas onde não pode

efetivamente estar (como o autor, na opinião de Todó, pode). Evidentemente, tal

situação especial do autor que traduz o próprio texto dá a ele um status singular: o

de único possível conhecedor das intenções originais. Por outro lado, a situação

especial do autor confere à tradução o caráter de perda inevitável ou, como

destaca Carme Riera, de impossibilidade, pois o tradutor está condenado ao acesso

a um material que não é o original “verdadeiro”. Sendo o autotradutor também um

indivíduo bilíngüe, é natural que seja considerado um tradutor privilegiado

(Tanqueiro, 2002). Considero inegável que essas visões contribuem para devolver,

por assim dizer, o autor ao lugar de fonte única de explicações sobre a obra, além

de colocá-lo em posição de total superioridade em relação ao tradutor, porque é o

autor do original e tem autoridade sobre este. Essas visões contribuem ainda para

a visão de tradução como uma tarefa impossível e sempre imperfeita, pois nenhum

tradutor jamais será capaz de ter acesso às mesmas fontes que o autotradutor tem,

como discuti anteriormente ao analisar as teses de Tanqueiro e Jung (v. seção 3.4

e 3.5).

A idéia de superioridade do autor e do original em relação ao tradutor e à

obra traduzida se repete explicitamente nas palavras dos autotradutores discutidos

nesta seção. Carme Riera (2002) afirma que “traduzir é, sem dúvida, perder” (p.

11). Alfredo Conde afirma que quando traduz perde “um tempo precioso, pois

poderia estar se dedicando a escrever outros romances, a construir outros mundos”

(2002, p. 25). Ambos, no entanto, acham uma solução para o impasse diante do

qual se encontram: a reescrita. Vedada ao tradutor, a reescrita é vista como a única

possibilidade de apresentação de um texto fiel às intenções do autor a uma

comunidade de leitores estrangeira. É durante a reescrita que o autor poderá usar

outros recursos lingüísticos que o tradutor deverá, por outro lado, evitar.

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Os relatos que informam esta discussão contribuem para a compreensão da

tradução e da autotradução como atividades distintas. Além da liberdade, do

acesso à intenção original e da conseqüente superioridade dos textos

autotraduzidos, o autor promove ainda alterações no original motivado pelo

exercício simultâneo de escrita original e tradução. Para Riera (2002) a tradução

proporciona um momento de distanciamento entre ela mesma e o original, e a

transforma em “uma leitora crítica do próprio texto” (p. 12). O resultado da

distância é a variação do original com a incorporação de alterações sugeridas pelo

próprio processo de tradução. Francesc Parcerisas (2002) aproveita o processo de

tradução para “calibrar”, especialmente, as escolhas lingüísticas do original (p.

13). Antoni Marí (2002) também atribui à autotradução a oportunidade de analisar

e criticar o original “com um rigor e uma precisão que permitia e exigia revisá-lo

de novo” (p. 16). Assim, vejo que o processo de escrever e traduzir

simultaneamente alimenta o processo de criação ao causar um distanciamento

entre o autor e o original e proporciona a revisão cuidadosa ou a lapidação que

antecede o processo de publicação. Entretanto, diferentemente de uma revisão

posterior – aquela feita pelo revisor profissional –, o processo de escrever e

traduzir simultaneamente provoca mudanças significativas em vários aspectos do

texto. Como discuti no capítulo anterior e em seções deste capítulo, a colaboração

entre autores e tradutores provoca por vezes a revisão do original. Entretanto, essa

revisão se dá depois de um original já publicado e lido por uma comunidade de

leitores que poderá detectar possíveis alterações, analisá-las e criticá-las. Ou seja,

a revisão nesse caso é um processo aberto, por assim dizer. Já no caso dos autores

catalães que escrevem e traduzem simultaneamente a própria obra, a lapidação do

original é motivada pela leitura crítica do mesmo, a revisão é anterior à publicação

do romance, e a tradução integra o processo de criação. Deste não participam as

análises e críticas de leitores profissionais, posteriores à publicação do original.

Finalmente, observo que o conflito lingüístico é também ressaltado por

Carme Riera e Alfredo Conde. Riera destaca que o público castelhano “não

entende por que indivíduos bilíngües usam a língua ‘inferior’ para criar” (2002, p.

12). Ela ressalta ainda que os habitantes das regiões da Espanha onde o castelhano

é a língua oficial não consideram a produção literária dos autores catalães e não

compreendem as razões que fazem autores que são capazes de escrever em

castelhano – a língua, no caso, vista como “superior” – optarem pela escrita em

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uma língua “inferior” que atinge um círculo restrito de leitores. Assim, a

autotradução é uma questão de sobrevivência em um universo literário maior do

que a região geográfica que abriga os autores da Catalunha. Por outro lado, há

ainda a questão política da opção por uma língua que é também aquela em que

habitantes da região da Catalunha se expressam, uma língua que é parte da

identidade do povo catalão. A tradução para o castelhano reforça, acredito, o

status do castelhano como a língua estrangeira.

Alfredo Conde, natural da Galícia, fornece outra perspectiva para a

compreensão da autotradução (para o castelhano, em especial) nessa região. Ele

afirma que ela é vista como traição, já que na Galícia o povo deveria ser forçado a

ler em galego. Dessa forma, a tradução (para o castelhano) executada por

tradutores profissionais é uma prática contrária aos interesses daqueles que

defendem o galego como idioma oficial, e a autotradução é ainda mais nociva na

medida em que os textos traduzidos pelos próprios autores são vistos por leitores

profissionais como produções autônomas e independentes entre si. Em tempos de

globalização, é interessante refletir sobre essa visão política da língua. Ao mesmo

tempo em que mais e mais obras de diferentes autores são traduzidas atualmente,

um povo concentrado em uma região específica e falante de uma língua

minoritária argumenta que a tradução pode ser uma arma letal para o idioma

nativo e, por isso, deve ser exercida “com moderação”. Conde não reflete sobre o

tema em profundidade (e esse não é o objetivo de seu relato), mas ele mostra que

o caso dos autotradutores galegos pode ser semelhante ao dos poetas-

autotradutores escoceses, exposto a seguir.

3.5.5

O caso dos autotradutores escoceses

Diferentemente da Catalunha, onde os habitantes usam o catalão em

situações do cotidiano, mas também no comércio, na educação e na cultura, a

Escócia é caracterizada, como afirma Christopher Whyte, por um “nacionalismo

marcado pela ausência de qualquer componente significativo de lealdade

lingüística” (2000, p. 180). Whyte argumenta que a população escocesa em geral

não demonstra o “menor interesse” (ibidem) no estabelecimento do gaélico-

escocês como língua oficial no país, e assim ela era até recentemente falada por

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apenas 60.000 habitantes da Escócia (p. 179). Corinna Krause (2005), estudiosa

do fenômeno da autotradução na Escócia, afirma ainda que “escrever em gaélico

significa escrever em uma língua minoritária” (p. 1), condenada por muitos a

tornar-se uma “língua morta”, e pertencer a um polissistema literário minoritário

no contexto da língua inglesa (ibidem). Destaco desde já que o conflito lingüístico

existe, mas o estabelecimento do gaélico-escocês como idioma oficial não é um

objetivo da população escocesa em geral. Algumas conseqüências emergem dessa

situação.

Em primeiro lugar, é evidente que o número reduzido de falantes do gaélico-

escocês implica, necessariamente, um público-leitor reduzido. Em conseqüência, a

publicação de textos escritos nesse idioma sofre resistência da parte de editores

escoceses. Em segundo lugar, há também um número reduzido de tradutores de e

para o gaélico-escocês. Como a tradução é, reconhecidamente, um fator

importante para o alcance de um público-leitor maior, poetas escoceses que

escrevem originalmente em gaélico-escocês são “forçados” à autotradução. Como

afirma Whyte (2002), a autotradução é “sempre feita sob coação” (p. 67) pelas

circunstâncias em que os poetas escoceses estão inseridos. Em uma atitude de

protesto, de certa forma, e de reação a essa situação, atualmente Whyte recusa-se

a traduzir seus próprios textos. Vejamos as razões que o levaram a tal decisão.

Krause (2006) descreve o que ela denomina a “cultura da tradução” (p. 1) na

Escócia atual, onde as edições bilíngües, que contêm o poema em gaélico-escocês

ao lado do poema em inglês, são freqüentes. Como já vimos, o número reduzido

de tradutores faz com que os poemas em inglês sejam quase sempre

autotraduções. Os resultados desse tipo de publicação são variados, mas parecem

causados pelo mesmo motivo principal: a ilusão da equivalência absoluta entre os

dois textos (p. 8) reforçada pela publicação bilíngüe. Asssim, os poemas

autotraduzidos para o inglês são vistos como originais, pois foram produzidos

pelo mesmo indivíduo. O poema “original”, escrito em gaélico-escocês, é, em

conseqüência, quase ignorado pelo público-leitor que, em sua maioria, não é

competente nesse idioma.

Resultam desse tipo de publicação, além do apagamento das diferenças entre

original e tradução e em primeiro lugar, a visão de que os originais são supérfluos

(Whyte, 2002, p. 69), o enfraquecimento da credibilidade do processo de escrita

original (Whyte, 2000, p. 183) e do próprio status do original (Krause, 2005, p. 5).

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Além disso, conseqüências mais gerais incluem ainda a atitude de recusa à

aprendizagem do gaélico-escocês (p. 70) (pois ele não é necessário). A

autotradução é, portanto, vista como predatória na Escócia atual por um grupo de

leitores profissionais (os acadêmicos engajados na luta por uma língua nativa da

Escócia), pois, associada à publicação em edições bilíngües, faz o texto original e,

ainda mais importante, a língua em que ele foi escrito parecerem desnecessários.

É vista como inimiga por esses mesmos leitores profissionais, porque é uma força

contrária à tentativa de estabelecimento do gaélico-escocês como idioma do

cotidiano, das transações comerciais, da educação, e à construção de uma

literatura nacional, distinta da literatura inglesa. Considero ainda que fica

evidenciado aqui um conflito de interesses e objetivos entre leitores profissionais

e não-profissionais.

É importante destacar a visão da autotradução como possibilidade de criação

de um texto autônomo e independente daquele que lhe é anterior: o suposto

original em gaélico-escocês. De fato, há casos de textos autotraduzidos que

adquirem status canônico. Como vimos anteriormente, as obras autotraduzidas de

Beckett e Nabokov, por exemplo, foram canonizadas no polissistema literário a

que se destinavam. Seus textos são tidos como produções originais, recebidos

como obras originais pelo público-leitor profissional e oferecidos, por vezes,

como originais ao público-leitor não-profissional. Entretanto, o caso dos poetas

escoceses diferencia-se destes porque, na Escócia, a autotradução e a publicação

de edições bilíngües motivam o apagamento do original. Como mostrei

anteriormente, a primeira edição bilíngüe de uma obra de Samuel Beckett foi

lançada recentemente, mas não é provável que isso motive o apagamento de

qualquer um dos textos. A meu ver, além da consagração internacional alcançada

por Beckett, o fato de que as duas línguas envolvidas (o inglês e o francês) são

majoritárias e que os polissistemas literários inglês e francês são fortes contribui

para que, com efeito, um interesse ainda maior no contraste entre as duas obras

seja despertado, visando uma melhor compreensão do processo (auto)tradutório

do escritor francês. Mas voltemos ao caso dos poetas escoceses.

É importante destacar que a publicação das autotraduções para o inglês em

edições bilíngües não é apenas predatória ou inimiga, pois ela contribui, de fato,

para a “ampliação do público-leitor de textos gaélicos e ajuda a leitura por aqueles

que ainda não têm competência suficiente em gaélico” (Krause, 2006, p. 2). Esses

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são os argumentos usados por autores e editores que defendem esse tipo de

publicação. Considero impossível negar ainda que a tradução é essencial no

momento não só para que autores inseridos no polissistema literário escocês

alcancem alguma expressão fora da Escócia, mas também dentro do próprio país.

Sendo a tradução imprescindível, Krause (2006) sugere “formas de resistência à

ilusão de equivalência absoluta” (p. 10) que a autotradução, associada à

publicação de edições bilíngües, ajuda a fomentar, tais como: (i) a tradução feita

em colaboração com tradutores e a referência explícita ao processo de tradução;

(ii) a tradução para outras línguas além do inglês, que forçaria a atuação de outros

tradutores (e não dos próprios autores); e, até mesmo, (iii) a não-tradução (p. 10).

Krause cita o caso de Christopher Whyte que “decidiu abandonar a autotradução e

passou a publicar seus poemas em edições monolíngües ou trabalhar

colaborativamente quando as traduções são necessárias” (p. 3).

Observo que a visão que perpassa o discurso dos poetas e pesquisadores

citados nesta discussão acerca do caso escocês é a da autotradução como

impedimento para a construção de uma identidade nacional. Em publicações

bilíngües, que fomentam a crença na equivalência absoluta, ela chega a

transformar-se em sério obstáculo para o desenvolvimento do gaélico-escocês,

uma língua em que praticamente inexistem a escrita em prosa e um vocabulário

filosófico e técnico de forma geral, e que é usada corretamente apenas por uma

minoria entre estudantes universitários e pessoas idosas (Krause, 2005). O caso

dos poetas escoceses assemelha-se até certo ponto à situação dos escritores

catalães, pois em ambas as situações a tradução é necessária para a ampliação do

público-leitor e serve à afirmação do idioma como língua de identidade nacional.

Entretanto, se o catalão já atingiu um status dentro da Catalunha que permite a

existência do que se pode chamar de um público-leitor catalão (ainda que restrito),

o mesmo não acontece na Escócia, onde a tradução é necessária como ponte entre

os próprios escoceses.

Observo, finalmente, que a manutenção do status de inferioridade

geralmente atribuído ao texto traduzido é conveniente para aqueles escritores que

defendem a instituição do gaélico-escocês como idioma oficial de fato.

Após terminar a discussão acerca da autotradução com base em teses

defendidas recentemente, e outras em andamento, e também nos casos de Samuel

Beckett, Vladimir Nabokov, Milan Kundera e dos autotradutores catalães e

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escoceses, passo agora a apresentar o caso da autotradução tal como praticada por

João Ubaldo Ribeiro. As teses e casos discutidos até aqui iluminarão a discussão

inédita sobre o caso do escritor brasileiro.

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4

O estudo de caso sobre João Ubaldo Ribeiro

O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias.

João Ubaldo Ribeiro

4.1

Introdução

Neste capítulo, analiso a autotradução tal como praticada por João Ubaldo

Ribeiro, cujo trabalho selecionei por dois motivos. Em primeiro lugar, como

informei na introdução a esta tese, pude verificar que apesar de sua obra ter sido

objeto de pesquisas de mestrado e doutorado em algumas universidades brasileiras

e do exterior, sua atividade de versão para o inglês dos romances Sargento Getúlio

e Viva o povo brasileiro foi pouco explorada até agora (Gomes, 2005, p. 75). Em

segundo lugar, residente no Rio de Janeiro e disposto ao contato comigo através

de e-mail, o escritor torna-se uma fonte de informação preciosa acerca de seu

trabalho. Para investigar o processo de construção do autor-modelo da

autotradução, utilizo informações provenientes de fontes distintas: (i) os romances

que João Ubaldo verteu para o inglês – Sargento Getúlio / Sergeant Getúlio e Viva

o povo brasileiro / An invincible memory ou, mais especificamente, a comparação

entre as escolhas registradas na manifestação linear desses textos; (ii) entrevistas

concedidas a revistas, jornais e televisão brasileiros e estrangeiros; (iii) o artigo

“Suffering in translation” (1990), em que o autor descreve brevemente o processo

de versão para o inglês das duas obras; (iv) artigos, resenhas e livros escritos por

leitores profissionais sobre o autor e sua obra; e, (v) entrevista por e-mail com o

escritor. Antes, porém, de iniciar minha análise farei um relato da biografia de

João Ubaldo apontando para fatos relevantes para a tarefa da autotradução, tais

como o processo de aquisição da língua inglesa e suas leituras de outros autores

nacionais e estrangeiros.

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164

4.2

João Ubaldo Ribeiro: biografia resumida32

João Ubaldo Ribeiro nasceu em Itaparica, no estado da Bahia, no ano de

1941, mas passou sua infância em Aracaju, Sergipe. Aos seis anos de idade,

iniciou seus estudos com um professor particular e logo se tornou um leitor voraz

que leu, por exemplo, toda a obra de Monteiro Lobato. No ano de 1951, entrou

para o Colégio Estadual de Sergipe, onde foi um aluno aplicado e, a partir de

então, sempre por ordem do pai, Manoel Ribeiro, resumia e traduzia trechos

importantes de romances escritos em francês e espanhol, estudava latim e copiava

sermões inteiros do Padre Antônio Vieira nas férias. Como João Ubaldo relata na

crônica “Memória de Livros”, aos doze anos ele já havia lido

a maior parte da obra traduzida de Shakespeare, O Elogio da Loucura, As décadas de Tito Lívio, D. Quixote [...], adaptações especiais do Fausto e da Divina Comédia, a Ilíada, a Odisséia, vários ensaios de Montaigne, Poe, Alexandre Herculano, José de Alencar, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Dickens, Dostoievski, Suetônio, os Exercícios espirituais, de Santo Inácio de Loyola...

Ainda no ano de 1951, a família voltou à Bahia, onde João Ubaldo começou

a aprender inglês sob a orientação de uma professora particular e comprava livros

de bolso em inglês para, com o auxílio do dicionário, lê-los compulsivamente.

Tornou-se amigo de uma família norte-americana que morava no mesmo prédio e,

assim, aumentou sua fluência no idioma. É importante ressaltar que João Ubaldo

credita às experiências aqui descritas sua competência na língua inglesa, que

permitiu que o autor traduzisse seus romances para o inglês.

No ano de 1958, João Ubaldo iniciou o curso de Direito na Universidade

Federal da Bahia. Editou revistas e jornais culturais durante o curso, participou do

movimento estudantil ao lado de Gláuber Rocha e leu (ou releu) obras de autores

clássicos da literatura brasileira e mundial, tais como François Rabelais, William

Shakespeare, James Joyce, William Faulkner, Jonathan Swift, Lewis Carroll,

Cervantes, Homero, Graciliano Ramos e Jorge de Lima. Tornou-se Bacharel em

Direito pela UFBa, mas jamais exerceu a profissão.

32 As informações apresentadas nesta biografia estão baseadas nas seguintes fontes: entrevista por e-mail a mim concedida; o número 7 da série Cadernos de Literatura Brasileira (Instituto Moreira Salles, 1999); o volume João Ubaldo Ribeiro, Um Estilo de Sedução, da série Perfis do Rio, de autoria do crítico Wilson Coutinho (Relume-Dumará, 1998); a crônica “Memória de Livros” (1995); os sites da Academia Brasileira de Letras (www.academia.org.br/) e do projeto Releituras (www.releituras.com/).

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Em 1963, escreveu seu primeiro livro Setembro não tem sentido, mas o

romance só foi publicado em 1968, depois que Gláuber Rocha convenceu o

romancista Flávio Moreira da Costa a interceder junto aos editores cariocas para a

publicação. Gláuber Rocha escreveu o prefácio e Jorge Amado apadrinhou o

primeiro livro (assim como o lançamento de Ubaldo no polissistema literário

norte-americano, conforme mostrarei posteriormente).

Em 1964, ano agitado na história política brasileira, o escritor conseguiu

uma bolsa de estudos junto à Embaixada norte-americana e embarcou para os

Estados Unidos, onde fez mestrado em Administração Pública e Ciência Política

na Universidade da Califórnia. Em 1965, voltou ao Brasil e passou a lecionar

Ciência Política na Universidade Federal da Bahia. Seis anos mais tarde, desistiu

da carreira de professor e voltou ao jornalismo, que já havia exercido nos tempos

de faculdade. Foi repórter, redator, chefe de reportagem e colunista do Jornal da

Bahia; colunista, editorialista e editor-chefe da Tribuna da Bahia.

Em 1971, lançou, pela editora Civilização Brasileira, o romance Sargento

Getúlio e ganhou o prêmio Jabuti como revelação de autor. Sobre o romance, o

escritor afirma que acabou sendo muito bem recebido pela crítica, mas não obteve

sucesso de vendas. Traduzido pelo próprio autor para o inglês, Sergeant Getúlio

foi lançado nos Estados Unidos em 1978, onde alcançou sucesso de crítica. Sobre

o lançamento, a Academia Brasileira de Letras informa, em sua página na web,

que todos os jornais e revistas dos Estados Unidos e da França pronunciaram-se a

respeito do romance. Ceccantini (1999) descreve Sargento Getúlio como “obra

que projetaria João Ubaldo nacional e internacionalmente” (p. 107) e a trajetória

do romance como “uma respeitável carreira literária [...], não apenas no Brasil,

mas também no exterior, arregimentando leitores de variados naipes e sendo

legitimada por diversas instituições literárias nacionais e estrangeiras” (p. 109).

Sargento Getúlio chegou aos cinemas em 1983, em filme dirigido por Hermano

Penna e protagonizado por Lima Duarte, e ganhou vários prêmios no Festival de

Gramado, que todos os anos elege os melhores do Brasil em diversas categorias.

Sargento Getúlio obteve os prêmios de melhor ator, melhor ator coadjuvante,

melhor som direto, melhor filme, grande prêmio da crítica, grande prêmio da

imprensa e do júri oficial. O mais recente capítulo da trajetória de Sargento

Getúlio foi o lançamento, em 2005, da 1ª edição especial do romance pela editora

Nova Fronteira na série 40 anos, 40 livros, com apresentação de Moacyr Scliar.

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Em 1979, o escritor voltou aos Estados Unidos, onde passou nove meses

como escritor visitante do International Writing Program da Universidade de

Iowa. Um ano depois, foi a Cuba para participar do júri do concurso “Casa das

Américas”, juntamente com o crítico literário Antônio Candido e o ator e diretor

de teatro Gianfrancesco Guarnieri. Em 1981, com uma bolsa da Fundação

Calouste Gulbenkian, viajou com a família para Lisboa e lá, junto com outro

jornalista, editou a revista Careta. De volta ao Brasil, no mesmo ano, iniciou

colaboração com o jornal O Globo, publicando uma crônica por semana.

Em 1982, João Ubaldo começou a escrever o romance Viva o povo

brasileiro, cuja trama se desenrola na Ilha de Itaparica e narra quatro séculos da

história do país. Publicado em 1984, recebeu o prêmio Jabuti na categoria

“Romance” e o Golfinho de Ouro, do governo do Rio de Janeiro, e foi sucesso

absoluto de vendas. No mesmo ano, João Ubaldo iniciou sua tradução para o

inglês, tarefa que consumiu dois anos de trabalho. No ano de 1984, participou de

uma série de nove filmes produzidos pela TV estatal canadense sobre a literatura

na América Latina ao lado de Jorge Luis Borges e Gabriel García Márquez.

Em 1989, o romance O sorriso do lagarto foi lançado no Brasil, e, em 1991,

foi adaptado para o formato de minissérie por Walter Negrão e Geraldo Carneiro.

Em 1994, foi publicado nos Estados Unidos, com tradução de Clifford Landers,

profissional responsável pela tradução de várias obras de autores brasileiros para o

inglês. Ainda em 1991, João Ubaldo iniciou sua colaboração com O Estado de

São Paulo. O escritor foi colunista do jornal Frankfurter Rundschau, na

Alemanha; colaborador de diversos jornais e revistas no país e no exterior, entre

os quais, além dos citados, Die Zeit (Alemanha), The Times literary supplement

(Inglaterra), O Jornal (Portugal), Jornal de Letras (Portugal), Folha de S. Paulo,

A Tarde (Bahia).

No dia 07 de outubro de 1993, João Ubaldo Ribeiro foi eleito para a cadeira

34 da Academia Brasileira de Letras, na vaga aberta com a morte do jornalista

Carlos Castello Branco, e foi saudado em 8 de junho de 1994 pelo acadêmico

Jorge Amado. Também em 1994, participou da Feira do Livro de Frankfurt e

recebeu na Alemanha o Prêmio Anna Seghers, concedido somente a escritores

alemães e latino-americanos. Em 1995, ganhou o prêmio Die Blaue

Brillenschlange (Zurique, Suíça), concedido ao melhor livro infanto-juvenil sobre

minorias não-européias, pela edição alemã de Vida e paixão de Pandonar, o cruel.

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Em 1998, o escritor participou em Paris do Salão do Livro da França e, no mesmo

ano, vendeu os direitos de Viva o povo brasileiro para o cinema. O filme deve ser

dirigido pelo cineasta André Luis Oliveira (v. http://www.releituras.com/

joaoubaldo_bio.asp).

Em 1997, lançou o romance O feitiço da Ilha do Pavão, publicado também

em Portugal e na Alemanha (em tradução). Dois anos mais tarde, lançou o livro A

casa dos budas ditosos, da série “Plenos pecados” da editora Objetiva, que obteve

enorme sucesso de vendas e permaneceu por mais de trinta e seis semanas entre os

dez livros mais vendidos. Lançado em Portugal em 1999, transformou-se em

polêmica nacional por causa da proibição, por duas redes de supermercados, de

sua venda naqueles estabelecimentos, o que certamente contribuiu para que a

primeira edição de 5.000 exemplares fosse vendida em poucos dias e outras

edições se seguissem. A casa dos budas ditosos foi traduzido para o francês,

espanhol e holandês. A tradução para o inglês foi feita por Clifford Landers, mas,

segundo o próprio tradutor (2006) e o agente Thomas Colchie (e-mail,

01/11/2006), não foi publicada até o presente momento. Ainda em 1997,

juntamente com outros escritores da literatura mundial, João Ubaldo deu um

depoimento ao jornal francês Libération sobre o novo milênio. Em 2001, o autor

esteve na Espanha para divulgar o livro A casa dos budas ditosos, lançado naquele

país no ano anterior.

Em 2000, seu primeiro livro virtual, Miséria e grandeza do amor de

Benedita, foi lançado no Brasil e, em 2002, foi publicado seu romance mais

recente, Diário do farol. Em 2003, este foi lançado em Portugal, na série

“Grandes autores de língua portuguesa”, e o conto “O santo que não acreditava

em Deus” foi adaptado para o cinema pelo próprio autor em parceria com Cacá

Diegues (também diretor do filme), João Emanuel Carneiro e Renata de Almeida

Magalhães. Em 2004, A casa dos budas ditosos estreou no teatro, em adaptação

de Domingos de Oliveira, estrelada por Fernanda Torres, com enorme sucesso de

público e crítica.

Versões dos romances Sargento Getúlio, Viva o povo brasileiro e O sorriso

do lagarto foram publicadas nos Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, França,

Itália, Portugal, Espanha, Holanda, Suécia, Cuba, Hungria, Noruega, Finlândia,

Dinamarca, (na antiga) União Soviética, Israel e Canadá. A publicação dos

romances em tantos países não contribuiu, contudo, para que João Ubaldo Ribeiro

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tenha conseguido alcançar consagração no cenário internacional. Como o próprio

autor relata, seus romances e suas crônicas conseguem alguma penetração na

Alemanha, talvez porque o autor tenha morado em Berlim por algum tempo, a

convite do governo alemão, e publicado crônicas em jornais locais. Por outro lado,

a versão dos romances para tantos idiomas diferentes alimenta seu sucesso no

Brasil. Segundo Wilson Coutinho (1998), João Ubaldo é hoje “o escritor que mais

vende na sua editora, a Nova Fronteira, depois do dicionário Aurélio, e é tratado

como um astro por seus editores” (p. 15).

O meio acadêmico, contudo, não parece receber suas obras com tanto

alarde. Entrevistas informais com professores e alunos de uma universidade

pública do Estado do Rio de Janeiro revelam que a obra de João Ubaldo não é

selecionada para leitura em cursos de literatura brasileira. Além disso, há um

número relativamente pequeno de dissertações e teses cujo tema é o autor. Em

pesquisa no site de uma universidade pública federal do Rio de Janeiro, somente

uma dissertação sobre Viva o povo brasileiro foi encontrada. No site do Projeto

Releituras, quatro dissertações de mestrado e uma tese de doutorado são

mencionadas. Ao comparar João Ubaldo a outros escritores brasileiros

contemporâneos, concluo, portanto, que sua fortuna33 crítica é relativamente

pequena. O fato de João Ubaldo ter traduzido suas próprias obras por duas vezes

também merece pouco destaque: somente dois pesquisadores, membros do corpo

docente de duas universidades federais brasileiras, estudam (ou estudaram) a

autotradução. Nos Estados Unidos, outros dois pesquisadores (um dos quais é

brasileiro) estudam suas obras sem, no entanto, demonstrar interesse no fato de

que elas são autotraduções. Em pesquisa informal na web, encontrei um programa

de curso de graduação em Brazilian studies na Universidade de Tulane que inclui

An invincible memory entre as leituras obrigatórias.

Nesta seção procurei descrever episódios da vida de João Ubaldo que

considero relevantes para a compreensão das condições e da motivação por trás da

opção do autor pela autotradução, que passo a discutir a partir de agora. Para tal,

retomo as pré-condições e a tipologia propostas por Verena Jung (v. capítulo 3),

além de levar em consideração minhas próprias observações. Em seguida, analiso

33 “Fortuna” é o termo utilizado em Literatura Comparada para designar “a resposta ou sucesso de uma obra; o impacto que a literatura de um país exerce sobre a literatura de outro país” (Carvalhal, 1999).

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os paratextos que cercaram a apresentação dos dois romances nos Estados Unidos

e, finalmente, analiso as escolhas tradutórias de João Ubaldo motivadas pela

existência de um novo público-leitor além daquelas motivadas pelo exercício de

leitor-modelo do original, que resultam na construção de um novo autor-modelo.

4.3

O caso de João Ubaldo Ribeiro: as pré-condições e o tipo de

autotradução

Conforme discuti no capítulo anterior, Jung (2002) apresenta o bilingüismo,

o biculturalismo e o fato de que os autotradutores foram também revisores dos

textos autotraduzidos como pré-condições para as autotraduções que foram

executadas até hoje. Passo agora a verificar se essas características, além daquelas

que propus (o polissistema literário de origem, a posição no cânone literário de

origem e no estrangeiro e a freqüência da autotradução), se aplicam ao caso de

João Ubaldo.

O bilingüismo coordenado é descrito por Jung (2002) como característico

dos indivíduos que traduziram seus próprios textos até agora (p. 17). Os bilíngües

coordenados são aqueles que, como João Ubaldo, aprenderam duas línguas34 em

momentos diferentes de suas vidas (v. seção 4.1). Como sinalizei anteriormente, o

escritor brasileiro só pode ser considerado um indivíduo bilíngüe se

considerarmos seu grau de proficiência na língua inglesa, que é bastante elevado,

sendo inclusive reconhecido pelos editores norte-americanos e por seu agente,

Thomas Colchie (Ribeiro, 1990, p. 3). Este convenceu João Ubaldo que Viva o

povo brasileiro seria “assassinado” caso qualquer outro tradutor executasse a

tradução, em uma conseqüência direta da falta de conhecimento de tradutores

norte-americanos sobre aspectos da língua portuguesa, na visão de Colchie (e-

mail, 20/07/2006). É importante apontar também que João Ubaldo define seu

bilingüismo como passageiro, afirmando que não tem mais a “desenvoltura e

34 “Aprender” e “adquirir” são verbos usados com sentidos distintos por estudiosos da aquisição de línguas, assim como os substantivos “aprendizagem” e “aquisição”. A “aquisição” das estruturas de uma segunda língua é um processo inconsciente e involuntário, ativado pela interação entre aquele que aprende e o input. A “aprendizagem”, por outro lado, é um processo consciente e sistemático, baseado no conhecimento de regras. Apesar de reconhecer a distinção, os termos serão usados como sinônimos nesta tese.

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espontaneidade que tinha” (e-mail, 18/03/2004), características que são vistas por

ele como as de um indivíduo bilíngüe. Ele aprendeu a língua inglesa como uma

língua estrangeira, entendida como aquela que é adquirida em contextos formais,

fora do país onde a língua é falada e, por isso, adquiriu certamente um registro

mais formal da linguagem, como costuma acontecer com aqueles que aprendem a

língua nas mesmas condições. A meu ver, esse fato teve conseqüências para sua

escrita tradutória que, como constatei através da leitura de sua obra autotraduzida,

exemplifica por vezes o uso de um inglês formal.

O biculturalismo é a segunda característica comum aos autotradutores mais

estudados até hoje e também se aplica a João Ubaldo, um grande conhecedor de

outras culturas. Além do vasto conhecimento geral adquirido por meio das muitas

viagens e dos períodos em que morou na Europa e nos Estados Unidos, João

Ubaldo leu muitas obras consagradas da literatura mundial e romances traduzidos

(v. seção 4.1). Essas leituras possibilitaram a construção de sua competência

enciclopédica, que inclui convenções textuais, estratégias e normas que permitem

(e permitiram, portanto, a João Ubaldo), a partir da perspectiva de Jung, a

autotradução de textos pertencentes ao mesmo gênero. Dessa forma, considero

que a experiência de João Ubaldo, o autor empírico cujo trabalho é analisado

nesta tese, é importante para a construção do autor-modelo do texto autotraduzido,

pois este é influenciado pela competência enciclopédica daquele que, consciente

ou inconscientemente, utiliza sua competência na autotradução.

O fato de que os autores de textos acadêmicos foram também revisores dos

textos por eles traduzidos é outra característica apontada por Jung em sua

discussão. Não há relatos em que João Ubaldo Ribeiro assuma a responsabilidade

integral pela revisão de suas traduções, mas ele não raramente critica a revisão

que altera seu estilo e as figuras de linguagem que utiliza. Ou, em outras palavras,

ele critica, como Kundera também criticava (v. capítulo 3), a alteração de marcas

que o autor-modelo do original imprime no texto vistas como imprescindíveis. Em

e-mail a mim enviado, João Ubaldo afirma que exigiu que expressões pouco

freqüentes em inglês fossem mantidas na versão final de Sergeant Getúlio

(01/10/2003; 30/10/2004) e, em outro e-mail, informa que os revisores norte-

americanos queriam mudar “coisas” porque achavam que o escritor “escrevia

daquela forma” por ser estrangeiro (14/02/2004). Além da reclamação em relação

à edição que altera o estilo, o escritor brasileiro desconfiava de que estava sendo

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tratado como alguém que não possuía a competência lingüística necessária para

executar a tarefa. É interessante observar que a desconfiança de João Ubaldo é

ratificada por Viveca Smith, editora da Viveca Smith Publishing35, que considera

problemático o conhecimento que um autor estrangeiro “tem da língua inglesa”

(e-mail, 21/07/2006). Brie Burkeman, agente literário inglês, afirma que “há

sempre pequenos detalhes que um falante não-nativo erra quando traduz” (e-mail,

20/07/2006). As palavras da editora e do agente literário revelam como a

subcompetência bilíngüe (v. Darin, 2006, p. 111), ou, mais especificamente, o

conhecimento gramatical acerca das regras que regem o emprego da língua

inglesa, é vista como essencial. Por outro lado, essa é a única demanda que os

editores e agentes estão aptos a fazer, segundo o agente literário norte-americano

Thomas Colchie, que descreve o pouco conhecimento que editores norte-

americanos em geral têm do português como fator determinante das pouquíssimas

sugestões de alterações em An invincible memory (e-mail, 20/07/2006), por

exemplo. Viveca Smith e Brie Burkeman acrescentam ainda que a compreensão

total do texto original, que o só o autor pode ter (Viveca Smith, e-mail,

21/07/2006), é o fator mais importante e inibe a sugestão de alterações por parte

dos editores. Em outras palavras, a contribuição do autotradutor é inestimável,

pois ele possui conhecimentos que o editor (ou qualquer outro tradutor) não tem e

não será capaz de alcançar. Concluo, portanto, que as palavras de João Ubaldo

Ribeiro e dos editores revelam uma negociação sobre possíveis alterações, no

mínimo, mais equilibrada. Assim, a pré-condição proposta por Jung é

parcialmente preenchida no caso do autotradutor brasileiro.

Em relação ao tipo de autotradução produzida, ressalto que o escritor

brasileiro é um dos poucos que traduziram seus textos para uma língua estrangeira

entendida como aquela cuja aprendizagem se deu em contextos formais. Os outros

autotradutores sobre os quais disponho de informações, à exceção dos escritores

catalães e dos poetas escoceses, foram indivíduos que adotaram outras línguas de

expressão e que as aprenderam como uma segunda língua. Um estudo sobre o

contexto atual deve revelar ainda que a grande maioria dos autotradutores é

proveniente de regiões habitadas por indivíduos bilíngües – como a Catalunha –

35 Viveca Smith Publishing (www.vivecasmithpublishing.com) é uma pequena editora norte-americana com sede no Texas que tem como principal interesse a publicação de literatura estrangeira e obras literárias norte-americanas com foco internacional.

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ou de locais onde questões lingüísticas fazem parte da agenda política do país (ou

de parte da população) – como a Escócia. Em relação à execução solitária ou em

colaboração da tarefa, o próprio João Ubaldo afirma que Sargento Getúlio e Viva

o povo brasileiro foram vertidos para o inglês sem ajuda de um tradutor (e-mail,

28/08/2003; 02/09/2003). Diferentemente dos escritores catalães, de alguns poetas

escoceses e de Samuel Beckett, a produção do original e sua tradução não foram

processos simultâneos para João Ubaldo, que se assemelha assim a Nabokov, mas

o intervalo de tempo que separa a produção original do escritor brasileiro e a

tradução é menor do que aquele que separa os textos originais do escritor

russo/norte-americano de algumas de suas traduções. A classificação em

homoskopic ou heteroskopic aplica-se, como afirmei anteriormente (v. seção 3.6),

ao texto acadêmico e, por isso, não foi tomada em consideração aqui.

Antes de discutir os possíveis motivos da opção de João Ubaldo pela

autotradução, volto às pré-condições para essa prática que considerei necessárias

além daquelas apresentadas na tese de Verena Jung (v. capítulo 3). Em primeiro

lugar, propus que o polissistema literário de origem dos autotradutores

constituísse um critério para a classificação das pré-condições preenchidas pelos

autotradutores estudados até hoje. Já demonstrei que Nabokov e Kundera eram

escritores provenientes de polissistemas literários não hegemônicos (o russo e o

tcheco, respectivamente), que são entendidos como aqueles que, entre outras

coisas, tendem a importar modelos estrangeiros e a produzir poucas inovações.

João Ubaldo Ribeiro, proveniente de um polissistema literário fraco, também fez

da autotradução para o inglês, a meu ver, uma tentativa de atingir não só o

público-leitor norte-americano, mas também outros públicos para os quais a

versão inglesa de seus romances serviria como texto-fonte, em traduções indiretas.

Assim, considero que a autotradução foi até hoje mais comum entre escritores

provenientes de sistemas literários não hegemônicos. Além de João Ubaldo,

Nabokov e Kundera, há outros escritores que se autotraduziram, como

Rabindranath Tagore, Cabrera Infante e Héctor Feliciano, por exemplo,

igualmente provenientes de polissistemas mais limitados.

Em relação ao cânone literário de um país, muitos escritores que traduziram

seus próprios textos tornaram-se canônicos em polissistemas estrangeiros a partir

da autotradução, na maioria dos casos. Como Pascale Casanova (2002) aponta,

Tagore, por exemplo, cujo “reconhecimento universal (seu prêmio Nobel) data de

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sua autotradução do bengali para o inglês” (p. 172), é um desses casos. A

autotradução também representou para Beckett, Nabokov e Kundera uma etapa no

processo de reconhecimento internacional. O caso de João Ubaldo Ribeiro é

diferente daqueles que mencionei acima, pois o escritor brasileiro não obteve o

reconhecimento que, segundo Casanova, os textos daqueles autores obtiveram (p.

169-185) e tampouco a autotradução permitiu que o brasileiro tivesse acesso a

uma “verdadeira existência e reconhecimento literários” (p. 177) fora das

fronteiras de seu país, como o próprio escritor aponta (Cadernos, 1999, p. 41).

Entretanto, ela contribuiu para que João Ubaldo se tornasse, dentro do território

nacional, um escritor ainda mais prestigiado. Em artigo publicado no volume João

Ubaldo Ribeiro: obra seleta (2005), João Carlos Teixeira Gomes descreve a

versão de Viva o povo brasileiro para o inglês como “recriação do romance, um

novo texto que surgiu como palimpsesto do anterior”, exalta seu “mérito” e

caráter de “façanha inédita” e “tarefa hercúlea” e finaliza afirmando que “não

conhece proeza literária igual” (p. 75). Na verdade, o que Gomes faz, através da

utilização de itens lexicais que sugerem o enaltecimento do processo escolhido

por João Ubaldo para a versão das obras para o inglês, é contribuir para que a

“façanha” seja conhecida do público-leitor brasileiro, que, mais do que

simplesmente saber do fato, poderá admirar o escritor ainda mais. O fato de que a

versão de Viva o povo brasileiro para qualquer idioma é uma tarefa complicada

não só pela complexidade lingüística, mas também porque a obra é “rica em

significados culturais peculiares, caracteristicamente nacionais” (ibidem), também

contribui para que a admiração pelo escritor brasileiro seja ainda maior. Outro

ponto que considero relevante na discussão de Gomes é a classificação de An

invincible memory como “palimpsesto do anterior”. Certamente, a autotradução

foi para João Ubaldo uma etapa cumprida para que sua carreira internacional

pudesse ter início, e os textos autotraduzidos acabaram adquirindo, por vezes, o

status de texto-fonte porque serviram de base para outras traduções. Como

veremos adiante, o escritor introduz alterações que demonstram sua preocupação

com a produção de uma obra “limpa”, por assim dizer, livre de erros que

poderiam causar interpretações “sem êxito” (Eco, 1979b, p. 41). Além dessas,

outras modificações indicam a opção de João Ubaldo pelo afastamento do original

e a conseqüente tentativa, no meu entender, de continuar o processo criativo de

construção do autor-modelo original. Nesse sentido, An invincible memory pode

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ser visto como palimpsesto de Viva o povo brasileiro. Por outro lado, o escritor

nega a visão da autotradução como palimpsesto quando afirma que acabou “não

reescrevendo ou retocando nada” e foi “muito respeitoso com o original” (e-mail,

18/07/2003). A meu ver, aqui João Ubaldo descreve o texto-base como uma obra

estável, cujos significados podem ser transferidos sem “retoques”, e reafirma a

condição de obra singular, única, que se aplica somente ao romance original

escrito na língua portuguesa. Conseqüentemente, o texto autotraduzido não é

palimpsesto do original, mas sim um texto que reproduz, “respeitosamente”, o

texto-fonte sem, no entanto, ocupar seu lugar.

Finalmente, em relação à freqüência da autotradução, vejo que João Ubaldo

desistiu da tarefa – que executou duas vezes – e preferiu ver O sorriso do lagarto

e A casa dos budas ditosos traduzidos para o inglês por Clifford Landers, tradutor

profissional norte-americano. É importante ressaltar, finalmente, que Beckett é o

único escritor que traduziu seus próprios textos por toda a vida, mesmo depois de

alcançar o reconhecimento literário fora de seu país de origem (Casanova, 2002,

p. 179).

Terminada a análise das pré-condições para as autotraduções de João Ubaldo

e do tipo produzido, passo agora a apresentar os motivos que levaram João

Ubaldo a traduzir os romances Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro. Nesta

discussão, o artigo “Suffering in translation” é de extrema importância e já indica

em seu título que a tarefa de traduzir o próprio original não foi motivada pelo

prazer. Na verdade, João Ubaldo afirma, assim como Beckett (v. capítulo 3), que

não aprecia os desafios proporcionados pela tradução (e-mail, 08/10/2003;

02/10/2005) e, por isso, as razões que o levaram a aceitar a proposta de traduzir

seus dois romances se devem a “circunstâncias especiais” (08/10/2003). Vejamos

agora quais são elas.

A tradução de Sargento Getúlio foi iniciada por um tradutor norte-americano

(cujo nome não me foi fornecido) que, depois de traduzir as trinta páginas iniciais

do romance, desistiu da tarefa, segundo João Ubaldo, por causa da dificuldade de

compreensão do “sergipês”, o dialeto selecionado pelo autor-modelo original

(Ribeiro, 1990, p. 3; e-mail, 07/08/2003). O escritor brasileiro ratifica a opinião de

editores e agentes norte-americanos: a subcompetência bilíngüe, notadamente a

competência gramatical, é um fator fundamental para a tradução e dá vantagens ao

autor de Sargento Getúlio. O escritor comenta que

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lembra, genericamente que, em certos trechos, quando um tradutor estrangeiro, ou mesmo um leitor brasileiro, teria certa dificuldade em saber o que ele queria dizer, ele não enfrentava esse problema, porque sabia bem o que queria dizer, não tinha de pensar muito no assunto. (e-mail, 18/07/2003)

O “sergipês”, causador de dificuldades de compreensão para tradutores e leitores,

estrangeiros ou não, não apresentou desafios para o autotradutor, conhecedor do

dialeto, e o ato cooperativo da leitura foi facilitado pelo fato de que o autor, a

quem são atribuídas as escolhas lexicais e sintáticas, por exemplo, registradas no

nível da manifestação linear do texto, foi também o tradutor. Não quero dizer com

isto que João Ubaldo tenha sido o “melhor” tradutor ou o “único” capaz de

construir uma interpretação coerente. Ressalto apenas que sua competência

enciclopédica, que abrange a subcompetência bilíngüe e, portanto, o

conhecimento do “sergipês”, deu a ele uma vantagem sobre o tradutor que iniciou

a tarefa.

É importante também notar que os editores enviaram o original de volta para

João Ubaldo, desistindo, pelo menos temporariamente, da versão para o inglês

porque o tradutor escolhido, como já afirmei, desistiu da tarefa complicada de

traduzir o romance. João Ubaldo Ribeiro resolveu então, “porque era jovem e

tinha ilusões”, se voluntariar para executar o trabalho (1990, p. 3). Em outras

palavras, o desejo de atingir o público-leitor estrangeiro e de se ver inserido em

um sistema de literatura traduzida que lhe abriria as portas para a publicação em

outros países além daqueles para cuja língua o romance já havia sido traduzido foi

um motivo fundamental para a opção pela autotradução. Na verdade, a idéia da

tradução como possibilidade de acesso à visibilidade e à existência literárias e à

posterior consagração é recorrente, como afirma Casanova (2002, p. 171). Para

Beckett, Nabokov e Kundera, escritores exilados, a autotradução garantiu a

consagração em um novo espaço. O caso de João Ubaldo difere daqueles em

alguns aspectos: o escritor brasileiro não foi “obrigado” a adotar outra pátria,

outra língua, outros hábitos ou outra cultura e raramente produziu textos originais

em outra língua. Entretanto, fica claro que ele tinha como objetivo negociar a

possível inclusão de sua obra no cânone de literatura brasileira no exterior, e a

autotradução foi uma etapa nesse processo. Assim, as “circunstâncias especiais”

que motivaram a autotradução de Sargento Getúlio podem ser resumidas na

experiência negativa com o primeiro tradutor e no desejo de João Ubaldo Ribeiro

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de alcançar outros públicos. Vejamos agora o caso de Viva o povo brasileiro / An

invincible memory.

No relato sobre as causas que o fizeram traduzir o romance Viva o povo

brasileiro para o inglês, entra em cena um ator importante para a literatura

brasileira e para João Ubaldo em especial: o agente literário norte-americano

Thomas Colchie, que convenceu o escritor brasileiro de que ele seria a única

pessoa capaz de traduzir a obra para o inglês. Para o agente, a complexidade do

romance, cheio de “todos os tipos de ‘sublínguas’” (Ribeiro, 1990, p. 3), faz da

versão de Viva o povo brasileiro uma tarefa bastante complicada. Observo, assim,

que a subcompetência bilíngüe é apontada mais uma vez como atributo essencial

e, aparentemente, decisivo para que um tradutor possa executar a tarefa.

Entretanto, a competência exigida para a versão de Viva o povo brasileiro está, na

visão de Colchie, acima daquela que os profissionais norte-americanos têm (e-

mail, 20/07/2006). Note-se que, segundo João Ubaldo, a tarefa de traduzir o

romance foi oferecida a um tradutor profissional que se recusou a executá-la (e-

mail, 31/05/2004). Observo também que a sabida competência enciclopédica do

autor empírico (João Ubaldo Ribeiro, no caso) é tomada em consideração pelo

agente.

É a partir da versão de Viva o povo brasileiro para o inglês que Colchie

passa a exercer um papel fundamental na carreira internacional do renomado autor

brasileiro. As publicações de romances de sua autoria em outros países da Europa,

especialmente, tornaram-se mais freqüentes exatamente na década de 80, a partir

do início do trabalho do agente norte-americano. Como afirma Maria Lucia

Daflon Gomes (2005), os agentes são figuras importantes “para a venda de títulos

brasileiros para outros países” (p. 84) e na carreira de João Ubaldo ele exerce um

papel de extrema relevância, como pude constatar.

Passo agora a apresentar o processo de publicação de Sergeant Getúlio e An

invincible memory e os paratextos que acompanham a obra traduzida. Tal

discussão é importante, pois os paratextos tendem a fornecer informações acerca

das normas que governam processos tradutórios. Para essa análise, servem de base

as questões propostas por José Lambert e Hendrik van Gorp (1985) para o

segundo estágio de seu modelo: os dados preliminares. Antes, porém, da análise

dos paratextos em si, considero relevante apresentar as condições que circundaram

a publicação de Sergeant Getúlio e An invincible memory. Julgo esta discussão

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apropriada pois ela explicará, de certa forma, escolhas de editores e do próprio

tradutor. Além disso, minha análise dessas condições revelará aspectos da

autotradução que não foram discutidos até hoje nos trabalhos sobre a autotradução

em geral.

4.4

O processo de publicação e os paratextos

Sergeant Getúlio e An invincible memory foram publicados por editoras

diferentes, o que evidencia a falta de um projeto editorial para a divulgação da

obra de João Ubaldo nos Estados Unidos. A iniciativa para a tradução de ambos

os textos foi, contudo, das editoras, e não de um tradutor, de um agente literário

ou do próprio escritor (e-mail, 12/04/2006).

Sargento Getúlio foi publicado no Brasil em 1971 e nos Estados Unidos, em

1978, pela Houghton Mifflin Company, uma das maiores editoras norte-

americanas. Verifiquei durante uma visita ao site da Houghton Mifflin que o

romance não está mais em seu catálogo, já que ele foi lançado nos Estados Unidos

há mais de vinte anos e não obteve sucesso de vendas. Acredito que o interesse na

publicação deveu-se em parte ao fato de que o romance publicado em Portugal e

na França (em tradução) foi bem recebido pela crítica internacional, além de ser o

trabalho de um escritor considerado por leitores profissionais uma das novas

vozes literárias brasileiras.

Em sua análise sobre a literatura brasileira em geral, Barbosa (1994) atribui

um papel decisivo ao interesse norte-americano em conhecer e proteger os países

da América Latina contra a influência cubana e em promover o crescimento da

amizade entre as nações do continente americano através da comunicação

intercultural (p. 61-75). Nos anos 1970, os departamentos de Estudos Latino-

Americanos proliferaram nas universidades norte-americanas e o governo

financiava pesquisas sobre os países da América Latina (ibidem). Programas da

Association of American University Presses e do Instituto de Estudos Latino-

americanos da Universidade de Columbia incentivaram, com o apoio da Fundação

Rockefeller e da Fundação Ford, a publicação e distribuição de livros traduzidos

(p. 46-47). Considero, portanto, que a tradução de Sargento Getúlio para o inglês

é motivada pelo mesmo interesse e contexto. No romance, o principal personagem

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é um sargento, membro da força policial do estado de Sergipe, que, cumprindo as

ordens de seu chefe, captura um de seus inimigos políticos e tenta levá-lo para a

prisão em Aracaju. No caminho, Getúlio tortura o prisioneiro e é interceptado por

tropas federais que tentam libertá-lo, já que a situação política havia mudado e o

chefe de Getúlio não tem mais poder para dar ordens. Incapaz ou sem desejo de

entender que foi traído pelo chefe, Getúlio oferece resistência ao ataque das tropas

e termina assassinado. Tendo o público-leitor profissional relacionado o romance

ao momento político vivido pelos brasileiros (Coutinho, 1998, p. 67), não causa

espanto, no meu entender, que sua publicação fosse de interesse do governo norte-

americano. No ano de 1971, quando o livro foi lançado no Brasil, os brasileiros

assistiram à prisão do deputado Rubens Paiva no Rio de Janeiro; à condenação à

morte (na primeira sentença de morte concedida pela justiça desde a implantação

da República) do jovem membro do Partido Comunista Brasileiro, Teodomiro

Ribeiro dos Santos; à caçada e morte na Bahia de Carlos Lamarca e seu

companheiro José Campos Barreto;e à promulgação da lei 5692, que tornou a

disciplina “educação moral e cívica” obrigatória em todas as escolas, em níveis

médios, universitários e de pós-graduação (p. 56-58). Barbosa (1994, p. 107)

comenta também que havia naquele momento um interesse do público norte-

americano em geral por obras que descrevessem situações verdadeiras. Portanto,

considero que, ao relacionarem Sargento Getúlio ao momento histórico que o

Brasil atravessava, os leitores profissionais brasileiros fizeram dele um romance

“publicável” nos Estados Unidos, já que narra – ou que é baseado em – a história

“factual” do povo brasileiro. Observo, conforme mencionei anteriormente, que

além do desejo do escritor, a patronagem (v. Lefevere, 1992, p. 12-25) –

institucional, no caso – assegurou a publicação de Sergeant Getúlio nos Estados

Unidos. Vejamos agora o que acontece com Viva o povo brasileiro / An invincible

memory.

O romance foi publicado em 1984 no Brasil e lançado nos Estados Unidos

em 1989 pela Harper & Row, que em 1987 havia sido adquirida pela News

Corporation. Com efeito, a compra de uma editora por uma holding ilustra um

acontecimento cada vez mais comum nos Estados Unidos, onde o mercado

editorial “está velozmente se transformando em uma pequena parcela do conjunto

da indústria de comunicações” (Schiffrin, 2006, p. 20) e a lista de editoras

independentes é cada vez menor (p. 15), o que vem dificultando ainda mais a

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publicação de obras estrangeiras traduzidas. Interessadas, principalmente, no

lucro, as holdings têm pressa em atingir um grande público-leitor (p. 28), algo que

nem sempre as traduções estão fadadas a alcançar, especialmente nos Estados

Unidos. Entretanto, observo que o segundo romance de João Ubaldo também foi

publicado por uma grande editora e, à semelhança de Sergeant Getúlio, uma busca

no site da editora por “João Ubaldo Ribeiro” e An invincible memory não produz

resultados. Assim, enquanto no Brasil o romance chegou em 2005 à 2ª impressão

de sua 3ª edição, nos Estados Unidos o escritor brasileiro permanece alvo de

pouco interesse. Na verdade, An invincible memory foi lançado em edição de capa

dura e nunca chegou à publicação em paperback, o que evidencia o pouco

impacto do romance no sistema norte-americano de literatura traduzida (Landers,

2006a).

Entre os motivos que levaram à encomenda da tradução e à posterior

publicação de An invincible memory nos Estados Unidos, considero o sucesso

estrondoso de vendas e de crítica do romance no Brasil como um fator essencial.

Ratifica-se assim uma das conclusões de Daflon Gomes (2005), que afirma que

“forças domésticas são o ponto de partida para a geração de um sistema de

literatura brasileira em inglês” (p. 134). Em outras palavras, o lugar ocupado por

um autor em seu polissistema literário de origem é um fator influenciador da

seleção para tradução. Consagrado no Brasil, sucesso absoluto de vendas na Nova

Fronteira, não é surpreendente que a editora norte-americana veja em João Ubaldo

uma escolha possível. Entretanto, não se pode deixar de lado, mais uma vez, o

momento político vivido pelos brasileiros na época da publicação de An invincible

memory. O ano de 1984 é o ano do movimento “Diretas já”, que defendia a

votação da emenda do deputado Dante de Oliveira, que propunha eleições diretas

para presidente da República e que foi derrubada pela Câmara Federal. O colégio

eleitoral elegeu, contudo, depois de grande pressão popular, o novo presidente,

Tancredo Neves, apoiado pela oposição aos militares (Coutinho, 1998, p. 78). Foi

um momento importante da história política brasileira, com “a chegada do

primeiro presidente civil em 22 anos, a volta dos exilados e o fim da censura”

(Daflon Gomes, 2005, p. 27). Além de bestsellers, portanto, João Ubaldo Ribeiro

e Viva o povo brasileiro “podem, sim, representar a literatura de tom ufanista e de

afirmação da identidade nacional, característica da década de 1980” (p. 29). Há

ainda que se considerar outro fator importante: o trabalho do agente literário,

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como já afirmei anteriormente. Segundo João Ubaldo, Thomas Colchie, agente

com interesse especial nos autores latino-americanos, “é responsável por

praticamente tudo o que aconteceu [com Ubaldo], editorialmente, no exterior” (e-

mail, 13/01/2004) e “pode ser considerado um dos nomes de grande importância

para a divulgação da literatura brasileira e latino-americana no sistema de língua

inglesa” (Daflon Gomes, 2005, p. 87). Além de agente, Colchie traduziu, entre

outros, poemas de Carlos Drummond de Andrade; o romance Memórias do

cárcere / Jail memoirs, de Graciliano Ramos; Galvez, imperador do Acre /

Emperor of the Amazon e Mad Maria, de Márcio de Souza; e organizou três

antologias de contos latino-americanos: A hammock beneath the mangoes: stories

from Latin America (Penguin Books, 1991), The Penguin book of Latin American

short stories (Plume, 1992) e A whistler in the nightworld: short fiction from the

Latin Americas (Plume, 2002). Entre elas, destaco a primeira, que traz contos

escritos por Jorge Amado, Murilo Rubião, Machado de Assis, Moacyr Scliar,

Guimarães Rosa, Ligia Fagundes Telles, Rubem Fonseca, Paulo Emilio Salles

Gomes e João Ubaldo Ribeiro.

Observo que o papel de Colchie vai além da publicação dos romances em si.

Ele é responsável também pela tentativa de inclusão de João Ubaldo no canône de

literatura brasileira (traduzida) nos Estados Unidos com a publicação do conto “It

was a different day when they killed the pig” na primeira antologia de contos de

escritores latino-americanos que organizou. Observo que o texto de João Ubaldo

aparece em uma antologia de contos latino-americanos, confirmando-se assim o

que Heloisa Barbosa (1994) afirma sobre a publicação de contos brasileiros: eles

aparecem freqüentemente em antologias de literatura latino-americana em geral e

não nas (raras) antologias de literatura brasileira (p. 11). É importante apontar

também que, depois de exaustivas buscas em bibliotecas, virtuais ou não, pude

constatar que somente o conto “Alaindelon de la patrie”, de autoria de João

Ubaldo, foi publicado em outra antologia, intitulada The Faber book of

contemporary Latin American short stories (Caistor, 1989), outra coleção de

contos de autoria de escritores latino-americanos. A mais recente antologia de

contos brasileiros de que tenho notícia, a Anthology of the Brazilian short story

(Jackson, 2006), traz contos de autoria de Machado de Assis, Lima Barreto, Mário

de Andrade, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Clarice Lispector,

Carlos Drummond de Andrade, Nélida Piñón, Rubem Fonseca e Milton Hatoum,

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entre outros, repetindo uma seleção de autores cujos contos são freqüentemente

incluídos em antologias, mas não inclui nenhum texto escrito por João Ubaldo

Ribeiro. A princípio, considerei que ele não se destaca pela escrita de contos e por

isso não teria sido selecionado por K. David Jackson, o organizador do volume.

Entretanto, Jorge Amado, que, como o próprio Jackson afirma, “nunca se

especializou” (2006, p. 215) no gênero, teve uma tall tale publicada no volume.

Tampouco Carlos Drummond de Andrade foi um especialista no gênero. Assim,

devo procurar outras explicações que justifiquem os poucos contos de autoria de

João Ubaldo publicados em antologias de literatura latino-americana e brasileira.

Em primeiro lugar, há as diretrizes da editora para a publicação. Neste caso,

Jackson só poderia escolher entre contos já traduzidos e publicados. Em segundo

lugar, há o aspecto legal. A autorização é necessária para que um conto seja

incluído em uma antologia. Em palestra proferida na PUC-Rio36, o professor Ítalo

Moriconi, organizador do volume Os cem melhores contos do século (2000),

declarou que um conto de Guimarães Rosa não foi incluído porque não houve

acordo financeiro entre a editora e a família do escritor, que detém os direitos

legais sobre sua obra. Além dos direitos autorais, dificuldades com agentes ou

outras editoras podem impedir a publicação. Em terceiro lugar, como afirma

Jackson (2006, p. viii), há a “dimensão humana”, já que o organizador é

responsável por uma seleção que se baseia também em suas próprias preferências

pessoais. Assim, a publicação de uma antologia é um processo influenciado pelos

mais diversos fatores. No caso de João Ubaldo Ribeiro, dificuldades com as

editoras parecem ter impedido a publicação de um conto de sua autoria. Não há,

entre os contos publicados na Oxford anthology of the Brazilian short story,

nenhum conto publicado pela Plume Fiction ou Faber & Faber, editoras que

publicaram as antologias onde os dois contos de João Ubaldo a que me referi

acima estão inseridos. O fato é que, como afirma Lefevere (1990), além da

historiografia e da crítica, a publicação de uma antologia “prepara obras para a

inclusão no cânone da literatura mundial” (p. 27) e favorece de forma decisiva a

circulação do capital cultural em um polissistema literário. Observo, portanto, que

a falta desse tipo de publicação evidencia, ao mesmo tempo em que propicia, a

pouca circulação da obra traduzida de João Ubaldo Ribeiro no sistema de

36 A palestra de Ítalo Moriconi foi parte do curso Tópicos sobre cultura brasileira (LET 2259), ministrado pela professora Marília Rothier Cardoso no segundo período de 2003 na PUC-Rio.

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literatura traduzida norte-americano, como o próprio escritor já havia antecipado

em sua entrevista aos Cadernos de literatura brasileira (1999). Some-se ainda, à

falta de publicações em antologias, o fato de que a língua portuguesa não é até

hoje uma entre as dez línguas mais freqüentemente traduzidas para o inglês (v.

http://databases.unesco.org/xtrans/xtra-form.html).

Finalmente, é importante destacar os quatro tipos principais de obras

literárias brasileiras entre as traduzidas para o inglês (Barbosa, 1994, p. 83-109),

que ajudam a explicar as razões para sua publicação: 1. obras embaixadoras; 2.

obras orientadas para o consumo; 3. obras autorais; 4. obras tópicas. Note-se que,

apesar de separadas didaticamente, funções distintas podem ser desempenhadas

pela mesma obra.

As obras embaixadoras têm por objetivo representar a cultura-fonte na

cultura-alvo. As Ciências Sociais aparecem como principal área de interesse, e

assuntos como a religião – a “Teologia da Libertação” – e a educação – as obras

de Paulo Freire e a “conscientização” – aparecem em posição de destaque. O

conteúdo das obras embaixadoras indica uma busca pela autenticidade, ou a ilusão

da autenticidade. Assim, haverá romances que, ao tratar de fatos históricos,

preenchem o requisito e são publicados pelas mesmas razões que as obras do

teólogo Leonardo Boff e as do educador Paulo Freire o foram.

As obras voltadas para o público consumidor são aquelas que tentam

atender a demanda do público-leitor anglo-americano. Segundo Barbosa, elas são

publicadas, aparentemente, por causa de seu sucesso de vendas no país de origem,

o que indicaria possibilidade de sucesso no mercado estrangeiro (1994, p. 90).

Jorge Amado é um dos autores inseridos na categoria e, mais recentemente, Paulo

Coelho.

As obras autorais são aquelas produzidas por autores canonizados no

polissistema literário de origem e por aqueles que foram aceitos no cânone de

literatura brasileira no exterior. Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice

Lispector e até Jorge Amado estão inseridos nesta categoria. A ampla circulação

da obra de Amado no exterior, com suas muitas traduções, reimpressões e

retraduções deram ao autor uma posição de destaque nos cânones literários da

cultura de origem que vigoram nos sistemas receptores.

As obras tópicas são aquelas que foram traduzidas por causa do interesse

despertado no país de origem na época da tradução. Uma das características desse

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tipo de obra é a popularidade efêmera e o foco em assuntos que sejam relevantes e

atuais. Olga, de Fernando Moraes, e a biografia de Chico Mendes são exemplos

de obras que se inserem nessa categoria.

Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro têm funções ao mesmo tempo

semelhantes e distintas. Com o conteúdo freqüentemente relacionado ao momento

histórico brasileiro da época, Sergeant Getúlio pode ser incluída entre as obras

embaixadoras, assim como An invincible memory, por ser baseada em

acontecimentos históricos. Além disso, como discuti anteriormente, An invincible

memory alcançou um grande sucesso de vendas no Brasil e, por isso, pode ser

incluída entre aquelas voltadas para o público consumidor. Assim, os romances de

João Ubaldo assemelham-se porque podem ser considerados representantes da

cultura brasileira no sistema norte-americano de literatura traduzida, mas diferem

porque o primeiro não obteve sucesso de vendas no Brasil e, por isso, não pode

ser considerado uma obra voltada para o público consumidor.

Considero, portanto, que a publicação de romances autotraduzidos está

sujeita a várias condições e, a depender do sucesso alcançado pela obra, tais

condições podem desempenhar um papel de maior ou menor relevância. O caso de

Kundera exemplifica bem como a consagração fora das fronteiras de seu país de

origem pode aumentar o poder do autor ou até mesmo garantir a ele reedições

causadas, fundamentalmente, pela avaliação negativa que o escritor faz do

trabalho do tradutor. A pesquisa de Michelle Woods (2006) é uma contribuição

importante para a compreensão de questões pouco estudadas até hoje, tais como o

papel do editor na publicação dos romances e o poder do autor. Já no caso de

Beckett, as condições que circundam a publicação de suas obras na França e na

Inglaterra são praticamente desconhecidas, pois as pesquisas tendem a se

concentrar no autor, figura de destaque no cenário internacional, e nas

modificações que introduziu em suas autotraduções. No caso de Nabokov, há

indícios de que as condições que cercavam seus textos autotraduzidos exerceram

um papel importante, mas não há relatos minuciosos sobre o tema. Há ainda o

caso dos autotradutores catalães e escoceses. Em se tratando de dois grupos de

autores inseridos em países onde as questões lingüísticas influenciam de forma

decisiva a opção dos escritores, seria esperado que as pesquisas sobre as

autotraduções publicadas nesses locais enfocassem as condições que as

circundam. E, de fato, as pesquisas sobre os poetas autotradutores escoceses têm

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como foco sua opção pela autotradução e as implicações das edições bilíngües.

Por outro lado, os relatos dos escritores catalães e as pesquisas sobre seu trabalho

tendem a abordar a autotradução em si e a individualidade dos autotradutores,

deixando de fora o contexto que motiva tantos textos autotraduzidos. No caso de

João Ubaldo Ribeiro, como afirmei anteriormente, esta tese é o primeiro trabalho

que leva em conta as condições que propiciaram o lançamento de suas obras

autotraduzidas no polissistema literário norte-americano.

Passo agora a analisar as capas, contracapas e orelhas das edições de

Sergeant Getúlio e de An invincible memory. Tal análise, como afirmam Lambert

e van Gorp (1985), fornecerá hipóteses que poderão ser confirmadas ou rejeitadas

durante a fase seguinte do modelo para a investigação de traduções.

O primeiro romance traduzido pelo próprio autor, Sergeant Getúlio, em

edição de capa dura (v. anexo 1), traz na capa informações relevantes, tais como o

gênero da obra e o fato de o romance ter sido aclamado nacional e

internacionalmente (v. seção 4.1). Tenta-se convencer o leitor da qualidade da

obra, através da busca por uma chancela internacional que facilite sua circulação

no mercado estrangeiro. A capa da primeira edição brasileira, por outro lado, dá

início à narrativa, já que os leitores começam aí a travar contato com um sargento

justiceiro, que luta por uma causa, mas cujas armas e aparência não sugerem

vitória (v. anexo 2), já que usa vestimentas comuns (e não um uniforme militar,

por exemplo, que sugeriria a pertença à força policial) e um chapéu de palha.

Informa-se ainda ao leitor, na capa de Sergeant Getúlio, que Jorge Amado

escreveu a apresentação do romance. Se considerarmos que ele era, até

recentemente, o único escritor brasileiro conhecido fora do Brasil, aquele com o

maior número de livros traduzidos (quinze, no total) e ainda que seus romances

eram encontrados em edições de bolso em aeroportos, supermercados, bancas de

jornal e lojas de livros usados no mundo todo (Barbosa, 1994, p. 91), a

apresentação escrita por ele poderia ajudar o lançamento internacional de um

autor novo. Assim, a inclusão da informação na capa do livro é bastante

compreensível como estratégia de lançamento. Heloisa Barbosa comenta ainda

que, no lançamento de seus romances, editores tentam estabelecer relações entre

novas obras e fatos conhecidos do público-leitor alvo. Mais uma vez, creio que a

estratégia se aplica ao caso de João Ubaldo. Jorge Amado era um escritor popular

e os leitores norte-americanos de ficção brasileira (ou latino-americana) já tinham

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construído expectativas em relação a ele e, por extensão, a obras por ele indicadas.

Na apresentação do romance, ele reafirma a qualidade de Sergeant Getúlio

descrevendo-o como um romance que fala de um Brasil “genuinamente

brasileiro”, ao contrário da arte brasileira alienada de seus próprios valores da

época e ressalta assim, a meu ver, a autenticidade – uma demanda do público-

leitor norte-americano – da história ali narrada. Amado aponta Sergeant Getúlio

como um dos romances mais importantes “para o desenvolvimento da ficção

brasileira” (Ribeiro, 1978, p. ix) e enfatiza que “o romancista usa seu

conhecimento profundo da linguagem falada pelo povo e da mais profunda

realidade do povo. Sua linguagem literária é um instrumento de criação fértil e

poderoso, competente e fiel na representação artística da vida do homem

brasileiro” (p. xi). Julgo relevante ressaltar aquela que, para Amado e para outros

críticos literários apreciadores do romance ubaldiano, é a característica mais

contundente da primeira obra do escritor lançada em tradução nos Estados

Unidos: o uso criativo da linguagem, exemplificado nos erros intencionais,

neologismos e na criação de palavras, entre outras marcas. Acredito que Jorge

Amado se refere aqui àquela que vai se tornar uma marca de estilo freqüentemente

destacada na obra de João Ubaldo. Contudo, como discutirei posteriormente, a

criatividade lingüística não é ressaltada de forma tão contundente por leitores

profissionais de Sergeant Getúlio, o que me leva a questionar se a introdução

escrita por Jorge Amado tem por base o texto vertido para o inglês ou se não é, ela

também, uma versão de um texto já existente em português.

A opinião de Amado não é diferente daquela de outros leitores profissionais

brasileiros, que consideram o uso que João Ubaldo faz da linguagem um traço

inovador de sua prosa (Lacerda, 2005, p. 51-73) e uma marca importante de sua

escrita em português. Esse uso deve ser ressaltado, pois analiso um romance

traduzido para línguas e culturas distintas e, assim, a riqueza da linguagem de

Sargento Getúlio sofre transformações que precisam ser exploradas. Mas volto,

por ora, à capa de Sergeant Getúlio.

O tradutor não é mencionado nenhuma vez na capa ou nas páginas iniciais

dessa edição. Sendo o próprio autor também tradutor do romance, pode-se ter

concluído que informações sobre o tradutor eram dispensáveis. Ainda assim, é

importante apontar que a exclusão do nome de tradutores das capas de romances

publicados no mundo inteiro foi uma prática bastante comum, apesar de começar

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a sofrer alterações, especialmente nos Estados Unidos. Assim, dada a época da

publicação, não é surpreendente que o nome do tradutor não apareça na capa de

Sergeant Getúlio. É importante apontar também que o nome de João Ubaldo

Ribeiro divide a capa com o título do romance, e que ambos aparecem digitados

com caracteres igualmente grandes. Título e autor merecem, portanto, igual

destaque. Observo que a capa do romance traz “impressa” a supremacia do autor

e, por outro lado, a invisibilidade do tradutor. Considero, contudo, que a omissão

da informação de que o autor traduziu sua própria obra impressa no próprio

exemplar pode ser vista com certa surpresa, pois essa é uma informação que,

quando dada aos leitores, agrega valor à tradução. Dependendo do tipo de

publicação, a tradução pode alcançar o mesmo status do original, como no caso

dos poetas escoceses discutido anteriormente.

A expressão translated by the author impressa nas páginas iniciais ou nas

capas de livros autotraduzidos demonstra que esse profissional prestigiado tem

autoridade e liberdade que o tradutor não tem. Entretanto, não vejo as

autotraduções como textos que substituem os originais por serem seus únicos

representantes honestos e verdadeiros. A tradução nunca é uma atividade neutra,

que permite que a obra literária cruze fronteiras lingüísticas e culturais sem sofrer

transformações, mesmo que o guia seja o próprio autor do original. Além disso,

textos autotraduzidos não são cópias idênticas de seus originais, assim como

nenhuma tradução é cópia idêntica de um original. Contudo, a tradução realizada

pelo próprio autor confere um status especial ao texto, quando o leitor tem acesso

a essa informação. Assim, considero surpreendente que os editores norte-

americanos do romance Sergeant Getúlio não tenham apresentado o romance ao

público-leitor como aquilo que ele é: uma obra autotraduzida.

Na orelha de Sergeant Getúlio muitos elogios são registrados. Menciona-se

o fato de que o romance recebeu o prêmio Jabuti (v. seção 4.1) e foi publicado em

Portugal e na França (tradução), demonstrando-se mais uma vez a aprovação do

estrangeiro. Finalmente, dados biográficos breves informam que o autor é mestre

em Ciência Política pela Universidade da Califórnia e que foi escritor visitante do

International Writing Program da Universidade de Iowa (v. seção 4.1). Noto aqui

que é importante apresentar o autor como possuidor das subcompetências bilíngüe

e extralingüística (v. Darin, 2006, p. 111) necessárias à prática tradutória. De fato,

o contato através de e-mail com editores e agentes norte-americanos e ingleses

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revela apreensão em relação ao nível de conhecimento lingüístico de um falante

não-nativo, como discuti anteriormente. Assim, é natural que o editor veja a

necessidade de informar o público-leitor, como parte da estratégia de lançamento,

do fato que o autor empírico (João Ubaldo Ribeiro, no caso) tem conhecimentos

lingüístico e cultural comprovados. Evidentemente, pode-se argumentar que, se o

público-leitor não sabe que o autor traduziu a própria obra, as informações na

orelha não são relevantes. Entretanto, as resenhas publicadas em vários jornais dos

Estados Unidos informam que o autor é o tradutor. Assim, é possível argumentar

que o fato não era completamente desconhecido do público-leitor que se interessa

por literatura (brasileira ou latino-americana) traduzida.

A primeira página do romance contém seu título e na folha seguinte o

encontramos mais uma vez, juntamente com o nome do autor, o nome da editora,

local e ano de publicação. Em seguida, há informações sobre a publicação e

direitos autorais – João Ubaldo detém todos os direitos sobre a obra. Somente

nesse momento o leitor ficará ciente de que o volume é uma tradução, já que a

expressão translation of Sargento Getúlio foi impressa na página, mas não saberá

quem realizou a tarefa. Acredito também que as informações impressas em

caracteres de tamanho reduzido podem ser facilmente ignoradas pelo público-

leitor, exceto talvez o público de leitores profissionais. Assim, a meu ver, poucas

pessoas saberão que o romance é uma tradução se a leitura do texto traduzido em

si é o único tipo de contato com a obra (se não lerem as resenhas, por exemplo).

Tais fatos levam John Milton (2002) a afirmar que o romance é um pseudo-

original, ou seja, um livro introduzido em uma cultura como um original e não

como tradução de material produzido em uma língua estrangeira. Não concordo

com essa opinião, mas voltarei ao tema em outro momento.

Na terceira página, há uma dedicatória – To Rona – e na página anterior

àquela onde se inicia o romance, a epígrafe – In this story Sergeant Getúlio takes

a prisoner from Paulo Afonso to Barra dos Coqueiros. It is a tale of virtue37.

Alguns comentários sobre a versão da epígrafe são necessários. Enquanto, no

original em português, o autor fala de história, a tradução fala em story e tale.

Considerando-se que, como afirma Barbosa (1994, p.107), fatos reais são os

principais alvos de interesse de leitores norte-americanos, o autotradutor parece

37 Na edição brasileira: Nesta história, o Sargento Getúlio leva um preso de Paulo Afonso a Barra dos Coqueiros. É uma história de aretê.

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trafegar na contramão dos interesses do público. É importante comentar também a

substituição de “aretê”, uma palavra de origem grega, por virtue. A propósito da

tradução da epígrafe de Sargento Getúlio, o autor revela ao jornalista Greg Price

que

em português o livro é precedido por um comentário que diz, “Esta é uma estória de ‘Aretê’”. “Aretê” é uma palavra grega que quer dizer “virtude” – a virtude do herói grego, não a idéia cristã de virtude. Quando fiz a versão para o inglês, decidi usar a palavra virtue, então é uma narrativa sobre virtue. (1990, p. 158)

Ao consultar ao dicionário e procurar o significado arrolado em primeiro lugar

para a palavra virtue, encontro a seguinte definição: moral goodness of character

and behaviour (v. Longman Dictionary of Contemporary English), justamente “a

idéia cristã de virtude” que Ubaldo pretendeu evitar ao utilizar a palavra de

origem grega. A palavra “aretê”, por outro lado, é assim definida por Maria Lúcia

Aragão:

“aretê” traz consigo a principal marca de um herói. O herói grego, aquele que representa a história de seu povo, de sua linhagem, é antes de tudo alguém que tem consciência de seu valor. Sua missão maior é lutar pela honra de sua raça e defender com a própria vida os seus princípios éticos, que jamais poderão ser vilipendiados, pois neles reside a herança que deve ser preservada. “Aretê” é, pois, valor, consciência de uma missão a ser cumprida, honra, dignidade. (1988, p. 104)

Assim, ao optar pela palavra virtue como substituta de “aretê”, o autotradutor

moveu-se em direção ao público-leitor norte-americano, usando a técnica da

tradução explicativa, de tendência domesticadora (Bentes, 2005), para traduzir um

item que certamente causou dificuldade para o leitor brasileiro. Considerando que

João Ubaldo usa as epígrafes para guiar a interpretação de seus romances, a

epígrafe inglesa dá outra indicação ao leitor. Por outro lado, como constatei

através da leitura do estudo do caso de Milan Kundera (Woods, 2006), a

fidelidade às expectativas do público-leitor estrangeiro em detrimento da

fidelidade ao original tem sido uma norma freqüentemente empregada por

editores que publicam romances traduzidos (p. 9). Como discuti anteriormente em

relação aos motivos que levaram João Ubaldo a traduzir seu próprio texto, é

natural que, movido pelo desejo de inserção em outros polissistemas literários, o

escritor brasileiro tenha optado, a princípio, por se aproximar do leitor estrangeiro.

Finalmente, a quarta capa apresenta uma foto do autor sorridente, vestido de

maneira informal, e o número do ISBN. A publicação de tal foto sinaliza, talvez, a

tentativa de veiculação da imagem de um brasileiro “típico”.

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A capa de An invincible memory (v. anexo 3) traz menos informações, se

considerarmos o número de palavras impressas, e estão inscritos nela o título do

romance, o nome do autor e o gênero – a novel. O nome do tradutor, mais uma

vez, não aparece, mas, como discuti anteriormente, essa não era uma atitude rara

na época do lançamento. A capa apresenta uma ilustração bastante significativa

em tons de verde. Em primeiro plano, há o desenho de uma baía que é vista

através de um espaço entre árvores do que parece ser uma floresta. Na baía, uma

caravela se move debaixo do céu azul com nuvens brancas. Em segundo plano, à

esquerda da baía, há algumas cabanas e casas, além de uma casa grande. No canto

esquerdo inferior da gravura, um pequeno tatu caminha. A ilustração

provavelmente lembrará os leitores do “realismo mágico”38, cujos autores tiveram

seus trabalhos publicados freqüentemente e tornaram-se famosos nos anos oitenta.

Além disso, a floresta, a caravela, as cabanas e o tatu são elementos que aludem a

um suposto conhecimento já adquirido pelo público norte-americano acerca da

América Latina. Heloisa Barbosa comenta, em relação ao caso da literatura

brasileira traduzida, que, entre outras estratégias de venda, é comum a tentativa de

estabelecer relações entre a obra lançada e informações, muitas vezes de correção

duvidosa, que habitantes de um país acreditam possuir sobre outros países,

culturas e povos (1994, p. 61-81). Assim, no meu entender, leitores norte-

americanos detentores de um conhecimento estereotipado sobre a América Latina

e autores latino-americanos adquirido através de diversas formas, entre elas a

leitura de literatura traduzida, veriam no livro de João Ubaldo Ribeiro relações

com outras obras já lançadas por outros autores latino-americanos, precursores do

realismo mágico.

A capa da primeira edição brasileira (v. anexo 4) traz uma paisagem de

alguma cidade localizada, provavelmente, no interior do Brasil. A vegetação

abundante que circunda a cidade sugere o solo fértil da área. Além da paisagem, a

capa brasileira informa o leitor dos prêmios concedidos ao romance: o Jabuti e o

Golfinho de Ouro (v. seção 4.1). Observo aqui a ênfase na comprovada qualidade

do romance como uma estratégia comum, usada também pelos editores de

Sergeant Getúlio, conforme discuti anteriormente.

38 A expressão “realismo mágico” (el real maravilhoso) é atribuída ao escritor cubano Alejo Carpentier que primeiro a usou no prólogo ao romance El reino de este mundo (1949), de sua autoria.

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O texto na orelha (cujo autor não é revelado) de An invincible memory

descreve algumas características do romance: um épico; um romance que reconta

as vidas de um grande número de personagens de todas as raças e classes sociais;

que combina história, anedota e mito; que descreve batalhas, casos de amor, a alta

sociedade e cerimônias de macumba. Fatos reais, a gosto do público norte-

americano, mais um pouco de tudo – em uma mistura exótica e “tipicamente”

latina, como parecem acreditar os norte-americanos. A orelha informa ainda que o

romance foi bestseller durante um ano no Brasil e que foi publicado em vários

países – Inglaterra, Alemanha, França, Itália, Espanha e Finlândia. A chancela

internacional é mais uma vez tida como importante. Outra vez, Jorge Amado é

chamado a comentar a obra e afirma que não conhece nenhum outro romance

brasileiro (publicado nos últimos vinte anos) mais bem escrito ou mais importante

e universal. Novamente, Jorge Amado, o escritor brasileiro mais famoso até então,

foi considerado peça fundamental para o lançamento de um romance de João

Ubaldo no exterior.

Na mesma orelha, as palavras do autotradutor brasileiro são usadas para

descrevê-lo e o revelam como uma pessoa diferente e divertida que estudou

Direito, não porque queria ser advogado, mas porque acreditava ser um

intelectual, e Direito era o que os intelectuais estudavam; que estudou

Administração Pública e Ciência Política na Universidade da Califórnia; que

trabalhou como jornalista e professor, mas decidiu que queria ser escritor em

tempo integral e pescar de vez em quando. O texto da orelha traz também

declarações de João Ubaldo sobre An invincible memory em que o escritor afirma

que “foi inventando a história na medida em que escrevia. O resto é história

brasileira como foi ensinada na escola, e na qual [João Ubaldo] não acreditou

numa só palavra”. Percebo um tom jocoso no texto cujo autor procura apresentar

Ubaldo como um sujeito despreocupado ou brejeiro. É possível que a percepção

do povo brasileiro como um povo bem humorado e exótico seja a norma adotada

pelo editor do romance também para a apresentação de Ubaldo.

Sobre a tradução em si, João Ubaldo Ribeiro afirma que demorou mais

tempo traduzindo o romance (cerca de dois anos) do que o escrevendo (cerca de

um ano e meio), sinalizando certa dificuldade em traduzir, apesar do vasto

conhecimento sobre a língua inglesa e a cultura norte-americana que os editores

salientam desde a publicação de Sergeant Getúlio, ao mencionarem o fato de que

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o autotradutor morou, estudou e trabalhou nos Estados Unidos. Como discuti

anteriormente, é importante que João Ubaldo seja apresentado como um indivíduo

de reconhecida competência lingüística e como alguém que está familiarizado

com o estilo de vida do povo estrangeiro.

Ao final do texto na mesma orelha de An invincible memory, Sergeant

Getúlio é mencionado como obra do autor aclamada pela crítica internacional

como an astounding success (The Atlantic). Na primeira página, o título do

romance aparece mais uma vez, em itálico e o verso desta mesma página traz nova

referência a Sergeant Getúlio. Na página seguinte, aparecem o título do romance,

o nome do autor e a informação, em itálico, de que a obra foi traduzida por ele

mesmo. Além de insinuar o status superior do texto traduzido, a informação

revela a ausência de um intermediário – um tradutor – entre o leitor e o original,

entre o leitor e a “intenção” do autor. Conseqüentemente, dá-se ao leitor a garantia

de fidelidade ou, se esta não está garantida, os leitores poderão apreciar outro

original, já que foi o autor quem fez a tradução. De fato, como já mencionei, as

obras de Samuel Beckett e Vladimir Nabokov são tratadas como originais,

autônomos ou independentes do texto anterior, em outra língua.

Destaco ainda um último e importante comentário sobre a expressão

translated by the author. Não há nela um apelo ao nome de João Ubaldo Ribeiro

em si, inclusive porque, diferentemente de Nabokov, Beckett e Kundera, por

exemplo, para quem a autotradução funcionou como uma etapa do processo de

literarização, João Ubaldo não se tornou um escritor consagrado junto ao público-

leitor norte-americano, e seu nome permanece conhecido apenas por um grupo

restrito de admiradores da literatura brasileira. Na verdade, acredito que há na

expressão o apelo à figura do Autor, autoridade única e absoluta sobre a obra e

uma figura extremamente prestigiada por leitores de maneira geral. Também não é

difícil reconhecer nas pesquisas sobre a autotradução a tentativa de fazer renascer

o Autor romântico, o “gênio criador”, a figura sacralizada, origem única de

significados nunca antes sugeridos. As teses de Helena Tanqueiro e Verena Jung,

especialmente, ratificam essa tendência sinalizada por Maria Filippakopoulou

(2005) nos estudos sobre o tema. Em artigo intitulado “Self-translation: reviving

the author?”, Filippakopoulou argumenta que a autotradução é um “adendo à

preferência geral (e pouco questionada) por uma tradução feita por mãos

sancionadas” (p. 23). A meu ver, tal sanção faz também com que a autotradução

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seja tida como a única possibilidade de resposta à demanda comum por um texto

traduzido “perfeito” e ratifica o caráter de impossibilidade geralmente atribuído à

tradução, como discuti anteriormente. Filippakopoulou aponta também, e

sensatamente a meu ver, aquela que é a principal lacuna das pesquisas sobre a

autotradução veiculadas até hoje: não há discussões sobre as condições que

possibilitaram essas produções ou sobre possíveis pressões de natureza sistêmica

que causaram a publicação e valorização desses textos (p. 24). Na verdade, o

estudo de Michele Woods sobre Milan Kundera, o estudo de Corinna Krause

sobre os poetas escoceses e este estudo de caso sobre João Ubaldo Ribeiro são os

únicos de que tenho notícia que procuram investigar esses aspectos. Creio que tal

tipo de estudo é importante, pois tenta compreender fatores históricos,

econômicos e ideológicos envolvidos na autotradução em vez do foco comum, até

o presente momento, das pesquisas sobre esse tema que priorizam a

individualidade do autor e contribuem, dessa forma, para que esse profissional

seja duplamente prestigiado. Em primeiro lugar, ele é prestigiado porque é criador

de objetos originais. Em segundo lugar, é prestigiado porque retorna ao original e

reinventa-o, segundo a concepção geral, em outra língua. Voltemos agora às

páginas iniciais de Viva o povo brasileiro.

Na mesma página, aparecem também o nome da editora, os locais onde ela

possui representantes (Nova York, Londres e São Paulo, entre eles) e o ano de sua

fundação – 1817. A Harper & Row é uma editora reconhecida internacionalmente,

e as informações impressas no livro certificam o leitor de que ele está diante de

uma obra publicada por uma editora conceituada. Considerando-se que João

Ubaldo não tinha uma carreira internacional sólida, a publicação por uma editora

como a Harper & Row é também uma chancela importante.

Na página seguinte, aparecem informações sobre os direitos autorais – mais

uma vez, do autor. Em seguida, nas páginas que antecedem o romance

propriamente dito, há uma dedicatória – For Manoel Ribeiro, with admiration39 –

e, como sempre acontece nas obras de João Ubaldo, a epígrafe – The secret of

truth is as follows: there are no facts, there are only stories40. Além de guiar o

leitor, a epígrafe criada por João Ubaldo reforça a idéia transmitida no texto da

orelha, onde João Ubaldo afirma não ter acreditado na história do Brasil que

39 Na edição brasileira: Para Manoel Ribeiro, com admiração. 40 Na edição brasileira: O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias.

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aprendeu na escola. A quarta capa apresenta uma foto do autor (semelhante àquela

publicada na quarta capa de Sergeant Getúlio), sorridente, vestido de maneira

informal, e também o número do ISBN. Algumas conclusões podem ser tiradas

dos dados descritos.

As estratégias usadas para o lançamento dos dois romances são bastante

semelhantes. As informações na capa demonstram a tentativa de fazer com que

sejam aceitos pelo público-leitor norte-americano e, assim, o nome de Jorge

Amado é utilizado. A chancela internacional levada ao conhecimento do público

através da expressão the internationally acclaimed, prizewinning Brazilian novel e

o elogio a Sergeant Getúlio no texto da orelha de An invincible memory

confirmam a preocupação em demonstrar para o público norte-americano que

João Ubaldo merece ser lido e que outros públicos, além do brasileiro, o

consideram relevante. Além disso, há referências a fatos conhecidos do público-

leitor alvo: o nome de Jorge Amado e a ilustração da capa de An invincible

memory, que ratificam a idéia da América Latina como um lugar exótico. Em

outras palavras, as estratégias de lançamento dos dois romances são voltadas para

o público-alvo, fato comum em um cenário editorial em que as holdings vêm

ocupando o mercado. Há, contudo, uma discrepância que merece comentário.

Como mencionei anteriormente, não há referência em Sergeant Getúlio ao

fato de que foi o próprio autor quem traduziu o romance para o inglês. Há uma

única (e mínima) indicação de que o romance é uma tradução. Mencionei ainda

que esses fatores levaram John Milton (2002) a sugerir que Sergeant Getúlio deve

ser considerado um pseudo-original. Não concordo, contudo, com a classificação.

Em primeiro lugar, o nome do autor – escrito na capa – demonstra que ele é

estrangeiro. Além disso, o título do romance – também impresso na capa –

mantém o acento agudo em Getúlio e o nome “Jorge Amado” – um estrangeiro

conhecido do público-leitor a que a obra se destina – aparece também impresso na

capa. Acredito, portanto, que o romance dificilmente seria visto como um original

em inglês. Há também resenhas cujos autores mencionam o fato de que foi o

próprio autor quem executou a tradução. Conseqüentemente, o romance, a meu

ver, não passaria por um original.

An invincible memory, por outro lado, é apresentado como tradução. Não é,

contudo, apresentado como uma tradução “comum”, já que a expressão translated

by the author aparece impressa nas páginas iniciais. Como já afirmei, a expressão

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demonstra a visão do texto autotraduzido como um texto superior àquele

traduzido por um tradutor profissional. Entretanto, esse status superior não se

deve à possível habilidade do autor como tradutor. Em vez disso, vejo a referência

à figura do Autor como um profissional prestigiado, que tem total autoridade e

conhecimento sobre o original, o que lhe confere vantagens sobre qualquer outro

tradutor (e sobre o próprio editor). Além disso, se o autotradutor possui a

subcompetência bilíngüe, como os paratextos ressaltam no caso de João Ubaldo

Ribeiro, ele tem, conseqüentemente, autoridade incomparável.

Depois de uma análise de aspectos que permitem que o leitor construa uma

primeira impressão sobre a obra, passo a analisar comparativamente trechos do

romance propriamente dito que me permitirão chegar a conclusões que ratifiquem

ou não a tentativa de se aproximar do público-leitor norte-americano explicitada

nos paratextos analisados acima.

4.5

Original e tradução: análise comparativa

Sergeant Getúlio e An invincible memory mantêm o mesmo número de

capítulos de seus originais, oito e vinte, respectivamente. Em Sergeant Getúlio, os

capítulos não possuem títulos e são numerados. Já em An invincible memory eles

possuem títulos, a maioria deles traduzidos literalmente do português. Há

diferenças entre a pontuação usada nos originais e suas respectivas traduções, mas

não houve omissões (de parágrafos ou de qualquer parte da trama) que

introduzissem mudanças significativas na estrutura ou no conteúdo do romance.

As mudanças na pontuação são mais significativas no caso de Sargento Getúlio /

Sergeant Getúlio.

Em Sargento Getúlio, o número de parágrafos é, em geral, bastante

reduzido. O primeiro e o segundo capítulos, por exemplo, são divididos em dois

parágrafos cada um, mas a versão em inglês difere da original: o primeiro capítulo

de Sergeant Getúlio é dividido em nove parágrafos e o segundo, em sete, e a nova

divisão tem conseqüências para o leitor. Na versão em português, a história é

narrada no estilo do fluxo da consciência, com frases e parágrafos longos, e o

leitor não tem tempo para pausas. Durante seu monólogo, Getúlio muda de

assunto ou reporta a fala de outros personagens, mas essas mudanças não são

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sinalizadas no texto original através de sinais de pontuação que marquem o início

de uma nova frase, de um novo parágrafo ou a fala de outro personagem, por

exemplo. A estratégia do autor-modelo original imprime um ritmo veloz à leitura

do texto em português e prevê um leitor-modelo atento e disposto a cooperar com

esse ritmo. Na versão inglesa, João Ubaldo introduz novos parágrafos que

sinalizam as mudanças de assunto e reconstrói períodos, dividindo as longas

frases do original em duas ou mais no texto traduzido. A versão em inglês

também explicita a troca de turno entre personagens e, conseqüentemente, não

imprime o mesmo ritmo à leitura. Apresento três trechos (exemplos 1, 2 e 3) de

Sargento Getúlio / Sergeant Getúlio que exemplificam o tipo de alteração a que

me refiro. Uso a cor vermelha para ressaltar os momentos em que a pontuação é

alterada.

(1)

Mas, na hora de fazer o mal-feito, fizeram, e o que não tem remédio remediado está. Não existe quem bote a honra no lugar da saída. Saiu, saiu, pronto. De formas que não posso tolerar esse daqui. Vale nada. Vendo a cara, não se diz. Nunca se diz, vendo a cara, estou cansado de saber isso. (SGO: p. 36-37)

But when they felt like wrongdoing they went right ahead with it, and that which has no remedy can be considered remedied. There is no honor on the way out. You’re out, you’re out, and that’s it.

So I can’t stand this one here. He’s no good. You can’t tell by looking at this face. You can never tell by looking at a face, I know that well enough. (SGT: p. 28-29)

(2)

Razão essa por que eu estou metido nesse timão preto, que é de Luzinete, enfiado por dentro das calças, que é para ninguém ver que estou de saia e montado num burro preto e tirei as esporas que é para não estilintar e rebrilhar nessa meia lua aí e estou perto da igreja, ouvindo cada bacurau que é uma festa de bacurais, inclusive tem umas respostas, acho que de pai para filho e de mãe para filha, de bacurau para bacurauinho, eta, mas que vai ser um sarseiro, vai, quando eu entrar. (SGO: p. 113)

Which is the reason why I am swaddled in this black nightgown that belongs to Luzinete, I have it tucked inside my pants so no one will see that I am wearing skirts, and I am riding a black mule and took off my spurs so that they wouldn’t jingle or shine under this half-moon up there and I am near the church listening to so many nighthawks it sounds like a nighthawk party. There are even responses, I think they are from father to son and from mother to daughter, from elder nighthawk to young nighthawk, hey what a bedlam we are going to have when I go in, yes we are. (SGT: p. 104)

(3)

Aquela força, aquela força, coisa, é uma fraqueza, e daqui mesmo, com vosmecê amarrado aí no coqueiro que é para ver um

That force, that force, creature, is a weakness, and from this very place, with you tied over there to the coconut tree so that you

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macho lutando, o que vosmecê nunca fez na vida, trempe, aquela força é uma fraqueza, venha de lá fraqueza do governo, me solto, me destaramelo, me vou e é assim mesmo, na idéia umas lembranças, na mão uns bacamartes, nos pés uma fincada, minha vida e a laranjeira morta e a lua que Luzinete mora, espie aí, coisa, é uma fraqueza e miles homens desses é como nada e como eu tem mais aqui, essa é uma terra de macho, viu traste, e a terra que me pariu vai me vomitar de novo, quantas vezes me enterrarem, quem tem amigo nesse mundo, ôi Amaro, viu Amaro, olhe que jias brancas nos tijolos do chão, não estremeça, trem, veja que terra essa, com a morte deslizando pelo rio, as caras deles nem se enxerga, mas veja que terra essa, com nós aqui plantados no chão, não semos a mesma coisa? não semos a mesma coisa? é engraçado como vem esses homens e esses homens nenhum está pensando nada, porque todos estão somente sentindo, veja bem, eu sinto, eles sentem, tudo sente, olhe essa água salgada, sujeito, que veio lá de dentro dos matos de Sergipe e vai chegando devagar Morcego, Cotinguiba, Jacarecica, Ganhamoroba, Poxi, Pomonga e o Vaza-barril e o Piauí e o Itamirim e o Siriri e o Japaratuba, veja coisa, é até bonito essa água vindo de lá de dentro, isso tudo não é uma coisa só? a minha cara de cinza, o meu cabelo de terra ... (SGO: p. 154-155)

can see a man fighting, which is something you never did in your life, trash, that force is a weakness. Come over here government weakness, I let myself loose, I let go, I go and that’s the way it is, in my mind some memories, in my hand some shooting rods, and my feet standing fast, my life and the dead orange tree and the moon where Luzinete lives, take a look, creature, it’s a weakness and one thousand of those men are like nothing and there are more like me here, this is a man’s land, hear junk, and the land that foaled me is going to vomit me back no matter how many times I am buried, who has a friend in this world. Hey Amaro, see Amaro, look what white frogs on the floor bricks. Don’t tremble, trinket, look what a land and death sliding down the river, you can’t even see their faces, but see what a land this is with us planted here on the ground, aren’t we the same thing? aren’t we the same thing?

It’s funny how those men come over and none of those men is thinking anything because all are only feeling, look well, I feel, they feel, everything feels, look at this salt water, person, which came from in there, from the wilds of Sergipe, and arrives slowly, the rivers, Morcego, Cotinguiba, Jacarecica, Ganhamoroba, Poxi, Pomonga and the Vaza-barril and the Piauí and the Itamerim and the Siriri and the Japaratuba, see creature, it’s even beautiful this water coming out from back there, isn’t all this one single thing? my ash face, my hair of earth … (SGT: p. 144-145)

Evidentemente, o impacto das alterações se reduz quando se tem acesso apenas a

alguns trechos do romance. Entretanto, posso afirmar depois de minha análise

comparativa entre o original e o texto autotraduzido que a pontuação do segundo

tem como efeito principal um ritmo de leitura menos veloz.

Outra alteração na pontuação em Sergeant Getúlio acontece com a marcação

explícita das falas dos personagens. No original, é Getúlio quem dá voz a eles e

não há marcas (travessões, no caso) de suas falas em grande parte da narrativa. Só

no terceiro capítulo um personagem tem sua fala introduzida por um travessão. Na

versão em inglês, por outro lado, as falas são sempre explicitamente marcadas

através do uso de aspas. O autor-modelo original prevê uma tarefa dupla para o

leitor-modelo: este precisa perceber as mudanças de turno que não estão

sinalizadas, para, em seguida, descobrir quem é o personagem que fala. O leitor-

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modelo previsto pelo autor-modelo do texto autotraduzido tem uma única tarefa:

ele precisa descobrir quem está falando, mas sabe de antemão que não é Getúlio

ou, pelo menos, que mais de um personagem está “em cena”. Os exemplos 4 e 5

mostram o uso das aspas para sinalizar que é o chefe quem fala (exemplo 4) e as

trocas de turno entre Getúlio e o “graúdo” que vem trazer as novas ordens do

chefe (exemplo 5). Mais uma vez, utilizo a cor vermelha para favorecer a

visualização das alterações.

(4)

Ô gente mofina só é comunista, embora estime a perturbação. Na hora que arrocha, se vão-se todos para o cachaprego. Levei diversos. Luiz Carlos Preste. Luiz Carlos Preste. Faziam mítingue na praça Pinheiro Machado gritando isso e uma vez perturbaram toda a rua da Frente, não deixaram ninguém passar. Não teve gueguê nem gagá. Seu Getúlio, me compreenda uma coisa, me desça o pau nessa corja. Eles lá muito monarcas no distúrbio e nós destaboquemos pela praça Fausto Cardoso e casquemos a lenha. Cambada de cachorro, não acha vosmecê? Não teve essa cabeça boa, na hora do derrame de cavalaria, que ficasse livre da bordoada. O jornal, depois o Chefe botou no outro jornal que os integralistas era que tinha queimado. Prender os integralistas, Seu Getúlio, que é para eles aprender a não queimar o jornal dos outros. Me traga essa gente toda, pelo amor de Deus. Fomos buscar e daqui a pouco estava assim de integralistas na frente da gente. (SGO: p. 18-19)

Those Communists are a chickenhearted lot, although they are fond of disturbances. When things get tough they vanish in the air. I got a lot of them. Luiz Carlos Preste. Luiz Carlos Preste. They had concentrations at the Plaza Pinheiro Machado shouting that, and once they blocked all of Frente Street, they wouldn’t let anyone pass. We wouldn’t listen to any excuses. “My friend Getúlio, understand this well: Use your club on this rabble.” There they were, carrying on like monarchs, and we thundered out of the Plaza Fausto Cardoso and started breaking heads. A company of dogs, don’t you agree? Not a head remained unbroken when the mounted police trotted up to the square. As for the newspaper, afterward the boss announced in the other newspaper that it had been burned by the Fascists. “Get those Fascists, Sr. Getúlio, so they will learn not to burn other people’s newspapers. Bring me all of them, for the love of God.” We went to get them and pretty soon we had more Fascists in front of us than we had use for. (SGT: p. 11)

(5)

O doido se levantou: sargento, olhe sargento, o problema é que foi um engano, sargento, um engano que foi mandar o senhor buscar o homem em Paulo Afonso, agora temos complicação. Quem disse isso, foi o Chefe? Foi o Chefe que disse, não tem mais condição de cobertura, a coisa mudou. Foi o chefe que mandou recado? Foi, foi. E por que não veio ele? An, responda essa. Não veio porque não quer deixar ninguém saber que foi mandado dele. Vem força federal, vem tudo. Então o senhor solta o homem e some e pronto. E o resto se ajeita em Aracaju. (SGO: p. 97)

The mad one rose. “Sergeant, look, Sergeant, the problem is that it was a mistake, Sergeant, a mistake to send you to get a man in Paulo Afonso, now we have complications.” “Who said that, the chief?” “It was the chief who said it, there are no more conditions for coverage, things have changed.” “Did the chief send this message?” “Yes, yes.” “And why didn’t he come himself? Now, answer this one.” “He didn’t because he doesn’t want to let anybody know he is behind all of it. There are federal forces coming, there is everything. Therefore you set the man free and disappear and that’s all. And the rest will be taken care of in

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Aracaju.” (SGT: p. 88)

As mudanças introduzidas por João Ubaldo Ribeiro, reorganizando a divisão em

parágrafos, reconstruindo períodos e introduzindo marcas explícitas das falas

revelam um leitor-modelo estrangeiro (impulsionador do processo tradutório) que

demanda um texto simplificado. Com efeito, Tony Berber Sardinha (2002), que

aponta a influência da pesquisadora Mona Baker na pesquisa em tradução com

corpora, ressalta também que o uso de uma linguagem “mais simples do que a do

original” (p. 25) é tido por Baker como um dos possíveis universais da tradução.

Na falta de pesquisas que ratifiquem esta hipótese, destaco apenas que a

simplificação pode ser verificada, a princípio, no caso de Sergeant Getúlio, por

meio da comparação entre o tamanho de frases e parágrafos. As frases e os

parágrafos mais curtos revelam ainda, a meu ver, a tentativa de aproximação com

o público-leitor estrangeiro que reconhece na pontuação do texto traduzido seus

próprios modelos de pontuação correta, fato visto como importante quando se dá a

tentativa de inserção em um novo sistema literário. Como afirma Venuti (2002),

“a tradução forma sujeitos domésticos por possibilitar um processo de

‘espelhamento’ ou auto-reconhecimento: o texto estrangeiro torna-se inteligível

quando o leitor ou a leitora se reconhece na tradução” (p. 148). É evidente que o

auto-reconhecimento não se dá somente no nível da obediência a padrões de

pontuação, no caso das autotraduções de João Ubaldo Ribeiro. Como discuti na

seção anterior, o apelo a algo que já faz parte do conhecimento prévio do leitor é

decididamente uma estratégia importante, e por que não dizer imprescindível, no

processo de tradução e publicação dos romances do escritor brasileiro nos Estados

Unidos. Os paratextos e a obediência às regras do sistema gramatical da língua

inglesa reforçam a idéia de que a obra do escritor brasileiro ratifica um

conhecimento tradicional que o público-leitor norte-americano acredita ter sobre

os habitantes da América Latina e possibilitam o espelhamento que facilita a

aceitação de uma tradução.

A obediência a um novo padrão de pontuação revela também as exigências

dos editores, que naturalmente procuram dar ao público-leitor aquilo que ele

deseja. Michelle Woods (2006) revela que Milan Kundera reclamava da revisão

“violenta” que transformava, por exemplo, duas frases do original em oito na

tradução e alterava marcas do estilo que ele pretendia registrar em seu texto (p.

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49). Woods mostra, contudo, que o sucesso internacional alcançado por Kundera

lhe deu poder na negociação com seus editores (p. 57) e que, em suas revisões, ele

reintroduz aquelas que considerava marcas de seu estilo, vistas como

imprescindíveis, no texto traduzido. Já João Ubaldo, escritor e tradutor iniciante à

época da publicação de Sergeant Getúlio no exterior, precisava, provavelmente,

atender às orientações de seus editores, e suas opções precisam ser negociadas. O

próprio escritor afirma que teve de “brigar” por certas escolhas e “deixar” que os

editores alterassem outras (e-mail, 01/10/2003). Concluo, portanto, que a

pontuação reflete a exigência dos editores de um texto mais adequado ao público-

leitor norte-americano e demonstra algumas das escolhas que João Ubaldo

precisou “deixar” que fossem alteradas.

Em Viva o povo brasileiro cada capítulo subdivide-se em número variado de

seções, cada uma introduzida por um título que traz um lugar e uma data. O

capítulo 2, por exemplo, divide-se em duas partes: a primeira intitula-se Vera

Cruz de Itaparica, 20 de dezembro de 1647 e a segunda Maloca do caboco

Capiroba, 26 de dezembro de 1647. An invincible memory mantém as divisões, e

o capítulo 2 também foi dividido em duas partes: Settlement of the True Cross of

Itaparica, December 20, 1647 e Caboco Capiroba’s hovel, December 26, 1647.

Nos exemplos abaixo, ressalto o tratamento dados aos sinais de pontuação na

versão em inglês. Em geral, a sinalização obedece a padrões norte-americanos

(exemplos 6 e 8, em vermelho), o número de parágrafos é mantido (exemplos 7 e

8) e poucos períodos são reconstruídos (exemplo 6, em vermelho), mas em vários

momentos sinais de pontuação vistos como mais fracos são substituídos por sinais

mais fortes (exemplo 6, vírgula substituída por ponto e vírgula, em vermelho).

(6)

– Espanholas ou portuguesas ou qualquer desses bárbaros cujos sacerdotes grelham as pessoas como patos de assar e despejam-lhes óleo fervente pelos ouvidos adentro, essa raça vil de pele engraxada e fala como a de cães e porcos!

– Estás assim porque tens fome e não conseguiste arpoar o peixe com a tua sovela. Ouve o que te digo, come uma destas frutas a que chamas pêras, elas te farão bem, são boas.

– Ardem-me na boca! Queimam-me os beiços e as gengivas, crispam-me a língua e os dentes, dão-me cólicas, dão-me urinas

“Spanish or Portuguese, or any of those barbarians whose priests broil people as if they were roasting ducks and pour oil down their ears – this vile, greasy-skinned race with a language like that of dogs and pigs!”

“You are talking like this because you are hungry and did not manage to spear a fish with that awl of yours. Do as I tell you, eat one of those fruits you call pears. It will make you feel better; they are good.”

“They burn my mouth, they sear my lips and gums, they shrivel up my tongue and teeth, they give me colic, they give me caustic

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cáusticas, maldito pedaço do inferno, mil vezes maldito! E não tentei fisgar o peixe com uma sovela, isto é um trinchete, um trinchete, ouviste bem? Um trinchete! Quem pensas que és para desfazeres de um instrumento que muito bem te serve, como serve a todos os que não calçam ferraduras em lugar de sapatos, melhor seria que não ostentasses esta tua arrogância de rico!

– Vamos, vamos, não te disse que estás transtornado? Não é uma sovela, é um trinchete, pronto, não quis ofender-te. (VPB: p. 48)

urine – damned piece of hell, a thousand times damned! And I did not try to catch fish with an awl; this is a cobbler’s blade – a cobbler’s blade, you hear? A cobbler’s blade! Who do you think you are to disparage a tool that does you good service, as it does to all who do not wear horseshoes instead of footwear? You had better not flaunt this rich man’s arrogance of yours!”

“Come on, come on, did I not tell you that you are upset? All right, it is not an awl, it is a cobbler’s blade, all right; I did not mean to offend you.” (AIM: p. 30)

(7)

Nego Leléu fez a graça da bochecha, fez a graça do bragantino aborrecido que manda castigar os escravos no pelourinho, fez briga de cabeçadas – cadê esse bom, que eu vou zupar, zupa-zupa! –, dançou a dança do Pai João enchendo a boca de farofa de dendê para bufar em cima dos outros pretos, fez todo o comando do baile até que o barão mandou o positivo Nicodemo com o recado de parar. (VPB: p. 147)

Black Leléu showed the trick of the cheeks, played the act of the Portuguese nobleman who sends his slaves for punishment at the whipping post, staged a butting match – I’ll take on anyone for a good head blow! – danced the dance of Old Father João filling his head with yellow flour to puff on the other blacks, and oversaw all the proceedings until the baron sent the errand boy Nicodemo with the order to stop. (AIM: p. 108)

(8)

Fez alguns gestos hospitaleiros, mexeu o pescoço como um calango.

– Assente aí – convidou. – Daê mecê vai levar, não vai? Assente aí, jeite o rabo. Então, vai levar Daê? Leve, leve. Mas veje antes, veje as coisas, custa nada. Hem? Assente aí.

Leléu se desconcertou, não quis olhar para ver se os outros estavam rindo.

– Tu me viu chegando – disse.

– Vi mecê saindo, eu le vi foi saindo! – riu Inácia, divertidíssima, e caiu de lado como se a tivessem empurrado. – Mas está muito jurgado, muitíssimo jurgado, ora se não le vi saindo, não le vi chegando, não le vi armando treita, não le conheço né de hoje nem de onte, ora me deixes, hué-hué-hué! (VPB: p. 152)

She made some hospitable gestures, moving her neck like a lizard.

“Sit down,” she invited. “You’re taking Daê with you, aren’t you? Sit there, make your butt comfortable. So, are you taking Daê with you? Go ahead, do it. But check things first, better check, won’t cost you anything. Huh? Sit down.”

A little out of countenance, Leléu chose not to look around to see it the others were laughing.

“You saw me coming,” he said.

“I saw you coming, I saw you leaving!” Inácia laughed, enormously amused, and fell sideways as though somebody had bumped her. “But how conceited can you get, how very conceited, of course I saw you leaving, I saw you coming, I saw you scheming. I’ve knowed you for a long, long time, don’t try to fool me, hooeh-hooeh-hooeh!” (AIM: p. 112)

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An invincible memory é, portanto, uma versão cuja pontuação não foi alterada de

forma tão decisiva como em Sergeant Getúlio e, por isso, a alteração não

representa impacto significativo sobre a narrativa. Outras características das

versões para o inglês chamam a atenção durante a análise comparativa. Em

primeiro lugar, temos os diversos procedimentos adotados pelo autotradutor para a

tradução dos itens de especificidade cultural, os chamados culture specific items

(CSIs, doravante), que são, como define Carla Melibeu Bentes (2005) em sua

revisão do conceito de Franco Aixelá (1996), elementos textuais cuja conotação

constitui-se um problema de tradução na língua de chegada, seja porque esta

desconhece os elementos em questão, seja porque lhes atribui conotações

diferentes (Bentes, 2005, p. 53). Em segundo lugar, temos as marcas de oralidade

presentes nos originais e que tendem a desaparecer na versão em inglês. Insiro

dois exemplos para que essas características possam ser melhor analisadas em

seguida.

(9)

O ensalmo da azia é com Santa Iria, repetindo três vez: Santa Iria tem três filha, uma fia, outra cose, outra cura o mal de azia. Bicheira de boi, reze pelas cinco chagas de Nosso Senhor, começando: mal que comeis a Deus não louvais! E nesta bicheira não comerais! (VPB: p. 77)

The orison for heartburn is with Saint Iria, to be repeated three times: Saint Iria has three daughters, one spins, the other sews, and the other cures heartburn. Maggots on cows’ backs, you can pray them out through the power of the five wounds of Our Lord, starting, ‘Evil eaters, the Lord is not praised by your work! And this sore you will never eat again!’ (AIM: p. 53)

(10)

Leléu encostou a cabeça na dela um instantinho, deu-lhe um cheiro no rosto, ajeitou as cobertas e saiu para dizer às velhas que tinha bebido muito licor, estava cheio de sono e ia dormir no quarto pequeno.

– Mas, qualquer coisa me chamem, hem? Se ela pedir que me chamem, cês me chamam, hem?

– Vai precisar não Sô Leléu, chazinho de melissa resolve isso, daqui a pouco ela tá boa. Isso é estôngamo.

– Tá certo, então se despachem com esse chá, que ela já quase-quase que está dormindo. E botem umas rodelinhas de batata crua nas fontes dela, pra chupar a

Leléu pressed her head close to his for a short moment, arranged her sheets, and left to tell the old women that he had drunk too much at the party, he was very drowsy and was going to sleep in the small room.

“But if something happens, call me, huh? If she asks you to call me, you call me, huh?”

“There’ll be no need for that, Sô Leléu; a little balm tea will take care of that; she’ll be all right before you know it. That’s just a stammacache.”

“All right, then hurry up with that tea, because she’s pretty much asleep already. And put two raw potato slices on her temples to suck out her headache.”

“Leave it to us; you can go to bed without

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dor de cabeça.

– Podexá, vá dormir descansado, nós cuida, podexá. (VPB: p. 349)

a worry; we’ll do everything; leave it to us.” (AIM: p. 262)

João Ubaldo usa procedimentos diversos quando traduz CSIs. No exemplo

3, ele insere uma glosa intratextual (v. Franco Aixelá, 1996) – o sintagma nominal

the rivers no trecho de Sergeant Getúlio: “and arrives slowly, the rivers, Morcego,

Cotinguiba, Jacarecica, Ganhamoroba, Poxi, Pomonga and the Vaza-barril and the

Piauí and the Itamerim and the Siriri and the Japaratuba” – adicionando uma

informação que foi mantida implícita no original (de que os nomes próprios são

nomes de rios), ou, a partir da perspectiva de Eco, apagando, ainda que

parcialmente, o vazio original. Ainda de acordo com Eco, posso dizer que o leitor-

modelo impulsionador do processo tradutório de Sargento Getúlio necessita saber,

no mínimo, que os substantivos citados são nomes de rios para interagir mais

facilmente com o texto. Na manifestação linear do texto original, o leitor-modelo

só conta com o co-texto, na oração “essa água vinda lá de dentro”, para construir a

interpretação.

No exemplo 4, o CSI “Luiz Carlos Preste” é repetido. O impacto da

referência é distinto, pois ao encontrar o item no texto, o leitor brasileiro aplica

sua competência enciclopédica para transformar o nome próprio em um primeiro

nível de conteúdo. É parte da competência do leitor-modelo original que Luiz

Carlos Prestes foi um dos líderes mais importantes do Partido Comunista

Brasileiro e que foi líder clandestino de uma revolução operária fracassada. Ao

encontrar o item no texto em português, o item culturalmente marcado “Preste” é

imediatamente associado ao “comunismo” dos manifestantes. A competência

enciclopédica do leitor-modelo original é um instrumento importante, facilitador

da interação com o texto. O leitor-modelo da autotradução deverá usar suas

habilidades de leitura para estabelecer a co-referência entre o pronome

demonstrativo that e “Luiz Carlos Preste”, concluir que este foi uma figura

importante (já que os manifestantes gritavam seu nome) e, com o auxílio do co-

texto, conclui também que “Preste” foi um comunista. Assim, o leitor-modelo da

autotradução tem sua competência construída a partir da atualização da

manifestação linear do texto. João Ubaldo comenta que não tinha interesse em

ensinar história (1990, p. 4) e sua opção pela manutenção do item sem explicá-lo

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em detalhe através de uma glosa intratextual, nota explicativa ou de um glossário,

por exemplo, é, a princípio, coerente. Além disso, e principalmente, a

manifestação linear oferece pistas que o autotradutor considera suficientes para

que a interação texto-leitor aconteça.

No mesmo trecho, verifico que João Ubaldo opta pela técnica da

naturalização (Franco Aixelá, 1996), substituindo “integralistas”, uma referência a

um movimento nacionalista brasileiro, por Fascists, um item menos regional, e

assim aproximou o texto do leitor estrangeiro. O fascismo é definido como “uma

doutrina totalitária de extrema-direita desenvolvida por Benito Mussolini na Itália,

a partir de 1919, e durante seu governo” (v. www.pt.wikipedia.org/wiki/Facismo),

mas o termo é usado freqüentemente em referência a qualquer movimento ou

liderança de extrema-direita. Assim, as origens européias do fascismo e a

referência mais livre a qualquer política de extrema-direita fazem com que

Fascism seja um item de menor especificidade cultural do que o integralismo. Ao

substituir “integralistas” por Fascists, João Ubaldo demonstra que o leitor-modelo

da autotradução é uma preocupação do autotradutor, que tem como objetivo

comunicar-se com o leitor estrangeiro.

Em An invincible memory, João Ubaldo usa a técnica da tradução

explicativa – “uma reformulação do item marcadamente cultural do texto-fonte,

algo como uma perífrase lexical” (Bentes, 2005, p. 65) –, substituindo “farofa de

dendê” por yellow flour (exemplo 7). Ao usar este procedimento, o autotradutor

opta mais uma vez pela aproximação com o leitor porque, “diante do texto

estrangeiro que pouco ou nada comunicará ao leitor da cultura receptora” (p. 65),

explica o CSI deixando-o ausente do texto traduzido, e torna a cooperação com o

texto mais fácil, por assim dizer, pois usa um termo que é parte do conhecimento

prévio do leitor estrangeiro.

João Ubaldo afirma que um leitor “arquetípico, invisível, uma hipótese de

trabalho” (e-mail, 25/11/2003) é impulsionador de seu processo de escrita, e vai

tentando preencher as expectativas desse leitor ao escrever. Sobre esse processo, o

autor conta que

em Viva o povo brasileiro, existe uma cena em que o personagem Macário acende um fósforo na sola do sapato. Pass[ei] um dia inteiro investigando se existiam fósforos naquele tempo para evitar que algum leitor inimigo [me] pegasse. Por isso, pode estar certo que se em algum romance [meu] se diz que tal dia em tal ano era

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quarta-feira, pode ter certeza que era, porque está tudo super controlado. (http:// www.elpais.es/suplementos/babelia/20010728/b8.html)41

Considero que esse leitor descrito por João Ubaldo exemplifica, de certa forma, o

leitor-modelo descrito por Eco, na medida em que o “arquétipo” promove

inserções no texto em resposta às expectativas que o escritor imagina que ele tem.

Na tradução, um leitor com expectativas e necessidades distintas daquelas do

leitor original entra em jogo. Assim, o leitor-modelo da autotradução é diferente,

mas uma figura fundamental para João Ubaldo, que antecipa suas dificuldades e

insere respostas a elas no texto traduzido. É importante notar, contudo, que as

técnicas que explicam de uma forma ou de outra os CSIs são usadas, na maioria

das vezes, em situações específicas, quando o leitor-modelo da autotradução não

pode contar com o auxílio das pistas co-textuais para o jogo da interpretação. Em

outras palavras, as técnicas que promovem o preenchimento de vazios

ocasionados pelo “não-dito” (Eco, 1979b, p. 36) são usadas com parcimônia,

porque o autotradutor procura não sobrecarregar o texto traduzido com

explicações que podem tornar o texto pouco atraente porque redundante.

Examinarei esta hipótese em detalhe na próxima seção, onde analiso a tradução de

nomes próprios.

Outro fator importante chama a atenção nesta análise mais geral da tradução

de Sargento Getúlio: as marcas de estilo que caracterizam de forma contundente o

romance original (Lacerda, 2005, p. 72) não são freqüentes na versão do

autotradutor, que apaga a linguagem oral regional marcada no texto-fonte pela

criatividade lingüística ressaltada na fortuna crítica do autor brasileiro. Percebo

que “os aspectos criativos ou menos comuns da língua-fonte” (Sardinha, 2002, p.

26) são minimizados, e o resultado é um texto traduzido com escolhas lingüísticas

mais comuns na língua-alvo. Os trechos citados acima apresentam algumas das

marcas listadas por Lacerda (2005) apagadas da tradução: (i) os erros intencionais

“miles homens desses” (exemplo 3), “não semos” (exemplo 3) e “se vão-se”

(exemplo 4) são substituídos pelos corretos e neutros, one thousand of those men,

aren’t we e they vanish, respectivamente; (ii) a palavra mítingue (exemplo 4), um

“empréstimo” do inglês, é substituída por concentrations; (iii) o sotaque regional

41 Em outra entrevista, concedida para o site da Mediabooks (http://www.mediabooks.pt/ autores/entrevista/), livraria portuguesa, João Ubaldo fala dessa pesquisa que, segundo o autor, lhe “tomou a manhã inteira”.

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de “destaboquemos” (exemplo 4) é traduzido como thundered out. O resultado

das substituições é um texto traduzido que apaga marcas de oralidade e

regionalismo, mas que causa estranhamento ao leitor-modelo da autotradução

através de escolhas lexicais e colocações pouco comuns, conforme apontarei

posteriormente.

O caso de Viva o povo brasileiro / An invincible memory é distinto, já que o

falar dos personagens varia de acordo com o lugar que ocupam em diversas

camadas sociais. Os holandeses usam a variedade da língua portuguesa falada em

Portugal (exemplo 6), mas eles não são os únicos personagens a usarem tal

variedade, pois aqueles que pertencem às elites da época também o fazem, mesmo

sendo brasileiros. Na verdade, falar a língua portuguesa como ela era falada em

Portugal era considerado requisito para que os brasileiros fossem tidos como

“civilizados”. O fato é que as marcas do uso da variedade falada em Portugal não

podem se repetir no texto em inglês, pois os pronomes pessoais “tu” e “vós”, por

exemplo, que indicam, respectivamente, proximidade e distância entre os falantes,

devem ser substituídos pelo neutro you. Se a proximidade ou a distância não

podem ficar marcadas, João Ubaldo encontra uma forma para demonstrar a

formalidade do tratamento dispensado ao oficial superior por Perilo Ambrósio no

seguinte trecho de Viva o povo brasileiro / An invincible memory:

(11)

– Não, meu comandante, minhas feridas já as pensou este outro negro que me acompanha e cuja bravura e dedicação são dignas de uma verdadeira pessoa, tanto assim que, a triunfar a causa brasileira como Deus há de ser servido prover, minha tenção é dar-lhe carta de alforria, para que seja tão livre quanto seremos os brasileiros, embora seja a única propriedade que possuo no mundo. Temo que seja tarde, pois esvaía-se em sangue e já desfalecia quando o deixamos em busca de ajuda, mas causa-me cuidado maior que eu aquele negro lá ao pé da árvore, que com tanta valentia se houve na defesa de sua pátria e de seu amo. Cá por mim posso arranjar-me. Um daqueles cavalicoques que me cedais para mim será um palafrém real e nele, mesmo em marcha descansada, hei de chegar a algum pouso onde me dêem abrigo, pois são muitos os amigos que tenho em toda parte e mais incontáveis ainda os corações generosos.

“No, my Commandant, my wounds have been bandaged by this Negro that follows me, whose bravery and dedication are worthy of a real person, so much so that if the Brazilian cause triumphs as God shall see fit to provide, my intent is to give him emancipation, although he is the only property I possess in this world. I fear it is too late, because he was bleeding heavily when we left him to seek help, but my greatest concern is that other Negro lying under that tree, who conducted himself with such valor in defense of his country and his master. As for myself, I can manage. If you could let me borrow one of those dobbins, it would be a royal courser to me, and even at a slow pace it will certainly take me to some resting place where I may be given shelter, for many are the friends I have everywhere, and generous hearts are still more countless.” (AIM: p. 14)

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(VPB: p. 26)

Note-se aqui que Perilo Ambrósio utiliza a forma “vós” (definida pela desinência

verbal) para dirigir-se ao comandante. Na versão em inglês, temos a inclusão

obrigatória de you, cuja utilização poderia apagar a formalidade do tratamento –

Perilo Ambrósio precisa ser formal, pois se dirige ao comandante. Entretanto, a

utilização da oração condicional, opção do autotradutor, empresta ao texto inglês a

formalidade que marca a fala de Perilo Ambrósio.

Já Dadinha (exemplo 9), Nego Leléu (exemplos 7 e 10) e Inácia (exemplo 8)

não fazem uso da variedade lusitana. Dadinha e Inácia são mães-de-santo e Nego

Leléu é um negro liberto, mas os três personagens usam um registro informal

semelhante no texto em inglês. O efeito mais provável da versão inglesa sobre os

leitores é a constatação de que não existem muitas diferenças entre os falares de

ex-escravos (Nego Leléu) e mães-de-santo (Dadinha e Inácia) e, considerando-se

que as mães-de-santo eram também escravas, a constatação não é equivocada.

Entretanto, a fala de Inácia (exemplo 8) no original em português ocorre em um

momento em que uma divindade nela se incorpora e afeta seu modo de falar. O

texto original apresenta as marcas dessa incorporação, diferentemente do texto em

inglês. Pode-se notar também que não há maiores diferenças entre a fala de Inácia

e a das empregadas negras de Leléu (exemplo 10) na versão em inglês. Todas

falam de maneira informal, empregando um registro sem características próprias

além de um erro gramatical (I’ve knowed, no caso de Inácia) e de um erro de

pronúncia (stammacache, no caso das empregadas de Leléu). Os erros

demonstram a diferença entre a fala dos negros e as de Perilo Ambrósio e Amleto

Ferreira, mas não marcam a diferença entre a fala das mães-de-santo quando estão

incorporadas e a de outros negros. O impacto dessa escolha tradutória é o

apagamento da diferença, já que as marcas do autor-modelo da autotradução

sugerem que a sociedade brasileira de então dividia-se em dois grandes blocos,

negros pobres e brancos ricos: negros pobres semelhantes entre si e brancos ricos

também iguais entre si.

O resultado é um texto menos variado, em que as escolhas lingüísticas não

desempenham um papel diferenciador, por assim dizer. De fato, resenhas

publicadas em jornais norte-americanos não apontam a variedade e criatividade

lingüística como uma das características de An invincible memory. Na verdade,

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tais resenhas tendem a se concentrar na comparação entre o romance de João

Ubaldo e as obras One hundred years of solitude e House of the spirits, de autoria

dos escritores latino-americanos Gabriel Garcia Márquez e Isabel Allende,

geralmente apontados como dois dos principais representantes do realismo

mágico. Vejo a comparação recorrente como a tentativa de inclusão do romance

de João Ubaldo no contexto deste cânone literário latino-americano no exterior.

Heloisa Barbosa (1993) descreve a inclusão de escritores brasileiros nesse cânone

como prática comum entre leitores profissionais e, em conseqüência, espera-se

destes escritores que produzam obras com características semelhantes às

produzidas por autores latino-americanos. Como afirma Venuti (2002),

uma tradução, ao circular na igreja, no estado e na escola, pode ter o poder de manter ou revisar a hierarquia de valores na língua alvo. A escolha calculada de um texto estrangeiro e da estratégia tradutória pode mudar ou consolidar cânones literários, paradigmas conceituais, metodologias de pesquisa, técnicas clínicas e práticas comerciais na cultura doméstica. (p. 131)

Quando as resenhas comparam An invincible memory a One hundred years of

solitude e House of the spirits estão, do ponto de vista de Venuti, contribuindo

para “manter a hierarquia de valores na língua alvo” e “consolidar o cânone

literário” existente. A meu ver, o romance de João Ubaldo também tem, à

semelhança de outros textos latino-americanos traduzidos para o inglês, “as

qualidades ideais para se adequar à demanda de um público-leitor que parece

atraído pelo exótico e pelo étnico” assim como outros discutidos por Heloísa

Barbosa em sua tese de doutorado (1994, p. 92). São esses traços que os críticos

vêem como marcas do escritor brasileiro e, portanto, a publicação de seus

romances contribui para a manutenção de estereótipos, como já discuti a respeito

da capa do romance traduzido.

Concluo que minha análise aponta para a oscilação entre um texto traduzido

que se aproxima do leitor estrangeiro ao mesmo tempo em que se mantém à

distância desse mesmo leitor, como acontece na prática tradutória. Conforme

destaquei anteriormente, João Ubaldo simplifica seu texto, reconstruindo

períodos, alterando a pontuação e dividindo o texto em um número maior de

parágrafos. Ele se aproxima do leitor estrangeiro também quando escolhe CSIs

mais familiares ou quando adiciona informações que estão implícitas no original,

eliminando, ainda que parcialmente, vazios e contribuindo para a construção da

competência do leitor-modelo da autotradução. Finalmente, ele se aproxima do

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leitor estrangeiro quando usa uma linguagem que não lembra o regionalismo do

original. O próprio autor afirma que tentou “universalizar o inglês da tradução,

puxando mais, no caso, para o inglês americano, porque a tradução era para os

Estados Unidos” (e-mail, 12/11/2003). De fato, resenhas publicadas em jornais

norte-americanos mencionam o idiomatic English de Sergeant Getúlio (The

Washington Post, 1978) e the fluent translation (Publisher’s Weekly, 1989) de An

invincible memory.

Por outro lado, João Ubaldo se distancia do público-leitor norte-americano

ao repetir CSIs desconhecidos sem explicá-los em notas, glosas intratextuais ou

mesmo em um glossário. A distância é revelada também na escolha de

vocabulário e colocações pouco comuns. O impacto dessas opções é um texto que

soa como estrangeiro, proveniente de uma cultura que não é aquela da qual o

público-leitor norte-americano é parte.

Finalmente, minha análise aponta para um texto traduzido cujo autor-

modelo, inevitavelmente, deixa marcas distintas daquelas presentes no original.

Impulsionado pelo leitor-modelo estrangeiro, construído com base na competência

enciclopédica do autor empírico, o autor transforma seu texto para corresponder

às expectativas desse leitor. Entretanto, este é também o trabalho de qualquer

tradutor que, prevendo a competência enciclopédica e as expectativas do leitor

estrangeiro, imprime novas marcas nos textos que traduz e constrói o seu leitor-

modelo. Esse não é, contudo, o único tipo de marca que o autotradutor deixa.

Além dessas, há aquelas marcas que atribuo ao trabalho do autor que,

aproveitando o momento em que novamente se vê diante do texto que produziu na

língua materna, introduz alterações que caracterizam a autotradução como um

processo que reconstrói o autor-modelo original e, portanto, traz marcas da escrita

original, entendida como aquela que é resultado do processo de criação de um

romance.

Passo agora a aprofundar a análise acerca da tradução de alguns CSIs e do

“sergipês”, para que possa chegar a conclusões definitivas acerca da tendência,

estrangeirizadora ou domesticadora, que predomina na autotradução tal como

praticada por João Ubaldo e também sobre a preocupação de não dar ao leitor

mais informações do que ele necessita para cooperar com o texto traduzido.

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4.5.1

Os itens de especificidade cultural

Alguns dos procedimentos técnicos de tradução revelam decisões sobre a

tradução dos CSIs (Franco Aixelá, 1996). Entre os itens desse tipo estão

“elementos arbitrários” (p. 57) como nomes de pessoas e de lugares (topônimos),

por exemplo. Qual é a estratégia utilizada pelo autotradutor João Ubaldo? Ele “faz

do autor do texto-fonte (TF) um estrangeiro para os leitores do texto traduzido

(TT), implantando as formas estrangeiras na língua-meta (LM), ou aproxima o

autor dos leitores da tradução, fazendo-o falar como se fosse um compatriota,

usando estruturas e até mesmo referências culturais da LM”, conforme a descrição

que Bentes (2005, p. 23) faz das duas estratégias definidas por Schleiermacher

(2001) e retomadas por Venuti (1995)? Ou, nas palavras do teórico norte-

americano, João Ubaldo estrangeiriza o texto mantendo elementos estrangeiros no

texto traduzido ou o domestica apagando esses elementos da tradução? Antes de

analisar o trabalho do autor brasileiro, considero importante esclarecer que adoto

aqui as categorias propostas por Bentes (2005) para a tradução dos CSIs em sua

dissertação de mestrado. Sua revisão da proposta de Franco Aixelá (1996) é

importante, pois a pesquisadora agrupa procedimentos de tradução para os CSIs

em três grupos de tendências. Reproduzo aqui a classificação proposta por ela

(2005, p. 67):

Estratégia

(a) Tendência

domesticadora

(b) Tendência

estrangeirizadora

(c) Tendência domesticadora

e estrangeirizadora (híbrida)

1. Tradução integral de nome

próprio

2. Tradução lingüística

3. Naturalização

4. Exclusão

5. Tradução explicativa

1. Repetição

1. Glosa intratextual

2. Tradução parcial de nome

próprio

Antes de iniciar minha análise propriamente dita, destaco também as

considerações de João Ubaldo Ribeiro acerca do processo de tradução dos CSIs.

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Ele descreve a tradução de Viva o povo brasileiro para o inglês como uma tarefa

extremamente difícil e destaca que “em primeiro lugar, há o problema da cultura”

(1990, p. 3). Ao analisar a citação, um detalhe chama a atenção: o uso do

marcador discursivo “em primeiro lugar” faz o leitor imaginar que uma lista de

problemas distintos será apresentada. Contudo, o que acontece de fato é que João

Ubaldo lista vários aspectos referentes à tradução dos CSIs e lamenta não haver

equivalentes exatos para cada um deles. No mesmo artigo em que relata suas

dificuldades, o escritor demonstra sua preocupação em produzir um equivalente

perfeito da obra original e suas palavras revelam a melancolia (v. Sette, 2002) de

alguém que acredita que a tradução ideal deveria “pôr o livro exatamente igual ao

original diante do leitor estrangeiro” (e-mail, 07/08/2003). João Ubaldo afirma

que

havia os nomes populares de peixes, alguns dos quais nem mesmo existem em inglês, ou que são tão raros que ninguém os reconheceria. É justo chamar um Scomberomus regalis a mackerel, quando no seu coração você sabe que para o leitor um mackerel de verdade é, provavelmente, um Scomber scombrus? E plantas, frutas e árvores completamente desconhecidas no hemisfério norte, exceto por especialistas, que usam apelidos taxonômicos complicados? E as árvores e frutas que são conhecidas nos Estados Unidos como “Java alguma coisa” ou “Austrália isso ou aquilo”, [...]? (Ribeiro, 1990, p. 4)

É interessante contrastar a melancolia de João Ubaldo com a certeza do dever

cumprido de Clifford Landers. Em comunicação sobre a sua versão para o inglês

de O sorriso do lagarto, de autoria de João Ubaldo, Landers (2004) descreve

como a compra de uma obra de referência em um sebo brasileiro resolveu as

dificuldades que enfrentou durante seu trabalho. Segundo o tradutor norte-

americano, o Guia de peixes do litoral brasileiro, de autoria de Carlos Rikio

Suzuki, inclui “desenhos de centenas de espécies diferentes de peixes, o nome

popular em português, e o nome em inglês”, resolvendo as dificuldades para a

tradução de nomes de peixes que O sorriso do lagarto oferecia ao tradutor. Há

que se destacar ainda que Landers não demonstra ter preocupação semelhante à de

João Ubaldo. Enquanto o escritor brasileiro se ressente da impossibilidade de

oferecer ao leitor estrangeiro uma cópia exatamente igual ao original, Clifford

Landers adota a estratégia de “oferecer o máximo de informação possível sem

recorrer à artificialidade” (2001, p. 80). É visível, portanto, nos relatos de João

Ubaldo e Clifford Landers, que o escritor brasileiro não aprecia os desafios que a

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211

tarefa de traduzir envolve, enquanto Landers demonstra, como afirmam Bentes

(2005) e Paulo Henriques Britto (2001), o amor pelo ofício que desempenha.

Explicando suas dificuldades para traduzir os CSIs, João Ubaldo Ribeiro

afirma que “a cultura americana tem referências em toda a parte e ninguém

precisa explicar o que é um hambúrguer. Já um acarajé é bem diferente” (e-mail,

16/02/2004). Evidentemente, suas dificuldades são legítimas, e o grande número

de artigos sobre a tradução desses itens é prova de que não será simples optar por

uma ou outra técnica de tradução. Além disso, a tradução desses itens tem

implicações importantes, já que as escolhas tradutórias contribuirão de forma

decisiva para que um texto soe mais ou menos estrangeiro, ou para que ele

favoreça ou dificulte o conhecimento do outro, sempre diferente. A familiaridade

com a tarefa, como no caso de Clifford Landers, e o conhecimento teórico sobre a

tradução dão ao tradutor, como afirma João Azenha Jr. (2003, p. 48), argumentos

para explicar suas escolhas, ainda que elas possam ser criticadas. João Ubaldo

afirma de forma clara que simplesmente tentou executar a tarefa de traduzir seus

textos da melhor maneira que pôde (e-mail, 03/12/2003), só que, ao fazer isso, o

escritor enfrentou dificuldades aumentadas, a meu ver, pela pouca familiaridade

com a tarefa de traduzir um texto e com a teoria da tradução e/ou pela falta das

subcompetências que constituam a competência tradutória. Junte-se a isso o fato

de que seus romances (Viva o povo brasileiro, em especial) são cheios de

referências culturais absolutamente desconhecidas do leitor estrangeiro (e, muitas

vezes, do leitor brasileiro), fato que contribui para que o número de dificuldades

se multiplique. É claro que o autor terá sempre ao seu lado o fato de que é o

criador do original e suas opções serão respeitadas porque, na opinião de muitos

editores e agentes, ele conhece completamente seu texto e as referências culturais

da cultura-fonte e porque tem proficiência reconhecida na língua estrangeira, mas,

como o próprio João Ubaldo afirma, esses conhecimentos não ajudam nos

problemas de tradução (e-mail, 18/07/2003) cuja resolução depende da aplicação

de outras subcompetências, além das subcompetência bilíngüe e extralingüística

(v. Darin, 2006, p. 110-117).

Também sobre An invincible memory, João Ubaldo menciona que decidiu

não “sufocar o livro com centenas de notas explicativas” (1990, p. 3) que, além de

contribuir para aumentar ainda mais o tamanho do livro em si, “quebram o ritmo”

da leitura (Landers, 2001, p. 93). Entretanto, as notas e os glossários são vistos

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como instrumentos importantes por acadêmicos que “tendem a dominar a

tradução literária nos Estados Unidos” (p. 93) e a produzir as thick translations

definidas por Kwame Anthony Appiah (2000, p. 427) como a “tradução que

procura, com suas notas e glossários, localizar o texto em um contexto cultural e

lingüístico rico”. Essas traduções são principalmente usadas em cursos sobre

culturas estrangeiras que contribuirão, na visão de Appiah, para a construção do

respeito pela diferença (p. 427), já que não poderá haver respeito sem que o outro

seja conhecido.

Também considero que notas e glossários são instrumentos importantes que

podem ajudar a promover esse respeito, na medida em que auxiliam na construção

de um sujeito estrangeiro com características próprias e distintas. Eles promovem

também a construção da competência do leitor e, conseqüentemente, auxiliam o

ato cooperativo da leitura e a interpretação de uma obra. Entretanto, devo salientar

que os mesmos procedimentos podem tornar-se pouco valiosos quando sub-

utilizados por leitores. Minha experiência profissional como professora

universitária revela que as notas explicativas e os glossários são muitas vezes

ignorados. Em uma situação ideal, os leitores devem ler os glossários antes do

início da leitura, mas em situações reais a prática não é comum. Assim, a simples

presença desses recursos não garante o conhecimento, e eles deverão ser

acompanhados de uma prática profissional que encoraje sua utilização. Por outro

lado, as notas explicativas e os glossários não são as únicas possibilidades de

construção do conhecimento a respeito do outro. A glosa intratextual também

fornece informações a respeito da cultura-fonte e é uma técnica que, segundo

Landers (2001), se bem empregada causa menos prejuízos ao ritmo da leitura (p.

94). Como minha análise apresentada na seção anterior sugere, João Ubaldo usa a

glosa intratextual quando a explicitação de uma informação é essencial para a

interpretação do texto. Em outras palavras, a utilização dessa técnica é

condicionada pelo leitor-modelo da autotradução, construído com base na

competência enciclopédica do autor empírico.

Como discuti anteriormente, os romances de João Ubaldo não foram

publicados por editoras que têm o público acadêmico como alvo. Assim, a opção

pela não inserção de um glossário ou de notas está, de certa forma, justificada.

Mas, sem elas, o autotradutor João Ubaldo Ribeiro precisará, baseado na sua

própria competência enciclopédica, utilizar procedimentos que auxiliem o leitor-

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modelo da autotradução a cooperar com o texto. É interessante notar, contudo, que

João Ubaldo afirma que o auxílio ao leitor “envolveu pequenas fraudes aqui e

acolá” (1990, p. 3) e fornece um exemplo: a substituição de “D. Pedro I” por

emperor D. Pedro I no texto em inglês. Ao usar a palavra “fraude”, o escritor

brasileiro ratifica a visão de tradução como traição a um original, que tem

permeado a discussão acerca da atividade durante séculos e que é resumida no

popular adágio traduttore, traditore.

Os nomes de personagens históricos são freqüentes nos romances de João

Ubaldo, mas eles não são, obviamente, os únicos nomes próprios utilizados pelo

autor nem, tampouco, os mais abundantes. É à tradução destes CSIs que me

dedico a partir de agora.

Em Sergeant Getúlio, ele usa a técnica da repetição, de tendência

estrangeirizadora, no tratamento que dá a nomes de personagens como Amaro,

Luzinete, Alípio, Tárcio, Cavalcanti, Tonico, Nestor e Getúlio. O nome de

Lampião, o cangaceiro nordestino que é uma referência familiar para o leitor

brasileiro (Milton, 2002), é também repetido na versão inglesa, sem explicações

sobre esse personagem da cultura brasileira. A partir da perspectiva de Eco,

verifico que João Ubaldo escolhe manter implícito o não-dito, ou o vazio causado

pela menção do nome do cangaceiro, e não adiciona nenhum tipo de informação

que possa ajudar o leitor estrangeiro na interpretação da relação que Getúlio faz

entre ele mesmo e Lampião. Entretanto, ao exercer o papel de leitor-modelo do

próprio original e ao prever os movimentos do leitor-modelo do texto

autotraduzido, o autor-modelo da autotradução conclui que a informação não é

necessária. Depois de empregar sua competência enciclopédica – que abrange a

noção de coesão lexical, no caso – e examinar o co-texto, o leitor conclui que

bandit funciona como um hiperônimo de Lampião. O que o leitor estrangeiro não

sabe é que Maria Bonita foi companheira de Lampião, e por isso é necessário

explicitar sua condição de esposa. Na versão para o inglês, João Ubaldo explicita

o CSI Maria Bonita introduzindo uma glosa intratextual e o texto é assim

transformado:

(12)

Eu fico pensando assim aqui de preto se eu fosse para o cangaço, se tivesse cangaço. Antigamente, eu tinha raiva de cangaceiro, acho que até ontem,

I keep thinking in my black dress, what if I went away to be a bandit if they still had bandits. There was a time when I hated bandits, I think I did

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tresantonte, antes do antes, mas agora não tenho mais, que é que posso fazer. Pois podia ser do cangaço, apois se tivesse cangaço. Como não tem, fico aqui. Ô Amaro, iú, ô fulo, se eu fosse Lampião tu ia ser Maria Bonita? (SGO: p. 115-116)

until yesterday, before before, but now I don’t any longer, what can I do. Well then, I could be a bandit, then. If there were bandits. Inasmuch as there are not, I stay here. Hey Amaro, whee, hey blossom, if I were Lampião, would you be Maria Bonita, his wife? (SGT: p. 106)

Não é surpreendente que o autotradutor opte por esse procedimento, pois ele se

faz necessário para que o leitor possa cooperar com o texto. Esse leitor não tem

informações acerca da relação entre Maria Bonita e Lampião e um vazio,

considerado impreenchível pelo autor-modelo da autotradução, impede a

interpretação da brincadeira de Getúlio. Assim, a informação acerca de Lampião –

um bandit – é registrada no texto sem necessidade de uma explicação, e é

suficiente para que João Ubaldo atinja seu objetivo de “entreter e, não, ensinar”

(1990, p. 3). Já a informação acerca de Maria Bonita é necessária para que o

entretenimento seja possível. Ou, em outras palavras, a prática de João Ubaldo

coaduna-se com seu objetivo. Além disso, a explicitação do item Maria Bonita

constrói a competência necessária para a cooperação com o texto.

A glosa intratextual, um procedimento híbrido de tendência domesticadora e

estrangeirizadora, é também adotada na tradução de nomes de políticos

brasileiros. Vejamos o exemplo:

(13)

Padre, ques homens são esses? Não sei, disse o padre, são graúdos, eu acho. São graúdos. Bem, primeiro é Deus nas alturas. Segundo, não sei bem. Quando eu era rapazinho, era o dono de um vapor de algodão que tinha. Quando eu era bem menino, era um moendeiro que tinha. Não sei direito, essas coisas dão uma confusão. O padre disse você não tinha nada de cortar a cabeça do tenente, agora você é desertor e não tem muito jeito para você. Ora, estou estranhando isso, nunca vi tanta besteira por causa de uma merda duma cabeça de tenente cortada. Nem que fosse patente mesmo, que ninguém anda respeitando galão mais. Foi, foi, pronto. O negócio é ser homem, foi, pronto. O tenente está no céu, seu padre, pronto, deve estar com umas asas e tocando viola e melhor do que o resto aqui de baixo. Talvez seja o padre, parece ser um padre importante. Talvez seja todos os padres, depois de Deus. Sei não. Tem Cristiano Machado e o Brigadeiro e Getúlio

Priest, what men might those be? I don’t know, the priest says, they are influential, I think. They are influential. Well, first is God who art in Heaven. Second, I don’t know. When I was a young man, it was the owner of a cotton machine. When I was very little, it was the owner of a sugar cane machine. I don’t really know, these things are confusing. The priest said, “You had no business cutting off the lieutenant’s head, now you are a deserter and there isn’t much that can be done for you.” Now, this is all very strange, I never saw so much nonsense on account of a shitty lieutenant’s head. Not even if he was high-ranking, no one has any more respect for stripes these days. It happened, it happened, that’s all. One must be a man, it happened and that’s it. The lieutenant is up in Heaven, Sr. Priest, all right, he must be wearing wings and playing the guitar and better off than the rest of us down here. Maybe it is the priest, he seems to be an important priest. Maybe it is all the priests, after God. I don’t know. There are the candidates for the presidency, Cristiano Machado

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Vargas. O Governador. Não, tem as amizades. Não sei como é que isso está disposto. (SGO: p. 93-94)

and the brigadier and Getúlio Vargas. The governor. No, there are also the friends. I don’t know how all this is arranged. (SGT: p. 84)

Atribuo ao autor-modelo do original a decisão de manter implícita, no texto em

português, a informação que os nomes de Cristiano Machado, o Brigadeiro e

Getúlio Vargas sugerem ao leitor-modelo do original. Como já havia feito com os

nomes de Lampião e Maria Bonita, o autor-modelo do original considera que o

leitor-modelo brasileiro será capaz de cooperar com o texto fazendo referência à

sua competência enciclopédica para estabelecer, através dos nomes citados acima,

uma relação com o mundo de sua própria existência. Em outras palavras, durante

o processo de geração do texto original, o autor imagina um leitor-modelo que

sabe que Getúlio Vargas, Cristiano Machado e o Brigadeiro (Eduardo Gomes)

disputaram as eleições presidenciais de 1950 ou, pelo menos, que foram

candidatos à presidência do Brasil. Entretanto, o leitor estrangeiro ao qual a

tradução se destina, que deseja exercer o papel de leitor-modelo da autotradução,

não tem essa informação. Portanto, o autotradutor opta pela adição de informações

que auxiliem a cooperação com o texto. Considero a glosa intratextual importante

neste trecho, já que Getúlio cita as funções ou profissões de pessoas que eram

consideradas “graúdas” – o dono do vapor, o moendeiro, o padre – “depois de

Deus” (SGO: p. 94); ou seja, as funções servem de categorias no texto em

português. Os nomes dos candidatos registrados na manifestação linear provocam

a associação à função “candidato a presidente” pelo leitor-modelo do original,

mas deixaria de desempenhar o mesmo papel no caso do leitor-modelo da

autotradução.

Em outro momento, João Ubaldo usa a técnica da tradução explicativa:

(14)

Outra vez, Lampião amarrou a mulher de um juiz, não sei se em Divina Pastora ou Rosário do Catete ou Capela, amarrou essa mulher desse juiz num pé de pau e botou nuazinha em pêlo. Mas já se viu uma mulher velha com tanto cabelo nas partes? Ora já se viu que indecência? Nem das piores raparigas, que é isso assim? E assuntou em cima dos oclos assim e assado e acabou arrancando todos os penteios do xibiu da mulher na frente de todos, tudo ali reunido por obrigação, porque Lampião só fazia tudo

There was another time, when Lampião tied up a judge’s wife, maybe it was in Divina Pastora or Rosário do Catete or Capela, he tied this wife of this judge to a tree and stripped her stark naked. Now whoever saw an old woman like that with so much hair on her parts? Have you ever seen such indecency? Not even the worst whores, how about that? And he peered over his glasses this way and that way, and ended up pulling all the hairs off the woman’s twat in front of everybody, everyone gathered there on

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na frente de todo mundo. Ruindade era ali, matava sem idéias. Resultado, cabeça cortada na Bahia, de exposição como chifre de boi brabo. Antes porém brincou de manja com a milícia de todos Estados e deixou a marca no mundo desde os tempos de Dão Pedro. Dizem, nunca vi. Bicho ruim não morre fácil. (SGO: p. 13-14)

Lampião’s orders, because everything he did was always in front of everybody. There was great badness in him, he killed without ideas. So naturally he ended up with his head cut off in Bahia and put on exhibition like it was a wild bull’s horns. But before that he played hide-and-seek with every state militia that was after him and he left his mark in the world ever since the time of the emperor. So they say; I never saw it myself. (SGT: p. 5-6)

Note-se que João Ubaldo opta pela tradução explicativa, de tendência

domesticadora, em um momento em que saber o nome do personagem histórico

não é relevante para que o leitor-modelo coopere com o texto. Pode-se apontar

que a utilização do sintagma the emperor tem como impacto fazer o leitor

estrangeiro pensar que houve apenas um imperador na história do Brasil, mas, por

outro lado, a utilização desse sintagma nominal indica mais uma vez a

preocupação com o leitor estrangeiro.

Discuti anteriormente que o nome de Lampião era repetido no texto sem

uma explicação acerca de um dos personagens principais da história do nordeste

do Brasil e argumentei que ela não era necessária. De fato, como vimos no trecho

transcrito acima (exemplo 14), a competência necessária para que o leitor-modelo

coopere com o texto vai sendo construída durante a própria narrativa, de forma

que as notas ou glosas tornam-se desnecessárias. Considero, portanto, importante

destacar que os CSIs não devem ser analisados isoladamente. Já demonstrei

anteriormente que o autor-modelo constrói a competência necessária para a

cooperação com seu texto deixando pistas na própria narrativa e, por isso, ao

tradutor (e ao autotradutor, neste caso) caberá perceber que glosas intratextuais,

notas explicativas e até mesmo glossários poderão contribuir para que o texto

traduzido se torne muito didático, especialmente se repetem informações já

sugeridas ao leitor pelo autor-modelo do original.

A tradução parcial de nomes próprios também é um dos procedimentos

adotados por João Ubaldo. Há que se considerar, entretanto, que os nomes

próprios a que me refiro são os nomes que Getúlio daria a seus filhos (caso os

tivesse) para denotar a “machidão” de todos eles:

(15)

A machidão toda aí, era Garanhão Santos Think of all those men, they would be Stud

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Bezerra, Malvadeza Santos Bezerra, Abusado Santos Bezerra, Tombatudo Santos Bezerra, Comegente Santos Bezerra, Enrabador Santos Bezerra, Rombaquirica Santos Bezerra, Sangrador Santos Bezerra, Vence-cavalo Santos Bezerra, todo mundo. (SGO: p. 124)

Santos Bezerra, Wickedness Santos Bezerra, Abusive Santos Bezerra, Knocks-all-down Santos Bezerra, Eats-people Santos Bezerra, Back-screwer Santos Bezerra, Bursts-Pussies Santos Bezerra, Blooddrawer Santos Bezerra, Overcomes-Horses Santos Bezerra, everybody. (SGT: p. 115)

A tradução parcial de nomes próprios situa-se entre a domesticação e a

estrangeirização, já que mantém lado a lado as duas línguas envolvidas na

tradução e, conseqüentemente, marcas da cultura-fonte e da cultura-alvo. Em se

tratando de nomes próprios inventados por Getúlio, ela tornou-se a única

possibilidade de escolha para João Ubaldo, que recriou no romance traduzido o

estranhamento original através, por exemplo, da combinação de palavras cujo

resultado é raro na língua inglesa, como blooddrawer e back-screwer. Devo

apontar, contudo, que o autotradutor aproveita um procedimento de criação de

palavras comum entre usuários da língua inglesa e promove o auto-

reconhecimento, pois o leitor reconhece no uso desse procedimento criativo uma

técnica por ele geralmente utilizada, fato que o aproxima da tradução.

Em An invincible memory, João Ubaldo alterna suas escolhas entre os

procedimentos da repetição e da tradução parcial ou integral dos nomes próprios.

Oscila, portanto, entre procedimentos de tendência estrangeirizadora e

domesticadora e opta pela repetição nos casos de Perilo Ambrósio, José Vicente,

Leléu, Salustiano, Merinha, Antônia Vitória, Dandão, Caboco Capiroba, Dona

Jesuína, Vevé, Maria da Fé, Budião, Da Hora, Zé Pinto e Bonifácio Odulfo Nobre

dos Reis Ferreira-Dutton, por exemplo. Já os nomes de Luiz Tatu, Nacinha,

Sambulho, Nego Régis e Nego Feio são traduzidos parcial ou integralmente como

Luiz Armadillo, Little Inácia, Angelfish, Black Régis e Ugly Black,

respectivamente. Noto que João Ubaldo adotou outra técnica de tradução para

lidar com os nomes próprios: ele optou pela versão de apelidos e manteve os

nomes, um procedimento comum entre os tradutores literários. Assim, Luiz Tatu é

traduzido parcialmente enquanto Zé Pinto permanece inalterado, já que Pinto é

um sobrenome usado em português e não um apelido. Finalmente, destaco que a

repetição dos nomes dos personagens – uma técnica de tendência

estrangeirizadora – contribui de forma decisiva para que o texto soe estrangeiro,

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ou como um texto traduzido, um dos objetivos de João Ubaldo Ribeiro (e-mail,

24/09/2003).

Terminada a análise da tradução dos nomes, é importante destacar alguns

pontos. Em primeiro lugar, ressalto que o autor empírico (João Ubaldo, no caso)

tem papel importante quando, baseado em sua própria competência enciclopédica,

antecipa a competência necessária para a cooperação do leitor estrangeiro com o

texto. Note-se, contudo, que este é também o trabalho de um tradutor. Nosso autor

empírico é importante também porque, ao traduzir, ele não poderia ter optado por

qualquer técnica de tradução se o conhecimento acerca da possibilidade de

utilização desses procedimentos técnicos não fizesse parte de sua competência

enciclopédica. É relevante destacar que João Ubaldo usou um repertório variado

de procedimentos ao traduzir os nomes próprios: ao mesmo tempo em que se

distanciou do leitor estrangeiro quando utilizou a técnica da repetição, ele também

se aproximou desse leitor ao usar o procedimento da tradução explicativa. Como

afirma Bentes em relação ao trabalho de tradutores, “num mesmo texto coexistem

momentos de maior proximidade com o leitor tanto quanto com o autor do

original” (2005, p. 46).

Vejamos agora o que acontece com os topônimos. Em relação à tradução

destes CSIs, um dos procedimentos adotados por João Ubaldo em Sergeant

Getúlio foi a glosa intratextual. Ele adotou, assim, um procedimento híbrido, de

tendência estrangeirizadora e domesticadora, que constrói a competência do

leitor-modelo da autotradução. Seguem abaixo alguns exemplos:

(16)

Temos Canindé de São Francisco e Monte Alegre de Sergipe e Nossa Senhora da Glória e Nossa Senhora das Dores e Siriri e Capela e outros mundãos, sei quantos. (SGO: p. 9)

There are all those villages and towns out there, Canindé de São Francisco and Monte Alegre de Sergipe and Nossa Senhora das Dores and Siriri and Capela and all other such scattered places, God knows how many. (SGT: p. 1)

Em Aracaju tenho as costas quentes e não é assim que Getúlio vai se ver de uma hora para a outra. (SGO: p. 12)

I have good backing in the capital city of Aracaju and my name isn’t Getúlio if I’m to give up all of a sudden. (SGT: p. 5)

Além da omissão de Nossa Senhora da Glória, noto a preocupação do autotradutor

com o esclarecimento de se os lugares mencionados são pequenos ou não. Mas a

glosa intratextual nem sempre foi utilizada para a tradução dos topônimos. João

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Ubaldo também utilizou a técnica da tradução parcial de nomes próprios, como

em:

(17)

Faziam mítingue na praça Pinheiro Machado gritando isso e uma vez perturbaram toda a rua da Frente, não deixaram ninguém passar. [...] Eles lá muito monarcas no distúrbio e nós destaboquemos pela praça Fausto Cardoso e casquemos a lenha. (SGO: p. 19)

They had concentrations at the Plaza Pinheiro Machado shouting that, and once they blocked all of Frente Street, they wouldn’t let anyone pass. [...] There they were, carrying on like monarchs, and we thundered out of the Plaza Fausto Cardoso and started breaking heads. (SGT: p. 11)

Observo que João Ubaldo optou nos dois casos pela tradução parcial de nome

próprio ainda que o topônimo “Rua da Frente” pudesse ter sido traduzido

integralmente para o inglês. João Ubaldo reafirma, dessa forma, sua opção pelo

não apagamento do estrangeiro no texto traduzido.

João Ubaldo usa também a técnica da repetição, como em:

(18)

Vosmecê sabe, esse apustemado é de Muribeca. (SGO: p. 12)

You know this pest here is from Muribeca. (SGT: p. 4)

Outra vez, Lampião amarrou a mulher de um juiz, não sei se em Divina Pastora ou Rosário do Catete ou Capela, amarrou essa mulher desse juiz num pé de pau e botou nuazinha em pêlo. (SGO: p. 13)

There was another time, when Lampião tied up a judge’s wife, maybe it was in Divina Pastora or Rosário do Catete or Capela, he tied this wife of this judge to a tree and stripped her stark naked. (SGT: p. 6)

Assassinato misterioso em Itabaianinha. (SGO: p. 17)

Mysterious massacre in Itabaianinha. (SGT: p. 9)

Me apertou a mão, quando morreu, mas não era nesse dia em Ribeirópolis, foi depois em Riachão do Dantas, morreu de fato à mostra. (SGO: p. 33)

He shook my hand when he died, but he didn’t die that day in Ribeirópolis, it was later, in Riachão do Dantas, and he died with his bowels showing. (SGT: p. 25)

O sujeito aí vai morar em Aracaju e diz: eu nasci em Japoatão. (SGO: p. 88)

The fellow goes to live in Aracaju and says: I was born in Japoatão. (SGT: p. 79)

A repetição contribui de forma decisiva para que o estrangeiro se faça presente na

tradução. João Ubaldo oferece ao leitor, nestes casos, o mínimo de informação

necessária para a cooperação com o texto, pois as preposições from e in

normalmente introduzem locuções adverbiais de lugar. Além disso, note-se que a

informação de que Aracaju é a capital não é repetida, pois já pode ser atualizada

pelo leitor através da cooperação com os vocábulos registrados na manifestação

linear da narrativa. Destaco, mais uma vez, a opção de João Ubaldo pelo

entretenimento, evitando ser excessivamente didático.

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Curiosamente, observo que dois topônimos, Laranjeira e Boa Esperança,

cidades do interior de Sergipe, tiveram seus nomes vertidos para Orange Tree e

Good Hope, respectivamente. A opção pela tradução integral de nome próprio só

acontece nesses dois casos na versão de Sargento Getúlio para o inglês.

(19)

E a cidade de qualquer forma parece que vai morrer, como os cachorros de pedra empinados nos pilastres das casas grandes, com as grades. Nunca vi tanta grade como em Laranjeira, posso dizer. (SGO: p. 31)

And the city called Orange Tree seems to be dying anyhow, like the stone dogs balanced on the columns of the big grilled houses. I never saw so many grilles as I saw in Orange Tree, I might say that. (SGT: p. 23)

Não sei mesmo como que a gente pôde partir de Boa Esperança no meio daquele fogo, parecia um são-joão, eta. (SGO: p. 70)

I don’t even know how we were able to leave Good Hope in the middle of all that crossfire, it looked like Saint John’s Day. (SGT: p. 62)

Verifico que Orange Tree é precedida, na primeira vez em que é mencionada no

texto em inglês, por uma glosa intratextual que avisa o leitor do fato de que

Orange Tree é uma cidade. O esclarecimento é importante porque logo em

seguida o topônimo é mencionado novamente. Assim, o autotradutor prevê a

dificuldade do leitor-modelo da autotradução e adiciona uma pista que não havia

inserido no original.

Em An invincible memory, João Ubaldo usa a técnica da repetição para

traduzir nomes de cidades como Salvador, Itaparica, Pirajá, Cachoeira e Bahia.

Para traduzir outros nomes de cidades, como Vera Cruz de Itaparica e São João do

Manguinho, por exemplo, o autotradutor combina procedimentos (a glosa

intratextual e a tradução integral de nome próprio) e substitui os nomes originais

por Settlement of the True Cross of Itaparica e Village of Saint John of the Little

Swamp, respectivamente. A glosa intratextual é também utilizada na tradução de

Nazaré das Farinhas, que se torna City of Nazaré das Farinhas na versão em

inglês. Sobre a tradução dos topônimos, João Ubaldo comenta que, quando

parecia “importante que a condição geográfica (baía, porto etc.) fosse conhecida

pelo leitor” (e-mail, 25/07/2003), ele preferia a tradução à manutenção do nome

do local na língua original. Assim, o autor prefere usar a técnica da tradução

explicativa e insere bay area para explicitar a condição geográfica do Recôncavo

Baiano. Finalmente, observo que a tradução integral de nome próprio é uma

técnica também usada na versão de Viva o povo brasileiro para o inglês. Assim,

Armação do Bom Jesus, Arraial do Baiacu, Fonte do Porrãozinho, porto da Ponta

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da Cruz, Ponta das Baleias e Ladeira da Conceição são substituídos por Good

Jesus Fishery, Puffer Fish Village, Little Pot Spring, Cross Point Harbor, Whale

Point e Conception Hill, respectivamente.

Observo que João Ubaldo oscila entre técnicas com tendência

domesticadora, estrangeirizadora e híbrida. A classificação dos procedimentos

para a tradução dos topônimos no caso de Viva o povo brasileiro apresenta

dificuldades, pois, ainda que a língua inglesa tenha sido utilizada com a tradução

integral de nomes próprios, as cidades e vilas estão, definitivamente, localizadas

fora dos Estados Unidos ou da Inglaterra. Em estudo sobre as traduções de obras

latino-americanas, John Milton afirma que um exame de alguns contos de Vargas

Llosa, traduzidos com o apoio e a aprovação do autor, revela que a naturalização

de referências culturais e geográficas pode fazer seus leitores esquecerem que a

trama se passa na América Latina. O mesmo não se pode dizer do romance An

invincible memory e de Sergeant Getúlio de João Ubaldo: dificilmente o leitor

estrangeiro esquecerá que está diante de uma história cuja ação se desenrola em

algum lugar fora dos Estados Unidos ou da Inglaterra (Milton, 1999, p. 171).

Milton afirma ainda que o fato pode ser explicado pelo orgulho que João Ubaldo

demonstra ter de seu país e de seus valores. Creio, entretanto, que a opção por

técnicas que ratificam a presença de elementos estrangeiros nos textos traduzidos

revela aquela que João Ubaldo adotou como estratégia desde o início de seu

trabalho de autotradução de Sargento Getúlio: diante da impossibilidade de

reprodução exata do significado (e-mail, 07/08/2003), o escritor escolhe

procedimentos que não apagam o estrangeiro e demonstram que a história se

passa fora dos Estados Unidos, mas considera fundamental ajudar o leitor

estrangeiro no jogo da interpretação. Como o próprio escritor afirma, “Ou se

facilitava ou o romance se encheria de notas de pé de página explicativas e ficaria

mais grosso do que a lista telefônica de Nova York” (e-mail, 14/05/2004). Por

facilitação, compreendo a tentativa de auxiliar o leitor a cooperar com o texto

através da inclusão, principalmente, de elementos intratextuais. Em outras

palavras, João Ubaldo optou de forma definitiva pela utilização de procedimentos

que se fizessem presentes no texto em si e não fora dele, como os glossários e

notas extratextuais, e limita as “fraudes” que precisa cometer para ajudar o leitor

estrangeiro.

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É importante também comparar as técnicas utilizadas por João Ubaldo

àquelas usadas pelo tradutor norte-americano Clifford Landers. Além de O sorriso

do lagarto (Ribeiro, 1989), Landers traduziu várias obras de autores brasileiros

para o inglês. Entre elas, estão O xangô de Baker Street, de autoria de Jô Soares

(Cia das Letras, 1995), e Bufo & Spallanzani, de Rubem Fonseca (Cia das Letras,

1991). Em sua pesquisa sobre o trabalho de Landers, Bentes (2005) ressalta que o

tradutor norte-americano opta pela tradução parcial de nome próprio, glosa

intratextual, naturalização, tradução explicativa, repetição e tradução integral de

nome próprio, sendo que uma estratégia híbrida predomina através da utilização

majoritária da tradução parcial de nome próprio. Destaco que a diferença mais

significativa entre o trabalho de Clifford Landers e de João Ubaldo Ribeiro é que

o escritor brasileiro não utiliza a técnica da naturalização na tradução dos

topônimos. Na versão de O sorriso do lagarto para o inglês, Landers substitui

Xique-Xique (cidade baiana) por Biloxi (cidade localizada no estado no

Mississipi, EUA). É evidente que uma única utilização da técnica não apaga a

chamada “cor local”. Entretanto, em sua análise, Bentes (2005) ressalta que o uso

da tradução parcial de nome próprio e da tradução explicativa combinado ao uso

da naturalização contribuem para que “um diálogo mais amplo [...] entre a cultura

receptora e a cultura brasileira acabe sendo impedido de acontecer” (p. 83) em

The lizard’s smile. Em outras palavras, quando procedimentos de tendência

domesticadora predominam, a “cor local” torna-se mais pálida ou pode mesmo

desaparecer, como a análise de Milton (1999) sugere. A conseqüência é que o

outro é reduzido até parecer o “mesmo”, como no caso dos contos de Vargas

Llosa. Isso não ocorre com João Ubaldo, que não optou pela substituição de

nomes de lugares localizados no nordeste brasileiro por nomes de cidades norte-

americanas e preferiu manter a “cor local” no texto, especialmente nos casos

discutidos nesta seção.

Apresento agora algumas conclusões a partir da discussão sobre os CSIs.

Em primeiro lugar, ressalto que a oscilação detectada na prática tradutória de João

Ubaldo também é detectada no trabalho de Landers (Bentes, 2005, p. 91) e de

tradutores profissionais em geral (Franco Aixelá, 1996, p. 60). Segundo Franco

Aixelá, um tradutor faz uso de uma combinação de técnicas para traduzir

diferentes CSIs, ou mesmo técnicas distintas para uma mesma ocorrência. É

importante ressaltar também que o produto do trabalho do escritor brasileiro não é

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um texto em que a presença do estrangeiro (o brasileiro, no caso) não se faça

notar. Pelo contrário. Minha análise demonstrou que a autotradução tal como

praticada por João Ubaldo não apaga as diferenças culturais do texto traduzido.

Em segundo lugar, destaco a visão de traição reforçada no discurso de João

Ubaldo. São inúmeras as metáforas de caráter depreciativo produzidas por

literatos, críticos e pelos próprios tradutores (Sette, 2002) acerca da tradução. Um

dos trocadilhos mais famosos é traduttore traditore (tradutor traidor), que

expressa a opinião compartilhada por leitores profissionais, o escritor João Ubaldo

entre eles. Para o escritor brasileiro, ao fornecer ao leitor informações que o

ajudarão a cooperar com o texto, ele está trapaceando, já que essas informações

estavam implícitas no original. Em outras palavras, o não-dito faz parte do jogo da

escrita literária, e a explicitação por vezes necessária à tradução é traição, porque

transforma o texto traduzido em um instrumento de ensino mais do que em uma

obra literária diferente da original. Julgo importante realçar mais uma vez que o

objetivo de João Ubaldo ao verter seus romances para o inglês não era ensinar,

mas sim entreter o leitor. Assim, demonstrei através de exemplos que o autor-

modelo da autotradução evitou técnicas de natureza explicativa nos momentos em

que as escolhas registradas na manifestação linear do texto auxiliavam a

construção da competência necessária para a interpretação, ou para o

entretenimento. Outros exemplos evidenciaram, por outro lado, a necessidade da

explicitação, para que o entretenimento fosse possível. Ou, em outras palavras,

para entreter foi preciso, por vezes, também ensinar.

Noto ainda que a técnica da naturalização, quando o tradutor aclimata o CSI

à realidade da cultura receptora (Franco Aixelá, 1996, p. 63), não foi encontrada

entre os exemplos de topônimos por mim discutidos. Pouco utilizada em

traduções literárias atualmente, a técnica foi, no entanto, usada por Clifford

Landers em seu trabalho de tradução de O sorriso do lagarto / The lizard’s smile.

Bentes mostra alguns itens que foram adaptados à realidade cultural norte-

americana (2005, p. 144-162), entre eles os nomes de Rui Barbosa e Camões, que

foram substituídos na versão inglesa por Einstein e Shakespeare, respectivamente.

É importante apontar que Landers conta com a sanção dos escritores, que

autorizam suas escolhas (2006), mas o resultado do uso da naturalização somada à

utilização de outros procedimentos de tendência domesticadora é uma tradução

que tende “para uma estratégia global de domesticação” (Bentes, 2005, p. 84) e

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acaba dificultando a formação de “um público-leitor mais aberto a diferenças

lingüísticas e culturais”, como recomenda Venuti (2002, p. 166). Este não é o caso

de João Ubaldo, que não utiliza a técnica da naturalização para traduzir topônimos

e contribui para um texto traduzido de tendência estrangeirizadora e aberto, a

princípio, à experiência do outro, estrangeiro, presente na tradução.

Note-se que o respeito pelo outro, ratificado pela escolha de textos e

estratégias que evidenciam a estrangeiridade, é defendido por Venuti (2002). O

teórico da tradução e professor da Temple University argumenta que uma

tradução de boa qualidade é aquela que “limita a negação etnocêntrica” (p. 155).

Para o estudioso norte-americano, é essencial que o tradutor limite a adaptação a

padrões da cultura receptora, pois ao adaptar o tradutor pode, por um lado,

facilitar a leitura, mas por outro pode fazer o estrangeiro esquecer que está diante

do outro, diferente, com características próprias. De fato, também acredito que

uma tradução que apaga a diferença homogeneíza o estrangeiro e dificulta a

construção do respeito pela diferença (Appiah, 2000). Entretanto, como aponta

Pym (1999), a distinção entre as duas estratégias – domesticação e

estrangeirização – é calcada em uma única via de tradução, a saber: de uma

cultura minoritária para uma cultura majoritária. Além disso, a atitude que Venuti

considera ética pode não ser a mais apropriada se considerarmos as expectativas

do público-leitor. Uma versão do português para o inglês de tendência

estrangeirizadora, como no caso de João Ubaldo Ribeiro, pode fazer com que as

obras do escritor soem por demais estrangeiras, dificultando a interação com o

público-leitor estrangeiro e o alcance de um público expressivo para suas obras.

Destaco que uma obra traduzida jamais será completamente estrangeirizadora ou

domesticadora, pois um tradutor sempre utilizará técnicas variadas para lidar com

CSIs (v. Franco Aixelá, 1996; Bentes, 2005). Assim, ressalto a relevância da

dissertação de Bentes, em que a pesquisadora aponta para a tendência de uma

tradução. Finalmente, julgo relevante realçar que, a meu ver, uma tradução é um

exercício de equilíbrio entre tendências distintas para que um texto, especialmente

aquele proveniente de um polissistema literário jovem ou fraco, não apague por

completo o estrangeiro nem tampouco pareça tão estranho que cause a rejeição do

público-leitor.

Terminada a discussão acerca dos CSIs, passo agora a analisar a estratégia

de tradução do “sergipês”.

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4.5.2

O sergipês

Sargento Getúlio é, reconhecidamente, um romance que mistura recursos

variados em sua criação de uma linguagem regional singular e unicamente oral

(um dialeto) a que João Ubaldo se refere como “sergipês”. Em The Cambridge

encyclopedia of the English language, David Crystal (1999) define um dialeto

como uma maneira de falar originária de regiões específicas dotado de uma

“individualidade surpreendente” (p. 298) e “fonte de grande complexidade e

potencial lingüísticos” (p. 298). Ao escrever o romance, João Ubaldo transporta a

oralidade do dialeto para a escrita, usando recursos variados para explorar, além

da oralidade, o regionalismo desse falar. Uma das conseqüências da recriação da

linguagem é a extrema dificuldade que o tradutor inicialmente contratado para a

versão do romance para o inglês enfrentou (Ribeiro, 1990, p. 3). A partir da

perspectiva de Eco, podemos dizer que o leitor-modelo do original (o tradutor

estrangeiro contratado) teve dificuldades para transformar expressões em um

primeiro nível de conteúdo, pois os lexemas na superfície linear do texto

provavelmente não pertenciam a seu dicionário de base, parte de sua competência

enciclopédica. Ou ainda, os regionalismos e a utilização de recursos estilísticos

variados tornaram a cooperação com o texto uma tarefa extremamente complexa,

para não dizer impossível, para um falante não-nativo do português que costuma

ser competente na língua tida como culta ou em variedades mais “prestigiadas”.

Não é de todo surpreendente que o tradutor tenha desistido da tarefa. Como

conseqüência de sua desistência, João Ubaldo resolveu traduzir, ele mesmo, o

dialeto. Vejamos então as características dessa tradução.

Destaco, em primeiro lugar, aquela que é, a meu ver, a principal

característica da versão em inglês de Sargento Getúlio: o apagamento do

“sergipês”. João Ubaldo revela sua dificuldade na tarefa de traduzir o dialeto ao

escrever por e-mail: “como é que ia traduzir o sergipês. Não podia usar linguagem

urbana, não podia usar linguagem do velho Oeste, não podia usar linguagem do

sul e assim por diante” (24/09/2003). É inegável que “a linguagem correta e

apropriada é sempre mais fácil de traduzir” (Landers, 2001, p. 116). A dificuldade

na tradução de dialetos é evidenciada também nas opiniões distintas de tradutores

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profissionais quanto ao tratamento que deve ser dado a esses falares originários de

regiões específicas. Vejamos o que dizem Clifford Landers, Gregory Rabassa e

Suzanne Jill Levine, renomados tradutores literários profissionais norte-

americanos.

Clifford Landers desaconselha o uso de outro dialeto que já existe ou a

invenção de um para substituir o original, e conclui com um conselho para a

tradução de uma linguagem dialetal: “não tente” (p. 117). Em outras palavras,

julgo que Landers aconselha, na verdade, que o tradutor lance mão de outros

recursos para comunicar ao leitor que um determinado personagem faz uso de

uma linguagem específica. A questão permanece, contudo, pois os dialetos

existem e demandam tradução. Gregory Rabassa, tradutor de obras de autoria de

Machado de Assis, Jorge Amado, Dalton Trevisan, Clarice Lispector e Osman

Lins, entre outros autores brasileiros e latino-americanos em geral, tem outra

opinião. Ele afirma que “o tradutor deve conceber um inglês que [o gaúcho]

falaria caso falasse inglês” (1991, p. 42); ou seja, utilizando sua criatividade e

competência tradutória, o profissional deverá inventar uma língua, já que a

substituição de um dialeto por outro já existente provoca, por vezes, associações

pouco apropriadas (como a associação do sargento Getúlio a um cowboy norte-

americano, por exemplo). Considero, contudo, a criação dessa língua uma tarefa

bastante árdua e que não garante a travessia da fronteira cultural que separa os

países em questão. Além disso, julgo que o tradutor literário corre o risco de criar

uma linguagem caricatural que contribuiria para a manutenção de estereótipos e

para o fomento de preconceitos acerca do estrangeiro. Finalmente, Suzanne Jill

Levine (1991), tradutora de obras de Cabrera Infante e Manuel Puig, entre outros,

descreve como “a fala cubana e o sotaque de Havana inevitavelmente

desaparecem na versão inglesa” de Tres tristes tigres (p. 67) através de um

processo de “americanização” (p. 68) das falas dos personagens ou, a meu ver, da

redução do estrangeiro cubano ao (mesmo) nativo norte-americano. Diante das

possibilidades, o que faz João Ubaldo?

Ele afirma que “universalizou o inglês da tradução, puxando mais, no caso,

para o inglês americano, porque a tradução era para os Estados Unidos” (e-mail,

12/11/2003). Compreendo a “universalização” citada por João Ubaldo como a

tentativa de aproximação do novo público-leitor através do uso de construções

gramaticais, vocabulário, técnicas e padrões em geral já conhecidos dos leitores

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aos quais suas traduções se destinavam, como demonstrei na seção anterior.

Lembro que o apelo àquilo que é familiar, como o conhecimento que os leitores

pensam ter sobre a América Latina, foi uma estratégia usada no lançamento do

romance (v. seção 4.4) e confirmada em várias opções de João Ubaldo,

autotradutor. Entre elas, já citei o uso de um procedimento de criação de palavras

conhecido do falante nativo de língua inglesa. Considerando-se o desejo de se ver

inserido no cânone de literatura brasileira traduzida no exterior como um dos

motivos por mim apontados para a decisão de traduzir, ele mesmo, o original, a

universalização é uma opção coerente, já que o público-leitor norte-americano é

sabidamente pouco afeito a traduções, fato que se confirma na quantidade de

livros traduzidos publicados nos E.U.A.: menos de 1% (Landers, 2006a).

Lado a lado com a universalização, João Ubaldo afirma ainda ter desejado

“dar um ar ‘traduzido’ ao verter seu trabalho para o inglês” (email, 24/09/2003) e

preferido “usar uma maneira de dizer, uma frase feita de uso cotidiano, por

exemplo, traduzida do português do que seu equivalente, muitas vezes diferente,

na conversa comum entre nativos falantes de inglês” (ibidem). Compreendo,

portanto, o “ar traduzido” como a tentativa de fazer com que o leitor encontre

obstáculos durante sua leitura e assim perceba que está diante de uma tradução.

De fato, pude constatar que João Ubaldo usa traduções do português que soam

pouco naturais em inglês. Vejamos quais são elas.

(20)

… o que não tem remédio, remediado está. (SGO: p. 36)

... that which has no remedy, can be considered remedied. (SGT: p. 28)

(21)

... quem come jaca e bebe qualquer tipo de cachaça, estupora. (SGO: p. 11)

… whoever eats a piece of jack fruit and drinks any kind of hard liquor on top of it, his skin breaks out all over. (SGT: p. 3)

(22)

... homem nu com mulher nua, um vai cair na pua ... (SGO: p. 56)

... get a naked woman and a naked man together and one of them will end up on top of the other… (SGT: p. 48)

(23)

... quem é burro pede a Deus que mate e o diabo que carregue ... (SGO: p. 107)

... when you’re stupid you ask for your own death... (SGT: p. 98)

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No exemplo 20 vemos que um ditado popular bastante comum entre falantes

nativos de português foi substituído por uma expressão que não é fixa ou de uso

freqüente e, além disso, demonstra o uso de um registro formal da língua inglesa.

No exemplo 21, a expressão faz alusão a um tabu alimentar instituído por jesuítas

que, impedidos por motivos religiosos de flagelar seus escravos, desenvolveram

métodos psicológicos para induzi-los a vigiarem a si mesmos. A versão em inglês,

traduzida literalmente do português, é mais uma vez uma expressão que não é fixa

ou comum e que não tem a “cor” original. O exemplo 22 demonstra o uso da

técnica da tradução literal que, mais uma vez, resulta em uma expressão que não é

fixa, mas que usa um inglês informal. Finalmente, no exemplo 23, vemos que a

tradução literal não foi empregada e o autotradutor preferiu privilegiar o sentido

da expressão em vez da forma.

Vejo na tradução dos ditados regionais o apelo ao exótico quando, traduzida

literalmente, a expressão sugere as conseqüências (não verdadeiras) da mistura de

um tipo de alimento com uma bebida alcoólica (exemplo 21). Sem a competência

enciclopédica necessária para cooperar com o texto, o leitor-modelo da

autotradução constrói o sentido através da atualização em um primeiro nível de

conteúdo dos vocábulos selecionados pelo autor-modelo da autotradução e

confirma seu “conhecimento” sobre a cultura brasileira e latino-americana, já

adquirido através da leitura de outros textos. Note-se ainda que a rima (nua / pua,

exemplo 22) desaparece da versão inglesa e contribui para o apagamento da

oralidade característica da narrativa original.

Por fim, observo que João Ubaldo usa também ditados populares freqüentes

entre falantes nativos da língua inglesa:

(24)

Depois ele pegou a tropa toda e jogou lá no jebe-jebe de Penedo. (SGO: p. 126)

Then he grabbed the whole train and threw it all where the devil lost his boots. (SGT: p. 116)

Assim, vejo que João Ubaldo ao mesmo tempo em que traduz expressões

populares literalmente, produzindo resultados pouco comuns, procura compensar

esse procedimento ao adicionar expressões fixas em inglês que colorem a versão.

Mas há ainda outros momentos em que o “ar traduzido” se faz presente.

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O resenhista do Chicago Tribune elogia Sergeant Getúlio porque o

autotradutor usa colocações que não são freqüentes entre falantes nativos do

inglês. Com efeito, as colocações não são, na maioria das vezes, expressões fixas,

e as restrições ao uso dessas combinações de palavras devem-se muito mais à

intuição do falante do que propriamente a qualquer restrição de ordem gramatical

ou formal. Em outras palavras, não há nenhuma regra que impeça, por exemplo, a

utilização dos vocábulos squashy e bug juntos para xingar alguém, como acontece

em Sergeant Getúlio. Por outro lado, a utilização da combinação squashy bug

como xingamento não é usual e sugere que o autotradutor está fazendo uso de

uma expressão que é possível na língua do ponto de vista formal, mas que não é

provável ou típica do vocabulário de um usuário nativo. Sallow earthworm, easily

roped ox, sparrow heart, dungy queer são outras combinações de palavras que

podem ser explicadas da mesma forma.

Finalmente, João Ubaldo opta ainda por uma seleção de vocábulos

derivados do latim (Milton, 2002) (exemplo 25, abaixo) e de construções

gramaticais (exemplo 26, abaixo) que elevam o “sergipês” a um nível bastante

expressivo de formalidade. Apresento agora alguns exemplos:

(25)

O pão de Inhambupe é especial. (SGO: p. 22) The bread of Inhambupe is exceptional. (SGT: p. 14)

... bem capaz de ficar cavacando a noite toda

... (SGO: p. 66) ... and he’s likely to keep conversing all night … (SGT: p. 58)

Aí fazia resistência ... (SGO: p. 70) Then we would put up a resistance... (SGT: p. 62)

... e quando os homens desistiram de mais conversar… (SGO: p. 99)

… and when the men desisted from doing any more talking … (SGT: p. 89)

(26)

Fosse dado a sangria, terminava o vivente no ferro. (SGO: p. 9)

If I were a knife-man, I would have finished him with the steel blade. (SGT: p. 1-2)

Se a colher empretecia, tinha veneno, isso porque o veneno descurece a prata, não sabe vosmecê. (SGO: p. 13)

If the spoon turned dark it meant the food was poisoned, inasmuch as poison darkens silver, as you know.

Não teve essa cabeça boa ... (SGO: p. 19) Not a head remained unbroken ... (SGT: p. 11)

... tu não acha que essas alturas já não está vindo uma força de cabras aí? (SGO: p. 68)

... do you not think that by this time a band of bastards is coming over to get us? (SGT: p. 60)

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Alguns tradutores profissionais consultados concordam que seria muito

difícil verter um romance como Sargento Getúlio para o inglês. Consideram que é

impossível encontrar equivalentes “exatos” para as palavras e expressões

utilizadas no original, mas que teria sido possível utilizar um estilo que mostrasse

ao leitor estrangeiro que Getúlio não é um sargento culto, educado, que nasceu em

uma cidade grande, que foi à escola, como a personagem construída na versão em

inglês sugere. Uma versão mais “fiel” ao original incluiria, talvez, erros na grafia

de palavras, erros de concordância, a utilização de contrações, o uso de expressões

reconhecidamente regionais e também a utilização de construções menos formais,

ou nas palavras de Luiz Angélico da Costa (1996), de uma “gramaticalidade

[menos] sisuda”, do que if I were ou it was I who, por exemplo, que aparecem na

versão. Não é meu propósito aqui propor uma nova versão, porém considero que

tais sugestões fariam o sergeant Getúlio parecer-se mais com o sargento Getúlio

sem que um novo dialeto fosse criado. É o próprio João Ubaldo Ribeiro quem

afirma “não se poder traduzir um ‘dialeto’ para outro ‘dialeto’” (e-mail,

12/11/2003) e, por isso, resolveu adotar o ar traduzido. Creio, então, que João

Ubaldo preferiu, de certa forma, seguir o “conselho” de Gregory Rabassa e

buscou criar uma linguagem que fizesse o leitor perceber que está diante de um

texto estrangeiro. Ao mesmo tempo, não pretendeu fazer de sua autotradução um

texto de leitura pouco fluente. Assim, a versão do “sergipês” é, antes de tudo, um

exercício de equilíbrio em que o autotradutor abre mão de características do texto

original na tentativa de aproximação do leitor estrangeiro e tenta provocar, nesse

mesmo leitor, a percepção da diferença. Isso pode ser feito através da utilização de

expressões que deslocam o leitor de uma posição de certo conforto em relação ao

texto traduzido, o qual, muitas vezes, incorpora também tradições próprias da

cultura-alvo na tentativa de uma leitura bastante fluente, de um texto que não soe

como uma tradução.

Pude demonstrar neste capítulo que João Ubaldo usa técnicas de tradução

para tratar os problemas que enfrentou. Em outras palavras, diante de seu próprio

texto em português ele trabalha como o tradutor, constrói o leitor-modelo da

autotradução evitando adicionar informações das quais ele não precisa para

cooperar com o texto e deixa de inserir glosas intratextuais, por exemplo.

Também em relação ao “sergipês”, João Ubaldo adota procedimentos que

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minimizam características da língua-fonte, o que também tem sido apontado como

inerente ao processo tradutório (Baker, 1995). Assim, posso afirmar que o

trabalho desse autotradutor ao verter o “sergipês” não se distingue, de forma geral,

do trabalho de outros tradutores. João Ubaldo ainda assume outras atitudes que

podem ser atribuídas ao trabalho de um tradutor, especialmente no caso de sua

segunda autotradução Viva o povo brasileiro / An invincible memory.

4.5.3

Os erros em Viva o povo brasileiro

O próprio escritor afirma que “há erros no original” (e-mail, 20/09/2005),

mas que não se recorda de correções importantes. Há, contudo, modificações

introduzidas em An invincible memory. Vejamos alguns erros corrigidos por João

Ubaldo.

(27)

(i) Passou o ferrolho, experimentou-lhe a resistência, virou-se para dirigir-se a Edísio, já sentado na cadeira em frente à escrivaninha. […] Edísio fez uma cara de resignação exagerada, tirou o chapéu ... (VPB, p. 170)

He latched the door, tested it, and turned around to speak to Emídio, who had sat down in front of the desk. [...] Emídio feigned an exaggerated resignation, took off his hat, … (AIM, p. 125)

(ii) – Negrinha descarada! – Gritou ele e puxou Dafé num abraço violento, metendo-lhe a mão por baixo.

A saia de Dafé subiu, os outros se aproximaram, um deles começou a ajudar Leopoldo a segurá-la.

– Não, desta vez não! – gritou Vevé.

Soltou o saco de mantimentos que vinha trazendo às costas, tirou de dentro a araçanga, arremeteu contra eles girando o grande porrete por cima da cabeça. Soltaram Vevé, Leopoldo recuou alguns passos. (VPB, p. 319/320)

“You shameless Negress!” he shouted, and grabbed Dafé with a violent hug, fondling her bottom.

Dafé’s skirt went up, the others came close, one of them started helping Leopoldo to hold her still.

“No, not this time!” Vevé cried out.

She dropped the bag of provisions she had been carrying on her back, pulled the araçanga out of it, and lunged against them, spinning the big club over her head. They let Dafé go, and Leopoldo walked back a few steps. (AIM, p. 240/241)

(iii) Alegre por ser seu filho, Ogum se preparou para animá-lo e dar-lhe conforto, mas o chumbo fervente de uma bala inimiga mordeu o pescoço tenro do rapaz de Amoreiras ... (p. 451)

Happy to see his son, Ogoon set out to encourage and comfort him, but the seething lead of an enemy bullet bit the lad from Amoreira’s tender neck … (p. 338)

(iv) ... enquanto o barquinho cambava a estibordo e fazia prumo direto para a velha Ponta das Baleias, emoldurado por um céu todo vermelho.

Assim que fundearam em Ponta da Areia,

… while the little boat jibed larboard and made straight to old Whale Point, now framed by a wholly crimson sky.

As soon as they moored in Whale Point, they were given a message by the boatman

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souberam por um recado trazido pelo saveirista Bernardino, mandado a terra antes de desembarcarem, que Rufina, como aliás, já se esperava, estava indo para a Capoeira do Tuntum, era noite de trabalho. (p. 489)

Bernardino, whom they had sent ashore before they landed, saying that Rufina, as expected, was going to Tuntum Clearing; it was a work night for her. (p. 366)

Analisemos agora os casos. No primeiro deles (27.i), ao tentar atualizar as

expressões presentes na manifestação linear do texto no nível discursivo, o

autotradutor (leitor-modelo do original) encontra o nome “Edísio” e não consegue

estabelecer coerência entre as partes da história. Amleto havia dado ordens a seu

empregado para que fizesse entrar seu cunhado “Emídio Reis”, assim que este

chegasse ao escritório. Em seguida, a chegada de Emídio é anunciada, e o leitor-

modelo imediatamente compreende (fazendo uma inferência) que se Emídio

chegou e foi anunciado, é bastante provável que ele (e não outro personagem de

nome “Edísio”) esteja “já sentado em frente à escrivaninha” no escritório de

Amleto. Esta é uma inferência que tem por base o conhecimento organizado que o

leitor tem do mundo, ou uma encenação comum (Eco, 1979b, p. 63), que inclui o

conhecimento acerca dos procedimentos que a cena “chegada a um escritório”

implica. Assim, ela não precisa ser contada em detalhe para ser interpretada. O

conhecimento das encenações comuns é parte da competência enciclopédica de

leitores e os auxilia no ato cooperativo da leitura. Essa competência faz o

autotradutor (leitor-modelo do original) reconhecer que está diante de um erro e

que este precisa ser corrigido.

Vejamos o caso de Vevé e Dafé (27.ii), onde a incoerência mais uma vez

assume papel preponderante. O leitor-modelo do original sabe que mãe e filha

voltam de uma pescaria e que Vevé traz um saco às costas. No caminho de volta

para casa, quando são atacadas por rapazes brancos que imobilizam Dafé, Vevé se

desespera diante da possibilidade de que a filha seja violentada repetindo, assim, a

sua própria história (Vevé, uma ex-escrava, foi estuprada por seu dono, o Barão

de Pirapuama, e deu à luz Dafé, filha do Barão). Vevé, que carregava o “saco de

mantimentos”, tira de lá a araçanga e consegue impedir o estupro da filha. Ao

cooperar com o texto, o autotradutor (leitor-modelo do original) imediatamente

percebe que não há coerência entre os trechos da história, já que era Dafé quem se

encontrava presa pelos rapazes e, em conseqüência, somente ela poderia ter sido

libertada pelo golpe da araçanga de Vevé que, por sua vez, estava de posse do

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equipamento de pesca que serviu de arma para libertar a filha. Note-se ainda que

era Vevé quem estava livre para tirar o apetrecho do saco e para atirá-lo contra os

agressores. Diante da incoerência, mais uma vez o autotradutor corrige o texto.

No terceiro caso (27.iii), Ogum chega à Guerra do Paraguai, atendendo o

convite de outra entidade, para ajudar os combatentes brasileiros. Lá chegando,

ele vê seu filho lutar e morrer. O autotradutor faz uso das regras de co-referência,

que fazem parte de sua competência enciclopédica, e conclui que os pronomes

pessoais do caso oblíquo se referem a outro, o combatente – filho de Ogum – que

se encontrava em dificuldades, e não ao próprio Ogum. Assim, ele insere a

correção no texto traduzido.

Finalmente, outra incoerência é resolvida na tradução no quarto exemplo

(27.iv). Se o barco “fazia prumo direto” para a Ponta das Baleias, como explicar

que tivesse chegado a Ponta da Areia? Evidentemente, o conhecimento prévio do

autotradutor teria lhe permitido manter “Ponta da Areia” alegando, talvez, que são

lugares próximos em Itaparica, onde a trama se passa. Entretanto, a autotradução

nos esclarece que se trata de um erro.

Seriam as correções que descrevi atribuídas e permitidas tão somente ao

autor que traduz o próprio texto? Não creio. As correções são freqüentemente

feitas por tradutores quando percebem que há uma incoerência ou um erro no

original. Movido, talvez, pela generosidade para com o autor e a obra e/ou pelo

receio de acharem que o erro é dele, tradutor, já que as edições não são bilíngües,

o tradutor profissional geralmente corrigirá os erros que o exercício de leitor-

modelo do original aponta. É inegável que ao exercer o papel de leitor-modelo o

tradutor também percebe incoerências entre partes do texto. Assim, um outro

tradutor também estaria “autorizado” por sua própria competência, por sua

generosidade e responsabilidade pelo texto traduzido, a introduzir as mesmas

correções que o autotradutor João Ubaldo Ribeiro fez em seu texto. Entretanto,

outro tipo de alteração significativa é introduzida por João Ubaldo.

4.5.4

As alterações mais significativas

Até aqui, demonstrei que, quando traduz seu próprio texto, João Ubaldo

Ribeiro faz trabalho que pode ser atribuído ao de um tradutor profissional.

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Entretanto, como veremos agora, há também alterações que, quando feitas por

profissionais, podem ser chamadas de “traições” ao original. Já o autor terá

liberdade para traduzir seu texto, sem que seja acusado de traidor. Vejamos então

quais são essas modificações.

(28)

E hoje vai lá um fiscal da Junta do Comércio que ontem quis saber dos selos e das notas de despacho de quase toda a mercadoria que me mandaste da Armação. Disse-lhe que já tínhamos tudo acertado com o Senhor Porteiro da Alfândega e o Senhor Escrivão ...

– Mas, pelo amor de Deus, não deste a entender que fornecemos mantimentos de graça ao porteiro, nem que pagamos renda ao escrivão, ai pelo amor de Deus! [...]

– Isto sei e não precisas lembrar-me e não sou tonto nem desmiolado para contar isto lá ao homem da Junta do Comércio.

– Mas é que falas demais. Já te disse, por exemplo, que não te refiras à mercadoria que retiramos da Armação ...

– Que furtamos da Armação! Bah! Quem nos ouve cá? Tu tens a mania das palavras finas, que em minha boca não calham bem. (VPB: p. 171)

And today we’re going to be visited by an auditor from the Board of Commerce, who was there yesterday asking for the stamps and for the bills of lading of almost all the merchandise we stole from the fishery. I told him we had settled it all with His Excellency the customs inspector general and with His Excellency the registrar – ”

“But for God’s sake, you didn’t let him know we supply free provisions to the inspector nor that we pay the registrar a stipend, for God’s sake, did you? […]”

“I know that; you don’t have to remind me. And I’m neither a fool nor a lunatic to tell a thing like that to the man from the Board of Commerce.”

“But you do talk too much. For instance, I have told you before not to refer to the merchandise we withdrew from the fishery as –”

“The merchandise we stole from the fishery! Bah! No one is listening to us. You have a fixation on fine words that do not fit my lips well.” (AIM: p. 125/126)

Neste exemplo, o autotradutor opta pela explicitação imediata, no texto

traduzido, do caráter ilegal da transação comandada por Amleto Ferreira. No

original, a revelação dá-se de forma gradativa, revelada na variada escolha lexical

do autor-modelo do original. Primeiro, a mercadoria é “mandada” da Armação por

Amleto, e Emídio se coloca como receptador passivo, por assim dizer, do

material. Em seguida, Amleto se refere à mesma mercadoria como aquela que ele

e Emídio haviam “retirado” da Armação. Até aqui, a narrativa é ambígua e deixa à

atualização do leitor a ilegalidade da operação que acontece na Armação, até que

Emídio finalmente não consegue mais esconder o “furto”. No texto em inglês, a

escolha do vocábulo steal não deixa margem para ambigüidades desde o início do

relato de Emídio, pois o autor-modelo da autotradução coloca, desde o primeiro

momento, sob a forma de um lexema aquilo que o texto original esperava que o

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235

leitor atualizasse. O autor-modelo da autotradução determinou, portanto, de forma

precisa o que o autor-modelo do original evitou determinar e muda a estratégia

selecionada pelo original. Qual é o impacto da escolha sobre o leitor?

Inicialmente, podemos dizer que a explicitação torna o texto mais acessível

ao leitor-modelo da autotradução porque demanda dele tão somente a atualização

do sentido literal de um vocábulo. Como observei anteriormente, a preocupação

com a leitura fluente está presente na autotradução tal como praticada por João

Ubaldo. Contudo, demonstrei que, especialmente na versão de Sergeant Getúlio, o

autotradutor brasileiro tende a explicitar informações na medida em que elas são

necessárias para a interpretação, mas também quando tais informações não são

apresentadas durante a narrativa para a atualização do leitor. Tal movimento

denota, como já afirmei, a preocupação do autor-modelo da autotradução em

evitar um texto por demais explicativo, explícito ou didático. Entretanto, quando o

autotradutor opta pela explicitação de uma ambigüidade, ele também revela, de

forma indireta, que o que se diz é, por vezes, mais importante do que a maneira

selecionada para dizer algo. De fato, a resenha publicada no jornal norte-

americano The New York Times afirma, sobre An invincible memory, que o

romance é a novel of ideas told by a student of history, rather than a story told by

a real storyteller. Na resenha, o crítico demonstra a visão de que a narrativa não

envolve o leitor, mas preocupa-se em contar os fatos que constituem a história do

Brasil. A escolha do vocábulo steal mostra que o autor-modelo da autotradução

procura informar seu leitor, diferentemente do autor-modelo do original, para

quem o léxico empregado é um recurso estilístico importante. Porém, ainda em

relação a este exemplo, considero que a alteração deve ser atribuída ao trabalho do

tradutor que, na tentativa de se comunicar com o leitor estrangeiro, opta por

suprimir uma ambigüidade.

A comunicação com o leitor é uma preocupação de João Ubaldo, como de

qualquer tradutor. Demonstrei anteriormente, em relação aos CSIs, que o leitor-

modelo da autotradução motiva João Ubaldo a introduzir alterações que auxiliem

o leitor estrangeiro em sua cooperação com o texto para assegurar a comunicação.

Atribuí essas mudanças ao trabalho do tradutor e demonstrei que pesquisadores da

tradução com base em corpora tratam algumas delas – a explicitação, por

exemplo – como características do texto traduzido. A conclusão até aqui é,

portanto, que não existem diferenças significativas entre o trabalho de João

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Ubaldo Ribeiro, autotradutor, e o de tradutores em geral. Ou, em outras palavras,

que as estratégias e os procedimentos empregados por João Ubaldo em sua

autotradução também são encontrados no trabalho de um tradutor literário.

Contudo, ainda há, especialmente em An invincible memory, marcas que atribuo

ao trabalho do autor, entendido como aquele que tem autoridade sobre o original

e, por isso, está autorizado a introduzir certas alterações em seu texto. Antes de

discuti-las, porém, acrescento um último comentário.

Como discuti anteriormente, a tradução realizada ao mesmo tempo ou pouco

depois que a escrita original promove, por vezes, a reavaliação do original e sua

lapidação. Entre os exemplos desse processo, citei o trabalho dos tradutores

Edoardo Bizzarri e Curt Meyer-Clason, cujas escolhas fizeram Guimarães Rosa

introduzir alterações no texto original para torná-lo, provavelmente, mais perfeito

aos olhos do autor. Discuti ainda o caso dos escritores catalães Carme Riera,

Francesc Parcerisas e Antoni Marí, que aproveitam o processo de tradução para

analisar criticamente o original e revisá-lo, fazendo alterações significativas em, a

meu ver, um processo de lapidação da obra. Também João Ubaldo usa a tradução

para introduzir alterações. Entretanto, elas nem sempre são introduzidas no texto

original em português. Seria plenamente compreensível e, por que não dizer,

esperado, que, uma vez constatados os erros como aqueles que descrevi acima, os

originais fossem revistos e as correções executadas. Na 2ª impressão da 3ª edição

de Viva o povo brasileiro, de fato, o nome próprio Edísio foi substituído por

Emídio, mas o nome Vevé permanece e confunde o leitor-modelo do original, que

precisa imaginar, contrariando sua competência enciclopédica, como ela

consegue, presa, tirar a araçanga do saco em que carrega os apetrechos de pesca e

bater nos rapazes com força suficiente para que eles soltem sua filha Dafé. Ogum

ainda é seu próprio filho e o barco que tinha a Ponta das Baleias como destino

certo chega à Ponta da Areia. Diante da oportunidade de revisão do original, ele

nem sempre é modificado. Quais seriam as explicações para o fato?

Em primeiro lugar, considero a posição ubaldiana a respeito dos textos que

escreve: “o que está escrito, está escrito” (e-mail, 15/08/2003). Tal afirmação

sugere que o texto literário é visto pelo escritor brasileiro como permanente,

caráter que impede modificações. É possível, portanto, que a editora tenha

recebido a orientação do autor para que não se introduzam alterações nas

reimpressões e novas edições de seus romances. Sua posição de autor consagrado

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237

em território nacional (e na sua editora) dá a ele a autoridade para proibir

modificações. Além disso, a não inclusão de correções nos originais em português

denota, a meu ver, o distanciamento entre o processo de publicação de An

invincible memory no mercado norte-americano e o de Viva o povo brasileiro no

Brasil. Em outras palavras, concluo que a autotradução não contribuiu para a

revisão das novas edições lançadas no Brasil, diferentemente do caso dos

escritores catalães e de Kundera, por exemplo, para quem o exercício da

autotradução representa uma oportunidade de revisão e lapidação do original.

Em segundo lugar, julgo que está implícita, nas escolhas tradutórias de João

Ubaldo, a decisão de manter-se dentro dos limites da interpretação que a coerência

entre as partes do texto impõe, pois a manutenção dos erros impressos no original

iria demandar do leitor-modelo da autotradução movimentos que poderiam levá-lo

a interpretações fantasiosas de encenações comuns.

Finalmente, podemos também considerar o possível impacto sobre o

público-leitor. Diante da possibilidade de ver publicado um livro cujas escolhas

possam sugerir erros, o autotradutor prefere corrigir seu texto. Como o próprio

escritor relata (ou torna implícito), a preocupação com a correção é constante em

suas produções (e-mail, 24/09/2003; 08/10/2003; 12/11/2003).

Passo agora a analisar alterações que atribuo ao trabalho do autor,

permitidas somente a ele, quando exerce o papel de leitor-modelo do original.

Vejamos os exemplos encontrados em Viva o povo brasileiro / An invincible

memory.

(29)

Lá o preto liberto João Benigno, que morava ao rés-do-chão, no telheiro dos fundos, já devia ter acabado a limpeza para esperá-lo à porta da saleta. (VPB: p. 166)

There the black […] João Benigno, who lived in a shed in the backyard, ought to have finished cleaning up and been waiting for him by the small office’s door. (AIM: p. 122)

Neste exemplo, vemos que na edição em português, João Benigno,

empregado no escritório de Amleto, é um preto liberto. Na manifestação linear da

versão em inglês, por outro lado, não há pistas que levem o leitor à interpretação

de que Benigno é um ex-escravo. Pelo contrário. Ao descrever somente a cor do

personagem, atribuo ao autor-modelo da autotradução a decisão de manter

implícita a informação de que João Benigno é, na verdade, um escravo, já que, em

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1827 no Brasil, a escravidão dos negros era uma realidade mais freqüente do que a

liberdade. É somente a partir da metade do século XIX que a escravidão praticada

em nosso país passou a ser contestada pela Inglaterra, cujo Parlamento aprovou,

em 1845, a Lei Bill Aberdeen que proibia o tráfico negreiro. Entretanto, os

resultados da pressão inglesa só se fizeram sentir a partir de 1850, ano em que o

Brasil aprovou a Lei Eusébio de Queiroz que acabou com o tráfico (v. http://

www.ibge.gov.br/ibgeteen/datas/abolicao/decadencia.html). Em outras palavras, a

competência enciclopédica do leitor-modelo da autotradução somada ao sentido

literal do adjetivo black construído na interação com o texto não possibilitam a

construção do personagem como um “negro liberto”. A omissão dessa pista,

portanto, transforma o personagem e indica outros caminhos para a interpretação,

sugerindo outras possibilidades que o original não sugere.

(30)

Quase se deu a tragédia há tanto tempo temida, porque Amleto apanhou no cabide a bengala de jacarandá encastoada de bronze e marchou para atingir Patrício Macário em qualquer lugar do corpo, somente não lhe achatando a cabeça porque Clemente André se sentiu mal, levou a mão à testa, gemeu fracamente e desabou na alcatifa. (VPB: p. 232)

The tragedy feared for so long almost happened. Amleto picked from the rack his bronze-capped rosewood cane and started hitting Patrício Macário, but he stopped short of bashing his head because Clemente André raised his hand to his forehead, moaned limply, and collapsed on the carpet. (AIM: p. 243)

No segundo exemplo, dois acontecimentos distintos têm como fonte de

inferência a mesma encenação comum: uma surra no filho. No texto em

português, contudo, a surra não se materializa porque Amleto “marchou para

atingir Patrício Macário”, mas desiste diante da indisposição de Clemente André.

Já no texto em inglês, o mesmo Amleto started hitting Patrício Macário. A

escolha lexical do autor-modelo da autotradução faz o leitor-modelo atualizar a

surra de fato. Em outras palavras, o autor-modelo da autotradução vai além do

limite imposto pela escolha lexical do autor-modelo original e indica caminhos

bastante distintos para a interpretação.

(31)

Não notou que a trilha fazia muitas curvas e que já não sabia direito onde estava, quando chegou à beira de uma clareira ampla e, do outro lado, avistou um grupo numeroso de

He did not notice that the trail curved excessively and he was no longer sure of where he was when he came to the edge of a spacious clearing and saw on the other side a

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negros e mulatos, somente dois ou três brancos, cercados por fachos e fogueirinhas, reunidos em torno de alguém agachado. (VPB: p. 488)

large group of blacks and mulattoes […] surrounded by torches and little bonfires, gathering around someone who was crouched down. (AIM: p. 365)

No quarto exemplo, o autor-modelo do original promove o primeiro

“encontro” de Patrício Macário com uma cerimônia religiosa conduzida por

negros escravos, que se escondiam em clareiras no meio de matas para cultuar

suas divindades. Ao abordar o texto, partindo de uma perspectiva ideológica

pessoal que integra sua competência enciclopédica, o leitor-modelo do original

prefigura hipóteses acerca dos participantes de um culto africano. Ele sabe que a

participação de indivíduos de cor branca nessas cerimônias não era comum, mas

possível, especialmente porque a cena se passa no ano de 1871, quando a

libertação da escravidão se aproximava e a Lei Rio Branco (mais conhecida como

Lei do Ventre Livre) havia sido promulgada. Assim, havia, à época, um clima

favorável à integração entre negros e brancos, ainda que tímida a princípio.

Podemos dizer que o autor-modelo do original sinaliza a transformação gradual

vivida pela sociedade brasileira através da seleção dos participantes daquele culto.

Na versão em inglês o mesmo não acontece. Na exclusão dos “dois ou três

brancos” da cerimônia, ratifica-se a visão estereotipada do candomblé como uma

religião de negros e elimina-se uma alusão à transformação de uma sociedade

escravagista e preconceituosa em uma sociedade, pelo menos aparentemente, mais

tolerante.

Mais importante, contudo, será a questão: as transformações descritas nos

quatro exemplos são atribuíveis ao autor? Remeto-me ao artigo de Paulo Britto

intitulado “Tradução e criação” (1996) para discutir esta questão. No artigo, Britto

afirma que “traduzir e escrever são de fato duas atividades qualitativamente

diferentes” (p. 241 [Grifo do autor.]) e propõe uma definição processual de

tradução com base em uma análise comparativa entre a sua própria tradução do

poema “Sunday morning”, de Wallace Stevens, e sua escrita de “Pessoana” (p.

243-250). O tradutor e poeta propõe duas estratégias que caracterizam os

processos: a autonomização e a aproximação. A partir dos exemplos de Britto,

compreendo a autonomização como uma estratégia em que o tradutor ou o autor

se afasta de um original – ou de originais – quando traduz ou escreve um texto. O

afastamento, a meu ver, revela-se de diversas formas, entre elas a seleção de

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estratégias textuais distintas, de recursos estilísticos variados ou mesmo de itens

lexicais com sentidos literais distintos que indicam novos caminhos

interpretativos para o leitor. A aproximação, por outro lado, faz com que o

tradutor ou autor opte por técnicas que promovam o reconhecimento de um texto

anterior porque demonstram, de forma fundamental, a busca pela equivalência.

Assim, é esperado que a autonomização tenda a predominar quando um autor

escreve um texto, e que a aproximação predomine no trabalho do tradutor.

Quando a aproximação predomina na escrita, o resultado pode ser o plágio e,

quando a autonomização predomina na tradução, o resultado pode ser uma

adaptação, um novo original ou uma traição. De fato, a conclusão de Paulo Britto

em relação à criação e à tradução aponta para o predomínio da autonomização no

caso da criação, enquanto na tradução “a estrutura é mais ou menos equilibrada”

(p. 250-251). Ele afirma ainda que o texto-fonte exerce o “efeito de controle” (p.

251) e descreve que, ao perceber seu afastamento do original “Sunday morning”,

descartava o movimento para que a tradução não se tornasse um texto

excessivamente autônomo (ibidem). Na escrita de “Pessoana”, o contrário ocorre:

ao perceber que o texto se tornava excessivamente próximo de um original

(“Autopsicografia”, de autoria de Fernando Pessoa, no caso), Britto descarta o

movimento para procurar outras soluções que fizessem de “Pessoana”, poema de

sua autoria, um texto mais autônomo. Assim, ele conclui que o original não exerce

o “efeito de controle” sobre a criação da mesma maneira que exerce sobre a

tradução.

Concordo com Britto até certo ponto. Há que se destacar que nem sempre o

controle é exercido pelo original, e é essencial considerar que a ideologia, a

patronagem e a poética exercem papéis essenciais na tradução, vista como um

processo que se inicia no momento em que uma obra é selecionada para ser

vertida para uma outra língua. A título de ilustração, cito as tradutoras feministas

que foram “controladas” por sua competência ideológica, que as levava a

introduzir alterações em nome da fidelidade a sua causa (v. Dépêche, 2002).

Ainda que a palavra “controle” não seja utilizada por essas tradutoras, creio que

ela não é imprópria, pois a ideologia que a causa feminista representava

determinou, por assim dizer, procedimentos vistos como apropriados para aquelas

tradutoras. Há que se destacar ainda que o controle exercido pelo original sobre a

criação pode ser visto como uma espécie de controle às avessas. O escritor precisa

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se afastar de um original e manter-se “à distância” dele sob pena de ser acusado de

plágio se a aproximação for demasiada. Note-se, contudo, que o fato de que o

escritor tenta se manter distante de um original específico não garante o

afastamento de idéias anteriormente veiculadas por outros originais. Acredito que

não será possível garantir um texto que se afaste de todos os originais lidos e

ouvidos por um dado autor, na medida em que eles fazem parte da sua

competência enciclopédica, à qual ele, consciente ou inconscientemente, recorre

durante o processo de escrita original. Entretanto, é possível afirmar que um

escritor tenta, conscientemente, manter-se à distância de um original anterior e

produzir um texto à primeira vista autônomo. Mas, se no caso da escrita a

autonomização é, sem dúvida, o movimento esperado, no caso da autotradução, a

resposta não é tão simples e, principalmente, não é a única.

Como demonstrei em capítulo anterior (v. capítulo 3), pesquisas e artigos

sobre o trabalho de autotradutores indicam que há nas autotraduções movimentos

que demonstram a liberdade do autor – que, liberado do controle do original, pode

alterá-lo significativamente sem que seja acusado de traição, porque ele é visto

como a autoridade máxima sobre seus textos. Por outro lado, é inegável que a

liberdade não é total e que o original exerce controle sobre a autotradução, ou não

se reconheceriam nos textos autotraduzidos outros que lhes são anteriores.

Entretanto, o papel do original é distinto.

No caso de Nabokov, o contraste entre originais e autotraduções revela,

entre outras coisas, que o escritor adaptava seus textos autotraduzidos para um

novo leitor-modelo inserido em contextos diferentes. Além disso, a análise

comparativa entre autotraduções e originais demonstra também o controle que o

leitor-modelo impulsionador da autotradução exerce sobre ela. Já a comparação

entre algumas das obras autotraduzidas por Samuel Beckett e os vários textos que

as precedem revela que não há um original que controla a autotradução, mas

vários textos anteriores, vistos como rascunhos, que servem de fontes

controladoras do trabalho do autotradutor. Kundera, por sua vez, não recorre, na

verdade, a um original para fazer a revisão final de A brincadeira movido, talvez,

por sua total autoridade sobre o texto e apoiado pela visão comum de que o autor,

conhecedor de suas intenções originais, é livre para fazer o que quiser com o

texto. Ou, em outras palavras, o controle é exercido pelo autor. João Ubaldo

Ribeiro afirma, em relação ao seu trabalho de autotradutor, que foi “muito

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respeitoso com o original” (e-mail, 18/07/2003) e reafirma assim que o texto-fonte

tem papel determinante e controlador, por assim dizer, no processo autotradutório.

Como pude constatar, Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro exercem

um efeito de controle, como diz Britto, sobre o trabalho de tradução de João

Ubaldo Ribeiro. Observei, ao analisar a tradução dos CSIs, que o escritor

brasileiro se mantém próximo do original, demonstrando assim o controle

exercido por este. Entretanto, note-se que o autotradutor utiliza técnicas de

tradução que aproximam o texto do leitor estrangeiro, o que revela outro tipo de

controle: aquele exercido pelo leitor-modelo da autotradução, impulsionador do

processo autotradutório e que causa, por vezes, o afastamento voluntário do

contexto cultural que circunda e motiva o texto original. Não quero dizer com isso

que tal distância seja proibida ou pouco exercida. Pelo contrário. A comunicação

com um novo público-leitor demanda de qualquer tradutor esse tipo de alteração,

que deve, a meu ver, ser exercida com parcimônia, para que o texto não se

transforme em uma tradução tão fluente que o estrangeiro seja completamente

apagado dela.

Ao lidar com o “sergipês”, constatei que o autotradutor exibe movimentos

similares ao procurar a aproximação com o leitor estrangeiro. Entretanto, notei na

tradução do dialeto a tentativa de fazer o leitor perceber que está diante de um

texto traduzido, através da utilização da tradução literal, por exemplo, vista por

João Ubaldo como uma técnica que promove a manutenção de traços do

estrangeiro no texto autotraduzido (e-mail, 24/09/2003). Ao mesmo tempo em que

promove o reconhecimento do outro, a tradução literal é também uma técnica de

tradução usada com freqüência e é tida por Nabokov, por exemplo, como a única

possibilidade de realização da tradução propriamente dita. Assim, podemos dizer

que também a tradução literal aproxima o texto traduzido do leitor estrangeiro,

pois ele reconhece ali a atuação de um tradutor ou sua percepção acerca da

tradução. Concluindo, podemos dizer que João Ubaldo não exibe com freqüência

movimentos que caracterizariam um texto traduzido mais autônomo e se mantém

próximo do original também quando traduz o “sergipês”. Podemos dizer também

que a atuação do leitor-modelo da autotradução, impulsionador do processo

autotradutório, é mais uma vez fundamental.

Na verdade, é somente em An invincible memory que pude perceber o

distanciamento do original, que se dá de duas formas: através da omissão

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(exemplos 29 e 31) e da extrapolação do sentido literal (exemplo 30). Ao omitir

vocábulos, o autotradutor sugere novos caminhos para a interpretação que o leitor

faz da constituição da sociedade brasileira (exemplos 29 e 31). Ao substituir

outros que extrapolam o sentido literal construído através da cooperação com a

manifestação linear do texto original (exemplo 30), o autotradutor sugere também

interpretações que diferem radicalmente daquela sugerida pela escolha lexical

registrada no original. Atribuo essas modificações ao trabalho do autor, pois elas

não podem ser justificadas pela preocupação com o leitor-modelo da

autotradução, mas sim pela atuação como leitor-modelo do original. Entretanto,

também o tradutor literário profissional introduz, por vezes, modificações que

indicam esse afastamento. Lembremos que Paulo Britto afirma que a aproximação

e o afastamento coexistem, de forma mais ou menos equilibrada, no texto

traduzido. Então, o que distingue a autotradução tal como praticada por João

Ubaldo Ribeiro da tradução stricto sensu?

Com base em conclusões de estudos anteriores sobre a autotradução,

esperava encontrar em Sergeant Getúlio e An invincible memory modificações que

indicassem a intervenção radical do autotradutor, reinventando o texto-fonte. Ou,

em outras palavras, esperava que o movimento de afastamento fosse tão freqüente

que revelasse a tentativa do autor de reescrever o original, aperfeiçoando-o. Na

verdade, o afastamento existe se considerarmos que o autotradutor tenta tornar seu

próprio texto mais acessível para o leitor estrangeiro, substituindo referências

culturais tipicamente brasileiras por outras mais estrangeiras. Entretanto, esse tipo

de afastamento é aquele que o tradutor literário causa quando cria um novo leitor-

modelo, possibilitando a comunicação com o estrangeiro. Por outro lado, o

afastamento originário de interpretações que não são sugeridas pela cooperação

com a manifestação linear do texto original é raro. Assim, a autotradução tal como

praticada por João Ubaldo Ribeiro não se distingue da tradução stricto sensu. Ou

melhor, aquela pode se distinguir desta se considerarmos que a estrutura entre

aproximação e afastamento não é “mais ou menos equilibrada”, como afirma

Britto (1996) sobre a tradução, já que existe, a meu ver, um predomínio da

aproximação, entendida como o “respeito” à manifestação linear do texto e às

escolhas – estratégia textual, sentido literal dos itens lexicais – lá registradas.

Como o próprio autor afirma, se ele foi contratado para fazer uma tradução, era

isso que devia fazer (e-mail, 18/07/2003) e, como tradutor, ele devia ser fiel ao

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original (ibidem). Noto, portanto, que o controle é exercido pelo original, no caso

de João Ubaldo, autotradutor.

Ressalto, finalmente, que ele mesmo afirma que, justamente por ser o autor

do texto, não poderia fazer alterações significativas (e-mail, 18/07/2003). E

acrescenta que teria agido com mais liberdade, “em nome da fluência da tradução”

(ibidem), se o texto não fosse de sua autoria. Assim, João Ubaldo descarta sua real

autoridade sobre o texto e dá a este o poder para controlar o trabalho do autor. De

fato, pude observar durante a análise dos exemplos aqui citados que a

manifestação linear do texto original é respeitada no sentido de que raras palavras

foram completamente omitidas no texto traduzido. Podemos questionar a

equivalência entre termos e afirmar que yellow flour não é uma tradução

apropriada para “farofa de dendê”, mas não podemos deixar que reconhecer que o

sintagma nominal que aparece na versão em português provoca a substituição por

outro sintagma do mesmo tipo no texto em inglês. O caso se repete em inúmeras

ocasiões e o resultado é uma texto traduzido fiel, por assim dizer, à “letra”. Ou

ainda, podemos concluir que depois de escrito, o original assume uma existência

própria que deve ser respeitada até mesmo pelo seu “criador”.

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Considerações finais

O que sabemos é uma gota, o que ignoramos é um oceano.

Isaac Newton

Para esta minha reflexão sobre a autotradução, baseei-me em Umberto Eco

e, fundamentalmente, em seus conceitos de autor-modelo e leitor-modelo. Haveria

outros caminhos e abordagens possíveis, mas foi esta que me pareceu apropriada

para o estudo do caso do escritor João Ubaldo Ribeiro porque pude perceber,

depois de escrever meu primeiro trabalho sobre o tema (v. capítulo 1), que o texto

escrito, uma vez publicado, é tratado com extremo “respeito” pelo autor.

Procurei ver no autor empírico aquele que, ao traduzir o próprio texto,

exerce o papel de leitor-modelo do original e vê a necessidade de registrar na obra

um novo autor-modelo e um novo leitor-modelo, motivado pelo ato cooperativo

da leitura e também pelo público-leitor estrangeiro ao qual a autotradução se

destina. Ao encerrar esta discussão aqui desenvolvida, algumas questões se

sobressaem. Passo agora a apresentá-las, mas destaco que minhas conclusões

serão divididas em duas partes. Na primeira, apresentarei alguns comentários

sobre a autotradução em geral sem, no entanto, incluir observações minuciosas, já

que minha discussão acerca dos casos de autotradutores estrangeiros representou

apenas a tentativa de estabelecer uma espécie de diálogo entre esses escritores e o

brasileiro João Ubaldo Ribeiro. Em seguida, tecerei considerações finais acerca de

questões que se sobressaíram na discussão do caso de João Ubaldo Ribeiro,

escritor e tradutor de dois romances de sua autoria.

Sobre a autotradução de maneira geral, destaco que ela é cada vez mais

rara entre autores vistos como canônicos. O caso de Samuel Beckett, escritor e

tradutor da grande maioria de seus próprios romances e peças teatrais durante toda

sua vida profissional, foi singular na história da literatura mundial até

recentemente. Pude constatar, através de extensas pesquisas, que a escritora

canadense anglófona Nancy Huston, cujo caso é brevemente descrito no primeiro

capítulo desta tese, é a única escritora que parece caminhar para a adoção do

mesmo procedimento do escritor irlandês. Porém, é necessário ressaltar que a

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autotradução tal como praticada por Huston ainda carece de análise mais

detalhada, já que, até o momento, desconheço qualquer pesquisa mais profunda

sobre o trabalho de tradução de seus próprios romances. O caso de Huston

exemplifica também outra condição atual da autotradução: ela é, principalmente,

uma atividade exercida por indivíduos bilíngües que vivem em regiões ou países

bilíngües, em que a questão lingüística faz parte da agenda política. Assim, a

Catalunha, o País Basco, a Escócia e o Canadá, por exemplo, são locais mais

propícios, por assim dizer, ao aparecimento de casos de autores que traduzem seus

próprios textos.

Constato ainda que estudos sobre a autotradução demonstram claramente

que esta não é uma atividade que se dê de forma homogênea, por assim dizer.

Acredito, como já demonstrei anteriormente, que os casos de Nabokov, Beckett,

Kundera, escritores catalães e poetas escoceses apresentam muitas

particularidades que impedem generalizações absolutas sobre o tema. Vários são

os fatores que afetam de forma direta o trabalho do autotradutor, como, por

exemplo, o tempo que separa a escrita original da autotradução e o tipo de texto

que ele traduz, e que nos impedem de afirmar, por exemplo, que ao traduzir sua

própria obra, o que Beckett faz não é uma tradução stricto sensu. Como

demonstrei em minha análise sobre o caso de Samuel Beckett, enquanto alguns

pesquisadores ressaltam a busca por um original perfeito, outros começam a

sinalizar que o autotradutor irlandês fez trabalho semelhante ao de qualquer

tradutor quando traduziu suas peças En attendant Godot e Fin de partie para o

inglês. Os casos de escritores inseridos em regiões bilíngües também apresentam

diferenças entre si. Enquanto a escrita original de catalães sugere a afirmação do

catalão como língua nativa, os poetas escoceses fazem parte de um grupo

extremamente restrito. Na verdade, a grande maioria da população escocesa ainda

resiste à idéia do gaélico-escocês como língua oficial e não lê os textos literários

produzidos nesse idioma. Assim, enquanto na Catalunha a tradução é uma prática

vista como necessária para a comunicação com um público-leitor maior, na

Escócia, ela é uma prática tida como inimiga por aqueles que – como os poetas

escoceses – lutam pela implantação do gaélico-escocês como língua oficial de

fato.

Destaco ainda duas características distintas da autoridade atribuída ao

autotradutor. Como as teses de Tanqueiro e Jung apontam, a autoridade do

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autotradutor se origina do conhecimento que só ele pode ter de suas intenções

originais. Tais estudos, como já discuti, acabam por contribuir para a sacralização

da figura do autor e para a visão da tradução como uma atividade impossível, já

que as supostas intenções originais são inacessíveis para qualquer outro

profissional. Por outro lado, a autoridade do autotradutor pode advir também de

sua consagração em um polissistema literário estrangeiro. Os casos de escritores

como Nabokov, Beckett e Kundera exemplificam de forma clara esse tipo de

autoridade. No caso de Kundera, a consagração internacional lhe deu o controle

total sobre as edições de seus romances publicadas em diversos países, já que os

textos traduzidos passam pela revisão cuidadosa do autor antes de publicados.

Assim, vejo que os autotradutores consagrados conseguem se impor diante dos

interesses das editoras, especialmente em seu elemento econômico, exercida de

forma cada vez mais forte por holdings que têm o retorno financeiro como

objetivo principal. Contudo, outras pesquisas acerca da prática desses

autotradutores poderão revelar até que ponto suas versões estão sujeitas às

exigências dos editores e se assemelham às traduções produzidas por tradutores

profissionais. Na verdade, este é um aspecto pouco abordado por pesquisadores da

autotradução, que tendem a se concentrar na individualidade do autor. Por ora,

constato que o sucesso internacional, como no caso de Kundera, em especial, é

um fator de extrema importância para que o autotradutor tenha controle sobre a

tradução. Se o sucesso não acontece, o autotradutor, ainda que respeitado por seu

conhecimento da obra e da língua original, terá seu poder sobre a edição final

limitado. O caso de João Ubaldo Ribeiro é um exemplo de um processo de revisão

negociado em que o autor precisa “brigar” por certas escolhas.

Ainda em relação à autotradução em geral, vejo que o original assume

características distintas, mas não se pode negar que ele é um texto inacabado, de

aparência dividida e menos “sagrada”, por assim dizer. Em geral, ele é visto por

tradutores como um texto pronto, acabado e, como propriedade do autor, deve ser

respeitado. Para os autotradutores, porém, o “original” sofre transformações,

influenciadas pela vivência do próprio escritor (como no caso da autobiografia de

Nabokov), pelas condições de produção que limitam o texto e pelo novo leitor-

modelo (como no caso de Kundera). A autotradução é também uma etapa de

aperfeiçoamento causado pelas leituras que o escritor faz do texto original (como

no caso de Beckett). Note-se ainda que a escrita na língua materna é a condição

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que marca o original no caso dos escritores catalães e escoceses, diferentemente

do caso dos escritores consagrados. Habitantes de regiões em que a questão

lingüística é relevante, os escritores catalães e os poetas escoceses usam a escrita

original para marcar o catalão e o gaélico-escocês como línguas maternas,

enquanto a tradução é usada para marcar o castelhano e o inglês como línguas

estrangeiras.

Destaco, finalmente, que para os escritores inseridos em regiões bilíngües,

como a Catalunha e a Escócia, a autotradução não é tida como uma etapa no

processo de consagração de um escritor, como vimos anteriormente. Ela é, de

forma fundamental, uma reação ao domínio estrangeiro que se estende (ou se

estendeu por muito tempo) à língua de expressão original. Ressalto ainda que

quanto maior o domínio exercido pelo idioma estrangeiro – como no caso da

Escócia – mais difícil será o processo de afirmação do idioma que se quer

nacional – o gaélico-escocês, no caso. Ou talvez, a Escócia passe por um estágio

que poderá resultar na adoção do gaélico como língua oficial de fato, objetivo dos

poetas e autotradutores escoceses.

Depois de apresentados meus comentários em relação à autotradução de

forma geral, passo agora a apresentar as considerações finais que versam sobre as

questões que se sobressaíram em minha análise do caso de João Ubaldo Ribeiro.

O primeiro fato a ser ressaltado em relação ao caso que analisei é a

singularidade do trabalho do autor: ele é um dos raríssimos casos de escritores que

verteram seus próprios textos para uma língua estrangeira. Em sua grande maioria,

os autotradutores preferem traduzir para a língua materna, e a tarefa de tradução é

tão árdua que os escritores preferem passar a escrever diretamente na língua

estrangeira, como fizeram Nabokov, Beckett e Kundera.

Em segundo lugar, concluo que a autoridade de João Ubaldo Ribeiro, cujas

obras têm impacto reduzido junto ao público-leitor norte-americano, adveio do

conhecimento lingüístico necessário (que o escritor brasileiro possuía) para a

cooperação com o texto original. Tal conhecimento, destacado pelo agente

literário do autor, e confirmado por outros agentes e editores, é essencial. Assim,

diferentemente de Kundera, cujo caso descrevi brevemente nesta tese, a

autoridade parcial de João Ubaldo não foi resultado da consagração internacional.

Foi exatamente a competência lingüística que deu ao escritor brasileiro algum

“privilégio” na versão de Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro para o inglês.

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Entretanto, ele reconhece que esse conhecimento não foi suficiente durante o

processo (auto)tradutório. Note-se ainda que, diferentemente da intenção original,

tida como origem do privilégio do autotradutor por pesquisadoras da

autotradução, a competência lingüística pode ser adquirida por qualquer outro

tradutor profissional e, portanto, a tradução “bem feita” – executada por tradutores

profissionais – é uma atividade possível.

Observo também que a autotradução, vista como passaporte para a

verdadeira existência literária, não deu ao escritor brasileiro uma posição de

destaque internacionalmente ou nos Estados Unidos, em especial. Seus textos,

escolhidos para tradução por motivos que destaquei no quarto capítulo, não

atingiram sucesso de vendas e permanecem desconhecidos do público estrangeiro.

Na verdade, suas autotraduções acabam por contribuir para que o escritor seja

ainda mais respeitado dentro do sistema literário brasileiro. Assim, se a posição

ocupada por um escritor no cânone de origem é um fator que influencia a seleção

de sua obra para tradução, o fato de que uma obra é (auto)traduzida fortalece a

posição central ocupada por João Ubaldo no polissistema literário brasileiro.

Destaco ainda a participação fundamental de Thomas Colchie, agente

literário norte-americano, na carreira internacional do escritor brasileiro. Segundo

o próprio autor, Colchie é uma figura de central importância em sua carreira e,

como demonstrei no capítulo anterior, os romances de João Ubaldo foram

publicados em vários países da Europa depois que o agente assumiu o

gerenciamento da carreira do autor brasileiro. Tal fato não é surpreendente, já que

sabemos que Colchie agenciou vários autores latino-americanos e teve papel

fundamental na publicação de autores e romances latinos e brasileiros no sistema

norte-americano de literatura traduzida. Contudo, como apontei anteriormente, o

contexto editorial norte-americano sofreu alterações que dificultam ainda mais a

publicação de obras estrangeiras nos Estados Unidos. Resta-nos descobrir se a

atuação dos agentes continuará a exercer papel central daqui por diante. A título

de curiosidade, ressalto que o romance A casa dos budas ditosos, traduzido por

Clifford Landers há pelo menos três anos, ainda não foi publicado nos Estados

Unidos, ainda que tenha sido um bestseller no Brasil.

Em relação aos paratextos, ressalto que há uma harmonia parcial, por

assim dizer, entre a estratégia escolhida pelos editores norte-americanos para o

lançamento da obra e a estratégia de tradução selecionada por João Ubaldo, já que

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se encontram, de forma geral, direcionados para o público-leitor estrangeiro.

Contudo, enquanto os paratextos procuram a aproximação total do leitor norte-

americano, o texto traduzido é um exercício de equilíbrio entre o público-leitor

estrangeiro e a cultura brasileira. Sem abrir mão da aproximação com o leitor,

fundamental para que a comunicação seja atingida, João Ubaldo não apaga a

cultura original de seu texto. Noto assim que o autotradutor brasileiro é

diretamente afetado pelo leitor-modelo da autotradução, como qualquer tradutor

profissional que busca a comunicação com o público a que sua tradução se

destina, mas mantém no texto a “cor local”, com características que fazem dele

uma produção definitivamente estrangeira e que propiciam o diálogo intercultural.

Em relação ao texto original, a posição de João Ubaldo difere, a meu ver,

daquela de outros autotradutores. Se para Nabokov, Beckett e Kundera esse texto

pode ser transformado e é informado pelas autotraduções ou pelas traduções

executadas por tradutores profissionais, o texto original de João Ubaldo assume

ares de imutabilidade. Como pude constatar, João Ubaldo introduz uma única

correção na última edição de Viva o povo brasileiro. Para o autor brasileiro, o

original é permanente e, como tal, não deve ser transformado, ainda que a

autotradução tenha lhe dado a oportunidade de revisar seu texto e perceber

incoerências que podem dificultar o ato cooperativo da leitura, porque oferecem

pistas que orientarão o leitor na direção de interpretações fantasiosas. A

introdução das correções na edição em inglês deve ser creditada, a meu ver, à

preocupação de João Ubaldo com a correção, que ele vê como essencial e que é

uma demanda real dos editores norte-americanos.

Concluo ainda que o autor-modelo da autotradução é diferente do autor-

modelo do original porque é impulsionado por um leitor-modelo distinto e que,

portanto, demanda pistas distintas. Entretanto, a diferença entre eles não pode ser

atribuída, a meu ver, ao trabalho do autor que, na tentativa de aperfeiçoar seu

texto, introduz modificações que demonstram a continuidade do processo de

escrita criativa. No caso de João Ubaldo, atribuo as alterações introduzidas na

edição em inglês ao trabalho do tradutor que busca aproximar-se do leitor-modelo

estrangeiro sem apagar as marcas da cultura brasileira. Um número reduzido de

mudanças pode ser atribuído ao desejo do autor de reescrever seu original.

Ressalto ainda que as mudanças atribuídas ao trabalho do autor que reconstrói o

original são feitas também por tradutores. Entretanto, tais mudanças são vistas

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como traições porque sugerem o distanciamento do original e extrapolam os

limites do texto, aqui representados por suas condições de produção e pelo sentido

literal construído através da cooperação com a superfície textual. Na verdade,

João Ubaldo também condena o distanciamento do original, que é normalmente

destacado nos estudos sobre as autotraduções. Para ele, a fidelidade à

manifestação linear do texto é uma obrigação sua quando executa a tradução,

ainda que sua fidelidade possa resultar em um texto menos fluente, por vezes.

Finalmente, volto à questão da lapidação que destaquei como possível

característica do processo de autotradução. Concluo que João Ubaldo também vê

a autotradução como oportunidade de aperfeiçoamento de um texto. Entretanto,

não posso dizer que ela é uma oportunidade para aperfeiçoar um original, pois ele

não sofre uma revisão a partir das questões levantadas pelo processo de tradução

para o inglês pelo próprio autor. Assim, o texto original, para João Ubaldo, é

aquele que foi lançado em primeiro lugar e que deve se manter inalterado.

Espero, assim, ter contribuído para a construção do conhecimento acerca da

autotradução e do trabalho de João Ubaldo Ribeiro, autotradutor. Espero, ao

reunir casos distintos, ter contribuído para a compreensão da autotradução como

uma atividade cheia de peculiaridades que demanda estudos de casos particulares

para que um arcabouço teórico possa estar em constante processo de elaboração.

Afinal, a discussão e conclusões aqui apresentadas “são parte de um grande

conhecimento, conhecimento este que ainda não está completo, mesmo porque

nenhum conhecimento fica completo nunca...

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WALTHER, J., ANDERSON, J. & PARK, D. Interpersonal effects in computer- mediated interaction: A meta-analysis of social and antisocial communication. In: Communication research 21, 1994, pp. 460-487. WHYTE, C. Translation as predicament. In: Translation & literature, Edimburgo, v. 9, part 2, 2000, p. 179, 187. __________Against self-translation. In: Translation & literature, Edimburgo, v. 11, 2002, p. 64-70. WIDDOWSON, H. G. New starts and different kinds of failure. In: WIDDOWSON, H. G., Explorations in applied linguistics. Oxford: Oxford University Press, 1984, p. 54-67. WILLIAMS, R. Politics and letters. Londres: Verso, 1976. WOODS, M. Original and translation in Milan Kundera’s Czech fiction. In: Translation & literature, Edimburgo, v. 10, 2001, pp. 200-221. __________ Translating Milan Kundera. Clevendon: Multilingual Matters, 2006. WOOLS, D. From purity to pragmatism: user-driven development of a multilingual parallel concordancer. In: BOTLEY, S. P., McENERY, A. M. & WILSON, A. (orgs.) Multilingual corpora in teaching and research. Amsterdã: Rodopi, p. 116-133.

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7

Anexos

7.1

Anexo 1

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7.2

Anexo 2

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269

7.3

Anexo 3

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270

7.4

Anexo 4

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