MARIA DO SOCORRO DE ARAUJO CAVALCANTE · C376m Cavalcante, Maria do Socorro de Araujo....
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MARIA DO SOCORRO DE ARAUJO CAVALCANTE
MICROSSISTEMAS DE VALORES SUBJACENTES AOS
DISCURSOS DE CANTORIAS DE RUA DAS CEGUINHAS DE
CAMPINA GRANDE-PB
JOÃO PESSOA 2008
MARIA DO SOCORRO DE ARAUJO CAVALCANTE
MICROSSISTEMAS DE VALORES SUBJACENTES AOS
DISCURSOS DE CANTORIAS DE RUA DAS CEGUINHAS DE
CAMPINA GRANDE-PB
Dissertação elaborada por Maria do Socorro de Araujo Cavalcante e apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, área de concentração Linguagens e Cultura, linha de pesquisa Semióticas verbais e sincréticas, com vistas à obtenção do grau de mestre em Letras.
Orientadora: Professora Drª. Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista
JOÃO PESSOA 2008
C376m Cavalcante, Maria do Socorro de Araujo.
Microssistemas de valores subjacentes aos discursos de cantorias de rua das Ceguinhas de Campina Grande – PB/Maria do Socorro de Araujo Cavalcante. – João Pessoa, 2008. 172 p.: il.
Orientadora: Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista.
Dissertação (Mestrado) – UFPB/CCHLA 1. Semiótica. 2. Discurso. 3. Cantorias de rua. 4.
Microssistemas de valores.
UFPB/BC CDU: 801.54 (043)
MARIA DO SOCORRO DE ARAUJO CAVALCANTE
MICROSSISTEMAS DE VALORES SUBJACENTES AOS
DISCURSOS DE CANTORIAS DE RUA DAS CEGUINHAS DE
CAMPINA GRANDE-PB
Dissertação elaborada por Maria do Socorro de Araujo Cavalcante e apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, área de concentração Linguagens e Cultura, linha de pesquisa Semióticas verbais e sincréticas, com vistas à obtenção do grau de mestre em Letras.
Aprovada em 29 de janeiro de 2008.
________________________________________________________ Professora Drª. Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista - UFPB
Orientadora
__________________________________ Professora Drª. Marluce Pereira da Silva - UFRN
Examinadora
__________________________________________ Professor Dr. Geraldo Nogueira de Amorim - UFPB
Examinador
JOÃO PESSOA 2008
Aos amantes da Cultura Popular por reconhecerem e valorizarem a sabedoria do povo, patrimônio sublime da humanidade.
Dedico!
AGRADECIMENTO ESPECIAL
À minha orientadora
Professora Drª. Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista
Mestra que tem conteúdo e expressão e cuja função significativa é gerada no percurso do ato de ensinar.
Com a admiração e gratidão da orientanda
AGRADECIMENTOS
À Santíssima Trindade que me iluminou e conduziu na realização deste curso de mestrado.
Aos meus pais Pedro Vital de Araújo e Maria das Neves de Araújo pelo dom da vida e
por terem trabalhado, incansavelmente, para me darem educação. À minha família, primeiro grupo sócio-cultural com o qual interagi. A meu marido Gilberto e aos meus filhos Vinícius e Victor pelo afeto e atenção
dedicados a mim, neste momento. Às Ceguinhas de Campina Grande-PB: Maria, Regina e Francisca pelas informações
concedidas à pesquisa de campo deste trabalho.
Aos professores ministrantes das disciplinas cursadas no mestrado, pelo saber repassado.
Aos colegas de curso que trilharam comigo esta jornada em busca do saber científico.
À colega de curso Maria Nazareth de Lima pelo companheirismo e parceira nos estudos.
Aos funcionários do PPGL e CCHLA pela receptividade e informações prestadas. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela
bolsa de estudo concedida. Enfim, a todos os que, de alguma forma, colaboraram para a realização deste trabalho.
MENSAGEM AOS DEFICIENTES
“Quem tiver seu filho deficiente visual, ou seja, qual deficiência for, que não bote ele na calçada pra pedir. Se ele falar, se for uma deficiência que a criança fale, procure um estudo pra ele, procure tratar ele com mais carinho, não procure botar ele na calçada que é muito humilhada a vida de quem pede. Procure dar carinho a ele, que o deficiente precisa de carinho, precisa de afeto, precisa de amor, precisa de muita coisa, não precisa tá pedindo esmola na calçada. É muito humilhada a situação, assim, de quem pede, se for uma deficiência que fale procure um estudo, procure botar ele pra estudar, pra uma escola. E se for uma que não fale, quem não fala não vai estudar. Procure assim dar carinho a ele pra não viver pedindo na rua, pra que ninguém não judiar com ele que é muito triste uma pessoa já deficiente e viver assim judiando pelo meio do mundo, sem carinho de ninguém”. Maria das Neves Barbosa (Maroca)
Campina Grande-PB, 10 de janeiro de 2007
A música está em todos os lugares, perpassando todas as culturas. Ela seduz, diverte, embala, consola, encanta e canta a todos sem distinção de cor, faixa etária, sexo, escolaridade, crença, posição social; seja por meio das melodias produzidas pela natureza, seja pelos sons transcodificados pela sensibilidade humana. Vinda do interior da emoção ou da razão, quem a canta ou escuta jamais sentirá solidão, uma vez que é fiel companheira.
Maria do Socorro de Araujo Cavalcante
LISTA DE ABREVIATURAS
Adj. Adjuvante
CD Canção da despedida
DÁRIO Destinatário
DOR Destinador
ME Moço me dê uma esmola
NE Noite enluarada
Op. Oponente
OV Objeto de Valor
PN Programa Narrativo
SB Santa beata Mocinha
S1 Sujeito Semiótico um
S2 Sujeito Semiótico dois
S3 Sujeito Semiótico três
Sg Segmento
U Disjunto/Disjunção
∩ Conjunto/Conjunção
Ø Inexistência
RESUMO
Este trabalho objetivou analisar, do ponto de vista semiótico, os discursos de cantorias de rua das Ceguinhas de Campina Grande-PB, a fim de descobrir os microssistemas de valores subjacentes a eles capazes de refletir, de modo explícito ou implícito, uma identidade nordestina. Como fundamentação teórica, utilizaram-se os pressupostos da Semiótica Greimasiana. Realizou-se, ainda, estudo sobre o percurso histórico da Música Popular Brasileira para constituir um capítulo em que se delineiam os principais ritmos e seus representantes. O universo de pesquisa constou de quatro canções do repertório cantado pela Ceguinhas, no passado, em ruas, portas de igrejas e feiras livres do Nordeste, e, atualmente em shows, do qual foram extraídos os dados que possibilitaram chegar à confirmação da hipótese: através da análise semiótica, é possível identificar os microssistemas de valores e a ideologia subjacentes aos discursos de cantorias de rua das Ceguinhas de Campina Grande-PB que são condizentes com a realidade nordestina. Procedeu-se à análise, considerando as três estruturas que integram o percurso gerativo da significação em cada uma das canções. Primeiramente, a narrativização observou o agir de cada sujeito semiótico em busca de seu objeto de valor. Em seguida, na discursivização, foram verificadas as relações intersubjetivas e espaço-temporais, buscando instituir uma correlação entre os efeitos de sentido produzidos por tais procedimentos e os valores sócio-culturais do sujeito produtor. Na semântica discursiva, temas e figuras estabeleceram uma aproximação entre discurso e contexto. Por último, realizou-se um exame da estrutura fundamental que possibilitou emergir as ideologias imanentes ao discurso. Nas canções analisadas, o ser humano aparece como alguém dotado de sentimentos nobres, como o amor e a fidelidade, e, paradoxalmente, capaz de ser indiferente, quando amado. Surge, ainda, sob os aspectos da religiosidade, a expressão de fé do homem nordestino católico que acredita em Deus, em santos e protetores, como o Padre Cícero Romão, do Juazeiro do Norte-CE. Como aspecto da realidade, aparece a figura do cego pedinte que, para sobreviver, leva a vida a mendigar esmolas. Entre o ser e o fazer dos atores das narrativas examinadas, aparecem aspectos da realidade e da imaginação popular, cuja caracterização reflete, de forma inconsciente ou não, formações ideológicas das quais procedem elementos culturais de auto-afirmação e de auto-reconhecimento do povo de uma região. As análises realizadas constituem uma leitura entre as múltiplas possíveis de serem feitas, e espera-se que possam contribuir, de alguma forma, para os estudos semióticos, etnolingüíticos, antropológicos e culturais. Palavras-chave: Semiótica. Discurso. Cantorias de rua. Microssistemas de valores.
RESUMEN
Este trabajo objetivó analizar, del punto de vista semiótico, los discursos de canciones, realizados por las cieguitas de Campina Grande–PB, con el fin de descubrir los microsistemas de valores, subyacentes a ellos que reflejan, de modo implícito o explícito, una identidad del nordeste brasileño. Como fundamentación teórica, se utilizaron los presupuestos de la Semiótica Greimasiana. Se realizó también, estudio del recorrido de la historia de la música popular brasileña para construir un capítulo que delinea los principales ritmos y sus representantes. El universo de la investigación se constituyó a través de cuatro canciones cantadas en el pasado por las cieguitas en las calles, puertas de iglesias y mercados libres del Nordeste e, actualmente en shows, del cual fueron sacados los datos que posibilitaran confirmar la hipótesis: a través del análisis semiótica es posible identificar los microsistemas de valores y las ideologías subyacentes a los discursos de canciones, entonadas por las cieguitas, en las calles de Campina Grande-PB que se armonizan con la realidad del nordeste. Se procedió el análisis, considerando las tres estructuras que forman la trayectoria generativa de la significación en cada una de las conciones. Primeramente, la narrativización observó la actuación de cada sujeto semiótico en busca de su objeto de valor. Enseguida, en la discursivización, fueron verificadas las relaciones íntersubjetivas y espacio-temporales, buscando instituir una relación entre los efectos de sentido, producidos por tales procedimientos y los valores socio-culturales del sujeto productor. En la semántica discursiva, temas y figuras establecieron una aproximación entre discurso y contexto. Por último se realizó un examen de la estructura fundamental que posibilitó emerger las ideologías inmanentes al discurso. En las canciones analizadas, el ser humano aparece como alguien dotado de nobles sentimientos, como el amor y la fidelidad y, la paradoja de ser indiferente cuando es amado. Surge, además, bajo los aspectos de la religiosidad, la expresión de fe del hombre católico, del nordeste brasileño que, creé en Dios, en santos y protectores, como el Padre Cícero Romão , del Juazeiro del Norte-CE. Como aspecto de la realidad, aparece la figura del ciego que, para sobrevivir, pide limosna. Entre el ser y el hacer de los actores de las narrativas examinadas, aparecen aspectos de la realidad y de la imaginación popular que se caracteriza por reflejar, de forma inconsciente o no, formaciones ideológicas de las cuales proceden elementos culturales de auto-afirmación y de auto-conocimiento de un pueblo, de una región. Los análisis realizados constituyen una lectura entre las múltiples que pueden ser realizadas y se espera que contribuyan en el ámbito de los estudios semióticos, etnolinguísticos, antropológicos y culturales.
Palabras-clave: Semiótica. Discurso. Canciones de calle. Microsistemas de valores.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 14
2 REFERENCIAL TEÓRICO ....................................................................................... 17 2.1 DO ESTUDO DO SIGNO AO DA SIGNIFICAÇÃO................................................ 17 2.1.1 O signo: da Filosofia de Platão à Semiótica de Peirce............................................. 17 2.1.2 Sincronia e Pancronia no estudo do signo............................................................ 23 2.1.2.1 O signo Saussureano............................................................................................ 24 2.1.2.2 Hjelmslev e a função semiótica............................................................................. 26 2.1.3 Os Modelos Pancrônicos........................................................................................ 28 2.1.3.1 Preliminares.......................................................................................................... 28 2.1.3.2 O percurso gerativo da significação..................................................................... 29 2.1.3.2.1 Estrutura fundamental......................................................................................... 31 2.1.3.2.2 Estruturas narrativas........................................................................................... 33 2.1.3.2.3 Estruturas discursivas......................................................................................... 40
3 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CORPUS................................................................. 52 3.1 PERCURSO HISTÓRICO DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA....................... 52 3.2 A MÚSICA NO NORDESTE BRASILEIRO............................................................. 54 3.3 LEVANTAMENTO DO CORPUS ............................................................................ 56
4 ANÁLISE SEMIÓTICA DAS CANTIGAS ............................................................... 60 4.1 NOITE ENLUARADA............................................................................................... 60 4.1.1 Segmentação ........................................................................................................... 60 4.1.2 Estruturas Narrativas ........................................................................................... 60 4.1.2.1 Quadro resumo das estruturas narrativas da cantiga Noite enluarada............... 65 4.1.3 Estruturas Discursivas........................................................................................... 66 4.1.3.1 Sintaxe discursiva.................................................................................................. 66 4.1.3.2 Semântica discursiva............................................................................................. 70 4.1.3.3 Leituras temáticas................................................................................................. 71 4.1.3.4 Quadro resumo das estruturas discursivas da cantiga Noite enluarada.............. 74 4.1.4 Estrutura Fundamental.......................................................................................... 75 4.2 MOÇO ME DÊ UMA ESMOLA................................................................................ 81 4.2.1 Segmentação............................................................................................................ 81 4.2.2 Estruturas Narrativas............................................................................................ 81 4.2.2.1 Quadro resumo das estruturas narrativas da cantiga Moço me dê uma esmola 85 4.2.3 Estruturas Discursivas........................................................................................... 86 4.2.3.1 Sintaxe discursiva.................................................................................................. 86 4.2.3.2 Semântica discursiva............................................................................................. 91 4.2.3.3 Leituras temáticas................................................................................................. 95 4.2.3.4 Quadro resumo das estruturas discursivas da cantiga Moço me dê uma esmola 98 4.2.4 Estrutura Fundamental......................................................................................... 99
1
4.3 SANTA BEATA MOCINHA.................................................................................... 105 4.3.1 Segmentação.......................................................................................................... 105 4.3.2 Estruturas Narrativas........................................................................................... 105 4.3.2.1 Quadro resumo das estruturas narrativas da cantiga Santa beata Mocinha...... 109 4.3.3 Estruturas Discursivas.......................................................................................... 110 4.3.3.1 Sintaxe discursiva................................................................................................. 110 4.3.3.2 Semântica discursiva............................................................................................ 114 4.3.3.3 Leituras temáticas................................................................................................ 119 4.3.3.4 Quadro resumo das estruturas discursivas da cantiga Santa beata Mocinha..... 121 4.3.4 Estrutura Fundamental......................................................................................... 122 4.4 CANÇÃO DA DESPEDIDA..................................................................................... 126 4.4.1 Segmentação........................................................................................................... 126 4.4.2 Estruturas Narrativas........................................................................................... 126 4.4.2.1 Quadro resumo das estruturas narrativas da cantiga Canção da Despedida..... 128 4.4.3 Estruturas Discursivas.......................................................................................... 129 4.4.3.1 Sintaxe discursiva................................................................................................. 129 4.4.3.2 Semântica discursiva............................................................................................ 131 4.4.3.3 Leituras temáticas................................................................................................ 134 4.4.3.4 Quadro resumo das estruturas discursivas da cantiga Canção da Despedida.... 136 4.4.4 Estrutura Fundamental........................................................................................ 137 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................... 140 REFERÊNCIAS............................................................................................................. 143 APÊNDICES................................................................................................................... 150 APÊNDICE A – Questões elaboradas para a realização da entrevista............................ 151 APÊNDICE B – Entrevista com as Ceguinhas de Campina Grande-PB......................... 153 APÊNDICE C – Registro fotográfico da entrevista......................................................... 160 ANEXOS......................................................................................................................... 166 ANEXO A – NE Noite enluarada.................................................................................... 167 ANEXO B – ME Moço me dê uma esmola..................................................................... 168 ANEXO C – SM Santa beata Mocinha............................................................................ 171 ANEXO D – CD Canção da despedida............................................................................ 172
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1 INTRODUÇÃO
A partir da mistura de ritmos e gestos, numa combinação de sons e letras, figura-se a
ideologia da arte de cantar ou contar, através da música, os anseios, as lutas de classe, os
amores e por que não a história de um povo que já nasceu rico por sua diversidade genética e
cultural. Reunindo várias modalidades, desde o mais rústico ruído até o mais sofisticado
acorde erudito, desde a expressão oral, no murmurar da mãe que acalenta seu filho no colo,
até a tecitura discursiva de belíssimos poemas, a música, no Brasil, faz-se representante de um
povo, denotando sua identidade e construindo sua história. Assim, o processo de construção
de identidades pode ser considerado como resultado de relações intersubjetivas entre
indivíduos ou grupos sociais capazes de serem reconhecidas e legitimadas, por meio de suas
especificidades culturais.
A escolha do tema Microssistemas de valores subjacentes aos discursos de cantorias
de rua das Ceguinhas de Campina Grande-PB se deu a partir da admiração que a autora deste
trabalho tem pelas Ceguinhas, não apenas pelo talento e expressividade artística, mas também
pela garra e coragem dessas três irmãs, mulheres, nordestinas que, apesar de terem nascido
marcadas pela deficiência visual, permaneceram unidas, desde meninas até a idade adulta,
lutando e/ou cantando para sobreviverem e, ainda, enfrentando e resistindo aos preconceitos e
até aos maus tratos, em decorrência de suas limitações físicas e da condição econômica
precária da família.
Apreciar, valorizar e reconhecer as manifestações folclóricas do Nordeste,
especialmente, a música, como patrimônio cultural de seu povo, motivaram a realização deste
trabalho de pesquisa. Como justificativa, destaca-se o fato de serem escassos estudos que
contemplem a Semiótica aplicada à análise de textos populares, em especial canções
interpretadas por cegos, ou mais especificamente, por três irmãs cegas.
Sua singularidade se dá, não somente, pelo ineditismo; mas, principalmente, por poder
vislumbrar e homenagear uma parcela pouco prestigiada da sociedade: o deficiente visual. A
realização deste trabalho foi motivo de enriquecimento cultural e científico para sua autora,
que não esconde seu prazer de ter estudado, levantado e tornado acessível à análise semiótica
das cantigas de rua das Ceguinhas de Campina Grande-PB, na Paraíba, a estudiosos que se
interessem pelo assunto ou a qualquer leitor curioso que saiba, antes de tudo, amar e valorizar
as coisas que o povo diz.
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Como objetivo, destacou-se a análise, do ponto de vista semiótico, das cantorias de rua
das Ceguinhas de Campina Grande-PB, a fim de descobrir os microssistemas de valores e a
ideologia subjacentes a estes discursos. Considerou-se o percurso gerativo da significação dos
discursos, verificando as relações signo usuário e a ideologia que sustentam e identificando os
valores investidos nas cantorias.
Para tanto, foi necessário estabelecer um percurso metodológico que comportou três
momentos distintos, porém interligados.
No primeiro, apresenta-se o arcabouço teórico da Semiótica greimasiana, desde o
estudo do signo pela Filosofia até o estudo da significação, em especial a proposta teórica
greimasiana, que tem por objeto de estudo analisar a produção, a transformação e acumulação
dos signos em discurso.
Com o intuito de situar o corpus a ser analisado, foi realizada, num segundo momento,
uma investigação sobre o percurso histórico da música popular brasileira e nordestina,
perpassando pelas cantorias de viola até chegar às cantigas de Cego, mais especificamente, as
cantorias de rua das Ceguinhas de Campina Grande-PB, foco central da pesquisa. O corpus
foi constituído de textos coletados em entrevista realizada pela pesquisadora, no dia dez de
janeiro de dois mil e sete, com as Ceguinhas: Maria, Regina e Francisca, na residência delas
em Campina Grande-PB, sendo gravado em DVD e em fita cassete; assim como, extraído do
CD A pessoa é para o que nasce, gravado pelas referidas cantoras. Foram feitas, ainda,
imagens fotográficas do momento da entrevista. A fim de atingir os propósitos da pesquisa,
foram selecionadas as quatro canções como amostragem a ser efetivamente analisada: Noite
enluarada que apresenta, em sua narrativa, um drama de amor entre o cantador, aquele que
enuncia, e a jovem mulher, a mulher por ele amada; Moço me dê uma esmola que reproduz o
lamento de um cego pedinte de esmola, o esmoleiro, num ato interpelativo a um moço,
configurado como o esmoler, que por ele passa; Santa beata Mocinha que discursiviza a
notícia da morte de Padre Cícero Romão, padroeiro de Juazeiro do Norte-CE, cantada por um
devoto, o enunciador, a sua enunciatária textual, figurativizada pela beata Mocinha e, por
último, Canção da despedida que revela a despedida entre dois amantes, o enunciador e sua
mulher amada.
A leitura teórica forneceu os elementos apropriados para análise semiótica das canções
selecionadas, realizada no terceiro momento, permitindo extrair a substância material
necessária à confirmação da hipótese construída de que os microssistemas de valores das
Ceguinhas são condizentes com a realidade nordestina.
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No terceiro momento, dedicou-se à análise das quatro canções escolhidas como
amostragem a ser efetivamente analisada, sobre os três níveis do percurso gerativo da
significação. Na narrativização, observou-se o agir de cada sujeito semiótico em busca de seu
objeto de valor, como também as modalidades semânticas que o instauraram, na narrativa. A
discursivização destacou as relações intersubjetivas e espaço-temporais de enunciação e
enunciado, constitutivas da sintaxe discursiva, bem como os temas e figuras extraídos da
semântica discursiva, buscando estabelecer uma correlação entre os efeitos de sentido
produzidos por tais mecanismos e os valores sócio-culturais do sujeito produtor. Coube à
estrutura fundamental ou semântica profunda descobrir, através das oposições semânticas
binárias, os valores axiológicos que determinam a ideologia subjacente ao universo discursivo
das cantigas.
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2 REFERENCIAL TEÓRICO
2.1 DO ESTUDO DO SIGNO AO DA SIGNIFICAÇÃO
2.1.1 O signo: da Filosofia de Platão à Semiótica de Peirce
O estudo do signo tem seu início no período greco-romano antigo. Coube aos
filósofos, dessa época, tratar da teoria dos signos verbais e não-verbais. A filosofia, vista
como a doutrina dos signos, denomina a primeira parte dessa história à semiótica avant la
lettre.
Platão observou o signo lingüístico como uma estrutura triádica, cujos elementos
foram nomeados da forma seguinte:
ónoma – nómos o nome eîdos – logos – dianóema a noção ou idéia
Signo
Prágma – ousía a coisa à qual o signo se refere Ao tentar compreender sobre a exatidão dos nomes, investigou, no diálogo Crátilo,
sobre a relação entre o nome, as idéias e as coisas e chegou à conclusão de que tal relação
pode ser natural ou convencional, haja vista que depende das convenções sociais. Esta
conclusão deu origem a outras que dizem o seguinte: os signos verbais, naturais e os
convencionais são representações incompletas da verdadeira natureza das coisas; o estudo das
palavras não revela nada sobre a verdadeira natureza das coisas, pois a esfera das idéias é
independente das representações na forma de palavras e que as cognições concebidas por
meio dos signos são apreensões indiretas e, por isso, inferiores às cognições diretas. Dentre
suas reflexões sobre o nome, pode-se vislumbrar a seguinte:
[...] a justeza da aplicação dos nomes a pura convenção, uma vez que tanto servem para representar os objetos as letras semelhantes como as dissemelhantes, desde que o hábito e a convenção as legitimam? [...] É no costume, pois este, como já vimos, consegue representar tanto por meio do semelhante como do dissemelhante. [...] a convenção e o costume
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contribuem igualmente para exprimir o que temos no pensamento, no instante e m que falamos. (PLATÃO, 1988, p. 169-170)
Esse filósofo considerou que falar, ou seja, ‘eirein’ é fazer uso do discurso e, este, por
sua vez, pode indicar que:
[...] todas as coisas (pan); e circula e se movimenta sem parar, além de ser de natureza híbrida, verdadeira e falsa ao mesmo tempo [...]. É justo, portanto, que seja denominado Pan Aipolos o que tudo (pan) exprime e é o movimentador constante (aei polôn) das coisas [...]. É evidentemente que Pan é discurso ou irmão de discurso [...]. (PLATÃO, 1988, p. 134-135)
Aristóteles estudou a teoria do signo no âmbito da lógica e da retórica, chamou-o de
símbolo (symbolon) e o definiu numa relação de implicação, descrevendo-o como uma
premissa que conduz a uma conclusão. Chegou a considerá-lo como um signo convencional
das “afecções da alma”. Essas afecções foram descritas como “retratos” das coisas; logo, seu
modelo do signo é triádico.
Os estóicos seguiram o estoicismo, teoria que afirma ser o universo algo corpóreo e
governado por um LOGOS (razão universal), que ordena e origina todas as coisas de acordo
com ele e por meio dele, chegando com isso a considerar o mundo como um “KOSMOS”
(harmonia). Partiram do modelo triádico de Platão para estudarem o signo e atribuíram aos
seus elementos a nomenclatura que pode ser visualizada no quadro a seguir:
Semaínon significante Semainómenon ou lékton significado
Signo
Tygchánon o objeto referido
Entenderam o significante e o objeto como entidades materiais; enquanto, o
significado foi entendido como uma entidade ideal, ou seja, não-corporal.
Epicuro Samos deu origem ao epicurismo cuja teoria, fundamentava-se no conhecimento empirista. Os epicuristas interpretaram o signo com a pretensão de desenvolverem um modelo diádico que, contrapondo-se ao modelo dos estóicos, apresentasse em sua composição, somente os dois componentes, demonstrados no quadro abaixo:
Semaínon Significante Signo
Tygchánon o objeto referido
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O modelo epicurista, alicerçado por uma epistemologia materialista, considera o
objeto físico como a origem das imagens (eídola). A imagem emitida pelo objeto seria
concebida pelo receptor como uma “nova imagem” denominada de fantasia. Portanto, essas
imagens (emitidas e captadas) foram interpretadas pelos epicuristas como os dois
componentes do signo.
Na Antiguidade, Santo Agostinho estudou o signo no contexto da Teologia e levou a
história da semiótica, dessa época, a seu apogeu. Segundo Nöth (2003, p. 31), este teólogo
chegou a ser considerado por E. Coseriu como “o maior semioticista da antigüidade e o
verdadeiro fundador da semiótica”. A concepção agostiniana sobre o signo é, portanto:
[...] toda coisa que, além da impressão que produz em nossos sentidos, faz com que nos venha ao pensamento outra idéia distinta. Assim, por exemplo, quando vemos uma pegada, pensamos que foi impressa por animal. Ao ver fumaça percebemos que embaixo deve haver fogo. [...] De modo que todos esses sinais são como palavras visíveis.1 (AGOSTINHO, 2002, p. 85)
A partir daí, classificou os signos como: naturais (aqueles que, sem intenção de
significar, dão a conhecer outra coisa além de si próprios); convencionais ( todos os que
possibilitam a comunicação entre os seres vivos) e verbais (são palavras e ocupam, entre os
homens, o primeiro lugar para a expressão dos seus pensamentos). Estabeleceu a diferença
entre as coisas e os signos. Denominou coisas “a tudo o que não está empregado para
significar algum outro objeto” como, por exemplo, uma cruz (objeto de madeira, metal, entre
outras) e signos “a tudo o que se emprega para significar alguma coisa além de si mesmo”,
por exemplo: a cruz de Cristo para o cristianismo. A teoria agostiniana do signo, numa
dimensão teológica da semiótica, influenciou os estudos sígnicos da era medieval.
Entre os séculos X e XV, o estudo do signo seguiu a tradição escolástica que perdurou
até o Renascimento. Os escolásticos influenciados pela teoria aristotélica, conduziram seus
estudos a fim de racionalizar as verdades da revelação, contrapondo-se ao pensamento
patrístico que havia adotado, como modelo, a doutrina platônica. Inspirados pelos
fundamentos filosóficos dos estóicos, diferenciaram as seguintes ciências: a filosofia natural,
a filosofia moral e a ciência dos signos. Chegaram a distinguir denotação e conotação, além
de estudarem as funções semióticas de signos, símbolos e imagens.
São Tomás de Aquino, na Idade Média, estudou o signo no âmbito da lógica.
Distinguiu som de voz, concebendo-a como um som animado, cuja animação provinha da
1 A tradução portuguesa de Doutina Cristã (São Paulo: Paulus, 2002, p. 85) traduz o latim signum por sinal.
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alma. Esse som só seria palavra se fosse significativo; ou seja, a palavra só seria signo quando
a ela estivesse pressuposto um conceito. A esse conceito (ou significação), que se encontra no
intelecto, denominou de palavra interior (conceptus), formada no espírito do falante e
exteriorizada por ele através da palavra exterior, isto é, pelo signo audível (oral). Estabeleceu,
ainda, diferenças entre o falar de Deus e o do homem. Na primeira diferença, refere-se à
imperfeição do falar humano, pois este se dá num processo de raciocínio, onde se cogitam
sinais de imperfeição que não se dão no conhecimento divino que é perfeitíssimo. Na
segunda, faz referência à linguagem como receptáculo das intuições do homem que se
expressa de forma fragmentada, ao contrário de Deus, que expressa tudo em Seu Verbo. Na
terceira, faz menção à unidade, em Deus, Sua essência e Seus atributos: justiça, onipotência,
onisciência e onipresença.
Sua interpretação diádica concebe o signo composto pelos seguintes elementos: um
instrumento de comunicação e um de cognição. Primeiramente, como elemento de
comunicação, origina a idéia de semiose como mediação, desenvolvida por Peirce no futuro
da semiótica. Ao afirmar que o segundo elemento não é apenas instrumento de comunicação,
mas também de cognição, estabelece uma visão semiótica da cognição e, por sua vez, abre
diálogo entre a semiótica e o paradigma das ciências cognitivas. Logo, entendeu por signos
como sendo os instrumentos dos quais nos servimos para a cognição e para falar. Seus estudos
sígnicos foram relevantes, não somente no passado, mas também, para o futuro da semiótica.
O Renascimento opõe-se ao teocentrismo medieval. O pensamento escolástico
continuou a influenciar o estudo do signo também nesse período, quando atingiu seu ápice
com a obra Tractatus de signis do filósofo João de São Tomás.
Os pensadores, dessa época, conceberam o mundo segundo uma visão antropocêntrica
em que o homem era percebido como o centro do universo e a medida de todas as coisas nele
existentes; submetendo, portanto, o universo à razão humana.
Foucault (1999) considerou que a semântica da semelhança desempenhou um papel
construtor no saber do século XVI. Segundo o autor, coube a ela conduzir a exegese e a
interpretação dos textos: organizar o jogo dos símbolos, permitir o conhecimento das coisas
visíveis e invisíveis, guiar a arte de representá-las. Consoante sua concepção, a semântica da
semelhança é muito rica, no século referido, e há, ainda, muitas outras noções que, na
superfície do pensamento, se entrecruzam, imbricam-se, reforçam-se ou limitam-se. Entre as
figuras da semelhança, ele considerou que há quatro seguramente essenciais: convenientia
(semelhança ligada ao espaço na forma da “aproximação gradativa”, que permite o
conhecimento das coisas visíveis e invisíveis), aemulatio (espécie de conveniência liberada da
21
lei do lugar que atua à distância, sem contato e que se dá na ordem da disjunção, sendo
entendida como uma espécie de geminação natural das coisas e nasce de uma dobra do ser),
analogia (que se dá a partir da comparação entre coisas diferentes, que buscam encontrar a.
identidade sob a diversidade de sua aparência) e a simpatia (que é algo que vem suscitar o
movimento das coisas, e provocar a aproximação das que estão distantes, atuando em estado
livre nas profundezas do mundo). Para ele, as similitudes foram importantes para a exegese e
a interpretação da prosa no mundo, da Idade Média até o fim do século XVI. Na citação
seguinte, o autor argumenta que:
[...] chamemos semiologia ao conjunto de conhecimentos e de técnicas que permitem distinguir onde estão os signos, definir o que os institui como signos, conhecer seus liames e as leis de seu encadeamento: o século XVI superpôs semiologia e hermenêutica na forma de similitude. Buscar o sentido é trazer à luz o que se assemelha. Buscar a lei dos signos é descobrir as coisas que são semelhantes. (FOUCAULT, 1999, p. 40)
Os modelos semióticos da Idade Média até a Renascença foram desenvolvidos com o
intuito de interpretar os signos humanos e naturais, como também, na intenção de interpretar
todo o mundo natural. Entre os modelos pansemióticos do mundo, destacam-se o dos “quatro
sentidos exegéticos”, na era medieval e o das “assinaturas das coisas”, no Renascimento. O
primeiro modelo foi estruturado para a interpretação dos textos bíblicos; enquanto que o
segundo, para a interpretação de signos naturais.
No contexto renascentista, a ênfase foi dada ao mundo natural e o signo deixou de ser
entendido como parte do objeto, para ser seu representante. Retorna-se, com esse pensamento
ao conceito sígnico da Antiguidade, conforme o qual, o signo é concebido como signo de
alguma coisa. Nele, segundo afirma Foucault (1999, p. 58), a organização do signo é:
[...] diferente e muito complexa; ela é ternária, já que apela para o domínio normal das marcas, para o conteúdo que se acha por elas assinalado e para as similitudes que ligam as marcas às coisas designadas; porém, como semelhança é tanto a forma dos signos quanto seu conteúdo, os três elementos distintos dessa distribuição se resolvem numa figura única.
Entre os séculos XVII e XVIII, os estudos sobre os signos se desenvolveram seguindo
o pensamento filosófico de três correntes: o racionalismo, o empirismo e o iluminismo.
Os racionalistas de Port-Royal optaram por um modelo diádico do signo. A teoria das
idéias inatas de René Descartes, que priorizou o intelecto sobre a experiência, fez ressurgir o
modelo diádico do signo, segundo o qual, este é compreendido como duas idéias: o
22
significante (coisa que representa) e o significado (coisa representada). Consoante declaração
de Foucault (1999, p. 58), pode-se constatar que “A partir do século XVII, em contrapartida, a
disposição dos signos tornar-se-á binária, pois que será definida, com Port-Royal, pela ligação
de um significante com um significado”.
A compreensão semiótica do racionalismo de Port-Royal descreveu o significante
como algo imaterial, ou seja, como a representação mental do som articulado no momento da
recepção que, por sua vez, induzia ao significado, também mental. Dessa idéia mentalista do
signo resultou, enfim, o futuro da semiótica do século XX.
John Locke, empirista britânico, foi considerado o principal semioticista de sua época.
Interpretou os signos como instrumentos de conhecimento e os distinguiu em duas classes:
idéias que são signos que representam coisas na mente do contemplador e palavras que são
idéias na mente de quem as utiliza, classificando as palavras como sendo os signos das idéias
do emissor. Isto pode ser constatado, consoante sua afirmação citada a seguir:
As palavras são sinais visíveis, necessários para a comunicação. [...] O uso, pois, de palavras consiste nas marcas sensíveis das idéias, e as idéias que elas enunciam são seus significados adequados e imediatos. [...] na sua significação imediata, são sinais sensíveis de suas idéias, para quem as usa. [...] nada significam senão a idéia na mente de quem as usa. (LOCKE, 1991, p. 91)
Contudo, sua teoria não abordou as palavras como sendo também signos das idéias do
receptor, o que leva a conclusão de que a comunicação humana, a partir de sua teoria sígnica,
seria impossível. Sobre esse assunto, eis a posição de Nöth (2003, p. 44):
[...] apesar da enorme importância de suas idéias, o aspecto inovador de sua obra não é tão grande quanto poderia parecer. [...] se as palavras fossem apenas signos de idéias e as idéias fossem apenas signos de coisas, a comunicação humana não seria possível.
Entre o término do século XIX e começo do século XX, o filósofo Charles Sanders
Peirce desenvolveu sua teoria sígnica a partir do axioma de que as cognições, as idéias e o
homem são, em sua essência, entidades semióticas. A teoria peirceana retomou o modelo
triádico do signo, conforme a proposta filosófica de Platão, na Antiguidade. A tríade que ele
propôs é composta por: representâmen (ou significante) que é a representação mental;
interpretante (ou significado) que é a imagem mental ou conceito e o objeto que é o referente
do signo. Seu modelo pode ser representado consoante à figura abaixo:
23
Interpretante
Representâmen objeto
Peirce (2003, p. 46) definiu o signo da seguinte forma:
Um signo, ou um representâmen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo criado denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos os seus aspectos, mas com referência a um tipo de idéia que eu, por vezes, denominei fundamento do representâmen.
Seus estudos contribuíram, sobretudo, na definição do signo, da semiose e
apresentaram uma visão pansemiótica do universo. O caráter universal de sua visão sobre o
signo pode ser percebido na seguinte citação:
Nunca esteve em meus poderes estudar qualquer coisa - matemática, ética, metafísica, gravitacional, astronomia, psicologia, fonética, economia, a história da ciência, jogo de cartas, homens e mulheres, vinho, metereologia - exceto como um estudo de semiótica. (PEIRCE, 1977, p. 85)
2.1.2 Sincronia e Pancronia no estudo do signo
Até aqui o signo foi estudado no âmbito da Filosofia ou da teologia. O século XIX vai
marcar o surgimento da lingüística concebida como científica.
Entres as correntes lingüísticas que trabalham o signo, Barbosa (1996) distinguiu duas:
uma que apresenta uma concepção estática de sistema e estrutura onde “o código aparece
como uma disponibilidade estática para as atualizações e como um modelo pronto, segundo o
qual analisam as experiências individuais” e outra numa concepção dinâmica em que se pode
vislumbrar “na função semiótica e na semiose que a instaura os elementos fundamentais para
24
a proposição de um modelo mais dinâmico de sistema de signos”. Suas reflexões aparecem
solidificadas na citação a seguir:
Temos, pois, dois níveis de mudança lingüística, que se inscrevem, no entanto, no mesmo processo dinâmico, cujo ponto de partida é sempre o sujeito falante-ouvinte. [...] Consideremos, então, certas relações que se poderiam estabelecer entre o esquema de abordagem do método pancrônico e o modelo de evolução concebido a partir da distinção entre sistema e norma, e das relações que mantêm estes últimos. (BARBOSA, 1996, p. 43-44)
2.1.2.1 O signo Saussureano
Saussure (2004, p. 80), retomou a concepção diádica do signo. Em seu conceber, “o
signo lingüístico une não como uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem
acústica”. Este, por seu turno, é uma entidade psíquica de duas faces, cujos componentes
denominou de conceito (imagem mental) e imagem acústica (impressão psíquica do som);
respectivamente. O primeiro equivale ao significado e o segundo ao significante. Seu modelo
diádico pode ser representado pelo seguinte quadro:
Significado Conceito Signo
Significante Imagem acústica
De acordo com sua teoria, esses elementos estão ligados entre si, numa relação de
dependência, de modo que um exige o outro. Apresentando-se como entidades mentais, esses
dois elementos, excluem a referência a qualquer objeto externo.
Considerou que, no signo, há duas características primordiais: a arbitrariedade e o
caráter linear do significante. Na primeira característica, o laço que une o significante ao
significado é arbitrário e na segunda, já que o significante é considerado de natureza auditiva,
apresenta caráter linear, uma vez que se desenvolve no eixo do tempo. O valor do signo não
está nesta ou naquela significação, mas é obtido através das relações e diferenças que
estabelecem com outro signo, isto é, na relação de oposição, pois os valores são relativos e o
vínculo que liga a idéia ao som é arbitrário. É a arbitrariedade do signo que torna possível a
25
compreensão segundo a qual um fato social, por si só, possa dar origem a um sistema
lingüístico. Noutras palavras, o signo, em si, não tem valor. Isto significa dizer que o valor de
um termo é determinado por aquilo que o rodeia. A diferença faz a característica, o valor e a
unidade. Ao considerar o signo em sua totalidade, eis o que o lingüista afirma:
Quer se considere o significado, quer o significante, a língua não comporta nem idéias nem sons preexistentes ao sistema lingüítico, mas somente diferenças conceituais e diferenças fônicas resultantes deste sistema. O que haja de idéia ou de matéria fônica num signo importa menos que o que existe ao redor dele nos outros signos. (SAUSSURE, 2004, p. 139)
Comparou a língua com uma folha de papel, onde de um lado estaria o significante e
do outro o significado. Isto pode ser concebido, claramente, através da seguinte citação:
[...] o pensamento é o anverso e o som verso; não se pode cortar um sem cortar, ao mesmo tempo, o outro; assim tampouco, na língua, se poderia isolar o som do pensamento, ou o pensamento do som; só se chegaria a por uma abstração cujo resultado seria fazer psicologia pura ou Fonologia pura. (SAUSSURE, 2004, p. 131)
O genebrino distinguiu língua de fala e sincronia de diacronia. A língua é homogênea,
um objeto de natureza concreta, sendo constituída por um conjunto de signos que são
utilizados por uma determinada comunidade sócio-lingüística. Possui caráter normativo e é
imposta ao indivíduo. Como parte social da linguagem, é exterior ao indivíduo, uma vez que
este, sozinho, não pode criá-la, nem modificá-la, enquanto que a fala é heterogênea, possui
natureza abstrata, por manifestar-se na individualidade humana de maneira particular e
espontânea. Conforme afirmação de Saussure (2004, p. 22) “Com o separar a língua da fala,
separa-se ao mesmo tempo: 1º., o que é social do que é individual; 2º., o que é essencial do
que é acessório e mais ou menos acidental”.
Quanto à oposição dos fenômenos relativos sincronia/diacronia, preferiu falar de
Lingüística sincrônica e Lingüística diacrônica. Para a sincrônica, considerou ser tudo quanto
se relacione ao aspecto estático (o estudo da língua num determinado momento da História) e
diacrônico tudo o que diz respeito às evoluções da ciência da língua (no decorrer da História).
Em relação a esses dois objetos chegou a seguinte conclusão:
Enfim, é a fala que faz evoluir a língua; são as impressões recebidas ao ouvir os outros que modificam nossos hábitos lingüísticos. Existe, pois interdependência da língua e da fala; aquela é ao mesmo tempo o
26
instrumento e o produto desta. Tudo isso, porém, não impede que sejam as duas coisas absolutamente distintas. (SAUSSURE, 2004, p. 27)
Saussure sentiu a necessidade da existência de uma ciência que estudasse a vida dos
signos no seio da sociedade, como tal ciência não existia, propôs o nome de Semiologia, para
a ciência dos signos, por acreditar que ela ensinaria sobre a constituição dos signos e das leis
que poderiam regê-lo. Chegou a afirmar que a Lingüística seria apenas uma parte dessa
ciência geral.
Sua teoria sígnica foi fundamental para a construção da lingüística moderna, bem
como para os estudos da teoria semiótica. O lingüista dinamarquês Louis Hjelmslev foi um
dos primeiros a interpretar o modelo saussureano e a se preocupar com o desenvolvimento da
ciência da significação conhecida como “Semiótica”.
2.1.2.2 Hjelmslev e a função semiótica
Hjelmslev, criador da Glossemática (escola lingüística estruturalista), foi considerado
o maior intérprete do modelo sígnico de Saussure. O teórico dinamarquês concebeu o signo
lingüístico como:
Uma grandeza de duas faces, uma cabeça de Janus com perspectiva dos dois lados, com efeito nas duas direções: “para o exterior”, na direção da substância de expressão, “para o interior”, na direção da substância de conteúdo. (HJELMSLEV, 2006, p. 62)
Como Saussure, identificou, no signo lingüístico, a existência de dois componentes,
denominando-os, respectivamente, de: conteúdo (o significado) e expressão (o significante).
Diferentemente daquele, reconheceu que, em cada plano, havia uma substância e uma forma.
No conteúdo, a substância é sêmica e a forma semêmica. Na expressão, a substância é fônica
e a forma é fonológica. Visto dessa forma, o signo é, ao mesmo tempo, signo de uma
substância de conteúdo e de uma substância de expressão. O teórico esclareceu que somente
neste sentido o signo é signo de alguma coisa. A significação, considerada por ele como
função semiótica, é a relação de dependência entre o conteúdo e a expressão. A esse respeito,
o autor afirma:
27
A função semiótica é, em si mesma, uma solidariedade: expressão e conteúdo são solidários e um pressupõe o outro. Uma expressão só é expressão porque é a expressão de um conteúdo, e um conteúdo só é conteúdo porque é conteúdo de uma expressão. (HJELMSLEV, 2006, p. 54)
O quadro abaixo, elaborado por Pais (1995, p. 56) demonstra a proposta do lingüista
dinamarquês sobre a função semiótica:
Para Hjelmslev, o sentido é toda substância de uma forma qualquer e está presente,
tanto no conteúdo como na expressão. Batista (2001, p. 142) explica que “No plano do
conteúdo, o sentido seria o fator comum, o pensamento que existe independentemente da
diferenciação lingüística. No plano da expressão, estabelece diferenças entre línguas e falas”.
Percebeu, na língua, a existência dos não-signos e os denominou de figuras que entram
na composição dos signos. Esse pensamento levou-o a definir a língua como um sistema de
figuras. A esse respeito, eis o que declara o autor:
As línguas não poderiam ser descritas como simples sistemas de signos. A finalidade que lhes atribuímos por suposição faz delas, antes de mais nada, sistemas de signos; mas, conforme sua estrutura interna, elas são sobretudo algo diferente: sistemas de figuras que podem servir para formar signos. (HJELMSLEV, 2006, p. 52)
Considerou conveniente utilizar a palavra signo para designar a unidade constituída
pela forma do conteúdo e pela forma da expressão e estabelecida pela solidariedade
denominada por ele de função semiótica. A língua é para o autor, uma forma entre duas
substâncias: uma de conteúdo e outra de expressão. A distinção existente entre os funtivos que
Conteúdo
Substância sêmica
Forma semêmica
Forma femêmica
Substância fêmica
Expressão
Sig
nific
ado
Sig
nific
ante
Função Semiótica
ϕσ
Sentido
Sentido
28
compõem o signo e a relação de dependência, na função semiótica, é fundamental na estrutura
da linguagem. Suas palavras sobre o assunto são elucidativas:
Todo signo, todo sistema de signo, toda linguagem enfim, abriga uma forma da expressão e uma forma do conteúdo. É por isso que a análise do texto deve conduzir, desde seu primeiro estágio, a uma divisão nessas duas grandezas. (HJELMSLEV, 2006, p. 63)
Hjelmslev, ao interpretar o estudo sígnico de Saussure, possibilitou a distinção entre
semiótica e semiologia, considerou a semiótica como ciência que estudaria a significação,
enquanto semiologia seria o estudo do signo em Lingüística.
Seu estudo sobre o signo deu origem à semiótica como ciência da significação. Seu
modelo fundamenta-se na função semiótica, ou seja, na relação de dependência entre a
expressão e o conteúdo de que resulta a grandeza do signo. Nele, os elementos permanentes
do sistema lingüístico são a função semiótica e a semiose entendida como o processo
instaurador da significação, como uma relação intra-sígnica.
Para ele, toda linguagem comporta dois eixos, o do sistema e o do processo. A todo
processo corresponde um sistema capaz de analisá-lo e descrevê-lo. A teoria da linguagem
deve propor-se a verificar a hipótese de um sistema subjacente ao processo. A noção de
processo, vista como a relação que contraem dois termos, os funtivos, permite-lhe opor
processo e sistema de dois modos: pela função que contraem entre si os elementos que
integram o sistema; bem como, pela função que contraem entre sistema e processo. O modelo
hjelmsleviano fundamenta-se, pois, na função semiótica que é a relação de dependência entre
a expressão e o conteúdo de que resulta a grandeza signo.
Têm-se, pois, na função semiótica e na semiose que a instaura, os elementos
fundamentais para a proposição de um modelo mais dinâmico de sistema de signos.
Dessa maneira, a noção de processo, a princípio reservada aos atos de fala (o texto),
passa a ser aplicável também ao sistema, em seu dinamismo semiótico. Seu modelo, assim,
tendia para uma concepção pancrônica da língua.
2.1.3 Os Modelos Pancrônicos
2.1.3.1 Preliminares
29
Os modelos pancrônicos percebem o sistema não como algo estático ou mutável
apenas a longo prazo, porém dinâmico, em contínua mudança. Esse dinamismo se dá num
processo contínuo de auto-alimentação e auto-regulação, de formulação e reformulação, onde
o sistema produz o discurso que, por sua vez, produz o sistema. Os responsáveis por essas
mudanças, no sistema, são os discursos. Nesses modelos, a competência não é a mesma para
todos os sujeitos discursivos do mesmo idioma. Esta é modificada de um sujeito para outro e,
com relação ao mesmo sujeito, de um discurso para outro. O sistema é visto não como um
código, mas como um conjunto de códigos e sub-códigos e a significação é entendida como
um processo de produção, acumulação e transformação da função semiótica.
Foi a Escola de Altos Estudos Semióticos de Paris, representada por Greimas e
Courtés, entre outros discípulos, que completou a concepção de significação dos sistemas
lingüísticos; bem como, reformulou a dicotomia saussureana de sincronia/diacronia, criando a
pancronia latu senso.
2.1.3.2 O percurso gerativo da significação
A Semiótica, como ciência da significação, teve seus limites estabelecidos, com o
surgimento, na França, da Escola Semiótica de Paris, representada por Greimas, Courtés,
Pottier e seus discípulos. Estes estudiosos completaram a proposta de Hjelmslev sobre a
significação e ampliaram o campo da semiótica.
Greimas concebeu a significação como um percurso gerativo ou o caminho que a
significação percorre do conteúdo até chegar à expressão, constituído por três níveis
estruturantes: o Nível fundamental, que corresponde à instância inicial do percurso gerador da
significação, o Nível narrativo, que contém em si o fazer de um sujeito semiótico em busca de
seu objeto de valor e o Nível discursivo, que configura a relação entre os sujeitos enunciativos
por meio de escolhas discursivas permitindo a transformação da narrativa em discurso. Em
cada um destes níveis, encontram-se um componente semântico e um sintático.
Esse modelo do percurso gerativo da significação pode ser demonstrado de acordo
com o seguinte quadro:
30
(GREIMAS & COURTÉS, 1979, p. 209)
Batista (2001, p. 149) interpreta o percurso gerativo da significação da seguinte forma:
São três os níveis de estudos semióticos em cuja distinção os autores adotam a nomenclatura chomskyana, ou seja, a estrutura fundamental, que se encontra no nível profundo, a estrutura narrativa, alicerçada no nível intermediário, entre o profundo e o superficial e a estrutura discursiva que representa o nível superficial.
No dizer de Fiorin (2006, p. 20), este modelo tripartido de análise semiótica é “uma
sucessão de patamares, cada um dos quais suscetível de receber uma descrição adequada, que
mostra como se produz e se interpreta o sentido, num processo que vai do mais simples ao
mais complexo”.
Conforme a teoria greimasiana, pode-se entender por semiótica, a ciência que torna
possível a compreensão do processo comunicativo a partir do percurso da significação, uma
vez que se preocupa com a competência e a performance dos sujeitos da enunciação.
Esta ciência tem como objeto de estudo o signo em discurso, seja ele: verbal, não-
verbal, complexo ou sincrético, em busca da produção de sentido que, segundo o autor citado,
dá-se através da organização discursiva e de suas relações de dependências internas. O
percurso da significação segue um trajeto que tem início na mente do sujeito enunciador e
termina na mente do enunciatário, produzindo sentidos que vão do mais simples e abstrato até
31
o mais complexo e concreto. É constituído de níveis, denominados: estrutura fundamental,
estruturas narrativas e discursivas.
2.1.3.2.1 Estrutura fundamental
A estrutura fundamental é a primeira etapa do percurso gerativo da significação. Esta
se encontra no nível profundo (daí o nome de semântica profunda com que é referido). É o
ponto, no qual, gera-se o mínimo de sentido que constrói o discurso. Esta estrutura comporta
uma semântica e uma sintaxe fundamental. Procura, por sua vez, explicar os níveis mais
abstratos da produção de sentido, do funcionamento e da interpretação do discurso.
A sintaxe fundamental trata das relações de oposição, de implicação e de
contrariedade entre termos, no interior de um mesmo eixo semântico que os envolve. A
estrutura elementar da significação pode ser conceituada da seguinte forma:
O conceito de estrutura elementar só pode tornar-se operatório se submetido a uma interpretação e a uma formulação lógicas. É a tipologia das relações elementares (contradição, contrariedade, complementariedade) que abre caminho para novas gerações de termos interdefinidos e que permite dar uma representação da estrutura elementar da significação sob a forma de quadrado semiótico. (GREIMAS & COURTÉS, 1979, p. 163)
Para evidenciar as relações que compõem a sintaxe do nível fundamental, Greimas &
Courtés (1979, p. 364-368) representaram esta estrutura com um modelo lógico, denominado
de quadrado semiótico. Considerando a oposição entre os termos ser versus parecer, tem-se a
seguinte representação do quadrado semiótico2:
ParecerSer
Não-serNão-parecer 2
Relação de contra riedadeRelação de contra diçãoRelação de complementariedade
32
Pecerbe-se que o quadrado semiótico é formado a partir da relação entre os termos
contrários positivos (ser e parecer) e os sub-contrários negativos (não-parecer e não-ser), no
eixo horizontal, representando a relação de contrariedade. No eixo diagonal, as relações de
contradição se estabelecem por meio de um esquema positivo (ser e não-ser) e um negativo
(parecer e não-parecer), enquanto a relação de complementariedade é constituída através de
uma dêixis positiva (ser e não-parecer) e outra negativa (parecer e não-ser).
As relações estabelecidas entre os quatro termos do quadrado semiótico originam mais
quatro termos, denominados metatermos, que representam a tensão dialética entre dois termos
base. A complexa relação entre esses termos foi denominada de octógono semiótico, que é a
representação sintática da estrutura profunda e abstrata da significação. Por meio dele, é
possível obsevar as relações que sustentam uma oposição lógico-semântica e representar o
mínimo de sentido existente num discurso. As relações entre os termos da estrutura elementar
podem ser representadas por meio do octógono seguinte:
ParecerSer
Não-serNão-parecer
Segredo Mentira
Verdade
Falsi dade
A tensão dialética, representada por meio desse octógono semiótico, é gerada entre os
termos contrários ser versus parecer. Ser é o contrário de parecer e implica não-parecer;
parecer é o contrário de ser e implica não-ser. Ser tem por contraditório o termo não-ser e
parecer, o termo não-parecer. Da relação entre eles surgem quatro metatermos: verdade que
33
representa a tensão dialética entre ser e parecer; segredo: entre ser e não-prarecer; mentira:
entre parecer e não-ser e falsidade: entre não-parecer e não-ser.
Neste nível semiótico profundo, a significação pode ser explicada como:
[...] uma estrutura semântica elementar a que se reduz todo o discurso e os valores nele investidos em relação de oposição mínima. De um modo geral, é costume apreendê-la pelas situações de conflito mais gerais, extraídas da narrativa, que são representadas, espacialmente, em forma de octógono, daí ser chamada também de octógono semiótico. (BATISTA, 2001, p. 150)
A semântica fundamental, segundo Greimas & Courtés (1979), apresenta um caráter
abstrato. Aparece como um inventário de categorias sêmicas, suscetíveis de serem exploradas
pelo sujeito da enunciação. É de ordem paradigmática, podendo ser sintagmatizada graças a
operações relacionais que fazem com que seus termos efetuem percursos previsíveis no
quadrado semiótico.
Os elementos da categoria semântica profunda de um texto podem ser analisados,
atentando-se para as categorias tímicas: euforia versus disforia. A euforia caracteriza-se por
um valor positivo; enquanto a disforia , por um valor negativo. No exemplo citado
anteriormente, ser representa um valor positivo; ao passo que, parecer denota um valor
negativo.
As categorias tímicas ou timias servem para identificar as unidades mínimas de
significação de um dado universo de discurso, bem como, delatam a percepção de mundo do
sujeito discursivo que o constrói.
2.1.3.2.2 Estruturas narrativas
As estruturas narrativas ou narrativização situam-se no patamar intermediário entre as
estruturas fundamental e as discursivas. É a instância do percurso gerativo da significação na
qual se reconstitui o ser e o fazer transformador de um sujeito que atua no e sobre o mundo à
procura de valores intrínsecos e extrínsecos a ele. A narrativa pode-se desenvolver através de
uma seqüência de acordos e conflitos entre os sujeitos: destinador e destinatário. Comporta
um estado inicial, uma transformação e um estado final. Apresenta-se por meio de uma
sintaxe e de uma semântica narrativa. Conforme a concepção de Barros (1999, p.16) pode-se
entender que “As estruturas narrativas simulam, por conseguinte, tanto a história do homem
34
em busca de valores ou à procura de sentido quanto a dos contratos e dos conflitos que
marcam os relacionamentos humanos”.
A sintaxe narrativa se organiza em volta do fazer transformador de um sujeito
semiótico que realiza um trajeto a fim de alcançar seu objeto de valor. Esta pode ser
concebida de dois modos: como mudança de estado e como sucessão de firmação e
rompimento de contrato entre o sujeito destinador e o destinatário. O que caracteriza o
enunciado elementar são as relações de transitividade entre o sujeito e o objeto, ou seja, como
actantes da narrativa. A organização da sintaxe narrativa pode ser concebida:
[...] em torno do desempenho de um Sujeito semiótico que realiza um percurso em busca de seu Objeto de Valor, sendo instigado por um Destinador, que é o idealizador da narrativa e ajudado por um Adjuvante ou prejudicado por um Oponente. (BATISTA, 2001, p. 150)
Na sintaxe narrativa, os actantes são representados em pares que se correlacionam, isto
é: Sujeito (S)/Objeto (O); Adjuvante (Adj)/Oponente (Op); Destinador (Dor)/Destinatário
(Dário). O esquema elaborado por Batista (1999) possibilita a visualização, de modo mais
sistemático, das relações actanciais estabelecidas entre os três grupos:
Anti-destinador
↕
Destinador → Objeto ← Destinatário
↑
Adjuvante → Sujeito ← Oponente
↕
Anti-Sujeito
Não se deve confundir os actantes que decorrem de uma sintaxe narrativa e os atores
presentes na discursivização. Um actante (A1) pode ser manifestado no discurso por vários
atores (a1, a2, a3), como também é possível que um só ator (a1) possa ser o sincretismo de
vários actantes (A1, A2, A3). A relação entre ator e actante é dupla e pode ser demonstrada por
meio do seguinte esquema:
35
A1 a1
a1 a2 a3 A1 A2 A3
De acordo com explicação de Greimas (1977, p. 179-180):
Esta distinção, que continuamos a considerar pertinente - [...] - não deixou de apresentar numerosas dificuldades desde o início, que mostram, por isso mesmo, a complexidade da problemática narrativa. [...] A estrutura actancial aparece cada vez mais como suscetível de explicar a organização do imaginário humano, projeção tanto de universos coletivos como individual.
Na sintaxe narrativa, existem dois tipos distintos de predicados: o predicado do ser,
que indica o enunciado de estado e o do fazer, indicador do enunciado de transformação. É a
relação entre o Sujeito semiótico e o seu Objeto de valor que determina o enunciado de
estado, passando a se chamar função juntiva ou junção. Esta pode se apresentar em duas
instâncias contraditórias: a conjunção que diz respeito ao estado de posse ou conservação do
objeto pelo Sujeito e a disjunção que se refere ao estado de privação ou não conservação do
Objeto. Estes estados podem ser demonstrados de acordo com o seguinte esquema:
F junção (S, O)
S ∩ O (que se lê: sujeito conjunto com o objeto de valor)
S U O (que se lê: sujeito disjunto do objeto de valor)
A função de transformação define o enunciado do fazer, que opera a passagem de uma
relação de estado a uma outra, isto é, da conjunção à disjunção ou da disjunção à conjunção.
As transformações podem ser demonstradas conforme as frases-diagramas que seguem:
F = [(S U OV) → (S ∩ OV)]
36
(que se lê: o fazer transformador em que o Sujeito semiótico disjunto do seu Objeto de valor,
passa a conjunto com o mesmo)
ou
F = [(S ∩ OV) → (S U OV)]
(que se lê: o fazer transformador em que o Sujeito semiótico conjunto do seu Objeto de valor,
passa a disjunto com o mesmo)
É a partir das estruturas paradigmáticas e sintagmáticas que o discurso narrativo pode
ser representado como recoberto de uma rede relativamente densa de papéis actanciais,
manifestados por atores, de maneira ora disjunta ora conjunta.
Nas disjunções sintagmáticas, se for atribuído ao verbo-predicado do enunciado o
estatuto de função, será possível definir o enunciado como uma relação entre os actantes que
o constituem em duas espécies de enunciados narrativos. De acordo com Greimas (1977:180),
pode-se observar o seguinte esquema:
F F Sujeito Objeto Destinador Objeto Destinatário
F (S →O)
(que se lê: a função de transformação se dá quando o Sujeito semiótico conquista o
Objeto)
F (D1 → O → D2)
(que se lê: a função de transformação se dá quando o Destinador destina o Objeto ao
destinatário)
37
As disjunções paradigmáticas podem pressupor a existência de uma rede relacional do
tipo paradigmática, subentendida aos actantes, da mesma forma que eles aparecem nos
enunciados narrativos.
Conforme explicam Greimas & Courtés (1979, p. 434), a sintaxe narrativa é “[...] uma
instância do percurso gerativo obtida, com o auxílio de um conjunto de procedimentos
(formuláveis em regras), a partir da sintaxe fundamental”.
A sintaxe narrativa se preocupa com a natureza da relação do sujeito com os valores
investidos nos objetos. Nela, esses valores são reais, isto é, são assumidos pelo sujeito
semiótico.
Na narrativa, o programa narrativo dos actantes, pode ser demonstrado através da
representação gráfica seguinte:
Dário _______________________________________________ Dor Adjuvante ________________________________________________ OV1 S1 Oponente
Que deve ser lido assim: O sujeito semiótico, para alcançar seu objeto de valor, realiza um percurso constituído
por vários sintagmas narrativos (ou a estrutura mínima da sintaxe narrativa) considerando a
ordem dos acontecimentos. Nele são eliminados o adjuvante e o oponente. O percurso
narrativo pode ser visualizado por meio do seguinte gráfico:
S1 OV4
S1 OV1
OV2
OV3
S1
S1
38
Um programa narrativo ou a organização narrativa de um texto pode ser definido
como um enunciado do fazer que rege um enunciado de estado. Nele, por conseguinte, pode
ocorrer sucessão de estados e transformações.
A semântica narrativa é a instância do percurso gerativo da significação que se
preocupa com a atualização dos valores modais do Sujeito semiótico. Estes valores são
elementos semânticos considerados fundamentais para que o sujeito possa realizar a
performance que o ajudará a atingir o estado de junção.
A modalização semiótica, ou o modo como o sujeito se instaura, na narrativa, daí o
nome adotado, atinge tanto o enunciado de estado (ser) quanto o enunciado de transformação
(fazer). As relações do sujeito com os valores inseridos nos objetos aparecem notificados pela
modalização do ser e/ou do fazer. Na primeira modalização, o sujeito possui uma qualidade
ou competência para agir; enquanto, a segunda, caracteriza-se pela ação ou performance do
sujeito em busca do valor. As modalidades do ser e do fazer são regidas pelos mesmos
predicados: o querer, o dever, o poder e o saber. A esse respeito, a explicação seguinte é
elucidativa:
Há modalidade quando dois predicados estão numa relação tal que um rege o outro. [...] A obtenção dos valores modais é a primeira fase (=qualificação) do percurso narrativo do Sujeito que lhe vai permitir agir. Para realizar algo, ele precisa querer (ou dever), poder e saber fazer. O tipo de enunciado modalizado permite distinguir duas grandes classes de predicados modais: do ser e do fazer (querer-ser e querer-fazer etc.). (BATISTA, 2001, p. 151-152)
De acordo com a teoria semiótica, para um sujeito realizar uma performance é
necessário que tenha, anteriormente, uma competência para tal. A competência é da ordem do
ser, ao passo que, a performance é do âmbito do fazer. Sendo assim, dotado de competência, o
sujeito torna-se capaz de executar ações que possibilitam a mudança de um estado para outro,
no programa narrativo.
Na narrativa, a organização modal da competência do sujeito se dá através das
modalidades virtualizantes (indicadoras do desejo do sujeito semiótico), atualizantes
(qualificadoras da capacidade do sujeito) e realizantes (correspondem a performance do
sujeito). Greimas & Courtés (1979, p. 283), levando em consideração o percurso tensivo que
conduz à realização, agruparam as modalidades conforme mostra o quadro a seguir:
39
Modalidades virtualizantes atualizantes Realizantes
exotáxicas dever poder Fazer endotáxicas querer saber Ser
São denominadas exotáxicas as modalidades capazes de entrar em relações
translativas, isto é, de ligar enunciados possuidores de sujeitos distintos e as endotáxicas são
consideradas modalidades simples por ligarem sujeitos idênticos ou em sincretismo.
A organização de uma narrativa obedece a uma seqüência de quatro percursos: a
manipulação, a competência, o desempenho e a sanção.
Sobre o percurso da manipulação, Fiorin (2006, p. 29) afirma “que um sujeito age
sobre o outro para levá-lo a querer e/ou dever fazer alguma coisa”, isto é, o sujeito
manipulador, dotado de competência para tal, faz o sujeito manipulado querer e/ou dever
fazer algo. A manipulação pode acontecer por meio de um pedido, súplica, conselho ou
imposição existindo quatro tipos: tentação, intimidação, sedução e provocação.
Na tentação, os valores são positivos, o manipulador usa o seu poder para fazer o
manipulado querer-fazer alguma coisa. Exemplo: “ Se você passar no vestibular, ganhará um
carro”.
Já na intimidação, os valores são negativos, o manipulador utiliza seu poder para fazer
o manipulado dever-fazer algo. Exemplo: “ Se você não passar no vestibular, não ganhará o
carro que lhe prometi”.
Na sedução, o sujeito que manipula tem uma imagem positiva do manipulado.
Portanto, usa o seu saber para fazer o manipulado querer-fazer alguma coisa. Ex.:
“Comprarei um carro para você, porque você é inteligente e é capaz de passar no vestibular”.
Já na provocação, os valores são negativos, o que manipula tem uma imagem negativa
do manipulado. Por isso, utiliza o seu saber para fazer o manipulado dever-fazer algo.
Exemplo: “Comprarei um carro para você, mas eu sei que, como você não gosta de estudar,
não conseguirá passar no vestibular”.
No percurso da competência, o sujeito, dotado de um saber e/ou poder-fazer, realiza a
transformação da narrativa.
Para Greimas & Courtés (1979, p. 63), quando se inscreve a competência no processo
geral da significação, deve-se entendê-la como uma instância situada na enunciação, onde “O
sujeito da enunciação modaliza as estruturas semióticas e narrativas, dando-lhes o estatuto do
dever-ser e as assume como um saber-fazer, como processo virtual”.
40
Na fase do desempenho, acontece a mudança de um estado a outro, isto é, a
transformação. Nela, o sujeito operador da transformação e o que entra em conjunção ou
disjunção com o objeto podem ser distintos ou idênticos.
A fase da sanção é a instância em que se dá o desfecho da narrativa, onde se verifica se
houve ou não um bom desempenho do sujeito semiótico. Nela, os segredos são revelados, os
prêmios e castigos são distribuídos.
Sobre a sanção, Greimas & Courtés (1979, p. 389) explicam que:
[...] é uma figura discursiva correlata à manipulação, a qual, uma vez inscrita no esquema narrativo, se localiza nas duas dimensões, na pragmática e na cognitiva. Enquanto exercida pelo Destinador final, pressupõe nele um absoluto de competência.
2.1.3.2.3 Estruturas discursivas
As estruturas discursivas ou discursivização, também chamada pelo nome singular
discursivização, é a instância do percurso gerativo da significação, na qual as formas mais
abstratas do nível narrativo se revestem de termos que lhes dão concretude; por isso é
considerado, pela semiótica, o patamar mais superficial do discurso, ou seja, o mais próximo
da manifestação textual que representa:
[...] as escolhas que um Sujeito discursivo faz para expressão das estruturas narrativas. A narrativa chega até a voz, sendo organizada e assumida por um Sujeito enunciador que, tendo em vista o universo de discurso abordado e o Sujeito enunciatário em questão, escolhe o(s) tema(s), as figuras, os atores, o tempo e o espaço nela envolvidos, ou com ela relacionados e os apresenta a um Sujeito enunciatário que a escuta e interpreta. (BATISTA, 2001, p. 152)
Da mesma forma que as outras estruturas, as discursivas compreendem uma sintaxe e
uma semântica.
Na sintaxe discursiva, se estabelecem as relações intersubjetivas entre o sujeito
enunciador e o seu enunciatário, bem como, as relações de espaço e tempo da enunciação e
enunciado. O sujeito enunciador elabora seu discurso com o intuito de persuadir seu
enunciatário, projetando-lhe um efeito de verdade. A finalidade última do ato comunicativo:
41
[...] não é informar, mas persuadir o outro a aceitar o que está sendo comunicado. Por isso, o ato de comunicação é um complexo jogo de manipulação com vistas a fazer o enunciatário crer naquilo que se transmite. Por isso, ele é sempre persuasão. (FIORIN, 2006, p. 75)
Consoante Barros (1999, p. 54), a enunciação caracteriza-se como “a instância de
mediação entre as estruturas narrativas e discursivas. Pode, nas diversas concepções
lingüísticas e semióticas, ser reconstruída a partir sobretudo das “marcas” que espalha no
discurso”.
Benveniste (2006) foi o primeiro a se preocupar com a enunciação, quando se referiu a
um “eu” que, sendo capaz de se colocar no discurso, cria a condição de subjetividade.
Considera que tempo e pessoa são duas categorias fundamentais do discurso e é através
dessas categorias que se pode ver a experiência subjetiva dos sujeitos que se colocam e se
situam na e pela linguagem.
Na categoria de pessoa, o homem se coloca em sua subjetividade enquanto um “eu”
por oposição a “tu” e “ele”, sendo este comportamento instintivo, uma vez que a linguagem
está na natureza do homem. Em toda língua e a todo momento, aquele que fala se apropria
desse “eu”, que posto no discurso, introduz a presença da pessoa sem a qual nenhuma
linguagem é possível. Cada vez que o pronome “eu” é assumido pelo enunciador torna-se
único e sem igual, não podendo ser repetido duas vezes da mesma maneira. Sendo assim,
sempre que este pronome aparece no discurso por oposição a “tu”, uma nova experiência se
instaura e determina a possibilidade do discurso. Como exemplo, pode-se pensar no professor
de língua portuguesa, como sujeito enunciador que, tendo quatro salas de aula de 5ª série e o
mesmo conteúdo: substantivo, para explicar aos seus alunos (sujeitos enunciatários), passará
por uma experiência inédita em cada uma dessas turmas; pois mesmo que o sujeito
enunciador seja o mesmo e o conteúdo a ser explicado também, os sujeitos enunciatários são
outros, num tempo diferente e em situações mais diversas possíveis3.
Então, pode-se afirmar que o pronome recebe sua realidade e sua substância somente
no discurso e uma vez fora dele é apenas uma forma vazia, elemento de um paradigma.
A categoria de tempo apresenta-se como: tempo físico que é linear, infinito, um
contínuo uniforme e tempo crônico, dos acontecimentos (do calendário). O último é objetivo e
apresenta três divisões que são caracterizadas como: estativa (se dá a partir de um
acontecimento), diretiva (divisão a partir da oposição antes/depois) e mensurativa (divisão a
3O exemplo citado foi vivenciado pela autora, quando lecionou na Esc. Est. de 1º e 2º Graus Dom. Fernando Gomes em Patos.
42
partir da recorrência dos fenômenos cósmicos).
O fundamento da vida das sociedades são características do tempo crônico. Sua
organização social é intemporal devido a suas características de permanência e fixidez. É
estranho ao tempo vivido e não coincide com ele. Pelo fato de ser objetivo, propõe medidas e
divisões em que se alojam os acontecimentos, porém não coincide com o tempo próprio da
experiência humana.
O tempo lingüístico está relacionado com o da fala. Define-se e se organiza em função
do discurso, estando centrado no presente da instância da fala. Este presente, de acordo com o
autor, é reinventado cada vez que um homem fala porque é literalmente um momento novo,
ainda não vivido. Sendo o fundamento das oposições da língua, projeta-se como uma linha de
separação entre o que não é mais presente e o que ainda vai sê-lo.
A temporalidade lingüística é centrada no hoje, deslocando-se para frente e para trás à
distância de dois dias: para trás, ontem e anteontem e para frente, amanhã e depois de amanhã.
O tempo lingüístico funciona como fator de intersubjetividade. Tendo suas formas, seus
termos e sua dimensão, a intersubjetividade reflete na língua a experiência fundamental entre
o falante e seu ouvinte. Desta forma, a comunicação lingüística só é possível quando
assumida pelo homem que fala, sob a condição de intersubjetividade.
Benveniste considera, ainda, que as descrições lingüísticas consagram um lugar
importante no “emprego das formas”, fixando as condições sintáticas. As condições de
emprego das formas não são idênticas às condições de emprego da língua. Esta diferença
implica outra maneira de ver, de escrever e de interpretar. O emprego da língua é concebido
como um mecanismo total e constante que, de uma maneira ou de outra, afeta a língua inteira.
A enunciação é o funcionamento da língua por um ato individual de utilização. Cada
vez que se fala, produz-se um discurso. A condição específica da enunciação é o enunciado. A
relação do locutor com a língua determina os caracteres lingüísticos da enunciação que, ao
produzir um ato de fala, mobiliza a língua por sua conta. Nela, consideram-se, o próprio ato,
as situações em que ele se realiza, assim como os instrumentos de sua realização. Sendo vista
como um processo, deve ser estudada sob diversos aspectos. O mais imediato e direto é a
realização vocal da língua; outro é o mecanismo desta produção. A semantização da língua
está no centro deste aspecto da enunciação e conduz à teoria do signo e à análise da
significância.
Antes da enunciação, a língua não é senão uma possibilidade. Enquanto realização
individual, a enunciação, em relação à língua, é um processo de apropriação onde o locutor se
apropria do seu aparelho formal e enuncia sua posição como tal. Ao se declarar locutor,
43
assume a língua e implanta o outro diante de si. Toda enunciação é, explicita ou
implicitamente, uma alocução. Na enunciação, a língua é empregada para a expressão de uma
certa relação com o mundo. O locutor se apropria e mobiliza a língua pela necessidade de
referir pelo discurso e para o outro a possibilidade de co-referir identicamente, no consenso
pragmático que faz de cada locutor um co-locutor. Sua presença, na enunciação, faz com que
cada instância de discurso constitua um centro de referência interna.
Em geral, o que caracteriza a enunciação é a acentuação da relação discursiva com o
parceiro, seja este real ou imaginário, individual ou coletivo. É esta característica que
denomina o quadro figurativo da enunciação. Como forma de discurso, a enunciação coloca
frente a frente duas “figuras” igualmente necessárias, uma de origem e outra, de fim.
O caso da linguagem usada no livre e fortuito intercurso social merece especial
atenção. O sentido de cada enunciado não pode estar ligado ao comportamento do locutor ou
do ouvinte, com a intenção do que estão fazendo. Cada enunciação é um ato que serve ao
propósito direto de unir o ouvinte ao locutor por algum laço de sentimento, social ou de outro
tipo. Uma vez mais, a linguagem, nesta função, manifesta-se, não como instrumento de
reflexo, mas como um modo de ação. Muitos desdobramentos deveriam ser estudados no
contexto da enunciação. Teria-se que considerar as alterações lexicais que a enunciação
determina, a fraseologia, que é a marca freqüente, talvez necessária, da “oralidade”. Seria
preciso também distinguir a enunciação falada da enunciação escrita. Nesta se situam dois
planos: o que escreve se enuncia ao escrever e, no interior de sua escrita, faz os indivíduos se
enunciarem.
Bakhtin, na primeira metade do século XX, expõe a necessidade de uma abordagem
marxista da filosofia da linguagem e observa os fundamentos da semiologia moderna.
Concorda com o pensamento de Saussure, quando este concebe a língua como um fato social,
cuja existência se fundamenta na necessidade de comunicação, ao mesmo tempo em que
discorda do lingüista, quando ele considera a língua como um objeto abstrato ideal e a
consagra num sistema sincrônico, rejeitando suas manifestações, ou seja, a fala. Uma vez que,
aquele valoriza a fala, a enunciação afirma que sua natureza é social e não individual. Para
ele, todo signo é ideológico, dinâmico, vivo e considera a palavra como sendo o signo
ideológico por excelência. Dessa forma, será sempre o indicador mais sensível de todas as
transformações sociais. Não critica Saussure em nome da teoria marxista, mas no que diz
respeito à falha que encontra no interior do seu próprio sistema, ou seja, no sistema de
oposição língua/fala, sincronia/diacronia. Define a língua como expressão das relações e lutas
sociais, haja vista que veicula e sofre o efeito desta luta e serve, ao mesmo tempo, de
44
instrumento e material. Considera que tudo que é ideológico, possui um significado e remete
a algo situado fora de si mesmo e, por isso, é signo. Sendo assim, possui um valor semiótico.
Defende a tese de que a lógica da comunicação e da interação semiótica de um grupo social é
a lógica da consciência e que esta, por seu turno, é individual, apenas um inquilino do edifício
social dos signos ideológicos.
Concebe que a psicologia do corpo social é exteriorizada na palavra, no gesto, no ato,
sendo justamente o meio gerador dos atos de fala de toda espécie, manifestando-se,
essencialmente, nos mais diversos aspectos da enunciação sob a forma de diferentes modos de
discurso, sejam os interiores ou exteriores. Estas manifestações verbais estão ligadas aos
demais tipos de manifestação e de interação de natureza semiótica, à mímica, à linguagem
gestual, aos gestos condicionados. Entende que, assim como o problema da enunciação e do
diálogo, o dos gêneros lingüísticos também se apóia na observação de que cada época e cada
grupo têm seu repertório de formas de discursos na comunicação sócio ideológica. A
classificação das formas de enunciação deve se apoiar sobre uma classificação das formas da
comunicação verbal, Isto pode ser verificado consoante elucidação a seguir:
[...] as formas sintáticas são as que mais se aproximam das formas concretas da enunciação, dos atos de fala. As formas sintáticas são mais concretas que as formas morfológicas ou fonéticas e são mais estreitamente ligadas às condições reais da fala. É por isso que, na nossa reflexão sobre os fatos vivos da língua, demos justamente prioridade às formas sintáticas sobre as morfológicas ou fonéticas. (BAKHTIN, 2004, p. 139-140)
Conforme Foucault (2000), o enunciado é uma função que cruza um domínio de
estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, conteúdos concretos, no
tempo e no espaço.
Um enunciado existe fora de qualquer possibilidade de reaparecimento e a relação que
mantém com o que enuncia não é idêntica a um conjunto de regras de utilização. Trata-se de
uma relação singular: se, nessas condições, uma formulação idêntica reaparece - as mesmas
palavras não são utilizadas, basicamente os mesmos nomes, em suma, a mesma frase, mas não
forçosamente o mesmo enunciado. Um enunciado está ligado a um “referencial” que é
constituído de leis de possibilidade; de regras de existência para os objetos que aí se
encontram nomeados, designados ou descritos, para as relações que aí se encontram afirmadas
ou negadas. A descrição do nível enunciativo pode ser feita pela análise das relações entre o
enunciado e os espaços de diferenciação, em que ele mesmo faz aparecer às diferenças.
45
O sujeito do enunciado é um lugar determinado vazio que pode ser efetivamente
ocupado por indivíduos diferentes, é variável o bastante para poder continuar, idêntico a si
mesmo, através de várias frases, bem como para se modificar a cada uma.
O enunciado é sempre apresentado através de uma espessura material. Essa
materialidade repetível que caracteriza a função enunciativa faz aparecer o enunciado como
um objeto específico e paradoxal, mas também como um objeto entre os que os homens
produzem, manipulam, utilizam, transformam, trocam, combinam, decompõem e recompõem,
eventualmente, destroem. Assim, o enunciado circula, serve, esquiva-se, permite ou impede a
realização de um desejo, é dócil ou rebelde a interesses, entra na ordem das contestações e das
lutas, torna-se tema de apropriação ou de rivalidade. Para Foucault (2000, p. 136), o que se
chama “prática discursiva” é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre
determinadas no tempo e no espaço que definiram, em uma dada época e para uma
determinada área social, econômica, geográfica, ou lingüística, as condições de exercícios da
função enunciativa.
Consoante Greimas & Courtés (1979, p. 145-146), a enunciação pode ser definida de
duas maneiras: “seja como uma estrutura não-lingüística (referencial) que subtende a
comunicação lingüística seja como uma instância lingüística, logicamente pressuposta pela
própria existência do enunciado (que dela contém traços e marcas)”.
Referem-se à primeira definição como situação de comunicação de contexto
psicossociológico da produção dos enunciados ou contexto referencial; no segundo,
consideram o enunciado como a instância de mediação que assegura a colocação das
virtualidades da língua, no enunciado-discurso. Em concordância com a primeira, conceituam
a enunciação como uma tendência à aproximação do ato de linguagem, considerando sua
singularidade; quanto à segunda, concebem-na como um componente da teoria da linguagem,
isto é: como momento possibilitador da passagem entre a competência e a performance. Os
teóricos preferem conceber, ainda, o mecanismo da enunciação como:
[...] intencionalidade que interpretamos como uma “visada de mundo”, como uma relação orientada, transitiva, graças á qual o sujeito constrói o mundo enquanto objeto ao mesmo tempo que se constrói a si próprio. Dir-se-á então, para dar-lhe formulação canônica, que a enunciação é um enunciado cuja função-predicado é denominada “intencionalidade”, e cujo objeto é o enunciado-discurso. (GREIMAS & COURTÉS, 1979, p. 147)
A enunciação enquanto ato de linguagem produz a semiose. Esta deve ser entendida
como uma operação instauradora de pressuposição recíproca entre o significante e o
46
significado, que produz signos, tendo, portanto, uma função semiótica, uma vez que gera
significação.
Para Greimas & Courtés (1979, p. 147-148), a confusão entre a enunciação, enquanto
instância da enunciação e a enunciação enunciada ou narrada “não representam de maneira
nenhuma o sujeito, o espaço e o tempo da enunciação. A enunciação enunciada deve ser
considerada como uma subclasse de enunciados que se fazem passar como sendo a
metalinguagem descritiva (mas não científica) da enunciação”. Isto significa dizer que a
enunciação enunciada é apenas uma simulação, do fazer enunciativo do eu/aqui/agora ao se
encontrarem dentro do discurso enunciado.
A enunciação compreende um fazer persuasivo e um interpretativo. É considerada,
pelos semioticistas, como um percurso que tem início na mente do enunciador e se conclui na
mente no enunciatário. Este acontece em várias etapas, desde a percepção dos objetos do
mundo natural pelo enunciador até a sua implantação na mente do enunciatário.
Pottier (1992, p. 52-53) e Pais (1993, p. 577-578) utilizaram uma curva senoidal para
representar o processo da enunciação onde se alternam o percurso gerativo da enunciação do
emissor (sujeito enunciador) e o percurso gerativo da enunciação do receptor (sujeito
enunciatário). Veja-se a seguir:
47
De acordo com este modelo, a enunciação é construída a partir de um trajeto que se
inicia na mente do sujeito enunciador, por meio de seu fazer persuasivo, e se conclui na mente
do sujeito enunciatário, através de seu fazer interpretativo. Este trajeto é denominado pela
semiótica, ciência que estuda a significação do signo em discurso, de percurso gerativo da
significação.
O percurso da enunciação de codificação ou fazer persuasivo compreende as seguintes
etapas: percepção, conceptualização, semiologização, semiotização, leximização,
actualização, semiose e texto.
A percepção é a etapa na qual o enunciador percebe os objetos do mundo natural. A
conceptualização é a fase em que o enunciador, tendo percebido os objetos que o rodeiam,
atribui-lhes um conceito. Nesta, o conceptus é preparado e também os atributos semânticos: as
latências, traços semânticos que estão na imaginação; as saliências, traços semânticos que são
percebidos na semiótica natural e as pregnâncias, traços semânticos que são anexados ao
discurso. A semiologização é o momento em que se passa do conceito às formas lingüísticas.
A semiotização consiste na ação de um Sujeito semiótico em busca de seu Objeto de valor.
Nela, ocorre a passagem do nível cognitivo ao semiótico. Esta passagem se dá através da
leximização que é a escolha das lexias utilizadas na atualização em discurso. O procedimento
seguinte é a semiose, que consiste na produção, acumulação e transformação da função
semiótica, também chamada de significação. Neste momento, o percurso atinge seu ápice com
a produção do texto do sujeito enunciador que é percebido pelo enunciatário. É dito que
existem, no mínimo, dois textos: um produzido pelo enunciador e outro pelo enunciatário. E
que, por mais fiel que o enunciatário seja, não consegue reproduzir literalmente o mesmo
texto do enunciador. Assim, no percurso da enunciação serão produzidos tantos textos
interpretativos quantos forem os enunciatários.
O fazer interpretativo segue um sentido contrário, tendo início a partir da percepção do
texto pelo enunciatário. Este vivencia um processo de re-atualização; re-semiotização; re-
semiologização; re-conceptualização, em seguida o enunciador realimenta e auto-regula o seu
sistema conceptual.
Da relação entre fazer persuasivo e fazer interpretativo resulta um processo contínuo
de auto-alimentação e auto-regulação do sistema. Este produz o discurso que por sua vez, o
produz e o modifica continuamente. A modificação do sistema, no entanto, não se dá a longo
prazo, na passagem de uma língua para a outra, mas no discurso. Neutraliza-se, assim, a
diferenciação entre diacronia e sincronia da lingüística estruturalista, criando-se o que a
semiótica denominou de pancronia.
48
Pais (1995, p. 136-137) compreende que o discurso, inicialmente, é:
[...] tomado como único lugar em que pode dar-se a semiose, ou seja, a produção da significação [...] a noção de discurso, na semiótica e na lingüística atuais, ultrapassa amplamente os limites do texto como uma coisa enunciada. Desenvolve-se um discurso num contexto sócio-cultural, que o envolve e que se desloca no eixo do tempo, o tempo da História.
O problema do tempo do discurso é complexo, uma vez que se desdobra em: tempo do
discurso do emissor e do receptor. Estes não são jamais idênticos, nem mesmo no caso do
diálogo interior. Assim, no caso do discurso coloquial, ou seja, na linguagem oral, é oportuno
considerar o discurso do emissor equivalente ao tempo do discurso do receptor. Existe
intersecção entre o tempo do emissor (T’E) e o tempo do receptor (T’R) ou: (T’) equivalente a
(T’’). Entretanto, já não se dá o mesmo na comunicação epistolar, em que o tempo do
discurso do emissor não está em intersecção com o tempo do discurso do receptor (T’ ≠ do
T’’). O sujeito emissor (S’) necessita, em seu processo de enunciação, de um sujeito receptor
(S”) e não podendo dispor dele (na comunicação epistolar), instaura, no momento da escrita,
um sujeito receptor virtual (*S”). Isto pode ser esclarecido na citação a seguir:
Reciprocamente, recebendo a carta, o sujeito receptor instaura, ao lê-la, um sujeito emissor virtual, *S’. *S’’ e *S’ são, na verdade, hipóteses formuladas pelos interlocutores, necessárias à comunicação e que estão presentes, também, como é obvio, na comunicação oral direta. (PAIS, 1995, p. 138)
As relações entre o tempo do discurso (T’ e/ou T’’) e o tempo da história (T*) são as
mais diversas, pois não se trata de tempo cronológico, em sentido restrito, mas, sobretudo, do
tempo tal como é visto pelos interlocutores.
O mesmo se dá com referência as múltiplas relações espaciais que se estabelecem
entre o contexto sócio-cultural, o discurso, o(s) texto(s) e os interlocutores. A questão é
igualmente complexa. Pode-se designar o espaço definido pelo contexto sócio-cultural, como
(E). Na linguagem oral, considera-se que o espaço do contexto sócio-cultural (E) contém o
espaço em que se dá a enunciação do (E’) e o espaço em que realiza a decodificação (E’’)
tem-se, então, que: (E) contém (E’) e (E) contém (E’’), e ainda, o espaço da codificação (E’)
pode ser considerado como equivalente ao da decodificação (E’’). Como ocorria em relação
ao tempo, a percepção do espaço também é diversa entre os interlocutores. Assim, são
variáveis as relações entre os espaços de enunciação (E’) e (E”), de um lado, e o espaço
49
inscrito na história (E*), de outro. Contudo, é importante assinalar que, do ponto de vista
semiótico e lingüístico, assim como acontece com o tempo, não se trata do espaço “objetivo”,
mas da visão de um espaço construído.
O discurso compreende um duplo processo de enunciação: a produção de um texto
pelo emissor, na codificação que é enunciação do emissor e a produção de um texto pelo
receptor, na decodificação que é a enunciação do receptor, respectivamente.
De acordo com Fiorin (2006, p. 56), a enunciação define-se como a instância de um
eu-aqui-agora. O eu é instaurado no ato de dizer eu: eu é quem diz eu.
Para convencer o enunciatário, o sujeito enunciador faz uso de meios discursivos, ou
seja, utiliza-se de procedimentos argumentativos, que são tidos como mecanismos de projeção
no enunciado: a debreagem e a embreagem.
Pode-se compreender por debreagem a operação pela qual o sujeito é expulso da
instância da enunciação por meio da negação de pessoa, espaço e tempo.
Fiorin (2006, p.58) classifica a debreagem como: enunciativa e enunciva. Na primeira,
considera a projeção, no enunciado, de um eu-aqui-agora; portanto, a instauração de
actante/espaço/tempo, produz como efeito de sentido a subjetividade. Na segunda, considera a
projeção, no enunciado, de um ele-alhures-então e, por conseguinte, a instauração de
actante/espaço/tempo que gera como efeito de sentido a objetividade.
Na debreagem, as três categorias pragmáticas: actancial, espacial e temporal podem
ser visualizadas de acordo com o quadro seguinte:
eu Debreagem actancial Não-eu (=ele)
Enunciativa aqui Debreagem espacial Não-aqui (=alhures) Enunciva agora Debreagem temporal Não-agora (=então)
Greimas & Courtés (1979, p. 95) definem debreagem da seguinte forma:
Pode-se tentar definir debreagem como a operação pela qual a instância da enunciação disjungue e projeta para fora de si, no ato de linguagem e com vistas à manifestação, certos termos ligados à estrutura de base, para assim constituir os elementos que servem de fundação ao enunciado-discurso.
Por embreagem, entende-se a tentativa de retorno à enunciação. A embreagem, do
mesmo modo que a debreagem, decompõe-se em embreagem actancial, temporal e espacial.
50
Greimas & Courtés (1979, p. 140) explicam que: “[...] denomina-se embreagem o
efeito de retorno à enunciação, produzido pela suspensão da oposição entre certos termos da
categoria da pessoa e/ou do espaço e/ou tempo, bem como pela denegação da instância do
enunciado”.
Os autores citados concebem que a embreagem se apresenta, ao mesmo tempo, como
algo visado pela instância da enunciação e como fracasso, uma vez que a volta real a
enunciação é impossível. Toda embreagem pressupõe uma operação de debreagem que lhe é,
logicamente, anterior. Entendida como o mecanismo de projeção da enunciação no enunciado,
onde ocorre à suspensão das oposições de pessoa, espaço e tempo, a embreagem gera, nele, o
efeito de sentido denominado de subjetividade. As explicações anteriores podem ser
observadas através do quadro seguinte:
Ele Embreagem actancial Não-ele (=eu)
Enunciva Alhures Embreagem espacial Não-alhures (=aqui) Enunciativa
Então Embreagem temporal Não-então (=agora)
Eis o que explica Batista (2001, p. 152), sobre esses dois mecanismos:
A aproximação ou distanciamento dá ensejo à distinção entre procedimentos básicos: a embreagem e a debreagem enunciativas. A embreagem considera a proximidade do Sujeito, lugar e tempo, em relação à enunciação e ao enunciado. [...] Quanto à debreagem, define-se como o distanciamento do Sujeito, do lugar e do tempo da enunciação. Corresponde ao: não-eu; não-aqui e não-agora.
A semântica discursiva é o nível da narrativa que reveste e concretiza as mudanças
dos percursos narrativos em percursos temáticos através das figuras. É nesse patamar que o
sujeito da enunciação, beneficia-se da figurativização e da tematização para estabelecer a
coerência semântica do discurso.
Na semântica discursiva, a figurativização e a tematização são evidenciadas como
procedimentos que competem à análise das estruturas discursivas. A figurativização se
encarrega de transformar as figuras do plano do conteúdo em figuras do plano da expressão.
Estas especificam e particularizam o discurso e chegam a classificar a competência do sujeito
enunciador, enquanto que, na tematização, estão inseridos os valores mais abstratos investidos
51
no discurso: os valores são gerais e não podem ser atribuídos a nenhum sujeito. O termo valor
é percebido em duas classes:
[...] valores descritivos (objetos consumíveis e entesouráveis, prazeres e “estados de alma”, etc.) e valores modais (querer, poder, dever, saber-ser/fazer) [...] Os valores descritos podem ser divididos, por sua vez, em valores subjetivos (ou “essenciais”, freqüentemente conjungidos ao sujeito nas línguas naturais pelo copulativo “ser”) e valores objetivos (ou “acidentais”, freqüentemente atribuídos ao sujeito com o auxílio do verbo “ter” ou de seus parassinônimos). (GREIMAS & COURTÉS,1979, p. 483)
A oposição entre temas e figuras aponta para a de abstrato/concreto.
Pode-se entender por figura algo que faz referência ao mundo natural ou ao mundo
construído pela ficção: casa, flor, boneca. Já por tema, entende-se como um investimento
semântico que organiza, categoriza e ordena o mundo natural ou construído: lar, aroma,
infância.
Os textos podem ser classificados como figurativos ou temáticos, dependendo do grau
de solidez dos elementos semânticos utilizados para revestirem as narrativas. Um texto é
figurativo quando construído predominantemente de figuras, ao passo que é denominado
temático quando existe, nele, uma predominância de temas. O figurativo é um simulacro do
mundo natural, uma vez que descreve ou representa a realidade, enquanto que, o temático tem
por objetivo explicá-la.
É por meio da semântica discursiva que um sujeito semiótico entra em conjunção ou
em disjunção com seu objeto de valor. De acordo com Batista (2001, p. 154), pode-se concluir
que “A discursivização somente acontece a propósito de uma narrativa anterior que determina
a ideologia imanente e a narrativa é direcionada pela estrutura fundamental que a rege”.
52
3 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CORPUS
3.1 PERCURSO HISTÓRICO DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
A história da música caminha com a história da humanidade, uma vez que está
presente na natureza, através dos sons naturais como o sopro do vento, o barulho das ondas do
mar, o canto dos pássaros, o ruído do trovão, a voz humana e dos sons artificiais criados pelo
homem, reproduzidos pelos instrumentos musicais, máquinas, veículos, fogos, entre outros.
Onde quer que se esteja, existe um som, até mesmo, no silêncio, ecoa a voz da consciência, na
mente humana. Conforme o conceber de Cascudo (1962, p. 147) a cantiga brasileira é:
[...] uma cantiga portuguesa, com o texto do Brasil, sem que seja possível apagar os vestígios poderosos dos agentes formadores, em percentagem decisiva, da cultura popular naquela que foi Terra de Santa Cruz pouco sabida, como escrevia Luís de Camões nos tercetos a Pêro de Magalhães Gândavo.
No cenário cultural do Brasil, as manifestações populares são diversas, dada a
concentração de culturas, oriundas das mais longínquas localidades do mundo. Produto da
miscigenação de várias etnias surge a Música Popular Brasileira como expressão artística;
mas também, como manifestação de práticas sociais na construção da identidade nacional.
Através dela, o povo consegue expressar seus valores mais íntimos e os mais coletivos, como
resultado da vida em sociedade.
Pode-se dizer que a origem da música popular brasileira data da época do Brasil
colônia, tendo recebido influência de sons africanos, indígenas, cantos religiosos, cantigas
populares e eruditas européias, entre outros.
Conforme Tinhorão (s.d., p. 5), a música popular surge no Brasil:
[...] nas duas principais cidades coloniais – Salvador e Rio de Janeiro – no correr do século XVIII, quando o ouro de Minas Gerais desloca o eixo econômico do nordeste para o centro-sul, e a coexistência desses dois importantes centros administrativos de áreas econômicas distintas torna possível a formação de uma classe média urbana relativamente diferenciada.
53
Segundo declaração de Mariz (1959, p.151), “A capital da República sempre liderou
as tendências musicais no terreno popular. Embora o Nordeste tenha contribuído com diversas
formas musicais de êxito nacional e internacional, quem persiste em dar a orientação é o Rio
de Janeiro”.
O lundu de origem africana e a modinha portuguesa são ritmos que marcaram a MPB
nos séculos XVIII e XIX. O choro, resultado do lundu, da modinha e da dança de salão,
surgiu na metade do século XIX. O samba surgiu a partir da mistura de batuques, rodas de
capoeira, pagodes e batidas para homenagear os orixás, tendo recebido forte influência da
cultura africana trazida pelos escravos negros que migraram da região Nordeste, mais
precisamente do estado da Bahia. Considerado uma música urbana e internacionalizada,
tornou-se uma expressão peculiar ao Rio de Janeiro. A respeito da origem do samba, tem-se a
seguinte elucidação:
O samba veio substituir o maxixe, embora sem oferecer, coreogràficamente, o mesmo interesse e a variedade de passos e figuras da velha dança carioca. A influência negra é incontestável, mas, ao choque de tôdas as interferências urbanas e modernas, alargadas pela música mecânica, vai ganhando um caráter próprio, aproveitando elementos diversos e estranhos, dinamizados num meio característico, mais rítmico do que melódico. Por isso mesmo, terá sempre uma certa marca internacional, comum a tôdas as manifestações citadinas. (MARIZ, 1959, p. 145-146)
Nas décadas de 20 a 40, há um notável crescimento da MPB, devido à popularização
do rádio brasileiro. Como veículo de comunicação de massa, o rádio desenvolveu papel
importante na divulgação da cultura brasileira, especialmente, no que se refere à música
popular. Conforme opina Albuquerque Jr. (2001, p. 152-153):
O rádio, ao mesmo tempo em que é estimulado a falar do país, revela a sua diversidade cultural. Estações de rádio, como a rádio Nacional no Rio de Janeiro, vão se constituir em pólos de atração para manifestações artísticas e em especial músicas de várias áreas do país. É nelas que nasce, concentra-se e se dispersa o que vai se chamar de Música Popular Brasileira.
Entre os cantores e compositores, destacam-se: Ary Barroso, Lamartine Babo, Dorival
Caymmi, Lupicínio Rodrigues, Noel Rosa, Carmem Miranda, Mário Reis, Francisco Alves e
Luiz Gonzaga, como rei do baião, representando a música nordestina. Nessa mesma época,
nasce o samba-canção com sucessos de Jackson do Pandeiro, Alvarenga e Ranchinho.
Falando de amor, num ritmo mais calmo e orquestrado, fazem sucesso: Dolores Duran,
Antonio Maria, Marlene, Emilinha Borba, Dalva de Oliveira, Ângela Maria e Caubi Peixoto.
54
Em tom sofisticado, aparece no final da década de 50 e fazem sucesso: Elizeth
Cardoso, Tom Jobim e João Gilberto.
Na década de 60, a MPB sofre influência da televisão, que organizou festivais de
música popular, lançando cantores como: Milton Nascimento, Chico Buarque, Caetano
Veloso, Elis Regina e muitos outros. Surge também A jovem guarda, representada por
Roberto Carlos, Erasmo, Nara Leão, Maria Betânia, e Wanderléa.
Entre os anos 80 e 90, surgem vários talentos, como: Gal Costa, Djavan, Fagner, Elba
Ramalho, Zé Ramalho. No rock, destacam-se Rita Lee e Raul Seixas. Na música sertaneja,
com um perfil romântico, marcaram o cenário musical as duplas: Chitãozinho e Xororó, Zezé
de Camargo e Luciano, entre outros.
Ainda nos anos 90, aparece o estilo rap, marcando época, tendo Gabriel, o pensador,
como destaque. Nos primórdios do século XXI, surgem na MPB, com temas direcionados ao
público adolescente, grupos de rock, cujos destaques são: Charles Brown Jr, Detonautas e
Skank.
A música produzida pelo povo ganha importância no momento em que a preocupação
com a cultura nacional e a popular começa a se redefinir nos anos trinta do século XX, a partir
da busca por um novo conceito de belo, onde tanto o som erudito, quanto o popular pudessem
ser vislumbrados, valorizados e divulgados em suas especificidades. É ainda Albuquerque Jr.
(2001, p. 153) quem comenta:
A década de trinta já marcara a busca de um som nacional no campo da música erudita, com os modernistas defendendo a criação de uma teia de significantes representativos da música brasileira em suas especificidades rítmicas, melódicas, timbrais e formais. Uma música que remetesse à identidade nacional e ao seu “povo”, que fosse buscar nas canções populares sua matéria-prima [...]
No repercutir histórico da Música Popular Brasileira, no cenário cultural, sua
importância é inegável. É possível perceber sua relevância como manifestação estética capaz
de traduzir sua diversidade cultural.
3.2 A MÚSICA NO NORDESTE BRASILEIRO
55
O clima seco do sertão do Nordeste, a escassez de chuvas e a falta de políticas públicas
eficazes são responsáveis pela migração de grande massa de homens pobres que partem de
sua terra em busca de trabalho nas regiões do sul e sudeste do país. Na década de quarenta do
século XX, o pernambucano Luiz Gonzaga, nascido na fazenda Caiçara, município de Exu,
considerado o criador da música nordestina, especificamente do ritmo baião, resolveu migrar
para São Paulo e depois para o Rio de Janeiro, precisamente em 1939, tempo em que, para
sobreviver, fez shows em cabarés, dancings e gafieiras. Luiz Gonzaga assume a identidade de
artista regional, representando o “Nordeste”, vestindo a imagem típica de um vaqueiro
nordestino. A teia significativa de sua música é construída e direcionada, particularmente, ao
migrante nordestino. Por isso, segundo Albuquerque Jr. (2001, p. 159-160) sua música
conseguiu:
[...] ao trazer à tona a experiência deste povo pobre, ao buscar a firmar o que considera “uma cultura marginalizada”, mais do que reproduzir uma visão tradicional camponesa, ajuda esta cultura a se atualizar, reafirmar-se em outro nível. [...] O sucesso de suas músicas entre os migrantes participa da própria solidificação de uma identidade regional entre indivíduos, que são igualmente marcados, nestas grandes cidades, por estereótipos como o do “baiano” em São Paulo e do “paraíba” no Rio de Janeiro. [...] A sensação sonora presente traz pedaços de passado, cruza tempos e espaços, fazendo o Nordeste surgir no Sul ou Sul no Nordeste [...]
Entre os sons que emergem de nossas manifestações folclóricas, encontram-se as
cantigas dos canoeiros do Amazonas, cantigas para caçar formigas, cantos dos carregadores
de negros, canto de trabalho, canto para guiar boiada, o Frevo, a Ciranda, o Coco de roda, o
Coco de embolada ou embolada, a Banda de pífanos, cantigas de roda, cantigas de ninar,
trazidos pelos europeus, africanos, oriundos dos índios nativos, entre outras origens. Nesse
intercâmbio cultural, nesse pluriculturalismo, enquadram-se, ainda, as cantorias dos poetas
cantadores repentistas ou violeiros, cuja característica principal é a espontaneidade de
improvisar versos que são cantados e acompanhados pelos sons da viola a partir da inspiração
do cantador para agradar ao gosto do povo. Seu aparecimento data do século XIX, tendo
recebido influência da presença colonizadora dos padres jesuítas. Os primeiros cantadores
foram os paraibanos Ugolino Nunes da Costa (Ugolino do Sabugi), Francisco Romano
Caluete (Romano do Teixeira ou Romano de Mãe d’Água), Inácio da Catingueira, Silvino
Piraná, e os pernambucanos Ferino de Góes Jurema e Manoel Carneiro. Estes foram
considerados como gênios do repente, a elite de cantadores entre os anos de 1850 e 1890. A
56
cantoria é, enfim, um modo de expressão específica do poeta-cantador nordestino. Consoante
concepção de Ramalho (2000, p. 52-53) a cantoria nordestina é, portanto:
[...] a cristalização de um desses modelos da tradição ibérica trazida pelo contingente colonizador. Sua análise promete revelar traços culturais do âmago da alma brasileira. [...] Os Repentistas Nordestinos são porta-vozes dos sentimentos coletivos do meio social que representam. [...] A tradição dos gêneros poéticos e das toadas, e o que se introduziu como novo, são apropriação coletiva. Somente a elaboração do improviso tem a originalidade de cada um.
Este trabalho destaca a cantiga de cego. O cego, ser humano marcado pela deficiência
visual, é geralmente marginalizado pela sociedade. Andarilho, quase sempre conduzido por
alguém, passa a vida a peregrinar pelas ruas, praças, feiras-livres, esquinas e portas de igrejas,
mendigando esmolas às pessoas que por ele passam, para garantir sua sobrevivência e, muitas
vezes, para sustentar a família, fato que aconteceu com as Ceguinhas de Campina Grande-PB.
Sendo a música um meio de comunicação capaz de desencadear sentimentos de
compaixão, alegria, tristeza, paixão, amor, fraternidade, entre outros, é um recurso,
geralmente, utilizado pelo cego-pedinte para interpelar e, de certa forma, sensibilizar e
provocar a caridade humana. O cego cantador, às vezes, utiliza algum instrumento musical,
como por exemplo: sanfona, viola, violino, flauta, cavaquinho, ganzá entre outros. Vale
ressaltar que nem todo cego canta ao pedir esmolas. Alguns nem ao menos falam, apenas
levantam o braço, segurando uma lata, um chapéu ou simplesmente abrem a mão em forma de
concha, esperando receber algum “trocado” – a esmola. As cantigas, geralmente entoadas em
quadras, são caracterizadas como pedidos em forma de súplica por intercessão de algum santo
protetor de sua devoção, cujos temas refletem seu sofrimento. As cantigas de Cego, segundo
Ribeiro (1992, p. 6) revelam:
[...] nosso passado e presente histórico cujas raízes de valores constituem significados inseridos na miséria humana. [...] Constitui-se, também, em um registro histórico e sócio-musical dos representantes de uma classe pouco favorecida do nosso povo: o deficiente visual.
3.3 LEVANTAMENTO DO CORPUS
O levantamento do corpus foi realizado na pesquisa de campo, através de uma
entrevista com as três irmãs cegas: Regina, Maria e Francisca, isto é, As Ceguinhas de
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Campina Grande como são, popularmente, conhecidas, no dia dez de janeiro de dois e sete,
em Campina Grande, no estado da Paraíba.
Maria das Neves Barbosa (Maroca), sessenta e três anos, nasceu em Capim Açu-RN,
casou-se duas vezes, atualmente é viúva e mora com a filha, o genro e os netos; Francisca da
Conceição Barbosa (Indaiá), cinqüenta e sete anos, nasceu em Afonso Bezerra-RN é solteira,
e Regina Barbosa (Poroca), sessenta e quatro anos, nasceu em Solânea-PB é solteira. Estas
duas últimas moram com Valneide, pessoa responsável pelas Ceguinhas, no dia-a-dia e
quando viajam para fazer shows.
Na entrevista concedida à pesquisadora desta dissertação, as Ceguinhas de Campina
Grande fizeram um relato da história de suas vidas, desde o nascimento até aquele momento.
Nasceram numa família pobre e numerosa, composta por seis filhos o pai e a mãe, cujo pai
não tinha trabalho efetivo. Nesta família, apenas elas nasceram portadoras de deficiência
visual. Contaram que começaram a cantar, ainda meninas. Acompanhando seu pai, que tocava
realejo e que as ensinou a tocar ganzá, moraram em muitas cidades do interior do Nordeste
brasileiro, entre elas Patos e Araruna, na Paraíba e Caicó, no Rio Grande do Norte. Depois da
morte de seu pai, a cerca de quarenta e quatro anos, fixaram residência em Campina Grande,
onde residem até esta data.
Aprenderam as letras das cantigas, ao longo do tempo, ouvindo de outros pedintes,
parentes e até com vizinhos. Esclareceram que as canções que cantam são decoradas e que
não compõem letras, nem cantam de improviso. Dentre as cantigas que constituem seu
repertório para shows, encontram-se músicas que falam de amor, pedido de esmolas e cocos
de embolada. Disseram que passaram muitos anos de suas vidas pedindo esmolas para
sobreviver e sustentar seus familiares. Cantavam como forma de atrair os transeuntes e que,
atualmente, não mendigam mais, cantam, somente em shows, quando são entrevistadas e
quando estão tristes, como forma de espantar a tristeza. Para justificar este comportamento
sábio delas, existe um ditado popular que diz “Quem canta, seus males espanta”.
Não sabem ler, nem escrever e nunca freqüentaram escola, pois sua mãe não era de
acordo, por acreditar que as filhas pudessem ser judiadas, na escola, mas também, por não
valorizar o estudo; no entanto, deixaram evidente seu desejo de ter estudado, por acreditarem
que quem tem estudo, vive melhor, justificando que é muito difícil a vida de quem pede.
O drama de suas vidas foi documentado pelo cineasta Roberto Berliner, no filme A
pessoa é para o que nasce. Esclareceram que, depois deste documentário, a realidade de suas
vidas mudou para melhor, uma vez que deixaram de mendigar nas ruas. Chegaram, ainda,
gravar um CD e tiveram suas músicas gravadas, também, por cantores que são destaque na
58
MPB, como Lenine, Lula Queiroga, Paralamas do Sucesso, B Negão, Elba Ramalho, Pato Fu
entre outros; foram reconhecidas pelo Ministro da Cultura, o cantor e compositor Gilberto Gil,
que compôs a música A luz e a escuridão para homenageá-las; receberam medalha de honra
do Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva. Apresentaram-se, ainda no PERCMAN
2000 (Festival Internacional de Percussão), em Salvador-BA e, no Museu da República, no
ano de dois mil e sete, a convite do Professor Bráulio do Nascimento, membro da Comissão
Nacional de Folclore.
No percurso de suas vidas, passaram das ruas para os palcos. Atualmente, as
Ceguinhas brilham na terra, contagiando o público com suas vozes marcadas ao ritmo
vibrante dos ganzás que dão harmonia às canções, como as “três Marias” que cintilam no céu
estrelado.
A fim de coletar os dados da pesquisa de campo, a pesquisadora, previamente, entrou em
contato com as Ceguinhas de Campina Grande-PB, numa visita informal à residência delas,
momento em que deixou uma entrevista agendada. Foram elaboradas trinta e oito questões
(Apêndice A) que serviram como roteiro para realização da entrevista (Apêndice B) que foi
registrada em DVD, câmara fotográfica e gravador de voz. Como registro fotográfico, foram
selecionadas dez imagens do momento da entrevista (Apêndice C). Outras informações
complementares foram obtidas, posteriormente, por meio de conversas telefônicas.
O universo de pesquisa foi constituído por um número significativo de cantorias de ruas
das Ceguinhas de Campina Grande-PB. Dentro da população estatística levantada, foram
selecionadas as seguintes músicas: Noite enluarada, Moço me dê uma esmola, Santa beta
Mocinha e Canção da despedida. Como critério de seleção das cantigas, verificou-se o tema e
a organização da narrativa dos textos.
A cantiga Noite enluarada (NE) narra uma história de amor entre uma linda jovem e
um cantador. Nela, o enunciador-ator, o cantador ou, ainda, o seresteiro é um homem
apaixonado que, desejando reconquistar o amor da mulher amada, faz-lhe uma serenata
próxima à janela de seu quarto. Segundo informaram as Ceguinhas, sua autoria é de Eliseu
Ventania, poeta repentista da cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte.
A cantiga Moço me dê uma esmola (ME) narra o suplício ou lamento de cegos
pedindo esmolas. Num ato interpelativo, o enunciador-ator pede uma esmola a um moço que
por ela passa, rogando por Deus, Nossa Senhora, Jesus Cristo e pela Família Sagrada. Numa
relação de similitude, seu lamento é, também, o lamento de muitos cegos da região nordeste e
de outras tantas localidades do Brasil e do mundo. Sua de autoria é desconhecida.
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A cantiga Santa beta Mocinha (SB) narra o anúncio da morte de Padre Cícero Romão,
de Juazeiro do Norte-CE, através da voz de um enunciador-ator, um devoto, homem de fé,
provavelmente um nordestino, à beata Mocinha. Ao enunciar, deixa evidente sua
religiosidade, sua devoção e fé católica, bem como a de outros nordestinos e romeiros que
veneram a figura do padre, como protetor do povo sofrido. A autoria é do pernambucano
Manezinho Araújo, o rei da embolada (1910-1993), e foi gravada pelo rei do baião, Luiz
Gonzaga.
A cantiga Canção da despedida (CD) retrata, como o próprio nome diz, a despedida
entre dois amantes, mais precisamente, um homem apaixonado que se despede de sua amada,
ao partir para um lugar distante, possivelmente sem volta. Lembra o drama de casais que
residem na região Nordeste, quando o marido sai de sua terra e vai procurar emprego noutras
regiões do país, deixando a mulher amada, a família, suas raízes. Esta canção é de autoria
desconhecida.
O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa, do Centro de
Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba – CEP/CCS para ser avaliado, pois o
mesmo visa trabalhar, diretamente, com seres humanos e, ainda, portadores de deficiência
visual. Depois de ser avaliado pela comissão de ética do referido conselho, obteve aprovação
por unanimidade na 81ª. Reunião Ordinária do Conselho de Ética, realizada no dia 28/03/07,
protocolo nº. 909/07. A autorização de sua posterior publicação está condicionada à
apresentação do resumo do estudo proposto à apreciação do Comitê.
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4 ANÁLISE SEMIÓTICA DAS CANTIGAS
4.1 NOITE ENLUARADA
4.1.1 Segmentação
Sg1 Percepção do desprezo
Sg2 Sossego da mulher amada
Sg3 Revelação do sofrimento
Sg4 Esperança de reconquistá-la
Sg5 Realização da serenata
Sg6 Declaração de amor
Sg7 Pedido para que apareça à janela
Sg8 Falta de atenção da amada
Sg9 Tristeza por não vê-la à janela
Sg10 Súplica por Deus
Sg11 Insistência em dizer que ama
Sg12 Elogio à beleza da amada
Sg13 Canção como prova de amor
4.1.2 Estruturas Narrativas
A narrativa se concentra na presença do eu-enunciador e/ou o cantador, que ama uma
linda jovem, desde seu tempo de criança.
Ao perceber que a mulher amada não pensa mais nele e, por isso, não lhe dar atenção,
resolve fazer-lhe uma serenata na tentativa de convencê-la de que seu amor é verdadeiro e,
enfim, reconquistá-la.
As estruturas narrativas comportam o fazer de três Sujeitos Semióticos: o S1 e o S2 e o
S3. O S2 e o S3, representam um conflito de natureza subjetiva, ou sincretismo semiótico,
61
ocorrido no mesmo ator, a jovem, por almejar Objetos de Valor diferentes, em momentos
distintos da narrativa.
O Sujeito Semiótico 1 (S1) aparece figurativizado pelo eu-enunciador e/ou seresteiro,
tendo por Objeto de Valor principal (OV1 ) a mulher amada, isto é, a linda jovem.
O programa narrativo do S1 é configurado da seguinte forma:
Dário ________________________________________Dor (Amor) Adj.(Deus) ________________________________________OV1 S1 Op. (desprezo) (Mulher amada) (eu-enunciador)
O S1 segue um percurso temático constituído de três momentos: reconquistar,
afirmação do amor e reafirmação do amor, podendo ser observado no diagrama a seguir:
S1 ________________________________________________________________OV1
_______________OV2
_______________OV6
________________OV9
S1 (reconquistá-la) ______________OV3
S1 (esperança de ser feliz) ______________OV7
S1 (pede por Deus) ______________OV10
S1 (realizar serenata) _____________OV4
S1 (desejo de abraçá-la) _____________OV8
S1 (não ser desprezado) ____________OV11
S1 (vê-la na janela) ___________OV5
S1 (Amá-la até morrer)
S1 (viver para amá-la) __________OV12
S1 (declarar amor)
S1 (a beleza da amada)
________OV13 S1 (cantar como prova de
amor)
62
No primeiro momento de seu percurso, impulsionado pelo amor, que funciona como
Destinador, o S1 decide reconquistar a amada (OV2). Para isso, resolve fazer uma serenata
(OV3) na tentativa reconquistá-la. Diante da casa da jovem, o S1 diz que quer vê-la à janela
(OV4) para que possa escutar sua declaração de amor (OV5). Porém a jovem não aparece;
negando-lhe atenção.
No segundo momento do percurso, que corresponde à afirmação do amor, apesar de
sentir o desprezo, que surge como seu Oponente, não desiste de conquistá-la, continua a
serenata e confessa que tem esperança de ser feliz (OV6), que deseja abraçá-la (OV7) e que
pretende amá-la até morrer (OV8).
O terceiro momento, equivalente a reafirmação do amor, o S1, demonstrando sua
tristeza, pede por Deus (OV9), que aparece como Adjuvante, para não ser rejeitado (OV10),
então declara que nasceu para amá-la (OV11), exalta a beleza da amada (OV12) e continua a
cantar para provar o amor (OV13) que sente por ela.
O S1 deseja ser amado pela jovem; sendo, pois, instaurado pela modalidade de um
querer-ser feliz. Pretendendo conquistar o amor da jovem, o S1 é sujeito de um querer-fazer-
crer, que caracteriza seu discurso como sedutor.
O estado inicial do percurso do S1 se caracteriza pela disjunção com seu Objeto de
valor principal que é a mulher amada. O estado de transformação (F) compreende ao fazer do
próprio S1 que, levado pelo amor que sente pela jovem, tenta reconquistá-la, porém não atinge
seu objetivo. O estado final corresponde à permanência da disjunção do S1 com seu Objeto de
valor - mulher amada, pois não consegue reconquistá-la, o que pode ser resumido na frase-
diagrama seguinte:
F = [(S1 U OV) → (S1 U OV)]
A jovem se instaura, na narrativa, por um sincretismo actancial, onde representa dois
Sujeitos Semióticos: o S2 e o S3
O Sujeito Semiótico 2 (S2), figurativizado pela jovem, numa instância pressuposta da
narrativa, apresenta um percurso curto, constituído por apenas um momento. Em seu
programa narrativo, o S2 tem como Objeto de valor o homem amado. Seu Destinador é o
amor.
O programa narrativo do S2 é configurado da seguinte forma:
63
Dário _______________________________________________Dor (Amor)
_______________________________________________OV1 S2 (Homem amado) (jovem)
O percurso do sujeito S2 é, portanto:
O amor S2 _______________________________________________ OV1 (homem amado)
O S2, por amar o cantador, é instaurado como Sujeito Semiótico pela modalização de
um querer-ser feliz. O estado inicial de seu percurso é de conjunção com seu Objeto de Valor,
o homem amado. Quanto ao estado de transformação (F), compreende o fazer do próprio S2
que, levado por uma insatisfação na relação amorosa, deixou de amar. Seu estado final
corresponde à disjunção com seu Objeto de valor. Dito de outra forma, o S2 que, inicialmente
aparece conjunto do seu Objeto de valor, passa a disjunto com o mesmo. O que foi
esclarecido pode ser resumido na frase-diagrama seguinte:
F = [(S2 ∩ OV)→(S2 U OV)]
O Sujeito semiótico 3 (S3), figurativizado, também pela jovem apresenta, num
segundo momento de seu percurso, o sossego como Objeto de Valor. Seu Destinador é a falta
de amor e tem como Oponente a insistência galanteadora do ex-amado.
O programa narrativo do S3 é configurado da seguinte forma:
64
Dário _______________________________________________Dor (Falta de amor) _______________________________________________OV1 S3 Op.(insistência do ex-amado) (Sossego) (jovem)
O percurso do sujeito S3 é, portanto:
O desprezo S3 _______________________________________________ OV1 (Sossego)
O S3, por não amar mais o cantador, instaura-se pela modalidade de um querer-ter
sossego. Seu estado inicial se caracteriza pela conjunção com seu Objeto de Valor, que é o
sossego. O estado de transformação (F) compreende o fazer do próprio S3 que, levado pela
falta de amor, consegue desprezar aquele que a ama. O estado final corresponde à
permanência da conjunção do S3 com seu Objeto de valor. Seu percurso pode ser resumido na
seguinte frase diagrama:
F = [(S3 ∩ OV) → (S3 ∩ OV)]
65
4.1.2.1 Quadro-resumo das estruturas narrativas da cantiga Noite enluarada
Junção
Sujeito
Semiótico
Objeto de
valor
Conjunto Disjunto
Destinador Anti-destinador
Anti-
sujeito
Adjuvante Oponente Modalização
S1
(eu-
enunciador)
Mulher amada + - Amor - -
Deus
Desprezo Querer-fazer-crer
S2
(jovem)
Homem
amado + - Amor - - - - Querer-ser
S3
(jovem)
Sossego + - Falta de
Amor - - -
Insistência
do
ex-amado
Querer-ter
66
4.1.3 Estruturas Discursivas
4.1.3.1 Sintaxe discursiva
Na sintaxe discursiva, as relações intersubjetivas da canção Noite enluarada retratam
uma história de amor, em que o eu-enunciador, projetado como ator principal, o cantador, na
tentativa de reconquistar o amor da mulher amada, faz-lhe uma serenata junto à janela de seu
quarto. A intensidade de seu amor pode ser percebida pela ênfase discursiva dos dois
primeiros versos enunciados, quando inebriado de paixão, ele constrói uma comparação, na
qual, assemelha a beleza da mulher amada à beleza da noite enluarada. O que foi elucidado
pode ser conferido nas expressões discursivas a seguir:
“A noite está enluarada enquanto é bela
Parece aquela que não pensa mais em mim”
A actorialização é figurativizada por eu-enunciador, o cantador, e a jovem ou “meu
amor” (tu/ela/aquela), que se apresenta na narrativa com dois papéis actanciais, por viver um
conflito no interior de sua personagem. Estes atores são os sujeitos do enunciado,
representados pelos papéis temáticos que exercem. Apenas o que enuncia tem voz.
No primeiro momento da narrativa, aparece a fala de um eu-enunciador que se projeta
no enunciado, no presente do indicativo, por oposição a um enunciatário (ela/aquela=mulher
amada, que faz de conta que não está ouvindo e não lhe responde). Os pronomes “ela” e
“aquela” aparecem projetados, no enunciado, como uma terceira pessoa, quando o “tu” não
responde ao desejo do “eu”. Percebe-se, então, um “distanciamento imaginário” entre aquele
que enuncia e a pessoa enunciada, uma vez que se subentende que o enunciador fala para um
alguém, de uma terceira pessoa: ora ela, ora aquela, ou seja, refere-se à mulher amada para
alguém. Esta distância entre os atores da narrativa, está conotada por meio do tema tristeza.
Este distanciamento de pessoas: eu/aquela/ela, caracteriza-se como uma debreagem
enunciativa actancial e está pressuposta na mente daquele que enuncia; pois se encontra triste
por se sentir desprezado. Por isso fala, numa tentativa de explicar o que está acontecendo,
67
fazendo crer a outros enunciatários, provavelmente, companheiros de serenata, não
figurativizados na superfície discursiva; porém, pressupõe-se que estão ali, escutando-o. Tal
apreciação pode ser constatada nos versos a seguir:
“Parece aquela que não pensa mais em mim”
“Adoro ela desde o tempo de criança”
Num segundo momento, aquele que enuncia se projeta, no enunciado, como um “eu”
por oposição a um “tu”, produzindo, agora, uma relação intersubjetiva de proximidade com a
mulher amada. Exemplo: “Tu és a jovem [...]”. Ao projetar-se, no interior do discurso, o eu-
enunciador se aproxima da instância da enunciação, ou seja, está embreado no tempo e no
espaço do enunciado, causando, dessa forma, uma embreagem actancial enunciativa, cujo
efeito de sentido é caracterizado pela subjetividade.
Nos versos seguintes, pode-se perceber que o eu-enunciador apresenta-se na superfície
discursiva como um homem apaixonado, que na tentativa de reconquistar a mulher amada,
faz-lhe uma serenata para declarar seu amor:
“Se estás me ouvindo, meu amor venha à janela
Que a noite é bela pra se ouvir um cantador”
A jovem, por sua vez, apresenta-se como uma mulher que não tem mais interesse pelo
amor do cantador, o que pode ser constatado no verso que segue:
“Dorme em seu leito sossegada [...]”
Por seu turno, o cantador reconhece que não já não é mais amado pela jovem. Seu
sofrimento é revelado através do seguinte verso:
68
“Que a minha sina é sofrer até o fim”
A certeza do desprezo aparece superficializada no início do texto, no verso que segue:
“Parece aquela que não pensa mais em mim”
O eu-enunciador, movido pelo desejo de reconquistar a amada, declara seu amor e a
esperança de, ainda, ser amado pela jovem. Pode-se vislumbrar o que foi explicado através
dos versos que seguem:
“Adoro ela desde o tempo de criança
Tenho esperança de findar-se o meu sofrer
Ainda tenho o prazer de abraçá-la
Hei de amá-la neste mundo até morrer”.
A espacialização está figurativizada por leito, o lugar onde a jovem se encontra
dormindo; janela, local onde o cantador espera que a mulher amada apareça para escutá-lo e
por fim, a calçada, espaço pressuposto, onde o cantador deve estar posicionado para cantar. A
figura espacial leito, além de significar o lugar em que a jovem se encontra descansando,
enquanto o eu-enunciador faz a serenata, conota o sossego da jovem por não querer mais
manter a relação amorosa. A figura janela conota esperança; uma vez que o cantador deseja
que a jovem apareça, para ouvi-lo declarar seu amor. As figuras leito (quarto onde a jovem
está dormindo) e calçada mantêm uma relação de proximidade que evidencia uma embreagem
espacial percebida por meio da expressão discursiva dos versos a seguir:
“Dorme em seu leito, sossegada e nem imagina [...]
Se estás ouvindo, meu amor venha à janela”
69
No entanto, para angústia do cantador, a jovem não aparece na janela, pois não tem
mais interesse por ele. Isso está subtendido no verso que segue:
“Eu fico triste quando canto e não te vejo”
Todavia, desesperado, ele continua a serenata com o objetivo de seduzi-la. Isto está
expresso nos versos a seguir:
“Por Deus eu peço não despreze quem te ama
Meu peito clama, pra te amar foi que eu nasci”
A temporalização está marcada pelo presente em concomitância a um passado e um
futuro. O presente é percebido através das formas verbais: está, é, parece, dorme, adoro,
tenho, estás, venha, fico, vejo, peço, ama, clama, és e possui. Presente é o tempo do canto, é o
agora quando ele está cantando triste, magoado porque ela o despreza. A instância do
presente, portanto, evidencia o tema tristeza para o “eu” e o tema desprezo para o “tu”. Este
presente se opõe a um passado em que o “eu” era uma criança, já a amava e era
correspondido. O passado apresenta-se por meio das seguintes figuras: vi e desde o tempo de
criança. O futuro, onde se configura para o “eu” a esperança de voltar a tê-la, abraçá-la e amá-
la eternamente, aparece marcado pelas figuras: até o fim, esperança de findar-se e até morrer.
Percebe-se, ainda, outras marcas temporais como, por exemplo, os advérbios: ainda, quando e
então.
Essa concomitância temporal explícita, no texto, através das figuras que representam o
tempo, revela a duração ou a trajetória do amor do eu-enunciador que, de acordo com as
marcas discursivas, da narrativa, aparecem para provar que seu sentimento é verdadeiro. Um
amor que teve desde o início, no passado, permanece no presente e é projetado para o futuro,
até sua morte. Logo, caracteriza dois efeitos de sentido denominados de embreagem e
debreagem temporal enunciativas; ou seja, o eu-enunciador está projetado, no enunciado, no
tempo presente, e se distancia dele, quando faz referência a uma anterioridade e uma
posterioridade. A primeira acontece quando o eu-enunciador se projeta, no enunciado, como
aquele que ama, no presente e; a segunda, quando ele se refere ao amor que sente, desde o
70
passado, onde se supõe que era feliz e o projeta para o futuro, na esperança de ser feliz
novamente.
Pode-se constatar tal compreensão, a partir das expressões discursivas dos versos
citados a seguir. Tem-se, no primeiro, a revelação do amor que começa no passado e continua
no presente e; no segundo, ele está projetado para o futuro:
“Adoro ela desde o tempo de criança [...]
Hei de amá-la neste mundo até morrer”.
Assim, a respeito da temporalização, pode-se dizer que o passado foi eufórico,
marcado pelo amor correspondido; o presente é disfórico, marcado pela dor e tristeza e o
futuro, caracterizado pela esperança, é eufórico.
4.1.3.2 Semântica discursiva
Na semântica discursiva da cantiga Noite enluarada, evidencia-se a presença de
esquemas abstratos revestidos por temas, que em correlação com as figuras discursivas,
concretizam seus sentidos.
O tema amor permeia toda a narrativa revelando o grande amor do cantador pela
mulher amada. Está figurativizado pelas expressões: “nasci pra te amar”, “adoro ela”, “sem
falsidade”, “meu amor”, “meu desejo”, “amizade”, “canção” (entendida como prova de
amizade). Este tema aparece, nas expressões discursivas do texto, como algo paradoxal, uma
vez que, para o que enuncia representa alegria, caso consiga ser amado; todavia, para a jovem,
num segundo momento de seu percurso narrativo, sentir amor pelo cantador, retrata aflição ou
falta de sossego que, conseqüentemente, desencadeia a tristeza, por oposição à alegria.
O tema sossego, presente no percurso narrativo da jovem, surge figurativizado pela
expressão: “Dorme em seu leito, sossegada [...]”. Este aparece, na superfície discursiva, como
expressão da falta de amor e do desprezo da jovem pelo homem que a ama.
71
Desprezo é um outro tema paradoxal, pois para a jovem caracteriza um valor positivo
enquanto, para o eu-enunciador, ele é negativo. Aparece por meio das figuras: “[...] não pensa
mais em mim”, “ [...] peço não despreze [...]”.
A alegria é um tema que evidencia, na trajetória do eu-enunciador, um valor positivo,
pois ser amado pela jovem, transformaria seu estado de tristeza. Está expressa, no discurso da
cantiga, através das expressões figurativas: “ [...] abraçá-la”, “[...] gozar o teu amor”,
“[...]amá-la [...]”.
Esperança é um tema que representa a fé que o cantador tem em poder, um dia,
reconquistar o amor da mulher amada. Vem figurativizado por: “[...] tenho esperança [...]”,
“Hei de amá-la [...]”, “Ainda tenho o prazer de abraçá-la”. Remete a um tema religioso. É
uma das três virtudes teologais, como o amor.
A tristeza é um tema que representa um valor negativo para o eu-enunciador, uma vez
que, para ele, pressupõe o desprezo da mulher amada. Está evidente, na estrutura discursiva,
através da figurativização: “[...] fico triste [...]”.
O tema sofrimento surge no percurso do eu-enunciador figurativizado por: “Meu peito
clama[...]” e “ A minha sina é sofrer até o fim”. Para ele, sofrer é não ter mais o amor da
mulher amada, ser desprezado por ela, estar magoado e sentir o peito clamar.
A beleza surge como tema que caracteriza o fazer sedutor do cantador, uma vez que se
utiliza das figuras de expressão “A noite é bela pra se ouvir um cantador”, “ Tu és a jovem
que possui maior beleza” e “ És a mais linda das mulheres que já vi”, para tentar seduzir a
mulher amada e, por conseqüência, transformar seu estado de disjunção para o de conjunção
com seu Objeto de valor.
4.1.3.3 Leituras Temáticas
Os traços semânticos reiterados no percurso gerativo de sentido da canção Noite
Enluarada possibilitaram a concepção das seguintes leituras temáticas:
Primeira leitura
O amor é um sentimento nobre.
72
Segunda leitura
O ser humano é capaz de amar.
Terça leitura
O ser humano é capaz de desprezar.
Quarta leitura
Quem não ama, rejeita o próximo.
Quinta leitura
A falta de amor causa sofrimento.
Sexta leitura
O amor alimenta a esperança.
Sétima leitura
A beleza feminina é sedutora.
Oitava leitura
O desprezo causa sofrimento a quem ama.
Nona leitura
O amor para o cantador é eterno.
Décima leitura
O ser humano confia em Deus.
Décima primeira leitura
Aquele que ama tem esperança de ser amado.
Décima segunda leitura
O cantador nasceu para amar.
Décima terceira leitura
73
A serenata é uma estratégia de sedução.
Décima quarta leitura
A natureza é bela.
Décima quinta leitura
Aquele que ama e não é correspondido é um sofredor.
74
4.1.3.4 Quadro-resumo das estruturas discursivas da cantiga Noite enluarada
Actorialização Espacialização Temporalização Efeitos de sentido Temas Figuras
Amor
“Pra te amar [...]”, “adoro ela [...]”, “sem falsidade”, “meu amor”, “meu desejo”, “amizade”, “canção”
Sossego
“Dorme em seu leito sossegada”
Desprezo
“Não pensa mais em mim”, “peço não despreze quem te ama”, “meu peito clama”
Alegria
“Abraçá-la”, “gozar o teu amor”, “amá-la”
Esperança
“Tenho esperança”, “hei de amá-la”, “ainda tenho o prazer de abraçá-la”
Tristeza
“Fico triste”
Sofrimento
“Minha sina é sofrer até o fim”
Eu-enunciador (cantador) Jovem
Leito Janela Calçada (espaço pressuposto) Natureza
Presente em concomitância com o passado e o futuro
Embreagem Debreagem
Beleza
“Noite é bela”, “mais linda”, “maior beleza.”
75
4.1.4 Estrutura Fundamental
Na estrutura fundamental da cantiga Noite Enluarada, percebe-se, primeiramente, uma
tensão entre os opostos binários amor versus desprezo, indicador da tensa relação amorosa
dos atores da narrativa que se conheceram ainda crianças e se apaixonam, mas com o passar
do tempo um deles, a jovem, perde o entusiasmo pelo amado, gerando, assim os conflitos.
O termo amor é o contrário de desprezo e o contraditório de não-amor. Amor implica
não-desprezo. Da relação entre amor e não-desprezo, resulta o metatermo felicidade. O termo
desprezo é o contrário de amor e o contraditório de não-desprezo. Desprezo implica não-
amor. A relação de implicação entre os termos desprezo e não-amor faz surgir o metatermo
indiferença. Os termos não-desprezo e não-amor correspondem à inexistência semiótica.
O termo amor denota, para o cantador, um valor eufórico, pois ele é um homem
apaixonado, enquanto o termo desprezo representa um valor disfórico, uma vez que significa
não ser mais amado pela jovem. O metatermo felicidade significa para ele reconquistar o
amor da mulher amada.
O termo amor é para a jovem um valor eufórico, no primeiro momento da narrativa em
que o cantador deixa subentendido que foi amado por ela; enquanto desprezo, representa um
valor disfórico. Subentende-se que a relação de implicação entre os termos amor e não-
desprezo constitui sua felicidade. Já no segundo momento, o termo desprezo possui um valor
eufórico quando a jovem prefere ter sossego, não querendo corresponder ao amor do
cantador; enquanto o termo amor é um valor disfórico, uma vez que não sente mais este
sentimento pelo cantador. A relação de implicação entre os termos desprezo e não-amor
originam o metatermo indiferença que ela sente por ele, por isso o despreza.
Quando a jovem deixa de amá-lo e passa a ser indiferente ao sentimento do cantador,
este fica triste e clama por seu amor. A conseqüência do desamor é o desprezo, sentimento
hostil que torna o clima da narrativa permeado pela dor, lamento e tristeza para o cantador.
Todavia, este possui uma virtude, a esperança; quando acredita poder reconquistar a amada.
A jovem se instaura na narrativa como um sujeito dividido entre o amor que outrora
sentia e o sossego que deseja ter no presente. O que leva a se considerar que a falta de
sentimentos nobres, como o amor, provoca, entre outros tantos, tristeza e inquietude nos seres
humanos. Ideologicamente, pode-se dizer que a humanidade foi criada por Deus para amar.
Quando o amor termina, começa o sofrimento. Isto pode ser percebido no percurso dos
sujeitos envolvidos no drama da narrativa em análise.
76
As relações conflitivas, dessa instância, podem ser demonstradas através do seguinte
octógono semiótico:
DesprezoAmor
Não-amorNão-desprezo
Felicidade Infelicidade
Tensão di aléti ca
Outro conflito que emerge da narrativa ocorre entre os termos presente versus passado.
O termo presente é o contrário de passado e o contraditório de não-presente. Presente implica
não-passado. A relação implicatória entre presente e não-passado faz emergir o metatermo
desencanto que representa a frieza da relação, neste segundo momento da relação amorosa. O
termo passado é o contrário de presente e o contraditório de não-passado. Passado implica
não-presente e a relação de implicação entre, estes dois termos fazer surgir o metatermo
encantamento que representa o fervor da paixão contida na relação amorosa do primeiro
momento da narrativa. Os termos da dêixis negativa não-presente e não-passado
correspondem à inexistência semiótica.
O termo passado apresenta um valor eufórico, tanto para o cantador quanto para a
jovem, já que, nele, o casal tinha uma relação de amor recíproco. O presente, entretanto,
constitui um valor disfórico, para o cantador, por continuar apaixonado pela jovem e ser
desprezado por ela.
Tal concepção do conflito entre os termos citados, anteriormente, pode ser
figurativizado no octógono a seguir:
77
PassadoPresente
Não-presenteNão-passado
Desencantamentoda relação
Encantamentoda relação
Tensão dialética
Presente versus futuro é um outro conflito emergente na narrativa. O termo presente é
o contraditório de futuro e o contraditório de não-presente. Presente implica não futuro. Da
relação implicatória entre estes dois termos surge o metatermo realidade que denota a tensa
relação amorosa narrada. O termo futuro é o contrário de presente e o contraditório de não-
futuro. Futuro implica não-presente. A relação de implicação entre futuro e não-presente faz
surgir o metatermo esperança, denotador de uma esperada reconquista por parte daquele que
enuncia, ou seja, o cantador. Os termos negativos não-presente e não-futuro correspondem à
inexistência semiótica.
O termo presente possui um valor disfórico para o cantador: é quando ele está
sofrendo com o sofrendo com o desprezo da amada. Já para a mulher amada, o termo citado é
equivalente a um valor eufórico por não está mais apaixonada pelo cantador. Ao termo futuro
está imbuído de um valor eufórico para o cantador, uma vez que este tem esperança de
reconquistar a jovem.
A tensão dialética elucidada, anteriormente, pode ser representada por meio do
octógono seguinte:
78
FuturoPresente
Não-prese nteNão-futuro
Realidade Esperança
Tensão dialética
Outro conflito presente na narrativa ocorre entre os termos opostos alegria versus
tristeza. O termo alegria é contrário de tristeza e contraditório de não-alegria. Alegria implica
não-tristeza. A relação de implicação entre estes termos faz emergir o metatermo
contentamento, denotador da realização sentimental daqueles que amam. O termo tristeza é o
contrário de alegria e o contraditório de não-tristeza. Tristeza implica não-alegria. Da relação
implicativa entre tristeza e não-alegria sucede o metatermo descontentamento, fazendo
transparecer a insatisfação dos envolvidos no drama de amor. Os termos da dêixis negativa
não-tristeza e não-alegria suscitam o aparecimento do metatermo apatia, sentimento
caracterizado por momentos de instabilidade emocional, identificado no comportamento da
jovem em momentos distintos de seu percurso.
O termo alegria constitui, numa primeira instância do percurso narrativo, um valor
eufórico tanto para o cantador quanto para a jovem. Noutro momento, quando não mais estão
juntos, equivale a disforia, para ambos. No caso do cantador, porque não é mais amado, sente-
se rejeitado e não alegre; tratando-se da jovem, esta deseja ter sossego, pois vive atribulada
pela insistência galante do ex-amor, o cantador. Já o termo tristeza denota para eles um valor
disfórico, uma vez que equivale à insatisfação, isto é, a não realização dos seus desejos
pessoais. Dito de outra forma, ele quer ser amado, porém é rejeitado; ela quer ter sossego e
não tem, pois ele a tenta, galanteia, insistentemente.
A interpretação deste conflito pode ser resumida na figurativização do octógono
seguinte:
79
TristezaAlegria
Não-alegriaNão-tris teza
Felicidade Infelicidade
Tensão dialética
Apatia
Sossego versus paixão é um outro conflito instaurado na narrativa. Sossego implica
não-paixão. A relação implicativa entre estes termos faz emergir o metatermo tranqüilidade,
desejada pela jovem por não está mais apaixonada pelo cantador. Os termos opostos negativos
não-sossego e não-paixão geram a apatia. Paixão é contrário de sossego e o contraditório de
não-paixão. Paixão implica não-sossego. Da relação de implicação entre estes, resulta o
metatermo intranqüilidade, presente no percurso do cantador por permanecer apaixonado pela
linda jovem. O termo sossego é o contraditório de paixão e o contraditório de não-paixão.
O termo paixão denota para o cantador um valor eufórico e para a jovem um valor
disfórico; conseqüentemente, o termo sossego representa um valor eufórico para a jovem, no
segundo momento da narrativa e, para o cantador, um valor disfórico, haja vista ser um
homem apaixonado que tenta reconquistar a mulher amada.
A relação conflitiva entre os opostos semânticos sossego versus paixão explicada,
anteriormente, pode ser visualizada por meio da figura octogonal seguinte:
80
PaixãoSossego
Não-sossegoNão-paixão
Tranqüilidade Intranqüilidade
Tensão di aléti ca
81
4.2 MOÇO ME DÊ UMA ESMOLA
4.2.1 Segmentação
Sg1 Declaração do sofrimento de quem pede
Sg2 Pedido de esmola ao moço
Sg3 Advertência ao moço
Sg4 Pedido como forma de partilha
Sg5 Pedido pelos santos de sua devoção
Sg6 Pedido pela aproximação do pecador
Sg7 Reconhecimento de ser pecador
Sg8 Pedido justificando a generosidade de Deus
Sg9 Reconhecimento de Jesus e Nossa Senhora como grandes doadores
Sg10 Pedido justificador por não poder trabalhar
Sg11 Lamento da cegueira
Sg12 Confissão do sofrimento
Sg13 Pedido para que a esmola não seja negada
Sg14 Declaração da visão do moço
Sg15 Reafirmação da cegueira
Sg16 Justificativa da vida de pedinte
Sg17 Afirmação da mesquinhez dos pecadores
Sg18 Reafirmação da generosidade de Deus
Sg19 Recompensa de Deus aos que dão esmolas
Sg20 Pedindo em nome de Deus
4.2.2 Estruturas Narrativas
O drama narrativo da cantiga Moço me dê uma esmola se concentra na presença do eu-
enunciador que, por ser cego e pedinte de esmolas, interpela um moço. Ora apresenta-se
82
pedindo para si mesmo, ora para nós, dando a idéia de que pede para mais alguém. Na
tentativa de conseguir o auxílio, interpela alguém, um moço e, faz-lhe ouvir seu lamento.
As estruturas narrativas da canção contêm o fazer de dois sujeitos semióticos o Sujeito
Semiótico 1 (S1) e o Sujeito Semiótico 2 (S2). O S1 que aparece figurativizado pelo cego-
pedinte e tem por Objeto de Valor principal (OV1) receber esmolas. Instaura-se pela
modalidade de um querer-ser ajudado. Em seu programa narrativo, é destinado pela
necessidade, uma vez que é cego e não pode trabalhar. É auxiliado pela proteção dos santos,
que invoca em seu lamento e prejudicado pela mesquinhez e/ou pela falta de caridade dos que
por ele passam e não lhe dão esmolas.
O programa narrativo do S1 pode ser configurado da seguinte forma:
Dário _______________________________________________ Dor (necessidade) _______________Adj. (Santos protetores)____________ OV1 S1 Op. (falta de caridade) (receber esmolas) (cego-pedinte)
O S1 segue um percurso constituído de um único momento: a interpelação suplicante
que faz ao moço, seu enunciatário textual, a quem pede a esmola.
O percurso do S1 pode ser demonstrado através do gráfico seguinte:
Pedido de esmola S1__________________________________________OV1
(receber esmola)
Nota-se que o S1 surge, na narrativa, com um discurso sedutor, caracterizado pela
modalidade do querer-fazer-crer ao moço de sua necessidade de auxílio. Para tanto, lamenta-
se, apela para os santos de sua devoção, roga a Deus, objetivando sensibilizar aquele que o
escuta, na tentativa de conseguir a esmola. Seu falar sedutor e manipulador, projetado pela
tentação e intimidação, pode ser examinado por meio dos versos seguintes:
"Ô moço me dê uma esmola,
83
daquela que Deus lhe deu
Pelo que Deus padeceu
Pra não penar neste mundo,
da forma que pena eu"
Pode-se perceber que o S1, no início de seu percurso, apresenta-se num estado de
disjunção com seu Objeto de Valor, que é receber a esmola do moço e permanece disjunto do
mesmo, por não ter tendo ocorrido à transformação que o tornaria conjunto com o mesmo. O
que significa dizer, em outras palavras, que seu fazer sedutor, ou melhor, sua competência
modal não foi suficiente para que ele atingisse a performance desejada. As explicações ora
argumentadas podem ser lidas através da frase-diagrama seguinte:
F= [(S1 U OV) (S1 U OV)]
O Sujeito Semiótico 2 (S2) surge expresso pela figura de um moço. Apresenta como
Objeto de Valor (OV1) não dar a esmola ao cego-pedinte, instaurando-se pela modalidade de
um não-querer ajudar. É destinado pela falta de caridade e/ou mesquinhez para com os
necessitados. Seu programa narrativo pode ser representado da seguinte forma:
Dário _______________________________________________ Dor (falta de caridade) OV1 S2 (não dar esmolas) (moço)
O S2 segue um percurso constituído por apenas um momento: a escuta suplicante do
cego-pedinte. Não faz uso de discurso, caracterizando-se como um sujeito ouvinte.
O percurso do S2 pode ser visualizado através do gráfico seguinte:
84
A escuta S2__________________________________________OV1
(não dar esmolas)
Verifica-se que o S2, do início ao fim de seu percurso, permanece conjunto de Objeto
de Valor, que é não dar a esmola ao cego. Sendo assim, pode-se constatar que o discurso do
cego-pedinte, apesar de sedutor, não o seduziu. As elucidações feitas podem ser representadas
na frase-diagrama seguinte:
F= [(S2 ∩ OV) (S2 ∩ OV)]
85
4.2.2.1 Quadro-resumo das estruturas narrativas da cantiga Moço me dê uma esmola
Junção
Sujeito Semiótico
Objeto de Valor
Conjunto Disjunto
Destinador Adjuvante Oponente
Modalização
S1 Eu-enunciador
(cego-pedinte)
Receber esmolas - + necessidade
Santos protetores
Falta de caridade Querer-ser
S2
(moço)
Não dar esmola + - Falta de caridade - - Não-querer
86
4.2.3 Estruturas Discursivas
4.2.3.1 Sintaxe discursiva
As relações intersubjetivas da cantiga Moço me dê uma esmola constituem um ato
interpelativo do enunciador latente na superfície do texto que se dirige a um enunciatário
textual, figurativizado como moço, com a intenção de receber dele uma esmola. A palavra
moço mostra uma ambigüidade que não nos permite afirmar se o interpelado é jovem ou se já
é uma pessoa madura, porque é costume, entre o povo, o uso do apelativo moço quando não
se sabe o nome do interpelado, substituindo o termo senhor. O processo discursivo é
permeado pela súplica insistente do enunciador, figurativizado como cego, ou seja, como a
pessoa que “não vê a luz do mundo”, para quem “a coisa pior do mundo é querer ver e não
poder”. Seu poder argumentativo pode ser verificado logo nos primeiros versos da canção:
“Triste vida de quem pede
com maior necessidade
Quem pede, pede chorando
Pra dar carece vontade
Ô moço me dê uma esmola
Tenha piedade de nós piedade.”
Para que o outro creia que necessita do auxílio, isto é, da esmola, o enunciador faz uso
de um discurso sedutor, utilizando-se de figuras sagradas como Deus, Nossa Senhora, Jesus
Cristo, Família Sagrada, a quem atribui o poder para agradecer a dádiva possivelmente
recebida. Os versos seguintes confirmam o que ora foi elucidado:
“Ô moço me dê uma esmola,
daquela que Deus lhe deu”
“Pela Família sagrada,
87
pelo que Deus padeceu”
“Quem mais tem Nossa Senhora
Jesus Cristo pra lhe dar”
“Pra não penar neste mundo,
da forma que pena eu”
O procedimento de actorialização comporta oito atores, dos quais apenas um aparece
nomeado, pelo nome próprio que é Jesus Cristo. Os demais são apontados pelo papel temático
exercido. São eles: o cego, moço, Nossa Senhora, Família Sagrada, Deus, pecador e
esmoleiro. O enunciador é um ator presente no enunciado nas figuras de esmoleiro e cego,
bem como o enunciatário, revestido pela de moço, a quem não é dado o poder de voz.
O falar lamurioso do cego reflete e refrata o clamor de tantos outros portadores de
deficiência visual que, devido suas limitações físicas, submetem-se a pedir esmolas,
geralmente, em feiras livres, nas portas de igrejas ou assentadas em calçadas de ruas
movimentadas do centro das cidades, entregues à “própria sorte”, à “proteção dos santos” que
invocam, ao desprezo e descaso dos que por eles passam, alguns até os xingam e maltratam
ou, ainda, à generosidade de um ser bondoso que atira uma moeda, que retine, na latinha que
carrega em suas mãos ou, simplesmente, deixa-a ao seu lado, no chão da calçada, onde se
recosta para pedir.
No discurso, apresenta-se projetada a fala do eu-enunciador, predominantemente, em
primeira pessoa do singular do presente do indicativo e algumas vezes em primeira pessoa do
plural, nós, também no presente, remetendo à idéia de que, aquele que enuncia está falando,
ou seja, pedindo por mais alguém, provavelmente outros cegos de sua proximidade. O nós é
uma figura complexa, pois une o eu, na zona de identidade a mais alguém, na zona de
proximidade. Esse alguém, provavelmente, mais de um se revela numa condição semelhante a
do eu, portanto é também esmoleiro, o que mostra uma coletividade de pedintes. Seu lamento
é dirigido a um “tu” (enunciatário textual) que se apresenta figurativizado por moço e, às
vezes, por pecador. O lexema pecador tem também como referente o eu, além do moço.
Portanto quem pede e quem pode dar estão no mesmo pé de igualdade com relação ao pecado.
Os versos seguintes são esclarecedores:
“Ô moço me dê uma esmola,
88
Tenha de nós piedade”
“Chega, chega pecador
Que eu sou pecador também
Um pecador e falta ao outro
Mas Deus não falta a ninguém”
Percebe-se que os sujeitos enunciador e enunciatário estão embreados entre si, bem
como, com o espaço e o tempo da enunciação enunciada. No entanto, tanto o eu como o tu se
encontram debreados dos demais atores, não só no espaço e no tempo, mas também na própria
situação de vida, uma vez que esses atores são sagrados e mantêm-se disjuntos do eu e do tu
que são pecadores. A embreagem actancial do eu-enunciador evidencia uma subjetividade,
marcada pelo sofrimento, mas também, pela fé católica que alimenta sua esperança de viver.
O que pode ser constatado nos versos seguintes:
“Ô moço me dê uma esmola”
“Pela família sagrada”
“Quem mais tem Nossa Senhora
Jesus Cristo pra lhe dar”
Observa-se, ainda, na discursivização da cantiga, a fala do eu-enunciador com Deus,
ator projetado, no enunciado, por meio de sua crença religiosa. Este ato de fala expressado,
formalmente, pela súplica do que enuncia, caracteriza-se, também, por uma embreagem, uma
vez que a fé do pedinte aproxima-o da divindade de Deus, entidade concebida, pelo
cristianismo, como um ser onisciente, onipresente e onipotente. Ententendo-se, a partir dos
preceitos religiosos, pode-se chegar à conclusão de que, a relação intersubjetiva entre o eu-
enunciador e Deus deixa evidente uma embreagem actancial, espacial e temporal. As idéias
concebidas, anteriormente, podem ser conferidas através da leitura exegética do verso
seguinte:
“Valei-me, valei-me Deus”
89
Existe, também, uma outra relação intersubjetiva, no enunciado, entre o eu-enunciador
e um “nós” que ele menciona ao suplicar pela esmola. Esta traduz a relação de proximidade
identitária entre o pedinte e aquele(s) para quem pede. Caracteriza, assim, uma embreagem
actancial, temporal e espacial. Tal concepção pode ser observada a partir dos versos que
seguem:
“Ô moço me dê uma esmola
“Tenha piedade de nós”
A espacialização da cantiga Moço me dê uma esmola compreende um espaço da
enunciação e do enunciado. O primeiro corresponde ao aqui onde se encontram posicionados
o eu-enunciador e seus enunciatários textuais: o moço, “nós”, correspondente ao eu e mais
alguém, e Deus, caracterizando, assim, uma embreagem espacial, ou seja, estes atores estão
embreados entre si e com o enunciado. O segundo, figurativizado na superfície discursiva,
apenas, por meio da expressão “neste mundo”, indicadora de um espaço universal, um arqui-
espaço, isto é, a terra não determina o lugar exato onde acontece o pedido de esmola. Essa
indeterminação permite a pressuposição de que o espaço físico onde o pedinte se encontra
seja uma calçada, uma porta de igreja ou, ainda, uma feira-livre, onde, costumeiramente, os
cegos se posicionam para pedir, de acordo com a tradição popular. Entendida como um aqui,
a expressão discursiva “neste mundo” origina, por oposição semântica binária, a idéia de um
lá, ou seja, “naquele mundo” que, por pressuposição, pode-se conceber como o céu, espaço
celestial, lugar tranqüilo, reservado ao descanso eterno. Nele, subtende-se que não há
sofrimento. Consoante a voz do eu-enunciador, ecoa no discurso da canção o tom de
sofrimento, neste mundo terreno, uma vez que, por ser cego tem uma vida marcada por
limitações, causadoras de dificuldades que, consequentemente, o fazem sofrer. Então, subjaz,
em seu falar, a perspectiva de um lugar onde encontraria o sossego, espaço do não-sofrimento,
ou seja, o céu, já que “neste mundo”, isto é, a terra, para ele, é lugar de muito sofrimento.
Pode-se constatar seu penar através dos versos a seguir:
“Triste vida de quem pede [...]
“Já tenho sofrido tanto”
90
Não resisto mais viver”
“Tenha dó do meu sofrer”
O que foi explicado sobre a categoria espacial do enunciado pode ser melhor
compreendido a partir da leitura dos seguintes versos:
“Pra não penar neste mundo
da forma que pena eu”.
A temporalização da cantiga Moço me dê uma esmola pode ser identificada por meio
de expressões discursivas indicadoras de um presente em concomitância com um passado e
um futuro, podendo ser evidenciada a partir dos versos a seguir:
“Ô moço me dê uma esmola”,
daquela que Deus lhe deu,
Pra não penar neste mundo,
da forma que pena eu”.
No primeiro verso citado a expressão me dê indica o presente, no qual é feito o pedido.
No segundo, lhe deu, evidencia o passado acabado, onde está pressuposto que o enunciatário
adquiriu bens materiais. No terceiro, a formação discursiva Pra não penar, sugere a idéia do
futuro e por fim, a expressão pena eu, reafirma o presente, num aspecto de continuidade.
O presente é o tempo do pedido de esmola no enunciado, portanto, predomina sobre a
idéia de passado e do futuro. A concomitância temporal explicita a trajetória sofredora do eu-
enunciador que, como cego e pedinte, tem uma existência sofrida. A relação temporal entre o
presente, passado e futuro revela a angústia interior daquele que enuncia, levando-o a
demonstrar seu desejo de morrer. Sua angústia pode ser sentida por meio da discursivização
dos versos a seguir:
91
“Já tenho sofrido tanto”
“Não resisto mais viver”
“Que sofrimento sem fim”.
Assim, pode-se constatar que a categoria temporal da narrativa em análise evidencia a
presença de atores embreados com o tempo enunciado, o pedinte, o moço, nós e Deus; bem
como, debreados dele. A embreagem temporal é observada através das marcas temporais do
presente e a debreagem, por meio das formas verbais indicadores do passado e do futuro.
A temporalização do enunciado discursivo é delatora do sofrimento do eu-enunciador,
uma vez que este segue uma trajetória de vida marcada pela angústia de não enxergar iniciada
no passado, perpassando pelo presente e prolongando-se no futuro de sua vida terrena.
4.2.3.2 Semântica discursiva
Na face discursiva da canção ora analisada, foram observados os seguintes temas:
generosidade, auxílio, piedade, fé, religiosidade católica, pecado, cegueira, sofrimento, visão,
necessidade, divindade, súplica e angústia.
O tema pedido permeia toda a cantiga através da clamorosa voz do eu-enunciador, o
cego pedinte que, insistentemente, repete por onze vezes o mesmo verso “Moço me dê uma
esmola”. Proclamado cada vez com sentido diferente, o verso é entoado para: pedir piedade,
justificar o não poder trabalhar, declarar necessidade, pedir ao moço para partilhar seus bens,
alertar sobre a recompensa de Deus aos que ajudam aos pobres, dizer da generosidade de seus
santos protetores e para pedir que a esmola não seja negada; enfim, em seus múltiplos
sentidos está configurada a triste sina de quem vive mendigando. Em suas várias repetições
ecoa uma musicalidade tão dramática que é possível perceber a angústia do enunciador.
O tema generosidade surge, na discursivização da cantiga, configurado nos versos
seguintes:
“Mais Deus não falta a ninguém”
“Quem mais tem Nossa Senhora
92
Jesus Cristo pra lhe dar”
“Favoreça a quem lhe pede”
São sujeitos dessa generosidade Deus, Nossa Senhora e Jesus Cristo quando auxiliam
aqueles que recorrem a eles por meio da fé. Expressando sua carência por ajuda, o Cego
pedinte faz crer ao moço que, beneficiando-o, atrairá para si a recompensa do céu.
Proteção é um tema que emerge, na narrativa, figurativizado pelos versos seguintes:
“Tenha de nós piedade”
“Tenha compaixão de mim”
“Tenha dó do meu sofrer”
Os três versos, anteriormente citados, iniciados pela forma imperativa do verbo ter,
reiteram o pedido, publicamente, daquele que mendiga implorando, incansavelmente, por
proteção, ao mesmo tempo em que denunciam sua lamúria.
O tema súplica emerge no enunciado da cantiga através do pedido insistente do cego
pela esmola. A súplica por auxílio ao moço está evidente, na superfície discursiva, por meio
dos versos citados a seguir:
“Ô moço me dê uma esmola”
“Pela família sagrada,
Pelo que Deus padeceu”
“Não queira dizer que não”
“Se tiver não negue não”
“Ô moço me dê uma esmola
Nas horas de Deus, amém”
O tema fé, presente no texto enunciado, revela a confiança daquele que suplica
pela proteção divina. Deus, Família Sagrada, Jesus Cristo, Nossa Senhora são figuras
93
denotadoras da fé católica, especificamente, utilizadas por aquele que enuncia para persuadir
o moço a dar-lhe a esmola. Assim, pode-se interpretar que o cego-pedinte é, de acordo com a
figurativização do seu discurso, um adepto à religiosidade católica.
O tema pecado emerge, da narrativa, figurativizado através dos versos seguintes:
“Chega, chega pecador
Que sou pecador também
Um pecador falta ao outro
Onde se pode entender que o eu-enunciador adjetiviza o moço de pecador, ao mesmo
tempo em que também se denuncia como tal, aproximando-se dele. No discurso textual, está
evidente a manipulação tentadora do esmoleiro que, ao dizer no terceiro verso “Um pecador
falta ao outro”, nivela-se com o esmoler no mesmo patamar, o do pecado. No entanto, no
quarto verso citado “Mas Deus não falta a ninguém” estabelece uma distância entre eles e
Deus, aquele que não falta e atende a todos, diferentemente deles que faltam um ao outro.
Assim, pode-se conceber que ao fazer distinção entre os que “faltam” e O que não “falta”, o
único, aliás, está a conotação do sentido de pecado para o que enuncia, na narrativa: cometer
faltas. Deus não é pecador porque não as comete.
O tema religiosidade católica, embreado ao da fé, surge na narrativa expressando a
escolha religiosa do pedinte, evidenciado por meio das figuras de expressão: Família Sagrada,
Jesus Cristo, Nossa Senhora e Deus, santos da religião católica. Ao proclamar estas
expressões figurativas, deixa transparecer sua adesão ao catolicismo. O cego pedinte, durante
toda a discursivização da cantiga pede a intercessão desses santos. Ao invocá-los com seu
grito de lamento, entende-se que o faz por acreditar que têm poderes. Pode-se, ainda,
interpretar que tais expressões são utilizadas pelo pedinte, como recurso argumentativo para
sensibilizar e convencer o moço a dar-lhe a esmola. Ele pode ter visto no moço algum motivo
que o levou associá-lo à igreja católica.
O tema cegueira, ponto a partir do qual se origina a narrativa, emerge para justificar o
clamor do pedinte. Por ser cego , aquele que pede, lamenta-se, roga pela proteção dos santos
de sua devoção, justifica sua vida de pedinte, implora por compaixão, vê-se como pecador,
relata o seu sofrer. Este tema, bastante expressivo, pode ser visualizado nos versos seguintes:
94
“A coisa pior do mundo
É querer vê e não poder”
“Se eu tivesse a luz dos olhos
Não tava sofrendo assim”
O tema visão, por oposição semântica à cegueira, apresenta-se na narrativa indicando à
posição do moço, o esmoler, aquele que pode ver, que tem como ajudar ao cego. Sugere,
também, a idéia do não-sofrimento, da felicidade, do poder trabalhar, enfim, a posição
privilegiada do moço ou daquele que vê, em relação à deficiência do visual do esmoleiro.
Apresenta-se expresso, na narrativa, por meio dos versos a seguir:
“Quem vê a luz deste mundo
Não sabe o que é sofrer”
“Que você tem a luz dos olhos”
Em sua abrangência, o tema visão pode, ainda, ser atribuído àquele que olha o cego,
que tem dele compaixão, que compreende o próximo, que o aceita como irmão, que tem
vontade de ajudar aos necessitados ou que é sensível ao sofrimento alheio.
O tema dor permeia todo o drama da narrativa. Reflete o sofrimento do cego-pedinte e
é superficializado, no enunciado discursivo, através dos versos seguintes onde está subjacente
o sofrimento, o suplício da vida do pedinte que, uma vez cego, carrega, “a cruz da cegueira” e
por isso sente muita dor, não nos ombros, mas na alma:
“Quem pede, pede chorando”
“[...] da forma que pena eu”
“Já tenho sofrido tanto”
“Tenha dó do meu sofrer”
“Não tava sofrendo assim”
“Que sofrimento sem fim”.
95
O tema carência emerge no enunciado assentado à vida limitada do esmoleiro. Por ser
despojado da visão dos olhos, passa por toda espécie de necessidade, desde a dificuldade de se
locomover sozinho até as que a imaginação humana seja capaz de conceber. Sua incapacidade
de ver leva-o a mendigar esmolas para garantir seu sustento, suprir suas carências. O que foi
interpretado neste tema pode ser visualizado na expressão dos versos a seguir:
“Triste vida de quem pede com a maior necessidade”
“Favoreça a quem lhe pede”
“Ô moço eu peço esmola
Porque tenho precisão”
O tema angústia, em decorrência da dor e da carência daquele que enuncia aparece, na
superfície discursiva da cantiga, revelando acordes de desespero. A cegueira marca a vida do
pedinte, causando-lhe angústia, que, no enunciado, está tecida na discursivizção dos versos
que seguem:
“Já tenho sofrido tanto
Não resisto mais viver”
4.2.3.3 Leituras temáticas
A reiteração dos traços semânticos da cantiga Moço me dê uma esmola, possibilitou a
concepção das leituras temáticas elucidadas a seguir:
Primeira leitura
O eu-enunciador é um cego.
Segunda leitura
96
O cego é pedinte de esmolas porque não pode trabalhar.
Terceira leitura
A cegueira é causadora de tristeza e sofrimento.
Quarta leitura
O cego é devoto da fé católica.
Quinta leitura
O pedinte necessita não apenas de esmola, mas também de compaixão do moço.
Sexta leitura
Deus é bom e misericordioso.
Sétima leitura
Jesus Cristo e Nossa Senhora são santos protetores.
Oitava leitura
A cegueira é a razão do lamento.
Nona leitura
O ser humano é tido como pecador.
Décima leitura
Para ser doador é necessário ter piedade.
Décima primeira leitura
O cego vive à margem da sociedade.
Décima segunda leitura
A luz dos olhos, para o cego, é sinônimo de não-sofrimento.
Décima terceira leitura
Quem não ajuda aos necessitados corre o risco de sofrer também.
97
Décima quarta leitura
A escuridão, isto é, a cegueira é um sofrimento sem fim.
Décima quinta leitura
O cego pede esmolas em nome de Deus.
98
4.2.3.4 Quadro-resumo das estruturas discursivas da cantiga Moço me dê uma esmola
Actorialização
Espacialização
Temporalização
Efeitos de sentido
Temas
Figuras
Eu-enunciador
(cego-pedinte)
Nós
(o eu e mais alguém)
Moço
Jesus Cristo
Nossa Senhora
Família Sagrada
Pecador
Deus
Aqui (a terra)
“neste mundo”
Céu ( lá), feira-livre,
porta de igreja,
calçada.
Presente em
concomitância com o
passado e o futuro
Embreagem:
Actancial: eu/tu/nós
Espacial – aqui
Temporal – agora
Debreagem:
Espacial – lá (céu)
Temporal (passado e
futuro)
Generosidade
Proteção
Fé
Pecado
Cegueira
Visão
Dor
Carência
Angústia
“Deus não falta a ninguém”
“[...] tenha piedade”
“Pela família [...]”
“Um pecador [...]”
“se eu tivesse a luz do olhos [...]”
“Quem vê a luz [...]”
“Que sofrimento sem [...]”,
“A coisa pior do mundo”
“Por que tenho precisão [...]”
“Não resisto mais viver”
99
4.2.4 Estrutura Fundamental
Manifesta-se, na narrativa da cantiga Moço me dê uma esmola, uma tensão dialética
centrada na oposição semântica binária dos termos riqueza versus pobreza, indicadora da
posição social que ocupa os atores eu-enunciador (o cego pedinte) e o moço interpelado por
ele, quando pede a esmola.
Riqueza é o contrário de pobreza e o contraditório de não-riqueza. Riqueza implica
não-pobreza e faz surgir o metatermo esmoler, caracterizador da posição social do moço que,
na narrativa, apresenta-se, possivelmente, como aquele que pode doar a esmola. Concebe-se
que o termo pobreza é o contrário de riqueza e o contraditório de não-pobreza. Pobreza
implica não-riqueza. Da relação entre pobreza e não-riqueza resulta o metatermo esmoleiro
indicador da posição social do cego-pedinte. Os termos não-riqueza e não-pobreza
correspondem à inexistência semiótica, representada, no octógono semiótico, pelo zero
cortado.
O termo pobreza denota para o eu-enunciador, ou seja, o cego, um valor disfórico,
uma vez que, à sua condição de pedinte, subjaz uma vida sofrida e limitada pela deficiência
visual. Muitas vezes, os cegos pedintes sofrem discriminações das pessoas a quem pedem,
sendo ludibriados e até maltratados. Pode-se constatar esta argumentação pela leitura
reflexiva dos versos citados a seguir:
“Quem pede, pede chorando”
Pra dar carece vontade”
O termo riqueza possui um valor eufórico para o moço interpelado pelo cego, uma vez
que se subentende ter bens materiais. Sua condição, na narrativa, é a de quem não precisa
pedir, ou seja, mendigar por esmolas. Subjaz, ainda, na narrativa a idéia de que, aquele que
não é cego, pode trabalhar e, como fruto do seu labor, recebe salário, tendo, portanto, uma
vida feliz e digna por não precisar viver de esmolas, o que não acontece com o cego da
narrativa, que se considera um sofredor, por ser um esmoleiro.
A relação conflitiva gerada por meio dos opostos riqueza versus pobreza poder ser
demonstrada no octógono a seguir:
100
PobrezaRique za
Não-riquezaNão-probreza
Esmoler(moço)
Esmoleiro(cego)
Tensão dialética
Outro conflito que se instaura na narrativa ocorre entre os termos luz versus escuridão.
O termo luz é o contrario de escuridão e o contraditório de não-luz. Luz implica não-
escuridão. Da relação implicativa entre luz a não-escuridão, surge o metatermo visão que é
atribuído ao “moço”. O termo escuridão é o contrario de luz e o contraditório de não-
escuridão. A relação de implicação entre escuridão e não-luz faz emergir o metatermo
cegueira, cujo portador é o pedinte de esmolas. A relação entre os termos contraditórios da
dêixes negativa não-escuridão versus não-luz corresponde à inexistência semiótica,
representada pelo zero cortado.
O termo escuridão representa um valor disfórico para o pedinte de esmolas, uma vez
que é portador da cegueira. Por não ter a luz dos olhos e viver na escuridão tem uma vida
triste, considerando-se um sofredor. Já a termo luz representa um valor eufórico, haja vista
que para ele quem tem a luz dos olhos é feliz, porque não necessita mendigar. Percebe-se, de
acordo com o discurso do eu-enunciador que não ser cego significa ser feliz. O que foi
explicado, anteriormente, pode ser verificado nos versos a seguir:
“Que você tem a luz dos olhos
Nós vive na escuridão”
101
O conflito explicado anteriormente pode ser visualizado através do octógono seguinte:
EscuridãoLuz
Não-luzNão-escuridão
Visão Cegueira
Tensão dialética
Pode-se, ainda, perceber um terceiro conflito emergente na narrativa entre os termos
opostos alegria versus tristeza. O termo alegria é o contrário de tristeza e o contraditório de
não-alegria. Alegria implica não-tristeza. Da relação de implicação entre os termos alegria e
não-tristeza emerge o metatermo felicidade que pode ser entendida como ter visão e por isso
não precisar mendigar, conforme enuncia em seu discurso. Nos versos seguintes, pode-se
compreender melhor o que foi explicado:
“Se eu tivesse a luz dos olhos
Não tava sofrendo assim”
“Valei-me, valei-me Deus
Que sofrimento sem fim”
Os versos citados acima refletem o sofrimento, a infelicidade do pedinte, por ser cego.
Subjacente a eles está ancorado o desejo de vê e, por conseguinte, o desejo de ser feliz.
102
Tristeza é o contrário de alegria e contraditório de não-tristeza. Tristeza implica não-
alegria. Da implicação entre os termos tristeza e não-alegria surge o metatermo infelicidade,
caracterizando o sofrimento do pedinte, por ser cego. O que pode ser constatado através do
verso seguinte:
“Triste vida de quem pede”
O termo alegria representa para o eu-enunciador (cego-pedinte) um valor eufórico, à
medida que tristeza denota um valor disfórico.
A tensão dialética explicada, anteriormente, pode ser demonstrada por meio do
octógono seguinte:
Tri stezaAlegria
Não-alegriaNão-tris teza
Felicidade Infelicidade
Tensão dialética
Outro conflito que se instaura na narrativa se processa entre os termos sagrado versus
profano. Sagrado é o contrário de profano e contraditório de não-sagrado. Sagrado implica
não-profano. Da relação de implicação entre os termos sagrado e não-profano surge o
metatermo divino, que reflete a postura Deus, figura sagrada, cuja condição é a caridade
103
suprema, pois ama e protege a todos, sem fazer distinção. Para os que têm fé, é reconhecido
como um ser benevolente e sem pecado. O verso a seguir configura o que foi explicado:
“Mais Deus não falta a ninguém”
O termo profano é o contrário de sagrado e contraditório de não-profano. Profano
implica não-sagrado. Da relação de implicação entre os termos profano e não-sagrado surge o
metatermo pecador, caracterizando a condição do moço e, também, do cego-pedinte, quando
reconhece suas faltas, isto é, seus pecados que, na tecitura discursiva, significa a falta de
caridade ou o desinteresse em ajudar os necessitados. Tal concepção pode ser constatada
através dos versos seguintes:
“Chega, chega pecador,
Que eu sou pecador também
Um pecador falta ao outro”
O termo sagrado é o contrário de profano e o contraditório de não-sagrado. Sagrado
implica não-profano. Da relação de implicação entre os termos sagrado e não-profano surge o
metatermo divino. O termo sagrado representa para aquele que enuncia um valor eufórico, à
medida que o termo profano reflete, para ele, um valor disfórico.
A tensão dialética explicada, anteriormente, pode ser vislumbrada por meio do
octógono seguinte:
104
ProfanoSagrado
Não-SagradoNão-Profano
Divino Pecador
Tensão dialética
105
4.3 SANTA BEATA MOCINHA
4.3.1 Segmentação
Sg1Visita a Santa Beata Mocinha
Sg2 Anúncio da viagem do Padre
Sg3 Pedido de proteção
4.3.2 Estruturas Narrativas
A trama narrativa da cantiga Santa Beata Mocinha se concentra na visita do eu-
enunciador à beata Mocinha, figura mística de sua devoção, cujo objetivo é comunicar-lhe a
viagem do Padre Cícero para o céu, ou seja, informar-lhe sobre sua morte.
As estruturas narrativas da canção mencionada comportam o fazer de três sujeitos
semióticos: Sl, figurativizado como o eu-enunciador, o devoto; S2, o Padre Cícero e o S3, a
beata Mocinha.
O Sujeito Semiótico 1 (S1) surge figurativizado como um eu-enunciador, instaurando-
se pela modalidade de um querer-comunicar e, consequentemente, pelo querer-fazer-crer à
beata que o padre foi pedir proteção para o povo sem sorte e, assim, seu discurso é
caracterizado como sedutor. Tem por Objeto de Valor (OV1) anunciar a viagem, isto é, a
morte do Padre Cícero à beata. Em seu programa narrativo é motivado por uma auto-
destinação, ou seja, a devoção pela beata e pelo padre e, auxiliado pela fé, seu Adjuvante.
O programa narrativo do (S1) pode ser configurado da seguinte forma:
Dário _____________________________________ Dor (Devoção) Adj. (fé em Deus) _____________________________________ OV1 S1 (anunciar a viagem) (eu-enunciador)
106
O percurso do S1 é constituído por apenas um momento e pode ser representado
conforme figura abaixo:
Anúncio S1 OV1
(anunciar a viagem)
Nota-se que o S1, no início de seu percurso, apresenta-se num estado de disjunção
com seu objeto de valor, que é fazer a comunicação. A transformação (F) que desencadeia a
passagem do estado de privação ao de posse do objeto desejo é obtida pela intervenção de um
fazer transformador de responsabilidade do próprio S1, que dotado de uma capacidade, torna-
se competente para atingir o poder de fazer a comunicação à beata sobre a viagem do padre,
realizando, enfim, sua performance. Esta declara o estado final de seu percurso,
correspondente à instância em que ele encontra a beata e consegue fazer-lhe o anúncio da
viagem do padre, entrando, assim, em conjunção com seu objeto de valor. Então, pode-se
concluir que o S1 que antes se encontrava disjunto de seu objeto de valor, passa a conjunto
com o mesmo. O que foi dito pode ser resumido na frase-diagrama seguinte:
F = [(S1 U OV) → (S1 ∩ OV)]
O Sujeito Semiótico 2 (S2) emerge, na narrativa, com o revestimento figurativo do
Padre Cícero, instaurando-se pela modalidade complexa do querer-ser protetor. Movido por
uma auto-destinação, isto é, pela vontade de proteger, realiza seu percurso em busca de pedir
proteção, seu Objeto de Valor (OV1), para o povo sem sorte e/ou os romeiros do Juazeiro do
Norte. Tem como Adjuvante Deus, força sobrenatural, que o auxilia em seu objetivo,
atribuindo-lhe, perante os devotos, competência para interceder por eles, tornando-o uma
entidade mística admirada e venerada por muitos cristãos católicos. Como Oponente aparece a
falta de sorte que figurativiza as múltiplas carências sócio-política-culturais, opressoras da
gente sofrida do Norte. O programa narrativo do S2 pode ser configurado da seguinte forma:
107
Dário _______________________________________ Dor (vontade de proteger)
Adj.(Deus-forças sobrenaturais) _______________________________________ OV1
S2 Op. (falta de sorte do povo) (pedir proteção) (Padre Cícero)
O percurso do S2 é constituído por apenas um momento e pode ser representado na
figura abaixo:
Viagem para o céu S2 OV1
(pedir proteção)
Perceber-se que o S2, no início do seu percurso apresenta-se disjunto do seu Objeto de
Valor. Ao fazer a viagem, o S2 é o responsável direto por sua transformação juntiva, ou seja,
realiza, ele próprio, o fazer transformador que lhe permite passar do estado de disjunção ao de
conjunção. Sua competência modal, alicerçada na fé do povo através de forças sobrenaturais,
supera as amarras de seu Oponente, a falta de sorte do povo. A frase-diagrama seguinte
resume o que foi explicado.
F = [(S2 U OV) → (S2 ∩ OV)]
O Sujeito Semiótico 3 (S3) surge, na narrativa, figurativizado pela beata, nomeada
pelo papel temático Mocinha. Instaura-se pela modalidade de um querer-ouvir a comunicação
do devoto. Tem por Objeto de Valor (OV1) escutar a notícia (viagem do padre). Em seu
programa narrativo é motivado por uma auto-destinação, ou seja, a devoção pelo padre e,
auxiliado pela fé em Deus, seu Adjuvante.
O programa narrativo do S3 é portanto:
108
Dário _____________________________________ Dor (devoção) Adj. (fé em Deus) ______________________________________OV1 S3 (escutar a notícia) (beata)
O percurso do Sujeito semiótico S3 é constituído por apenas um momento, podendo
ser vislumbrado por meio da figura seguinte:
A escuta
S3 OV1 (escutar a notícia)
Verificou-se que o S3, no início de seu percurso, apresenta-se disjunto de seu Objeto
de Valor, passando, no final, para o estado de conjunção com o mesmo. A frase-diagrama
seguinte resume o que foi elucidado.
F = [(S3 U OV) → (S3 ∩ OV)]
109
4.3.2.1 Quadro-resumo das estruturas narrativas da cantiga Santa beata Mocinha
Junção
Sujeito
Semiótico
Objeto de
Valor Conjunto Disjunto
Destinador Adjuvante Oponente
Modalização
S1 (eu-enunciador)
Anunciar a
viagem do
padre
+ - Devoção
fé
- Querer-comunicar
S2 (o padre)
Pedir proteção + - Amor pelo povo e
romeiros fé Falta de sorte Querer-ser
S3 ( a beata)
Ouvir a notícia + - Devoção Fé em Deus - Querer-ouvir
110
4.3.3 Estruturas Discursivas
4.3.3.1 Sintaxe discursiva
O processo discursivo da cantiga Santa beata Mocinha é construído a partir da
expressão comunicativa e pelas marcas ideológicas da fé cristã-católica na voz do eu-
enunciador que, dialogicamente, instaura a beata Mocinha, como sua enunciatária textual.
Impregnado de valores culturais, especialmente os religiosos, o texto reluz a devoção do
eu-enunciador que discursiviza alicerçado sobre a tese de que o Padre Cícero, dotado de
poder aliado à fé, faz uma “viagem” para o céu, ou seja, morre, cujo objetivo é interceder,
junto a Deus, pelo povo sofrido do Juazeiro do Norte.
Na sintaxe discursiva, a actorialização é figurativizada por seis atores que, ora são
nomeados com substantivos próprios, ora apenas revestidos de papéis temáticos. São eles:
o devoto (eu-enunciador), a Santa Beata (Mocinha), o padrinho (Padre Cícero), o povo, os
romeiros e Deus, figura mística, entendido como força suprema sobrenatural, não é
nomeado, mas subtende-se seu papel, na superfície discursiva, quando o eu-enunciador
menciona o verso seguinte:
“Ao Senhor foi pedir”
Dentre eles apenas um, o eu-enunciador, tem voz.
A enunciação enunciada se projeta na tecitura discursiva através da relação
intersubjetiva de oposição entre um “eu” (enunciador-ator), o devoto, e um “tu”
(enunciatário – a beata) na zona identitária em referência a “ele” (o padre) ao povo e a
Deus, que não é figurativizado na superfície textual, no entanto, é implicitamente projetado
pelo eu-enunciador nas figuras que determinam sua religiosidade, como por exemplo, céu e
proteção.
No primeiro momento da narrativa, emerge a fala do eu-enunciador que se projeta
no enunciado em primeira pessoa por oposição a um tu a santa beata, a quem ele decide
111
contar a morte do padre. A ação que começa na decisão se concretiza quando o mesmo se
encontra com a beata. É um chegar de um vir. As marcas discursivas que refletem a
projeção da fala do eu-enunciador no enunciado, caracterizam uma embreagem
enunciativa, cujo efeito de sentido produzido é denominado de subjetividade, ou seja,
aquele que enuncia está embreado com a enunciatária textual com o tempo e com o espaço
do texto enunciado. O que foi explicado pode ser verificado por meio das expressões dos
seguintes versos:
“Minha Santa beata Mocinha”
“Eu vim aqui dizer meu padrinho”
O Terceiro papel atoral da narrativa, revestido pela figura do padrinho, isto é,
aquele a quem é atribuído o poder de proteger o povo e os romeiros, encontra-se debreado
do enunciado em pessoa, tempo e espaço, uma vez que é projetado pelo eu-enunciador em
terceira pessoa, num tempo que é o passado e num espaço que é um lá, representado por
céu, espaço místico, imaginado por meio da crença religiosa cristã. Os versos que se
seguem podem comprovar:
“Meu padrinho, padre Cícero”.
“Foi pro céu vendo o povo sem sorte”
Os papéis temáticos povo e romeiros são citados pelo eu-enunciador como aqueles
que necessitam de proteção, que de acordo com a trama textual, pode ser caracterizada com
intercessão divina. Estes atores por serem citados em terceira pessoa, num lugar que não é
o da enunciação e num tempo indeterminado, caraterizam-se como debreados do
enunciado.
Deus, sexto ator da narrativa, não é citado pelo eu-enunciador de forma explicita,
mas é de modo implícito, quando o mesmo menciona a viagem do padre para o céu com o
objetivo de pedir proteção para os romeiros, com isso, evidencia-se a existência do um ser
112
divino, o representante maior, aquele que tem supremacia, que tudo pode, figura onipotente
para os cristãos. O que foi dito pode ser compreendido através dos versos seguinte:
“Foi pro céu vendo o povo sem sorte”
“Ao Senhor foi pedir
Proteção pros romeiros do norte”
Para os cristãos, o céu é o lugar onde habita Deus, o criador. Deus não é um ator
expresso na superfície textual, mas está pressuposto na narrativa, emergindo através da
figura céu, lugar habitado por Deus na crença religiosa. Esta subjacência indica a
debreagem do ator mencionado do tempo e do espaço da enunciação discursiva.
As relações intersubjetivas que emergem da conjuntura textual permeiam toda a
narrativa construída pelo eu-enunciador de forma que superficializa a ideologia e os
valores culturais, em especial os religiosos, verificados nos papéis temáticos que formam
uma comunidade de fé católica num espaço regional denominado Juazeiro do Norte de
onde se difundiu a fé na santidade de Padre Cícero, primeiramente, para o Nordeste,
expandindo-se depois para outras regiões.
A espacialização, ou categoria espacial da cantiga Santa Beata Mocinha,
compreende um aqui que indica a posição do eu-enunciador e sua enunciatária em relação
à enunciação, caracterizando-os como embreados com o discurso enunciado e o espaço
tópico figuratizado pelo lugar do encontro do devoto com a beata, não determinado no
texto e, o céu, espaço místico, imaginário, para onde o padre Cícero faz sua viagem,
caracterizador de sua debreagem espacial em relação ao espaço enunciado. A figura “céu”
denota um lugar de tranqüilidade, morada eterna, mas também, de esperança para os que
têm fé, no caso, o devoto, o padre, o povo e os romeiros. É lá que se encontra aquele
(Deus) que lhes dará a proteção necessária, por intermédio do pedido intercessor do
padroeiro, tido como Santo padrinho dos sofredores, o Padre Cícero. Além das figuras
espaciais expressas pelo advérbio aqui e pelo substantivo céu, emerge, ainda, na superfície
discursiva um outro espaço onde se encontram o povo sofrido e os romeiros, figurativizado
por Juazeiro do Norte, nome que recebe a cidade onde residia o padre Cícero e onde
acontecem romarias. Por ocuparem esse lugar, pode-se dizer que os papéis temáticos povo
113
e romeiros estão debreados do espaço enunciativo da narrativa, o que pode ser constatado a
partir da leitura do verso seguinte:
“Ô, deixou Juazeiro sozinho”
A temporalização da cantiga Santa beata Mocinha está evidenciada na organização
discursiva da narrativa através do sistema temporal lingüístico entre o presente da
enunciação textual em concomitância ao passado do acontecimento histórico, quando
aconteceu a viagem do padre, ou seja, sua ida para o céu e ao futuro, onde acontecerá a
proteção esperada pelos que têm fé. Aquele que enuncia se encontra projetado no
enunciado em primeira pessoa. A forma verbal que figurativiza o presente da enunciação é
a expressão “vim” que, embora seja uma forma conjugada do verbo “vir” no pretérito
perfeito, projeta a idéia de uma ação-processo, que se origina no passado e se concretiza no
presente do ato enunciativo. A concomitância entre o passado e presente é indicadora do
ato de fala do eu-enunciador. Ao fazer a comunicação à beata, o eu-enunciador se projeta
no enunciado por oposição a um tu, sua enunciatária, o que os tornam embreados com o
tempo da enunciação enunciada. O padre é projetado em terceira pessoa, no pretérito
perfeito, o que o instaura como debreado do enunciado e da enunciação. As figuras que
caracterizam sua debreagem temporal são: fez, deixou e foi.
Pode-se, assim, entrever o que foi explicado sobre a temporalização através das
expressões seguintes:
“[...]Vim aqui [...]
“[...]Fez uma viagem[...]”
“[...]Deixou o Juazeiro[...]”
“[...]Foi pro céu [...]”
No primeiro verso, encontra-se configurada a embreagem enunciativa entre o eu-
enunciador e sua enunciatária, a beata. Nos versos seguintes, pode-se perceber a
114
debreagem temporal do padre Cícero. Àquela é referente ao presente, tempo da enunciação
enunciada e esta, refere-se ao passado, tempo determinador do fato histórico enunciado na
narrativa, a morte do padre.
4.3.3.2 Semântica discursiva
Na semântica discursiva da cantiga Santa beata Mocinha, evidencia-se a presença
de esquemas abstratos revestidos por temas, que correlacionados às figuras da superfície
discursiva dão concretude aos sentidos que circulam na narrativa.
O tema fé presente na voz do eu-enunciador, o devoto, permeia toda a narrativa
denunciando a crença religiosa do povo brasileiro, especialmente o nordestino. A fé,
considerada como a primeira das três virtudes teologais do catolicismo, é entendida como
adesão e anuência pessoal a Deus e as suas criaturas. Pode ser, ainda, vista como firmeza
na execução de uma promessa. Percebe-se, na conjuntura textual, que o eu-enunciador é
um homem de fé, um devoto, pois acredita, ou seja, deposita confiança na figura mística do
padre Cícero (homem de Deus), na beata Mocinha e no próprio Deus, ser supremo, capaz
de proteger o povo que sofre. Evidencia-se, também, a fé na superfície discursiva, como a
força do imaginário coletivo do povo sofredor, os romeiros que, em busca de cura para
seus males físicos ou espirituais, solução para seus problemas financeiros, conjugais,
enfim, de melhoria para suas vidas, caminham em romaria para Juazeiro do Norte, cidade
onde se encontra erguida, na Serra do Horto, a estátua do Padre Cícero que mede vinte e
cinco metros de altura por oito metros de base. Na colina, existe uma capela para onde os
romeiros se dirigem a pé pela ladeira do horto. No dia vinte de julho acontece a festa, uma
das mais importantes romarias do Nordeste, data em que se comemora o aniversário do
padre Cícero Romão. Por ocasião dos festejos, são celebradas missas, bênçãos de imagens,
procissões, novenas, peregrinações, visitações aos locais de interesse religioso. A figura
mística de Padre Cícero conquistou, no passado, a admiração dos habitantes do Juazeiro e
regiões circunvizinhas, pelo carisma e dedicação de homem, sacerdote e líder, preocupado
em aconselhar e atender às reivindicações populares e anseios dos mais humildes e, hoje,
continua sendo venerado por uma multidão, ainda maior de devotos que acredita na sua
intercessão como santo milagreiro. A interpretação feita, consoante as expressões
115
discursivas do enunciado, pode ser melhor compreendida com a leitura reflexiva dos
versos seguintes:
“Meu padrinho, padre Cícero
Foi pro céu vendo o povo sem sorte”
“Ao Senhor foi pedir
Proteção pros romeiros do norte”
Nos versos citados acima, vislumbra-se o falar, tipicamente nordestino, que
evidencia, explicitamente, a célula ideológica em torno da qual o discurso se constrói. A
palavra fé, traduzida do grego (pi’stis) pode, primeiramente, ser entendida como
confidência, confiança, firme persuasão. Dependendo do contexto, poderá ser
compreendida como lealdade ou fidelidade.
Conforme citação bíblica a seguir, a fé é concebida da como: “um modo de já
possuir aquilo que se espera, é um meio de conhecer realidades que não se vêem”.
(CARTA..., 1998, p. 1556)
A fé é, portanto, uma virtude que caminha paralela com o agir religioso. Aqueles
que não vivem em consonância com a fé acabam se distanciando do amor fraterno, dos
bens relacionais, da vida em comunidade, dentre outros valores humanos. A consciência é
formada pela fé. O texto bíblico é bastante rico em exortação á fé, como o citado a seguir:
Timóteo, meu filho esta é a instrução, que lhe confio, conforme as profecias que foram outrora pronunciadas a respeito de você. Esteja firme nelas e combata o bom combate, com fé e boa consciência. Alguns rejeitaram boa consciência e acabaram naufragando na fé”. (PRIMEIRA..., 1998, p. 1530)
O tema devoção permeia a narrativa expresso através das figuras “minha santa” e
“meu padrinho”, como forma de mostrar a fé, ou a confiança que o devoto, o eu-
enunciador, deposita em seus santos, escolhidos por ele, para serem seus intercessores
junto a Deus. A devoção é o ato de dedicar-se ou consagrar-se a alguém ou entidade, por
meio do fervor religioso. Na canção em análise, o fervor religioso daquele que enuncia
pode ser visualizado através dos seguintes versos:
116
“Minha santa Beata Mocinha”
“Meu Padrinho, padre Cícero”
O tema religiosidade católica emerge na face discursiva da canção, revelando,
claramente, a escolha individual do eu-enunciador em demonstrar espiritualidade, através
da crença religiosa da fé católica que cultua. Este é discursivizado no enunciado pelo
devoto através das expressões: santa, beata, padrinho, padre, céu e romeiros, que são
palavras utilizadas, particularmente, no falar daqueles que são adeptos do catolicismo.
Morte é o tema a partir do qual se desenvolve toda a narrativa. Comovido pela
morte do Padre, seu padrinho, o devoto sai ao encontro da beata para comunicar-lhe sobre
o fato acontecido. Revestido de abstração, o tema morte conota, na voz do eu-enunciador,
o sentido de viagem ou, ainda, a passagem de um lugar para outro, isto é, da terra para o
céu. Céu, também, conotativo, mostra, na tecitura do discurso, que é ideologicamente
marcada pela crença cristã, o sentido da morada eterna, casa paterna, lugar para onde
retornam os filhos de Deus. Segundo a doutrina do cristianismo, este é o espaço reservado
para os justos, retos de coração. No discurso enunciado, o padre vai para o céu ao encontro
do Pai; portanto, vai retornar para pedir proteção para o povo que sofre. O pedir proteção
evidencia a bondade do padre, que tem uma alma boa, bom coração, é caridoso, que se
compadece do sofrimento do próximo e por isso, vai para o céu interceder junto ao Pai. O
padre não pede apenas por pessoas específicas, mas por todos os moradores da região, o
povo do Nordeste e os romeiros que sofrem. É nisto que reside seu valor, que o caracteriza
como chefe cuidadoso, responsável, que mesmo depois de morto, não abandonou seu povo,
voltando ao Pai para interceder junto a Ele. O que ora foi comentado pode ser conferido
através da configuração dos versos seguintes:
“Meu padrinho fez uma viagem”[...]
“Foi pro céu vendo o povo sem sorte
Ao Senhor foi pedir
Proteção pros romeiros do norte”
117
O tema vida emerge, na narrativa, por oposição ao tema morte. A expressão “fez
uma viagem” entendida, primeiramente, como denotadora de eufemismo para suavizar a
notícia da morte do padre, ao mesmo tempo, sugere também, a idéia conotativa de vida
eterna, para o mesmo ator. Esta alternância de sentido permite que se perceba, na
superfície discursiva a ideologia cristã sobre a plenitude da vida, podendo ser conferida por
meio da citação bíblica a seguir:
Eu garanto a vocês: quem acredita possui a vida eterna. Eu sou o pão da vida. Os pais de vocês comeram o maná no deserto e, no entanto, morreram. Eis aqui o pão que desceu do céu: quem dele comer nunca morrerá. E Jesus continuou “Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem como deste pão viverá para sempre. E o pão que eu vou dar é a minha própria carne, para que o mundo tenha a vida”. (EVANGELHO..., 1998, p. 1363)
O tema sofrimento é figurativizado no enunciado pela expressão “povo sem sorte”.
No dizer do eu-enunciador, está imbuído o sofrer da gente do Nordeste, sofrida por causa
da seca, que traz miséria e fome entre outros tantos pesares, mas também pelo descaso das
administrações que detêm o poder público e pouco fazem para ajudar aos necessitados.
Aparece, então, na organização textual a figura do padre, como homem bom, que percebe
as carências de seu povo fiel, e assim como na terra, o devoto acredita que, do céu, ele
também irá ajudar os pobres, intercedendo por eles a Deus. Os versos citados a seguir
podem constatar o que foi interpretado:
“Ao Senhor foi pedir
Proteção pros romeiros do norte”
O tema auxílio discursivizado por meio da expressão “foi pedir proteção” evidencia
a missão do padre Cícero que, na condição de pastor, que é figurativizado nas palavras de
Jesus como aquele que cuida de suas ovelhas, ou seja, de seu rebanho, morre, viaja, isto é,
vai em direção a Deus com o objetivo de continuar como intercessor do povo sofredor. No
verso a seguir, o verbo “ver”, conjugado no gerúndio, indica a ação continuada do
pastoreio do padre, mesmo depois de sua morte:
118
“Foi pro céu vendo o povo sem sorte”
O tema abandono é expresso, no texto da cantiga, através da configuração
discursiva do verso seguinte:
“Ô, deixou Juazeiro sozinho”
Aquele que enuncia, sendo um homem de fé, acredita que o padre morreu, mas vai
continuar protegendo o povo de Juazeiro e os romeiros, lá do céu. A figura “sozinho” pode
ser interpretada como abandono, quando ao morrer, o padre deixou o Juazeiro. Percebe-se
um tom de solidão e de tristeza, em sua voz, ao mencioná-la, dado o momento da
separação entre ele e padre, seu padrinho que, agora, está no céu, distante dele que se
encontra na terra. Mesmo para quem tem fé, como o devoto, a dor da separação faz surgir o
sentimento de fragilidade do ser humano. Porém, como homem crente, considera que seu
padrinho não abandonará seu povo sem sorte, pois no seu discurso eufêmico, brilha a luz
da fé quando menciona a seguinte expressão:
“Ao Senhor foi pedir
Proteção pros romeiros do norte”
Os temas e figuras da discursivização da cantiga Santa beata Mocinha possibilitam
identificação dos aspectos ideológicos da religiosidade brasileira, em especial, do povo
nordestino, uma vez que, traduzem o fervor místico da manifestação popular da crença
católica imbricada na voz do eu-enunciador. Sua devoção pelo Padre Cícero Romão é
testemunho de fé, de lealdade, a seu padrinho, comum a tantos outros nordestinos que,
confiantes na proteção do padre e de Deus, caminham pelas estradas da vida, numa luta
árdua e constante, com esperança de alcançar as graças pedidas. A história de Juazeiro do
119
Norte testemunha a importância de Padre Cícero, para seu povo, bem como, os
depoimentos de fé de sua gente, que declaram milagres alcançados.
4.3.3.3 Leituras Temáticas
No percurso gerativo da significação da cantiga Santa beata Mocinha, os traços
semânticos reiterados possibilitam a concepção das leituras temáticas citadas a seguir:
Primeira leitura
O ser humano tem necessidade de acreditar em algo sobrenatural.
Segunda leitura
O eu-enunciador é um crente da fé católica.
Terceira leitura
O povo necessita de proteção divina.
Quarta leitura
O devoto acredita no poder intercessor de Padre Cícero Romão.
Quinta leitura
O eu-enunciador é devoto de Santa beata Mocinha e de Padre Cícero.
Sexta leitura
A morte é a passagem de uma vida material para uma existência espiritual.
Sétima leitura
Com a morte do padre o povo se sente sozinho, desprotegido.
Oitava leitura
120
O povo e os romeiros acreditam nos milagres do padre.
Nona leitura
O povo sofre, por isso pede auxílio ao santo padre.
Décima leitura
Juazeiro do Norte é um lugar de romaria.
Décima primeira leitura
O nordestino é homem de fé.
Décima segunda leitura
O céu é o lugar divino, o paraíso.
121
4.3.3.4 Quadro-resumo das estruturas discursivas da cantiga Santa beata Mocinha
Actorialização
Espacialização
Temporalização
Efeitos de sentido
Temas
Figuras
Eu–enunciador
(devoto)
Beata Mocinha
Padre Cícero
Povo
Romeiros
Deus (subentendido)
Aqui
indeterminado
(lugar do encontro
devoto com a
beata)
Juazeiro do Norte
Céu
Presente
concomitante a um
passado e um
futuro
Embreagem
Debreagem
Fé
Devoção
Religiosidade católica
Morte
Vida
Sofrimento
Auxílio
Abandono
“Ao Senhor foi pedir
Proteção pros romeiros do norte”;
“minha santa beata”, “meu
padrinho Padre Cícero”;
santa, beata, padrinho, padre, céu
e romeiros;
“Meu padrinho fez uma viagem”,
“Foi pro céu [...]”;
“fez uma viagem”;
“povo sem sorte”;
“foi pedir proteção”;
“Ô, deixou Juazeiro sozinho”.
122
4.3.4 Estrutura fundamental
Sucede, na narrativa, primeiramente, uma tensão dialética entre os termos contrários
vida versus morte que mantêm uma relação de contrariedade entre si e determinam a oposição
semântica binária a partir da qual se constrói o discurso. Esta tensão define as relações
espaciais entre os atores devoto, beata, padre, povo, romeiros e Deus. As relações conflitivas,
dessa instância, podem ser demonstradas através do seguinte octógono:
MorteVida
Não-vidaNão-morte
Presença(Padre em Juazeiro)
Ausência(Padre no céu)
Tensão dialética
O termo vida é o contrário de morte e o contraditório de não-vida. Vida implica não-
morte. Da relação entre vida e não-morte resulta o metatermo presença, que caracteriza a
proximidade entre o padre e os devotos em Juazeiro do norte. Morte é contrário de vida e o
contraditório de não-morte. Morte implica não-vida. A implicação entre morte e não-vida faz
surgir o metatermo ausência, caracterizando a separação entre os devotos e o padre. Os termos
não-morte e não-vida correspondem à inexistência semiótica, representado pelo zero cortado.
O termo vida (do padre) denota para o devoto, a beata, o povo, e os romeiros um valor
eufórico, uma vez que o padre, enquanto viveu entre eles na vida terrena, era seu
representante, aquele que lutava pelos interesses de seu rebanho. Já o termo morte representa
um valor disfórico para eles, uma vez que a ausência do padre fez surgir um sentimento de
123
desproteção. O “padrinho”, ou “paizinho”, para o catolicismo, representa a figura do pai,
daquele que cuida e protege seus filhos. Com a morte do pai, os filhos órfãos se sentem
desamparados, desprotegidos, enfim, sozinhos. O clima tenso da narrativa gerado a partir dos
opostos morte versus vida, por se referir à existência humana, abre espaço para a questão da
vida além da morte do corpo material. Para os que têm fé, a morte é considerada a passagem
de uma vida terrena para outra. Esta é concebida como vida eterna, reservada ao descanso na
morada do pai, Deus-pai, de onde todos vêm e para onde voltam. Conforme citação bíblica a
seguir, sobre a vida eterna, lê-se:
Pai, chegou a hora. Glorifica o teu Filho, para que o Filho glorifique a Ti, pois lhe deste poder sobre todos os homens para que ele dê a vida eterna a todos aqueles que lhe deste. Ora, a vida eterna é esta: que eles conheçam a Ti, o único Deus verdadeiro, e aquele que tu enviaste, Jesus Cristo. (EVANGELHO..., 1998, p.1379)
Na narrativa, os devotos do padre Cícero acreditam que sua “viagem”, forma eufêmica
de enunciar a morte do vigário, é a passagem que denota a continuidade de sua vida de
intercessor, de protetor dos necessitados que ficaram na terra. O falar zeloso do enunciador
declara sua fé mística pela evidente religiosidade católica, imbuída na tecitura discursiva.
Emerge, ainda, na narrativa, uma outra tensão dialética entre os termos opostos fé
versus dúvida. Este conflito traz à tona a relação de fé entre o devoto e seu padrinho, padre
Cícero. O devoto tem fé, acredita que o padre “foi pro céu” para pedir proteção para o povo
sem sorte, mas por um momento, aparece superficializado na narrativa, um sentimento de
abandono que o eu-enunciador deixa escapar, ao mencionar o seguinte verso “Ô, deixou o
Juazeiro sozinho”. Nota-se, então, sua fragilidade, sua natureza humana, a fraqueza da carne.
O octógono semiótico seguinte demonstra, a tensão dialética explicada, anteriormente:
124
DúvidaFé
Não-féNão-dúvida
Esperança Desesperança
Tensão di alética
O termo fé é o contrário de dúvida e contraditório de não-fé. Fé implica não-dúvida.
Da relação entre fé e não-dúvida resulta o metatermo esperança, que representa a espera dos
devotos pela proteção divina por intercessão do padre. O termo dúvida é o contrário de fé e o
contraditório de não-dúvida. A relação de implicação entre os termos dúvida e não-fé faz
surgir o metatermo desesperança que caracteriza a fragilidade daquele que enuncia, num
momento de angústia, diante da morte do padre. A relação entre os termos não-dúvida e não-
fé representa a inexistência semiótica, representada pelo zero cortado.
Enquanto a fé denota para o devoto um valor eufórico, pois através dela consegue estar
próximo dele (o padre) em espírito e, por conseguinte, sob o olhar protetor daquele a quem
rende culto; a dúvida significa um valor disfórico posto que subjaz a ela o distanciamento
espiritual e, consequentemente, a sensação de solidão e desprezo.
Pode-se, ainda, perceber um terceiro conflito dialético instaurado na narrativa entre os
termos contrários proteção versus abandono, que caracterizam a relação entre os devotos e o
padre protetor.
O termo proteção é o contrário de abandono e contraditório de não-proteção. Proteção
implica não-abandono. É a relação que se dá entre o padre Cícero e os devotos. O amor e o
zelo pelo rebanho fazem com que o padre, pastor dos devotos, continue, através da fé, mesmo
depois de sua “viagem” para o céu, pastoreando suas ovelhas, os romeiros e o povo sofredor
do Juazeiro. Da relação entre proteção e não-abandono procede o metatermo graça,
representando benefícios aos que pedem em oração.
125
O termo abandono é o contrário de proteção e o contraditório de não-abandono.
Abandono implica não-proteção. A relação de implicação entre os termos abandono e não-
proteção faz surgir o metatermo desgraça, significando, na narrativa, a miséria, calamidade,
ou catástrofe social que aflige os romeiros e o povo sofredor. Os termos não-abandono e não-
proteção correspondem à inexistência semiótica, representada pelo zero cortado. O que foi
explicado pode ser figurativizado através do octógono seguinte:
AbandonoProteção
Não-proteçãoNão-abandono
Graça Desgraça
Tensão dialética
O termo proteção denota para os devotos um valor eufórico; enquanto abandono,
representa-lhes um valor disfórico.
126
4.4 CANÇÃO DA DESPEDIDA
4.4.1 Segmentação
Sg1 Romance
Sg2 Despedida dos amantes
4.4.2 Estruturas Narrativas
O drama narrativo desta canção se concentra na despedida entre o eu-enunciador e a
mulher amada. As estruturas narrativas da canção comportam o fazer de apenas um Sujeito
Semiótico, o (S1). Este sujeito, figurativizado como eu-enunciador, instaura-se, na narrativa,
pela modalidade de um querer-despedir-se. Tem por Objeto de Valor principal (OV1),
despedir-se de sua amada. Em seu programa narrativo, é motivado por uma auto-destinação,
ou seja, a necessidade de fazer uma viagem. O amor pela mulher amada funciona como um
Oponente, uma vez que, percebe-se sua atribulação.
O programa narrativo do Sujeito Semiótico S1 pode ser configurado da seguinte forma:
Dário _______________________________________ Dor (necessidade de viajar) _______________________________________ OV1 S1 Op. (amor pela amada) (despedir-se da amada) (eu-enunciador)
O percurso do S1 é constituído por apenas um momento. Neste, percebe-se seu
sofrimento por precisar partir e deixar sua amada, por um motivo não explicitado, na
127
narrativa. Despede-se da amada para sempre, o que leva a se concluir que seja o fim da
relação amorosa.
O percurso do S1 pode ser visualizado a partir do seguinte diagrama:
Despedida S1 OV1
(despedir-se da amada)
Nota-se que o S1 emerge na narrativa como um discurso sedutor, caracterizado pela
modalidade de um querer-fazer-crer à amada que o adeus é para sempre. Os versos seguintes
evidenciam o poder sedutor do sujeito enunciador.
“Adeus meu amor querido
Imagem do meu coração”
Percebe-se que o S1, no início do seu percurso, apresenta-se num estado de disjunção
com o seu Objeto de Valor principal, que é despedir-se da amada. A transformação (F),
desencadeada pela passagem do estado de privação ao de posse do objeto desejado é obtida
pela intervenção do fazer transformador de responsabilidade do próprio S1 que, dotado de
uma capacidade, torna-se competente para poder-fazer a comunicação de sua viagem à
amada, ou seja, despedir-se dela, realizando, assim, uma performance. Este fazer
transformador evidencia o estado final de seu percurso, correspondente ao momento em que
ele encontra a amada e se despede dela, entrando assim, em conjunção com seu Objeto de
Valor, que é despedir-se. Finalmente, pode-se chegar à conclusão de que o S1 que, antes se
encontrava disjunto de seu Objeto de Valor, passa a conjunto com o mesmo. Esta
consideração pode ser simplificada na frase-diagrama a seguir:
F= [(S1 U OV1) (S1 ∩ OV1)]
128
4.4.2.1 Quadro-resumo das estruturas narrativas da cantiga Canção da despedida
Junção
Sujeito Semiótico
Objeto de Valor
Conjunto Disjunto
Destinador Adjuvante Oponente
Modalização
S1
(eu-enunciador)
Despedir-se da
amada + -
Necessidade
de viajar -
Amor pela
mulher amada
Querer-despedir-se
129
4.4.3 Estruturas Discursivas
4.4.3.1 Sintaxe discursiva
A discursivização da cantiga Canção da despedida vem à tona na superfície textual
por meio do ato enunciativo do eu-enunciador que se dirige a sua amada, enunciatária textual,
com a intenção de despedir-se dela, para sempre. Todo o processo discursivo é permeado pelo
triste lamento da despedida, daquele que enuncia. Num pranto de dor, declara seu amor à
amada, considerando-a imagem de si, e seu sofrimento por necessitar partir. Utilizando um
discurso sedutor, logo no prelúdio da canção, o eu-enunciador interpela sua amada com o
seguinte verso de despedida:
“Adeus meu amor querido”
As relações intersubjetivas da canção são reproduzidas, na tecitura discursiva, pela
relação de oposição entre o eu-enunciador e um “tu” (enunciatário), seu amor querido, a quem
o enunciador se refere em seu canto de despedida. Na textualização do discurso, somente o
eu-enunciador tem voz, sua enunciatária só apresenta poder de audição. Sua fala projetada em
primeira pessoa do presente do indicativo reflete sua subjetividade, deixando reluzir ora o
amor apaixonado que sente pela amada, ora refletindo a dor da separação por ter que deixá-la.
Observando-se as subjacências desse discurso, pode-se remeter esta trama discursiva ao
drama de casais nordestinos que, por não encontrarem trabalho em sua região, o marido parte
para outras regiões em busca de emprego, deixando mulher, filhos, parentes, entre outros e,
muitas vezes, não retorna, porque não consegue salário suficiente para custear a viagem de
volta à terra de origem. Então, ao adeus eterno dos atores desta canção, pode-se pressupor a
dor de um “nunca mais” para muitos casais nordestinos, mais especificamente, dos sertanejos
castigados em conseqüência da seca. Nesses casos, as mulheres que ficam responsáveis pela
família e entregues a própria sorte são chamadas “viúvas da seca”. Nos versos citados a
seguir, pode-se constatar o sofrimento daquele que enuncia e, por analogia, a dor daqueles que
migram:
130
“Quem parte leva saudade
A dor da separação”
Ao dizer, no processo discursivo, aquele que parte vai para não mais voltar e isto pode
ser verificado no verso a seguir:
“Adeus para nunca mais”
Esta expressão discursiva deixa de forma transparente que a separação do casal é para
sempre, podendo ser compreendida como o rompimento da relação amorosa. Percebe-se, no
enunciado da canção, que os atores eu-enunciador e mulher amada estão embreados entre si,
no espaço e no tempo, num primeiro momento da narrativa e, numa segunda instância do
percurso ficam debreados, caracterizando assim, dois efeitos de sentido denominados de
embreagem e debreagem. A embreagem actancial, espacial e temporal é caracterizada pela
aproximação entre os atores da narrativa, no momento que estão juntos e, a debreagem é
evidenciada pela circunstância da despedida que suscita o afastamento ou distanciamento
entre eles, num segundo momento que não é figurativizado no texto, ficando subentendido
como conseqüente à despedida.
A espacialização da canção não é determinada na superfície discursiva. O aqui da
enunciação enunciada, não é expresso, na tecitura do texto; porém, pode-se pressupor que é o
lar, ou um outro lugar, onde os amantes costumam se encontrar. Assim, pode-se constatar que
o eu-enunciador e sua enunciatária textual se encontram embreados no espaço enunciativo,
num dado instante do presente. Um outro espaço, o lá, para onde aquele que enuncia irá, por
seu turno, também não aparece figurativizado, na discursivização, é indicador da debreagem
espacial do eu-enunciador, no futuro, dado o episódio da despedida. O eu-enunciador ao
comunicar sua partida à amada deixa marcada, no enunciado, sua debreagem espacial. Na
relação de aproximação e afastamento está imbuída a idéia de um local de origem e um de
destino não identificados na contextura discursiva. O que foi elucidado sobre a relação
espacial da canção pode ser extraído no verso citado a seguir:
131
“Adeus meu amor querido”
“Quem parte leva saudade”
A temporalização da canção em análise comporta um tempo lingüístico, que remete à
instância enunciativa, localizando o eu-enunciador e sua enunciatária no momento do
acontecimento da despedida enunciada e o tempo crônico, organizado através das expressões
discursivas indicadoras de tempo que se apresentam figurativizadas por meio dos verbos
partir e levar conjugados no presente do subjuntivo. Ao pronunciar a despedida, o eu-
enunciador se projeta no enunciado em oposição ao tu, enunciatário textual, originando a
embreagem temporal. Uma debreagem temporal, também pode ser evidenciada, uma vez que,
na tecitura discursiva as marcas temporais, expressas pelas figuras adverbiais “[...] quando
declina”, “[...] quando cai e “[...] nunca mais” deixam evidente que o adeus enunciado é para
todo o sempre. Nos versos citados a seguir, pode-se verificar o que foi dito:
“Adeus meu amor querido”
“Quem parte leva saudade”
A tarde quando declina
É como a flor quando cai
“Adeus para nunca mais”
No primeiro verso citado, percebe-se a embreagem temporal entre os atores; no
segundo, a evidência do tempo presente, o terceiro, quarto e quinto versos suscitam que
haverá, no futuro, uma debreagem temporal ou o afastamento do eu-enunciador da instância
enunciativa.
4.4.3.2 Semântica discursiva
A semântica discursiva do texto Canção da despedida torna evidente a presença de
esquemas abstratos que, revestidos por termos e correlacionados às figuras discursivas,
132
concretizam os sentidos que se movimentam no percurso gerativo da significação da canção
em análise.
O tema amor presente na narrativa por meio das expressões figurativas meu amor,
meu coração, configura o sentimento de paixão que envolve os atores da discursivização. A
figura “meu amor”, expressão carinhosa utilizada pelo enunciador para interpelar a amada e
declarar seu amor por ela. Conforme a conjuntura semântica do texto, o sentimento não se
acaba com o adeus, uma vez que, aquele que parte, despede-se dizendo que leva consigo a
saudade. Esta se sente quando se ama ou se tem apreço por alguém ou por alguma coisa.
Pode-se verificar o que foi dito, anteriormente, nas estruturas discursivas citadas a seguir:
“Adeus meu amor querido
Imagem do meu coração
Quem parte leva a saudade”
O tema despedida permeia todo o enredo da canção através das expressões figurativas
adeus, saudade, separação. Segundo as marcas discursivas do enunciado, a despedida
acontece entre o eu-enunciador e sua mulher amada e se dá para sempre, o que causa dor e
sofrimento para aquele que enuncia. Os versos citados seguintes são elucidativos:
“Adeus meu amor querido”
Adeus para nunca mais”
O tema sofrimento surge na superfície discursiva em decorrência do episódio da
despedida. O eu-enunciador deixa, em seu discurso, marcas de seu sofrimento por necessitar
separar-se de sua amada, o que pode ser constatado nos versos citados a seguir:
“Quem parte leva saudade
A dor da separação”
133
O tema separação emerge, na tecitura discursiva, figurativizado por meio da expressão
separação, que é indicadora do rompimento do romance e/ou da vida conjugal dos atores da
narrativa em estudo. De acordo com a harmonia semântica das expressões figurativas do
texto, há indícios de que não haverá uma volta e/ou reconciliação. Tal concepção
argumentativa pode ser verificada a partir da leitura do verso a seguir:
“Adeus para nunca mais”
O tema morte aparece superficializado na discursivização da cantiga de forma figurada
através do recurso figurativo utilizado pelo eu-enunciador para notificar que sua partida
equivale, de forma conotativa, à morte, comparando sua partida com o pôr do sol e à queda
das flores, do galho. O que foi elucidado pode ser verificado na expressão dos versos
seguintes:
“A tarde quando declina
É como a flor quando cai
Que se despreza do galho
Adeus para nunca mais”
Tais expressões citadas evidenciam os traços semânticos do tema morte, uma vez que,
para aquele que enuncia, a tarde morre, a flor morre e quem parte para sempre, de certa forma,
também morre. O eu-enunciador se utiliza da metáfora para evidenciar o rompimento da
relação de amor.
Os temas e figuras emergentes no discurso enunciado evidenciam o drama narrativo da
canção em análise. O eu-enunciador projetado no enunciado é identificado através do
pronome possessivo meu, que pode ser concebido como “ eu”, homem nordestino, aquele
Severino migrante ... que, por necessitar lutar pela sobrevivência, parte, ou seja, migra de sua
terra, deixando sua amada, às vezes, para sempre.
Aquele que enuncia utiliza, em seu discurso sedutor, recursos semânticos discursivos
que configuram temas expressivos no decorrer da narrativa. Amor, morte, separação,
134
despedida e sofrimento foram evidenciados no percurso gerativo de sentido, constituindo a
configuração discursiva do texto. Ao dizer, nos versos citados a seguir, o eu-enunciador
constrói uma figura de palavra denominada pela retórica clássica de metáfora:
“Adeus meu amor querido
Imagem do meu coração”
As expressões “[...] amor querido” e “Imagem do meu coração”, respectivamente, são
utilizadas numa relação de similaridade entre si, possibilitando outro modo de produção de
sentido, no contexto da canção, que vão além da pertinência semântica de cada termo em si
mesmo. Para aquele que enuncia, a mulher amada é a imagem de si mesmo, pois está no seu
coração, ocupando o mais íntimo do seu ser. Em outras palavras, ele e a amada são “uma só
carne”, pelo amor que os une. Através dos recursos argumentativos utilizados pelo
enunciador, evidencia-se, portanto, a intensidade do seu amor.
As expressões “tarde quando declina” e “flor quando cai” suscitam de modo
comparativo a idéia da partida do eu-enunciador que se vai para nunca mais voltar. Assim,
percebe-se que os sentidos circulam pelas palavras, dando-lhes uma outra significação. O que
acontece com ele é semelhante ao que se sucede na natureza com a tarde e a flor. A partir dos
sentidos que circundam pelo texto da canção, pode-se concluir que subjaz à discursivização
do enunciado a idéia de que se despedir, para sempre, denota morte para os amantes.
4.4.3.3 Leituras Temáticas
No desenrolar da narrativa, desde seu prelúdio até seu acorde final, os traços
semânticos reiterados permitiram a concepção das seguintes leituras temáticas:
Primeira leitura
O amor é um sentimento sublime.
Segunda leitura
135
O ser humano é capaz de amar.
Terceira leitura
A separação para os que amam é sinônimo de sofrimento.
Quarta leitura
A distância espacial entre os amantes não impede as saudosas lembranças.
Quinta leitura
A separação é vista como a morte da relação amorosa.
Sexta leitura
A união significa felicidade.
Sétima leitura
À separação, subjaz a infelicidade.
Oitava leitura
É possível que a viagem do eu-enunciador tenha sido por motivo de buscar trabalho
em outra região.
Nona leitura
O amor supera tudo.
136
4.4.3.4 Quadro-resumo das estruturas discursivas da cantiga Canção da despedida
Actorialização
Espacialização Temporalização Efeitos de
sentido Temas Figuras
Amor
“[...] amor querido”,
“Imagem do meu coração”
Despedida
“Adeus meu amor querido,
Adeus para nunca mais”
Separação
“[...] a tarde quando declina,
Que se despreza do galho”,
“Quem parte [...]”
Sofrimento
“A dor da separação”,
“[...] saudade”
Eu-enunciador
Amor querido
(mulher-amada)
Aqui indeterminado
(pressuposto por lar)
Lá (indeterminado)
Presente em
concomitância com
o futuro
Embreagem
Debreagem
Morte
“[...] tarde [...] declina”,
“[...] a flor [...] cai”,
“Adeus para nunca mais”
137
4.4.4 Estrutura Fundamental
A cantiga Canção da despedida é transpassada por valores axiológicos, estabelecidos
por meio de relações conflitivas que podem ser expressas de modo dialético no octógono
semiótico. Tal modelo permite uma compreensão mais profunda das ideologias subjacentes à
narrativa. As tensões dialéticas que surgem, no percurso gerativo da narrativa, definem a
relação de amor entre os sujeitos.
Ocorre, na primeira instância da narrativa, um conflito entre os termos opostos união
versus separação. O termo união é o contrário de separação e o contraditório de não-união.
União implica não-separação. Da relação de implicação entre união e não-separação surge o
metatermo felicidade. É o que ocorre, inicialmente, entre o eu-enunciador e sua amada,
quando estão juntos. Já o termo separação é o contrário de união e o contraditório de não-
separação. A relação implicativa entre separação e não-união faz surgir o metatermo
sofrimento, desencadeado pelo rompimento ou o afastamento entre os amantes. A oposição
entre os termos da dêixis negativa não-separação versus não-união representa a inexistência
semiótica, simbolizada pelo zero cortado.
O termo união denota, tanto para o eu-enunciador quanto para sua amada, um valor
eufórico, no momento da narrativa em que são felizes por viverem juntos. Noutro anglo
semântico, o termo separação indica um valor disfórico para eles, uma vez que, esta é
causadora de dor conforme a fala no eu-enunciador explicita no verso “A dor da separação”.
Com a separação, pode-se concluir que o sofrimento deflora a vida dos amantes, atores
da narrativa em estudo. As idéias concebidas e exploradas a partir da tensão dialética entre os
termos opostos podem ser demonstradas por meio do octógono seguinte:
138
SeparaçãoUnião
Não-uniãoNão-separ ação
Felicidade Sofrimento
Tensão dialética
Outro conflito que se instaura na semântica profunda da narrativa da cantiga se
processa entre os termos opostos vida versus morte. Estes termos estão subjacentes às
estruturas discursivas, de forma figurativa e temática através de metáforas e comparações. O
eu-enunciador permeia seu discurso poético-musical com um tom melancólico de despedida
que faz suscitar traços semânticos dos termos vida e morte, deixando emergir a idéia de vida
como processo de continuidade da relação amorosa, enquanto morte suscita o rompimento da
relação de amor.
O termo vida é o contrário de morte e contraditório de não-vida. Vida implica não-
morte. Da relação de implicação entre vida e não-morte emerge o metatermo continuidade da
relação amorosa entre o eu-enunciador e sua mulher amada. O termo morte por seu turno, é o
contrário de vida e o contraditório de não-morte. Morte implica não-vida. Da relação de
implicação entre morte e não-vida faz surgir o metatermo rompimento que significa o fim da
relação entre os amantes atores da narrativa. A relação de oposição entre os termos da dêixes
negativa não-morte e não-vida caracterizam a inexistência semiótica simbolizada pelo zero
cortado.
A tensão dialética entre vida versus morte concebida na canção em análise pode ser
visualizada através do octógono semiótico seguinte:
139
MorteVida
Não-vidaNão-morte
Continuidadeda relação
Rompimentoda relação
Tensão dialética Relação amorosa
O termo vida indica um valor eufórico para os amantes uma vez que denota a
continuidade da relação de amor; enquanto que, ao termo morte, subjaz um valor disfórico,
pois representa o fim, o rompimento da relação, causando dor e sofrimento.
Aquele que enuncia deixa subjacente ao seu discurso traços semânticos de vida e
morte quando compara seu adeus que é para sempre com a tarde que declina e com a flor
quando cai. Respectivamente, a tarde que declina, morre e a flor quando cai, também morre.
Vida para ele, é estar junto da mulher amada enquanto morte é separar-se dela.
140
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As cantorias de rua das Ceguinhas de Campina Grande-PB constituem motivo de
orgulho para o Nordeste brasileiro. Adquiridas através da oralidade, foram repassadas de boca
a boca, de geração a geração, de cego-pedinte a cego-pedinte, ao longo do tempo, cantando os
costumes e revelando os valores de seu povo rico pela sua diversidade cultural.
Estas canções ocupam lugar privilegiado entre as cantorias de cegos, na região
Nordeste do Brasil, uma vez que são cantadas pelas Ceguinhas que tiveram sua história de
vida documentada em filme, gravaram um CD e tiveram suas músicas cantadas e gravadas por
cantores de renome nacional e internacional.
Os textos analisados falam do amor entre o homem e a mulher, denominado Eros,
pelos estudiosos; da religiosidade católica do povo nordestino, onde está imbuída a fé na
Supremacia de Deus; da devoção por santos protetores, como a figura do Padre Cícero Romão
do Juazeiro do Norte e da crença em milagres. Reportam, ainda, ao suplício da vida de cegos-
pedintes e ao drama da separação e/ou despedida de casais, devido os problemas decorrentes
da seca que afligem o homem nordestino, muitas vezes obrigado a migrar para outras regiões
do país em busca de trabalho. Subjacentes a seus discursos estão os sentimentos mais
profundos, oriundos do interior da alma humana. Por serem cantadas por mulheres
nordestinas, marcadas pela deficiência visual, têm um quê de especial, ou seja, um toque
singular, dada à harmonia e cumplicidade que se pode perceber na trajetória de suas vidas.
As estruturas narrativas das cantigas analisadas apresentam a trajetória de poucos
sujeitos semióticos, no máximo três. Apenas uma, Noite enluarada, apresenta sincretismo
actancial ou conflito de natureza subjetiva, sucedido quando, no interior de um único ator,
existe uma tensão entre dois sujeitos distintos. A jovem se apresenta como um sujeito
sincrético por manifestar, em momentos diversos de seu percurso, objetos de valor diferentes,
levando-a a viver uma situação conflitiva interior. Em geral, os sujeitos apresentam percursos
curtos em busca de seus objetos de valor. Entre eles, apenas o S1 e o S2 da cantiga Santa beata
Mocinha, o S1 de Canção da despedida, o S2 de Moço me dê uma esmola e o S3 de Noite
Enluarada conseguem alcançar seus objetos de valor, tornando-se, assim, conjuntos com os
mesmos. Os demais actantes das narrativas, por não atingirem uma performance desejada,
terminaram seus percursos, disjuntos de seus objetos de valor. As modalizações instauradoras
141
dos sujeitos são, na maioria dos casos, na ordem do querer, caracterizando os discursos como
sedutor, manipulador e persuasivo.
Nas estruturas discursivas, a sintaxe apresenta relações intersubjetivas entre um
enunciador-ator, figurativizado por cantador, esmoleiro (o cego-pedinte) e devoto, que se
projeta no enunciado em primeira pessoa por oposição a um tu, enunciatário textual, que é
revestido pelos papéis temáticos de amor querido, jovem, Beata Mocinha, Padre Cícero, Deus,
moço (o esmoler) e pecador. Aparecem, ainda, projetados na superfície discursiva os atores
romeiros, povo, Jesus Cristo, Nossa Senhora e Família Sagrada. A espacialização se apresenta
configurada por um aqui e um lá indeterminado e, ainda, por espaços específicos como
Juazeiro do Norte, céu, neste mundo (a terra), leito, janela, natureza, calçada, lar, feira-livre e
porta de igreja. Na temporalização, aparece um presente em concomitância com um passado e
um futuro. Da semântica, emergem os seguintes temas: amor, sossego, desprezo, alegria,
esperança, tristeza, sofrimento, beleza, fé, devoção, religiosidade católica, morte, vida,
auxílio, abandono, despedida, separação, generosidade, proteção, pecado, cegueira, visão, dor,
carência e angústia.
Na estrutura fundamental, as relações conflitivas se originam a partir das oposições
semânticas entre os termos amor versus desprezo, alegria versus tristeza, presente versus
passado, presente versus futuro, sossego versus paixão, riqueza versus pobreza, luz versus
escuridão, sagrado versus profano, vida versus morte, fé versus dúvida, proteção versus
abandono, união versus separação, que representam conflitos de natureza intersubjetiva e
intrasubjetivas, permitindo que se percebam os microssistemas de valores centrados, na
narrativa e que se tenha, a partir deles, uma concepção subjacente.
Os valores subjacentes às narrativas das canções Santa beata Mocinha e Canção da
despedida podem ser correlacionados, respectivamente, à identidade religiosa de muitos
nordestinos adeptos do catolicismo, que acreditam, como o devoto, no poder intercessor de
Padre Cícero, figura mistificada e mitificada pela crença do povo e à questão da separação
e/ou despedida por evidenciar a disjunção de um casal que, por analogia, reproduz o triste
dilema da separação de muitos casais nordestinos que, por não terem como sobreviver, na
época da seca e por falta de políticas públicas eficazes, são submetidos a viverem separados,
uma vez que o marido migra para outras regiões do país em busca de emprego. Às vezes, sem
retorno como transparece na cantiga Canção da despedida. Por outro lado, as canções Moço
me dê uma esmola e Noite enluarada comportam valores universais, uma vez que existem
esmoleiros por toda parte do mundo, assim como o amor Eros entre homens e mulheres. Os
142
valores encontrados nas subjacências discursivas podem ser caracterizados como positivos ou
negativos, dependendo da canção e do sujeito que o tem.
Enquanto que as narrativas se mostraram simples, no que diz respeito à quantidade de
sujeitos semióticos nelas envolvidos, a discursivização pode ser considerada complexa pela
quantidade de papéis temáticos que emergem nas superfícies discursivas. Nesta, verificou-se
que, entre os atores, apenas os enunciadores fizeram uso da voz, os demais permanecem em
silêncio, ocupando a posição de ouvintes. Os motivos de tal silêncio não aparecem expressos,
na tecitura discursiva. Pode-se, no entanto, pressupor que seja por divergências de objetos de
ordem intrínseca à natureza humana daqueles sujeitos. Considera-se que as narrativas são
ideologicamente marcadas por valores que ora dignificam o ser humano, como por exemplo:
amor, fé, generosidade, proteção, auxílio, religiosidade, devoção e sinceridade ou por valores
que ora ofuscam sua dignidade, como desprezo, falta de caridade, carência, separação e
indiferença. A figura do homem, nas narrativas, caracteriza-se como sensível, apaixonado,
capaz de demonstrar sentimentos e declarar-se, insistentemente, à amada, venerando-a como
uma deusa. A mulher/amante, por seu turno, apresenta-se como dona de si, capaz de controlar
seus sentimentos e renunciar a um grande amor, quando decepcionada, não se deixando
seduzir por galanteios insistentes e, por conseguinte, não se subordinando a quem a ama.
As considerações discursivizadas neste trabalho de pesquisa evidenciam resultados
que são coerentes com os objetivos, permitindo corroborar a hipótese construída. Pretende-se
com as idéias concebidas e tecidas nesta dissertação suscitar o interesse de outros estudos
científicos que possam analisar textos populares. Espera-se, enfim, que este trabalho possa dar
algum contributo para a cultura popular brasileira, já que teve como propósito pesquisar e
valorizar as coisas ditas pela voz do povo, particularmente, pela voz de três irmãs, mulheres
nordestinas, as Ceguinhas de Campina Grande-PB.
143
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150
APÊNDICES
151
APÊNDICE A – Questões elaboradas para a realização da entrevista
1. Nomes:
2. Datas de nascimento
3. Nomes dos Pais
4. Lugar onde nasceram
5. Lugares onde moraram
6. Atualmente onde residem
7. A deficiência visual é de nascença? Se não, como se deu?
8. Há outras pessoas da família com a mesma deficiência visual?
9. Sabem ler e escrever? (Se sim passe para a questão 10)
10. Freqüentaram alguma escola? Qual? Até que série?
11. Sabem usar o alfabeto braile?
12. Quando aprenderam a cantar?
13. Como aprenderam?
14. Alguém ensinou, quem?
15. Gostam de cantar? Por quê?
16. Quando começaram a cantar onde se apresentavam?
17. Alguém incentivou vocês a cantarem na rua, quem?
18. E atualmente onde se apresentam?
19. Como se sentem com a reação do público?
20. Qual o estilo de música que vocês cantam?
21. As músicas falam de quê?
22. Qual o tema preferido?
23. Essas músicas são decoradas ou improvisadas?
24. (se sim) Já que são decoradas, quem são os autores?
25. (se não) Quem as compôs?
26. Quais são os instrumentos que vocês utilizam?
27. Como aprenderam a tocá-los?
28. Já gravaram algum CD?
29. Já se apresentaram com outros cantores?
30. Além do CD fizeram outro tipo de gravação?
152
31. Já receberam algum prêmio ou homenagem?
32. Sentem-se valorizadas como artistas?
33. O que a música representa em suas vidas?
34. O que aprenderam a fazer além de cantar?
35. Já sofreram algum tipo de discriminação devido à deficiência visual?
36. Depois do filme “A pessoa é para o que nasce”, o que mudou em suas vidas?
37. Gostariam de dizer alguma mensagem a outros portadores de deficiência visual?
38. Vocês poderiam cantar um pouco para nós?
153
APÊNDICE B – Entrevista com as Ceguinhas de Campina Grande-PB
Pesquisadora (entrevistadora): Maria do Socorro de Araujo Cavalcante
Orientadora: Professora Drª. Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista
Entrevistadas: Maria das Neves Barbosa, Regina Barbosa e Francisca da Conceição Barbosa –
As Ceguinhas de Campina Grande-PB
Introdução
Pesquisadora:
Estou realizando um estudo sobre as cantorias de rua das Ceguinhas de Grande, com
base na teoria semiótica francesa. Minha orientadora é a professora Dra. Maria de Fátima
Batista, estou na casa das Ceguinhas de Campina Grande, como são popularmente
conhecidas.
1. Gostaria de saber o nome completo de cada uma de vocês:
“Meu nome é Maria das Neves Barbosa, mais sempre sou conhecida como Maroca”;
“O meu é Francisca da Conceição Barbosa mais sou conhecida por Indaiá”; Regina Barbosa ,
mais me chamam Regina, aqui não , nem no filme, só conhece por Poroca”.
2. Datas de nascimento:
“Eu nasci no dia doze de outubro de mil novecentos e quarenta e quatro”. (Maroca);
“Eu nasci em oito de dezembro de mil novecentos e cinqüenta”. (Indaiá); “Eu nasci no dia
treze de julho de mil novecentos e quarenta e três” (Poroca).
3. Nomes dos Pais:
“Manoel Maria de Sousa e mãe Maria Oleriana da Conceição” (Maroca).
4. Lugar onde nasceram:
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“Eu mesmo nasci em Capim Açu” (Maroca); “Eu nasci em Afonso Bezerra – RN”
(Indaiá); “E eu fui em Solânea” (Poroca).
5. Lugares onde moraram depois do nascimento?
“Já moremos em Patos, já moremos em Araruna, já moremos em Caicó, já moremos
em tanto canto se for dizer em todos que a gente já morou, não dá pra dizer nem em um ano
todo. Agora onde a gente sempre mais morou foi aqui em Campina Grande. Quando pai era
vivo a gente só vivia andando pelo meio do mundo, depois que ele morreu nós se aquietemos
aqui, não andemos pra nenhum lugar mais não” (Maroca).
6. Atualmente onde residem?
“Faz quarenta e quatro anos que a gente mora aqui dentro de Campina Grande. Saímos
agora depois do Filme, pra fazer show, dar entrevistas, em Brasília, Rio de Janeiro, Porto
Alegre, Minas Gerais” (Maroca); “Salvador” (Regina); “nós fomos até Fortaleza”. (Indaiá).
7. A deficiência visual é de nascença? Se não, como se deu?.
“É de nascença é” (Maroca).
8. Além de vocês tem mais alguém na família?
“Tem dois” (Maroca).
9. Eles também são deficientes?
“Não, eles vê. Tem três irmãos mais o outro eu não conto não, por causa que ele tirou
a pessoa que eu amava. Eu fui casada duas vezes. Meu primeiro marido tinha aposentadoria
em Natal daí pra não ter que viajar todo mês pra receber e gastar passagem nós fomo morar lá,
mais ele morreu. Aí vim para Campina onde, por não ter quem tomasse conta de mim, da
minha aposentadoria, minha família não tomava conta, então casei com meu segundo marido,
mais meu irmão matou. É por isso que eu não conto ele como meu irmão” (Maroca).
155
10. Sabem ler e escrever?
“Sabe não”.(Regina).
11. Freqüentaram alguma escola?
“Não. Mãe não deixava a gente aprender a lê, dizia: o que vocês vão vê lá ?, estudar
pra quê ?, dizia que alguém podia judiar de nós, e se adoecerem quem vai cuidar? ”(Regina);
“A pessoa é para o que nasce, mais antes tivesse ido” (Maroca); “É” (Indaiá).
12. Quando aprenderam a cantar?
“Eu comecei com seis anos mais pai, ele tocava vialejo” (Maroca); “Eu aprendi com
nove anos ouvindo as duas cantar na rua” (Indaiá); “Eu comecei com sete anos (Poroca)”.
13. Como aprenderam?
“A gente aprendeu com as outras pessoas que pediam também onde encontrava com
eles, aprendemos pelo meio do mundo, às vezes ficava na casa deles” (Maroca).
14. Alguém ensinou?
Pai tocava vialejo. “Em Patos uma pessoa chamada Luzia onde passou 15 dias lá em
casa, aprendemos coco de embolada e outra “abre a janela” foi uma moça que se chamava
Francisca, conhecida como “Moazinha” em Iguatu”. “As outras com outras pessoas que
pediam e ensinou agente (Poroca)”. E a outra pessoa mora aqui o nome dela é Severina”
(Maroca).
15. Gostam de cantar? Por quê?
“Porque às vezes a pessoa fica pensando, assim nas coisas, fica naquela tristeza,
desgosto, desengano, sem motivo”. (Poroca); “Lembra das músicas, aí disparece” (Maroca);
“Ontem mesmo estava assim, sei não...” (Poroca).
16. Quando começaram a cantar onde se apresentavam?
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“Cantava nas feiras, no mercado, nas ruas. Começamos a cantar muito cedo pra
sobreviver, sustentar a família que não tinha condição”.(Maroca).
17. Alguém incentivou vocês a cantarem na rua, quem?
“Pai, por questão de sobrevivência, mas sofremos muita humilhação, gaiatos, outros
botava papel na bacia pra enganar, passava das horas de refeição, o sobrinho passava da hora
de pegar a gente”. (Maroca); pensava assim: quem vai dar valor a quem pede de bacia na
mão? Nós cantava pra sustentar 14 pessoas dentro de casa. Trabalhava o feio pru bonito
comer. Ninguém dava um prego numa barra de sabão” (Maroca).
18. E atualmente onde se apresentam?
“Depois do Filme A pessoa é para o que nasce a gente deixou de cantar na rua.
Cantar na rua morreu” (Maroca).
19. Como se sentem com a reação do público?
“Eita”. (Poroca). “Ai meu Deus”. (Indaiá); “Sinto muito feliz, não esperava, fico
surpresa”. (Maroca). “Quando a gente cantava na rua teve uma mulher que dizia assim: que
essas músicas ainda vai dar muita coisa boa, Deus tire vocês da rua. Será meu Deus que vai
chegar essa sorte? Aí chegou Roberto com o Filme, aí ninguém foi mais pra rua não”
(Poroca).
20. Qual o estilo de música que vocês cantam?
“Tem os Cocos de embolada e outras não” (Maroca).
21. As músicas falam de quê?
“As músicas que a gente aprendeu fala muita coisa. Tem Segredinho que aprendi
com meu primeiro marido que fez a música quando uma namorada dele acabou o namoro”
(Maroca).
22. Qual o tema preferido?
157
“Gosto de todas, mais o Coco de embolada, é mais animada pra show” (Maroca).
23. Essas músicas são decoradas ou improvisadas?
“A gente só canta o que o povo ensinaram. Improvisada não. Nós não fizemos
nenhuma não”. (Maroca).
24. Quais são os instrumentos que vocês utilizam?
“O Ganzá. A gente só aprendeu o Ganzá” (Poroca).
25. Como aprenderam a tocá-los?
“Pai quem ensinou. Ganzá num tem o que aprender não” (Maroca).
26. Já gravaram algum CD?
”Sim” (Maroca).
27. Já se apresentaram com outros cantores?
“Sim, com Gilberto Gil, Paralamas do sucesso, Banda Mauaca de São Paulo, Pedro
Luiz (Maroca)”. “Lula Queiroga, B Negão (Indaia)”. “a gente canta sozinha e outras com eles
cantando” (Maroca).
28. Além do CD fizeram outro tipo de gravação?
“Sim fizemos um filme A pessoa é para o que nasce com Roberto” (Maroca).
29. Já receberam algum prêmio ou homenagem?
“Sim, uma medalha do presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva em
Brasília e um troféu que ficou com Roberto pelo filme no Rio de Janeiro” (Maroca).
158
30. Sentem-se valorizadas como artistas?
“A gente sente muita coisa boa a vista do que a a gente vivia . A gente não pensava
que ninguém ia valorizar. Representa muita coisa boa, pois deixamos aquela vida sofrida de
cantar nas ruas para sobreviver, depois do filme tudo mudou pra melhor” (Maroca).
31. O que a música representa em suas vidas?
“Representa muita coisa boa e alegre, tira nossas tristezas” (Maroca).
32. O que aprenderam a fazer além de cantar?
“Não aprendemos mais nada. Só aprendemos a cantar mesmo. Ninguém não ensinou
mais nada não” (Poroca).
33. Já sofreram algum tipo de discriminação devido à deficiência visual?
“Sim, quando cantava nas ruas, as pessoas faziam gaiofas, faziam galhatismo, tudo
fazia enganando, debochando. Dependia da boa vontade dos outros pra tudo” (Maroca).
34. Depois do filme “A pessoa é para o que nasce”, o que mudou em suas vidas?
“Mudou muita coisa, pra melhor. Se não fosse o filme a gente estava na mesma vida
de sofrimento” (Poroca).
35. Gostariam de dizer alguma mensagem a outros portadores de deficiência visual?
“Quem tiver seu filho deficiente visual, ou seja, qual deficiência for, que não bote
ele na calçada pra pedir. Se ele falar, se for uma deficiência que a criança fale, procure um
estudo pra ele, procure tratar ele com mais carinho, não procure botar ele na calçada que é
muito humilhada a vida de quem pede. Procure dar carinho a ele, que o deficiente precisa de
carinho, precisa de afeto, precisa de amor, precisa de muita coisa, não precisa �a pedindo
esmola na calçada. É muito humilhada a situação, assim, de quem pede, se for uma
deficiência que fale procure um estudo, procure botar ele pra estudar, pra uma escola. E se for
159
uma que não fale, quem não fala não vai estudar. Procure assim dar carinho a ele pra não
viver pedindo na rua, pra que ninguém não judiar com ele que é muito triste uma pessoa já
deficiente e viver assim judiando pelo meio do mundo, sem carinho de ninguém” (Maroca).
36. Vocês poderiam cantar um pouco para nós?
“Sim. Ô meu Deus” (Maroca).
Agradecimento
Pesquisadora:
Agradeço às Ceguinhas de Campina Grande – PB, em meu nome, em nome da
Professora Drª. Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista e do Programa de pós-
graduação em Letras da UFPB pela gentileza de nos conceder esta entrevista. Muito
Obrigada.
160
APÊNDICE C – Registro fotográfico da entrevista
161
Regina Barbosa (Poroca)
Maria das Neves Barbosa (Maroca)
Francisca da Conceiçã Barbosa (Indaiá)o
162
163
164
165
166
ANEXOS
167
ANEXO A - NE Noite enluarada
A noite está enluarada enquanto é bela
Parece aquela que não pensa mais em mim
Dorme em seu leito, sossegada e nem imagina
Que a minha sina é sofrer até o fim
Adoro ela desde o tempo de criança
Tenho esperança de findar-se o meu sofrer
Ainda tenho o prazer de abraçá-la
Hei de amá-la neste mundo até morrer
Se estás ouvindo, meu amor venha à janela
Que a noite é bela pra se ouvir um cantador
Eu fico triste quando canto e não te vejo
O meu desejo é gozar o teu amor
Por Deus eu peço não despreze quem te ama
Meu peito clama, pra te amar foi que eu nasci
Tu és a jovem que possui maior beleza
És a mais linda das mulheres que já vi
Esta canção é uma prova de amizade
Sem falsidade, eu nasci para te amar
Tu és a jovem que possui maior beleza
A natureza de mudando se formar
Por Deus eu peço não despreze quem te ama
Meu peito clama, pra te amar foi que eu nasci
Tu és a jovem que possui maior beleza
És a mais linda das mulheres que já vi
168
ANEXO B - ME Moço me dê uma esmola
Triste vida de quem pede com a maior necessidade
Quem pede, pede chorando
Pra dar carece vontade
Ô moço me dê uma esmola
Tenha de nós piedade
Ô moço me dê uma esmola,
daquela que Deus lhe deu
Pela Família Sagrada,
pelo que Deus padeceu
Pra não penar neste mundo,
da forma que pena eu
Chega, chega pecador,
Que eu sou pecador também
Um pecador falta ao outro
Mais Deus não falta a ninguém
Ô moço me dê uma esmola
Nas horas de Deus, amém
Ô moço me dê uma esmola
Não tenha pena de dar
Quem mais tem Nossa Senhora
Jesus Cristo pra lhe dar
Ô moço me dê uma esmola
A quem não tem pra trabalhar
Quem vê a luz deste mundo
Não sabe o que é sofrer
Já tenho sofrido tanto
169
Não resisto mais viver
A coisa pior do mundo
É querer vê e não poder
Ô moço me dê uma esmola
Tenha compaixão de mim
Se eu tivesse a luz dos olhos
Não tava sofrendo assim
Valei-me, valei-me Deus
Que sofrimento sem fim
Ô moço me dê uma esmola
Não queira dizer que não
Favoreça a quem lhe pede
Está chegada a ocasião
Que você tem a luz dos olhos
Nós vive na escuridão
Ô moço me dê uma esmola
Se tiver não negue não
Favoreça a quem lhe pede
Está chegada a ocasião
Ô moço eu peço esmola
Porque tenho precisão
Chega, chega pecador
Que eu sou pecador também
Um pecador falta ao outro
Mais Deus não falta a ninguém
Ô moço me dê uma esmola
Que é pra Deus lhe dar também
Ô moço me dê uma esmola
Tenha dó do meu sofrer
170
Ô moço me dê uma esmola
Que é pra Deus lhe dar também
Ô moço me dê uma esmola
Nas horas de Deus amém
171
ANEXO C - SB Santa beata Mocinha
Minha santa beata Mocinha
Eu vim aqui dizer meu padrinho
Meu padrinho, fez uma viagem
Ô, deixou o Juazeiro sozinho
Meu padrinho, padre Cícero
Foi pro céu vendo o povo sem sorte
Ao senhor foi pedir
Proteção pros romeiros do norte
172
ANEXO D - CD Canção da despedida
Adeus meu amor querido
Imagem do meu coração
Quem parte leva saudade
A dor da separação
A tarde quando declina
É como a flor quando cai
Que se despreza do galho