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TOMADA DE TESTEMUNHO (transcrição) Maria Aparecida Costa 31/7/2013 Completo DEPOENTE: MARIA APARECIDA COSTA Categoria do depoente: Vítima civil Tipo de arquivo: Áudio Duração: 02:01:45 Ocasião: Testemunho colhido por integrantes da CNV Data: 31/7/2013 Local: São Paulo, SP. Responsáveis pela tomada de depoimento: Luci Buff e Raíssa Wihby. NUP: 00092.002323/2013-89 Nomes citados: Che Guevara; desembargador Otávio Gonçalves; Fleury; Linda Taiá; Valentin; Celso Antunes Horta; Vilma Marcon; Márcia Mafri; Aninha Buste; Terezinha Zerbini; Maria Barreto Leite; Cidinha Santos; Rose Nogueira; Rita Sipahi; Celeste Martins Locais citados: DOPS; Operação Bandeirantes (OBAN); DOI-CODI; Presídio Tiradentes; Torre das Donzelas Organizações citadas: ALN; Grupo Tático Armado da ALN (GTA); CCC; MDB; PSDB; PT; Ordem de Advogados (OAB); JUC

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TOMADA DE TESTEMUNHO

(transcrição)

Maria Aparecida Costa 31/7/2013 – Completo

DEPOENTE: MARIA APARECIDA COSTA

Categoria do depoente: Vítima civil

Tipo de arquivo: Áudio

Duração: 02:01:45

Ocasião: Testemunho colhido por integrantes da CNV

Data: 31/7/2013

Local: São Paulo, SP.

Responsáveis pela

tomada de depoimento: Luci Buff e Raíssa Wihby.

NUP: 00092.002323/2013-89

Nomes citados:

Che Guevara; desembargador Otávio Gonçalves; Fleury; Linda Taiá;

Valentin; Celso Antunes Horta; Vilma Marcon; Márcia Mafri; Aninha Buste;

Terezinha Zerbini; Maria Barreto Leite; Cidinha Santos; Rose Nogueira; Rita

Sipahi; Celeste Martins

Locais citados: DOPS; Operação Bandeirantes (OBAN); DOI-CODI; Presídio Tiradentes;

Torre das Donzelas

Organizações citadas: ALN; Grupo Tático Armado da ALN (GTA); CCC; MDB; PSDB; PT; Ordem

de Advogados (OAB); JUC

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Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Vai para o Arquivo Nacional. 1

Maria Aparecida Costa – Está certo. 2

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Se você quiser começar, prestar o 3

seu relato. 4

Maria Aparecida Costa – Bom, eu vou fazer assim, um breve apanhado de como eu 5

cheguei à militância, que tipo de militância que eu acho que talvez, a partir daí, vocês 6

coloquem um...enfim. Eu vivi todo o período de 64, eu era universitária e num primeiro 7

momento eu tinha apenas uma visão social de igualdade, de justiça, toda uma formação 8

religiosa que pendente muito a isso, não é? Teologia da libertação, teologia da 9

libertação, enfim, e tinha uma militância estudantil de centro acadêmico na Faculdade 10

de Direito de São Francisco. Mas, a partir do golpe de 64 eu estava, acho que no 11

segundo ano de faculdade, segundo para terceiro, começa a haver, então, todo 12

um...muda completamente a situação política e, claro, começa a mudar também o seu 13

enfoque com relação ao que estava acontecendo, enfim, houve uma quebra institucional 14

e eu tenho perguntado, esse tempo todo, o que teria acontecido se eu não tivesse havido 15

essa quebra institucional, a ditadura, talvez eu tivesse seguido o caminho normal de uma 16

estudante, teria feito minha militância acadêmica, teria me formado, talvez militado em 17

algum partido político, mas, enfim, teria sido um outro, um outro rumo. Mas esse rumo 18

muda na medida em que, com a ditadura, um fechamento político cada vez maior, as 19

formas de atuação política vão ou diminuindo ou elas se tornam fechadas para nós. 20

Então comecei, eu, pelo menos, comecei a buscar com outras pessoas, outros jovens, 21

outros cidadãos, uma forma de você combater aquilo que tinha se colocado, que na 22

ditadura, que desde o primeiro se mostrou violento, aliás, ela foi violenta desde o 23

primeiro momento, à medida que ela derruba um governo legalmente eleito pela força 24

das armas, mais ainda, ela se inaugura com vários episódios já de punição, de tortura, de 25

assassinatos. Bom, então é dentro deste quadro que eu acho que vai se agravando o 26

fechamento cada vez maior, cada vez nos sentimos mais sem meios, sem caminhos e 27

para mim, pelo menos, surge...e, para outros tantos, como politicamente eu comecei a 28

fazer esse enfrentamento com o que está...com este país, com esta ditadura que vai se 29

consolidando cada vez mais e surge, então, a questão da...como militar eu sabia que eu 30

queria, de alguma forma, eu me sentia...e acho que a minha geração se sentiu levada, 31

uma parte dela, a tomar uma posição diante do que estava aí. Qual seria a sua posição? 32

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Combater a ditadura, buscar a volta de um Estado onde os direitos fossem respeitados, 33

onde se voltasse ao esquema de liberdade, sem censura, sem prisões. E aí cada um 34

buscou seu rumo, eu sou da geração também que me forma, eu acho que soube, da 35

Revolução Cubana, que tem uma grande influência. Che Guevara, que são, na América 36

Latina, aqueles que tiveram uma influência, acho que muito grande, como heróis, como 37

apontando um caminho e dentro disso eu acabo chegando, para minha convicção, que 38

esta ditadura não abriria mão de seu poder, daquilo que ela tinha empalmado e que a 39

maneira de ser combatida seria, pelo menos eu entendia, através da luta armada, então 40

eu acabo me filiando à ALN e atuo perante temporada, uma grande temporada aqui em 41

São Paulo. Mas quando há o sequestro do embaixador, logo em seguida, em setembro, 42

há muitas quedas da ALN aqui em São Paulo e a partir daí meu nome cai, cai não é? 43

Chegam até o apartamento que estava alugado, tem meu nome legal, eu trabalhava, eu 44

tinha uma...eu era militante e, ao mesmo tempo, eu advogava, trabalhava no escritório, 45

mas aí cai, cai com tudo o meu nome e, então a organização decide que eu devo sair do 46

país, mas para fazer isso me mandam para o Rio, de onde eu sairia. Mas aí quando eu 47

estou no Rio, Marighella é morto aqui em São Paulo, em novembro, enfim, as 48

possibilidades de sair se tornam inviáveis e eu sou presa em dezembro de 68, no Rio de 49

Janeiro, até por um... 50

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Não é 69? 51

Maria Aparecida Costa – Desculpe, 69, exatamente, em 69. 52

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Porque você falou do 53

embaixador. 54

Maria Aparecida Costa – Não, exatamente, em 68, AI-5, toda aquela situação, mas 55

não, é 69, aí eu fui presa em 69, no Rio de Janeiro. Então, sou presa, levada ao DOPS de 56

lá e do DOPS, de lá eu sou trazida para a Operação Bandeirantes aqui em São Paulo. 57

Bom, esta é a primeira etapa das coisas. Vamos encarar um...vamos encarar, bom e o 58

que acontece dentro disso? No DOPS do Rio há todo um nível de pressão, de estar 59

presa, enfim, quem prendeu era, ele era ligado ao DOPS, mas também ao Exército, o 60

Otávio, o desembargador Otávio Gonçalves, que era até, que era meu colega de 61

faculdade. 62

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Em São Paulo? 63

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Maria Aparecida Costa – Em São Paulo. Ele, na ocasião ele, nós éramos inimigos 64

cordiais, vamos assim dizer, eu sabia que ele era do CCC, etc. e que sabia que eu era de 65

esquerda, mas as coisas ficavam ainda a um nível de...discutíamos muito, brigávamos 66

muito, mas nunca, na minha cabeça, nunca passou que ele tivesse um envolvimento tão 67

profundo, tão entranhado com a repressão. 68

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Deixa eu só te perguntar uma 69

coisa, esse Otávio, ele foi citado em outro depoimento, mas a depoente dizia que ele era, 70

ele fazia Geografia, ele circulava pela FFLCH como um estudante de Geografia 71

também. 72

Maria Aparecida Costa – O mesmo Otávio? 73

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – O mesmo Otávio, exatamente, ele 74

circulava nos meios universitários, então disso... 75

Maria Aparecida Costa – Eu não tinha conhecimento disso, ele estava acho que uma 76

turma depois da minha, alguma coisa assim. 77

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Mesmo do CCC? 78

Maria Aparecida Costa – Ele mesmo e já tinha ouvido. 79

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Trabalhava na OBAN? 80

Maria Aparecida Costa – Sim, porque então foi, ele e nós, na Faculdade de Direito ele 81

era conhecido como alguém pertencente ao CCC, e o CCC na ocasião fazia, ele chegou 82

a agredir colegas, enfim, ele tinha uma atuação pesada e claramente de direita, mas 83

como na ocasião circulava tanta coisa, se sabia que era. Mas, por exemplo, isto que ele 84

circulava, por exemplo, nunca tive, não sabia disso e aí, enfim, depois que eu saí da 85

faculdade, nunca mais nos reencontramos, mas eu sempre guardei a imagem que dele 86

como alguém do CCC, que era de direita e ponto, não é? Eu só vim perceber que não 87

era bem isso, que ele estava realmente ligado a todos os mecanismos, à estrutura mais 88

profunda de repressão quando da minha prisão, que, assim, foi realmente por acaso, eu 89

estava na...circulando na avenida Copacabana, enfim, eu cumpri com o ponto, então, 90

eles estavam de férias e ele estava com um colega dele, um amigo, assim, e ele me vê 91

passar e então ele chega por trás e me pega e me segura, assim, pelos braços, ele é um 92

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homem alto, forte, não é? E ele: “Você está presa, Cidinha, você está presa.” Aí, sabe? 93

Aquela primeira reação, eu até sempre lembro disso, que foi até de achar que ele estava 94

brincando, que era uma brincadeira de mau gosto, porque também não tinha noção que 95

ele soubesse que eu era de esquerda, mas, aí percebi, ele: “Não, é sim, Cidinha.” Eu 96

percebi que, de fato, ele estava falando sério, aí, recuei, falei: “Quê isso, imagina, não 97

sou eu, sou outra pessoa, você está me confundindo.” Aí ele disse: “Não, o seu sorriso, 98

as covinhas do seu rosto são inconfundíveis, é você sim, o Exército está atrás de você.” 99

Aí ele me deixou com um outro amigo dele, que é uma pessoa que era um faixa preta 100

qualquer coisa e ele foi entrar em contato, enfim, com o Exército, chamou e aí se forma 101

e eu percebo nisso tudo, que ele tem, na verdade, ele tem uma ligação direto com o 102

Exército, também há uma rede de coisas e ele, então, dá notícia. 103

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Ele seria da inteligência. A gente 104

não sabe, de fato, mas ele era. 105

Maria Aparecida Costa – Se ele era, talvez eu não soube exatamente qual era o...qual 106

era a função, exatamente, dele, mas ele estava ligado, ele chama o Exército e, também, 107

depois da minha prisão no Rio, eu não vejo mais, ele cumpriu a missão. 108

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Você acha mesmo que foi o 109

acaso? 110

Maria Aparecida Costa – Eu acredito que foi o acaso, sim, eu acredito que, de fato, foi 111

uma circunstância de ele, realmente, me reconhecer na rua, não creio que houvesse, que 112

tenha havido qualquer tipo de planejamento ou que tenha havido uma campana anterior. 113

Eu, porque se fosse assim, eu acho que as consequências teriam sido outras, talvez 114

tivesse, sabe? Teria seguido, talvez já descoberto onde era o meu apartamento, eu creio 115

que se fosse campana, o desdobramento teria sido outro, eu acredito que, de fato, foi um 116

infeliz acaso, foi uma coincidência, pelo menos pela forma como a coisa se deu e pelo 117

que...porque, de fato, eles não tinham nada, não sabiam onde eu morava, não tinham 118

qualquer, não atingiam, por exemplo, outras pessoas que...se tivesse sido um processo 119

de campana mesmo, de montado, tal, seria de...creio que seria de outra forma, porque, 120

inclusive, a pessoa que caiu comigo era um jovenzinho que estava entrando, estava 121

chegando, nem existia, nem era um menino procurado, nem nada. Bom, isso leva a crer 122

que foi, de fato, um acaso, pelo fato de sermos...ainda conheciam muito, porque, de 123

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fato, me reconheceu, tal. Bom, e aí eu sou levada para o DOPS, há todo um aparato 124

nessa prisão, me chama e tal, é público, é uma situação, enfim, difícil, até chega, na 125

hora que eu estou sendo presa, chega um jornalista, que se apresenta como jornalista e 126

eu sou levada por um [trecho incompreensível], primeiro eu não consigo identificar, 127

mas, enfim, são muitas pessoas, imagina uma prisão, e chama a polícia. E uma coisa 128

assim, e aí vem pessoa que se apresenta assim, como jornalista, e aí ele me fala assim: 129

“Não, mas você não disse o seu nome, me fala o seu nome, quem é você? Porque eu 130

publico, aproveita, é uma chance.” Aí eu tenho o meu nome legal, eu falei: “Não sei o 131

que está acontecendo.” Enfim. Mas uma coisa muito, ele tinha umas desde...claro, 132

queria saber porque ali e eles diziam: “Não, é um terrorista.” Eles nos chamaram de 133

terroristas: “Terrorista e tal.” E junta gente e tal, uma coisa toda, mas, enfim, aí eu vou 134

para o DOPS do Rio de Janeiro e, aí, menina, me levam na presença do delegado do 135

DOPS que eu não sei o nome, que eu não sei quem é, eu acho até que um dia, de 136

repente, eu acho até que eu gostaria de identificar mais essas questões. Mas eu vou para 137

lá, conto uma história, uma história montada na minha cabeça e...mas, enfim, por algum 138

tempo ela surte efeito, eu, completamente, que eu conheci, assim, que eu fosse a pessoa, 139

enfim, que o Exército estava à procura, que o Otavinho dizia que eu era e ele dizia: 140

“Não, mas ela é.” Eu: “Não, eu não sou.” Então, ficamos nesse jogo de empurra: “É, 141

não é, é, não é.” Enfim, vão à casa do rapaz que foi preso comigo, descobrem uma série 142

de coisas, mas, por enquanto, a coisa continua num nível assim de, eu acho que o 143

[trecho incompreensível] não tinha, não sei exatamente o que estava, se era ou se não 144

era e...mas aí voltam com coisas da casa do rapaz e, enfim, pressionam para saber onde 145

eu morava, claro, mas aí eu dei o nome do hotel que eu já tinha mais ou menos, já 146

estava mais ou menos, claro: “Não, se eu for presa vou dizer que eu estava em tal 147

lugar.” Isso você vai ganhando mais um tempo, etc. Mas aí chega o momento que eles 148

voltam loucos porque não acham nada, depois eu dei um outro endereço qualquer, 149

também eles voltaram muito afim de, com muita sede, com muito ódio disso tudo. 150

Agora, e eles queriam me torturar, levar para baixo, quer dizer, até aí a coisa tinha ido 151

na base do...das ameaças, do empurrão, de uma, vamos dizer assim, da violência lá em 152

cima, na própria sala do delegado, mas, aí o delegado não, disse que não, que eu não ia, 153

disse que eu ia esperar ser trazida para São Paulo. E aí me levaram para uma cela, meio 154

que aos trancos e barrancos, mas a coisa ficou, a coisa ficou por aí, no Rio de Janeiro. E 155

aí eu venho, no dia seguinte eu venho para a Operação Bandeirantes e na Operação 156

Bandeirantes, aí as coisas mudam, assim, de figura, do ponto de vista de tratamento, de 157

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acolhida, porque não que lá no Rio tenha sido suave, não foi isso, mas, vamos dizer 158

assim, no pau de arara não houve, vamos dizer assim, uma violência, vamos dizer 159

assim, mais pesada, chega um ponto que você começa, que isso é loucura, mas, a gente 160

começa a graduar o nível de violência, que é uma coisa muito...quando você pensa esses 161

[trecho incompreensível], mas que loucura isso, mas é meio assim mesmo, diante do 162

quadro do que as pessoas passaram, do que aconteceu, tudo que foi exercitado, você 163

acaba graduando, você diz, hoje: “Nossa, mas, a violência que eu passei no DOPS.” Aí 164

eu digo assim: “Não, é que eu não, a violência da OBAN foi muito mais pesada, muito 165

mais pesada, e depois, enfim.” Mas, fica num DOI-CODI, o DOI-CODI, você já é 166

recebido assim, com choque elétrico, com tudo que você tem direito, quer dizer, pelo 167

fato, inclusive, de ser mulher, a questão de ser mulher, aí vocês estão falando da questão 168

de gêneros, o simples fato, eu acho que você, você está no meio de homens, só homens, 169

não? Só homens que têm sobre você um olhar, como diria? É um olhar que te...o fato de 170

você ser mulher também, você percebe que é um, talvez uma raiva muito maior, eu não 171

sei se pela questão de achar que uma mulher estar fazendo isso, que uma moça está 172

fazendo isso e é uma forma também, muito de querer te desqualificar de todas as 173

maneiras. Então, inclusive, o mínimo que você ouve é que você é uma vaca, é a boa-174

vinda, é a maneira como você é chamada e isto foi num crescendo e eu acho que você se 175

sente exposto, você é exposto, você, enfim, se encontra diante deles de uma dupla 176

maneira, você está inteiramente nas mãos enquanto ser humano e na tua condição 177

feminina, você está nu, você está à mercê disso tudo. Então, bom, que se...aí eu acho 178

que o DOI-CODI são, é uma cortina, é o que acontece com aqueles que são levados para 179

lá, pau de arara, cadeira do dragão, cadeira do dragão, que era um experimento 180

diabólico também, enfim e, todas essas questões. Eu passo um mês, mais ou menos, 181

antes de ser levada para o DOPS, agora, dentro dessas coisas eu tentei assim, aliás, faz 182

tempo que eu acho que eu tento reconstituir mais coisas, quem eu vi? O que aconteceu? 183

E eu percebo o seguinte: que é um, que é um vazio, é um branco, eu não consigo, eu não 184

consigo recompor esse tempo, eu sei assim, eu fiquei três dias sem dormir, isso eu tenho 185

muito claro, porque eu sentia um frio imenso e eu já não sabia, eu fiquei três dias numa 186

situação de tensão, enfim, vi tudo que acontece, é uma coisa assim, que se apaga e, 187

lembro, fiquei, você ficava naquelas celinhas fechadas, luz direta e etc. Eu estive com 188

uma menina, eu não me lembro o nome dela, não era de São Paulo, encontrei um outro 189

companheiro, mas não os vi. Encontrei Flora, que estava ali, nos encontramos sendo 190

arrastadas pelos corredores e etc. e eu não consigo, não consigo recompor muito as 191

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pessoas que estavam lá, eram as conhecidas, eram as três equipes do...as três equipes 192

eram o Homero, o Albernaz, que era um e tinha um outro que eu não consigo nem 193

lembrar o nome de guerra dele, que eles se revezavam dia e noite, enfim, funcionava 24 194

horas, era funcionamento ininterrupto e direto e tem isso, essa questão. Agora, nessa 195

coisa do próprio funcionamento do DOI-CODI, que uma coisa, assim, que me marcou, 196

que eu, assim, eu me lembro que eu passei um natal, eu só fui depois disso para o 197

DOPS, mas era questão de que existia comida que era fornecida por alguém de 198

forma...por empresa de fora, que era assim, elas vinham naquelas embalagens, era até 199

uma coisa muito avançada, eu me lembro que eu, acho que eu nunca nem tinha visto, 200

vinha, acho que nas embalagens, embalagens industriais assim, eu acho, era alumínio, 201

eu não me lembro. Mas, que era fornecida tanto assim que acho que, no dia de natal, um 202

dos carcereiros de cá passou dizendo o seguinte: “Hoje eles estão mandando uma 203

comida muito melhor para que vocês comemorem o natal, tem até um pedacinho de 204

peru aí dentro.” Me lembro que era e veio, de fato, uma comida diferenciada. Agora, 205

havia esse tipo de coisa, como se sabe que sempre houve, sempre houve ligações, houve 206

uma ligação entre empresários e a repressão, no caso do DOI-CODI principalmente, eu 207

não consigo lembrar de onde, quem era, eu acredito até, que eu acho, que se comentava, 208

a gente falava na época, se tinha suposição, mas não sei, mas existia esse tipo de coisa, 209

de fornecimento de comidinha para os presos, de onde vinha? Não era deles, não era do 210

Exército, evidentemente que não, não sei se alguém que passou por lá mais ou menos 211

nessa época, os companheiros, tal, conseguem, com mais detalhes relembrar isso, mas, 212

enfim, é um fato. Bom e depois, assim, toda... 213

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Você ficou sem contato com a 214

sua família durante todo esse período? 215

Maria Aparecida Costa – Fiquei, eu não tinha noção se eles sabiam ou se eles não 216

sabiam o que tinha acontecido. 217

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Você não chegou a dar o seu 218

nome para o jornalista? 219

Maria Aparecida Costa – Não dei, não dei, enfim. Eu achei tudo muito estranho e não 220

iria assumir naquele momento quem eu era, então eu vim do Rio, assim, porque eu tinha 221

acabado, o dia que eu fui presa era o dia do aniversário da minha mãe e tal, eu tinha até 222

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acabado de telefonar para ela, aquelas ligações de, ainda de cabines, tal, para dizer que 223

estou viva. 224

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Seus pais sabiam da sua 225

militância? 226

Maria Aparecida Costa – Bom, eles não sabiam, exatamente, o tipo de militância que 227

eu...no que eu estava, vamos dizer assim, o que eu tinha optado, o meu envolvimento, 228

mas eles sabiam que eu estava, que eu estava em alguma coisa meio séria, isso até uma, 229

até o dia de ser presa, que sabiam que eu, algo eu estava fazendo, porque já tinha saído 230

de casa e a gente se via de vez em quando. Mas, depois das quedas aqui de São Paulo, 231

eu cheguei a encontrá-las, porque eu pretendia mesmo sair e eu achava, eu deixei uma 232

carta, tentando outro rumo até para a segurança deles etc., porque eu fico, qualquer 233

coisa eles podiam dar aquela carta, mas, eles não sabiam exatamente o que tinha 234

acontecido, qual era, mas sabia que era uma situação mais difícil. Tanto que aí 235

chegamos a nos vermos duas vezes, aí nos encontrávamos no cemitério, meu pai me 236

levava um dinheiro, alguma coisa e, enfim, mas ele chegou a ser levado à Operação 237

Bandeirantes nesse meio tempo, porque quando houve as quedas eu, meu apartamento 238

caiu, eu até fui dormir na minha própria casa e depois eu não voltei, mas eles nem 239

estavam fazendo campana lá, porque eu acho que eu não pensava que isso pudesse 240

acontecer. Mas eu não tinha para onde ir, foi uma situação, nós nos vimos numa 241

situação muito difícil com as quedas de setembro, mas aí eles voltaram algumas vezes lá 242

e houve um momento que eles levaram meu pai para o DOI-CODI até para, em parte, 243

para dizer: “Entregue sua filha, que ela será bem tratada, o senhor deve estar em contato 244

com ela.” Ele dizia: “Não, nunca vi minha filha.” “Não, o senhor entregue.” E aí a coisa, 245

com ele, depois ele me contando que começou numa assim: “Vamos fazer um acerto, 246

vamos tratá-la bem.” Aí eles falaram: “Olha, sua filha está envolvida nisto, aquilo.” 247

Entendeu? “E, se nós encontrarmos, assim, nós vamos matá-la.” Aí disse que eles 248

brincavam, disse que eles interrogavam, brincavam com uma arma na frente dele, 249

jogavam para cima, deixavam cair, mas, o meu pai era um italiano firme em algumas 250

coisas, aí ele falou: “Olha, então tem o seguinte, também, se vocês matarem, eu enterro 251

envolvida na bandeira brasileira.” E assim terminou a história e ele ficou lá uma tarde 252

retido e não e voltou para casa, tal. Mas, enfim, eles ficaram sabendo, eu só vim a vê-los 253

no DOPS, no DOPS, depois de estar lá, acho que uma semana, uma semana e tanto, aí 254

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eles conseguiram me ver, mas durante todo o período da Operação Bandeirantes não. E, 255

enfim, aí no DOPS foi outra etapa, aí foi a etapa do Fleury, inclusive depois que eu fui 256

para a Operação Bandeirantes, que eu fui para o Tiradentes. Aliás, eu voltei para o 257

DOPS, sei lá, eu não me lembro se foi em 70 mesmo, mas eu acho que foi uns quatro, 258

cinco ou seis meses depois, eu voltei para lá e aí houve outra sessão de tortura com o 259

próprio Fleury e a equipe dele, do qual a gente identifica Fleury, que eles usavam nomes 260

que, enfim, eles também usavam seus nomes de guerra, não sei quem são, mas, o 261

Fleury, sim, eles eram comandados pelo Fleury e, enfim, em linhas gerais, eu fiquei três 262

anos meio presa e acabei saindo até por uma medida judicial, depois foi julgamento e 263

fui condenada a menos tempo do que eu já tinha passado. E, em linhas gerais, essa é a 264

trajetória, eu não sei o que vocês gostariam de contar, de, assim, algo mais que eu 265

possa... 266

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Você, no presídio Tiradentes, recebia 267

visita? 268

Maria Aparecida Costa – Sim, recebia visitas, recebia visitas da minha família, depois 269

tiveram uma atitude extrema e meu pai, religiosamente, todas as visitas, claro que 270

passavam, todos eles, por uma revista pesada, mas tinha, eu tinha visita só deles. 271

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – E você estava com outras mulheres? 272

Maria Aparecida Costa – Sim, nós ficamos, nós estivemos na Torre das Donzelas, 273

chamava Torre das Donzelas, houve um momento que nós ficamos até com um, o 274

máximo que nós tivemos lá foram 50, mas era assim, muito rotativo. E tínhamos um 275

coletivo das presas, conseguimos nos estruturar e, para aquilo, depois que você passava 276

por isso tudo, o Tiradentes era aonde você respirava, era onde você estava legalizado, 277

era onde você tinha um maior acesso a advogado e você estava entre companheiros. 278

Então, eu recebi visitas, recebi visitas deles e, enfim, todas as famílias se esforçavam 279

para levar o melhor possível e havia toda uma estrutura nossa lá, um coletivo solidário, 280

muito solidário, eu acho que o que você pode falar era assim: muita solidariedade, 281

havia, sim, diferenças, havia momentos que divergiam sobre, enfim, nós já estávamos 282

presos, mas, enquanto presos, havia uma visão de sermos, continuarmos resistentes, não 283

à ditadura, o cerco que existia sobre nós, então, muitas vezes havia, bom, greve de 284

fome. Isso é assim, vamos protestar sim, mas isso era completamente ultrapassado pela 285

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situação comum que se vivia, nós estávamos, nós éramos sobreviventes e resistimos de 286

alguma forma e nos vimos como pessoas, nós éramos presos políticos e você tinha uma 287

forma a manter uma determinada postura, você não tinha acabado por ter passado por 288

isso tudo, porque estava presa. Eu acho que todos nós vimos como uma continuidade da 289

luta ali dentro, em um outro momento, de formas muito mais restritas, não é? Enfim, 290

confinados, mas, existia essa, então, estávamos e o básico era isso, era a solidariedade, a 291

acolhida dos que chegavam, muitas mulheres com filhos, as crianças que iam visitar, 292

tudo isso estava muito presente e nos ajudávamos mutuamente, eu acho que é uma coisa 293

que, ainda hoje, quando você reencontra uma companheira, independente do que esteja 294

fazendo hoje, há esse laço daquele momento comum que você viveu e que era um 295

momento comum que você viveu. Então, são laços muito fortes, são laços para a vida, 296

eu acho, independente das afinidades, claro, laços maiores, outros menores. 297

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – E você conta que você, num 298

determinado momento, foi, teve que voltar ao DOPS, saindo do próprio presídio, se é 299

correto isso, e foi para apuração, novas apurações? Novas investigações? 300

Maria Aparecida Costa – É, tinha tido algumas quedas ainda, talvez tardias ou dentro 301

da ALN ou de pessoas ligadas à ALN e, enfim, pessoas que me conheciam e então, 302

tenta, dentro das circunstâncias, aí eu fui levada de volta para prestar novos, novos 303

esclarecimentos a respeito. 304

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Mas e você ficava no DOPS ou era 305

levada e devolvida? 306

Maria Aparecida Costa – Não, foi assim, nesse...não, eu acho que eu já tinha ido uma 307

ou duas vezes e tinha voltado para a Operação Bandeirantes também, mas coisa assim, 308

de ir e voltar, agora, essa de...que eu fui e fiquei no DOPS, eu acho que lá esses três, 309

quatro ou cinco dias e, enfim, fiquei lá mesmo até eles, clarear o quadro, como eles 310

pretendiam, mas eles... 311

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – De tortura e depoimentos, 312

naquela rotina, acareação. 313

Maria Aparecida Costa – Foi, depoimentos, tal, aquela rotina, acareação, exatamente. 314

Então, eu fiquei mais um, mais...acho que foi isso, uns quatro, cinco dias, uma semana e 315

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depois eu voltei, aí me mandaram de volta para o presídio, mas havia os pontos 316

específicos de iniciação com o pessoal da ALN. 317

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Mas, nesse período que você foi, você 318

foi torturada também ou não? 319

Maria Aparecida Costa – Sim, sim, foi uma grande sessão de pau de arara, lá no 320

segundo andar, que você via a linha térrea ali embaixo, a via férrea, era e eles estavam 321

muito, até seus...bom, sempre estavam, eu acho que é isso. 322

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Você disse, no começo, que a 323

tortura, você viveu a tortura como um ser humano e como uma mulher, se você pudesse 324

explicar o...se você pudesse explicar um pouco como você vivenciou isso dessas duas 325

maneiras, é importante porque aí nós consideramos, por exemplo, como mulher e você 326

foi vítima de violência sexual na medida em que você foi obrigada a desnudamento 327

forçado, foi colocada numa situação de indisposição justificável e eu não sei se eles, se 328

é o seu caso, de eles terem feito ameaças de cunho sexual, que era comum eles fazerem 329

esse tipo de coisa. 330

Maria Aparecida Costa – Sim, vamos dizer assim, houve ameaças, mas eu não sofri, 331

diretamente, nenhum tipo de estupro ou algo assim, não, isso não aconteceu, eu acho 332

que a questão que fica é isso, o simples fato de você, nós, eu acho que a gente tem que 333

pensar, nós éramos todas jovens, completa, sei lá, um caso assim, pressupunha, talvez, 334

uma coisa, apesar de você ser militante, de você saber dos métodos, etc., mas, o 335

enfrentamento da realidade é muito outro, porque, por mais que você possa ouvir: “Não, 336

há tortura, eles são violentos.” Isso é colocação teórica, outra coisa é quando você está, 337

de fato, numa situação, porque a tortura em si é aquela situação de completo, de 338

completa, de você estar absolutamente nas mãos de pessoas que decidem sobre tudo, 339

sobre o seu corpo, sobre a sua vida, sobre o grau de dor que você deve ou não sentir, 340

sobre aquilo que é mais ou menos eficiente, ou seja, você está absolutamente 341

vulnerável, absolutamente na mão de outros que dispõem de você. Então, isto, por si, o 342

você estar à disposição de um mecanismo de repressão, de violência, que tem todo o 343

poder sobre a sua, sobre a sua pessoa, sobre você, por si já é o começo da maior 344

violência e isso é uma coisa, vamos dizer assim, você não estava simplesmente preso, 345

você estava preso por um mecanismo nem institucional, institucional num primeiro 346

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momento em que foi decidido, em que a tortura era o meio a ser utilizado, não é isso? 347

Não era um acaso: “Ah, então, o Tomás não deixou fulano enlouquecido, mas tem o 348

superior dele que, eventualmente...” Não, não era isso, mas estava nas mãos deste 349

mecanismo que foi organizado desta forma, como uma maneira de obter informações, 350

de desaparecer, de aniquilar os movimentos de oposição. Então, por si, a estrutura onde 351

você entra é o terror institucionalizado do Estado, então eu acho que é importante aonde 352

estava o terror desde o começo, o que é realmente? Então, eu acho que isto é uma coisa, 353

como ser humano, você está dentro de um mecanismo desses, você está absolutamente, 354

como ser humano, à disposição do outro, então isto é uma das coisas, talvez, mais 355

terríveis que a pessoa, que um ser humano se defronta, por um lado, você não está 356

absolutamente à mercê. Isto já é uma coisa que, quando você se depara com isto, é uma 357

realidade que por si já é violenta e você se defronta com a violência que se traduz, 358

espancamento, choque elétrico, pau de arara, a cadeira do dragão, no meio das ameaças, 359

no meio de você estar despido. É isso que eu digo, como mulher, era uma coisa que até 360

talvez naquela própria origem, gente [trecho incompreensível] de um jeito, de maneira 361

geral, bom, assim, sei que tinha tido, que não tido qualquer convivência com a 362

violência. Tem uma amiga minha que escreveu um livro que eu achei brilhante, ela 363

coloca isso, que ela até conta a história dela, que é um pouco a minha, porque nós 364

estudamos juntas em colégio de freiras, mil anos de freiras, como diz, moças assim, 365

protegidas, com famílias também, que sempre protegeram, não é? De uma forma, então, 366

nós estávamos talvez muito, até muito menos preparadas, porque éramos aquelas 367

jovenzinhas que tínhamos sido educadas para sermos futuras mães, donas de casa, 368

prendadas, bordávamos uma série de coisas e você se vê, tudo bem, é uma época de 369

uma militância que você fez, mas, de alguma forma, você ainda tem uma formação que, 370

quando você se defronta com isso é um peso imenso, porque é algo completamente fora 371

da sua experiência de vida, que é uma experiência que não convivia, nunca conviveu, a 372

não ser em palavras, a não ser em teorias, a não ser em suposições com o tipo dessa 373

realidade concreta. Então, por isso eu digo, como ser humano, todos nós tivemos 374

absolutamente e, eu acho que o peso é igual para todos nós, homens, mulheres e todos 375

aqueles que passaram nas mãos deles, que viveram essa situação de vulnerabilidade 376

absoluta, nas mãos de um terror institucionalizado, são a situação e acresce, essa 377

questão, você tem tudo isso e você é obrigado a se despir, os homens também foram, 378

mas talvez, para uma mulher, eu acho que isso tem um peso terrível, pela sua formação, 379

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pela formação social, ideológica, você por si já é uma exposição, aumenta ainda mais a 380

tua exposição. 381

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – As construções sociais, o 382

significado do corpo, da sua sexualidade, então isso vai... 383

Maria Aparecida Costa – Do chamado, você não precisa se expor como mulher, você 384

tenta se, normalmente você é educada e visto como, para proteger a sua feminilidade, 385

não é? Para que ela se exponha em outras situações, situações de escolha amorosa, 386

quando você escolhe, você está pronta, outra coisa é você ser jogada nesse monte de 387

coisa e, enfim, e estar, aos olhos, aos olhos e às mãos. Bom, é meio isto. 388

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Tchau, gente. 389

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Tchau, obrigada. 390

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Uma outra coisa que você falou, 391

que foi muito interessante, quer dizer, muitas coisas que você disse que, interessantes, 392

mas, o absurdo que é você criar graus sobre a violência que você sofre, de repente você 393

se vê dizendo: “Que bom, isso é menor do que aquilo.” Mas é violência absoluta em 394

todos os sentidos, tanto do espancamento, quanto do choque, qualquer coisa, do grito, 395

da ameaça. 396

Maria Aparecida Costa – Da ameaça, exatamente. 397

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Tudo isso é violento tanto quanto 398

e é muito interessante isso que você disse, porque nós ficamos sabendo por meio de um 399

outro depoimento que eles tinham uma receita da tortura e eles mesmos tinham um 400

grau, assim: bom, o último, então, é o pau de arara, antes disso vem aquilo e aquilo 401

para, testando, realmente, qual é o limite do suportável e assim, o terror está em tudo, 402

inclusive nessa capacidade de medir a violência nesses termos. 403

Maria Aparecida Costa – Exatamente, eu acho que isso é uma coisa que, só depois, 404

talvez, você vá, você consegue sair e ver isso, porque à medida que você, tudo é uma 405

mesma violência, você não faz essas gradações na sua cabeça, porque tudo é criado num 406

esquema de terror, eles próprios partem, é um grande teatro e em parte é uma profunda 407

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realidade para eles, é um exercício, vamos dizer assim, prazeroso para eles, isto que eu 408

acho... 409

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Para gozo nisso? Deles? 410

Maria Aparecida Costa – Eu nunca vi um gozo acontecido, mas, você percebe, é uma 411

coisa que fica assim, porque à medida que é muito ódio, à medida...a vontade de 412

destruição do outro como inimigo, que nos viam como inimigos, mas a maneira de, do 413

que, de como eles olhavam, você percebe, assim, que não existia nenhum, nenhuma 414

reticência para eles, nenhum limite e que tudo era válido, tudo poderia ser feito, 415

dependia só deles, uns eram mais discretos, outros deixavam muito claro nos seus 416

gritos, na sua maneira de ser, de que era uma função que eles cumpriam sem problemas, 417

vamos dizer assim. Então, eu acho que é mais essa questão, até existia, existia isso 418

mesmo e, talvez, para a gente mesma, em que medida você, bom, foi mais, foi menos? 419

E, de alguma forma, eu acho que a tortura, eu até acabei fazendo um mestrado em 420

Direito Constitucional e que o tema é justamente a vedação constitucional da tortura, 421

porque eu acho que é alguma coisa que ficou tão pesada que em algum momento eu 422

precisava, de algum jeito, trabalhar isso comigo mesma, trabalhar até onde ela foi 423

suportável, até onde não foi, se deveria ser sido mais suportável ou menos, enfim, 424

sempre se questiona, eu, pelo menos, me questionei durante muito tempo sobre várias 425

coisas e sobre esse mecanismo que é criado. Então, este, falei: “Bom.” De alguma forma 426

foi quase uma catástrofe, mas eu tinha que falar sobre isso, alguém me perguntou: 427

“Mas, por que você está falando sobre tortura?” Falei: “Não, porque eu preciso repensar 428

sobre mim mesma.” Sobre sua relação com a tortura, porque chega um ponto que é 429

muito complicado, nessa relação de, daqueles que torturam e você que é torturado, todo 430

esse mecanismo, até que ponto o ponto que você resiste, o ponto que você deixa de 431

resistir e as cobranças que você faz pelo resto da vida porque você não conseguiu 432

resistir, do que você, acho que deveria ter sido mais, deveria ter sido melhor para você 433

mesmo. Então, além do mais, eu acho que essa tortura não acaba, desse ponto de vista, 434

ela é uma coisa que vai sempre te... 435

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Inclusive essa própria, esse 436

próprio questionamento parece fazer parte da tortura. Você, como assim, você coloca 437

essa, essa questão de quanto você poderia ter aguentado mais, é uma violência pura, 438

assim, a resposta imediata, não tinha que ter aguentado nada, eu estava sendo...é uma 439

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violência desmedida, que não pode nem ser dita em alguma medida, que a gente não 440

consegue, às vezes, nem falar, porque, exatamente... 441

Maria Aparecida Costa – É muito subjetivo, porque como você reage num ambiente 442

de tortura, tem muito a ver também com quem é você, qual é a tua formação, enfim, tem 443

uma série de coisas, tem a ver com ideologia, sim, etc., eu acho que é uma coisa 444

poderosa no enfrentamento da ditadura, da tortura, mas a par disso você é um militante 445

com matiz de formação, você não deixou de ser você para ser um militante, você é um 446

militante com aquilo que você traz da sua vida e é nessa condição que você é jogado 447

neste, neste tipo de ambiente e é algo que eu acho que você, que as pessoas, sei lá, se 448

colocam, uns mais, outros menos, mas eu acho que algo que vem, que permanece, que 449

as pessoas buscam de uma forma ou de outra trabalhar isso. E aí eu resolvo: “Não, vou, 450

eu preciso pensar.” Você passa muitos anos, tanto assim que eu falei: “Não, eu vou lá, 451

porque eu posso acrescentar para a Comissão da Verdade.” Porque eu não consigo 452

sequer lembrar claramente o que aconteceu nesses primeiros dias, eu não sei e nem 453

depois, parece que é algo que eu deletei, eu quis deletar e hoje eu quero recuperar, em 454

algum momento você dizia assim: “Não.” Então, é hora de você, isso foi muito tempo 455

que deveria, claro, é um processo que, de muito tempo, venho tentando encarar isso de 456

frente, então, até o meu mestrado foi uma forma... 457

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Que ano foi, Maria Aparecida, o 458

mestrado? 459

Maria Aparecida Costa – Foi em 2008. 460

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Ah, 2008, mais recente. 461

Maria Aparecida Costa – Bem mais recente, eu comecei, enfim, acho que fez até 462

2005, é, 2008 que eu apresentei minha dissertação e foi até interessante, interessante 463

assim, do ponto de vista até do histórico da formação deste país, a tortura na formação 464

deste país como um valor aceito, é incrível, tanto assim que nós vemos como aconteceu, 465

ela continua, ela continua, entendeu? Acabou e continua ali, em todas as delegacias, é a 466

forma que tem de, é um meio e é um meio usado com naturalidade, ora, como não sair 467

porque faz parte de uma formação e, ao mesmo tempo, eu acho que não existe, de fato, 468

uma, vamos dizer assim, um posicionamento, uma luta, apesar de muitos, há muitas 469

entidades que denunciam, que lutam, é um trabalho que está sendo feito há muito 470

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tempo, hoje, contra a tortura que está instalada, que isso tem sido denunciado por várias 471

organizações, etc. Mas, eu acho que isso é um trabalho que tem que continuar e tem que 472

se aprofundar, porque ela está aí, como é que a gente vai conseguir que isso deixe de 473

acontecer? Quando você vai conseguir outros mecanismos, você precisa de mecanismos 474

de repressão, enfim, a sociedade em algum âmbito tem que ser protegida, entendeu? De 475

determinados atos, etc., sim, isto é uma realidade, porém há formas e formas de você 476

fazer isso, se você... 477

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Qual é o limite da violência 478

institucionalizada, a gente precisa pensar sobre isso. 479

Maria Aparecida Costa – Eu acho que a gente tem que pensar, não é? Não, assim, 480

você tem que dar ênfase para outro tipo de investigação, você tem que disponibilizar 481

meios, tudo bem, agora, você não pode usar, como a forma de triagem imediata, a 482

tortura, onde que nós estamos? Quando você tortura um outro, quando é permitido que 483

um outro ser humano seja torturado, eu acho que você decai, enquanto sociedade, é 484

aquela coisa, uma coisa é aquilo que você possa ter, de pessoal: “Ah, fulano fez isso 485

com minha família, daí eu tenho sentimentos de profundo ódio.” Isso é uma história, 486

mas isso fica ao nível da sua vivência interior, se você não consegue, inclusive, ter 487

mecanismos de perdão, de justificativa, aí é uma história, eu estou falando daquilo que 488

vem para fora, daquilo que é usado e aceito numa sociedade. Acho que é aceito, é 489

normal, ora, é bandido, tem mais é que apanhar antes de mais nada, depois a gente vai 490

ver, está certo? Então, como? Como que você pode aceitar a um outro ser humano seja 491

espancado, assim, sofra a dor, sofra a dor imposta por outro ser humano, eu acho que 492

isso é o grande questionamento, porque até nesse trabalho que eu fui desenvolvendo, 493

numa altura que ela chama muito a atenção para isso que, só entre os humanos existe a 494

tortura, nenhuma outra espécie infringe dor à sua própria espécie, só o humano que é 495

capaz de provocar no outro dor para obter alguma coisa. Isso, para mim, é de um peso e 496

é uma coisa que gente chama, que a gente nunca pode perder a perspectiva, então, em 497

qualquer nível. Nós falamos com presos políticos, mas o mesmo você pode dizer? 498

Claro, para essa tortura que está aí hoje, ela é injustificável, ela é combatida, ela não 499

pode ser aceita, é uma degradação nossa enquanto pertencentes à raça humana, eu acho, 500

e à sociedade, não defendo a impunidade, não é isso, outros meios, outra formas que 501

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você tem que buscar, essa é a mais fácil, você chega e dá porrada, agora você imagina a 502

degradação de quem também dá porrada. 503

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Essa é uma preocupação das 504

recomendações, isso é uma grande preocupação. 505

Maria Aparecida Costa – Eu acho que é, esse é o grande, entre os vários objetivos... 506

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – É, [trecho incompreensível] de anunciar 507

isso como política pública. Agora, com relação à maternidade, você, nesse período, não 508

enfrentou, você disse das companheiros que chegavam com crianças, você não tinha 509

filhos, nesse período? 510

Maria Aparecida Costa – Não, não tinha, não, então esse sofrimento acrescido eu não 511

tive. Porque eu imagino, com a maternidade posterior, o que deve ser para uma mulher 512

que tem filhos ou que ficam lá fora ou que ficam nas mãos dele, como tantas crianças 513

ficaram, é um, eu fico pensando, assim, que é uma coisa... 514

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Inominável. 515

Maria Aparecida Costa – Inominável. 516

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Essas crianças que estavam no 517

Tiradentes eram bebês de colo, eram crianças de que idade? Mais ou menos. 518

Maria Aparecida Costa – Olha, tinha, eu acho que tinha, a Linda tinha o bebê mais 519

novo, quando ela ficou no Tiradentes acho que o bebê dela tinha, muito, uns quatro 520

meses, foi o que mais... 521

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Lembra o sobrenome da Linda? 522

Maria Aparecida Costa – Acho que era Linda Taiá, ela foi presa grávida, foi um 523

negócio... 524

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Enfim, estava amamentando, tinha 525

crianças... 526

Maria Aparecida Costa – Tinha criança pequena, era um bebezinho, eu sei que depois 527

ela foi para o Rio e tal, ela era do Rio e havia outras crianças de dois, três anos, mas não 528

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vinham fazer visita, não, assim, não ficavam lá, não permaneciam, elas iam nos dias de 529

visita, aos sábados. Então, os sábados eram os dias mais luminosos e mais sombrios 530

também, porque eles chegavam, era ótimo e, depois, eles iam embora e as crianças, de 531

vez em quando conseguíamos levar lá para dentro para conhecer como é que eram as 532

celas, crianças, essas crianças traziam, era uma festa, você vê, criança, alegria, tal, todo 533

mundo paparicava uma coisinha, uma lembrancinha e elas, assim, desenhavam, eram 534

todas...agora e as mães, depois que elas iam embora, era muito doloroso, muito, muito, 535

porque acho que você, separado do seu filho, é terrível, é terrível. 536

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – E essa comunicação externa era só aos 537

sábados? Ou vocês podiam, vocês tinham um outro tipo de comunicação por escrito, 538

com advogado? 539

Maria Aparecida Costa – Advogado. 540

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Qualquer dia? 541

Maria Aparecida Costa – Eu acho que era qualquer dia, nós podíamos receber 542

advogados, em princípio era qualquer dia e as visitas, eram aos sábados só e a 543

comunicação, basicamente, era essa, se podia escrever cartas, as cartas eram enviadas à 544

Auditoria, tanto que você recebia, como o que você mandava, passava pela censura 545

antes, os livros a mesma coisa e as revistas, os dias de visita eram revistas pesadas e era, 546

enfim, todo, todo um aparato. 547

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – As carcereiras tratavam vocês 548

como presas comuns ou tinha um tratamento especial? Ou diferente, não digo especial, 549

mas, diferente. 550

Maria Aparecida Costa – Eu acho que o processo com as carcereiras foi um processo, 551

porque eu não cheguei, eu não fui das primeiras a ir, mas também peguei quase no 552

início, mas já havia companheiras, já havia um mínimo de organização lá no Tiradentes. 553

Mas num primeiro momento, as que chegaram foram, as dificuldades foram muito 554

maiores, porque nós éramos julgadas como terroristas, enfim, a política na cabeça era: 555

“Elas eram as terroristas.” Então, a primeira impressão é essa, tranca pesada, um 556

distanciamento, elas eram as representantes da repressão lá fora e elas tinham medo e 557

cumpriam, tal. Com o tempo, não? E com a convivência, de alguma forma, elas foram 558

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percebendo, enfim, que nós não éramos assassinas, assim, as assassinas que eles diziam, 559

que nós éramos pessoas, enfim, que tinham, nós éramos pessoas que acreditávamos em 560

alguma coisa e estávamos, mas não éramos nada daquilo que elas imaginavam e daquilo 561

que era apresentado. Então, se estabeleceu, minimamente, havia algumas que eram até 562

mais acessíveis, que procuravam, de alguma forma, facilitar algumas coisas e outras que 563

já eram mais distantes, mas eu acho que, no decorrer disso tudo, elas tiveram um, elas 564

começaram a perceber qual era, de fato, a realidade, então se estabeleceu esse tipo de 565

coisa, algumas eram até mais acessíveis, cumpriam o seu papel etc. [Trecho 566

incompreensível] pesadas, eram carcereiras, mas, foi isso, enfim, eu acho que elas eram 567

tratadas como carcereiras, mas com respeito, e elas nos tratavam, eu acho que, de uma 568

maneira geral, com respeito também, e chegou o momento que algumas, até com uma 569

certa admiração por umas e outras, que foram conhecendo mais e etc. Mas, foi assim, 570

todo um processo de, que elas começaram a perceber, porque elas eram muito 571

acionadas, às vezes tinha companheiras passando mal, tinha a questão de ver criança, 572

questão de...então, elas foram percebendo que eram muito de pessoa, de que éramos 573

presas, mas éramos presas em que havia uma identidade, que elas podiam reconhecer 574

uma identidade humana, que, enfim, nós não éramos seres políticos, bravos, horríveis, 575

terríveis, todos dispostos a acabar com tudo, inclusive com elas, não era isso a 576

realidade, não era essa. 577

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Chegou a conhecer o capelão 578

Roberto? Acho que nessa época tinha, foi, esse capelão foi citado. 579

Maria Aparecida Costa – Não lembro. 580

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Você não falou muito da sua 581

experiência no movimento, na ALN, qual era o seu papel e se você se você pudesse 582

falar um pouco de como as mulheres, qual era, se existia um papel específico das 583

mulheres dentro do partido, se não, se o tratamento das mulheres era o mesmo dentro do 584

partido e fora, coisas desse tipo. 585

Maria Aparecida Costa – Ah, interessante isso, porque olha, é o seguinte: bom, eu 586

entrei num primeiro momento no apoio e depois eu acabo indo para o grupo de, para o 587

GTA, o Grupo Tático Armado, enfim, e fui, participei de algumas ações. 588

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Treinamentos? Você? 589

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Maria Aparecida Costa – Também, de treinamentos, alguns treinamentos. 590

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Você sabia atirar? 591

Maria Aparecida Costa – Sim, sabia, não sabia, não era nenhuma exímia, mas sabia, 592

sabia, enfim, até se passava por um treinamento e, enfim, mas vamos dizer assim, eu 593

nunca cheguei a perceber nenhum tipo de discriminação pessoalmente, porque, enfim, 594

nós fazíamos as tarefas que tinham que ser feitas igualmente e, claro, cada um tinha um 595

papel. Talvez é mais fácil fazer isso com uma mulher, olhar, poder fazer o que eles 596

chamavam levantamento, tal, talvez chamasse menos atenção, mas, em termos assim, de 597

atuação, de fazer as coisas, eu nunca, nunca senti isso, de deixar de fazer alguma coisa 598

por ser mulher, talvez por ser meio frágil, sim, num primeiro momento foi difícil, foi 599

difícil convencê-los de que havia uma condição de militância. Mas, depois as coisas 600

foram e também, eu acho que também é o seguinte: fica difícil isso, porque eis que 601

haviam menos mulheres, menos mulheres no GTA, então grande parte os homens 602

faziam muitas coisas, agora, é verdade, talvez você levantando isso, talvez seja uma 603

coisa que eu não tenha me pensado, porque como a gente sempre achou que estamos 604

fazendo tudo junto a mesma coisa, cada um com uma tarefa, talvez você colocando isso, 605

pelo menos na minha fase, talvez as tarefas, vamos dizer assim, alguma de...que se tinha 606

que chegar com mais imposição, etc., talvez tenha ficado para eles, eu não sei se isso era 607

consciente ou não. Mas, enfim, fazíamos juntos, pertencíamos a...fazíamos as mesmas 608

ações, mas algumas coisas talvez tenham ficado meio, não sei se naturalmente com eles 609

ou por achar que talvez as mulheres não dessem conta, sabe? Mas nunca vi esse tipo de 610

coisa: “Ah, você vai participar ou não vai participar porque você é mulher.” Não, 611

sempre você participa e ponto e, então nunca senti esse tipo de nos tratar com mais, 612

sabe? Com mais diferença, talvez até existisse, mas eles talvez, também, se 613

esforçassem. 614

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Você podia contar um pouco como essa 615

experiência de vida afetou, de alguma maneira, a questão da maternidade, você vê 616

ligação com isso? 617

Maria Aparecida Costa – Eu, bom, eu acho que as minhas filhas reclamam demais de 618

que eu sou profundamente, muito controladora, mas eu sou, como dizer? Eu acho que 619

traz, desse ponto de vista assim, a questão da perda é muito complicado, eu não sei se 620

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tem uma ligação totalmente direta com a tortura, mas com a prisão, sim, você...é difícil 621

você perceber que você vive num mundo que não há aqueles riscos que a gente viveu, 622

claro, há riscos de outra forma, eu acho que qualquer mãe tem os seus sobressaltos com 623

os seus filhos numa sociedade que se vive, da maneira como as coisas se colocam, eu 624

acho que isso faz parte da tua ligação com os teus filhos e tal, é meio por aí. Mas, talvez 625

é um pouco acrescido porque eu acho que sempre fica aquela questão de ter sido preso, 626

de separação, de perda, de perdas não, de companheiros, de perdas de coisas importante, 627

eu acho que isso, de alguma forma, é algo que marca, que, então, um apego terrível, um 628

medo de perda muito grande, que eu acho que tem ligações com essas questões todas, 629

de alguma maneira. É como diz, a gente quer tudo, mas acho que, pela vida, você, é 630

uma marca que fica, eu não sei se isso, quer dizer, assim, para mim, nunca, esta questão 631

nunca me impediu o desejo de filhos, de querer ter filhos, mas eu acho que tudo isso 632

pesa na maneira, na maneira de querer proteger esses filhos, é isso, na maneira 633

excessiva de querer proteger. É aquela briga entre a liberdade deles, foram feitos para o 634

mundo, mas, talvez seja muito mais acentuado, talvez sejam até características pessoais, 635

mas eu acho que isso acentua. 636

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Esse percurso, não é? 637

Maria Aparecida Costa – Esse percurso acentua, não é? 638

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – E como que eles recebem, enfim, cada 639

pessoa recebe de uma maneira, essa sua experiência como mulher ativa politicamente, 640

militante, esse passado, como é que essa geração te vê? Especialmente suas filhas? Ou, 641

pelo menos, como você percebe essa... 642

Maria Aparecida Costa – Eu acho que elas, que elas vêm com compreensão, elas vêm 643

com, às vezes, com uma certa admiração, elas, é difícil para mim algumas coisas, 644

quando é muito elas me perguntam: “Posso ficar?” porque às vezes são conversas 645

difíceis, talvez, ultimamente se tem conversado mais, porque também é o meu trajeto, 646

elas sempre souberam que eu fui presa, que tinha um DOI-CODI, sempre foi 647

conversado, meu marido é um político, que também foi preso, foi torturado e tal, uma 648

vez ele entrou na coisa com uma ação contra o comandante do DOI-CODI, então elas 649

sempre cresceram num ambiente que sempre se falou de política, se há determinados 650

valores que se têm com relação à vida, com relação ao avanço do país, etc. E, 651

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pessoalmente, eu acho que talvez elas tenham até uma curiosidade maior de saber, mas 652

eu tenho uma certa dificuldade de conversar com elas, principalmente, sei lá, talvez 653

questão de tortura, tal, eu e mesmo assim, às vezes elas reclamam: “Você nunca fala 654

nada, você não conta, tem que contar, a senhora tem que tirar, assim.” Acho, bom, eu 655

acho que o fundamental é saber que a minha geração e eu, dentro da minha geração, a 656

gente fez uma opção política e, porque se queria transformar este mundo e eu acho que 657

cabe a cada geração transformar o mundo em que vive, uns de um jeito, outros de outro, 658

depende do seu momento histórico. Mas, eu acho que elas têm compreensão, elas têm, 659

têm até uma vontade de saber mais e é isso, elas, nunca tive, assim, talvez, problemas de 660

rejeição. Agora, a mais velha, a mais velha não, a mais velha parece que viveu um 661

momento mais difícil meu. Também, que ela acha que a vida dela sempre esteve 662

presente a questão da ditadura, do que aconteceu e que ela não conseguia entender, que 663

ela sempre, sempre esteve presente e a gente nunca conseguiu falar muito, direito sobre 664

isso. Mas que para ela foi muito pesado, foi muito pesado isso tudo que aconteceu, 665

apesar de ela ter nascido já algum tempo depois, então, não, já no fim, mais na época, 666

nasceu em 81 e tal, mas ela talvez tenha sentido a presença muito maior, talvez a gente 667

tenha passado isso de uma maneira muito inconsciente, foi preciso que ela chamasse 668

minha atenção, porque eu achava, falava assim: “Não, mãe, eu nunca te passei essas 669

coisas, porque nunca nós conversamos, nunca fiquei fazendo, fiquei com preguiça, foi 670

terrível.” Eu acho que são coisas que vêm no contexto no momento, é um momento que 671

você conversa, um momento, mas, nunca, procurei seguir a vida, enfim, foi de uma 672

forma, mas ela me disse que na vida dela, ela, a ditadura esteve muito presente, que, de 673

alguma forma, o desconhecido, porque ela não sabia o que teria acontecido, que ela 674

sempre imaginou, mas ela imaginava, ela não conseguia ter acesso. Porque eu também, 675

talvez a gente, tem hora que você nem sabe o que eles querem, também, por que 676

colocar? E às vezes você acha que você manter um certo equilíbrio, é você não fazer da 677

sua prisão, da sua história, o prato do dia, todo dia você contando ou a menor e, na 678

verdade, às vezes você se cala demais, talvez seja isso, talvez tenha sido calado demais. 679

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Para poupar? 680

Maria Aparecida Costa – Eu acho que para poupar, para poupar e, olhe, talvez porque, 681

para poupar a si mesmo, de alguma forma, eu acho que a consciência está muito 682

interligada. 683

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Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Você disse que a tortura não termina 684

nunca, ela perdura, pelo que eu entendi, durante toda a vida num certo sentido, então, 685

são as feridas, as marcas, mas os efeitos outros e o que você me diz em relação ao 686

medo, medo durante a vida, você já falou na proteção, no receio de perda, na proteção 687

excessiva, no controle, mas e o medo? 688

Maria Aparecida Costa – Medo? O medo, eu acho que o medo existe, o medo fica e é 689

um combate, sempre, é um combate diário, porque senão ele te, poderia até ter um 690

efeito paralisante, eu acho que de qualquer maneira você tem que tomar conhecimento 691

de que existe ou de que está aí e até para superar, até para poder tocar de outra forma, 692

até para poder, enfim, viver, atuar, essas coisas, mas, eu acho que, também, isso deve 693

ser uma coisa muito individual. É estranho, eu nunca conversei assim com os meus 694

companheiros e companheiras, não é? Essas questões, nestas nuances, a gente nunca se 695

abordou talvez, todo mundo, um ou outro, eu acho que ele surge e tal, quando você tem, 696

mas, assim, não é um tema que eu, acho até que era uma coisa, assim, que devíamos ter 697

conversado mais, poderíamos ter conversado, porque eu creio que, para todos, de uma 698

forma ou de outra, é um tema delicado, havia uma diretriz: preso não fala, para algumas 699

organizações era o seguinte, preso não fala, ponto. Para outras é o seguinte: segura 48 700

horas, três dias e depois tenta segurar as coisas, enfim, havia coisa, mas, o básico é isto, 701

quem é preso não deve falar, não deve implicar outras pessoas. Mas tem a verdade, era 702

isto e este é o seu padrão, este é o seu padrão e eu acho internalizado em cada um de 703

nós, muitos conseguiram, muitos não conseguiram, muitos morreram no silêncio, 704

muitos preferiram se calar, seguiram, morreram, não aguentaram, não falaram, outros 705

sobreviveram, falaram menos, outros falaram mais, mas esta é a questão, este era o, 706

vamos dizer assim, o critério do valor humano ou seja, o critério da resistência à tortura 707

e uma situação do terror institucionalizado, então esta é uma questão em torno da qual 708

giram muitas coisas. 709

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Isso é muito interessante, você 710

falar dessa maneira, acho que nunca ninguém, nunca ouvi ninguém falando, é muito 711

interessante, isso explica, por exemplo, a culpa que muitas pessoas carregam, até hoje, 712

de, às vezes, ter falado sobre um companheiro numa situação de tortura, assim, que não 713

achou outra maneira, sei lá, entregou e essas pessoas carregam essa culpa que parece 714

irreparável, inescapável e falam com muita dor, até hoje, sobre isso. 715

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Maria Aparecida Costa – Mas é exatamente isso, você tocou no assunto, porque é isso 716

mesmo. 717

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – É o critério do valor humano, 718

você deixa de ser o...você é menos humano porque você não aguentou uma coisa que, 719

na verdade, não é feita para ser aguentada, você não tem que aguentar uma, a questão de 720

desumanidade. 721

Maria Aparecida Costa – Exato, uma situação de desumanidade, mas, veja, isto é uma 722

coisa muito complicada, uma coisa é a visão racional que você possa ter disso, tortura 723

não é feita para ser aguentada, mas, por outro lado, a tua visão de você mesmo, como 724

militante, mais como ser humano e como militante, se você deixa, se você, na tortura, 725

não age ou não consegue se pôr da maneira, não só como os outros esperam, mas da 726

maneira como você acha que tinha que ser, que deveria ter sido, você se diminuiu, como 727

ser humano e como militante. E se você perde sua condição de militante, você perde sua 728

condição política, você perde uma coisa que era fundamental, porque você foi para isso, 729

porque você acreditava em determinadas posturas políticas, uma ideologia, um caminho 730

e, de repente você se vê como que traindo tudo isso, como você, você trai a si mesmo, 731

antes de você trair um companheiro que é preso, que você fala, você está traindo a você 732

mesmo e isto é uma coisa muito complicada, porque para dizer: “Não, mas, eu não 733

aguentei.” Mas, algo dentro de vocês, mas, devia ter, então, porque você foi fraco, se 734

você foi fraco, pessoa fraca não merece tais coisas, não merece tais coisas, não tem 735

direito a tais coisas, não tem direito a tais coisas. É um processo muito complicado, é 736

um, eu acho que essas são [trecho incompreensível], você quer falar de saudade, 737

marcas, é isso, como você lidar com este ser, que você sai depois que você é preso e 738

torturado e que você fale mais, menos e que você não morre, que você está aí, que você 739

não aguenta enfrentar a morte, como é que fica? Como você recompõe este ser humano, 740

como você voltasse a se respeitar, como você voltar a achar que você vale alguma coisa. 741

Então, esse é um ponto muito complicado, difícil e eu sei exatamente do que os meus 742

companheiros estão sempre falando, porque a coisa que eu acho que grande parte de nós 743

experimentou e experimenta e não é algo que você resolve, que você resolve fácil, pode 744

vir a resolver. 745

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Agora, naquela fase, como você 746

historiou, de desagregação da ALN, com as baixas, como é que fica essa militância, 747

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vamos dizer, você sente fora dessa rede que desagregou de certa maneira? Ou você 748

continua com o sentimento de pertencimento à resistência, embora não seja maior nessa 749

entidade que, vamos dizer, por assim dizer, teria desaparecido? 750

Maria Aparecida Costa – Eu acho o seguinte: não, eu continuo sentindo um 751

pertencimento, porque nunca, há desagregações, grandes quedas aqui em São Paulo e 752

tal, mas mesmo na época? Não, eu ainda me sentia pertencente ao que continuava, eu, 753

na mesma, apesar da morte do Marighella e tal, se tinha uma visão de que haveria de 754

continuar, de que existia, enfim, condições políticas para ir adiante, que de um velho 755

que, [trecho incompreensível], que estava assumindo, então eu me sentia, eu me sentia 756

participando. 757

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Você voltou a militar depois de 758

73? É, você foi solta em 73. 759

Maria Aparecida Costa – Não, eu saí em 73, não, eu passei uma temporada 760

aguardando o meu julgamento, até o julgamento, trabalhando, eu fui trabalhar e tal e aí a 761

minha militância, eu não voltei a ter uma militância, assim, organizada. Eu, no 762

momento, fui do, nem era MDB, quando tinha a grande frente ampla, tal, mas aí depois, 763

quando houve a cisão PSDB e tal, eu acabei me afastando e houve um momento em que 764

eu pertencia ao PT, depois de algum tempo eu fui para o PT, mas não desenvolvi a 765

minha militância e aí passei a atuar em, vamos dizer assim, pontualmente, em questões 766

da Ordem de Advogados, em algumas questões sindicais, em um dos movimentos, 767

então, é uma coisa mais pontual, não organizada. Enfim, tem sido assim, Comissão da 768

Verdade, que foi uma das coisas que a gente, assim, nós nos mobilizamos, enfim, um 769

grupo, vários grupos que contribuem para isso, enfim, existe em Brasília e tal ou então 770

tem sido uma atuação mais pontual, não de um engajamento assim, um determinado 771

partido ou uma coisa específica. 772

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – A sua formação religiosa é católica, 773

você disse no começo, sobre Teologia de Libertação, etc., catolicismo... 774

Maria Aparecida Costa – Católica, eu estudei 11 anos. 775

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Você falou que estudou em colégio de 776

freira. 777

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Maria Aparecida Costa – Onze anos em colégio de freira. 778

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Aqui em São Paulo? 779

Maria Aparecida Costa – Não, em Santo André, eram as freiras salesianas, nós 780

morávamos em Santo André e, depois eu entrei na faculdade, entrei em 63 e aí eu fui 781

para a JUC, eles tinham um grupo de JUC dentro da faculdade, que foi aí uma passagem 782

muito importante, porque eu tinha algumas ideias sociais, você sempre tem uma visão 783

do outro, eu queria fazer coisas, enfim e aí a JUC foi, assim, um caminho maravilhoso, 784

foi uma abertura na minha cabeça cristã, eu tinha um caminho, eu podia militar e era 785

importante e aliás, batia com o que eu achava, que você está no mundo pelo outro, 786

enfim, de alguma forma você em alguma responsabilidade com este mundo que você 787

vive, de mudar e melhorar e tal. Então, eu encontrei tudo isso na JUC, foi ótimo, mas aí 788

depois participei de encontros, tal, eu fazia parte dela na faculdade. Mas aí com o tempo 789

eu fui me distanciando e, por isso eu digo que eu não tenho religião, eu não me mantive 790

católica, enfim, não tenho religião, vamos dizer assim, deixei de acreditar, como dizem 791

que a crença é um dom, talvez eu tenha perdido o dom da fé, às vezes eu fico pensando 792

porquê, então, mas, foi uma coisa importante, foi, foram valores importantes, que eu 793

acho que eu tive, principalmente, assim, Teologia da Libertação foi, talvez, 794

fundamental, para eu enxergar, entender o mundo, a ter meu papel nele. 795

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Esse seu mestrado chegou a ter se 796

constituído ou não? 797

Maria Aparecida Costa – Não, não acabei, porque eu fiz esse mestrado numa situação 798

muito difícil, assim, em termos de saúde, meu marido internado, foi, ele passou vários 799

períodos internado, então eu acabei fazendo uma coisa, eu achei, até pensei em dar uma 800

mexida nisso, eu acho que a primeira parte acabou, com o histórico de torturas etc., mas, 801

tem umas conclusões jurídicas que eu até melhoraria, mas acabei não deixando como 802

livro, não. Mas foi um período difícil, eu não consegui articular, não consegui 803

desenvolver tudo que precisava, então, mas, ficou assim, de alguma forma foi 804

importante, para mim, pelo menos pessoalmente, e eu acho que ele tem até um conteúdo 805

interessante, acho que [trecho incompreensível] e tal, eu tenho até trabalhado em alguns 806

pontos para transformar mais em artigos, em algumas coisas assim, com relação a esse 807

aspecto de tortura, enfim, no momento atual. 808

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Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Certo. 809

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Tem só uma coisa aqui, desculpa 810

insistir nesse ponto, mas, é que eu preciso especificar algumas coisas sobre a... 811

Maria Aparecida Costa – O que você achar que puder. 812

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Não, mas é só, bem pontual sobre 813

isso, você disse que na tortura, na OBAN, você levou choque, você chegou a levar 814

choques nas genitálias? 815

Maria Aparecida Costa – Não sei. 816

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Não sabe? 817

Maria Aparecida Costa – Não sei, se eu te falar que sim, que não, não vou estar te 818

falando a verdade, eu não sei. 819

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Porque a gente confere isso como 820

um tipo de violência sexual. 821

Maria Aparecida Costa – É uma loucura tão grande, tudo acontecendo ao mesmo 822

tempo, eu não sei. 823

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Não, mas era usual que eles... 824

Maria Aparecida Costa – Era usual, sim, sim, eram, assim... 825

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Muito usual, no ânus... 826

Maria Aparecida Costa – É horrível, fez muito na cadeira do dragão, sei lá, risco para 827

todos os lados, você vira uma coisa só, é simplesmente isso, então eu não sei te falar. 828

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Acho que eu posso, com os 829

dados, pode ser? Seu nome completo? 830

Maria Aparecida Costa – Maria Aparecida Costa. 831

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Antes você quer falar mais 832

alguma coisa? 833

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Maria Aparecida Costa – Não, eu acho que quero falar da importância do trabalho que 834

vocês estão fazendo, agradecer, assim, a compreensão de vocês, a maneira delicada que 835

vocês... 836

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Nós é que temos que agradecer e muito. 837

Maria Aparecida Costa – Assim, de conduzir isto, eu acho que eu queria, isso que eu 838

vou deixar registrado e o papel da Comissão da Verdade, o resgate desse passado, 839

enfim, escrever a história que, de fato aconteceu, deixar para as novas gerações que o 840

conhecimento do que elas estão vivendo não foi de graça, que é importante ter essa 841

noção de que essa liberdade que se tem hoje foi uma conquista de todos os que foram 842

resistentes, seja lá onde for, mas foi uma luta para se chegar nela e que deve ser 843

aperfeiçoada, deve ser aprofundada, mas é preciso conhecer isso. E eu acho, inclusive, 844

também, às vezes eu fico pensando que, depois que vocês fizerem um grande apanhado 845

disso tudo, com as conclusões gerais, isso tudo tem que ser discutido, as próprias Forças 846

Armadas é importante, é importante, eu acho, até por uma questão de democratização de 847

um pensamento militar, saber que quando você fala que ele estava organizado, o 848

Exército estava organizado, as Forças Armadas estavam organizadas, quando foi isso? 849

Como se deu para que, vejam, eu acho que até hoje eles têm aquela noção 850

corporativista, fala-se de tortura, fala-se de todos, espera aí, vamos ver, sim, como 851

instituição esteve envolvida, sim, sustentou a ditadura e tal, mas é preciso desconstruir 852

isto, é preciso eles se apossarem, também, da própria história deles, porque o Exército 853

não se apossa da sua história, do seu papel histórico, das interferências que tem feito ao 854

longo do...ao longo da história do Brasil, por quê? Se você não fizer isso também, vão 855

sempre se ver à margem como guardiãs de uma história, como eles fazem parte dessa 856

história, o papel deles é outro. Sei lá, então eu fico pensando como, não sei, mas de 857

levar isso, inclusive para essas instituições que levaram diretamente ligadas, envolvidas 858

nisso tudo, além, claro, para a juventude, para que saibam, não naquele sentido de que, 859

ora, vamos cultuar o passado, só não vamos conhecer o passado, conheça como ele foi, 860

para daí, que se possa, de fato, caminhar, para que eles caminhem sabendo para onde 861

estão caminhando, enfim, também se apossem de sua própria história. É isso que eu 862

queria deixar registrado. 863

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Vamos. Você tinha um apelido 864

ou codinome à época dos... 865

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Maria Aparecida Costa – Tinha, Cristina, Vera, Lúcia. Está bom, mas eram os mais... 866

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Usados? É para o arquivo, às 867

vezes, para a busca no arquivo, eles usavam. Data de nascimento? 868

[Dados pessoais removidos]. 869

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Você disse, a pergunta é se 870

alguém testemunhou os fatos, você disse que foi presa com uma outra pessoa. 871

Maria Aparecida Costa – Não, quando eu fui, era um menino, mas no Rio eu fui presa 872

com um menino chamado Valentin, que é só o que se sabe dele, que é Valentin, nunca 873

mais ele...eu tenho a impressão que ele estava entrando, deu um azar imenso de ser 874

preso comigo, ele estava entrando, tinha algumas coisas que foram apreendidas, 875

algumas coisas na casa dele, mas devia ser, era muito jovenzinho, eu acho, e depois nem 876

a organização não se sabe mais dele. 877

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Ele é desaparecido? 878

Maria Aparecida Costa – Não, não é desaparecido. 879

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Não é desaparecido? 880

Maria Aparecida Costa – Não é desaparecido e você sabe que [trecho 881

incompreensível], eu fui presa com ele, nós, eu tinha acabado de conhecer, então, nós 882

falamos: “Olha eu sou fulano.” Quando nós tínhamos presos, ele, aí eu falei: “Olha, eu 883

sou fulana, qual o seu, me dá um nome qualquer para a gente se chamar e, estamos 884

paquerando, ponto.” Bom, aí foi isso, ele foi comigo, coitadinho, fomos para o DOPS, 885

tal, aquele salão imenso e eu contando uma história, uma história enlouquecida que eu 886

não era, imagina, a Maria Aparecida Costa, eu era outra pessoa, “olha meu documento, 887

estou aqui no Rio porque eu vim do Paraná, vim fazer a vida aqui, tudo”, mas eu tinha 888

que justificar, eu estava com dólares, então eu tinha que fazer um [trecho 889

incompreensível] daqui, “eu estive aqui como turista” e o delegado me olhava e falava 890

assim: “Ou você é muito cínica ou você está dizendo a verdade.” Porque aquela cara 891

assim, carinha assim, imagina, fazer programa, mas eu tinha dólar, eu: “eles pagam 892

dólar” e o menino lá: “E quem é?” “Ah, a gente estava se paquerando.” “Bom, vai, vai”, 893

aí eles acabam indo, o menino dá o endereço, eles vão na casa dele e, descobrem 894

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panfleto, descobrem, acho que bala de fuzil, descobrem, eu acho que ele guardava as 895

coisas, enfim, eu não sei nada dele. Mas voltam com tudo isto, eles ficam loucos, mas, 896

Geni, Geni, equipe de busca, aquela truculência e vem a mãe dele, a mãe dele era assim, 897

você imagina uma, aquela senhora espanhola, mais ou menos da minha altura, baixinha, 898

mas velha, quase de xale, de roupa preta, ela me chega desesperada, chorando, ela entra 899

na sala daquele delegado, ela se ajoelha aos pés dele e olha para mim e diz assim: “Essa 900

vagabunda, essa vagabunda que perdeu meu filho, ela não presta, meu filho é um 901

menino, pelo amor de Deus, meu filho, solta o meu filho, mas, é ela.” Aí ficou um 902

negócio assim, que eu não, que eu nunca mais esqueci, era uma cena incrível, mas, eu vi 903

a dor daquela mulher, pelo que eu percebi ela saiu assim, sofrendo, pedindo pelo filho, 904

foi uma coisa terrível, terrível de ver aquilo e eu nunca mais soube do menino, eu 905

soube... 906

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – E eles soltaram? 907

Maria Aparecida Costa – Não sei. 908

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Você não sabe? 909

Maria Aparecida Costa – Nem a organização, a gente sabe que ele chama Valentin, da 910

ALN, não sei nem se era da ALN, mas devia ser de alguma organização de esquerda e 911

só isso. E aqui no DOI-CODI eu me lembro do Tufão, que eu me lembro de a gente ter 912

se visto. 913

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – No DOI-CODI. 914

Maria Aparecida Costa – Que foi assim, mas a gente nem, a gente se cruzou e tal e 915

havia outros companheiros mais, eu também [trecho incompreensível]. 916

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – E é na Bandeirantes, você disse? 917

Maria Aparecida Costa – Na Bandeirantes, é. E aí depois no DOI, aqui no DOPS eu 918

acabei, depois é tão cheio o DOPS, o DOPS era cheio de gente, eu fiquei numa cela tão 919

grande, agora, me pergunta quem é, eu me lembro de ter visto o Celso Antunes Horta, a 920

gente se viu, tanto que houve uma acareação e... 921

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Zota? 922

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Maria Aparecida Costa – Horta, ele... 923

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Tem a mulher dele que... 924

Maria Aparecida Costa – Mas, assim, o que eu consigo me lembrar e isso é uma coisa 925

terrível porque eu fiquei uma temporada lá e eu não, eu acho que foi um processo assim, 926

que eu estou querendo eu mesma resgatar alguns, que eu não consigo relembrar, lembro, 927

assim, a primeira visita do meu pai, isso eu lembro, levaram algumas coisas e só. E aí, 928

depois eu me vejo mais no Tiradentes. 929

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – No Tiradentes, e no Tiradentes 930

você lembra de...das mulheres com quem você... 931

Maria Aparecida Costa – As mulheres? Ah, eu me lembro de muita gente, lembro, 932

não, estive com a Selma, com a Vilma Marcon, com a Arlete, com a Celeste, que eu 933

acho que você já tem todas aí, a Celeste, a Idoína, a minha cara presidenta, não é? A 934

Márcia Mafri, que morreu recentemente, que éramos muito amigas, Aninha Buste, 935

Terezinha Zerbini, a Maria Barreto Leite, enfim, aí foi uma época, Cidinha Santos, que 936

era uma menina extremamente valorosa. Incrível e...sim? 937

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Tem alguém que você tem 938

contato, que você acha que a gente poderia entrar em contato para falar? Que você tenha 939

o contato para falar. 940

Maria Aparecida Costa – Mulheres, assim? Então, a Rose já veio, certamente a Rose 941

Nogueira, Rita Sipahi. 942

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – A Rose vem, mas ela ainda não 943

veio. 944

Maria Aparecida Costa – É, ela ainda está acamada, ela está com problema. 945

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Da queda? 946

Maria Aparecida Costa – É, a Rita Sipahi. 947

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – A Rita. 948

Maria Aparecida Costa – Eu não sei se já... 949

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Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Já, já falou. 950

Maria Aparecida Costa – Já falou? Bom, a Aninha é do Rio, Aninha Buste está no 951

Rio. 952

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – A gente entrou em contato com 953

ela. 954

Maria Aparecida Costa – Já entraram? Tem a Celeste Martins. 955

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – A Celeste, não, se você tiver o 956

contato da Celeste seria muito bom. 957

Maria Aparecida Costa – Como é que seria? Como é que... 958

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – E-mail, tal, eu tenho, você tem 959

meu e-mail, não é? Se você pudesse passar para mim o e-mail dela, aí eu entro em 960

contato. 961

Maria Aparecida Costa – Aí você entra em contato. Ela, tem a Ideoína, quem? Bom, 962

eu acho que você já viu, Leonora, o pessoal que já está aí, que já falou aí. 963

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Não, mas depois você pensa e aí 964

me manda. 965

Maria Aparecida Costa – É, eu vejo, você quer na área das mulheres? 966

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Você disse que também seu 967

marido, se ele quisesse falar seria bom, seria nosso grupo, geralmente quando são 968

homens a gente coloca, tem as coordenadoras e um homem para fazer o... 969

Maria Aparecida Costa – Eu não sei como é que ele está, porque eu acho que ele vai, 970

segunda-feira vai haver um ato lá na Faculdade de Direito. 971

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Caminhada até a Auditoria? 972

Maria Aparecida Costa – Não, mas antes da caminhada vai haver, acho que 973

depoimento na faculdade lá de São Francisco, para a Comissão Nacional mesmo. 974

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Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Acho que é estadual mesmo, não 975

é? 976

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Acho que é estadual ou é OAB, não, a 977

Dra. Rosa vai estar. 978

Maria Aparecida Costa – A Rosa vai estar lá na Ordem, na OAB e depois vai haver 979

uma na Faculdade de Direito, onde vão ser ouvidos, meu marido vai ser ouvido, mas eu 980

tive a impressão que lá vai ser Comissão Nacional da Verdade, porque vai ser ouvido 981

ele, o Diogo vai ser ouvido, aparecem como depoentes ele, o Edibal e acho que os três. 982

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – É, em parceria, eu acho, em parceria. 983

Maria Aparecida Costa – Eu acho que, então, eu não sei se uma coisa exclui a outra. 984

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – É, porque essa, o caráter é 985

diferente, essas audiências públicas têm um caráter diferente dessas privadas, dessas que 986

são, que a gente narra mais detalhadamente, tem umas perguntas mais específicas, a 987

gente tem formulário, se ele se interessar, se ele quiser falar, ele é muito bem-vindo. 988

Maria Aparecida Costa – Mas aí não seria na Comissão aqui, é que lá é uma Comissão 989

mais... 990

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Não, não, seria aqui, mas por 991

outro grupo, não o nosso e de gênero. 992

Maria Aparecida Costa – Ah, entendi, aí, se for o caso, eu poso passar o nome dele e 993

você encaminha, que ele tem uma trajetória... 994

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Exatamente, importante, é muito 995

importante que a gente escute, dê espaço para o maior número de pessoas possível. Os 996

fatos que você narrou foram denunciados? 997

Maria Aparecida Costa – Ah, eu acho que algumas coisas foram denunciadas, assim, 998

na Auditoria. 999

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Ah, mas, aí não entra, você não 1000

recorreu a nenhuma instituição internacional, nenhuma, não? Ah, desculpa. E, por quê? 1001

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Maria Aparecida Costa – Que pergunta que você me põe, não, por quê? Difícil 1002

responder, porque, talvez porque eu soube a denúncia já tinha sido feita em conjunto na 1003

Auditoria, os fatos já estavam postos e, enfim, talvez isso tenha deixado, estão pensando 1004

em deixar esses mecanismos internacionais para casos de desaparecidos, etc., vamos 1005

dizer assim, no caso isso é um caso de tortura sim, mas ela já estava posta e, então, eu 1006

acho que eu vi que, como ela estava nesse contexto mais geral, nunca recorri 1007

especificamente a nenhum. 1008

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – E à Justiça, você também não 1009

recorreu? 1010

Maria Aparecida Costa – Não. 1011

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Pelo mesmo motivo, Auditoria 1012

Militar? Processo na Anistia? Na Comissão da Anistia? 1013

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Você aceita mais um café? 1014

Maria Aparecida Costa – Ah, isso, olha seria ótimo, seria muito bem-vindo. 1015

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Eu aceito, por favor. Obrigada. 1016

Há algo que o Estado brasileiro pode fazer em relação às violações indicadas? 1017

Maria Aparecida Costa – Eu tenho a impressão que eu te coloquei, eu acho que eu já 1018

falei que o...eu acho que, não sei se está registrado. 1019

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – É muito importante, a 1020

redemocratização do pensamento militar, você falou que foi o último que você tinha... 1021

Maria Aparecida Costa – É, eu acho que isso, uma atuação visando a retificação da 1022

tortura como método, como método de utilizar a vida das pessoas como apuração de 1023

fatos e, realmente, e levar esse, as conclusões finais, tal, as escolas, as novas gerações 1024

para que elas, assim, se apossem do passado e valorizem, de alguma forma, valorizar 1025

nesse sentido de compreender que muitos estiveram envolvidos para que hoje você 1026

possa viver um mundo sem censura, etc. Uma democracia que tem muito a que se 1027

aperfeiçoar ainda, desse ponto de vista, não? Mas, a gente não pode idealizar o que se 1028

vive, mas, por outro lado, também não se pode desconsiderar que é muito diferente você 1029

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viver sob uma ditadura e você viver sob uma democracia, ainda que ela seja imperfeita, 1030

que tenha que ser aperfeiçoada, enfim. 1031

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Alguma mudança institucional? 1032

Porque uma das coisas que a Comissão pode propor são mudanças institucionais, então, 1033

talvez tivesse alguma. 1034

Maria Aparecida Costa – O meu é com adoçante. Mudanças institucionais, mas aí 1035

[trecho incompreensível], uma enciclopédia, mas, assim, emergente. 1036

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Pontual, emergencial. 1037

Maria Aparecida Costa – Eu acho assim, que tem, sim, que você, de alguma forma, 1038

trazer uma participação popular maior na nossa democracia, os mecanismos disso 1039

podem ser os mais variados, eu não vou propor a democracia participativa direto com 1040

plebiscito, não é isso, mas, eu acho um mecanismo realmente que se descubra formas de 1041

acolhimento, de sugestões, de que o cidadão se sinta, de alguma forma, responsável, 1042

participante pelo destino da pátria dele, país dele, da própria democracia que ele vive. 1043

Mas, se puderem falar alguma coisa de forma política. Mas eu acho que é outro 1044

momento, não tem. 1045

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – A mudança institucional com 1046

relação àquilo que tem a ver com a herança ou alguma coisa que você pontue nesse 1047

sentido. 1048

Maria Aparecida Costa – É, eu acho que o mais que eu vejo é, realmente, uma 1049

mudança de pensamento, sabe? Essa redemocratização das forças de segurança, das 1050

questões, eu acho assim, eu acho... 1051

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Isso é uma mudança institucional 1052

também. 1053

Maria Aparecida Costa – Eu acho que nesse enfoque, claro, é um processo, é um 1054

trabalho longo, não só para a minha geração, então eu acho que... 1055

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – É permanente, não é? 1056

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Maria Aparecida Costa – É permanente, enfim, a utopia, é um pacto com o futuro, 1057

alguém disse isso e eu nunca esqueci, você só constrói o futuro se você tiver grandes 1058

utopias, um futuro maior, não precisa se contentar com...é meio isso. 1059

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Se você quiser, a gente acabou 1060

com as perguntas, se você quiser dizer mais alguma coisa que você julgue importante, 1061

fique à vontade, não sei se você tem mais alguma coisa. 1062

Maria Aparecida Costa – Eu acho que, assim, para, talvez uma última coisa, o apoio 1063

da minha família, que foi muito importante, que eles estiveram todo esse tempo, assim, 1064

ao lado, apesar de eles não serem políticos, apesar de, eu achei isso, é algo, também, que 1065

me ajudou muito. 1066

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Você tem irmãos? 1067

Maria Aparecida Costa – Uma só. 1068

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Mas, família, você diz família de 1069

origem, família sua, que você constituiu? 1070

Maria Aparecida Costa – A que eu constitui, ela tem tido essa acolhida ao longo da 1071

vida, mas, naquele, eu até me lembro, naqueles momentos difíceis, era com pai e mãe, 1072

minha irmã, eles sempre presentes, entendeu? Porque a gente sempre foi assim, 1073

relativamente, média bem ali, várias dificuldades, eu acho legal, assim, a luta que eles 1074

tiveram e, de alguma forma, é um reconhecimento, lamento, talvez, não ter deixado 1075

claro para a minha mãe isso, ela está internada, ela passou por desesperos na vida dela, 1076

com a minha prisão e tal, e eu acho que esse é um registro particular da comissão, mas 1077

eu acho que... 1078

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Não, mas é importante a gente 1079

entender. 1080

Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – O papel da família, a repercussão da 1081

família, o apoio, o interessante mesmo sem a família ser engajada propriamente na...mas 1082

é engajada. 1083

Maria Aparecida Costa – É engajada com filho. 1084

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Luci Buff (Comissão Nacional da Verdade) – Com filho no amor. 1085

Maria Aparecida Costa – É, engajada num outro jeito, de uma outra maneira. 1086

Raíssa Ventura (Comissão Nacional da Verdade) – Bom, vou desligar. 1087