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“CARA PROFESSORA”: PRÁTICAS DE ESCRITA DE UM GRUPO DE DOCENTES _______________________________________________________________________________________ 1 MARIA EMÍLIA LINS E SILVA “CARA PROFESSORA”: PRÁTICAS DE ESCRITA DE UM GRUPO DE DOCENTES Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Educação. Belo Horizonte 2004

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“CARA PROFESSORA”: PRÁTICAS DE ESCRITA DE UM GRUPO DE DOCENTES _______________________________________________________________________________________

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MARIA EMÍLIA LINS E SILVA

“CARA PROFESSORA”: PRÁTICAS DE ESCRITA DE

UM GRUPO DE DOCENTES

Tese apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Educação da Faculdade de

Educação da Universidade Federal de Minas

Gerais como parte dos requisitos para

obtenção do título de Doutor em Educação.

Belo Horizonte

2004

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MARIA EMÍLIA LINS E SILVA

“CARA PROFESSORA”: PRÁTICAS DE ESCRITA DE

UM GRUPO DE DOCENTES

Tese apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Educação da Faculdade de

Educação da Universidade Federal de Minas

Gerais como parte dos requisitos para obtenção

do título de Doutor em Educação.

Orientador: Prof. Dr. Antônio Augusto Gomes

Batista

Belo Horizonte

2004

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“CARA PROFESSORA”: PRÁTICAS DE ESCRITA DE UM GRUPO DE

DOCENTES

MARIA EMÍLIA LINS E SILVA

BANCA EXAMINADORA

______________________________________

Prof. Dr. Antônio A. G. Batista (Orientador - UFMG)

______________________________________

Profa Dra Eliete Santiago (UFPE)

______________________________________

Profa Dra Vera M. M. Ribeiro (Ação Educativa – SP)

______________________________________

Profa Emérita Magda Soares (UFMG)

______________________________________

Profa Dra Maria Lúcia Castanheira (UFMG)

Tese defendida e aprovada em: ___/___/____

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DEDICATÓRIA

Para Aninha e Mariana, pelos momentos alegres e cheios de surpresas.

Para meus pais, Jaime e Tercila, presenças fundamentais em minha vida.

Para Dute, recordando as conversas que compartilhamos na alegria da descoberta de uma prazerosa amizade.

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AGRADECIMENTOS

Ao professor Dr. Antônio Augusto Gomes Batista, pela confiança ao compartilhar

experiências que muito contribuíram para a minha formação, pela segurança com que orientou a elaboração deste trabalho e pela generosidade com que me acolheu.

Ao professor Dr. Jean Hébrard, da École de Hautes Études en Sciences Sociales,

que orientou o estágio que realizei naquela instituição. O interesse e entusiasmo marcaram as nossas conversas, sendo um interlocutor importante no desenvolvimento desta tese.

À professora Dra Anne-Marie Chartier, do Institut National de Recherche

Pedagogique, que generosamente orientou o estágio. A seriedade com que acompanhou o delineamento metodológico da pesquisa e discutiu as versões preliminares deste trabalho foi fundamental para minha formação enquanto pesquisadora.

À amiga Eliana, pelo apoio constante nos momentos fundamentais da minha

trajetória como doutoranda, compartilhando experiências enriquecedoras que se constituíram em contribuições importantes para a elaboração deste trabalho.

Às professoras Dra. Magda Soares, Dra. Maria Lúcia Castanheira, da Universidade

Federal de Minas Gerais, e Dra. Eliete Santiago, da Universidade Federal de Pernambuco, pelas discussões mantidas em diferentes fases da pesquisa, pela leitura crítica e contribuições valiosas que realizaram enquanto integrantes da banca de qualificação do projeto.

À amiga Ana, pela forma carinhosa com que, em diferentes momentos,

acompanhou a escrita da tese, apresentou-me textos e autores que incorporei as minhas leituras na caminhada para a conclusão deste trabalho.

Ao amigo Artur, pela disponibilidade, interesse e seriedade com que leu e discutiu

as versões finais desta tese, que muito contribuiu para a finalização da mesma.

A Andréa, pelo incentivo e apoio nos momentos finais da elaboração deste

trabalho. Às colegas e amigas de “Belô”, Karina, Ceris Ribas, Dade, Ceres Prado, Maria

Alice, Marildes, Graça Val, que me acolheram carinhosamente e com quem compartilhei momentos significativos nesse período de estudos.

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Aos colegas do CEALE, Luiza e Itamar, pela ajuda preciosa nos meus vários pedidos de apoio operacional na realização do exame de qualificação.

Às amigas Marilene, Simone, Valéria e Carmem, pela acolhida fraterna e

carinhosa que tornaram meus dias em Belo Horizonte sempre agradáveis. Aos amigos dos momentos inesquecíveis em Paris, Dani, Marcos e Ana, pela

partilha das alegrias e saudades que fizeram minha temporada cheia de grandes emoções.

A Edna e Nina, que se mobilizaram em reunir professoras interessadas em

participar da troca epistolar. À CAPES - Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior, pelo apoio financeiro, através de seus programas de capacitação docente (PICDT) e de Doutorado no Brasil com Estágio no Exterior (PDEE), fundamental para que este trabalho fosse realizado.

A Vicentina Ramires, pela ajuda na correção do texto, e a Nicole Ribeiro e Selma

Lins, pela programação gráfica da tese. Às professoras que participaram da pesquisa, que generosamente envolveram-se

na troca epistolar e com entusiasmo enviaram cartas cheias de histórias... A Selminha, Alexandre e Toninho, pelo carinho e apoio constante para a

conclusão deste trabalho. A Jaqueline, presença amiga de sempre.

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SUMÁRIO

RELAÇÃO DE QUADROS, FIGURAS E FOTOS.................................................................... 10

RESUMO..................................................................................................................... 11

ABSTRACT................................................................................................................... 12

RÉSUMÉ...................................................................................................................... 13

INTRODUÇÃO................................................................................................................................... 15

CAPÍTULO 1: A PESQUISA: OBJETO, PRESSUPOSTOS E METODOLOGIA............................ 22

1. O objeto de estudo e seus pressupostos....................................................... 23

2. As escritas “para si” da vida privada.............................................................. 27

3. As escritas para o outro: a correspondência................................................. 32

4. Estudos sobre as escritas de professores..................................................... 38

5. Por que estudar as práticas de escrita de professoras?................................ 47

6. A metodologia da pesquisa............................................................................ 49

6.1. As cartas: de “instrumento” a “objeto” da pesquisa........................................................................................................................

49

6.2. Por que uma correspondência?.............................................................. 51

6.3. A história de uma correspondência......................................................... 58

6.4. Quem quer trocar correspondência?....................................................... 60

6.5. O que e para quem escrever?................................................................. 63

6.6. Os objetos epistolares enviados.............................................................. 67

6.7. Os objetos epistolares recebidos............................................................ 70

6.8. Da correspondência ao “reencontro”....................................................... 72

6.8.1. O reencontro nas entrevistas: as informações sobre a

multiplicidade das escritas a partir dos objetos escritos........................

72

6.8.2. O encontro de socialização......................................................... 73

6.9. Quem são as professoras que participaram da troca de cartas?........... 74

6.10. As professoras e o engajamento epistolar............................................ 84

7. A análise dos dados......................................................................................... 87

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CAPÍTULO 2: A ESCRITA DAS CARTAS........................................................................... 89

1. “Gostaria de se corresponder comigo?”: a primeira carta............................... 92

1.1. As cartas em resposta à minha............................................................. 97

2. “Sinto uma grande dificuldade em escrever”: a segunda carta....................... 107

2.1. As cartas em resposta à minha............................................................. 111

2.2. As marcas das trocas: o vocativo inicial e a despedida......................... 112

3. “Vamos fazer uma brincadeira?”: a terceira carta............................................ 122

3.1. As cartas em resposta à minha............................................................. 125

4. “O que escreve e em que suporte escreve?”: a quarta carta.......................... 132

4.1. As cartas em resposta à minha............................................................ 137

5. “Gostaria de propor uma atividade para você realizar com

seus alunos”: a quinta carta.................................................................................

139

5.1. As cartas em resposta à minha............................................................. 141

6. As adaptações nas cartas comuns e as cartas-extras.................................... 142

7. O suporte......................................................................................................... 142

8. O lugar da escrita à leitura das cartas............................................................. 145

9. Da carta à diversidade de eventos de escrita.................................................. 147

10. O tempo de escrever..................................................................................... 156

11. O tempo e as condições para escrever......................................................... 161

12. A progressão da formalidade para a informalidade....................................... 163

CAPÍTULO 3: A ESCRITA NAS CARTAS........................................................................... 167

1. Perfis de configurações familiares e as práticas de escritas........................... 168

2. Escritas na esfera familiar................................................................................ 197

2.1. A escrita do diário................................................................................... 200

2.2. A escrita de correspondências................................................................ 204

2.3. A escrita de outros gêneros textuais....................................................... 208

3. A esfera escolar: a aprendizagem da escrita................................................... 216

3.1. A aprendizagem da escrita: a alfabetização.......................................... 220

3.2. Escrita de textos para diferentes finalidades e interlocutores................ 225

3.3. Ler para escrever................................................................................... 226

3.4. Repercussões das práticas escolares de escrita

na relação estabelecida com o ato de escrever............................................

228

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4. Escritas na formação docente......................................................................... 232

5. Escritas na prática docente............................................................................. 241

5.1. Escrever para planejar e organizar o trabalho docente......................... 241

5.2. Ensinando a escrever: as atividades de escrita..................................... 243

5.3. A escrita como elemento avaliativo na promoção

profissional das docentes...............................................................................

245

6. Os projetos de escrita...................................................................................... 246

CONSIDERAÇÕES FINAIS 249

BIBLIOGRAFIA........................................................................................................ 257

ANEXOS..................................................................................................................

1: Roteiro da Entrevista 2. Carta-convite para participação no seminário de socialização 3. Carta aviso de recebimento 4. Carta para os alunos 5. Exemplo de adaptações nas cartas comuns 6: Exemplo de uma carta-extra enviada

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RELAÇÃO DE QUADROS, FIGURAS E FOTOS

Quadro 1: Indicação e participação das professoras na troca de cartas..............62 Quadro 2: Os objetos epistolares enviados: conteúdo e objetivo.........................69 Quadro 3: Os objetos epistolares recebidos.........................................................71 Quadro 4: Identificação das professoras por idade, tempo de atuação no magistério, atuação profissional, rede de ensino, escolaridade, escolarização e ocupação dos pais....................................76 Quadro 5: As professoras e o engajamento epistolar...........................................86 Quadro 6: A primeira carta....................................................................................93 Quadro 7: A segunda carta.................................................................................110 Quadro 8: Análise do vocativo inicial..................................................................113 Quadro 9: Análise da fórmula final: despedida...................................................114 Quadro 10: A terceira carta.................................................................................123 Quadro 11: A quarta carta...................................................................................133 Quadro 12: Roteiro para guiar o registro sobre a escrita....................................136 Quadro 13: Registro sobre a escrita...................................................................137 Quadro 14: A quinta carta...................................................................................140 Quadro 15: Os cartões postais...........................................................................152 Quadro 16: Materiais e razões para escrever na família nos relatos escritos e orais.........................................................................................199 Quadro 17: Materiais e práticas de escrita na escola nos relatos escritos e orais.........................................................................................219 Quadro 18: Socialização na formação docente e materiais de escrita nos relatos escritos...................................................................................233 Figura 1: 1a versão da primeira carta............... ....................................................96 Figura 2: Legenda no verso da fotografia...........................................................148 Foto 1: Fotos do bairro do Pina e legendas........................................................150 Foto 2: Cartão Postal de Paris............................................................................151 Foto 3: Cartão Postal de Olinda..........................................................................153 Foto 4: Cartões de Natal.....................................................................................154 Foto 5: Recorte de notícia...................................................................................155

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RESUMO Este trabalho busca fornecer elementos para a compreensão da inserção de docentes na cultura escrita, analisando os traços constitutivos de suas práticas cotidianas de escrita, por meio da apreensão de crenças e atitudes diante da escrita, da descrição de usos e finalidades atribuídos a essa modalidade da língua, bem como da análise de competências e de modos de aprendizado que orientam essas práticas. Como suporte teórico, foram utilizados os estudos sobre as escritas cotidianas a partir de duas grandes esferas de uso: as escritas “para si” da vida privada e as escritas “para o outro”, sobretudo aquelas relacionadas às esferas públicas de uso da linguagem, no campo escolar e profissional. A pesquisa foi desenvolvida com um grupo de vinte e uma professoras (das séries iniciais da educação fundamental) da região metropolitana do Recife. Como procedimento metodológico, utilizou-se, primeiramente, a troca de correspondência entre a pesquisadora e esse grupo, ao longo de um período de cerca de um ano, no espaço entre as cidades de Belo Horizonte/Recife e Paris/Recife. A correspondência teve por temas os usos da escrita feitos pelas docentes, suas trajetórias de formação, assim como suas relações com esses usos. Optamos pela correspondência por permitir tanto a apreensão das declarações das professoras sobre suas práticas de escrita quanto uma prática efetiva de escrita epistolar, ou, em outros termos, tanto suas práticas representadas quanto suas práticas em ato. Em seguida, foram realizadas entrevistas com alguns membros desse grupo com o objetivo de desenvolver hipóteses formuladas a partir da análise da correspondência, bem como de recolher material escrito pelas docentes. A análise dos dados revelou que as professoras apresentam usos múltiplos e diferenciados da escrita, competências específicas, e que essas se vinculam às representações produzidas sobre essas práticas, construídas socialmente, as quais determinam o processo de construção de sentido. Constatamos que, embora fundamentais, as experiências de letramento na esfera familiar não foram as únicas responsáveis pelos tipos de relações que as docentes estabeleceram com a escrita. Ao mesmo tempo, as práticas de escrita vividas na esfera escolar pareceram exercer um papel mais decisivo na constituição de representações negativas quanto ao ser capaz de escrever. Por outro lado, os “instrumentos” metodológicos (troca de correspondências e entrevistas) teriam permitido às docentes viver reflexões – numa perspectiva metacognitiva – sobre suas práticas e trajetórias de inserção no mundo da escrita.

LINS E SILVA, Maria Emília. “Cara Professora”: práticas de escrita de um grupo de docentes. Belo Horizonte, 2004. f.277. Tese (Doutorado). Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais.

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ABSTRACT

This study aims at providing elements to the understanding of teachers’ insertion in the written culture, analysing the constitutive features of their daily written practices, by the apprehension of beliefs and attitudes concerning writing, description of usage and targets attributed to this language mode, as well as the competence analysis and ways of learning which guide these practices. As a theoretical support, we have used the studies about the daily writing from two large spheres of usage: the private life writings “for yourself” and the writings “to the other”, mainly those related to public spheres of language usage, in the school and professional fields. This research was carried out with a group of twenty-one teachers (from the initial grades of primary school) within the great Recife. As a methodological procedure, it was firstly used the exchange of letters between the researcher and this group, throughout one year time, between the cities of Belo Horizonte/Recife and Paris/Recife. The correspondence was about the teacher’s writing usage, their formation trajectory, as well as their relations with these usages. We have chosen the correspondence because it allows both the apprehension of teachers’ utterance about their writing practices and an effective epistolary writing practice, or, in other words, both their represented practices and the practices themselves. Afterwards we have interviewed some members of this group with the aim of building hypothesis formulated from the correspondence analysis, as well as collecting written material by the teachers. The data analysis showed that the teachers present a wide and multiple range of written usage, specific competencies and that the latter are closely related to the representations produced about these socially built practices, which determine the signification construction process. We have found out that, although of great importance, the literacy experience in the familiar sphere was not the only responsible for the type of relations that the teachers had with the writing. At the same time, the writing practices experienced in the school sphere seemed to performe a decisive role in the constitution of negative representations related to being able of writing. On the other hand, the methodological “instruments” (exchange of correspondences and interviews) would have allowed the teachers to experience the reflection – in a metacognitive perspective – about their practices and insertion trajectory in the writing world.

LINS E SILVA, Maria Emília. “Dear Sellow Teacher”: written practices within a group of women primary school teachers. Belo Horizonte, 2004. f.277. Doctoral Thesis. Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais.

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RÉSUMÉ

Ce travail prétend fournir des éléments pour la compréhension de l’insertion des enseignants dans la culture écrite, en analysant les traits constitutifs de leurs pratiques quotidiennes de l’écriture, à travers l’appréhension de croyances et d’attitudes face à l’écriture, la description d’usages et d’objectifs attribués à cette modalité de la langue, ainsi que l’analyse de compétences et de moyens d’apprentissage qui conduisent ces pratiques. Pour support théorique, on a utilisé les études sur les écritures quotidiennes à partir de deux grandes sphères d’usage: les écritures “pour soi” de la vie privée et les écritures “pour l’autre”, surtout celles qui ont un rapport avec les sphères publiques de l’usage du langage, dans le domaine de l’école et professionnel. La recherche a été dévéloppée dans un groupe de vingt et une professeurs ( des années débutantes de l’éducation fondamentale) de la région métropolitaine de Recife. Pour procédé méthodologique, on a utilisé d’abord, l’échange de correspondance (courrier) entre la chercheuse et ce groupe , lors d’une période approximative d’un an, dans l’espace circonscrit entre les villes de Belo Horizonte/Recife et Paris/Recife. La correspondance a eu pour sujets les usages de l’écriture réalisés par les enseignantes, leurs trajectoires de formation, ainsi que leurs rapports avec ces usages. Nous avons adopté la correspondance vu qu’elle permet à la fois l’appréhension des déclarations des enseignantes sur leurs pratiques de l’écriture et une pratique effective de l’écriture épistolaire, c’est à dire, leurs pratiques représentées et leurs pratiques en acte. Ensuite, on a interviewé quelques membres de ce groupe, dans le but de dévélopper des hypothèses formulées à partir de l’analyse de la correspondance ainsi que de collecter du matériel écrit par les enseignantes. L’analyse des données a révélé que les professeurs présentent des usages multiples et différenciés de l’écriture, des compétences spécifiques , et que celles-là se rapportent aux représentations produites sur ces pratiques, construites socialement et qui déterminent le processus de construction de sens. On a constaté que les expériences de litteracie dans le domaine familier, aussi fondamentales qu’elles soient, ne constituent pas les seules responsables des types de relations établies par les enseignantes avec l’écriture. En même temps, il paraît que les pratiques d’écriture vécues dans le domaine de l’école ont joué un rôle plus décisif dans la constitution de représentations négatives en ce qui concerne la capacité d’écrire. Par ailleurs, les “outils” méthodologiques (échange de courrier et interviews) auraient permis aux enseignantes l’expérimentation de réflexions - dans une perspective métacognitive - sur leurs pratiques et trajectoires d’insertion dans le monde de l’écriture.

LINS E SILVA, Maria Emília. “Chère Prof.”: pratiques d’écriture d’un groupe d’enseignants. Belo Horizonte, 2004. f.277. Thèse de Doctorat. Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais.

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"Quem me acompanha que me acompanhe: a caminhada é longa, é sofrida mas é vivida. Porque agora te falo a sério: não estou brincando com palavras. Encarno-me nas frases voluptuosas e ininteligíveis que se enovelam para além das palavras. E um silêncio se evola sutil do entrechoque das frases. Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente. Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada. O que te direi? te direi os instantes.”

(Clarice Lispector, Água Viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994, p.25-26).

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INTRODUÇÃO

“Mas, e as professoras escrevem?” Essa pergunta expressa a reação de

surpresa e estranhamento de uma amiga, no dia em que lhe falei sobre o objeto

de minha pesquisa. “Meu trabalho é sobre as práticas de escrita das professoras

do ensino fundamental. Me interessa conhecer o que, como e para que escrevem

as professoras em seu cotidiano”. A reação da minha amiga se acentuou bastante

no contexto no qual estávamos: numa livraria, para o lançamento do livro de uma

professora universitária.

A partir desse caso, procurei refletir sobre as diferentes situações de uso

da escrita no cotidiano. A escrita representada através do livro publicado pela

professora universitária situava-se no universo dos escritores de obras, estes sim,

escritores de fato. Essa escrita encontra-se relacionada ao universo prestigioso

da escrita, que se destina a “fazer uma obra, ao reconhecimento da autoria e à

consagração do impresso” (FABRE, 1993, p.11). A escrita de professoras, ou

seja, escrever tarefas, corrigir lições, fazer avaliação, registrar aula, fazer

anotações em agenda, seu diário íntimo e sua correspondência pessoal, está

associada à “rotina das ocupações cotidianas” (FABRE, 1993, p.11) e se opõe ao

“mundo dos escritores”, que utilizam a escrita para produzir identidades sociais e

firmar uma posição num determinado campo social. Desse modo, a reação

confirma a idéia de que escrever estaria associado a “escrever livros”. Estudar

práticas de escrita se identificaria, por isso, com investigar a escrita de quem

escreve livros, dos que são reconhecidos como “escritores”. A escrita, nesse

caso, seria identificada com a escrita de algo digno de ser publicado, por alguém

e para um público constituídos socialmente.

Ao lado dessa identificação entre escrever e publicar, outra reflexão

possível da reação da minha amiga é aquela relacionada a uma divisão do

trabalho da escrita no campo educacional: professores universitários escrevem,

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são escritores; professores do ensino fundamental e médio são consumidores,

quer dizer, leitores dos produtos elaborados pelos professores universitários.

Ao que tudo indica, essa reação também encontra sua base nas

representações da condição letrada dos docentes do ensino fundamental

brasileiro: por suas condições de trabalho, de formação e de recrutamento, esses

professores se caracterizariam por uma inserção precária no universo da cultura

escrita. Situadas, desse modo, do lado das consumidoras da escrita, das leitoras,

“as professoras não escrevem”.

No entanto, o fato de se inserirem mais ou menos precariamente na cultura

escrita não significa que não se insiram de fato; não significa que, por não se

inserirem no universo prestigiado das práticas de escrita, as professoras não

façam dela usos diversos; não significa, por fim, que, suspendendo um ponto de

vista valorativo a respeito das práticas das docentes, não seja necessário

descrever e compreender essas práticas e as representações que as professoras

têm de suas competências, assim como os fatores que condicionam um

determinado modo de inserção.

Poucas investigações têm sido desenvolvidas sobre as práticas de escrita

e as representações das professoras sobre suas práticas e competências. No

entanto, alguns estudos que analisaram as declarações dos docentes sobre suas

práticas de leitura foram desenvolvidos. Antônio Batista (1998), por exemplo,

realizou uma investigação exploratória com professoras de Português de 5a. a 8a.

séries e do ensino médio em Minas Gerais. Seus resultados evidenciaram, apesar

das diferentes possibilidades de interpretação dessas conclusões mais gerais,

uma forte mobilização familiar para a aquisição de competências, disposições e

crenças relacionadas a usos escolares da escrita, predominando, nesse grupo de

professores, um modo escolar de transmissão e de aquisição da disposição a ler,

a ausência de usos não-escolares da leitura, e, assim, modos de ler e de se

relacionar com os textos marcadamente escolares e afastados da cultura de

prestígio.

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Bernadete Gatti et al. (1994) também desenvolveram uma pesquisa, com

uma amostra de professores do ensino fundamental nos estados de São Paulo,

Minas Gerais e Maranhão, procurando obter um perfil desses professores, tendo

em vista suas condições sociais, condições de trabalho, expectativas e imagem

social. Quando discutem a leitura dos professores, os autores afirmam o seguinte:

Embora 69% dos(as) professores(as) declarem que lêem alguma revista de educação, a atividade de leitura especializada por parte dos(as) professores(as) não parece ser muita intensa [...] Boa parte dos que afirmam ter lido algum texto nos últimos três anos não foi capaz de citar nenhum autor ou título e percentual significativo citou apenas um. [...] Mais: dentre os(as) professores(as) que dizem ler especificamente alguma revista de educação, nota-se também a dificuldade de enunciar o nome da revista que, em geral, é redigido de modo incompleto, errado ou se constituindo em uma vaga referência (p.253).

Essa visão do professor como um leitor distanciado de práticas de leitura

de prestígio (como em BATISTA, 1998) ou como um profissional (GATTI et al,

1994), manifesta-se, também, nos resultados da pesquisa realizada por Maria da

Graça Setton (1994), com um grupo de professores de São Paulo. A autora

buscou conhecer o universo social e cultural desse grupo, apreendendo suas

disposições em matéria de consumo de bens culturais com alto valor simbólico.

Os professores revelaram um baixo consumo em quase todos os itens abordados

- gênero literário, tipo de filme, cinema, vídeo e teatro, tipo e gênero de música.

Segundo os docentes, as responsáveis pelo baixo consumo desses bens seriam

dificuldades de ordem financeira e as poucas horas destinadas ao repouso e ao

lazer. Concluindo, Setton (1994, p. 77) afirma:

[...] conseguimos detectar uma padronização genérica e uniforme (do “gosto” dos docentes) cujo perfil básico constitui-se na falta de um interesse específico entre os professores.

Os resultados dessas pesquisas sobre docentes e sobre suas relações

com a leitura indicam, assim, que os professores parecem ler pouco e, com pouca

familiaridade, impressos de prestígio ou aqueles voltados para o desenvolvimento

de sua formação profissional. Suas leituras, segundo Setton (1994, p. 87):

demonstrariam uma preferência acentuada por livros ditados pelo mercado cultural, gosto pela literatura já consagrada pela crítica especializada, os livros de leitura mais fácil, os comercializados em larga escala, os denominados “best sellers”.

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Pode-se compreender, desse modo, a reação de minha amiga: se as

professoras possuem uma inserção tão precária na cultura escrita, se mesmo

suas práticas de leitura seriam limitadas, o que não dizer de seus usos da escrita?

Outra idéia compartilhada pelos docentes na escola e nos espaços de

formação que pode contribuir para a construção dessa representação do uso

precário da escrita entre as professoras é aquela que pressupõe uma hierarquia

nas dificuldades da escrita em relação à leitura. As habilidades requeridas durante

a leitura envolveriam competências menos complexas que as envolvidas no

processo do ato de escrita. Escrever implicaria um conjunto de habilidades que

exigiriam a integração de ações diversas, como o conhecimento dos gêneros

escritos, o domínio do conteúdo, a coordenação do pensamento com o ato de

escrever, a organização das idéias com coerência, além dos cuidados com a

ortografia, a gramática e a acentuação. Esses elementos são necessários durante

a elaboração de um texto, o que parece acentuar as dificuldades específicas do

ato de escrita e o diferencia das habilidades requeridas durante a leitura.

Em uma experiência com o ato de escrita de um texto com estudantes de

graduação em Pedagogia, em que sugeri que redigissem memórias relativas ao

seu percurso profissional, essas dificuldades foram observadas. Foi nessa

experiência que tomei consciência, mais claramente, da importância central que

tinha o ato de escrita e a própria relação com a escrita na formação dos

estudantes. Nessa atividade, a escrita ora era representada como fácil, agradável,

relacionada a uma aventura criativa e prazerosa, ora, ao contrário, e mais

freqüentemente, como difícil, penosa, e mesmo angustiante. A maioria dos

estudantes, diante da atividade, apresentou certa resistência a escrever, marcada

pela crença na incompetência de produzir textos e na dificuldade de expor as

idéias, mantendo, assim, uma relação tensa com a escrita.

Algumas questões foram sendo levantadas pelos alunos no decorrer dessa

experiência com relação a sua prática como professores do ensino fundamental,

que ensinam alunos a escrever. Aspectos da trajetória de formação, da escolha

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profissional, da experiência de leitura e escrita na família, o sentimento de

incompetência diante da escrita - com o reconhecimento dos erros e limitações na

hora de escrever - e a repercussão dessas questões no aprendizado e formação

de alunos escritores foram muitas vezes discutidas.

Esses pontos parecem particularmente importantes, em se tratando de

professores que ensinam seus alunos a escrever. Podemos pensar que sua

própria experiência de escrita teria efeitos, diretos ou indiretos, mais ou menos

conscientes e mais ou menos direcionados, sobre sua prática profissional. Afinal,

se os professores possuem uma inserção precária na cultura escrita, é pouco

provável que ofereçam oportunidades mais amplas para a própria inserção de

seus alunos nessa cultura.

A razão do meu interesse por esse objeto advém desse meu envolvimento,

nos últimos anos, no trabalho com formação de professores, em graus de ensino

diferenciados, por meio do qual tive a oportunidade de conviver com o uso da

escrita no mundo em que vivem os professores, dentro e fora da escola.

Da tentativa de descrever e analisar essas questões é que emergiu este

estudo. Essas questões podem ser assim formuladas: O que as professoras

escrevem na escola e fora dela? Quando escrevem? Para que escrevem? Como

escrevem? Onde escrevem? Quais as facilidades e dificuldades com a escrita?

Quais os momentos da trajetória pessoal e profissional que marcaram a relação

com a escrita? Qual o significado que a escrita toma no cotidiano do professor?

Como definem a sua relação com a escrita ou com o ato de escrever? Assim

formuladas, as perguntas podem auxiliar na compreensão das crenças e atitudes,

dos usos e finalidades atribuídos à escrita, das competências de escrita e dos

modos de aquisição que orientam suas práticas de escrita.

Partindo dessa reflexão, o foco da pesquisa aqui apresentada foi buscar

respostas para compreender as práticas sociais de escrita de docentes,

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vivenciada em diferentes espaços, buscando compreender o que as professoras

fazem com a escrita em suas vidas cotidianas.

Para responder a essas perguntas, desenvolvi uma investigação de

natureza exploratória, com um grupo de professoras da região metropolitana do

Recife. Utilizou-se a troca de correspondência, entre mim e esse grupo, ao longo

de um período de cerca de um ano, em que residi em Belo Horizonte e,

posteriormente, para a realização de um estágio no exterior, em Paris. A

correspondência teve por tema os usos da escrita feitos pelas docentes, sua

trajetória de formação, assim como suas relações com esses usos. Optei pela

correspondência por permitir tanto a apreensão das declarações das professoras

sobre suas práticas de escrita quanto uma prática efetiva de escrita epistolar, ou,

em outros termos, tanto suas práticas representadas quanto suas práticas em ato.

Alguns membros desse grupo foram posteriormente entrevistados com o objetivo

de desenvolver hipóteses formuladas a partir da correspondência, bem como de

recolher material escrito pelas docentes.

Este trabalho está organizado em três partes:

O Capítulo 1 contempla, na primeira parte, a apresentação do objeto de

estudo, do campo de investigações que o sustenta, bem como de sua justificativa,

seus pressupostos e sua relevância para o campo de estudos sobre a inserção de

professores na cultura escrita. A segunda parte está voltada para a apresentação

e discussão dos procedimentos metodológicos construídos para o estudo desse

objeto: descrevo o grupo de professoras e os critérios de sua seleção, analiso a

história da correspondência com as professoras, a dinâmica do pacto epistolar

estabelecido entre os correspondentes, as cartas enviadas e recebidas (seu

assunto, suas principais estratégias discursivas), bem como os principais

procedimentos de análise construídos: a troca de correspondências e a entrevista,

assim como, por fim, as características principais dos sujeitos participantes da

pesquisa.

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No Capítulo 2, cujo título é “A escrita das cartas”, buscarei evidenciar o

próprio funcionamento da troca de correspondência, destacando as principais

estratégias utilizadas na constituição dos aspectos do pacto e do ritual

epistolares, analisando as cinco cartas enviadas na relação com as cartas

recebidas.

O Capítulo 3 deste trabalho, intitulado “A escrita nas cartas”, contempla

uma análise, por meio de dois procedimentos diferentes, porém complementares.

O primeiro deles reside no exame das regularidades apreendidas para o conjunto

dos grupos familiares das docentes. O segundo constrói uma análise com base

no que as professoras “dizeram” e na maneira que elas dizeram sobre os sentidos

e as funções que atribuem à escrita na vida cotidiana. Por fim, apresento as

considerações finais do trabalho.

Baseado, principalmente, num ponto de vista sociológico a respeito da

escrita, pretende-se que esta pesquisa contribua para a compreensão desse tema

e para o aprofundamento teórico sobre esse objeto de estudo.

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CAPÍTULO 1

A PESQUISA: OBJETO, PRESSUPOSTOS, METODOLOGIA

1. O OBJETO DE ESTUDO E SEUS PRESSUPOSTOS

Na vida cotidiana são inúmeras as ocasiões de escrita. Preencher um

formulário, anotar uma informação na agenda, rabiscar uma lista de coisas no

papel, registrar datas e acontecimentos nas fotografias de uma viagem, escrever

no correio eletrônico, entre outras, são práticas cotidianas de escrita presentes

em nossa sociedade.

As pessoas conduzem suas ocupações em casa, no trabalho e na escola

utilizando a escrita para conseguir e fazer coisas, comunicar-se com os outros,

manter relacionamentos sociais, estabelecer rituais, criar significados pessoais e

desenvolver, coletivamente, ações. A escrita é também um suporte para a

construção do eu por meio das “escritas secretas” como o diário ou outras

escritas voltadas para a confidência.

A escrita, como prática cultural, é um instrumento intelectual que permite

veicular as idéias, é um suporte para a memória, favorece a elaboração de tipos

específicos de reflexão e tende, em certos contextos de uso e de aquisição, a

reestruturar de um modo diferenciado o pensamento. A escrita não se limita, pois,

à transcrição da fala, mas é um sistema de representação de idéias que possui

especificidades.

Poucos estudos, no entanto, dirigem sua atenção para essas práticas de

escrita, sobretudo para a escrita na vida cotidiana do “ordinary people”, ou seja,

as pessoas comuns que utilizam a escrita, mas não são “escritoras” (BARTON e

HAMILTON, 1998; SHERIDAN, STREET e BLOOME, 2000). O universo das

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“écritures ordinaires”1 se opõe ao universo prestigiado da escrita literária e

científica, que têm o objetivo de fazer uma obra e consagrar um autor ou uma

autoridade. A escrita cotidiana associa-se à rotina das ocupações cotidianas e

tem como função “laisser trace”.2

Daniel Fabre (1993) sublinha a inexistência de abordagens

problematizadoras dessas escritas nos estudos que tratam das “práticas

culturais”, referindo-se aos grandes levantamentos estatísticos de tradição

francesa. O autor destaca o caráter impreciso, fugidio e sem contorno dessas

escritas, que dificultam uma descrição detalhada dos “usos comuns”.

Diferentemente dos hábitos de leitura (que são um objeto passível de

classificação, identificação, medição e comparação), a escrita

n’est pas une consommation, elle résiste à la mesure, elle ne se laisse pas volontiers classer en catégories, son exercice n’exprime pas d’emblée une identité sociale. Pratique trop diffuse et trop variée pour être réduite à un ensemble d’indicateurs, elle appelle d’autres approaches (p.12).

De modo geral, a pergunta “O que você costuma ler atualmente?” contribui

para problematizar os hábitos de leitura em pesquisas que tomam a leitura como

tema. Formular questões sobre a escrita implica situá-la em sua dupla natureza. A

escrita é dinâmica, pois ocorre em situações e tempos variados e, ao mesmo

tempo, é fixa, pois dá forma à experiência, situa-se ao lado das normas

enunciadas e dos modelos inculcados, sendo, dessa forma, difícil de ser

apreendida. Diante da pergunta “O que você está escrevendo?” pode-se ouvir

afirmações como: “Escrevo muito no meu dia-a-dia”. Aqui, o sentido da escrita é

assumido em sua dinâmica e plenitude, presente em diversas práticas de escrita

cotidiana (fazer lista de compras, preenchimento de formulário, aviso, carta

pessoal, etc.). Outras vezes, ouvimos: “Não, não escrevo. Isso é coisa de

1 Segundo Daniel Fabre (1993) “ecritures ordinaires s’opposent nettement à l’univers prestigieux des écrits que distinguent la volonté de faire oeuvre, la signature authentifiante de l’auteur, la consécration de l’imprimé”, “[...] la plupart de ces écritures-là, associées à des moments collectifs ou personnels intenses ou bien à la routine des occupations quotidiennes, semblent vouées à une unique fonction qui les absorbe et les uniformise: laisser trace” (p.11). 2 O termo “ordinary people” foi utilizado por Sheridan, Street e Bloome (2000), e as expressões, “écritures ordinaires” e “laisser trace”, por Daniel Fabre (1993).

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escritor”. Nesse caso, a escrita passa a ser algo inacessível, próprio de

especialistas, reservado a poucos e manifesta as diferenças da pressão social

exercida pela escrita nas pessoas.

Daniel Fabre (1993, p. 16-17) destaca o lugar tenso e pouco acessível das

práticas de escrita cotidianas na seguinte afirmação:

Selon le sens commum, il y a une écriture dans laquelle le “je” s’engaje et s’exprime, la seule qui autorise aujourd’hui l’énoncé “j’écris”, et une autre qui, par contraste, apparaît comme le résultat d’une exigence extérieure au sujet, d’un pur impératif social. Cette écriture où nous avions d’abord reconnu un prolongement de soi, un médium à ce point incorporé qu’il en est méconnu, apparaît, au contraire, comme le fruit d’une nécessité dans laquelle la personne ne se reconnaît pas, mais qui impose sa discipline. Loin d’être, pour ses usagers ordinaires, un accompagnement “naturel” de la vie, cette écriture-là est ordonnée aux deux sens du terme. Une autorité la sollicite, voire l’impose et elle est, en soi, porteuse d’un ordonnancement. L’occasion et la forme, la raison sociale et la raison graphique y sont inséparables. En ce sens, l’écriture n’est pas seulement le signe extérieur des pouvoirs, elle est devenue le truchement universel d’une anonyme mise en ordre portée par l’acte même d’écrire.

É no quadro dessa reflexão de Fabre que se pretende, neste trabalho,

analisar as práticas de escrita das professoras da educação fundamental.

Compreende-se como práticas de escrita o conjunto de usos que, em diferentes

contextos sociais, quer engajando um “eu” ou lhe aparecendo como o “fruto de

uma necessidade”, supõe um processo de dizer marcado pelas formas e pelas

convenções que organizam os diferentes procedimentos de escrita, bem como

pelas representações que aqueles que põem em funcionamento esses

procedimentos possuem de seu domínio e pelas expectativas sociais em relação

a esse domínio.

As práticas de escrita tendem a se constituir, portanto, em torno,

fundamentalmente, de um interesse de registro (tomado como uma necessidade

externa ou interna ao sujeito), de um conjunto de procedimentos e normas postos

em funcionamento (com maior ou menor competência), assim como das

representações de suas próprias competências (que aquele que escreve faz de

si) e que antecipa naquele(s) para quem escreve.

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Descrever e analisar práticas de escrita implica, portanto, descrever e

analisar:

i. não apenas os atos de escrita, mas também as representações sobre

esses atos e sobre seus elementos, assim como a relação mais tensa ou

mais desenvolta do indivíduo com as normas e procedimentos que

organizam o sistema escriturário;

ii. a situação de interlocução que constitui o ato de escrita: o outro para o

qual se escreve, o objetivo ou função, o suporte e um conjunto de

materiais;

iii. a rede de relações, na qual os atos de escrita se inserem, entre as

diferentes esferas do mundo social: da vida pública e privada, do

trabalho, das sociabilidades e da vida cotidiana;

iv. os diferentes modos de distribuição da inserção na cultura escrita – e,

particularmente, do acesso aos procedimentos e normas que a regulam –

relacionados, embora nem sempre de forma linear, com a posição social

dos indivíduos nas diferentes esferas do mundo social, o que vale dizer:

os diferentes capitais culturais familiares ou herdados que permitem

diferentes modos de inserção e de participação na cultura escrita;

v. o domínio, pelos usuários, de um conjunto de habilidades e

conhecimentos: de um universo cultural, das próprias situações de

comunicação e uso da escrita, de suas convenções e normas, de suas

relações com a fala e sua variação social e situacional.

Diante desses pressupostos, busco neste estudo apreender os traços

constitutivos das práticas de escrita cotidianas de um grupo de professoras,

através da análise, de um lado, do ato de escrita (prática efetiva) realizado pela

troca de cartas com a pesquisadora e, por outro lado, de suas declarações sobre:

� os modos de aquisição da escrita tomando as memórias da infância e

adolescência;

� os usos e finalidades atribuídos à escrita, quer dizer, tanto “o que

escrevem” (incluindo os gêneros, a freqüência e o contexto de escrita)

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quanto o “para que escrevem”, ou seja, a função à qual se destina o que

escrevem;

� os modos e as formas de escrever, isto é, o “como escreve” e “onde

escreve”, ou ainda, as competências em relação à escrita, bem como os

suportes e materiais utilizados (caderno, livro, folha, lápis, borracha,

caneta, etc.), os conhecimentos necessários e requeridos durante a

escrita (a ortografia, a gramática, o conteúdo sobre o assunto, a leitura),

os procedimentos de escrita (rascunho, cópia, rabisco, etc), os locais

onde escreve (mesa, sala, quarto, etc);

� os significados atribuídos à escrita (tem gosto pela escrita? como define a

relação com a escrita - prazerosa, difícil, etc -, as crenças e valores sobre

a escrita, a representação que faz de si e do outro na escrita);

� as relações de sociabilidade nos espaços de produção e de circulação do

que escrevem se relaciona ao para quem escrevem e onde circula o que

escrevem.

Para isso, privilegiarei, aqui, uma discussão de duas grandes esferas de

uso da escrita: as escritas “para si” da vida privada e as escritas “para o outro” da

correspondência e da atividade profissional. Essa opção se justifica na medida em

que se optou por coletar dados por meio da correspondência, um gênero situado

numa zona ambígua entre as esferas da vida privada e da vida pública, o qual

será também privilegiado na análise das práticas de escrita das professoras.

2. AS ESCRITAS “PARA SI” DA VIDA PRIVADA

Segundo Jean-Pierre Albert (1993), a escrita privada, pessoal, íntima ou

exercida no âmbito estreitamente familiar, seria uma situação de escrita que surge

de maneira não requerida, não obrigada, não exigida por algo que venha do

exterior (que seja conhecido ou institucionalizado). A escrita privada funciona em

dois planos: de início como uma atividade de memória (lista de compras,

anotações de coisas a fazer na agenda pessoal, receita, recado, etc.) e, ainda

como uma atividade de incorporação do pensamento, que serve a um projeto de

descoberta e de cultura pessoais (pensamentos, desabafos, confissões, diário,

poesia, conto, etc.).

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No universo da cultura da escrita, o estudo das formas confessionais

(diário, memorial, autobiografia) tem sido contemplado por um renovado interesse

crítico, multiplicando-se estudos, análises e publicações sobre o tema. Esse

interesse pelas escrituras autobiográficas está apoiado na crença na

subjetividade, na privacidade, no pessoal, no cotidiano e no íntimo dos indivíduos.

Conforme Jean Hébrard (2000), o hábito de escrever um diário se difunde

a partir do século XVI. Para Lejeune apud Muzart (2000), os primeiros diários de

que se tem notícia são de homens. O hábito de ter um diário está presente, por

outro lado, nas práticas da memória feminina desde o século XVIII e XIX: “O

diário, como a correspondência, foi durante muito tempo, um refúgio para a

criatividade feminina privada de outros modos de expressão literária” (DIDIER,

1991, p.17). Para Chartier e Hébrard (1998) o diário íntimo é um fenômeno social

que parece ter proliferado no mesmo momento em que se tornou um gênero literário. Esse escrito, tido como secreto, tem como destinatário o seu próprio autor, e não está necessariamente destinado a ser relido. O fato de ser escrito na maioria das vezes por mulheres – por muito tempo, mesmo nas classes altas, proibidas de escrever e destinadas apenas a serem leitoras piedosas ou apaixonadas – ou por adolescentes sem status, submetidas à tutela paterna, como suas mães à conjugal, indica que papel social desempenhou na história esse lugar que se constituiu, na continuidade das páginas acumuladas, um reconhecimento de si que as sociabilidades não fornecem ou não conseguem mais fornecer (p. 43).

Muitos estudos3, nas últimas décadas, têm se debruçado sobre a temática

das escritas privadas, colocando em evidência diferentes enfoques que analisam

as narrativas praticadas na intimidade. Grosso modo, esses estudos se apóiam

em duas grandes perspectivas.

Por um lado, encontramos nos estudos sobre as escrituras pessoais uma

ênfase na perspectiva da análise dos conteúdos das lembranças e atitudes frente

3 Ver, por exemplo, a dissertação de mestrado de Maria José Motta Viana (1995), sobre a escritura feminina autobiográfica brasileira, e a pesquisa de doutorado: “Álbum de leitura: memórias de vida, histórias de leitoras”, de Lilian Maria de Lacerda (1999), sobre as condições pelas quais um grupo de mulheres (doze memorialistas) constituiu-se leitoras. Além desses estudos, as pesquisas sobre as escrituras cotidianas realizadas por Daniel Fabre (1997) e os trabalhos de Philippe Lejeune (1989; 1990 e 1994) sobre as escritas autobiográficas na França.

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ao mundo reveladas pela escrita, através dos seus diversos suportes - cartas,

diário, agenda, memória, autobiografia, cadernetas de anotações, etc. Por outro

lado, embora essas iniciativas ainda sejam raras, situam-se os trabalhos que se

voltam para a interpretação dos processos, das práticas, dos gestos envolvidos

nas escolhas e usos desse ou daquele suporte.

Maria Tereza Santos Cunha (2000), por exemplo, analisou os diários, entre

1964 e 1974, de duas normalistas catarinenses, buscando compreender como

foram representados, nesses escritos, a prática docente, o ingresso na vida

profissional e as experiências pessoais das professoras. A autora observou que

os conteúdos dos diários apresentavam temas - como as leituras prediletas, a

escolha profissional e a descrição da vida pessoal -, que vão constituindo as

representações sobre o magistério primário. Observa-se, desse modo, uma

ênfase na análise dos conteúdos das lembranças das memorialistas.

Outro estudo, nessa perspectiva de análise, foi desenvolvido por Maria

Helena Camara Bastos (2000), que buscou compreender as práticas de leitura de

uma moça gaúcha – Cecília de Assis Brasil – na Primeira República,

especialmente no período de 1916 a 1928, através do seu diário, com o objetivo

de traçar seu perfil de leitora, a partir do que ela registrou cotidianamente sobre o

que lia. A autora inventariou o que lia, como lia, como se apropriava do que lia, as

impressões que as leituras lhe despertaram e, também, revelou a intenção em

considerar o ato de escrita privada do diário, sendo, no entanto, essa intenção,

em particular, pouco explorada no ensaio. A menção sobre esse aspecto ocorreu

apenas quando a autora constatou que Cecília escrevia poemas em momentos de

inspiração dedicados a algum membro da família. Observou-se que no diário ela

escrevia os momentos de intimidade, de conversa consigo mesma, de prazer com

as atividades e as leituras, as anotações do dia-a-dia e dos fatos. Essa escrita

privada, íntima, era mantida guardada, despertando a curiosidade dos membros

da família. Em alguns momentos do diário, a autora constatou que ela escrevia

ainda com a finalidade prática de informar o pai, freqüentemente ausente de casa,

sobre o que se passava com a família e os amigos, com os visitantes e os

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empregados, sobre os afazeres domésticos e os negócios, sobre o cuidado com

as plantas e os animais. Desse modo, a autora observou que o diário não é mero

documento, mas produto da cultura feminina de seu tempo, além de possibilitar

compreender as representações sociais e o imaginário em cada época.

Tania Regina Oliveira Ramos (2000) analisou doze agendas de

adolescentes na faixa dos 13 aos 17 anos, na atualidade. A autora considera a

agenda uma nova versão dos diários, que, em tempos passados, abrigavam a

intimidade das jovens. Semelhante ao diário, que registra acontecimentos e

confissões, a agenda fornece registros de experiências, compromissos, frases

soltas e ilustrações, fotos e acontecimentos, ou seja, servem como material para

compreender os fragmentos autobiográficos em uma escrita fragmentária e

descontínua, em função do ritmo e da freqüência das anotações, de acordo com a

autora.

Na contemporaneidade, refletiu a autora, as agendas modernas, coloridas,

de capa plastificada, emborrachada ou de couro são, na maioria das vezes,

escritos que abrigam palavras cifradas e encobertas, através de códigos,

desenhos e confidências, sendo também um “depósito de recados, adesivos,

recortes, clips coloridos, papéis de bala, ingressos para shows, palavras e frases

multicores” (p.193). A autora constatou que, diferentemente do diário, as agendas

não são guardadas no fundo de gavetas e nem fechado a sete chaves, entretanto,

nem sempre os significados são explícitos. Em suma, embora a análise tenha

considerado, grosso modo, algumas características sobre a materialidade dos

suportes que abrigam esse gênero, a principal ênfase consistiu em discutir

determinados conteúdos desses escritos, como forma de expressão de si.

Em um estudo sobre memórias de mulheres escritoras, Lilian Maria de

Lacerda (2000) analisou noventa títulos autobiográficos distribuídos

irregularmente entre 1893 e 1998. A autora analisou os livros, buscando os traços

que singularizam cada obra, a partir de três critérios de interpretação. O primeiro

critério diz respeito às razões para a escrita autobiográfica das memorialistas.

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Trata-se de uma análise sobre os artefatos e dispositivos textuais, literários e

técnicos utilizados pelas escritoras e editores na produção do texto. O segundo

critério de análise se refere aos traços que estabeleceram o pacto autobiográfico

entre o eu-narrador e seu leitor-modelo e, por fim, o terceiro nível de análise

buscou identificar nos depoimentos femininos as lembranças de leitura e os

processos de formação das leitoras. Assim, novos caminhos de interpretação

foram estabelecidos junto às escrituras autobiográficas, diferentemente dos

trabalhos anteriormente descritos. Interessa destacar algumas reflexões sobre o

uso da memória e da escrita autobiográfica, à medida que, tanto as professoras

como a pesquisadora, neste trabalho, rememoraram os aspectos da vida familiar,

da esfera escolar, do universo cotidiano e profissional nas cartas.

Segundo Lilian Maria de Lacerda (2000), as razões das memorialistas para

os projetos de escrita tornou-se uma necessidade, uma forma de reconstruir as

imagens da realidade e a própria identidade feminina e/ou profissional. Ela

constatou que as memorialistas elaboravam seus discursos, buscando evitar as

lembranças indesejadas, as experiências traumáticas, os acontecimentos dos

tempos mais distantes, num esforço de não-lembrança. Isso significa reconhecer

que a memória, determinada pelo lugar social, é referenciada pelos significados

do imaginário social de um grupo. Rememorar é uma atividade movida pela

realidade de seu entorno e pela própria realidade social, cultural, pessoal, familiar

e profissional em que viveu, na qual se insere e à qual está exposta

cotidianamente.

Para ela, lembrar é uma atividade do presente sobre o passado, sofrendo

interdições e imposições sem que a escritora consiga evitar os “artifícios, as

interpretações, os lapsos e os recalques de toda uma vida sempre tão complexa e

cuja totalidade constantemente lhe escapa” (MALUF, 1995 apud LACERDA,

2000, p. 87). Portanto, escrever e reviver os acontecimentos vividos, reencontrar

o passado é uma atividade intensa, marcada pelas limitações e possibilidades do

uso da memória.

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No sentido da segunda perspectiva, Jean Hébrard (2000) desenvolveu um

estudo da evolução dos suportes utilizados na prática da escritura pessoal. Para

ele, esse exame pode permitir que se esclareçam os problemas trazidos pelas

contradições nascidas da descontinuidade do ato de escrever, na medida em que

o sujeito que escreve deve organizar sua relação com o tempo da escritura e o

tempo social. A preocupação do escritor reside em “aprender a manifestar, para

além da fragmentação do trabalho de escrever, a continuidade de uma

sensibilidade”. Nesse sentido, ele deve considerar “os meios para alcançar não só

um domínio do tempo que passa, mas também uma representação estável de si”

(p.30-31).

Partindo desses estudos, torna-se necessário compreender não apenas os

objetos e os conteúdos das escritas pessoais, mas as representações construídas

dos que escrevem com as relações que estabelecem com as práticas de escrita.

Busca-se, assim, uma compreensão dessas práticas, aproximando-se, por um

lado, dos usos múltiplos e diferenciados da escrita e, por outro, das competências

e expectativas que firmam significados em torno da escrita.

3. AS ESCRITAS PARA O OUTRO: A CORRESPONDÊNCIA

Diferentemente das escritas privadas, a escrita pública – destinada ao

outro - é aquela requerida ou que emana de uma autoridade particular,

reconhecida e constituída oficialmente (governo, escola, universidade,

administração, instituições públicas ou privadas, etc). No entanto, o ofício de

escrever cartas cumpre, ao longo da história, diferentes funções. Estende-se aos

papéis pessoais, desde os mais estritamente privados, como as cartas escritas

como forma de diário ou em cadernos de anotações, até os que se destinam à

publicação como memória e autobiografia, ou ainda aquelas que são utilizadas,

nas relações a distância, nas cartas de negócios (comerciais, bancários,

judiciários, etc.).

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No caso da correspondência de uso privado, como constata Roger Chartier

(1991), seu uso traduz uma realidade complexa e visa a uma eficácia social. Para

esse autor, a prática epistolar deve ser compreendida como:

[...] une écriture ordinaire, parente de ces autres écritures domestiques qui produisent livres de comptes et livres de raison, cahiers et carnets, journaux intimes, récits de vie (p. 10).

A prática epistolar atende assim a motivações diferentes (afetivas, sociais

ou econômicas), tendo seu registro escrito em função da utilidade, da

necessidade ou do prazer. Portanto, esse gênero se situa, no caso, numa zona

ambígua entre as esferas da vida privada e da vida pública.

Como anteriormente discutido, as práticas de escrita cotidianas associam-

se à existência do privado, tomando distância do espaço público, e são

constituídas dos valores da intimidade. No entanto, a prática da correspondência

associa-se também a uma sociabilidade epistolar (a passagem pelo correio, a

carta que passa de mão em mão, as cartas escritas no coletivo ou através de

sugestão, a carta escrita e depois corrigida por outra pessoa, etc.). Apesar dessa

sociabilidade epistolar, a correspondência privada preserva sua característica de

refúgio privilegiado do sentimento, da intimidade, da verdade do eu (CHARTIER,

1991). Podemos afirmar que, na diversidade do universo das escritas cotidianas,

a correspondência é um gênero privilegiado. Como afirma Chartier (1991, p.9), o

gesto epistolar é “libre et codifié, intime et publique, tendue entre secret et

sociabilité”, associando, ao mesmo tempo, o social e a subjetividade.

Segundo esse autor, o atributo principal da carta reside no fato de ela ser

espontaneamente pensada como o lugar do segredo e da intimidade. A carta é

considerada como devendo anunciar a verdade de uma experiência, a força da

troca e do envolvimento entre os correspondentes.

Para Jean Hébrard apud Cardoso e Pereira (1999), a correspondência

permite mudar nossas representações, ao contrário do livro, do sermão, da aula e

da conferência, que, ao utilizarem os procedimentos retóricos para impor

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significações e valores, muitas vezes convencem o outro de maneira pouco

sólida. Ele acrescenta em seu argumento que:

(...) a troca de palavras escritas, o questionamento devolvido, o aprofundamento das diferenças, a compreensão das contradições que a correspondência permite são certamente os meios para pensar por si mesmo sob o crivo do pensamento do outro (p.11).

De acordo com Gloria Amaral apud Galvão e Gotlib (2000, p. 22), a

correspondência tem como função prática a comunicação com o outro, que se

manifesta de forma deliberadamente espontânea, sob dois aspectos: por um lado,

a informalidade do “preciso te contar uma!” específico da situação de conversa

em que se transfere a facilidade e espontaneidade da fala, e, por outro, a

organização da oralidade, com as mudanças bruscas e constantes de assunto.

O fascínio exercido pelas cartas pode ser constatado pelos numerosos

estudos destinados à história das correspondências literárias4. Podemos

encontrar uma infinidade de publicações sobre correspondência entre

personalidades públicas, escritores e pessoas comuns, que se destinam, por

anteciparem uma circulação pública, a fixar uma memória e autobiografia, uma

forma de expressão do mundo, uma expressão de uma individualidade e de uma

escrita literária.

Parece infinito o número de estudos sobre a correspondência entre

escritores, coligidas, organizadas e publicadas em livros, jornais, revistas, fazendo

parte dos arquivos especiais nas bibliotecas do Brasil e de outros países, como a

França, que possui uma grande quantidade de publicações sobre

correspondências entre escritores e outras personalidades públicas. Ilustram esse

movimento crescente as cartas de Proust, que foi um “missivista torrencial”,

segundo Walnice Nogueira Galvão apud Galvão e Gotlib (2000, p.341), e as de

4 Ver L’ Épistolarité à travers les siècles. Geste de communication et/ou d’écriture, Centre culturel internatinal de Cerisy-la-Sallem colloque sous la direction de M. Bossis et C. A. Porter, Stuttgart, Franz Steiner Verlag, 1990. Écrire, publier, lire. Les correspondances (problématique et économie d’un “genre littéraire”). Actes du colloque international “Les correspondances” (Nantes, 4-7 octobre 1982), Publications de l’université de Nantes, 1983.

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Madame de Sévigné, que imprimiu “uma marca inconfundível na cultura literária

francesa”, como aponta Glória Carneiro do Amaral apud Galvão e Gotlib (2000,

p.19).

No Brasil, aos poucos, vêm ganhando fôlego no mercado editorial as

publicações destinadas à divulgação das cartas. Por exemplo, as missivas

escritas por Mário de Andrade, que foi um “correspondente fecundo”, como

expressa José Mindlin apud Galvão e Gotlib (2000, p.38). A dimensão apostolar

de Mário de Andrade se revela, por exemplo, através da intensa correspondência

com Fernando Sabino, publicada em “Cartas a um jovem escritor” (1993), além de

outros missivistas que partilharam, em outros escritos, sua produção literária,

suas inquietações e descobertas. A correspondência ativa entre Fernando Sabino

e Clarice Lispector foi reunida e apresentada na obra “Cartas perto do coração”

(2001). E, recentemente, a rica e frutuosa troca de missivas mantida entre Clarice

Lispector e escritores, artistas, intelectuais e familiares foi organizada em

“Correspondências” (2002).

Portanto, o mundo das correspondências é inestimável para os estudos

literários, assim como serve a análises históricas e estilísticas. Enfim, podem ser

utilizadas para uma pluralidade de finalidades e campos de estudos. Na teia da

escrita epistográfica encontram-se estudos que atestam a inesgotável fonte das

cartas como expressão de pensamento, como manifestação de idéias ou

questionamentos existenciais e que também revelam o retrato de uma trajetória

biográfica e do contexto cultural, histórico e sociopolítico de um escritor,

intelectual ou pessoa comum numa determinada época.

Um estudo sobre correspondências ordinárias entre pessoas comuns, por

exemplo, foi realizado por Cécile Dauphin, Pierrette Lebrun-Pezérat e Danièle

Poublan (1995), que reuniram um corpus de 350 cartas familiares de vinte e oito

correspondentes, escritas entre a Revolução Francesa e a primeira Grande

Guerra, na França do século XIX. As autoras realizaram uma ruptura com a leitura

clássica e descritiva que geralmente direciona as pesquisas sobre

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correspondências, em que é priorizado o levantamento dos conteúdos e temáticas

no tratamento das cartas. Desse modo, elas não consideraram as cartas como

“documentos” que relevam as maneiras de viver, a existência privada cotidiana,

os hábitos e os comportamentos de uma família, mas priorizaram nas cartas as

situações e os modos da enunciação epistolar. Portanto, novos objetos se

definiram como possibilidade de compreensão, como, por exemplo, as

representações, nas cartas, das condições de sua redação e o “pacto epistolar”.

A prática de escrita das cartas foi o objetivo central das autoras neste

estudo, o que permitiu ampliar minha compreensão sobre a escrita das

correspondências e, ainda, contribuiu para organizar e ampliar a análise das

cartas5. Uma das análises realizadas pelas autoras, e também desenvolvida neste

estudo, se refere ao exame dos procedimentos retóricos, que, traduzidos em

palavras, impulsionam a relação entre os correspondentes, o que pode ser

definido como “pacto epistolar”. O outro eixo de análise tratou da “mise en scène

de l’écriture”, que, segundo as autoras, se refere às referências espaciais e

cênicas que movimentam a troca e o engajamento epistolar entre os

correspondentes.

De acordo com Cécile Dauphin et al (1995), o termo “pacto epistolar” deve

ser compreendido a partir do conceito de “pacto autobiográfico” definido por

Philippe Lejeune6. As autoras realizaram uma transposição do conceito para

atender à situação da prática epistolar, como elas explicam:

Pour honorer les termes de ce contrat – maintenir l’échange continu de lettres -, l’épistolier semble se trouver dans la même posture que l’autobiographe face à son projet d’écriture: former un pacte. (...) Dans la situation épistolaire, le pacte, plus ou moins explicité, amène la personne signataire à se saisir d’outils rhétoriques pour mener à bien la recontre avec l’autre. Là (le pacte autobiographique), l’écriture devient double de soi. Ici la lettre scelle l’engagement de soi dans la relation à l’autre (p. 131).

5 Outro estudo que utiliza a análise realizada por Dauphin et al (1995) foi desenvolvido por Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo (2000). A autora analisou o conjunto de duzentas e vinte e duas cartas escritas, trocadas entre duas adolescentes, entre 1990 e 1996. Seu propósito consistiu em identificar e analisar os modos, as necessidades e interesses das correspondentes, os assuntos que trazem, os procedimentos a que recorrem, que se materializa numa prática – o ato de escrever cartas. Esse estudo permitiu acompanhar os procedimentos de análise, semelhantes aos utilizados na compreensão das cartas das docentes. 6 Ver o livro Le pacte autobiographique, Éditions du Seuil, 1975.

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Assim, para as autoras, é necessário analisar o discurso específico

produzido pelos correspondentes na troca de cartas, como realizado no caso da

presente pesquisa. Utilizamos a reflexão sobre o pacto autobiográfico realizado

por Lilian Maria de Lacerda (2000) para ampliar a compreensão da constituição

do pacto epistolar. Para ela, vai-se revelando uma escrita autobiográfica em que a

experiência pessoal é revelada a um outro – o destinatário -, num acordo tácito de

um eu autorizado pelo próprio sujeito enunciador – o remetente –, que retorna

para si suas lembranças, seu passado, sua vida, e faz disso um discurso do qual

o leitor participa e é cúmplice (LACERDA, 2000, p.87). O pacto epistolar pode ser

descrito, de acordo com as autoras, segundo quatro dispositivos principais: os

indícios que expressam a ausência (as menções às cartas recebidas e/ou

esperadas); aqueles que definem o princípio do prazer; aqueles que avaliam o

gosto da troca e, enfim, os que definem o ritmo e o movimento da troca de

correspondências.

O conceito de “mise en scène de l’écriture” pode ser compreendido, por

outro lado, na eficácia dos gestos que fornecem significados ao engajamento

entre os correspondentes no ritual epistolar. Para as autoras o pressuposto que

orienta esse conceito se encontra na compreensão de que “la vie sociale est une

scène permanente” (p.101). Elas utilizam a metáfora da dramaturgia definida por

Goffman (1973, p. 9) apud Dauphin et. al. (1995, p.101), que compreende que:

de quelle façon une personne, dans les situations les plus banales, se présente elle-même et présente son activité aux autres, par quels moyens elle oriente et gouverne l’impression qu’ellle produit sur eux, et quelles sortes de choses elle peut ou ne peut pas se permettre au cours de sa représentation”.

De acordo com as autoras esse modelo permite analisar como,

à partir des interactions et de la conduite des individus placés face à face, le social se construit dans le jeu des mimiques, des regards et des échanges des paroles. Dans le cas d’une correspondance, les interlocuteurs ne sont pas em présence l’un de l’autre, mais il n’en reste pas moins que, par l’intermédiaire d’un objet écrit, se déroule aussi un jeu interactif (p. 101 e 102).

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Assim, os indícios do cerimonial epistolar, por exemplo, a maneira de

iniciar a carta, a menção da data e lugar, o vocativo inicial e outros vocativos

utilizados, a despedida, etc., podem fornecer “une mise en scène”, ou seja,

dispõem para o leitor da carta um conjunto de menções sobre o ambiente, os

acessórios, a postura e os movimentos dos “atores”, oferecendo, portanto, as

marcas necessárias à compreensão da “peça” para aquele que realiza sua leitura.

Considerando esses indícios, no caso da presente pesquisa, eles poderiam refletir

os modos e os procedimentos que apóiam a escrita epistolar das professoras.

As possibilidades que o gesto epistolar permite aos correspondentes numa

conversação entre ausentes foram consideradas na reflexão de Jean Hébrard,

apud Cardoso e Pereira (1999, p.10) quando afirmou que:

(...) a correspondência é um diálogo mediado pela escrita que permite tomar a distância da reflexão, retomar uma frase antes de lançá-la ao seu parceiro, reler o texto recebido para melhor compreender a significação profunda. Mas ela permite também levantar uma questão, esperar uma resposta, prolongar a compreensão de uma noção, de um texto, até o mais profundo de si mesmo.

Em suma, compreende-se, neste trabalho, que a própria natureza do gesto

de escrita epistolar é, antes de tudo, um gesto de comunicação com o outro. A

carta possui um potencial dialógico virtual, que permite modos de expressão de si

(estético, literário, autobiográfico ou íntimo) entre os correspondentes. Nesse

diálogo escrito, um tipo de registro interacional dos fatos interpessoais e dos

acontecimentos são produzidos e trocados entre diferentes atores sociais.

4. ESTUDOS SOBRE AS ESCRITAS DE PROFESSORES

Ainda pouca atenção tem sido atribuída às relações de professores com a

escrita. Pretende-se, nesta seção, descrever e analisar alguns estudos que

buscam compreender as práticas de escrita de professoras como forma de

apreensão de seu modo de inserção na cultura escrita. Identifiquei duas grandes

perspectivas que orientam os estudos sobre as escritas de professoras. Apesar

de reconhecer os limites dessa classificação, situar os estudos realizados se

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mostrou uma tarefa relevante para promover uma reflexão acerca de questões

centrais para este trabalho.

Uma primeira perspectiva, baseada na reflexão histórico-sociológica, busca

examinar uma quantidade e diversidade de documentos escritos – arquivos

pessoais, cartas, autobiografias, memoriais, diários de classe, fichas de avaliação,

cadernos de atividades, relatórios pedagógicos ou burocráticos -, tanto sobre as

“escritas ordinárias” - do universo cotidiano e familiar, da vida privada -, quanto

aquelas que tomam a escrita publicada por professores. As pesquisas, sob esse

enfoque, envolvem as memórias de professores do passado que escreviam no

cotidiano pessoal e profissional: o pesquisador se debruça sobre esses

documentos com o objetivo de apreender aspectos da cultura escolar,

especificamente, da cultura docente. Embora a escrita dos professores seja

objeto de análise, o que interessa às pesquisas que se orientam por esta

dimensão é compreender, através dos documentos escritos, objetos específicos

de estudo. As escritas se tornam, assim, fonte para esses trabalhos.

De acordo com Antonio Castilllo Gómez (2001, p.19-20) apud. Mignot e

Cunha (2003, p.10), recentes estudos de história da cultura escrita têm se voltado

para o exame da produção, difusão, uso e conservação dos objetos escritos,

conforme expressou:

O que se pretende é desvelar cada um dos lugares, maneiras e gestos que historicamente têm regido as relações entre o mundo escrito e o mundo dos usuários, sejam estes escritores, leitores habituais, pessoas de letras, ouvintes de peças lidas em voz alta, escreventes inexperientes ou consumidores de cordel. [...] o momento atual da história social da cultura escrita está determinado por três conceitos chaves: os discursos, as práticas e as representações. De um lado interessa conhecer o que a escritura tem suposto para as distintas sociedades e, dentro destas, para as diferentes classes sociais. De outro, é preciso indagar nas concretas maneiras de escrever e de ler e nas práticas a que tem dado lugar (desde a escritura oficial à pessoal, desde a inscrição ao diário, desde o manuscrito iluminado ao livro de bolso, desde o códice ao e-book, desde a leitura em voz alta à silenciosa, desde o gabinete à praça, e assim sucessivamente). E ademais, devem contemplar-se também as várias imagens artísticas e literárias que cada sociedade elaborou dos produtos escritos, já que as mesmas podem refletir uma certa realidade ou bem uma determinada mentalidade.

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Nesse sentido, as fontes autobiográficas interessam aos pesquisadores,

em geral, e historiadores, em especial, pois permitem examinar a cultura escolar,

a percepção que os professores e professoras tinham de si mesmos, o que

eles(as) escreviam, o contexto, as motivações e as finalidades que os orientavam

para escreverem suas experiências pessoais e profissionais.

Uma iniciativa que revela o interesse pelas escritas de docentes, na

perspectiva histórico-sociológica, pode ser encontrada na recente publicação em

que Mignot e Cunha (2003) apresentam um conjunto de trabalhos sobre as

práticas de memórias docentes, reunindo uma diversidade de documentos

(arquivos pessoais, cartas, autobiografias, memoriais, diários de classe, fichas de

avaliação, cadernos de atividades, relatórios pedagógicos ou burocráticos), que

guardam os registros do cotidiano escolar. Esses documentos, privados ou

oficiais, em diferentes suportes - escritos institucionais e pessoais de professores

e professoras -, são voltados para as suas experiências profissionais. Assim, se

confirma um crescente interesse pelas práticas de memórias escritas de

docentes, proporcionando uma reflexão sobre a autoria docente e a importância

dos professores na preservação dos arquivos pessoais e escolares. Esses

estudos confirmam que os docentes não se limitam a ensinar a ler e escrever,

sendo eles próprios produtores de textos.

Um dos trabalhos (MIGNOT, 2003) incluídos na coletânea do livro dessas

autoras se refere às narrativas escritas e publicadas por seis professoras

aposentadas, nascidas a partir de 1879, no interior ou nas capitais de diferentes

locais do país: Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo. As

histórias de vidas da maioria das professoras retratam o exercício do magistério

num período das reformas educacionais, a partir de 1920, inspiradas no ideário da

Escola Nova. A autora observou que os relatos autobiográficos não se esgotavam

na rememoração do privado, do estritamente pessoal (da infância, da família e do

espaço doméstico), mas constituem narrativas com lembranças da dimensão

profissional, permitindo compreender os espaços de formação, a instituição

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escolar, os eventos sociais e políticos, as representações sobre a profissão e a

prática pedagógica dessas professoras.

Em outro trabalho Mignot (2000) analisou o arquivo pessoal constituído de

diversos documentos escritos – diário de classe, cadernos de atividades, planos

de ensino, fotografias de alunos, anotações de leitura, álbuns de recortes de

jornais, relatórios escolares, etc. -, de uma professora7 que permitiu reconstruir

sua vida profissional, destacando a singularidade de sua presença no movimento

de renovação educacional no Brasil nas décadas de 20 e 30 do século passado.

A autora constatou que, nos arquivos femininos, os objetos autobiográficos

de natureza privada são privilegiados – as mulheres guardam livros de memórias,

álbuns de fotografias da família, livros de receitas, diários, maços de cartas. No

entanto, no caso da professora analisada nesse estudo, predominaram os

escritos sobre o cotidiano profissional, refletindo mais sobre o fazer docente do

que sobre o universo de sua vida íntima. Portanto, a leitura do seu arquivo

privilegiou “a face pública de sua existência, deixando entrever de relance a

esfera do privado” (p.138).

Essa constatação permite questionar as relações entre poder e escrita

presentes na expressão autobiográfica das mulheres. Embora elas escrevam,

nem sempre publicam o que escrevem, em função da censura social que muitas

vezes as mantém em posição subalterna, modesta, abafada, permanecendo

anônimas em seu tempo.

Confirmando uma tradição da cultura ocidental, segundo Roger Chartier

(2001), as mulheres deviam saber ler, mas não ter a capacidade de escrever, pois

a escrita possibilita a liberdade ao ser utilizada como comunicação, intercâmbio,

“fuga” da ordem patriarcal, matrimonial ou familiar, enquanto que a leitura é um

7 Mignot (2000) analisou o arquivo pessoal de Armanda Álvaro Alberto – “professora, diretora da Escola Regional de Meriti, em Duque de Caxias (1921-1964), sócia-fundadora da Associação Brasileira de Educação, ABE (1924), signatária do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), presidente da União Feminina do Brasil, UFB (1935), prisioneira política (1936/37)” (p.123).

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veículo que impõe uma autoridade, pois os textos transmitem em sua leitura uma

ordem, uma disciplina, uma forma de coação. Desse modo, esse vínculo entre

poder e escrita pode ser entendido a partir de duas dimensões: o poder da escrita

e o poder sobre a escrita. A primeira dimensão ocorre no nível da dominação

simbólica, e se refere ao poder exercido por meio da escrita, pois, mesmo quando

não é expressa no cotidiano da prática burocrática ou administrativa e de controle,

a escrita torna visível o poder e delimita um território marcado. O poder sobre a

escrita, por outro lado, “refere-se às concorrências para definir uma norma de

escrita, as formas de ensino da escrita, os usos legítimos desta capacidade

segundo os estamentos ou as camadas sociais, ou a divisão entre os sexos”

(CHARTIER, 2001, p.24).

Essa descontinuidade entre os processos de escritura da memória

feminina e os processos de sua divulgação também foi apontada no balanço da

memorialística feminina, realizado por Maria José Motta Viana (1995). Ela revela

a circulação restrita dos textos produzidos pelas mulheres brasileiras que

abordaram acontecimentos confinados à esfera do privado, embora também

tenham expressado suas idéias sobre eventos políticos, religiosidade, vida

mundana, refletindo sobre a própria vida. No entanto, como revela Teles (1997)

apud Mignot, Bastos e Cunha (2000, p.20).), desde o século XIX,

(...) professoras escreviam romances e poemas, publicavam em jornais e revistas, participavam das campanhas abolicionista e republicana. Em prosa e verso, elas expressaram seus sonhos, reclamaram seus direitos, ingressaram em escolas, fundaram associações, assinaram manifestos.

Nesse período, conforme revelam os historiadores8, as professoras eram

estimuladas pelas famílias, confessores e educadores a anotar “os

acontecimentos importantes do dia, através de diários íntimos e troca de

correspondências entre amigas, num projeto de educação dos sentimentos”

(p.20).

8 Em Pernambuco, desde o século XIX, diversas mulheres publicizaram seus escritos, ver Luzilá Ferreira (1991, 1995, 1999).

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Será que as docentes, dos tempos atuais, conservaram o hábito de

escrever, seja por motivações pessoais ou profissionais, suas descobertas,

inquietações e experiências? Que relações estabeleceram com a leitura e a

escrita ao longo de suas vidas? Como as relações familiares na infância e

adolescência contribuíram para o estabelecimento de práticas de leitura e escrita?

Essas questões se inserem nas pesquisas que se apóiam nos relatos de

professoras sobre a leitura e escrita. Esses trabalhos buscam mostrar também

que, através das histórias de vida pessoal e profissional das professoras, podem

ser compreendidos os modos como as docentes tratam a leitura e a escrita no

ensino com crianças. Essas questões orientam os estudos do que denominei,

aqui, de segunda perspectiva de análise.

Os trabalhos que se inserem nessa tendência enfatizam a reflexão sobre a

prática pedagógica. Para isso, analisam os relatórios de observação, os

depoimentos, as memórias e os relatos autobiográficos das professoras que estão

atuando ou já atuaram em sala de aula, ou das alunas em processo de formação

profissional sobre as suas experiências com a leitura e a escrita no universo

familiar, na sala de aula ou nos espaços da formação e da profissão. A

observação, a entrevista e a narrativa biográfica são os instrumentos

metodológicos utilizados para compreender o universo da escrita, seu ensino, os

procedimentos e a avaliação, nas pesquisas que se orientam nessa direção.

A primeira iniciativa que descrevo trata-se da pesquisa realizada com sete

professoras aposentadas de Juiz de Fora que ingressaram no magistério desde a

década de 30 até a década de 60. Nesse trabalho, Freitas (2000) buscou

compreender as experiências de leitura e escrita, usando como recurso

metodológico a entrevista. As memórias dessas professoras revelam aspectos

referentes à infância, aos anos escolares, à prática profissional, à vida adulta, até

o momento da realização das entrevistas. Em suas narrativas, o ambiente familiar

proporcionava a leitura de jornais e livros e a leitura e escrita das cartas dos

familiares distantes. Quanto à alfabetização, as professoras recordaram-se da

primeira professora, do método de ensino, da cartilha. As lembranças com as

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experiências de escrita trazem os cadernos de caligrafia, as composições, as

redações, além das canetas-tinteiro, do lápis e, com esses suportes, a prática

mecânica da escrita. Percebe-se, pois, o restrito lugar que a escrita ocupava na

prática escolar, ensinada como um conjunto de habilidades mecânicas e técnicas,

desvinculada de sua funcionalidade real e dos propósitos comunicativos, como

analisou a autora.

As professoras em seus relatos lembraram ainda das leituras e dos títulos

dos livros lidos na juventude, e das professoras de português da escola normal,

que influenciaram o gosto pela leitura e escrita. Quando falaram das suas

experiências com o ensino na alfabetização, recordaram que trabalhavam com a

redação, o ditado, o jornal, a confecção de livros de histórias, a produção de

mural, a cópia, a poesia, etc. No entanto, apesar da diversidade de atividades, as

professoras confessam que a leitura e a escrita que ensinavam na escola eram

mecânicas e artificiais. Para a autora, as professoras, apesar de perceberem “a

evolução dos métodos dentro das variadas concepções de linguagem (...),

estavam influenciadas por toda uma concepção de ensino de leitura e escrita com

a qual foram formadas” (Ibidem, p.55).

Portanto, os espaços que a escrita e a leitura ocupavam nas vidas dessas

professoras aposentadas refletem uma diversidade de projetos revelados no

desejo de escrever um livro, no uso da agenda para organizar os compromissos,

na escrita de mensagens e cartas, confirmando que as práticas de leitura e escrita

estão presentes em suas vidas.

Outra pesquisa refere-se a um estudo mais recente, de Kramer e Oswald

(2002), que utilizaram diferentes estratégias metodológicas (análise documental

de arquivos e fichas das escolas, observação intensiva e entrevistas coletivas

com alunos), com o objetivo de analisar as experiências de leitura e de escrita de

alunos de três escolas de formação de professores no município do Rio de

Janeiro.

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Os registros das observações de diferentes disciplinas (Língua Portuguesa,

Didática da Linguagem e Metodologia da Alfabetização) revelaram que as

atividades reforçavam os exercícios repetitivos, as tarefas eram voltadas à

gramática de modo mecânico, ou, ainda, havia situações em que se ensinava a

ler ou a escrever, mas pouco se escrevia e lia. Essas atividades de escrita

ocorriam tanto nas escolas de formação como nas classes da escola

fundamental. Assim, concluem as autoras, a análise do lugar e do valor da escrita

na sala de aula nas escolas observadas indicou que o quadro-negro é, por

excelência, o espaço de escrita que continua cumprindo o elo na comunicação

escrita entre os professores e seus alunos. As autoras constataram que “de fato,

professores e alunas escrevem muito nesses espaços ou, melhor seria dizer,

copiam muito” (p.12). As professoras “copiam no quadro“ enquanto que as alunas

“copiam do quadro”. Assim, as atividades não tornam a escrita uma produção

significativa e que favoreça uma maneira de aproximar as alunas da leitura e da

escrita.

Em outro estudo Kramer (1995) buscou compreender a relação das alunas

do curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) com

as experiências de leitura e escrita, especificamente, com os livros de literatura,

ao longo de suas trajetórias de vida e de trabalho. Para isso, a autora utilizou

como recurso metodológico o relato oral em situações coletivas e a elaboração de

relatos autobiográficos escritos individuais. Apesar de os resultados enfatizarem o

aspecto da leitura escolarizada das futuras professoras, interessa-me observar,

nos depoimentos orais e escritos, as referências quanto ao processo da escrita e

à relação com o ato de escrever. As alunas lembraram que as atividades de

escrita na universidade, às quais estavam habituadas, relacionavam-se a

escrever trabalhos técnicos, sínteses e resumos, elaboração de fichas de leitura,

respostas a questionários. A proposta da pesquisa em colocar as alunas para

escreverem sobre si mesmas, suas histórias de leitura e escrita revelou ser uma

tarefa difícil para elas. O exercício de reflexão e do pensar criticamente sobre as

suas próprias experiências como alunas, focalizando as relações que haviam

construído com a escrita, revelou diversos sentimentos relacionados à escrita,

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que envolviam o amor, o ódio, a indiferença, o bloqueio, as dificuldades e o medo

de escrever.

Outro trabalho que pretendeu ampliar e explorar caminhos e modelos

improváveis da formação docente pode, ainda que indiretamente, ser incluído

nessa segunda perspectiva. Através da troca de correspondências com um grupo

de professores, Beatriz Cardoso e Maria Cristina Ribeiro Pereira (1999), em um

trabalho pioneiro, implementaram uma forma nova de tratar a formação de

professores da zona rural no estado de São Paulo. Elas coordenaram o projeto

“Cartas aos professores das escolas rurais”, cujo objetivo era incentivar o

professor a rever sua prática e arriscar novas maneiras de conduzir o trabalho da

leitura e escrita na sala de aula, através da utilização da carta.

Esse projeto tem como principal objetivo a formação de produtores de

escrita em projetos de ação, ou seja, busca fazer com que o professor se

confronte com o trabalho do outro, com as imagens e as palavras que revelam

seu próprio trabalho. Em suma, tem como pressuposto a idéia de que “formar-se

é entrar em diálogo para reconsiderar suas próprias representações à luz das dos

outros” (HÉBRARD, apud CARDOSO e PEREIRA, 1999, p. 10). Esse projeto

contribuiu para ampliar a compreensão da correspondência em situação real de

uso, acompanhando seu funcionamento e ações, bem como refletindo sobre as

possibilidades e limites que esse tipo de escrita oferece.

As conclusões a que têm chegado as pesquisas que se apóiam nos relatos

de docentes sugerem que as professoras foram e continuam sendo produtoras de

escritas, em que abordam, relatam, avaliam o cotidiano escolar. Ampliar e

problematizar as escritas femininas coloca em evidência, neste trabalho, a

utilização da escrita pelas professoras nos espaços privados e profissionais, como

analisaremos nas cartas produzidas por elas.

Apesar de reconhecer o caráter limitador de uma classificação, nosso

trabalho se encontra na fronteira da dimensão histórico-sociológica, desde que

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requer situar, por um lado, as professoras identificadas pelas suas posições no

contexto familiar através das memórias da infância e adolescência. Por outro lado,

enfoca as representações que produzem sobre suas práticas de escrita,

construídas socialmente, no confronto com o outro, na escrita das cartas em ato e

que determinam o processo de construção de sentido. Embora o objetivo deste

trabalho não tenha visado alcançar o complexo campo da formação docente,

acreditamos que, indiretamente, a troca de correspondência favoreceu uma

reflexão sobre a prática pedagógica das professoras, como nos revelaram alguns

dos seus depoimentos, a serem analisados na discussão dos resultados.

5. POR QUE ESTUDAR AS PRÁTICAS DE ESCRITA DE PROFESSORAS?

A dimensão das práticas de escrita de professoras ainda vem sendo pouco

examinada no estudo da cultura escrita. As investigações discutidas, neste

capítulo, voltam-se quase exclusivamente para a descrição e análise de práticas

de leitura e escrita dos professores, do passado e do presente, enfatizando ora os

conteúdos das lembranças sobre a escrita, ora realçando nas memórias aspectos

da formação e práticas docentes em relação às vivências com a escrita e a

repercussão no ensino da escrita na sala de aula. Portanto, este trabalho busca

contribuir para a compreensão desse objeto, explorando uma dimensão pouco

examinada pelos estudos anteriores, ao integrar uma análise das práticas de

escrita e das representações sobre a escrita e o ato de escrever cartas na

situação de pesquisa.

Outra possibilidade é a de permitir (re)significar e ampliar as

representações sobre as práticas de escritas das docentes, em que se considera

que as professoras não escrevem ou não são produtoras de textos - assim como

a questão que inicia este capítulo (“mas, e as professoras escrevem?”) -, para

uma compreensão inconformada expressa na afirmação consciente de que “as

professoras escrevem, mas não publicam o que escrevem”.

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Para ampliar essas representações é preciso conhecer as possibilidades e

os usos da escrita pelas docentes e compreender que a natureza das

representações sobre a escrita e o ato de escrever é construída socialmente,

deixam marcas e indícios que precisam ser questionados e modificados a partir

das situações reais de escrita.

Um estudo sobre práticas de escrita deve considerar as condições sociais

em que as pessoas escrevem, o objetivo social do uso da escrita, como a escrita

foi apropriada em sua história de vida e como definem a sua relação com a escrita

tanto em relação aos espaços institucionalizados e oficiais como no âmbito da

vida privada. Como afirmam Sheridan, Street e Bloome (2000, p. 1):

Our interest in writing is inseparable from our interest in the social conditions within which people write, the social purposes they use writing for, and how writing fits in with their life histories, all of which define writing itself.

Assim, este estudo tem por objeto as práticas de escrita ligadas à vida

privada e ao uso público relacionado à esfera escolar e profissional de um grupo

de professoras. Pretende-se, como já sublinhado, além de descrever os usos que

fazem da escrita e conhecer as situações em que a escrita é solicitada (seja como

competência socialmente compartilhada seja na singularidade de projetos

individuais), relacionar o que fazem com os significados atribuídos à escrita e as

conseqüências sociais dos usos da escrita na vida cotidiana.

As decisões metodológicas, as participantes da troca de correspondências

e os procedimentos utilizados serão discutidos na próxima seção.

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6. A METODOLOGIA DA PESQUISA

A radical ethnography must take ordinary persons doing ordinary things as the central issues (Erving GOFFMAN, 1963, apud SHERIDAN, STREET e BLOOME, 2000, p. 79).

O presente trabalho pretende, como apresentado anteriormente, descrever

e analisar as práticas de escrita de um grupo de professoras, buscando

compreender tanto suas representações sobre suas práticas como a dimensão da

própria escrita em ato, ocorrida numa situação específica de produção. Para

apreender essas práticas e representações, optou-se por utilizar a troca de

correspondência entre a pesquisadora e um grupo de docentes do ensino

fundamental, e, como instrumento auxiliar, a entrevista semi-estruturada.

Esta sessão tem três objetivos principais. O primeiro deles é o de justificar

a adoção desses procedimentos de pesquisa, sobretudo a correspondência,

pouco utilizada em investigações na área das Ciências Sociais, buscando trazer

reflexões sobre as cartas, inicialmente concebidas como “instrumento” de

pesquisa, e, posteriormente, à medida que a troca epistolar foi se desenvolvendo,

como “objeto” de investigação. O segundo objetivo reside na caracterização do

grupo de docentes com o qual a pesquisadora manteve correspondência, assim

como na apresentação dos critérios e dos processos de sua seleção. Por fim, esta

parte do capítulo é concluída com a explicitação dos principais procedimentos

construídos para a análise dos dados.

6.1. AS CARTAS: DE “INSTRUMENTO” A “OBJETO” DA PESQUISA

No início da pesquisa, a correspondência foi concebida como um dos

principais “instrumentos” na coleta dos dados, com o objetivo de apreender as

práticas de escrita das docentes. Ao longo do período da experiência epistolar, a

carta foi se transformando em “objeto”, a ser aprendido e apreendido.

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Uma das razões da ampliação da carta para o novo estatuto – “objeto” -

reside na própria natureza experimental da proposta, “obrigando” a não-adoção

de uma estrutura rígida de carta. Por esta razão, não utilizei um modelo fechado

de carta, pelo contrário, apresentei diferentes tipos de possibilidades. Essa

decisão, conseqüentemente, coloca as próprias cartas em avaliação, gerando

uma perspectiva de análise sobre o material produzido diante das estratégias

discursivas, da forma e do conteúdo adotados nas cartas. Conceber a carta como

objeto pressupõe, portanto, ora enfatizar a análise das cartas produzidas por mim,

ora examinar as epístolas das professoras.

Outra razão para a mudança de estatuto da correspondência reside na

adoção do pressuposto de que a escrita das cartas se constrói no jogo da

interação social estabelecido entre os interlocutores, como afirma Camargo (2000,

p. 11):

(...) sujeitos que escrevem e lêem cartas, deixam marcas; marcas que podem indicar pistas para uma leitura da constituição do sujeito da escrita, na escrita. Pelas suas condições de produção as cartas não são uma escrita fabricada, na medida em que se inserem na realidade cotidiana de quem as escreve, e no cotidiano de quem as lê, recebe (seria uma escrita fabricada quando são publicadas?); também não é fabricada a maneira como, ao responder, ao escrever, ao dirigir-se aos seus interlocutores – pode ser um, ou muitos interlocutores – vão se delineando as idéias e os procedimentos, as múltiplas significações (da escrita ou do ato de escrever, por exemplo) e as representações do mundo social, por quem as escreve.

No presente trabalho o objeto de estudo – as práticas de escrita – foi sendo

buscado, à semelhança do que ocorreu na pesquisa de Camargo (2000), “nas

malhas da intrincada rede trançada pelas situações em que a carta é escrita, ou

lida, pelas condições em que ela é produzida, suas finalidades, seus objetivos, e

nas maneiras como se enlaçam autor-escritor e destinatário-leitor” (Camargo,

2000, p.203 e 204). Ao analisar as práticas de escrita, vão emergindo modos

como histórias de escrita foram sendo registradas por meio da escrita das cartas.

Em suma, as cartas foram revelando uma rica possibilidade de análise de

uma prática específica de escrita - a escrita epistolar - numa situação real de

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discurso entre os interlocutores, as professoras a quem as cartas foram dirigidas

quando escritas (destinatárias) e a pesquisadora (remetente), “para quem essa

escrita se transforma, transforma e é transformada em objeto de estudo”

(CAMARGO, 2000, p.204).

Por fim, a idéia era que essa experiência cumprisse um papel formador em

outras iniciativas de diálogo, por meio da correspondência, na medida em que

introduziria questões capazes de suscitar reflexão sobre sua adoção.

6.2. POR QUE UMA CORRESPONDÊNCIA?

Geralmente, as pesquisas em Ciências Sociais e Educação utilizam

diferentes procedimentos de coleta de dados, como o questionário, a entrevista e

a observação. Os estudos que buscam descrever os usos e as práticas sociais de

leitura e escrita de um indivíduo ou de um determinado grupo social utilizam

freqüentemente esses procedimentos, buscando enfrentar as dificuldades que

decorrem da “invisibilidade” das escritas cotidianas (SHERIDAN, STREET e

BLOOME, 2000).9 Por que não utilizar, neste trabalho, esses instrumentos já

consagrados na tradição da pesquisa, e optar pela correspondência, sendo ela

não propriamente um instrumento de coleta de dados, mas um gênero de

discurso da esfera da vida cotidiana? 10

Pensou-se, inicialmente, em recorrer a uma enquete por questionário e

entrevista com as professoras.11 Embora reconhecendo as dificuldades

9 Como já discutido anteriormente, de acordo com Dorothy Sheridan, Brian Street e David Bloome (2000), em nossa sociedade, a escrita “legítima” associa-se aos escritores, à academia, aos documentos oficiais, aos poetas que, geralmente, são vistos como escritores legítimos; seus escritos carregam autoridade, construída na associação entre instituição e poder (por exemplo, a imprensa, a universidade, o governo), contribuindo para a formação de uma identidade de escritor. Em relação às pessoas comuns, a escrita cotidiana tende a ser banalizada e relegada a um lugar destituído de legitimidade, já que se encontra ligada às urgências e necessidades básicas de pessoas comuns e ao cotidiano. Ver também a discussão de Daniel Fabre (1997). 10 A idéia de utilizar a correspondência como procedimento metodológico surgiu na discussão dos projetos de pesquisa dos alunos da Pós-Graduação em Educação da UFMG, com o Prof. Jean Hébrard e o orientador deste trabalho. 11 No projeto-piloto duas entrevistas foram realizadas com professoras de Belo Horizonte, com a finalidade de explorar as possibilidades de construção dos instrumentos de pesquisa.

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envolvidas na elaboração de um questionário, esse procedimento, juntamente

com as entrevistas, permitiria, por meio da construção de uma amostra

representativa, apreender dimensões das práticas de escrita do conjunto de

docentes do ensino fundamental de uma rede de ensino, de uma localidade ou

mesmo de uma região. O instrumento permitiria, desse modo, construir um perfil

amplo e representativo de um grupo de docentes.

A utilização desses instrumentos, entretanto, seria pouco adequada, por

duas razões. A primeira delas está relacionada ao estado do conhecimento sobre

as práticas de escrita e, sobretudo, sobre as práticas de escrita de professores.

Como são raros os estudos e investigações sobre esse tema, inexiste um corpo

de hipóteses sobre as relações de docentes com a escrita que permitisse o

conhecimento prévio de evidências e, desse modo, a elaboração de questões

precisas e sistemáticas. Conseqüentemente, o estudo a ser realizado deveria

assumir uma abordagem qualitativa, de natureza exploratória, cujos resultados

seriam justamente a formulação dessas hipóteses inexistentes.

A segunda razão está relacionada à própria natureza e à qualidade daquilo

que poderia ser apreendido por meio desses procedimentos no estudo de práticas

culturais. Um questionário e uma entrevista permitiriam apreender,

predominantemente, as declarações dos docentes sobre suas práticas, quer

dizer, as representações que constroem para elas. Além disso, essas

representações construídas apresentam também dois problemas. Elas constituem

tanto a visão que têm dessas práticas quanto a visão que querem dar, revelar,

apresentar ao outro.12 Como os gêneros de escrita são hierarquizados

socialmente, como a freqüência de seu uso é tomada como um indicador de

maior ou menor inserção na cultura escrita, os docentes tenderiam, pelos efeitos

sociais já descritos por Pierre Bourdieu (1997), a sofrer um efeito de censura e a

dar a conhecer as representações que julgam ser as legítimas. A pesquisa

apreenderia, assim, não as práticas e nem, propriamente, as visões dos docentes,

mas, em grande parte, o grau de seu reconhecimento das escritas legítimas. Por

12 Utiliza-se, aqui, a noção de representação utilizada por Roger Chartier (1989).

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fim, investigações sobre práticas culturais, como as de escrita, tendem a envolver

um acentuado processo de rememoração, na medida em que solicitam dados

sobre a freqüência e natureza de atos de escrita já realizados. Anne-Marie

Chartier (1993) evidencia as limitações de um questionário para a obtenção de

dados consistentes que envolvem esse processo de rememoração.

Uma segunda opção consistiria na observação das práticas de escrita.

Uma das possibilidades de observação poderia ocorrer com a criação de um

atelier de escrita. Em que consistiria esse atelier de escrita? Em lugar e tempo

definidos, a pesquisadora, na condição de animadora, conduziria e acompanharia

as situações de produção escrita de um grupo de professoras.13 Nessa ocasião,

as professoras, a partir de uma temática previamente definida ou acordada em

grupos, iriam escrever e discutir seu texto, comentando as situações de escrita

vivenciadas. No entanto, essa situação de observação coloca-nos algumas

limitações. Analisar as produções em situação de atelier de escrita seria artificial,

porque se trataria de uma situação formal, fora das práticas cotidianas e

profissionais. Nesse tipo de observação, o ato de escrita, considerado em si

mesmo, se tornaria o foco de análise, enquanto que as situações e os contextos

de produção não seriam priorizados. Dessa forma, o estudo se limitaria a

compreender as etapas de produção de um texto escrito numa situação de atelier,

sendo que as informações sobre os usos da escrita, as competências, as

modalidades de circulação, o impacto familiar, social e profissional na relação

estabelecida com a escrita estariam ausentes na compreensão das práticas de

escrita.

Em razão de todos os problemas já apresentados, a opção mais adequada

seria uma pesquisa nos moldes etnográficos, em que a complexidade e a

diversidade das práticas de escrita pudessem ser observadas em situações

13 De acordo com Marie-Claude Penloup (2000), em 1935 surgem os primeiros ateliers de escrita nas universidades americanas. Atualmente, na França, existem mais de uma centena de ateliers com objetivos e públicos bastante diversificados. “On trouve en effet des ateliers de “développement personnel”, des ateliers de création poétique”, des ateliers à vocation littéraire, des ateliers scolaires, universitaires, des ateliers “d’histoires de vie”, des ateliers de lutte contre l’exclusion sociale et contre l’illettrisme, des ateliers à vocation thérapeutique, des ateliers pour le troisième âge...”

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diferenciadas de uso. Vários estudos foram realizados nesses moldes. Daniel

Fabre (1997), por exemplo, coordenou um conjunto de investigações sobre a

escrita na vida cotidiana de grupos sociais diversificados. Foram,

predominantemente, realizadas observações de natureza etnográfica sobre os

atos não-literários da escrita, considerando o modo de vida e a identidade do

“escritor”, suas competências em escrever, as modalidades de escrita, o momento

da escrita, o lugar e o suporte em que escrevem e a recepção da escrita em

grupos de pessoas comuns.

Estudos anglo-saxônicos também têm se valido da pesquisa etnográfica.

David Barton e Mary Hamilton (1998), por exemplo, desenvolveram uma pesquisa

sobre os usos da leitura e escrita em Lancaster, Inglaterra, em 1990. Utilizaram a

entrevista e a observação participante para coletar informações sobre as práticas

de letramento de um grupo de pessoas dessa comunidade em suas vidas

cotidianas. Nesse estudo, os autores discutem os caminhos e o papel que as

práticas de escrita tomam nas diferentes áreas da vida dessas pessoas.

Dorothy Sheridan, Brian Street e David Bloome (2000), também para

exemplificar, desenvolveram um projeto longitudinal de observação de massa14

em que as práticas cotidianas de escrita de um grupo de indivíduos foram

acompanhadas por um longo período de tempo. Esse projeto iniciou-se como

uma tentativa de estabelecer uma “anthropology of our own people” (MADGE,

1937; apud SHERIDAN, STREET e BLOOME, 2000), em que pessoas comuns

observariam e escreveriam sobre suas vidas e práticas, bem como colecionariam

materiais escritos a serem organizados em um banco de dados para que os

pesquisadores, os estudantes e o público em geral pudessem utilizar as

informações reunidas em suas investigações. Os voluntários que escreviam para

o projeto de observação de massa tornavam-se, eles próprios, pesquisadores,

comentando e teorizando sobre suas próprias práticas de escrita.

14 O “Mass-Observation Projetc” iniciou-se em 1937 e foi reativado em 1981, sendo uma das mais importantes instituições sociais na Inglaterra, de acordo com Sheridan, Street e Bloome (2000). Os correspondentes desse projeto eram pessoas comuns que observavam e refletiam sobre sua vida cotidiana e escreviam sobre suas práticas de letramento para o projeto de observação de massa da Universidade de Sussex na Inglaterra.

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No entanto, realizar nesta pesquisa um estudo etnográfico seria

praticamente inviável, por várias razões. As limitações envolvem aspectos como o

tempo a ser dedicado a uma pesquisa nesses moldes, além da necessidade de

envolvimento e ajuda de outros pesquisadores, tendo como uma possível

conseqüência a redução do número de professoras a serem investigadas. Outro

aspecto a ser considerado é, nesse tipo de pesquisa, a necessidade de um

acompanhamento contínuo e sistemático das práticas de escrita das docentes, o

que exigiria suplantar a difícil barreira do acesso à sua vida privada.

Portanto, a partir dessas considerações, apreender as práticas de escrita

através da correspondência seria uma tentativa de dar visibilidade aos aspectos

que, provavelmente, apenas com a utilização dos procedimentos tradicionais de

pesquisa não seriam suficientes. De acordo com Dorothy Sheridan, Brian Street e

David Bloome (2000), que também utilizaram a correspondência com os

voluntários do projeto “Mass- Observation”, as práticas de escrita encontram-se

inseparáveis das condições sociais em que as pessoas escrevem, dos objetivos

para que escrevem, e do como escrevem em suas histórias de vida, o que

significa descrever, interpretar e explicar o que pessoas comuns fazem com a

escrita em situações e eventos específicos. Desse modo, compreendemos a

correspondência como uma situação específica e contextualizada de escrita,

inserida na vida social, em que descrições e interpretações das práticas de escrita

são analisadas, considerando as condições, os significados sociais e as

conseqüências de seus usos.

A utilização da correspondência como artefato metodológico justifica-se,

assim, por quatro razões:

� a primeira origina-se do fato de esse procedimento permitir analisar uma

prática de escrita específica e concreta, em que as professoras, dentre outras

coisas, escreveriam sobre suas práticas de escrita, o que é muito diferente de

pedir para falar de suas práticas de escrita, já que elas, ao mesmo tempo em que

abordam a escrita, escrevem textos;

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� a segunda refere-se à natureza do gênero epistolar que, sendo uma

espécie de escrita bastante usual e familiar15, permitiria, dependendo do pacto

epistolar construído pelos correspondentes, a redução da tensão entre as

professoras e a pesquisadora; colaboram também para isso as representações

sobre esse gênero, que é, em geral, associado à intimidade, à franqueza, à

confissão, diferentemente, por exemplo, da redação de respostas a um

questionário, que se vincula a uma linguagem técnica numa situação formal de

escrita. Outra razão relacionada ao gênero epistolar é que a obtenção de dados

por carta pode assumir elementos da forma de outros gêneros, como o

questionário, a entrevista, a história de vida, o diário, a memória, a autobiografia,

ou seja, não há uma forma única, fechada ou específica que defina o gênero –

apenas os elementos do vocativo inicial, da saudação final e outras fórmulas que

devem ser respeitados, como descrevem os estudos sobre o gênero epistolar.16

Assim, a carta permite ao sujeito uma grande margem de liberdade e autonomia

de fazer perguntas e dar respostas, com uma possibilidade maior de

autenticidade no diálogo estabelecido durante a troca de cartas;

� a terceira razão relaciona-se à possibilidade de induzir as docentes a

realizar uma auto-reflexão sobre suas práticas de escrita, tornando-se elas

mesmas pesquisadoras-colaboradoras, no momento em que, além de refletirem

sobre si e sobre sua relação com a escrita, também coletariam, ao longo da

correspondência, dados sobre suas próprias práticas. Na medida em que, numa

correspondência em que a relação entre os sujeitos é menos assimétrica, espera-

se que ambos troquem experiências e assumam, a cada turno, “lugares”

intercambiáveis (perguntar, responder, contestar, reclamar, rememorar, etc.), a

pesquisadora deveria ela mesma também realizar um trabalho de auto-reflexão,

de descrição de suas próprias práticas, de auto-expressão. Ao fazê-lo, ela

poderia, desse modo, induzir as professoras a fazer o mesmo, tomando de

empréstimo os dados oferecidos pela pesquisadora;

15 As pesquisas sobre prática cotidiana de escrita mostram que a correspondência é uma das práticas mais utilizadas no meio popular, diferentemente das práticas letradas (jornal íntimo, escrita profissional ou escrita pública), que são reservadas a uma minoria. 16 Ver, por exemplo, Cécile Dauphin, Pierrette Lebrun-Pézerat e Danièle Poublan, 1995.

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� a quarta razão justifica-se em função do interesse em ter como sujeitos

da pesquisa professoras da região metropolitana do Recife. Como estava, no

momento da coleta de dados, vivendo em Belo Horizonte e, depois, em Paris, a

distância separava as correspondentes. As cartas enviadas pela pesquisadora

seguiam para Recife, Jaboatão dos Guararapes e Camaragibe, enquanto que as

respostas das professoras eram enviadas para Belo Horizonte e, posteriormente,

para Paris. Nesse contexto, instaurava-se “naturalmente” a necessidade em

recorrer a uma situação de interlocução por carta bastante próxima das situações

cotidianas de uso da escrita.

A correspondência permitiria, assim, a obtenção de dados numa situação

menos assimétrica e propícia à confidência, à expressão de si; permitiria também

desenvolver uma análise a partir de dois níveis: de um lado, da representação

que a professora tem da sua prática de escrita, explicitada no momento da

interação com a pesquisadora através das cartas, e, de outro, das modalidades

de escrita em ato pela qual são trazidas as informações sobre essas práticas.

Certamente, as cartas mesmas não podem fornecer um amplo

levantamento etnográfico das práticas de escrita das docentes e podem tender à

“artificialidade”, uma vez que a pesquisadora nunca deixa de ser uma

pesquisadora, as professoras, “sujeitos” da pesquisa que têm suas práticas de

escrita investigadas, e a temática das cartas algo pré-definido por um interesse de

investigação. No entanto, em função do contexto mais favorável, propiciado pelo

gênero epistolar, assim como do ato efetivo da escrita das cartas (que pode

estimular o exercício da reflexividade e da auto-observação), acreditamos que

alguns elementos – mesmo considerando a hipótese da “artificialidade” da

correspondência – dos contextos de usos, das finalidades, das competências, das

redes de sociabilidade e das modalidades de escrita poderão ser encontrados nos

traços dos depoimentos e/ou no ato de escrita das cartas das professoras, que,

na situação da interlocução, iriam se tornar também “pesquisadoras” de suas

próprias práticas de escrita, fornecendo, ao longo da correspondência, dados de

escrita relacionados às suas atividades cotidianas. A troca de cartas, desse modo,

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tornou-se, tendo em vista as limitações de uma pesquisa de doutorado, a melhor

possibilidade, a mais viável, de uma abordagem de inspiração etnográfica, atenta

aos modos pelos quais pessoas comuns fazem coisas comuns com a escrita.

O caminho metodológico iniciou-se, pois, com a correspondência realizada

com um grupo de vinte e uma professoras por um período de contato de dois

anos (de 2000 até 2001), em espaços diferentes (Belo Horizonte/Recife e

Paris/Recife) e, posteriormente, com uma entrevista como procedimento

complementar17, para delas extrair categorias de análise que possibilitassem

alcançar uma postura compreensiva e interpretativa diante do fenômeno

investigado.

6.3. A HISTÓRIA DE UMA CORRESPONDÊNCIA

Para compreender como se deu a história da correspondência no processo

desta pesquisa, é necessário ter em mente a tensão mantida durante todo o

processo da escrita, do envio e da recepção das cartas. Como vimos na seção

anterior, mesmo sendo a correspondência um gênero que facilita a aproximação

entre a pesquisadora e as professoras, sendo favorável à familiaridade, à

confissão e à intimidade, existe sempre presente o risco da “artificialidade” e da

censura, decorrente das posições sociais assimétricas dos sujeitos envolvidos na

troca das cartas, decorrentes, por sua vez, de uma desigual distribuição de capital

simbólico:18 de um lado, uma pesquisadora universitária, formadora de

professores; de outro, professoras do ensino fundamental. Portanto, a história da

correspondência é a história de uma tensão entre as possibilidades de expressão

pessoal geradas pelo gênero e por uma relação a se construir, e os efeitos de

censura originados das posições desiguais entre a pesquisadora e as

professoras.

17 No final desta seção trataremos do procedimento da entrevista, bem como de um encontro de socialização, ambos realizados após o término da correspondência. 18 Para a noção de capital simbólico, ver Bourdieu (1980).

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Essa história é também, entretanto, a história de duas outras tensões. Em

primeiro lugar, o interesse expressivo dos participantes (pesquisadora e

professoras) em participar da troca epistolar não enfrenta apenas a censura

decorrente dos diferentes lugares ocupados pelos correspondentes. Ele enfrenta

também as dificuldades inerentes ao próprio processo de escrita, particularmente

as suas dimensões formal e normativa. Não se trata, portanto, apenas de se

expressar no quadro de relações assimétricas, mas de se expressar nesse

quadro por escrito, lidando com um modo de construir significados controlados

por convenções diferentes e afastadas daquelas que organizam a oralidade

(mesmo que o gênero epistolar se aproxime da fala mais distensa) e que é, ele

mesmo, além disso, o tema da pesquisa. Em segundo lugar, essa tensão é

acentuada por uma ambigüidade: escreve-se para um correspondente empírico

(professora ou pesquisadora), antecipando-se um circuito de comunicação que se

identifica com o da vida privada, mas, ao mesmo tempo, como se trata de uma

coleta de dados, sabe-se que as “confidências” e informações trocadas vão se

tornar públicas, numa tese de doutorado, num artigo de pesquisa, num livro.

Em outros termos: a história da correspondência se situa sempre no

quadro das tensões geradas pelo fato de que, mesmo se o gênero facilite e

induza a expressão de si e a auto-reflexão, seu emprego se dá sempre no campo

do outro:19 não apenas de um próximo (ou de alguém que pode se tornar próximo)

para o qual se escreve, mas também de uma pesquisadora; não apenas por meio

da fala cotidiana e distensa, mas também por meio das operações de escritura;

não apenas na esfera da vida privada, mas também na da vida pública. Assim,

tanto pesquisadora quanto professoras escrevem e se relacionam no interior de

relações, de códigos e de esferas do discurso controladas e controladoras. A

aposta desta pesquisa é de que – como afirma Michel de Certeau (1990) –

controle algum se exerce plena e constantemente; que aqueles que a ele estão

submetidos desenvolvem, no interior mesmo do campo do outro (das relações,

dos códigos, das esferas discursivas que impõem e normatizam), “artes de fazer”

19 Segundo Michel de Certeau (1994 ), “a empresa escriturística transforma ou conserva dentro de si aquilo que recebe do seu meio circunstancial e cria dentro de si os instrumentos de uma apropriação do espaço exterior” (p.226).

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e de “fazer com” (CHARTIER, 2002), reutilizando, deslocando, burlando e

transformando as experiências que se busca lhes impor.

Portanto, no processo da troca epistolar foram se estabelecendo relações,

delineando-se determinada condição de sujeito, ou de a-sujeitamento, entre a

pesquisadora e os pesquisados; foi se construindo uma concepção de escrita

inserida numa concepção de linguagem vista como produção, supondo

interlocutores inseridos em práticas culturais, fornecendo subsídios para a

reflexão dos sentidos da escrita e dos sentidos das histórias marcadas na escrita,

pela escrita e através da escrita das docentes e da própria pesquisadora.

Portanto, a correspondência incitou novas questões, permitindo refletir sobre o

processo de uma determinada escrita: a escrita epistolar. Quais foram as cartas

enviadas e recebidas? Quem escreve? Quem lê? O que escreve? Por que

motivos?

Tendo presentes essas considerações, apresentarei a história da

correspondência trocada: os critérios na seleção do grupo de professoras, meus

movimentos em direção à construção de um pacto epistolar, as respostas das

docentes, aceitando, modificando, recusando esse pacto.

6.4. QUEM QUER TROCAR CORRESPONDÊNCIA?

Para realizar este estudo o único critério estabelecido, inicialmente, foi

construir um grupo formado por professoras em exercício no ensino fundamental

em Recife e que estas estivessem motivadas para iniciar uma troca de cartas com

uma pesquisadora que estava morando em Belo Horizonte.

Para iniciar essa troca, conversei com professores amigos que moravam

ou que estiveram em Recife, no período da coleta dos dados, para que

conseguissem endereços de professoras conhecidas ou que tivessem alguma

relação de proximidade social com eles (aluna, amiga, participante de um curso

ou pesquisa) e que pudessem ser apresentadas à pesquisadora. Essa forma de

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recrutamento foi escolhida em função da discussão feita por Pierre Bourdieu

(1997) sobre a interação entre pesquisador e pesquisados. Creio que suas

observações, mesmo dirigidas à relação de entrevista, podem ser estendidas a

outros tipos de interlocução, como a da correspondência. O autor assume uma

postura de permitir aos pesquisadores a liberdade de escolher os pesquisados

entre pessoas conhecidas, afirmando que a proximidade social e a familiaridade

asseguram as condições principais de uma comunicação não-violenta. No

entanto, o autor alerta sobre os limites que essa familiaridade coloca, seja ao

contribuir para que a interação torne-se “uma socianálise a dois na qual o analista

está preso, e é posto à prova, tanto quanto aquele que ele interroga”, ou, ainda, o

risco de que o discurso construído na situação de interação não forneça os

elementos que possam garantir a sua própria interpretação.

Na conversa com os amigos-informantes, falei sobre o objeto da pesquisa,

o objetivo da primeira carta e destaquei que, no encontro com as professoras,

seria necessário apresentar a pesquisadora, o objeto de pesquisa, e que a forma

da coleta de dados se realizaria por meio da troca de cartas com um grupo de

professoras de Recife. Solicitei que esclarecessem, ainda, que a decisão em

participar da pesquisa poderia ser tomada após receberem a primeira carta,

enviando ou não uma resposta à pesquisadora. Nesse primeiro contato, através

de pessoas amigas, a pesquisadora não exerceu controle algum sobre o que

efetivamente se falou às professoras.

Entre os professores amigos, três eram formadores de professores, sendo

dois da UFPE e um da UFMG, que indicaram alunas oriundas do curso de

Pedagogia da UFPE, professoras participantes de um curso oferecido pelo Centro

de Cultura Luis Freire, em Olinda, e, ainda, professoras que haviam participado

de uma pesquisa.20 Duas outras amigas, uma professora e também aluna do

20 No período da coleta de endereços, dois professores amigos estavam tendo contato com professoras do ensino fundamental. O professor da UFMG e orientador deste trabalho estava em Recife realizando um seminário sobre as práticas de leitura de professores junto ao projeto “Oficinas de leitura: aprendendo a gostar de ler”, coordenado por uma equipe inter-institucional formada pelas professoras Ester Calland de Souza Rosa (UFPE), Maria Bernadete Melo (UFRPE), Carmen Bandeira, Cida Fernandez e Maria Geisa Andrade, as três últimas do Centro de Cultura Luis Freire. A professora da UFPE, que estava realizando sua pesquisa de doutorado na UFMG,

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Curso de Mestrado em Educação na UFPE e uma diretora de escola municipal,

indicaram professoras da mesma rede de ensino. Por fim, uma amiga que fazia

Curso de Mestrado em Educação na UFPE indicou uma aluna do mesmo curso

(QUADRO 1). A maioria dos informantes estavam ligados ao ensino e à pesquisa,

exceto a diretora da escola, que exercia funções de natureza administrativa. As

indicações dadas por professores do ensino fundamental e da universidade

resultaram num alto índice de respostas (das 26 professoras indicadas, 18

aceitaram). O mesmo não ocorreu com as indicações da diretora, que resultaram

no baixo índice de aceitação entre as professoras (das 11 professoras indicadas,

apenas 1 aceitou), o que evidencia a pertinência dos procedimentos sugeridos por

Bourdieu (1997).

QUADRO 1

INDICAÇÃO E PARTICIPAÇÃO DAS PROFESSORAS NA TROCA DE CARTAS

Quem indicou as professoras?

Mês/ano da indicação

Professoras indicadas

Participaram da troca de cartas

Não participaram da troca de cartas

Professora da UFPE indicou aluna do curso de Pedagogia

maio/00

1

1

-

Professor da UFMG indicou professoras do curso promovido pelo Centro de Cultura Luis Freire em Olinda.

setembro/00

14

8

6

Professora da UFPE, realizando pesquisa sobre as práticas de leitura na UFMG indicou professoras que participavam desse trabalho.

maio/00

e setembro/00

9

7

2

Mestranda da UFPE e professora do ensino fundamental indicou professora da sua escola.

maio/00

1

1

-

Mestranda da UFPE indicou colega do curso.

maio/00

1

1

-

Diretora de escola municipal indicou professoras da sua escola.

maio/00

11

1

10

Quatro professoras da pesquisa indicaram outras professoras.

maio/00 e

outubro/00

6

2

4

Total 43 21 22

indicou professoras que haviam participado das entrevistas sobre o ensino da leitura. Portanto, as professoras indicadas por esses professores representam a maioria da amostra (das 21 professoras, 15 estiveram inseridas em discussões sobre a leitura).

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63

Posteriormente, algumas professoras já engajadas na troca de cartas

enviaram o endereço de outras professoras com quem mantinham uma relação

de proximidade, seja no contato familiar (irmã, sobrinha) ou profissional (colegas

de trabalho).

Mais adiante as docentes com quem mantive a correspondência serão

caracterizadas pormenorizadamente. Adianto, porém, que todas as indicadas

lecionavam no ensino fundamental, em instituições diferentes (em escolas

municipais e estaduais, uma delas, numa ONG ligada ao movimento de meninos

e meninas de rua e outra, no SESC). Essas escolas estão localizadas nos

municípios de Recife, Jaboatão dos Guararapes e Camaragibe. Ao todo, foram

recebidos endereços de 43 professores em momentos diferentes da troca de

cartas, conforme Quadro 1. Do grupo de 21 professoras que aceitaram participar

da pesquisa, quatro eram conhecidas da pesquisadora. Três professoras tinham

sido alunas do curso de Pedagogia da UFPE, onde leciono, e a última delas tinha

sido minha contemporânea no mesmo curso e Instituição.

6.5. O QUE E PARA QUEM ESCREVER?

A partir dessa pergunta, iniciei a construção das cartas. Como

anteriormente discuti, por ser a correspondência um gênero ambíguo, a escrita

das cartas foi acompanhada de tensões “entre norma e espontaneidade, entre o

literário e o comum, entre presença e ausência, o permitido e o proibido”

(GRASSI, 1998:2). Diferentes questões sobre o conteúdo, a forma e o estilo das

cartas eram feitas durante toda a troca epistolar: De que forma deveria me

apresentar às professoras? Como deveria iniciar o diálogo? Que relação

(formal/profissional ou informal/pessoal) deveria ser construída para que o pacto

epistolar funcionasse? Que objetivos e conteúdos deveriam nortear a construção

das cartas? Hesitava, por exemplo, em escolher a saudação inicial (Cara

professora..., ou Professora..., ou Querida Professora...) e a despedida (Até

breve, ou Um abraço, ou Atenciosamente), no decorrer da escrita das cartas.

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Durante a coleta de dados, experimentei recordações sobre a minha

própria prática epistolar. A troca de cartas não foi uma prática de escrita intensa

na minha família. Apenas minha mãe recebia cartas de familiares, que eram lidas

para mim e meus irmãos. Escrever cartas foi uma prática de escrita vivenciada

apenas na fase adulta. As cartas eram iniciadas pelos amigos que estavam

distantes e compartilhavam os acontecimentos, os sentimentos e os pensamentos

com uma correspondente pouca assídua em suas respostas. A leitura e a escrita

das cartas estavam associadas à intimidade, à confissão, à franqueza, à

espontaneidade, à informalidade, à familiaridade. Correspondente pouca assídua,

talvez, também, por associar a troca de cartas a uma certa perda de tempo, a um

esforço para vencer minhas dificuldades com a escrita, a uma preferência pelo

contato pessoal, direto da fala.

Diante dessas recordações, constatei, portanto, que a minha prática

epistolar tinha sido tardia e pouca intensa. Apesar de o gênero carta ser familiar,

utilizá-lo numa situação de pesquisa e em um contexto que apresentava

finalidades diferentes daquela troca de cartas vivenciada entre amigos foi uma

decisão difícil.

Numa correspondência pessoal, o diálogo acontece com pessoas com

quem já temos algum tipo de contato. A correspondência com as professoras

colocou-me diante de pessoas em geral desconhecidas, com o objetivo de

dialogar sobre uma temática definida por mim, num tempo e espaço determinados

no contexto de uma pesquisa. Numa correspondência pessoal, as escolhas de

registro, conteúdo e forma da carta são definidas pelo tipo de relação prévia

construída entre os correspondentes. Na situação da pesquisa, a relação deveria

ser instaurada por mim, e o modo pelo qual se instauraria iria influenciar a

construção do engajamento das professoras na dinâmica epistolar.

Acreditava que a familiaridade e intimidade associada a escrever cartas

para os amigos seria diferente no contexto da pesquisa21. Escrever cartas para as

21 Apesar de o gênero carta “permitir” o uso de uma linguagem informal, principalmente numa correspondência pessoal, no caso da correspondência com as professoras o nível de formalidade e informalidade da linguagem foi sendo definido durante a construção do pacto epistolar. A

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professoras associava-se a escrever com certo desconforto, principalmente nas

primeiras cartas, em que o pacto epistolar ainda não havia sido consolidado. Nas

cartas entre amigos o conteúdo era compartilhado, ao contrário do que ocorria na

situação da pesquisa, em que o conteúdo foi fortemente direcionado por minhas

cartas. Nas cartas para os amigos, predominava a conversa, os traços da

oralidade, diferente do estilo que oscilava, inicialmente, entre o formal e o

informal. Minha escolha foi de tratar, inicialmente, de maneira idêntica o conjunto

das professoras (indo de uma relação formal a uma mais informal).

Numa correspondência familiar ou entre amigos, geralmente as cartas são

manuscritas. Nesse trabalho, em decorrência do número significativo de

correspondentes, o que tornava inviável a escrita manuscrita nas

correspondências, as cartas foram impressas. A escrita manuscrita foi mantida

apenas na assinatura, nos cartões postais, nos comentários das fotografias e nos

envelopes preenchidos com o endereço das correspondentes.

Além de a correspondência ser um procedimento diferente de coleta de

dados, iniciá-la, tendo como tema as práticas de escrita, parecia – eu imaginava -

ser pouco interessante para as minhas correspondentes e bastante

desconfortável para mim, que deveria, no decorrer das cartas, falar sobre a minha

própria prática de escrita, o que me expunha diante delas e, posteriormente,

diante do público-leitor do trabalho final.

A primeira decisão que tomei foi relativa à estratégia discursiva que

utilizaria nas cartas. Acreditava que, para exercer algum tipo de influência sobre

as minhas correspondentes, deveria, inicialmente, compartilhar a minha própria

experiência com a escrita, de modo que, revelando os aspectos familiares e

pessoais dessa relação, pudesse conduzi-las a pensar sobre suas próprias

passagem da formalidade/informalidade nas cartas revelou características no tipo de engajamento entre as correspondentes (ver a análise sobre as marcas das trocas: o vocativo inicial e despedida no próximo capítulo).

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relações com a escrita e a expressá-las em suas cartas. Portanto, o processo

dialógico da troca foi fortemente “modelizado” por minhas próprias cartas22.

Em decorrência da “natureza aberta” da correspondência, a quantidade de

cartas e a duração da troca foram sendo construídas no decorrer do processo

epistolar, resultando em tempos e espaços diferentes. Para ser coerente com o

gênero escolhido, foi necessário respeitar o fluxo das respostas das cartas para a

elaboração das posteriores.

Tive que tomar a decisão de escrever para o conjunto das professoras um

modelo idêntico de correspondência, em todas as cinco cartas comuns enviadas,

quanto aos objetivos e conteúdos gerais. Essa situação, em parte artificial, pois

numa correspondência cotidiana as cartas são personalizadas, se fez necessária

em razão do volume de cartas a serem escritas por mim, bem como por esse

procedimento tornar possível comparar reações e respostas, tratando as

semelhanças e diferenças entre as professoras. No entanto, depois da primeira

carta, diferentes elementos personalizados foram sendo introduzidos em função

do diálogo mantido com as professoras. Embora a correspondência seja um

processo aberto e sem um fim definido a priori, o término da pesquisa obrigou a

um fechamento. A definição do encerramento da troca ocorreu respeitando a

existência de um corpus quantitativo e de um leque de temas qualitativos

avaliados como suficientes.

Apesar de todas as dificuldades, utilizar a correspondência na pesquisa foi

como experimentar a sensação de uma viagem que começa na primeira linha,

mas que não se sabe jamais onde poderá terminar. Cada carta foi especial. Cada

carta - das professoras - foi única. Cada carta revelou histórias. Cada carta

“viajou” à sua maneira. Conhecer o que as docentes pensavam sobre a escrita e

22 Posteriormente, analisarei os efeitos dessa modelização nas cartas que as professoras enviaram e as distâncias e as proximidades em relação às cartas enviadas por mim, com o objetivo de diferenciar de maneira muito mais rigorosa as respostas entre elas, porque foi a uma mesma mensagem que cada uma respondeu. Assim, tentarei distinguir os elementos da correspondência concernentes à relação interpessoal, na qual se dá o pacto da correspondência e o conteúdo da informação que solicito a partir de uma carta comum, enviada de maneira grupal no tempo.

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quais as suas práticas de escrita no cotidiano profissional e pessoal foi um

exercício prazeroso e desafiador para mim e certamente, também, para as

professoras.

É indispensável tentar explicar as intenções e princípios das decisões

colocadas em prática nessa troca de cartas. Não creio que pudesse, no momento

mesmo da pesquisa, esclarecer com rigor, próprio de experientes pesquisadores,

os princípios teóricos e metodológicos que pus em funcionamento, ao escrever

para as professoras. Acredito que, na maior parte das vezes, contei mais com a

intuição nas decisões sobre a melhor forma de expressão, a mais adequada e

espontânea à interação, buscando envolver as professoras e tornando-as

colaboradoras na troca do conhecimento sobre a escrita. Muitas vezes, a

sensação de insegurança e medo permeou as decisões, prevalecendo a

confiança de que essas decisões deveriam, posteriormente, ser - elas mesmas –

tomadas como objeto de análise.

6.6. OS OBJETOS EPISTOLARES ENVIADOS

Durante o processo da troca epistolar, cinco cartas e três cartões postais

constituíram o material enviado às professoras. No QUADRO 2 os objetivos e os

conteúdos de cada carta e dos cartões postais são apresentados. As três

primeiras cartas foram enviadas para as 21 professoras e as duas últimas cartas

seguiram para 18 professoras23. Uma carta-extra foi enviada, entre o espaço da

segunda e terceira-carta, para uma professora que escreveu prontamente suas

respostas.

O processo de construção das cartas envolveu dois momentos distintos. O

primeiro – correspondente às três primeiras cartas – caracterizou-se pelo

envolvimento da pesquisadora com as professoras na troca de informações sobre

o perfil pessoal e familiar, a trajetória profissional, o percurso escolar e o

aprendizado da escrita, o significado e os usos da escrita no cotidiano pessoal e

23 Posteriormente, irei explicar os motivos da diminuição do grupo de docentes na troca de cartas.

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profissional. O segundo momento – correspondente às duas últimas cartas –

caracterizou-se pelo distanciamento da pesquisadora nas atividades que foram

propostas às professoras. Uma carta solicitava das professoras informações

sobre o uso da escrita (o que escreve e em que suporte escreve) durante dois

dias da semana e a outra solicitava a elaboração de um relatório de uma atividade

desenvolvida em sala de aula e da avaliação de duas cartas de alunos.

Apenas o conteúdo e os objetivos da primeira carta foram definidos a priori.

Quanto à segunda carta, a elaboração e o conteúdo somente foram se delineando

a partir das primeiras respostas enviadas pelas professoras à primeira carta. A

partir das cartas-resposta (referentes à primeira e à segunda cartas), enviadas

pelas professoras, foi possível realizar um planejamento para o processo já

iniciado da troca epistolar. Nesse planejamento, esboçaram-se as cartas

restantes e seu conteúdo, além de ter sido feita uma previsão para a conclusão

do processo. Os critérios estabelecidos para a redação das cartas restantes se

basearam tanto na quantidade como na qualidade das informações obtidas nas

primeiras cartas.

Posteriormente, após a finalização da troca epistolar, foi encaminhada uma

última carta-convite, que tratava do encontro de socialização dos dados obtidos

durante a correspondência.

Além dos oito objetos epistolares, algumas professoras receberam outros

objetos (carta-extra, cartão-postal extra, e-mail e fotos), como conseqüência do

nível de engajamento estabelecido entre as correspondentes, que “autorizou”

solicitações e a expressão das diferenças e semelhanças nas opiniões,

resultando em respostas específicas. Esses casos de engajamentos e sua

contextualização serão exemplificados na análise sobre a recepção das cartas, no

próximo capítulo.

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QUADRO 2

OS OBJETOS EPISTOLARES ENVIADOS: CONTEÚDO E OBJETIVO

Envio

1a Carta

2a Carta

1o Cartão

Postal

3a Carta

4a Carta

5a Carta e 2

o Cartão

Postal

3o Cartão

Postal

Conteúdo

Apr

ese

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ção

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70

6.7. OS OBJETOS EPISTOLARES RECEBIDOS

Durante a dinâmica epistolar, 77 cartas-resposta foram enviadas pelas

professoras. Vinte e uma cartas em resposta à primeira, vinte e uma em resposta

à segunda, quinze em resposta à terceira, nove em resposta à quarta e, por fim,

dez em resposta à quinta e última carta. Uma professora enviou uma carta extra,

entre a segunda e a terceira cartas-resposta (QUADRO 3).

Outros objetos epistolares que não cartas foram enviados durante o

processo da troca: 14 e-mails, sendo que três deles consistiam em cópias de

cartas enviadas pelo correio, um texto-memória e um convite de casamento. As

professoras enviaram também, em suas cartas, um recorte de jornal com notícia

de projeto pedagógico, um jornal escolar com relato de atividade, três relatos de

experiência, sendo dois deles publicados em jornal e revista, um relatório e um

texto intitulado “Desabafo profissional”, produzido por uma professora, fotografias

com legendas, dois cartões postais e dois cartões de Natal.

As professoras enviaram suas cartas em envelopes preenchidos e selados

pela pesquisadora, enviados anteriormente. No entanto, quando as cartas

continham outros materiais epistolares ou, ainda, quando o peso da carta

(tamanho e quantidade de páginas) ultrapassava o valor do selo, as professoras

acrescentavam selo postal, utilizavam envelopes (tipo ofício) e o serviço de

SEDEX.

As cartas foram escritas a mão ou digitadas em folhas avulsas de caderno,

em papel ofício, papel pautado ou em bloco de carta. A quantidade de páginas

das cartas escritas a mão compreendia de uma (no mínimo 14 linhas) a cinco

folhas (no máximo 319 linhas); a quantidade de páginas das cartas datilografadas

foi, em geral, de uma folha (no mínimo 8 linhas) a 07 folhas (no máximo 354

linhas). Em uma carta, foi colado um adesivo ilustrativo e em outras duas a

reprodução digital de foto de professoras. A maioria das cartas manuscritas

tinham letras legíveis.

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71

QUADRO 3: OS OBJETOS EPISTOLARES RECEBIDOS

Professoras

1a carta

2a carta

3a carta

4a carta

5a carta

Outros objetos

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72

6.8. DA CORRESPONDÊNCIA AO “REENCONTRO”

Como já anteriormente apresentado, utilizamos dois instrumentos

complementares nessa investigação. Concluída a troca de cartas, realizamos

entrevistas individuais e um encontro de socialização entre as professoras e a

pesquisadora.

6.8.1. O REENCONTRO NAS ENTREVISTAS: AS INFORMAÇÕES SOBRE A MULTIPLICIDADE

DAS ESCRITAS A PARTIR DOS OBJETOS ESCRITOS

A entrevista foi realizada no momento em que decidi interromper a

correspondência (a quantidade e a qualidade dos dados pareciam suficientes).

Ela permitiu o contato pessoal entre as correspondentes e teve como temática a

dinâmica da troca de cartas. As professoras foram solicitadas a falar sobre a

experiência da troca de cartas com a pesquisadora, como pode ser observado no

roteiro da entrevista (ANEXO 1). A entrevista foi de natureza semi-aberta. A

pesquisadora iniciava agradecendo a participação da professora na pesquisa,

solicitava informações adicionais sobre a formação acadêmica e profissional,

além de verificar, dentre as atividades solicitadas nas cartas, aquelas que não

tinham sido obtidas durante o processo da troca. No decorrer da entrevista, a

temática das práticas de escrita apareceu ora de forma espontânea, ora a partir

de perguntas da pesquisadora. As entrevistas foram realizadas nos meses de

março e abril de 2002 e foram gravadas em fita cassete. O local e o horário de

realização das entrevistas foram definidos pelas próprias professoras. Do

conjunto de 21 correspondentes, a entrevista foi realizada com 18 professoras.

Apenas três professoras não foram entrevistadas: uma estava de licença médica

e não consegui marcar o encontro por telefone com as outras duas.

Durante a entrevista as professoras trouxeram diversos materiais escritos,

como: o rascunho das cartas, conto, poesia, acróstico, livro com produções dos

alunos, diário das atividades realizadas na sala de aula, artigo publicado em

revista, anotações na agenda, monografia de conclusão do curso de

especialização e o relato de uma experiência em sala de aula.

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73

Os depoimentos obtidos através das entrevistas complementam a

compreensão das categorias sobre as práticas de escrita e serão analisados

posteriormente.

6.8.2. O ENCONTRO DE SOCIALIZAÇÃO

Após as entrevistas, realizei um encontro de socialização com o objetivo de

apresentar o percurso da pesquisa (sua origem, o objeto, a metodologia, o

processo de escrita das cartas pela pesquisadora e a perspectiva de análise dos

dados). Nesse momento, além de reunir os materiais de escrita solicitados nas

cartas (quadro sobre a escrita e análise das cartas dos alunos),

espontaneamente, algumas professoras, entregaram outros escritos: poesia,

diário de classe, acróstico e jornal da escola com relato de trabalho desenvolvido.

O local, o dia e o horário do encontro foram previamente combinados com as

professoras. Foi enviada carta-convite (ANEXO 2) e, das 21 professoras

convidadas, 12 compareceram. O restante das professoras justificou, por contato

telefônico, posteriormente, a ausência. O encontro foi gravado em fita cassete e

filmado em fita de vídeo (com duração de 2 horas). No entanto, diferentemente

das entrevistas, não utilizo esse material na análise dos dados.

O encontro permitiu o estabelecimento de uma reflexão coletiva, recíproca

e de regulação imediata entre as professoras e a pesquisadora, diferente da

relação individual estabelecida na correspondência. Apesar de reconhecer as

inúmeras possibilidades de conteúdos advindos de uma análise detalhada do

vídeo produzido no encontro, neste trabalho, esse procedimento atendeu apenas

a finalidade da socialização dos achados. Os diálogos produzidos no seminário

não foram analisados para ampliar as perspectivas de compreensão da temática

deste trabalho.

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74

6.9. QUEM SÃO AS PROFESSORAS QUE PARTICIPARAM DA TROCA DE CARTAS?

Das 43 professoras que receberam a primeira carta, a correspondência foi

mantida com 21 professoras. No decorrer da troca epistolar, a necessidade de

traçar um perfil do grupo de professoras foi sendo percebida. Assim, algumas

variáveis como a idade, o tipo de formação escolar (particular/pública), o tempo

de atuação em sala de aula, a série em que lecionavam, a profissão e

escolaridade dos pais e a opção pelo magistério foram consideradas. No entanto,

essas variáveis não constituíram um critério a priori para a formação do grupo de

correspondentes, embora, posteriormente, tenham sido consideradas na seleção

de algumas professoras para uma análise mais aprofundada.

As professoras tinham entre 25 e 48 anos, com experiência no magistério

compreendendo de dois a 35 anos. Todas elas possuíam nível superior, sendo

formadas em Pedagogia (16), Letras (4) e Biologia (1). Seis professoras fizeram

curso de Especialização24 e uma outra estava cursando. Além disso, havia uma

professora que realizava o curso de mestrado no período da troca de cartas.

Sobre a experiência profissional, verificamos que as professoras

ensinavam tanto na rede pública quanto na rede privada, atuando em diferentes

níveis de ensino (pré-escolar, séries iniciais do ensino fundamental, educação de

jovens e adultos e no magistério) dos municípios de Recife e Camaragibe.

Apenas duas professoras25 não estavam assumindo funções de ensino durante a

troca de cartas, e quatro professoras estavam, além das atividades de ensino,

desempenhando as funções de coordenadora pedagógica e de assistente de

direção.

24 Os cursos realizados foram: “Psicologia Cognitiva” (duas professoras), “Administração Escolar e Planejamento Educacional” (uma professora), “Fundamentos da Educação de Jovens e Adultos” (uma professora), “Administração de Recursos Humanos na Pré-escola” e “Práticas Políticas e Pedagógicas” (uma professora), todos realizados na UFPE, e “Ecologia e Manejo Pesqueiro de Açudes”, na UFRPE (uma professora). No período da pesquisa, uma professora estava fazendo especialização na área de Psicopedagogia e uma outra realizava o Mestrado em Educação na UFPE. 25 Uma professora trabalhava como responsável pelo Projeto Habilidade de Estudo no SESC e a outra atuava como coordenadora de um Abrigo de Meninos e Meninas de Rua da Prefeitura Municipal do Recife.

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75

Quanto à forma de identificação, dezenove professoras decidiram manter o

próprio nome na divulgação dos resultados da pesquisa e apenas duas preferiram

adotar um nome fictício, sugerido por elas próprias. As professoras autorizaram a

divulgação das cartas.

Com o objetivo de apresentar, de modo preciso e objetivo, as principais

informações das docentes integrantes da pesquisa, organizei no QUADRO 4

alguns elementos que descrevem a idade, o tempo de magistério, a formação

escolar, a profissão e escolaridade dos pais. Em seguida, selecionei 16

professoras que tiveram engajamento alto e médio na troca epistolar26 e elaborei

pequenos perfis em que descrevo as docentes nos aspectos que as caracteriza.

Essa intenção não esgota outras possibilidades de análise, no entanto, diante do

material reunido, foi a que se apresentou possível realizar.

26 Na análise sobre o engajamento epistolar, presente no próximo item desse capítulo, estabeleci alguns critérios para compreender a participação das professoras no decorrer da pesquisa.

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76

QUADRO 4

IDENTIFICAÇÃO DAS PROFESSORAS POR IDADE, TEMPO DE ATUAÇÃO NO MAGISTÉRIO, ATUAÇÃO PROFISSIONAL,

REDE DE ENSINO, ESCOLARIDADE, ESCOLARIZAÇÃO E OCUPAÇÃO DOS PAIS

REDE DE ENSINO EM

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“CARA PROFESSORA”: PRÁTICAS DE ESCRITA DE UM GRUPO DE DOCENTES

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“CARA PROFESSORA”: PRÁTICAS DE ESCRITA DE UM GRUPO DE DOCENTES _______________________________________________________________________________________

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Inspirada no trabalho realizado por Bernard Lahire (1997), elaborei os

perfis, em sua maioria, construídos individualmente. No entanto, a mesma

orientação interpretativa guiou a produção dos textos. Fiz a opção de deixar

transparecer informações particulares de algumas docentes com o propósito de

evidenciar os indícios que a diferenciam e a tornam semelhantes em relação ao

conjunto das docentes.

O primeiro grupo de docentes aqui reunido consiste nos perfis das

professoras ELAINE, ADRIANA, ANGÉLICA, JACQUELINE e MÁRCIA, que

revelaram uma relação fluida com a escrita, eram filhas de pais que tiveram nível

de escolaridade elevado e possuíam uma relativa estabilidade profissional e

financeira. As famílias dessas professoras pertenciam a um universo social

bastante próximo da cultura escrita, através da presença simbólica do tio

publicitário, da atitude incentivadora do avô, que escrevia romances e novelas e

lia o que sua neta escrevia, do acompanhamento sistemático do pai e da mãe,

que foram professores, da tia, que estimulou a leitura de histórias, e da mãe, que

incentivou a escrita de correspondências. Provavelmente, esses variados

elementos se combinam para criar um “clima familiar” favorável à atitude confiante

- embora não menos tensa - dessas professoras, diante do ato de escrever.

ELAINE SANTOS CALADO, 34 anos, separada, dois filhos, e ADRIANA OLIVEIRA, 26, solteira: irmãs, as duas estavam cursando Pedagogia na Universidade Federal de Pernambuco, à noite. Elaine, professora de creche em uma escola municipal, lecionando há 13 anos. Adriana lecionava apenas há 4 anos em uma escola municipal com turmas de alfabetização. Ambas trabalhavam em tempo integral. O pai, aposentado, concluiu o ensino fundamental I e exerceu a profissão de técnico mecanógrafo (“consertava máquinas de escrever e calculadora”), e a mãe, falecida, concluiu o ensino médio e foi secretária escolar e bibliotecária. Elaine e Adriana realizaram o curso de magistério, juntamente com o “científico” e o “curso de Edificações”, respectivamente. Elaine abandonou o curso de Letras na Universidade Católica de Pernambuco em razão do nascimento do filho. Ela havia participado das Oficinas de Leitura no Centro de Cultura Luis Freire em Olinda e de um curso de Delegado de Base no Sindicato de Professores do Município de Recife, desenvolvendo atividades de escrita diversificada (memórias sobre a sua relação com a leitura e as sínteses escritas das reuniões do sindicato, segundo revelou na sua entrevista), além de ter sido capacitadora em um curso de contação de histórias, em uma faculdade do interior. Adriana participava de um grupo de teatro em que foi responsável pela escrita do diário de produção de uma peça, em que seu namorado, e depois marido, foi diretor. Na entrevista, Adriana convidou a entrevistadora para assistir a estréia da peça em um teatro da cidade. Elaine enviou quatro cartas-resposta, indicou sua irmã Adriana, que se integrou tardiamente na troca de correspondências, enviando apenas duas cartas-resposta. As entrevistas individuais com essas professoras foram realizadas à noite, na universidade em que estudavam, em uma sala de aula que no momento estava desocupada (as aulas haviam terminado). Para cada uma delas foram necessários dois encontros para finalizar as entrevistas.

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MARIA ANGÉLICA BATISTA DA SILVA, 26 anos, solteira, formada em Pedagogia na UFPE. Filha de pai, dono de uma fábrica de sapatos, professor, formado em Pedagogia na mesma instituição. Sua mãe, dona de casa, concluiu o ensino fundamental II (5a a 8a série). Na época da pesquisa, ela realizava o curso de especialização em Psicopedagogia na Universidade Estadual de Pernambuco – UPE, em Nazaré da Mata, interior do estado. Durante o curso da graduação participou das atividades de iniciação científica em uma pesquisa sobre as normas de ortografia pela criança e coletou material para um professor que realizava seu doutorado na UNICAMP, e, ainda, integrou o diretório acadêmico do curso. Possui 7 anos de experiência com o ensino, e estava trabalhando com uma turma de 1a série em uma escola estadual em Camaragibe e à tarde, em uma escola municipal em Recife. Ela integrou a equipe da oficina de leitura do Centro de Cultura Luis Freire. Durante a troca de correspondência, estava escrevendo sua monografia do curso. Enviou três cartas-resposta com fotografia, cartão postal, mensagem eletrônica e, na entrevista realizada na UFPE, entregou jornal produzido na escola municipal em que trabalhava.

JACQUELINE MARIA P. M. OLIVEIRA, 30 anos, casada, um filho. Graduada em Biologia na FUNESO em Olinda, e com especialização em Ecologia e Manejo Pesqueiro de Açudes, realizado na UFRPE. Também participou das oficinas de leitura no CCLF. Fez o magistério em uma escola estadual em Olinda. Há 13 anos leciona e trabalhava no supletivo à noite e em uma creche municipal pela manhã. Sua mãe, aposentada, foi professora primária e concluiu o curso de Pedagogia. O pai, falecido, foi bancário e não concluiu o ensino fundamental II. O marido, professor de Matemática, Física, também é guarda municipal em Camaragibe. Jacqueline respondeu todas as cartas, enviou recorte de jornal com notícia sobre um projeto premiado e selecionado em concurso nacional. Na entrevista realizada em sala reservada e no encontro de socialização na UFPE entregou poesias, acrósticos, mensagens que escreveu para sua mãe e colegas da creche e um diário da creche.

MÁRCIA FONTANA PAIVA, nascida em São Paulo, 31 anos, casada, dois filhos, seu pai tem o curso médio completo e trabalhou em empresa particular no setor de importação e exportação e, ao se aposentar, montou uma agência de viagem. A mãe, dona de casa, fez o curso primário. Márcia estudou em escola particular durante o ensino fundamental e médio (fez o magistério), e realizou o curso de Pedagogia na Universidade Católica de Pernambuco. Trabalhava como professora há 13 anos, sendo responsável por uma turma de 1a série (alfabetização) em uma escola pública. Também participou das oficinas de leitura no Centro de Cultura Luiz Freire. Ela enviou resposta a todas as cartas. A entrevista foi realizada em uma sala de reunião na UFPE, reservada para esse fim. Entregou um jornal, “Asas da Palavra”, organizado pelo Centro de Cultura Luiz Freire, em que escreveu sua experiência de leitura, associando literatura e pintura, no projeto “Pequenos Pintores, Grandes Expressões”, desenvolvido com seus alunos.

O segundo grupo reúne os perfis das professoras DULCE, SHIRLEY,

IVANA, SOLANGE, MARIA e ABDA, que apresentaram algumas características

familiares semelhantes: pais com níveis médios de escolaridade, a maioria das

professoras mantém uma relação tensa com a escrita, diferente de Solange, que

mostrou estabelecer, com o ato da escrita, uma relação distensa, revelando ter

semelhanças com o primeiro grupo. Outro ponto comum se refere à presença

reduzida de informações sobre as condições financeiras das famílias. Apenas

Dulce afirmou que sua família viveu em uma situação familiar favorável. Shirley e

Maria trouxeram poucas informações sobre as práticas de escrita nas cartas,

embora a participação na pesquisa tenha sido favorável, pois responderam a

maioria das cartas.

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DULCE HELENA ALVES ACIOLI, 46 anos, casada, quatro filhos, formada em Pedagogia pela UFPE, reside em Olinda. Aposentada pelo Estado de PE, possui larga experiência, pois “desde os 13 anos” que leciona. Dulce possui dois cursos de especialização, um em Orientação Educacional (1989-91), organizado em módulos pela PUC de Belo Horizonte, e outro em Magistério na FESP/PE, e, na troca de cartas, realizava cursos de francês e inglês. Trabalhou em escolas públicas (municipal e estadual), particulares e faculdade, lecionando as disciplinas pedagógicas (Didática dos Estudos Sociais e da Linguagem, Prática de ensino e Diretrizes), relacionadas ao Magistério (nível médio), e outras como E.P.B, Sociologia, Ciências Contábeis, Administração e Matemática, relacionadas ao ensino superior. Exerceu o magistério em todos os graus de ensino e, durante a troca de cartas, assumiu a função de coordenadora em uma escola municipal de Recife. Trabalhava em uma turma de 4a série, na mesma escola de sua colega Shirley, e lecionava no magistério em outras instituições. Os pais de Dulce concluíram o ensino fundamental I. O pai foi dono de frota de táxi e a mãe foi costureira. Ela foi criada e conviveu com os avós maternos. O avô possuía peixaria e dois barcos de pesca e trabalhou no IAPC (Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários). A avó “me educou muito bem, bons colégios, aulas de acordeon, balé, teatros, cinemas, programas de auditório, escolas públicas e particulares, enfim, tive uma boa educação”. O marido é técnico de projetos e dos filhos, o mais velho, 27 anos, é formado em Matemática e é militar; a filha, 24 anos, é professora primária, formada em Letras, mora em Genebra, trabalha na ONU, na Suíça, fez curso de Alemão, Espanhol, Inglês e Francês; um outro filho, de 22 anos, cursa Administração de Empresas e a filha, de 13 anos, estuda na 7a série em uma escola particular de Olinda. Dulce respondeu todas as cartas, além de enviar carta-extra, fotografia e cartão postal. A entrevista com Dulce foi realizada na escola em que trabalhava como coordenadora pedagógica, pela manhã, em sala reservada.

SHIRLEY SILVA DE CARVALHO, 44 anos, casada, dois filhos. Assim como Dulce, possui larga experiência de magistério e trabalhava com ela na mesma escola municipal, à tarde, em uma turma de 3a série. O pai de Shirley foi conferente no Porto de Recife, aposentado, fez o curso primário e sua mãe, dona de casa, não concluiu o ensino fundamental I. O marido, assistente técnico, não finalizou o curso superior. Shirley concluiu o curso de Letras na UNICAP, na mesma época e turma de Solange, que também participou da troca de cartas. Para ela, Solange, desde a graduação, demonstrou certa facilidade com o ato de escrever e de se expressar através da escrita. Shirley respondeu quatro cartas e não realizou a atividade com os alunos. A entrevista com Shirley ocorreu em sua residência em Olinda.

IVANA DE ARAÚJO C. SILVA e MARIA SOLANGE BRANDÃO lecionavam na mesma escola e participaram das oficinas de leitura do Centro de Cultura Luis Freire. Ambas concluíram o curso superior, Pedagogia e Letras, respectivamente, realizadas na UNICAP. Ivana, 38 anos, casada, tem duas filhas. É professora há 15 anos, ensina na rede pública há 9 anos e trabalha em uma turma de pré-escolar. Solange, 43 anos, solteira, com uma filha, tinha larga experiência de ensino (25 anos), ensinava em uma 1a série e exercia a função de Assistente de Direção em uma escola municipal (manhã e tarde) e lecionava no ensino médio, à noite, em uma escola do Estado. Os pais de ambas foram motoristas de táxi e as mães donas de casa. Os pais de Solange, diferente da mãe de Ivana, concluíram o ensino fundamental I (1a a 4a série), enquanto o pai de Ivana não concluiu o ensino médio. Ivana realizou o magistério em uma escola pública e Solange obteve uma bolsa de estudos, o que permitiu concluir o magistério em uma escola particular. Ambas enviaram três cartas-resposta, porém Ivana enviou também fotos das filhas, da sua residência e do bairro do Pina, em que morava e em que se situava a escola onde trabalhava. As entrevistas foram realizadas na escola em que lecionam em horários e dias diferentes, após o término das aulas. Dois encontros foram necessários para finalizar as entrevistas com elas.

MARIA, 25 anos, solteira, não atuava em sala de aula, mas era responsável pelo Projeto Habilidades de Estudo (“que atende crianças de 1a a 4a série com aulas de reforço escolar e promove atividades culturais e lazer”), no SESC, em Jaboatão dos Guararapes. Ela concluiu o magistério (escola pública) e o científico (escola particular). Sua experiência no magistério era apenas de dois anos; concluiu o curso de Pedagogia na UFPE e estava cursando o Mestrado na mesma instituição, no núcleo de História e Teoria da Educação. Durante o curso da graduação

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participou de uma pesquisa de iniciação científica como voluntária. Seu pai era carpinteiro aposentado e sua mãe era professora de Arte (“corte e costura”), e concluíram o ensino fundamental e ensino médio, respectivamente. Ela recorda que “sempre quis ser professora, mas hoje, analisando melhor a realidade da época, vejo que foi uma opção mais fácil, era a profissão das mulheres pobres e assim poderia garantir um emprego. Porém não me arrependo, me realizei profissionalmente me formando na profissão que escolhi, hoje o meu maior desejo é ser professora universitária e estou lutando por isso” (trecho da 3a carta). Maria enviou respostas a todas as cartas e, na entrevista, realizada na universidade, comunicou que estava aguardando a qualificação do seu projeto de mestrado.

ABDA ALVES DA SILVA, 32 anos, casada, uma filha, formada em Pedagogia na UNICAP, realizou o curso de especialização em Psicologia Cognitiva aplicada à Educação na UFPE. Ela tem experiência com turmas de alfabetização com crianças, jovens e adultos em escolas do estado e do município do Recife. Trabalhava à tarde no estado, à noite no município e pela manhã cuidava dos afazeres domésticos e da filha. O pai aposentado foi agente administrativo e tinha curso superior; a mãe aposentada foi recepcionista de uma empresa pública e concluiu o ensino fundamental I. O marido, também professor e árbitro de futebol, tem curso superior em Educação Física. Ela enviou respostas às três primeiras cartas. A entrevista foi realizada na sua residência, em local com circulação de pessoas da família e com algumas intervenções que obrigavam a interrupção da mesma. Abda entregou um texto sobre a socialização de uma experiência sobre “O leitor e produtor de texto”, realizada em uma 3a série, que foi divulgado com outras professoras da rede municipal.

As professoras reunidas nesse último grupo integram as famílias com

dificuldades financeiras e a escolaridade dos pais se caracteriza em função da

ausência de escolarização formal. Três professoras - Amara, Luciene e Potira –

apresentaram uma relação tensa com a escrita, enquanto Socorro Barros e

Socorro Damasceno, ao contrário, mantêm uma relação positiva com a escrita e

praticam a escrita em uma diversidade de contextos de uso. Essas

características, grosso modo, reúnem as famílias das docentes: AMARA,

SOCORRO BARROS, LUCIENE, POTIRA e SOCORRO DAMASCENO.

AMARA RODRIGUES DE LIMA, 35 anos, casada, pais “semi-analfabetos, sabem ler e escrever, mas não possuem escolarização a nível formal” (trecho da 3a carta), a mãe ajudava o pai no comércio (“uma barraca” na favela em que moravam no Recife). Amara realizou o curso de Pedagogia, na UFPE, e, assim como Abda, cursou a especialização em Psicologia Cognitiva aplicada à Educação na UFPE e lecionou em turmas de alfabetização com crianças, jovens e adultos em escolas do estado e do município do Recife. Ela enviou respostas às três primeiras cartas e, na entrevista, entregou as cartas escritas pelos alunos. A entrevista foi realizada na sua residência, em local com circulação de pessoas da família e com algumas intervenções que obrigavam a interrupção da mesma.

SOCORRO BARROS, 41 anos, separada, um filho. Os pais, alfabetizados, nunca freqüentaram a escola. O pai era agricultor e a mãe dona de casa. Ela, que é educadora há 15 anos, estava realizando o curso de Pedagogia na FAFIRE. Trabalhava no Centro Nordestino de Animação Cultural – CENAP e coordenava um abrigo de meninos e meninas de rua, mantido pela Legião Assistencial do Recife. Também participou das oficinas de leitura no Centro de Cultura Luis Freire. Respondeu a todas as cartas enviadas, tendo realizado as atividades das cartas com as alunas do abrigo. Durante a troca de cartas, enviou e-mail com um texto sobre suas memórias da infância. A entrevista foi realizada no CENAP e nessa ocasião ela entregou o artigo que havia publicado na Revista “Alfabetização e Cidadania”, de circulação nacional.

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LUCIENE A. DA SILVA FONSECA, 37 anos, casada, dois filhos, mora em Camaragibe e leciona há 18 anos. Trabalha em duas escolas públicas com turmas de 1a e 4a séries. Fez todo o ensino fundamental e médio, inclusive o magistério, em uma escola pública em João Alfredo, interior do estado, e concluiu o curso de Pedagogia na Faculdade de Filosofia do Recife (FAFIRE). A mãe “era alfabetizada e trabalhava na agricultura para ajudar a renda familiar” e o pai, aposentado, “é analfabeto e o único emprego que conseguiu foi de servente no Recife”. Ela indicou sua sobrinha, professora Simone, que veio a se integrar tardiamente no processo da troca de cartas. Luciene enviou suas respostas a quatro cartas, tendo entregado as cartas dos alunos no momento da entrevista, que foi realizada na UFPE.

POTIRA, 37 anos, casada, um filho. Os pais são analfabetos, sua mãe “só trabalhou em casa” e o pai, aposentado, trabalhou como vigilante em uma instituição pública. Ela realizou o magistério em uma escola particular, através de bolsa de estudo. Na UFPE concluiu o curso de Pedagogia, participou de um grupo de pesquisa durante a graduação e também realizou um curso de especialização em Fundamentos da Educação de Jovens e Adultos, nessa mesma instituição. O marido é professor de História de uma instituição pública federal e concluiu o curso de mestrado na UFPE. Desde 1981 trabalha como professora em turmas de pré-escola, alfabetização, 1a série e 4a série, em escolas municipais. Ela enviou quatro cartas e um cartão postal da cidade de Salvador, em que esteve participando do Congresso da SPBC, numa promoção da Prefeitura do Recife. Apenas a atividade da escrita das cartas com os alunos não foi realizada. A entrevista aconteceu em sala reservada na UFPE.

Ma DO SOCORRO C. DAMASCENA, nascida em Vitória de Santo Antão, interior de Pernambuco, 48 anos, casada, dois filhos, reside em Brasília Teimosa e trabalha há 23 anos na rede pública. Leciona na Escola Estadual Josué de Castro, no mesmo bairro em que mora. Participou das oficinas de leitura no Centro de Cultura Luis Freire. O seu pai foi administrador de engenho e não concluiu o primário, enquanto sua mãe, feirante no mercado público no interior de Vitória de Santo Antão, foi alfabetizada. O marido trabalha em manutenção de computador e estuda em faculdade particular no turno da noite. Os filhos são universitários e não se sentem bem em morar em Brasília Teimosa. Quanto à sua escolaridade, ela relata nas cartas: “a minha formação acadêmica até 1999 eu só tinha concluído o magistério apesar dos 21 anos de prática. Em janeiro de 2000 fiz/prestei vestibular para graduar-me em Pedagogia na UPE numa modalidade de curso que só precisamos estudar 2 anos é o PROGRAPE – Graduação em Pedagogia”. Em relação a sua atividade em sala de aula ela nos conta: “Este ano estou mediando conhecimento em uma turma da 2a série na faixa etária entre 7 e 9 anos. Todas as crianças produzem textos de acordo com o nível de aprendizagem.” “Acompanho minha turma desde a 1a série. Este ano farão a 3a série”. Socorro afirma: “Ensinei a todas séries da educação infantil e do ensino fundamental. Trago em mim o rótulo de alfabetizadora. Título recebido pelos moradores da minha comunidade” (trechos da 2a carta). Ao expressar sua imagem com relação à escrita ela confessa: “Não sinto dificuldade de me expressar através da escrita, mas sofro também com regras gramaticais e ortográficas. Mas eu uso o artifício que venho de uma cidade do interior e moro num bairro popular, então uso a linguagem do meu povo” (2a carta), e expressa um desejo: “Meu sonho é me tornar uma grande escritora das práticas pedagógicas.” Ela escreveu um livro não publicado “Professor, mude essa aula!”, em que registrou suas experiências em sala de aula. Socorro enviou duas cartas e a entrevista foi realizada em sua residência, em dois encontros. Na entrevista reuniu e entregou à pesquisadora um livro publicado com as produções escritas dos alunos “O mar e suas lendas”, um conto autobiográfico, e duas cartas escritas pelos alunos em resposta à 5a carta.

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6.10. AS PROFESSORAS E O ENGAJAMENTO EPISTOLAR

Durante a troca de cartas, as 21 professoras participantes apresentaram

níveis de engajamentos diferentes. Esse engajamento se reflete nos aspectos

quantitativos e qualitativos das correspondências enviadas pelas docentes

(QUADRO 5).

Descrever os aspectos envolvidos nos indicadores que definem o nível de

engajamento das professoras no pacto epistolar parece ser um exercício limitado,

considerando a complexidade dos elementos que conjuntamente influenciam o

nível de engajamento epistolar. Portanto, essa iniciativa pretende apenas situar,

no conjunto das professoras, aquelas que contribuíram com informações para a

compreensão do objeto deste estudo, justificando a seleção das dezesseis

professoras na análise das cartas.

Os “indicadores quantitativos” se referem ao número de cartas

respondidas, ao tamanho (número de linhas e páginas) das cartas e ao número

de objetos extras enviados.

Os “indicadores qualitativos” tratam das informações sobre o que

efetivamente as professoras escrevem em torno da temática da pesquisa. Os

significados da escrita, os contextos de usos, as finalidades, as competências no

ato de escrever, a rede de sociabilidade e o aprendizado da escrita foram os

aspectos considerados.

Analisando esses indicadores, observamos professoras que respondem

todas as cartas enviadas até as que respondem apenas duas cartas, ou, ainda,

aquelas que, com duas cartas respondidas, fornecem informações significativas

sobre a relação com a escrita, diferentemente de outras que respondem a uma

quantidade maior de cartas e, no entanto, apresentam poucas informações sobre

suas práticas de escrita. Verificamos, portanto, graus (alto/médio/baixo) de

engajamento entre as professoras.

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No conjunto das 21 professoras, podemos considerar como apresentando

alto nível de engajamento nove professoras (Elaine, Angélica, Jacqueline, Márcia,

Dulce, Solange, Abda, Socorro Barros e Socorro Damascena); com médio nível

de engajamento, sete professoras (Adriana, Maria, Ivana, Shirley, Potira, Luciene

e Amara) e com baixo nível de engajamento, cinco professoras (Maria das Dores,

Edileusa, Amélia, Fabíola e Simone). Essa análise permite visualizar um grupo de

dezesseis docentes que efetivamente contribuíram com informações sobre as

práticas de escrita, considerando as temáticas e categorias identificadas nas

cartas, que ajudaram a compreender o objeto desta pesquisa. No entanto, entre

as professoras que apresentaram um médio engajamento na troca, devemos

analisar os casos que apresentaram uma certa resistência em refletir sobre a

escrita. Nesse grupo duas professoras (Maria e Amara) apresentaram essa

resistência. No grupo com baixo nível de engajamento Maria das Dores e

Edileusa apresentaram resistência em realizar a reflexão sobre a escrita, e as

outras três - Amélia, Simone e Fabíola - foram prejudicadas, seja em decorrência

dos problemas no envio das cartas, da participação tardia na pesquisa ou ainda

em função dos problemas de saúde.

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QUADRO 5

AS PROFESSORAS E O ENGAJAMENTO EPISTOLAR

QUANTIDADE DE

CARTAS

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ANÁLISE DO ENGAJAMENTO EPISTOLAR

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“CARA PROFESSORA”: PRÁTICAS DE ESCRITA DE UM GRUPO DE DOCENTES Maria Emília Lins e Silva

7. A ANÁLISE DOS DADOS

O conjunto das cartas reunidas – as enviadas e as recebidas – coloca à

disposição uma produção complexa de expressão e de apropriação de

conhecimentos, além de fornecer uma grande diversidade de experiências

pessoais da relação com o mundo e a cultura. As cartas trazem traços com

significações múltiplas, o que torna necessário explicitar os “pontos de vista”

adotados na análise sobre o funcionamento da troca epistolar, no contexto

específico da pesquisa.

Antes de descrever as perspectivas de análises do conjunto das cartas é

necessário retomar o processo da leitura e da organização dos conteúdos das

cartas. Foi necessário reler inúmeras vezes a mesma carta para que fosse

possível “enxergar”, de modo mais objetivo, os conteúdos que iam aparecendo

nas cartas. Em primeiro lugar, processei a organização das cartas pela seqüência

temporal. Essa organização evidenciou períodos de correspondência mais e

menos intensiva: por exemplo, observei que entre a data da escrita e a data da

postagem indicada no selo do correio, mais de trinta dias foram necessários para

que uma carta chegasse ao seu destino. Tal organização permitiu estabelecer um

distanciamento que foi ampliando a compreensão dos indícios trazidos nas cartas.

Em seguida, digitei todas as cartas das professoras para que fosse possível

identificar as categorias gerais e, a partir delas, os conteúdos evidenciados em

cada categoria.

Assim foram se delineando os conteúdos, os modos, as maneiras, os

procedimentos de cada correspondente, ao escrever sua carta-resposta. As

categorias gerais foram: as escritas exercidas no âmbito privado, na esfera

familiar (como a escrita do diário, da carta, do poema, do desabafo, etc); as

atividades de escrita na escola; as leituras, os livros lidos; o ato de escrever as

cartas; a relação com a escrita; o ato de escrever as cartas na troca com a

pesquisadora; a escrita na formação e prática docente, entre outros.

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Os dois capítulos finais (Capítulo 2 e 3) foram reservados a apresentar os

principais resultados deste trabalho. O conjunto das cartas permitiu desenvolver

duas perspectivas de análise. A primeira buscou evidenciar o próprio

funcionamento da troca, destacando os aspectos do pacto e do ritual epistolares.

Para essa análise, sobre o funcionamento do pacto e do ritual epistolar, apoiamo-

nos em Cécile Dauphin et al (1995). A segunda perspectiva busca apreender, por

meio de uma análise horizontal e transversal do conjunto das cartas,

regularidades presentes nas representações e nas práticas de escrita das

professoras. Para isso, tomamos a análise de conteúdo de Laurence Bardin

(1977) para compreender as principais categorias sobre as práticas de escrita.

Para compreender o exercício da leitura e escrita das cartas, destacarei

dois tipos de análise. O primeiro trata do pacto epistolar, que examinou os

procedimentos retóricos e as modalidades expressivas, e que impulsionou o

relacionamento entre as correspondentes; o segundo se refere à “mise en scène

de l’écriture”, que reuniu as referências espaciais e cênicas para compreender o

ritual epistolar, oferecendo, assim, possibilidades de acompanhar a dinâmica do

funcionamento da troca de correspondências.

Para atender a esse objetivo, discutirei as principais estratégias discursivas

empregadas, e que conformaram, em linhas gerais, as respostas das professoras.

Apresento, no próximo capítulo, cada uma das cinco cartas enviadas na relação

com as cartas recebidas.

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90

CAPÍTULO 2

A ESCRITA DAS CARTAS

O objetivo deste capítulo é o de reconstruir a história dessa

correspondência na pesquisa, discutindo sua dinâmica, as características do

pacto epistolar construído, bem como as implicações dessas na construção dos

dados. Nessa primeira perspectiva, portanto, realizo uma análise da produção das

cartas escritas por mim e pelas professoras. Pretendo compreender os elementos

referentes à atitude dialógica na constituição de um “eu” escriturário e na

constituição de um “tu” correspondente. Em suma, analiso tanto as decisões

tomadas por mim (como me apresentar, o que dizer de mim mesma, como fazer

funcionar o diálogo, como construir uma relação de confiança e cumplicidade,

como alcançar as informações sobre a escrita pessoal e a escrita profissional),

quanto os traços deixados pelas professoras (o significado da troca de cartas e da

pesquisa, a “consciência” dos lugares, o julgamento sobre essa prática no

decorrer da experiência).

O caminho da análise apresenta algumas especificidades entre as cinco

cartas enviadas. Na primeira carta analiso os elementos para o funcionamento do

pacto epistolar; na segunda carta, trato dos procedimentos do ritual epistolar, e na

terceira carta evidencio como as decisões sobre a forma e o conteúdo das cartas

refletiram nas respostas das docentes. Quanto às duas últimas cartas, justifico a

mudança no pacto epistolar, defino os objetivos e os conteúdos, analisando a

repercussão dessa mudança, nas justificativas dadas pelas professoras. No

entanto, as respostas das docentes não serão analisadas neste capítulo. Os

quadros sobre o que escrevem e em que suporte escrevem serão tomados no

conjunto da análise sobre o conteúdo das cartas, no capítulo final deste trabalho.

Apenas nove cartas enviadas em resposta à 5a carta não serão analisadas

quanto ao conteúdo das informações e à repercussão entre as professoras. Essa

opção em abandonar os dados ocorreu ao reconhecer que a formulação dessa

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carta se distanciava dos objetivos definidos inicialmente para a pesquisa.

Entretanto, apresentar os motivos para sua elaboração, bem como justificar as

intenções pretendidas, revelou-se necessário para preservar a construção da

dinâmica epistolar. Outra razão que justifica manter a descrição dessa carta

reside na possibilidade em analisar as decisões e avaliar as limitações impostas à

pesquisadora durante o processo da leitura e escrita das cartas. Esse

agenciamento se deu numa tensão permanente, pois obrigava uma leitura

“objetiva” na organização das informações, apesar do risco do envolvimento que

poderia provocar desvios no projeto inicial, tal como ocorreu na elaboração dessa

última carta. Por fim, analiso o suporte, o lugar da escrita e da leitura das cartas, a

diversidade de eventos de escrita, o fluxo da correspondência, considerando o

tempo de escrita entre uma carta e outra, entre uma carta e sua resposta, o

tempo e as condições para escrever e a progressão da formalidade para a

informalidade no engajamento das correspondentes.

Reuni um conjunto de quatorze cartas-respostas, referente às 1a e 2a

cartas que foram enviadas pelas primeiras professoras participantes da troca

epistolar: Amara, Dulce, Edileusa, Maria, Luciene, Maria Amélia, Potira. A escolha

dessas professoras se justifica em razão delas terem iniciado a correspondência,

tendo a leitura de suas cartas, definido a forma e conteúdo das cartas posteriores,

especialmente, às 2a e 3a cartas. Mantive ainda, as duas professoras (Edileusa e

Maria Amélia), que não prosseguiram na dinâmica da troca de cartas, pelo fato de

suas cartas-respostas terem ajudado a delinear o desenho das outras cartas,

quanto à definição das estratégias discursivas para a construção do pacto

dialógico. Pretende-se, nessa seleção, analisar o impacto das decisões quanto ao

conteúdo e a forma dessas cartas, bem como, descrever o percurso na

elaboração das cartas posteriores.

A análise das respostas à 3a carta se estende ao conjunto das cartas de

todas das professoras da pesquisa, embora apenas algumas cartas foram

utilizadas para exemplificar a evolução no uso do vocativo inicial e final, referente

ao pacto epistolar, e duas cartas-resposta ilustram a recepção das professoras

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sobre o conteúdo e a forma dessa carta. Após esses esclarecimentos, apresento

as cinco cartas enviadas, analisando minhas decisões e as repercussões entre as

professoras.

1. “GOSTARIA DE SE CORRESPONDER COMIGO?”: A PRIMEIRA CARTA

A natureza da troca de cartas na pesquisa apresenta traços que a

diferenciam tanto de uma correspondência familiar (entre amigos, filho, namorado,

etc.), quanto de uma correspondência formalizada (empresa, escola, etc.). A

prática epistolar entre familiares é movida pelo desejo de manter os laços

afetivos, enquanto nas missivas formalizadas a obrigatoriedade de uma resposta

alimenta o contato entre os epistolares.

No caso da pesquisa, a troca de cartas encontra-se fundada na expressão

de motivos originados no “desejo de” conhecer uma pessoa e na “obrigatoriedade

de” responder à pesquisadora. Assim, a participação das docentes se instaurou

numa situação de ambigüidade de uma correspondência específica, ao serem

concebidas como “pessoas” (para conversar, ajudar, compartilhar, trocar) e como

“professoras” (para participar de uma pesquisa).

Minha intenção nessa primeira carta foi de apresentar a pesquisa e a

pesquisadora e fazê-lo de maneira clara e atraente, de modo que a situação

fizesse sentido para as professoras e que se construíssem condições para uma

resposta efetiva. Ao final da carta, por exemplo, formulo a pergunta:

[...] Gostaria imensamente de me corresponder com você para manter uma reflexão sobre a sua relação com a escrita. O que você acha? Gostaria de se corresponder comigo?”

Também incentivo à escrita de uma carta-resposta sugerindo que a

professora fale de si mesma (tema que poderia ser atraente para as

correspondentes):

[...] Escreva-me falando o que você pensa disso e acrescente alguma informação sobre você que considere importante para que possa lhe conhecer”.

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O convite para participar da troca de cartas assim como a apresentação da

pesquisadora e o objeto da pesquisa sintetizam o objetivo da primeira-carta.

Como podemos observar na carta (página seguinte), minha escolha foi apresentar

o percurso de uma pessoa interessada nas questões relacionadas à escrita,

indicando pesquisa realizada no curso de Mestrado e aludindo a atividades em

sala de aula com alunos do curso de Pedagogia. Buscava criar, com isso, uma

imagem de confiança ao evidenciar condições de legitimidade que autorizavam a

pesquisadora a investigar essa temática.

Portanto, para conquistar a confiança inicial das professoras, optei,

inicialmente, por assumir a função de pesquisadora. Tentei, entretanto, reduzir

uma possível violência simbólica decorrente dessa afirmação, buscando instaurar

uma relação de cumplicidade e de proximidade, ao me apresentar como uma

professora que trazia inquietações comuns relativas a uma temática comum,

interessada em encontrar professoras dispostas a conversar (e não em se

submeterem a um “interrogatório”, sendo apenas “objetos de pesquisa”) sobre a

relação com a escrita. Nesse sentido, apresentei-me como uma professora

próxima:

[...] o que procuro compreender é como nós, professores, nos relacionamos com o ato de escrever e ensinar a escrever.

Quadro 6: A primeira carta27

Belo Horizonte, 16 de maio de 2000.

Cara professora Potira,

Sou Emília Lins, estou morando em Belo Horizonte, onde realizo meu doutorado. Nesse curso, venho desenvolvendo uma pesquisa que busca compreender a relação de professores com a escrita. Fico querendo entender os problemas, as dificuldades – e os acertos também – que os professores e professoras vivem em sua prática, em sua formação, em sua vida com relação à escrita. O que procuro compreender é como nós, professores, nos relacionamos com o ato de escrever e de ensinar a escrever.

Quem me indicou seu nome e me deu seu endereço foi a professora Eliana Albuquerque, que trabalhou com você na pesquisa que está desenvolvendo sobre ensino de leitura. De acordo com ela, você poderia me ajudar em meu trabalho de pesquisa sobre a escrita.

Meu interesse por esse tema sempre esteve presente nas minhas experiências pessoais e profissionais. Durante a graduação no curso de Pedagogia, trabalhava como professora de Alfabetização numa escola de Recife, e as questões relacionadas com a escrita estiveram presentes tanto na prática como na formação. Ter acompanhado o contato escolar da criança com a escrita me encaminhou durante o mestrado a investigar como as crianças do ensino fundamental produziam histórias infantis escritas.

27 Minha opção foi a de reproduzir as correspondências sem modificações e revisões no conjunto das cartas, elaboradas por mim e pelas professoras.

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Após ingressar no ensino superior, como professora no curso de Pedagogia, acompanhei os alunos desse curso – futuros professores - em diversos momentos de produção escrita, compartilhando com eles as dificuldades, acertos, crenças, valores, usos, finalidades, que atribuíam à escrita em seus depoimentos.

A partir dessa experiência em sala de aula, surgiu meu interesse em investigar esse tema no doutorado. A pesquisa tem como objetivo analisar os diversos fatores presentes na relação do professor com a escrita. Para apreender essa relação, pensei em usar a carta como um meio de conhecer e dialogar com professores interessados em falar sobre essas coisas. Gostaria imensamente de me corresponder com você para manter uma reflexão sobre a sua relação com a escrita. O que você acha? Gostaria de se corresponder comigo?

Caso você aceite meu convite em participar desse trabalho, pretendo manter um contato mais sistemático com você, através de cartas. Escreva-me falando o que você pensa disso e acrescente alguma informação sobre você que considere importante para que possa lhe conhecer.

Espero ansiosa por notícias, e agradeço, desde já, sua atenção. Um abraço. Emília Lins.

Ps: Caso você queira indicar algum(a) colega professor(a), na próxima correspondência, envie o nome e endereço completo para que possa enviar meu convite. Ps: Gostaria de informar que os gastos com as correspondências não serão de sua responsabilidade; irei sempre enviar um envelope já selado e você deverá apenas encaminhá-lo ao correio.

Tentei criar uma disposição acolhedora e confiante para que as

professoras decidissem entrar na troca de cartas, através de um conjunto de

decisões. Destaquei as pessoas conhecidas que indicaram as professoras para

estabelecer um vínculo inicial; apresentei-me, antes de tudo, como uma pessoa

(“Sou Emília Lins”) em formação (“realizo meu doutorado”) e não diretamente

como uma pesquisadora; tampouco evidenciei meus vínculos institucionais (nem

como doutoranda, na UFMG, nem como docente, na UFPE). Localizei o lugar de

onde falava (Belo Horizonte) e o lugar de origem (Recife), instaurando tanto a

necessidade em trocar cartas, quanto uma identificação e proximidade com as

docentes. Adotei um tom positivo na busca do entendimento sobre a relação com

a escrita quando afirmo que “[...] fico querendo entender os problemas, as

dificuldades e os acertos também”. Utilizo o pronome “nós”, buscando me implicar

nas preocupações a que proponho investigar. Busquei não expressar julgamento

ou juízo de valor sobre as práticas docentes e, apesar de apresentar a pesquisa,

explicitando seus objetivos, tentei diminuir a tensão que uma situação de

pesquisa provoca, escolhendo apresentar essa atividade como uma busca de

significados compartilhados na ação de “conhecer e dialogar”, “compartilhar”, indo

além da formalidade das expressões “uma pesquisa”, ou “meu trabalho de

pesquisa”. Apresentei, também, como o fator central que originou a pesquisa

minha experiência em sala de aula, particularmente “como professora de

alfabetização”, e depois “no ensino superior, como professora no curso de

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Pedagogia”. Busquei, ainda, utilizar uma linguagem que oscilava entre o

formal/informal e, como não havia planejado a priori estratégias e ações sobre a

troca das cartas, evitei fornecer informações que esclarecessem os passos da

pesquisa (tempo da troca, quantidade, conteúdos e objetivos das

correspondências), oferecendo, apenas, disponibilidade em manter o contato

através de uma próxima carta. Ao final da carta, por último, busquei criar, com a

solicitação do envio de endereços de professoras conhecidas, a idéia de uma

rede de correspondência com um grupo de docentes, em que outras professoras

indicadas por elas pudessem participar, contribuindo assim para estimular sua

aceitação.

A construção da primeira carta ocorreu em Belo Horizonte, em meados de

abril de 2000. O envio ocorreu em meses diferentes: maio, para um primeiro

grupo formado por sete professoras indicadas no início da pesquisa; setembro,

para um segundo grupo formado por outras doze, constituído com base em novas

indicações, e, por fim, novembro, para um terceiro grupo formado por outras duas

professoras, que foram indicadas por docentes que já participavam da troca. A

formação desses grupos alterou o envio da primeira carta e o calendário das

outras cartas, originando particularidades entre os grupos quanto ao processo da

correspondência.

Na elaboração da primeira carta, experimentei escrever várias versões,

com o objetivo de definir o que e como deveria iniciar a correspondência28. As

modificações realizadas na forma, estilo e conteúdo podem ser visualizadas

comparando a versão final da primeira carta (analisada anteriormente) com a

primeira versão apresentada na Figura 1:

28 Socializei a versão final com duas professoras do ensino fundamental em Belo Horizonte e em Recife, e, também, com vários colegas e professores da Faculdade de Educação da UFPE e da UFMG, com o objetivo de avaliar a recepção da carta e realizar as modificações que fossem necessárias. A todos eles, meus agradecimentos pelas contribuições.

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Figura 1

1a versão da primeira carta

Podemos verificar, comparando as duas cartas, algumas das mudanças

ocorridas. São exemplos: a retirada da apresentação dos meus vínculos

institucionais, a alteração da minha caracterização como apenas “leitora” das

cartas (e não como alguém que assumiria participar também da correspondência).

Minha intenção ao fazer essa última alteração foi mostrar que eu também estaria

compartilhando idéias, construindo conhecimentos na troca, no diálogo, e, como

elas, assumindo “lugares intercambiáveis” na relação que seria construída (na

“passividade” da leitura e na ação de criar sentidos -perguntar, argumentar, negar,

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etc-, tanto “lendo o outro” quanto “escrevendo para o outro”, criando a imagem de

mim mesma, mas também me submetendo ao olhar do outro).

1.1. AS CARTAS EM RESPOSTA À MINHA

Das 43 cartas enviadas, 21 professoras responderam à primeira carta. A

primeira carta-resposta chegou no mesmo mês do envio – maio de 2000 -, em

Belo Horizonte. A última chegou no mês de maio de 2001, em Paris. Essa

distância entre as respostas reflete as particularidades na constituição do grupo

de correspondentes, que ocorreu em períodos diferentes, como discutido

anteriormente.

Na análise que é feita a seguir, considerei apenas as primeiras cartas-

resposta, referentes ao primeiro grupo de correspondentes formado pelas

professoras Amara, Dulce, Potira, Maria Amélia, Luciene, Maria e Edileusa,

buscando compreender a recepção de minha carta29 e a construção do pacto

epistolar. Assim, irei exemplificar, utilizando alguns depoimentos que confirmaram

ou não as expectativas cultivadas por mim na primeira carta e que,

posteriormente, forneceram pistas para a elaboração da segunda.

Três elementos foram considerados para compreender o pacto epistolar

construído nessa correspondência. Trata-se, em primeiro lugar, de analisar as

distâncias e as proximidades entre a pesquisadora e as docentes quanto à

finalidade que atribuíram à troca de cartas; em segundo, de buscar compreender

o lugar que as professoras construíram para a pesquisadora e para si mesmas, e,

por fim, de refletir sobre a natureza da réplica, vale dizer, sobre o conteúdo das

respostas. Esses três elementos (para que, para quem, e o que escrevem?)

constituem a base da análise do pacto epistolar que então estabeleci e são, como

29 A recepção da carta pode ser avaliada também nas entrevistas, como no depoimento da professora Socorro Damascena que falou: “[...] eu achava mágico porque em plena era da computação, ainda alguém está escrevendo carta para alguém. Você falar da sua vida, da sua profissão, da sua prática a partir da carta. Eu achava tão interessante Emília, porque computador está aí, a internet está aí, você se comunicar através de carta que é tão pouco usado hoje, não é verdade? Eu acho que os correios daqui uns dia fecha...”

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se verá, a expressão das ambigüidades do pacto que eu mesma propus em

minha primeira carta. Os depoimentos expressaram – e muitas vezes,

simultaneamente – aceitação, negação, identificação, diferenciação e

questionamento no diálogo mantido com a pesquisadora.

Quanto à análise do “para quê?” e do “para quem?”, essa ambigüidade se

refletiu em depoimentos que ora tomam a participação com a finalidade de

compartilhar significados e experiências, ora assumem a função de atender a uma

demanda de pesquisa, ou, ainda, ora oscilam entre essas duas possibilidades.

O depoimento abaixo se encontra próximo às expectativas que a

pesquisadora tentou construir para o pacto, ao caracterizar a troca de

correspondência como “compartilhamento”:

[...] Gostaria muito de manter correspondência com você para socializar minha experiência sobre a escrita (trecho da 1ª carta de Maria Amélia).

Um outro tipo de reação se caracteriza como uma “negação” da dimensão,

digamos, “experiencial” do pacto, uma vez que as professoras assumem o lugar

de “informantes” da pesquisa, como podemos verificar nos seguintes

depoimentos:

[...] Acho que será interessante participar da sua pesquisa. Espero que o resultado do seu trabalho possa contribuir para a melhoria da qualidade do ensino em nossas escolas. [...] Espero contribuir com o seu trabalho”. (trecho da 1ª carta de Amara). [...] É um prazer em lhe servir, e lhe agradeço o interesse pela “Educação”, uma área tão desprestigiada, politicamente falando. Estou inteiramente a sua disposição, a qualquer momento. [...] É uma satisfação lhe ajudar, pois sei que irei crescer com sua experiência” (trecho da 1ª carta de Dulce).

Entretanto, encontramos em um mesmo depoimento expressões de

engajamento no pacto tanto para compartilhar significados, quanto para participar

de uma pesquisa:

[...] terei o maior prazer em contribuir com a sua pesquisa, de modo a compartilharmos juntas com experiências que enriqueçam o nosso trabalho” (trecho da 1ª carta de Maria).

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[...] Quando a profa. Edna30 ligou-me perguntando se eu gostaria de colaborar com sua pesquisa, eu aceitei, e pretendo. Não sei se a minha contribuição será válida” (trecho da 1ª carta de Edileusa).

Nesses depoimentos, podemos verificar, portanto, uma tensão maior ou

menor entre o significado construído para a finalidade da troca de cartas: ora se

trata de “compartilhar” e de contribuir para um trabalho comum, ora se trata de

aceitar ser objeto de uma pesquisa. Podemos verificar também uma tensão entre

o estabelecimento de uma relação assimétrica, entre pesquisadora e objeto de

pesquisa, e uma relação entre iguais. Afirmar o “compartilhamento” implica

também afirmar uma relação simétrica; afirmar a “colaboração” implica também

reconhecer uma assimetria.

Quanto à natureza da réplica, parece, por um lado, que a posição

“participar da pesquisa”, característica de uma relação predominantemente

assimétrica com a pesquisadora, fundamenta respostas que se apresentam ora

como uma interpelação (em que a docente procura construir um lugar simétrico

ao evidenciar “com quem a pesquisadora está falando”), ora um conjunto de

informações positivas sobre seu trabalho com a leitura e a escrita. Dois exemplos

são apresentados a seguir: no primeiro deles a professora apresenta um currículo

que evidencia larga experiência para, em seguida, afirmar que crescerá com a

minha experiência; no segundo, a professora declara os princípios que orientam

seu trabalho:

30 Em alguns casos, o contato inicial dos amigos informantes com as professoras ocorreu através da comunicação por telefone.

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Exemplo 1

Trecho da 1ª carta da professora Dulce

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Exemplo 2

Trecho da 1ª carta da professora Luciene

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Os depoimentos que se caracterizaram por uma relação simétrica com a

pesquisadora, com a finalidade de “compartilhar” informações, por outro lado,

trazem memórias sobre a trajetória escolar, a aprendizagem da leitura e da

escrita, reflexões sobre o ensino da leitura e da escrita, sobre relação com a

leitura e o ato de escrever, como nos exemplos das três cartas seguintes:

Trecho da 1ª carta da professora Amélia 1ª página

Trecho da 1ª carta da professora Amélia 2ª página

Exemplo 1

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1ª carta da professora Edileusa

Exemplo 2

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1ª carta da professora Potira

Exemplo 3

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É necessário destacar que nem sempre foi possível associar a natureza

da réplica com o tipo de relação estabelecida entre as correspondentes e a

finalidade atribuída à troca de cartas na pesquisa. Parece limitado associar esses

elementos desconsiderando as variações entre eles. Por exemplo, algumas

professoras, apesar de terem apresentado uma reação de cumplicidade e de

“compartilhamento”, forneceram uma réplica sem muitas informações sobre si

mesmas ou sobre suas relações com a escrita, refletindo assim a mesma tensão

presente entre as docentes que se colocaram como “informantes” na troca

epistolar. Réplicas dessa natureza estão presentes na maior parte das cartas e

parecem se caracterizar como uma “sondagem de terreno”. A carta de Maria, por

exemplo, realiza essa “sondagem” por meio da construção de uma réplica que é

quase apenas “acusar o recebimento” de minha carta, aceitando participar da

pesquisa e dando o mínimo de informação necessário para a minha contra-

resposta:

1ª carta da professora Maria

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Outro tipo de sondagem se manifestou por meio da demanda de novas

informações sobre a pesquisa e sobre a natureza do pacto a ser estabelecido:

A “sondagem” se manifesta, por fim, no condicionamento da construção de

um efetivo pacto de cumplicidade para o fornecimento de novas informações e

para a continuidade da participação na pesquisa. É o que se pode observar com

clareza na carta de Potira, reproduzida anteriormente. Para ela, a

correspondência poderá consistir, “dependendo da relação que tivermos”, num

duplo exercício (de escrita e de reflexão sobre a escrita); ela poderá confiar seus

sonhos – mas não tem amizade ainda suficiente para contá-los - e espera, por

fim, “que tenhamos um bom relacionamento”.

Os depoimentos e, particularmente, os movimentos de “sondagem”

evidenciaram a necessidade de refletir sobre as possibilidades para a continuação

do pacto epistolar e a construção das estratégias para apreender os elementos

variáveis e complexos das práticas de escrita.

Diante das possibilidades dessa análise, optei, portanto, em trazer minhas

memórias sobre o aprendizado da escrita e compartilhar a própria relação com o

ato de escrever com o objetivo de motivá-las a realizar essa reflexão. Pretendia,

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assim, obter informações sobre o modo de se relacionar com a escrita, sobre as

diferentes esferas de socialização, sobre as competências, os usos e as

finalidades atribuídas à escrita.

Podemos verificar, portanto, que as relações entre as correspondentes

funcionou dentro de uma maior ou menor tensão, gerando respostas que ora se

aproximaram ou se distanciaram das expectativas da pesquisadora, colocando,

assim, as condições para que se consolidasse e se firmasse o pacto epistolar. As

respostas das docentes apontaram pistas na elaboração da segunda-carta, uma

vez que apresentaram disposição em falar de si mesmas, criaram expectativas

em conhecer as condições do pacto, do objeto e dos procedimentos da pesquisa.

2. “(...) SINTO UMA GRANDE DIFICULDADE EM ESCREVER (...)”: A SEGUNDA CARTA

Antes de enviar a segunda carta, adotei como recurso provisório o envio da

carta acusando recebimento. Esse recurso foi somente utilizado para o primeiro

grupo de sete professoras que iniciaram a troca de cartas e que, também,

responderam prontamente à primeira carta. A carta de aviso de recebimento foi

enviada nos meses de maio, junho, julho e agosto de 2000. A necessidade do

aviso de recebimento ocorreu como uma estratégia para assegurar o início do

pacto epistolar, fornecendo retorno rápido às primeiras cartas enviadas pelas

professoras. Entre o espaço de tempo da primeira-carta enviada em maio, e a

segunda carta, enviada em agosto, surgiu o aviso de recebimento.

Posteriormente, com a indicação de outros grupos de professoras, o aviso de

recebimento foi sendo substituído pela segunda carta (ANEXO 3).

A distância entre a primeira carta (maio) e a segunda-carta (agosto)

ocorreu em decorrência da necessidade de reunir um conjunto maior de respostas

que pudessem fornecer pistas na construção de minha réplica. Essa distância

afetou apenas as sete professoras que iniciaram a troca de cartas; as outras

docentes receberam prontamente essa carta.

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A construção da segunda carta teve início a partir das primeiras cartas-

resposta recebidas. Para definir o conteúdo e a estratégia discursiva que utilizaria,

reli muitas vezes as cartas que as professoras enviavam, na tentativa de garantir

a continuação do pacto epistolar e, ao mesmo tempo, encontrar meios de

apreender as práticas de escrita cotidianas das professoras. No momento da sua

escrita, as questões e hipóteses sobre o objeto de estudo se confundiam com a

forma que deveria adotar nas cartas: Qual seria a estratégia para garantir a

compreensão das práticas de escrita? Deveria optar por uma forma mais

impessoal ou pessoal de diálogo? Deveria iniciar falando da minha própria relação

com a escrita? Deveria elaborar perguntas mais objetivas e precisas sobre as

práticas de escrita?

Como vimos, as respostas das docentes instauraram possibilidades de

diálogo e forneceram pistas na maneira de conduzir as cartas posteriores. Esses

traços evidenciaram uma receptividade satisfatória quando as professoras

compartilhavam as experiências com a escrita, qualificavam a relação com o ato

de escrever, traziam reflexões sobre o ensino da escrita e da leitura na sala de

aula e teciam comentários sobre o uso da carta no cotidiano.

Assim, nessa segunda carta, optei em compartilhar minhas memórias,

falando da minha própria relação com a escrita e de minha própria experiência

prática, o que poderia autorizar minhas correspondentes a falar mais facilmente

de sua própria experiência. O objetivo foi, ao estabelecer uma relação de

confiança, conhecer a relação com a escrita e o percurso escolar e profissional

das docentes.

Apesar de ser uma correspondência formalizada, as características

favoráveis desse gênero permitiriam engajar os indivíduos numa relação de

reciprocidade, mesmo se as funções entre pesquisador e pesquisados fossem

diferentes. Todavia, parecia que, sem esse engajamento pessoal na troca, o

pacto epistolar não poderia funcionar. Penso que esse engajamento não poderia

ser encontrado em uma situação de questionário metalingüístico ou entrevista,

mas apenas numa situação do tipo correspondência.

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Portanto, o conteúdo dessa carta foi coerente com a forma escolhida. No

entanto, estive atenta aos riscos e limites dessa opção, pois sendo, como

anteriormente discutido, o gênero carta pessoal associado à intimidade, à

franqueza, à confissão, esse procedimento poderia exatamente porque induz à

intimidade, à franqueza, à confissão, levar a um “desvio” dos objetivos da

pesquisa: correspondente e mesmo o pesquisador poderia se deixar levar pelo

estímulo da interação intimista, e passar a trocar confidências pessoais, além da

questão investigada.

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Quadro 7: A segunda carta Belo Horizonte, 16 de agosto de 2000.

Potira,

Já faz algum tempo desde o nosso primeiro contato, mas gostaria que você soubesse que fiquei muito feliz ao receber sua carta e gostei muito do que você escreveu. No mês de julho, recebi minha família durante 22 dias em Belo Horizonte. Apesar da alegria imensa em recebê-los, o meu ritmo de trabalho mudou bastante e não consegui manter as leituras e as correspondências em dia. Apesar da demora em enviar-lhe outra carta, espero ainda recuperar seu interesse e motivação em continuar se comunicando comigo.

Na primeira carta, você revela o interesse em participar da minha pesquisa. Hoje, gostaria de continuar dialogando com você revelando minha própria relação com a escrita, falar um pouco da minha trajetória pessoal e profissional para que assim você me conheça um pouco melhor.

Compreendo a minha relação com a escrita associada a possibilidade de revelação e aproximação do que sou, do que penso, do que sinto. Através da escrita me desnudo para mim mesma e para o outro. Acho que por entender a escrita em minha vida como revelação e desnudamento, sinto uma grande dificuldade em escrever, tornando-se para mim um grande desafio.

Lembro-me que durante a adolescência possuía um diário com pensamentos, mensagens, depoimentos de minhas experiências naquela época. Vivia escrevendo dia e noite tudo que me ocorria e que considerava importante registrar. Um dia, resolvi pedi aos amigos e professores da turma para deixar uma mensagem para mim no diário, e desde esse momento, não mais o encontrei. O registro que ficou foi de abandono de algo que tinha sido uma grande referência para mim. Nessa época, sentia um grande prazer em escrever, preenchia meu tempo e era minha atividade favorita. Lembro-me também, que desde minha infância, conservava o hábito de sempre escrever. No início de minha escolarização, durante a alfabetização, ao retornar da escola, sentava-me a mesa preparada para o almoço, e não largava o caderno e lápis, e mesmo, com as constantes reclamações da mamãe não abandonava meu caderno.

Minhas memórias, só me levam a momentos de angústia com o ato de escrever, durante minha passagem pelo curso científico, no magistério, e mais tarde, na universidade, com as constantes solicitações de resenhas, resumos, trabalhos, redações, correções constantes dos erros ortográficos, de concordância, etc. Desses momentos, lembro-me de um grande sentimento de incompreensão do que era solicitado pelos professores, no momento da avaliação do texto escrito. Um sentimento de incompetência me rondava e não conseguia recuperar minha auto estima com relação ao modo como escrevia, considerando-me sempre em falta com algum modo de dizer o que deveria ser dito. Acho que apesar de trazer boas memórias da minha professora de Português no magistério, acredito que boa parte do que incorporei ao que penso hoje de como escrevo, encontra-se marcado pelas experiências vividas durante essa época.

Percebo que com o tempo fiquei ainda mais fragilizada quanto ao modo como me relaciono com a atividade de escrever. Sinto-me ainda muito aprisionada em expor minhas idéias, falta de clareza, medo de cometer erros, dúvidas no modo de dizer e no como deve ser dito. Durante a escrita da minha dissertação, no mestrado, experimentei vários momentos de incompetência diante da escrita. Acho que por isso, não poderia escolher outro tema na minha tese. É impressionante, como o objeto de estudo vêm marcado por nossas experiências e necessidades pessoais, mais nem por isso, deixa de ter interesse para outras pessoas que possuam as mesmas preocupações.

Quanto a minha experiência profissional, vou lhe contar um pouco do meu percurso para que você possa me conhecer um pouco melhor. Durante 5 anos fui professora de Alfabetização, ao mesmo tempo, em que realizava o curso de Pedagogia na UFPE, no período de 1986 a 1990. Entre 1991 a 1994, realizei meu curso de mestrado em Psicologia Cognitiva, na mesma instituição, desenvolvendo uma dissertação cujo tema era: “O desenvolvimento da escrita de histórias em crianças” sob a orientação da Profa. Alina Spinilllo. Durante o período de 1994 a 1996 fui professora da Universidade Federal da Paraíba, em João Pessoa. Em julho de 1996, ingressei na UFPE, onde atualmente sou professora do curso de Pedagogia, vinculada ao Departamento de Psicologia e Orientação Educacionais do Centro de Educação.

Sei que nas próximas correspondências ainda poderei retornar a algumas dessas experiências, caso você tenha interesse em saber mais sobre mim. Saiba que será um grande prazer compartilhar com você minha história, assim também, como estou curiosa por saber mais sobre você.

Gostaria que você contasse um pouco da sua experiência profissional e de sua escolarização (atual e anterior). Se possível, escreva um pequeno histórico da sua vida profissional. Informe sobre as séries que leciona/lecionou, o período de experiência profissional, local/nome da escola em que leciona atualmente. Acrescente dados de sua formação acadêmica/escolarização. Penso que esses dados me ajudaram a ter um perfil da sua trajetória profissional/acadêmica e assim poderei conhecê-la melhor.

Potira, sei que muitas dessas coisas você pode ter vivido e experimentado em sua trajetória, e espero que revelando um pouco da minha história, consiga aproximá-la de suas memórias em relação a escrita, e que assim você possa compartilhá-las comigo.

Sempre surgem algumas memórias, quando começamos a pensar sobre a nossa relação com a escrita. Você lembra de algum fato ou pessoa que tenha exercido alguma influência sobre você em sua relação com a escrita na sua infância, adolescência ou vida adulta?

Potira penso que possamos continuar nosso diálogo a partir dessas reflexões. Sei que posso ter exagerado nas solicitações, mais sinta-se à vontade para responder gradualmente as minhas questões. Estarei aguardando ansiosa e certa de que você enviará contribuições para um melhor entendimento das questões sobre a escrita.

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O início do envio dessa carta seguiu em agosto de 2000, para o primeiro

grupo formado por sete professoras; em outubro e novembro de 2000, de Belo

Horizonte e Paris, para o segundo grupo formado por 12 professoras, finalizando

sua remessa em fevereiro e junho de 2001, em Paris e Belo Horizonte, para o

último grupo formado por duas professoras.

2.1. AS CARTAS EM RESPOSTA À MINHA

Todas as 21 professoras responderam à segunda carta. As seis primeiras

cartas-resposta chegaram nos meses de agosto, setembro e outubro de 2000, em

Belo Horizonte; as outras 13 chegaram nos meses de novembro e dezembro de

2000, e janeiro, fevereiro, março de 2001, em Paris; e, por fim, duas outras

chegaram no mês de agosto de 2001, em Belo Horizonte.

A análise que realizei com o conjunto das respostas à segunda carta se

refere aos elementos que integram a “mise en scène d’écriture” presentes no

ritual epistolar31; trata-se do uso do vocativo inicial e a forma da despedida, como

anunciei anteriormente.

Sendo a correspondência um gênero evolutivo, através das cartas, foi

possível recuperar os elementos estáveis e os novos, por exemplo, nas marcas

de enunciação que indicam o engajamento das docentes no pacto epistolar.

Podemos comparar a mudança ou permanência do uso do vocativo inicial e a

despedida nas respostas às duas cartas enviadas. Ao comparar as duas

primeiras cartas enviadas e recebidas, é possível analisar o impacto que o uso do

vocativo inicial provocou nas correspondentes.

Reuni um conjunto de cartas de um grupo de professoras para que os

elementos cênicos presentes na escolha do vocativo inicial e da fórmula final

sejam observados nos seguintes quadros:

31 No estudo realizado por Cécile Dauphin et al. (1995), os elementos que integram o ritual epistolar funcionam como sinais que unem os interlocutores, como por exemplo: a menção da data e do lugar, o vocativo inicial, os outros vocativos utilizados no corpo da carta e a despedida. Neste trabalho pretendo analisar apenas o vocativo inicial e a forma da despedida para evidenciar alguns sinais do funcionamento da correspondência.

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2.2. AS MARCAS DAS TROCAS: O VOCATIVO INICIAL E A DESPEDIDA

De acordo com Cécile Dauphin et al. (1995), o termo “vocativo” origina-se

do latim vocare e significa “nomear”. Esse termo, para as autoras, pode se aplicar

a todas as interpelações que circulam na carta, desde o início até a fórmula final,

incluindo, eventualmente, outras chamadas no corpo do texto. O vocativo dirigido

ao outro define as fronteiras da relação interpessoal e designa aquele que é

autorizado a entrar no texto.

Na maioria das cartas recebidas, o vocativo foi colocado em destaque,

mais ou menos distante do início do texto e da indicação do lugar e da data. A

fórmula final geralmente apareceu após o corpo do texto, e, em alguns casos,

repetidas despedidas foram elaboradas (as cartas da professora Elaine ilustram

esse acontecimento, analisado mais adiante).

Certamente os vocativos iniciais e a despedida revelam de forma restrita o

papel imposto pela relação entre a pesquisadora e as docentes. No entanto, os

vocativos permitem também firmar um lugar em que novas combinações e formas

são propostas. Como observou Cécile Dauphin et al. (1995) a identificação e o

grau de intimidade presentes nos vocativos não se conformam e se fixam na

natureza do lugar que une os interlocutores, mas, sobretudo, dependem da

relação afetiva construída entre os interlocutores, em que se misturam as

confidências, a igualdade, a aproximação.

Nos quadros 8 e 9 podemos acompanhar a adoção dos vocativos que ora

afirmam o lugar entre as correspondentes, obedecendo ao modelo utilizado pela

pesquisadora, ora apresentam o emprego de formas que inauguram uma nova

combinação (de amizade, de aliança, de cumplicidade), caracterizando assim os

diferentes níveis de engajamento das docentes.

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Quadro 8 Análise do vocativo inicial

Vocativo Inicial: passagem formal – informal – informal afetivo. Revela uma busca de intimidade que vai se construindo gradualmente.

1a carta 2a carta carta-extra enviada/recebida32:

Emília: Cara Professora Dulce Dulce: Cara professora Emília

Emília: Dulce Dulce: Emília, Saudações

Emília: Querida Dulce. Dulce: Querida Emília

Vocativo Inicial: passagem formal – informal. Obedece ao padrão utilizado inicialmente pela pesquisadora.

1a carta 2a carta Emília: Cara Professora Amara Amara: Professora Emília

Emília: Amara Socorro: Emília!

Emília: Cara Professora Luciene Luciene: Cara Emília Lins

Emília: Luciene Luciene: Emília

Vocativo Inicial: mudança de vocativo por iniciativa da professora. 1a carta 2a carta

Emília: Cara Professora Socorro Socorro: Querida professora Emília

Emília: Socorro Socorro: Bom dia Emília!

Emília: Cara Professora Maria das Dores Ma das Dores: Querida Emília

Emília: Ma das Dores Ma das Dores: Querida Emília

Emília: Cara Professora Ivana Ivana: Oi Emília!

Vocativo Inicial: permanência do padrão formal e “negação” do padrão informal proposto pela pesquisadora

1a carta 2a carta Emília: Cara Professora Maria Maria: Professora Maria Emília

Emília: Maria Maria: Professora Emília

Emília: Cara Professora Jacqueline Jacqueline: Cara professora Emília Lins

Emília: Jacqueline Jacqueline: Professora Emília

Podemos verificar ainda que os rituais de acesso situados no início e no

final das cartas fornecem as fórmulas e as normas do cerimonial epistolar. A

maneira de entrar em contato marca o lugar, de onde se revela o jogo da

distinção entre as correspondentes e de onde se mostram os efeitos de

intimidação que as escolhas do vocativo provocou no outro. O vocativo inicial no

ogo epistolar fornece, portanto, o tom do diálogo, identifica o outro e indica o grau

de intimidade estabelecido na relação entre mim e as professoras.

32 A professora Dulce recebeu uma carta-extra e enviou resposta a essa carta no mês de outubro de 2001, a Belo Horizonte, em decorrência do seu engajamento.

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No momento da separação, a cerimônia da despedida apresenta uma

característica comum: a ocasião envolve a formulação de votos, de interesses, de

demandas e solicitações, a expressão de sentimentos afetuosos, e revela,

também, novas formas de interpretação dos lugares assumidos na

correspondência. No quadro abaixo, podemos observar as despedidas utilizadas

por mim e pelas docentes:

Quadro 9

Análise da fórmula final: despedida

Fórmula final (despedida): revelou indícios de intimidade e a expectativa em continuar a troca de cartas.

1a carta 2a carta Emília: Espero ansiosa por notícias e agradeço, desde já, sua atenção. Um abraço, Emília Lins.

Emília: Muito obrigado e até breve. Um abraço, Emília.

Dulce: Abraços sincero. Socorro D: Abraços. Maria: Um abraço, atenciosamente. Ivana: Vou ficando por aqui. Um grande abraço e até logo mais. Potira: Obrigada pelo desafio. Até. Angélica: Espero notícias. Beijos. Elaine (3 despedidas): Abraço grande com calor de sol, prazer te conhecer. Depois escreve: Beijos e até logo. Por fim escreve: Até breve. Amélia: Espero que festeje com saúde e felicidades o São João. Um abraço.

Dulce: Um sincero abraço. Socorro D: Espero resposta. Abraços. Maria: Aguardo notícias, atenciosamente. Ivana: Obrigada colega por insistir nesta comunicação. Um grande abraço. Potira: Até. Angélica: Beijos e até a próxima. Elaine: Aproveitando para desejar um século de muita luz e energia positiva. Amélia: Espero que essas informações ajudem na sua pesquisa. Um abraço a até breve.

Podemos considerar que os elementos do ritual epistolar definem a forma

da carta, e também as regras de se apresentar ao outro, de perguntar, de fixar os

termos do encontro. Como vimos, eles orientam a recepção da mensagem e a

distância social entre os interlocutores, assim como afirmam Cécile Dauphin et al.

(1995, p.102):

On peut considérer que le geste épistolaire opère une mise en scène de la même façon que l’écriture dramaturgique dispose autour de ou dans le texte proprement dit un ensemble de mentions sur le décor, les accessoires, les postures et les mouvements des acteurs, autant de marques nécessaires à la compréhension de la pièce pour celui qui la lit.

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A partir desse recorte que permitiu uma visão parcial dos elementos

complexos da “mise en scène d’écriture”, podemos perceber que o ritual epistolar,

apesar de preservar fórmulas fixas, funciona com novas estratégias através do

exercício da originalidade individual das correspondentes.

Verificamos que as professoras Socorro, Maria das Dores e Ivana

inauguraram uma forma de entrada diferente do que foi utilizado pela

pesquisadora (“Querida professora Emília”, “Querida Emília”, “Oi Emília!” e “Bom

dia Emília!”). Entretanto, apenas o uso do vocativo não é suficiente para

assegurar que a natureza da réplica e o engajamento no pacto epistolar

aconteçam de forma efetiva. Podemos assegurar, no conjunto das cartas

enviadas pela professora Maria das Dores, o uso constante de vocativo inicial

informal, embora ela, no decorrer da troca, efetivamente não se disponibilizou ao

exercício autobiográfico proposto no pacto epistolar.

Para compreender a mudança de estratégia no uso do vocativo podemos

ainda analisar como as docentes que firmaram, na primeira réplica, uma postura

assimétrica (por exemplo: a professora Dulce que na sua primeira resposta usou

“Cara professora Emília”), se colocaram noutra posição, na segunda réplica,

quando utilizaram um vocativo que expressou uma menor tensão com a

pesquisadora (na segunda e terceira cartas ela usou “Emília, saudações“ e

“Querida Emília”). No entanto, observamos também a permanência em posições

assimétricas com a pesquisadora no uso de vocativos formais que sustentam um

lugar diferenciado entre as docentes e a pesquisadora (“Cara Professora Emília

Lins”, “Professora Maria Emília”, “Professora Emília”), encontrados nas cartas das

professoras Jacqueline e Maria, por exemplo.

Um outro conjunto de dados permitiu reunir as temáticas concernentes às

práticas de escrita. Os temas presentes foram: as memórias sobre a

aprendizagem da escrita, a expressão do sentimento em torno do ato de escrita,

as dificuldades e facilidades com o ato de escrever, os usos e finalidades da

escrita, os suportes da escrita, os projetos de escrita. As estratégias discursivas

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foram formuladas através do questionamento, da identificação, da diferença, da

afirmação e da negação daquilo que a pesquisadora havia escrito em sua carta

anterior. Os depoimentos exemplificam esses dados:

No depoimento de Maria encontramos a expressão do prazer que a

chegada da carta provocou, a simpatia com o relato que a pesquisadora

compartilhou, o interesse em produzir uma continuidade nas respostas e no envio

de outras cartas. A reação de identificação com a “confissão” da pesquisadora

sobre a relação com a escrita foi expressa: “[...] confesso que realmente me

identifiquei” e, mais adiante, ao afirmar: “[...] sinto também”. Através dessa

afirmação, ela entra nos termos do contrato epistolar – refletir sobre a relação

com o ato de escrever – e aceita assumir uma postura autobiográfica face à sua

prática de escrita.

No depoimento da professora Luciene, a reação de surpresa e

estranhamento marcou a sua réplica. Mesmo expressando uma certa

desconfiança em relação ao que relatei, quando ela afirmou: “[...] e até me fez rir

Trecho do início da 2ª carta de Maria

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ao ler o trecho que fala de sua dificuldade com a escrita, por achar que isso não

acontece com você da forma que se expressa na carta e sim comigo”, a

professora evidenciou uma identificação com a pesquisadora nesse trecho que

afirmou: “[...] ao ler mim vi naquelas entrelinhas escritas por você”. Parece que,

diferente da reação de Maria, Luciene aceitou participar da postura autobiográfica,

no entanto, manteve uma tensão entre a identificação e a diferenciação com o

relato da pesquisadora nas “entrelinhas” do seu depoimento.

Trecho do início da 2ª carta de Luciene

Trecho do final da 2ª carta de Luciene

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118

A idéia de que o pacto epistolar mistura obrigação (em responder) e

liberdade (em adiar a resposta), gosto e prazer, como dois pólos indissociáveis

permeando a troca de cartas, pode ser observada no depoimento em que Potira

afirmou:

Podemos observar ainda como ela expressa a emoção que a leitura da

carta efetivamente suscitou. Nesse momento, como sugere Roland BARTHES, “o

outro é ausente como referente e presente como locutor” (apud, DAUPHIN et. al.

1995), ou seja, a ausência (do outro) que a carta representa foi substituída pela

confissão do sentimento presente no momento da leitura.

Trecho do início da 2ª carta de Potira

Trecho do início da 2ª carta de Potira

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Ainda no depoimento de Potira, podemos acompanhar um pouco da sua

história familiar e da formação escolar dos pais. Apesar de apontar sinais de

experiências “não muito agradáveis” com a escrita, as informações que

justifiquem “os fatos desagradáveis” tanto na escola como em casa não foram

esclarecidos pela docente.

A resposta da professora Dulce, diferente da sua réplica anterior,

apresentou uma receptividade expressa nas linhas iniciais de sua carta. O efeito

da “confissão” da pesquisadora provocou uma mudança que afetou a natureza do

conteúdo da resposta e alterou a posição de assimetria de como se apresentou

na carta anterior, ao utilizar “nosso”, ao invés de “sua”, “diálogo”, ao contrário de

“pesquisa”, e, por fim, ao evidenciar um interesse subjetivo pela pesquisa

expresso na condição de igualdade (“da mesma forma que para você é

interessante para mim também”), diferente da razão objetiva e ampla presente na

sua afirmação anterior, quando dizia: “[...] É um prazer em lhe servir, e lhe

agradeço o interesse pela Educação, uma área tão desprestigiada, politicamente

falando“ (trecho da sua primeira carta), como podemos observar no trecho

completo descrito na página 121:

Trecho final da 2ª carta de Potira

Trecho do início da 2ª carta de Dulce

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120

O próximo depoimento, da professora Dulce, apesar de longo e complexo,

suscita algumas reflexões que merecem ser aqui destacadas para melhor

compreender o efeito da minha carta na mudança do pacto anteriormente

estabelecido pela docente. Além de possibilitar avaliar o impacto das estratégias

da carta na reação da professora, é interessante acompanhar os elementos novos

que surgem e que vão provocar e conformar as minhas decisões nas cartas

posteriores.

Diante do objetivo parcial de análise, nesse momento, destacarei apenas

alguns elementos que considero importantes na compreensão das contribuições

para a construção das novas cartas.

As memórias de Dulce sobre a aprendizagem da escrita suscitaram o

interesse em conhecer um pouco mais sobre as histórias familiares e escolares

no aprendizado da escrita. A leitura do trecho seguinte chamou a atenção para o

efeito que a imagem que construí de minha relação com a escrita provocou na

sua própria imagem e na forma como se “apresentou” para mim. Parece pouco

provável que Dulce tenha se sentido “obrigada” a também expressar sua

dificuldade com a escrita, apesar de ter dito: “[...] a minha relação com a escrita,

foi um pouco dolorosa”. Parece se confirmar, o que é interessante, uma mistura

ou duplicidade nos lugares construídos para si mesma, quando, por exemplo, ao

afirmar uma experiência dolorosa com a escrita criou uma imagem de sucesso

escolar, o que parece ser contraditório com a intenção anunciada. Esse

acontecimento parece ser natural no contexto em que os papéis estão sendo

consolidados no exercício da identificação e na diferenciação com o outro que se

quer conquistar (confiança, cumplicidade, identidade, etc.).

Trecho inicial da 2ª carta de Dulce

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121

2ª carta de Dulce

Trecho final da 2ª carta de Dulce

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122

Verificamos, portanto, uma diversidade de temas que integra a carta de

Dulce: as reflexões sobre o aprendizado da escrita, os suportes de escrita, os

contextos de uso e a finalidade da escrita, as sociabilidades, o significado do ato

de escrever e da escrita, o ensino da leitura e da escrita, a expressão das

dificuldades e facilidades, as emoções e sentimentos trazidos nas memórias, a

reflexão das ausências, das possibilidades e dos projetos de escrita.

Diante do conjunto de respostas à minha segunda carta, constatei que as

decisões em manter uma relação mais intimista e confessional tinham revelado

resultados que permitiam uma variedade de informações da história individual e

coletiva de cada professora nos aspectos (já descritos) que condicionam as

práticas de escrita. Em relação ao funcionamento do pacto epistolar, pude

verificar também um engajamento mais expressivo com relação ao tamanho das

cartas, à qualidade e à variedade das respostas, embora as tensões e as

ambigüidades na relação entre as correspondentes estivessem ainda presentes.

3. “(...) VAMOS FAZER UMA BRINCADEIRA?”: A TERCEIRA CARTA

A temática da terceira carta surgiu da necessidade de construir um perfil

das professoras. As cartas-resposta anteriores, apenas parcialmente, tinham

contribuído para fornecer um perfil das docentes. Assim, as informações sobre a

idade, a formação escolar, a trajetória profissional fizeram parte da constituição da

terceira-carta. Algumas professoras tinham fornecido algumas dessas

informações nas réplicas anteriores, no entanto, para um grupo de docentes,

essas informações ainda eram escassas, não permitindo construir um perfil

sociológico que permitisse fazer conhecê-las.

O objetivo dessa missiva foi, portanto, continuar o pacto estabelecido nas

cartas anteriores, assegurando as informações sobre a relação com a escrita, as

memórias da trajetória escolar no aprendizado da escrita, os traços socioculturais

da família, a formação escolar dos pais, a memória de uma situação com o ato de

escrever que tivesse marcado a relação com a escrita.

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123

Sendo a carta um gênero que facilita a inclusão de outros procedimentos,

em função de sua “natureza aberta”, como anteriormente discutido, utilizei, nessa

terceira carta, o questionário para obter dados sobre o perfil das professoras. A

forma do questionário adotado nessa carta possibilitou a troca compartilhada de

informações através de perguntas que foram acompanhadas de respostas (dadas

por mim), permitindo assim consolidar a relação entre as correspondentes. Essa

opção em elaborar perguntas fornecendo a resposta teve o objetivo de permitir o

conhecimento mútuo da pesquisadora com as docentes. Priorizei manter essa

reciprocidade com as professoras, pois temia que o questionário assumisse uma

função de interrogação que, provavelmente, poderia acentuar a relação de tensão

da situação de pesquisa. Assim, no jogo de perguntas e respostas se

estabelecem uma interação na ação de perguntar e fornecer a resposta: a própria

pesquisadora colocava-se no lugar que seria ocupado pela professora ao

responder à carta.

Quadro 10: A terceira carta

Paris, 26 de fevereiro de 2001.

Oi Potira,

Espero que você esteja bem. Existem momentos difíceis na vida da gente mesmo. Tomara que você esteja podendo enfrentar inteira esses problemas por que está passando. Fiquei emocionada com sua última carta: engraçado, não é, que duas pessoas, até então, estranhas uma à outra, possam aos poucos se conhecer, se emocionar, se identificando, e terminar, em alguns momentos, com olhos cheios d’água?

Espero também que, apesar do longo tempo sem dar notícias, a gente possa recomeçar nossas cartas. Nesse meses iniciais, aqui, em Paris, as atividades têm sido tão diversificadas que vêm me dando muito trabalho e muito pouco tempo.

Paralelamente ao trabalho, venho vivendo a descoberta da cidade de Paris, das semelhanças e diferenças nos costumes, no dia-a-dia, na feira, nas lojas, no transporte. Tudo isso tem sido muito bom e, ao mesmo tempo, importante para conhecer diversos detalhes dessa cidade tão apaixonante (e tão difícil às vezes).

Entre os afazeres do trabalho e da descoberta do lugar, venho vivendo a dificuldade de conciliar o trabalho e a curiosidade, comum a todo turista (que ninguém é de ferro, né?). Compartilhar um pouco do que venho vivenciando aqui ajuda a diminuir meu sentimento de culpa pela demora dessa carta.

Confesso também que o desafio de manter a correspondência tem sido grande para mim. E olha que, diferente de muitas mulheres, não tenho filhos, marido e nem o famoso terceiro turno de trabalho em casa. Definir o que escrever diante do papel em branco, motivar o diálogo, formular novas perguntas são alguns dos aspectos desse desafio, como você mesma disse. Por onde começar? Acho que só iniciando poderei chegar em algum lugar, portanto, vamos lá...

Estou certa de que, com o tempo, vai surgir mais confiança entre mim e você, para que a gente possa se falar mais abertamente. Afinal, quem é essa tal de Emília que fica fuxicando e querendo saber tanta coisa?

Pois é. Eu, como você, acho também que é um sacrifício escrever. Fico evitando responder às cartas até onde não posso mais. Depois que sento e escrevo é bom. Mas o antes e o durante... que sacrifício, menina.

Outra coisa: acho que nossa história também foi parecida. Eu vivi alguns anos em Ipojuca (você conhece?). Quando voltei para o Recife – estava na 5a série – minha mãe me matriculou numa escola particular (eu sempre tinha

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estudado em escola pública). A freira, diretora da escola, me fez voltar para a 4a série (eu não devia ter uma escrita muita boa!). Só me lembro de ficar lá, no fundo da sala, me sentindo completamente estranha e inadequada. Aqui em Paris, às vezes, é a mesma coisa: falar francês é um horror (escrever, então, nem me atrevo), às vezes dá um branco arretado; não sei, em algumas situações, como me comportar. Sentimento de inadequação é muito ruim de sentir. Acho que a gente não gosta tanto de escrever por causa disso. Como tu mesma disseste, em tua primeira carta, nunca é como a gente gostaria que fosse.

Mais uma coisa parecida nas nossas histórias: eu sempre pensei em ser professora. Eu sei que você disse outra coisa, quer dizer, que essa não era sua primeira opção. Para mim sempre foi a primeira. Mas estou estudando, nos últimos tempos, um sociólogo que fala que essa vontade, no meu caso, de ser professora, foi uma transformação de necessidade em virtude. Quer dizer, era uma fantasia ou desejo muito adequado para quem não tinha outras possiblidades de ganhar dinheiro rápido, poder se sustentar e pagar sua própria escola. Minha mãe e meu pai queriam que fizesse Edificações (um curso bom para mulheres, e a Escola Técnica, que era gratuita e com ensino de boa qualidade, tinha muito homem com futuro promissor e com promessa de bom casamento, de acordo com minha mãe). Mas não passei no exame. Além disso, eu descobri, quando já fazia o magistério, que eu poderia ganhar uma bolsa de estudos da escola se eu fosse uma ajudante de professora. Me candidatei a uma vaga com a irmã diretora. Consegui a vaga, a bolsa e, aos poucos, minha liberdade financeira. Dava para ser outra coisa que não professora? Resumindo: foi uma opção mais ou menos, metade desejo, metade necessidade. Mais ou menos como você, não?

Para facilitar a vida da gente nessa coisa de correspondência, vamos fazer uma brincadeira? Você se lembra daqueles cadernos de recordação que a gente usava na adolescência, fazendo um monte de perguntas indiscretas, do tipo “Qual seu primeiro namorado?” “Já beijaste?””Deixe aqui algum pensamento íntimo, que você não diria para ninguém...”? Prometo que não vou fazer esse tipo de pergunta, tão indiscreta. E se não quiser responder a alguma ou a algumas delas, tudo bem. Vamos lá? Vou começar a brincadeira, já respondendo no que toca a mim.

Quantos anos você tem?

Emília: 32 anos.

Tem um companheiro ou marido?

Emília: Não.

Tem filhos?

Emília: Não.

Com que seus pais trabalhavam?

Emília: Meus pais estão aposentados agora. Meu pai trabalhou a maior parte da vida vendendo remédios pelo

Nordeste afora, com sua malinha, e depois fez de tudo um pouco: vendeu roupa pra sulanca que eu, minha irmã e minha

mãe fazíamos, principalmente em Caruaru e Santa Cruz do Capibaribe (a gente madrugava lá, saía de noite do Recife,

armava barraca e revezava: enquanto um dormia embaixo da banca, outro vendia...). Que saudade... Minha mãe foi

professora primária, diretora de escola lá em Ipojuca. Depois trabalhou sempre como professora de religião e, no fim,

entrou também nessa história de vender sulanca e de fazer as roupas.

Um desabafo... a respeito dos fatos desagradáveis que você viveu na escola....

Emília: Um dia, escrevi um trabalho no mestrado, sobre um tema que uma professora chata demais tinha

mandado fazer. Eu me lembro que ela fazia um comentário na sala, pegando o texto de cada um e destruindo. E fazia

isso numa situação de muita competitividade que é a de um curso de mestrado. Acabava avaliando sem levar em conta a especificidade de cada um e a gente ficava, no final de contas, com a impressão de que nada tinha prestado. O meu

texto, ela detonou. Falou que não estava bom, que a estrutura era horrível, que tinha erro de ortografia (ainda bem que,

com essa história de computador hoje, inventaram o corretor automático!). Minha vontade foi de sair correndo da sala,

não conseguia nem olhar para a cara dos meus colegas, todos metidos. Foi também de dizer umas poucas e boas para a

professora, mas quem é que disse que dava coragem para falar alguma coisa para aquela mulher...

Outro desabafo... a respeito dos fatos desagradáveis em sua vivência da escrita na família.... Emília: Na minha família, era o contrário da escola. Sempre coisas mais positivas. Minha mãe e meu pai não

davam nenhum incentivo, não. Eles não foram nunca muito de escrever. Me lembro de que minha mãe lia muito para nós

(comprou aquela coleção vermelha para crianças, como é que se chamava mesmo?). Minha mãe também gostava de

escrever cartas e – que engraçado é a memória da gente, só agora me lembro – gostava também de escrever algum

discurso para uma festa, um aniversário, alguma coisa da escola em que trabalhava. Como ela era diretora, a gente

vivia na escola (nossa casa era colada nela, quase o quintal da escola), via minha mãe fazendo esses discursos e eu adorava ajudar a professora, dando uns cascudos nos meninos mais lentinhos... Meu pai gostava também de fazer

brincadeiras (bem malandras) com as palavras, fazendo rimas e escrevendo para a gente rir um pouco.

Mais um desabafo... a respeito de se sentir um “peixe-fora-d’água” na escola... na escrita... na vida também? Emília: Quarta série. Na escola particular, no Maria Tereza, eu descobrindo que não tinha aprendido nada em

Ipojuca (a escola era uma zona, a gente mais brincava que estudava, as professoras viviam faltando). Repetente. Do interior. As pessoas falavam diferente. Se vestiam diferente. Não conhecia ninguém. Voltei para a quarta série, apesar de

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estar na quinta e ter passado no teste de seleção, por causa de minha completa timidez, sem dizer nada em sala, nem

para os professores, nem para os alunos. Ficava no fundo da sala, na última carteira, olhando o tempo todo para a

parede e, de soslaio, para a turma e os professores. E o dia pior de todos: fiz xixi na calça... vergonha de ver a mancha

no chão, os colegas mangando, a professora... Um sonho...

Emília: Ser escritora...

Responda, Potira, “a essas mal traçadas linhas” e faça, se quiser, outras perguntas para mim. Um grande abraço da

PS: E você, é carnavalesca? Se for, me conta as novidades desse carnaval, o primeiro em minha vida que não passo em Recife e Olinda... que inveja de quem está aí).

O envio da terceira carta iniciou em fevereiro e março de 2001, em Paris,

para 19 professoras (o primeiro e o segundo grupo formados até a segunda carta

se fundem com o envio da terceira carta), e o último envio ocorreu em setembro

de 2001, em Belo Horizonte, para outras duas professoras do terceiro grupo que

tiveram uma inclusão tardia na correspondência.

3.1. AS CARTAS EM RESPOSTA À MINHA

As respostas à terceira carta chegaram nos meses de abril, maio e junho

de 2001, em Paris, enviada por 11 professoras; outras quatro as enviaram nos

meses de julho, agosto e setembro de 2001, para Belo Horizonte. Seis

professoras não responderam essa carta33.

A recepção dessa carta foi satisfatória, mesmo algumas professoras não

tendo enviado suas respostas, como anteriormente apresentado no quadro sobre

os objetos epistolares recebidos. Podemos justificar essa recepção, de um lado,

em função da proposta do jogo de perguntas e respostas sobre os dados da vida

pessoal e profissional e, também, em decorrência do diálogo estendido pelas

professoras na elaboração de novas perguntas para a pesquisadora. A proposta

da atividade permitiu uma grande margem de liberdade e autonomia em fazer

perguntas e fornecer as respostas, invertendo o jogo proposto.

33 As razões que explicam a ausência de respostas dessas seis professoras foram: no contato para a entrevista, duas justificaram motivos de doença pessoal (gravidez de risco e depressão), outras duas apresentaram a falta de tempo, acúmulo de atividades, jornada de trabalho (família, escola e universidade), e por fim, duas outras professoras, em conseqüência do engajamento tardio na correspondência e por não terem enviado as respostas à terceira carta, não receberam as duas últimas cartas (4a e 5a cartas) da pesquisadora.

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Diante da modificação dos papéis, enviei cartas-extras34 às docentes que

romperam com o modelo inicial (pesquisadora-pergunta X professora-responde) e

que ampliaram o princípio do pacto (professora-pergunta X pesquisadora-

responde). Durante as entrevistas35, as professoras avaliaram de modo positivo a

proposta do jogo de perguntas e respostas, que permitiu construir novas questões

fora da temática das práticas de escrita. Para exemplificar, dois depoimentos

ilustram como as docentes ampliaram o diálogo com a pesquisadora:

34 As cartas-extras foram enviadas para três professoras que fizeram, no final das cartas, novas perguntas à pesquisadora. O conteúdo dessas cartas ampliava o conhecimento entre as correspondentes sobre religião, música, livros lidos, sobre a cidade e as pessoas de Paris, etc... 35 A professora Abda avalia a recepção dessa carta na sua entrevista, quando perguntei: Emília: “E de escrever as cartas como foi, foi mais prazeroso ou não?” Adba: “Foi bom. Agora teve uma que eu gostei mais do que todas, uma que escrevi muito. Uma que contei como era minha experiência como professora, falando de mim, da minha vida. Eu gostei mais de escrever, foi ótima essa carta, foi a que mais gostei. [...] Essa (feito uma entrevista) foi ótima de escrever, acho que todo mundo.”

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1ª página da 3ª carta de Abda

2ª página da 3ª carta de Abda

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3ª página da 3ª carta de Abda 4ª página da 3ª carta de Abda

5ª e última página da 3ª carta de Abda

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A professora Abda, na sua réplica expressou as semelhanças com a

pesquisadora, a curiosidade com a pesquisa e estendeu o diálogo com questões

sobre a vida das pessoas que vivem em outro país.

No depoimento da professora Elaine, observamos uma reflexão sobre a

necessidade do tempo para escrever, da intimidade para “quebrar o gelo” com a

pesquisadora e ainda uma comparação entre a informalidade das cartas trocadas

entre amigos e a formalidade e distância que sentia no diálogo com a

pesquisadora. Assim, Elaine anunciou sua aprovação com a nova carta e

elaborou novas perguntas, expressando sua opinião sobre a troca:

Trecho do início da 3ª carta de Elaine

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Trecho do final da oitava página da 3ª carta de Elaine

Nona página da 3ª carta de Elaine

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Décima e última página da 3ª carta de Elaine

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A análise do conjunto das respostas reúne informações que ampliaram a

compreensão do perfil sociológico das docentes, embora o aspecto da relação

com a escrita tenha sido pouco enfatizado nas cartas das docentes.

4. “O QUE ESCREVE E EM QUE SUPORTE ESCREVE”: A QUARTA CARTA

A natureza do pacto epistolar firmado nas três primeiras cartas foi

construída na base da troca de informações entre as correspondentes. A

pesquisadora e as docentes compartilhavam suas histórias pessoais, familiares,

escolares e profissionais, construindo uma imagem de si para o outro. O contrato

epistolar estabelecido se baseou no conhecimento mútuo em que tanto a

pesquisadora quanto as professoras se “apresentavam” ao olhar do outro.

A partir da quarta carta, a natureza do pacto se modificou entre as

correspondentes. A principal mudança decorreu da necessidade de construir um

perfil dos usos da escrita, tomando em análise a perspectiva das docentes. Nessa

carta, ao invés da troca compartilhada, a informação foi fornecida somente pelas

professoras. Assim, evidenciou-se nessa carta um novo pacto, definido pelo lugar

de quem pergunta – a pesquisadora – e de quem responde - as professoras.

Outra modificação refere-se à natureza da atividade que colocava em evidência

as práticas de uso da escrita das professoras, inicialmente, para elas próprias, ao

assumirem o lugar do pesquisador durante a análise de suas práticas, e, depois,

ao submeter essa análise ao olhar do outro. Outra modificação se relaciona às

habilidades exigidas na atividade, como a observação, a análise, a comparação

de informações, além de requerer o preenchimento de um quadro com critérios

definidos pela pesquisadora.

Dessa forma, a definição dos objetivos e conteúdos dessa carta ocorreu

durante a análise do conjunto das cartas-resposta já obtidas e na elaboração da

terceira carta. As informações reunidas nas correspondências anteriores

permitiram construir um perfil das professoras, conhecer os traços de sua

trajetória escolar e profissional, sobre o que pensavam da relação com a escrita,

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das facilidades e dificuldades com o ato de escrever. No entanto, poucas cartas-

resposta traziam informações que favorecessem a apreensão dos usos da escrita

na vida cotidiana. Foi necessário, assim, tentar apreender os usos efetivos de

escrita das docentes. Para isso, elaborei uma atividade de observação e registro,

que foi realizada pelas próprias professoras para analisar as suas práticas de

escrita.

O conteúdo consistiu nos usos da escrita na vida cotidiana. Seu objetivo foi

de compreender os usos e finalidades que as professoras atribuem à escrita no

contexto familiar e escolar. A atividade consistia no levantamento das práticas de

escrita, durante dois dias da semana. A recomendação dada enfatizava que os

dias escolhidos deveriam possibilitar apreender tanto as atividades de escrita

profissional quanto as atividades de escrita ocorridas no ambiente familiar. A

atividade foi realizada pela própria professora, que registrou, em um quadro pré-

definido pela pesquisadora, suas práticas de escrita. Portanto, a partir do ponto de

vista das professoras, uma análise do que escrevem, em que suportes escrevem

e para que situações e finalidades escrevem foi construída.

Quadro 11: A quarta carta

Paris, 14 de maio de 2001. Olá Potira,

Tudo bem com você? Por aqui, vai tudo bem comigo. A primavera chegou e está deixando a cidade de Paris mais colorida e florida. Os dias de sol tem aparecido com freqüência e os passeios nas ruas, nos parques e jardins é uma agradável opção para distrair ou curtir algo diferente, além de amenizar a saudade. Também, gosto de ir ao cinema. Recentemente, assisti “Saudade do Futuro”, uma produção franco-brasileira que revela um retrato da cidade de São Paulo através das improvisações musicais dos repentistas, emboladores e cantadores nordestinos. O filme é super envolvente em função da musicalidade dos poetas de rua e do humor nas improvisações das rimas e dos versos que revelam as várias faces da cidade de São Paulo. Acho que o filme/documentário conseguiu mostrar com sensibilidade a diversidade cultural e musical da nossa região.

Hoje resolvi enviar uma nova carta para você antes de ter recebido sua carta-resposta. Fico imaginando que em função dos afazeres cotidianos você ainda esteja sem tempo para enviar uma resposta para mim. Gostaria que para você, assim como para mim, a carta venha sendo um exercício prazeroso de leitura e de escrita.

Na carta de hoje, pensei em inovar na maneira de dialogar com você. Nas duas últimas cartas, priorizei mais as informações pessoais porque tinha como objetivo fazer com que você conhecesse um pouco sobre mim e minha história, e, ao mesmo tempo, poder conhecê-la melhor através das informações sobre a história profissional e acadêmica, saber das razões pela qual nos tornamos professora, falar de alguns dados pessoais e sobre as nossas famílias, algumas memórias sobre a prática da escrita na infância e na adolescência, etc..

Enfim, acho que terei alguns dados sobre você, sua trajetória profissional e acadêmica que me permitiram ter uma imagem de quem é a Potira, assim como, você também, deve ter alguma imagem de mim, não é mesmo? Ainda teremos outras oportunidades para conversar sobre o que você está me contando nas cartas e, poderemos rever as opiniões e idéias para ir esclarecendo melhor algumas coisas, tá bom?

Bem, hoje gostaria de propor a seguinte atividade para você fazer: registrar sua prática cotidiana de escrita durante dois dias diferentes na semana. Nesse registro gostaria que você considerasse dois aspectos: o que escreve e em que suporte escreve. Para facilitar a atividade, estou encaminhando junto com essa carta um roteiro e duas tabelas

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para que possa lhe servir de orientação. Tente fazer o registro de sua prática de escrita durante um dia inteiro, do instante em que você levanta da sua cama até o momento de retornar para ela, ou seja, envolvendo manhã, tarde e noite.

Com relação aos dias da semana para fazer o registro, penso que seria interessante ter uma idéia da sua prática de escrita cotidiana no contexto do trabalho em sala de aula e no contexto familiar. Assim, penso que você poderia escolher um dia durante a semana (entre a segunda-feira e a sexta-feira) e, o outro dia, por exemplo, poderia ser o sábado. Após ter feito o registro desses dias, gostaria que você enviasse para mim as tabelas. Se você quiser, poderá acrescentar um comentário pessoal em que você fale da facilidade ou dificuldade em realizar a atividade. Sinta-se à vontade para fazer qualquer comentário que desejar.

Seria importante, para que nós possamos compreender melhor sua relação com a escrita, que você não fique preocupada em registrar coisas que não costuma escrever no seu cotidiano. O objetivo da atividade é de melhor conhecer os usos da escrita na sua vida.

Na esperança em estar de alguma forma refletindo sobre a sua prática de escrita é que pensei nessa atividade. Espero que para você seja interessante realizá-la e que suscite outras questões que possam, em breve, ser compartilhadas comigo.

Potira, queria discutir uma idéia com você: no final do ano, vou a Recife e gostaria de encontrá-la. Umas das finalidades desse nosso encontro seria agradecê-la pelo seu envolvimento e compromisso em nossas correspondências. Será também uma oportunidade para esclarecer as possíveis dúvidas sobre todos os assuntos que trocamos nas cartas durante esse tempo. O que você acha da possibilidade desse encontro?

Tenho uma coisa para lhe comunicar: o meu estágio aqui em Paris vai terminar no final de junho e, nesse período, estarei voltando para Belo Horizonte. Por isso, preciso combinar com você o seguinte: se você responder a essa minha carta até meados de junho, poderá enviá-la para mim aqui em Paris. Depois desse período, penso ser melhor enviá-la para o endereço de uma amiga em BH. Acho que oferecendo essas duas possibilidades de endereços você poderá realizar a atividade no tempo que lhe convier e escolher o endereço em função da data do envio da sua carta-resposta. Se você quiser enviá-la para Paris ficarei aqui até final de junho.

O endereço em Belo Horizonte é o seguinte: Emília Lins (aos cuidados de Eliana Borges) Rua Barroso Júnior, 42 Apt. 201 São José Belo Horizonte – Minas Gerais CEP: 31.275-110 Caso você escolha o endereço de BH, gostaria de lhe pedir um favor: você poderia providenciar o selo

nacional? Aqui em Paris tenho apenas selos internacionais. Em nosso encontro, no final do ano, acertarei com você. O que você acha?

Potira, mais outra coisa: estou pensando em, ainda nesse mês de maio, encaminhar a minha última carta daqui de Paris, propondo uma atividade para você realizar com os seus alunos. Ainda não terminei de escrevê-la, mais, em breve, ela chegará até você.

Por hoje, vou ficando por aqui, aguardando sua carta e torcendo para que você consiga realizar um bom trabalho.

Muito obrigada e até breve. Um grande abraço. Obs: Caso você queira enviar a carta através do endereço eletrônico, meu e-mail é: [email protected]

Nessa carta priorizei a explicação sobre a atividade de observação e

preenchimento do quadro. No início compartilhei os acontecimentos, dando

continuidade à relação de proximidade estabelecida nas cartas anteriores. Em

dois parágrafos, busquei justificar a mudança no pacto epistolar, decorrente da

atividade proposta, com o objetivo de estimular as docentes e convencê-las a

realizar a atividade (“pensei em inovar na maneira de dialogar com você”). Assim,

apresentei a atividade como inovação para despertar o interesse e a disposição

em realizar a nova tarefa.

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Minha expectativa foi de obter informações mais próximas da realidade das

práticas de escrita das professoras, mesmo correndo o risco da “artificialidade”

em precisar, quantificar, qualificar práticas tão difusas, embora bastante presentes

na vida cotidiana.

Nessa carta, o tom de informalidade prevaleceu, mesmo que a explicação

do conteúdo assumisse uma forma expositiva, situando os objetivos e a

justificativa da atividade. Essa informalidade pode ser justificada, também, em

função da consolidação do pacto com as docentes, que tendia a uma maior

familiaridade. A escolha do vocativo inicial, do uso de outros vocativos (você, sua,

Potira), a descrição das notícias e a forma da despedida são exemplos da

espontaneidade inerente ao próprio gênero epistolar, ainda intensificado pelas

escolhas realizadas por mim.

Em relação à elaboração do quadro sobre os usos da escrita, experimentei

preenchê-lo durante uma semana com o objetivo de avaliar e analisar as

informações que deveriam ser solicitadas às professoras. Com esse exercício de

escrita pretendia delimitar e priorizar as informações que, efetivamente,

pudessem ser acompanhadas e registradas no quadro, tornando possível e mais

acessível seu preenchimento. Temia que essa atividade fosse avaliada pelas

docentes como “difícil”, por conta da natureza da “invisibilidade” da escrita na vida

cotidiana, e, também, em decorrência do conjunto de habilidades que seriam

requeridas às professoras. Por exemplo, as habilidades de observação, análise e

comparação estariam sendo utilizadas ao selecionar e registrar as informações

sobre a escrita.

Durante a organização do quadro sobre a escrita selecionei as perguntas

sobre “O que escreve?” e “Em que suporte escreve?”. No entanto, após o envio e

durante a análise do quadro, percebi que a questão sobre o “para que escreve”

não havia sido colocada no quadro. Percebendo a ausência dessa questão,

durante a entrevista com as docentes, tentei recuperá-la, elaborando-a no

momento em que fazia comentários sobre o quadro preenchido. Dessa forma,

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consegui que as professoras complementassem o quadro. Uma professora, na

ocasião da entrevista, lembrou que havia realizado a atividade e enviado para

mim, tendo sido sua carta-resposta desviada pelo correio, ela decidiu rememorar

o que havia sido escrito. Posteriormente, as informações obtidas nesse quadro

serão analisadas.

Um quadro com roteiro para guiar o registro sobre a escrita acompanhou a

quarta-carta. Nesse quadro procurei exemplificar as práticas de escrita comuns à

realidade das professoras, evitando apresentar um padrão de escrita baseado na

minha própria relação com a escrita. Portanto, esse quadro revela possibilidades

de práticas de escrita na vida cotidiana.

Quadro 12

Roteiro para guiar o registro sobre a escrita

ASPECTOS A SEREM OBSERVADOS

O QUE ESCREVE 1)lista de compras, anotações do que vai fazer no dia, toma nota de alguma coisa que achou interessante, receitas; 2)pensamentos de desabafo, poesia ou poema, contos, música, cordel, oração, memórias, relatos de acontecimentos; 3)cartas formais e informais, bilhetes, notícias, convites; 4)planejamento de aula, atividades para os alunos, anotações sobre a aprendizagem dos alunos, cartaz ou anúncio; 5)resumo, resenha, texto acadêmico, anotações de aula; 6)outros.

EM QUE SUPORTE ESCREVE 1)folha de papel avulso, agenda pessoal, bloco de notas, agenda de telefone, caderno de receitas, computador; 2)folha de papel avulso, diário, agenda pessoal, bíblia, computador; 3)papel de carta, cartão postal, cartão convite, bloco de notas, computador; 4)diário de classe, caderno de planejamento, quadro, caderno de aluno, formulário oficial, cartolina, computador; 5)folha de papel avulso, caderno de anotações, margem de livro, agenda pessoal, bloco de notas, computador; 6)outros.

Obs: O objetivo desse roteiro é facilitar a descrição de sua prática de escrita, servindo de orientação para o registro. Você pode acrescentar informações, caso sinta necessidade.Tentei organizar essa tabela da seguinte forma: em cada lado da tabela você encontra 6 ítens com várias opções. Na descrição sobre o que escreve, você pode encontrar correspondência com as opções sobre o suporte utilizado para essa escrita.

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Quadro 13

Registro sobre a escrita

REGISTRO SOBRE A ESCRITA DIA DA SEMANA: DATA: / /01

HORÁRIO O QUE ESCREVE EM QUE SUPORTE ESCREVE MANHÃ

TARDE

NOITE

Comentário:

O quadro que deveria ser preenchido pelas docentes foi enviado

juntamente com o roteiro e a quarta carta. As informações deveriam ser escritas

nos espaços em branco, seguindo a sugestão dada. O espaço destinado ao dia e

à data deveriam ser preenchidos pelas professoras, assim como, se desejassem,

poderiam escrever algum comentário.

O envio dessa carta ocorreu em maio de 2001, de Paris. Das 21

professoras apenas 18 receberam essa carta. Essa carta não foi enviada para

três professoras: uma que havia desistido da troca de cartas e duas outras que

tiveram engajamento tardio na correspondência. Entretanto, foi enviada mesmo

para as três professoras que não haviam enviado suas respostas à terceira carta.

4.1. AS CARTAS EM RESPOSTA À MINHA

Apenas nove professoras enviaram respostas a essa carta. Das nove

professoras restantes, uma enviou uma carta sem o quadro, uma outra enviou a

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carta com o quadro e, na mudança de endereços, foi extraviada, não conseguindo

recuperá-la, e a carta de uma outra voltou do correio, acusando problema no

endereço da docente. As seis professoras restantes não enviaram resposta e, na

entrevista, justificaram o tempo e a dificuldade em realizar a atividade. As

respostas à quarta carta começaram a chegar no mês de maio, junho, agosto e

setembro de 2001, em Paris e Belo Horizonte. Uma professora entregou o quadro

no encontro para a entrevista.

Apesar das justificativas dadas pelas docentes, analiso o baixo índice de

respostas considerando algumas hipóteses explicativas: o mês do envio da carta

ocorreu no final do semestre nas escolas, assim como no início do período das

férias das professoras. Como confirmado pelas docentes, durante as entrevistas,

esses fatores contribuíram para a ausência de respostas. Outro conjunto de

elementos que precisam ser considerados relaciona-se à mudança do pacto

epistolar, no momento em que a pesquisadora rompe com o pacto anterior da

revelação pessoal compartilhada entre as correspondentes e propõe uma

situação de atividade em que somente a professora estaria sendo exposta ao

declarar as suas atividades de escrita cotidiana.

Outra hipótese explicativa refere-se à natureza da própria atividade, que

exigiria uma disponibilidade maior da docente, assim como uma observação

atenta de suas atividades – inúmeras, embora diluídas, transparentes,

imperceptíveis – de escrita. Outra hipótese refere-se ao envio em curto espaço de

tempo da quarta e da quinta e última carta, em que se fazia uma nova solicitação

de atividade. O conjunto dessas hipóteses pode auxiliar na compreensão do baixo

engajamento das docentes nessa atividade.

A cartas enviadas possibilitam analisar os usos (o que escrevem), o

suporte da escrita (em que suportes escrevem) e a finalidade (para que

escrevem), a qual foi apreendida, posteriormente, no momento da entrevista.

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5. “GOSTARIA DE PROPOR UMA ATIVIDADE PARA VOCÊ REALIZAR COM SEUS ALUNOS”: A

QUINTA CARTA

A carta anterior instaurou um novo pacto entre as correspondentes com a

solicitação de atividades a serem realizadas somente pelas docentes; a quinta

carta manteve esse princípio na sua proposta.

Durante a análise dos dados obtidos nas cartas-resposta, surgiu o

interesse em confrontar, de um lado, o conhecimento das normas próprias do ato

de escrita expresso nas representações das docentes, e de outro lado, o

funcionamento em ação desse conhecimento sobre a norma da escrita, na

perspectiva da escrita de um outro: o aluno.

Interessava-me compreender como as professoras colocavam em prática

os conhecimentos sobre a norma da escrita (a ortografia, a concordância, a

pontuação, etc.), tomando a escrita do outro como análise. A hipótese era que

operar esse conhecimento tomando por base o seu próprio ato de escrita não

colocaria em evidência seus conhecimentos sobre esses aspectos. Acreditava

que as próprias dificuldades e facilidades das professoras poderiam ser

compreendidas na perspectiva de um conhecimento em ação, operado na análise

da escrita do outro, colocando, assim, as próprias representações,

constantemente apresentadas nas cartas, em análise.

As questões que elaborei e que refletem minhas hipóteses foram as

seguintes: Como as professoras acionam seus conhecimentos sobre as normas

da escrita (ortografia, concordância, pontuação, etc.) ao analisar a escrita do

outro? Ao analisar a escrita do outro, que elementos sobre a norma apontam uma

aproximação com as suas próprias representações sobre as facilidades e

dificuldades com a escrita? Explicitar os limites e as possibilidades com o ato de

escrever possibilitaria aplicá-los para avaliar a escrita do outro? Essas questões

formuladas possibilitam compreender que a quinta carta, além de solicitar uma

atividade mais complexa para as professoras, situava suas preocupações em um

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aspecto das práticas de escrita: as normas e formas do ato de escrever em si

mesmo, e a consciência que as professoras delas possuíam.

A temática dessa carta, embora enfatize um aspecto específico das

práticas de escrita, delineou-se no processo de análise durante a troca das cartas.

Foi em decorrência dos depoimentos das docentes que surgiu a idéia de

estabelecer uma comparação, no que diz respeito a seus discursos e suas

práticas, entre facilidades e dificuldades, prazer e desprazer, o permitido e o

proibido presente no ato de escrever.

Para isso, solicitei três atividades: a primeira envolveu a leitura de uma

carta para os alunos e a escrita de uma carta-resposta deles para mim (ANEXO

4); a segunda consistiu na resposta da professora contando como foi que se

desenvolveu essa atividade na sua sala de aula, e, por fim, solicitei que elas

escolhessem duas cartas de alunos a partir de dois critérios: uma carta que

considerasse bem escrita e outra que considerasse mal escrita. Nessas cartas

elas deveriam avaliar os erros dos alunos e, em seguida, justificar suas escolhas

e procedimentos.

Quadro 14

A quinta carta

Paris, 19 de junho de 2001. Olá Potira,

Espero que tudo esteja bem com você. Como lhe falei anteriormente, essa é a última carta que envio de Paris. Estarei voltando no início de julho para Belo Horizonte e de lá, assim que estiver organizada, pretendo enviar notícias e meu novo endereço.

Na nossa carta de hoje, gostaria de propor uma atividade para você realizar com seus alunos que consiste em duas partes:

A 1a parte envolve a leitura de uma carta para seus alunos e a escrita de uma carta-resposta deles para mim. A 2a parte consiste em você escrever uma carta contando como foi que se desenvolveu essa atividade na sua

sala de aula. Juntamente com essa minha carta, estou encaminhando a carta para os alunos, e como você pode verificar, meu

objetivo é conhecer as formas de comunicação que eles utilizam na família. Gostaria que você lesse a carta para eles e convidasse-os a escreverem uma carta-resposta para mim.

Antes de explicar a 2a parte, gostaria de compartilhar uma idéia com você. Como lhe falei na outra carta, no final do ano, estarei em Recife para encontrá-la e gostaria de conhecer seus alunos. Acho que poderia ter acesso as cartas antes para, nesse encontro com eles, conversar sobre as coisas que pensaram e escreveram na carta. Tive essa idéia como uma possibilidade de resolver a questão do envio das cartas dos alunos para Belo Horizonte. O que você acha desse encaminhamento?

Agora, deixa explicar o que gostaria que você fizesse na 2a parte da atividade, ou seja, sobre sua resposta a essa minha carta. Queria que você contasse como ocorreu a atividade da leitura e escrita da carta na sala de aula. Nesse registro, você poderia descrever o desenvolvimento da situação de aprendizagem com a carta. Fale-me também, dos acertos, dos erros, das facilidades, das dificuldades, as dúvidas, a reação dos alunos, as reflexões sobre a atividade. Enfim, o que você desejar falar e achar legal contar para que possa conhecer como se deu esse trabalho na sua sala de aula.

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Potira, vou pedir mais uma coisa. Depois de realizada a atividade, gostaria que você escolhesse duas cartas de alunos a partir de dois critérios: uma carta que você considere boa (bem escrita) e outra carta que você considere ruim (mal escrita). Nessas duas cartas, gostaria que você realizasse uma correção dos erros que os alunos cometeram durante a escrita, e, em seguida, fizesse uma justificativa, do que considera importante destacar na correção que você realizou nas duas cartas.

Penso que, em nosso encontro, a gente pode conversar sobre essa atividade da correção das cartas e sobre sua justificativa. Gostaria, também, de receber uma cópia escrita dessa justificativa, juntamente com as cartas-respostas dos alunos.

Só mais dois lembretes: -O primeiro é sobre o suporte em que a carta dos alunos poderá ser escrita. Acho que você poderá propor a

escrita da carta no próprio caderno do aluno ou em uma folha de papel avulsa. Em nosso encontro, poderei fazer cópia da carta escrita no caderno ou receber a folha avulsa em que a carta foi escrita.

-O segundo é sobre a atividade da correção. Você poderá fazê-la, da maneira como habitualmente já realiza as correções nas atividades dos alunos em outras situações de aprendizagem. Caso, o aluno escreva a carta primeiro no seu caderno e depois “passe a limpo”, reescrevendo a carta, gostaria que você guardasse todos os rascunhos utilizados por ele e as diferentes versões das correções. Lembre-se que, você só precisará guardar os rascunhos da carta dos dois alunos escolhidos.

Espero que você e seus alunos gostem de realizar a atividade que estou propondo, com o objetivo de continuar refletindo sobre as práticas de escrita. Em breve, estarei enviando notícias de Belo Horizonte para você.

Votos de uma Festa Junina deliciosa! Que não falte a canjica, a pamonha, o bolo de milho, o pé de moleque e um forró bem animado! Divirta-se!

Muito obrigada pelo envolvimento e disponibilidade durante nossa troca de cartas aqui em Paris. Um grande abraço e até breve!

A carta para os alunos seguiu juntamente com a carta para as docentes. O

envio ocorreu em junho de 2001 de Paris. Receberam essa carta 18 professoras,

e, como na carta anterior, três professoras não receberam essa carta.

5.1. AS CARTAS EM RESPOSTA À MINHA

Diferentemente das cartas anteriores, orientei as professoras a escolherem

a forma do envio da carta, utilizando o correio ou entregando a atividade no

encontro para a entrevista. Apenas uma professora enviou a carta no mês de

setembro de 2001 em Belo Horizonte. As outras nove entregaram o material em

Recife. Portanto, dez professoras realizaram a atividade com os alunos. No

entanto, as respostas não envolveram todas as etapas solicitadas na carta. Entre

essas diferentes formas encontramos justificativas orais e escritas sobre a

escolha nas cartas dos alunos. Apenas quatro professoras relataram o modo

como desenvolveram a atividade em sala de aula com os alunos. As razões

apresentadas, na quarta-carta, podem ser utilizadas para compreender os

motivos que levaram as professoras a não responderem efetivamente essa carta.

A análise das respostas reúne material sobre as justificativas orais e

escritas sobre os erros e acertos dos alunos e os relatórios sobre a atividade

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desenvolvida na sala de aula com a leitura da carta para os alunos. No entanto, o

conjunto desse material não foi tratado na análise das categorias sobre as

práticas de escrita.

6. AS ADAPTAÇÕES NAS CARTAS COMUNS E AS CARTAS-EXTRAS

Apesar de o conteúdo e a forma das cartas enviadas apresentarem um

único formato para todas as professoras, alguns elementos particulares foram

incluídos nas cartas, respeitando o diálogo e as demandas próprias de uma troca

epistolar (ANEXO 5).

As adaptações realizadas refletem a arte da conversação própria da

retórica epistolar, em que a marca da oralidade aparece nas expressões

espontâneas que buscam a familiaridade com o outro, como observou Dauphin et.

al. (1995). Através de comentários específicos incluídos no começo ou no final da

carta evocava-se a sociabilidade familiar diante da notícia de saúde de algum

parente, a referência ao tempo e ao espaço da escrita, a referência a outras

atividades profissionais e familiares e as explicações sobre a brevidade da réplica.

Para um grupo reduzido de docentes (ANEXO 6), foram enviadas cartas-

extras. Essas cartas eram respostas específicas aos “desvios” expressos em

novas questões e na ampliação do diálogo com a pesquisadora, tratando de

temas pessoais variados. Assim, a professora que interagia com perguntas e

demandas recebia uma carta-extra da pesquisadora com a finalidade de manter a

dinâmica epistolar.

7. O SUPORTE

Diferentes suportes caracterizam o conjunto das cartas enviadas pelas

correspondentes. Constitui-se de folhas de papel de todo tipo: destacadas do

caderno escolar espiral grande e pequeno, papel de carta, papel dos blocos

padronizados, papel decorado e colorido, papel branco do tipo ofício, de

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tamanhos variados, folhas preenchidas em toda a extensão, na frente e verso do

papel ou em apenas um dos lados, folhas separadas e numeradas para assegurar

que as folhas não sairão da ordem na hora da leitura, reforçando a continuidade

textual. A utilização do espaço na folha é plena de escritas na horizontal, escritas

manuscritas com canetas esferográficas em cores variadas e também escritas

impressas pelo computador, com tinta de cor preta, em geral.

No plano da composição do texto, as cartas eram datadas fornecendo o

lugar, o dia, o mês e o ano. Uma enorme variedade na organização e distribuição

dessas informações no texto da carta se revelou na análise sobre o cabeçalho

das cartas. Verificamos, por exemplo, nas cartas de algumas professoras, a

indicação de uma data, registrando o início da escrita e outra data, indicando o

término da escrita, o que revela momentos sucessivos da escrita, ao mesmo

tempo em que permite acompanhar as rupturas no ato de escrever.

Nas cartas manuscritas, os traços da escrita deixaram as marcas da

borracha e do risco na palavra, indicando, provavelmente, a dúvida com a grafia

correta. Nas cartas impressas a presença desses indícios foi raramente

percebida. Provavelmente, em função do apoio do corretor automático fornecido

àqueles que escrevem seus textos no computador.

Outros elementos considerados nessa análise do suporte revelam-se nas

preocupações das professoras com a escolha do papel, a grafia correta das

palavras, a construção das frases, a organização das idéias que deveriam seguir

a estrutura das solicitações presentes na carta da pesquisadora. Portanto, ao

guiar a escrita das suas réplicas elas expressavam de diferentes maneiras essas

inquietações. Para exemplificar, alguns pedidos de desculpas encontrados nas

cartas das professoras Adriana, Amara e Jacqueline:

P.S – Desculpe pelo “papel de carta” era o único que eu tinha no momento. (1a carta de Adriana) Obs: Só vi esta folha riscada quando terminei de escrever! Desculpa! (trecho final da 3a carta de Amara) P.S. Desculpe os erros, sou uma eterna aprendiz! (trecho final da 2a carta de Jacqueline)

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O depoimento de Amara pode refletir também o pouco tempo para

organizar o material (escolha do papel, caneta, envelope, etc.) para escrever a

carta. Outra razão, confirmada em algumas entrevistas, refere-se à ausência do

rascunho na escrita das cartas, como revelaram Adriana, Socorro Damascena e

Solange, por exemplo, como parece ser o caso de Amara, que demonstra realizar

a escrita da carta de uma só vez, sem utilizar o rascunho para “passar a limpo” o

que escreveu, diferente das professoras Maria, Potira e Luciene, que confirmaram

o uso do rascunho para assegurar a organização das idéias, garantir um controle

na correção da grafia e, ainda, melhorar a disposição das letras no papel, antes

de encaminhar as missivas ao correio.

A forma manuscrita e impressa nas escritas das cartas foi discutida por

Jacqueline, que justificou sua escolha, ao abandonar o computador, em razão do

racionamento de energia vivido, naquela época, no país, como ela escreveu:

Aqui no Brasil todos os jornais só falam sobre o racionamento de energia, por isso resolvi economizar também e estou lhe escrevendo à mão está carta, mesmo correndo o risco de errar mais e até de você não entender alguma palavra. (minha letra não é boa). (trecho do início da 4a carta de Jacqueline)

Interessante perceber, no conjunto das cartas de Jacqueline, que,

exatamente, nessa carta manuscrita, a professora dedicou uma folha inteira (de

duas folhas de ofício) ao desabafo em relação à situação da saúde do seu filho.

Ela expressou suas preocupações com as consultas, os exames e os

medicamentos a serem cumpridos, a angústia e o cansaço com esse

acontecimento. Portanto, a escrita manuscrita nessa carta serviu de estímulo para

a expressão das emoções, diferente das cartas anteriores, todas digitadas no

computador e com menor nível de exposição do seu cotidiano como mãe. Esse

relato assume a característica da confissão, da intimidade, embora, após o

desabafo, ela tenha apresentado um pedido de desculpa no final do depoimento:

Desculpe sei que você não tem nada com isso mas, precisava desabafar de alguma forma pra ver se me volta o sono... Sem mais Jacqueline (24/05/2001) (trecho final da 4a carta de Jacqueline)

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Algumas professoras anunciaram a dificuldade em responder as cartas de

modo semelhante à pesquisadora, que utilizou a forma impressa em todas as

suas cartas, enquanto outras sugeriram o envio da carta através da mensagem

eletrônica, como modo de assegurar a recepção da sua resposta.

Ps: não tenho computador (1a carta de Ivana) Ps: Desculpe profa Emília por ter usado a escrita manual ao responder sua carta, não sei se entenderá minha letra. Não sei lidar, ainda, com computador, pretendo fazer um curso; até para ajudar meus alunos (trecho da 1a carta de Edileusa) Professora, se preferir, pode responder através de e-mail, um abraço (...) Obs: Estou enviando a carta, pois não sei se a senhora conseguiu abrir via-internet. (trecho da 3a carta da Maria) Com certeza, a diversidade dessa rede de correspondência levaria a uma

variedade de considerações em torno da discussão sobre os suportes desse

gênero de escrita e dos outros que foram aparecendo no decorrer da dinâmica

epistolar. No entanto, os limites dessa análise asseguram de modo parcial as

observações aqui discutidas.

8. DO LUGAR DA ESCRITA À LEITURA DAS CARTAS

As referências de onde escrevem indicam o local de trabalho e, na maioria

das vezes, a residência das professoras. Na escola, elas escrevem as cartas na

sala de aula, no momento da reunião pedagógica ou durante a capacitação

profissional. As cartas da professora Socorro Damascena ilustram esse cenário

em dois momentos: no trecho final da 1a carta e em um pedaço de papel reunido

ao envelope da 2a carta. Quando justificou a ausência do tempo para “passar a

limpo” as cartas, ela afirmou: “Não tenho tempo para corrigir e repassar esta carta

pois estou na sala de aula.” e, em outro momento, ela anunciou: “Estou em

capacitação. Infelizmente não tenho tempo de passar a limpo suas cartas”.

Raramente, as professoras revelavam as cenas sobre o momento da

escrita da carta e sobre as condições da sua elaboração. No entanto, Elaine

apresentou momentos distintos ao iniciar a escrita no dia 03 de agosto de 2001 e

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finalizá-la na manhã do dia seguinte, vindo a realizar sua postagem no dia 06 de

agosto do mesmo ano. No trecho final da sua carta ela escreveu:

Bom, vou terminando por aqui pois tenho um monte de coisas para fazer (dormi antes de acabar a tua carta e agora portanto é sábado de manhã) mas resolvi acabar logo de escrever porque já esta ficando indecente a demora nas respostas. Aguardo nova carta em breve e seja bem vinda ao Brasil. Um abraço: Elaine (trecho final da 4a carta de Elaine, datada em 03/08/01 e postada no dia 06/08/01)

Em outro depoimento, da professora Jacqueline, na mesma carta analisada

anteriormente, verificamos que o momento da escrita das cartas estava reservado

à madrugada, após o descanso do filho. Nessa carta, também observamos a

ruptura com o ato de escrever, sugerindo que a finalização do texto ocorria em

momentos sucessivos de escrita, quando ela indicou datas diferentes para o início

e o término da escrita.

Emília, sempre respondo suas cartas quando Davi está dormindo e hoje ele não dormiu muito, por isso são 02:30 da madrugada da quinta-feira (24/05/01) e perdi o sono quando levantei para que Davi tomasse a dose do antibiótico (CEFALEXINA) da meia noite (24:00hs) (trecho da 4a carta de Jacqueline, datada no início em 23 de maio de 2001, no final com a data do dia seguinte e com postagem em 29/05/01)

Quanto à leitura das cartas, observamos em vários momentos que as

docentes guiavam os conteúdos a serem considerados nas respostas, revelando,

inclusive, de modo indireto, que a escrita das cartas se orientavam nas

solicitações da pesquisadora, como nos revelam os trechos seguintes:

Desde que li e reli sua carta (trecho da 4a carta de Jacqueline). Vamos ao que interessa, não?!! (trecho da 1a carta de Solange). Sim! Vamos às respostas?! (trecho da 3a carta de Ivana). Falando um pouco mais de mim, na tentativa de ir organizando minha memória (...) Voltando a falar da minha infância na relação com a escrita (trechos da 2a carta de Socorro Barros). Quanto a minha experiência profissional (...) Quanto a minha formação acadêmica (trechos da 2a carta de Socorro Damascena). Você pediu para dizer um pouco de mim como profissional e quanto a formação (...) Talvez tenha escapado algum ponto. Então aguardo novas perguntas e novos comentários (trechos da 2a carta de Elaine). Eu vou começar a te responder pelo final da carta (...) Voltando as tuas cartas e deixando as perguntas indiscretas para daqui a umas duas cartas, vou responder ao seu “diário” (caderninho?!) (trechos da 3a carta de Elaine). Como você falou no final da última carta sobre como me tornei professora, vou recomeçar daí (trecho da 4a carta de Elaine).

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9. DA CARTA À DIVERSIDADE DE EVENTOS DE ESCRITA

No decorrer da troca de cartas uma diversidade de outros gêneros

epistolares (cartão postal, cartão de Natal, mensagem eletrônica) e outros textos

(convite, legenda na fotografia, memória, mensagem, citação) expandiu o diálogo

epistolar. Com o objetivo de estreitar os laços entre as missivistas, esses outros

objetos epistolares serviram ainda como forma de manutenção do pacto epistolar.

A pesquisadora enviou fotos, cartões postais e e-mails e as docentes adicionaram

às suas réplicas recorte de jornal, cartão de Natal, cartão-postal, fotografias, e-

mails, memórias, e, durante as entrevistas, compartilharam o diário de classe, um

artigo sobre experiência publicada em revista, um texto com reflexões

profissionais, poesias, acrósticos e jornal publicado na escola.

A finalidade dos cartões-postais foi manter uma proximidade com as

docentes, assegurando um desvio da situação “experimental” para uma relação

informal entre as correspondentes. Nessas ocasiões, tratava-se das novidades,

do estágio de estudo em outro país, da cidade de Paris, das impressões sobre as

pessoas. O envio dos cartões-postais ocorreu acompanhado ou não das cartas.

Assim, apenas o segundo cartão-postal foi enviado conjuntamente com a quinta

carta. Os outros (o primeiro e o terceiro) foram enviados em momentos diferentes

do envio das cartas. Os cartões foram enviados para todas as professoras,

enquanto as fotografias foram enviadas somente para as docentes que, nas suas

réplicas enviaram suas fotos.

Por iniciativa das docentes, as fotografias acompanharam as cartas,

motivadas pela necessidade de conhecer o outro para o qual se escreve através

da imagem. Eram fotografias coloridas, em preto e branco, fotos 3x4, impressas

na própria carta, com data e legenda manuscrita, apresentação das filhas, do

bairro onde moravam, com imagens do passado, de uma viagem a outra cidade

nas férias, reunidas às cartas num mesmo envelope. Duas professoras, Dulce e

Angélica, enviaram fotos 3x4 impressas no papel da carta e, na sua justificativa,

Angélica explicou sua iniciativa:

Ps: Estou “scaneando uma fotografia, pois acho que fica melhor falar com alguém que pelo menos se tem idéia de como seja e além do mais, acho que você me conhece. (trecho final da 1a carta de Angélica, escrita em 02 de outubro de 2000)

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A professora Ivana, na sua 2a carta, também enviou uma fotografia sua e

da filha, trazendo no verso uma legenda explicativa. Na carta ela antecipava a

fotografia e explicava os motivos do seu envio.

Obs: mando uma foto minha, penso que será legal me conhecer melhor. (trecho final da 2a carta de Ivana escrita em 13 de fevereiro de 2001)

FIGURA 2

Nesse contexto, a pesquisadora aceitou o pacto estabelecido pelas

professoras Dulce, Angélica e Ivana e, no dia 17 de março de 2001, enviou

fotografias legendadas manuscritas, com algumas variações no texto:

Paris, 17/03/01 Oi Dulce, Gostei muito da foto que você enviou para mim. Fiquei com a impressão de te conhecer e talvez você possa tirar essa dúvida através da foto que te envio. Essa foto foi tirada numa das pontes do rio Sena. Foi um dos meus primeiros passeios a pé descobrindo a cidade. Apesar de tempo nublado e frio, lembro-me que estava encantada com tudo o que via. Um abraço, Emília. (legenda na foto enviada pela pesquisadora)

Legenda no verso da fotografia enviada pela professora Ivana enviada junto à sua 2a carta.

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Paris, 17/03/01 Oi Angélica, Faz tempo que estou para enviar um foto minha para você. Como você já me conhece, vai perceber que estou um pouco diferente nessa foto, mais gordinha (por causa do casaco, viu), mais branca e com o cabelo curto (novo look para a viagem). Estou numa das lindas pontes de Paris, sob o rio Sena, no final de outubro do ano passado. Foi um dos meus primeiros passeios a pé, descobrindo a cidade e lembro-me que apesar do tempo nublado, fechado e frio estava encantada com tudo o que via. Um abraço, Emília (legenda na foto enviada pela pesquisadora) Nas suas réplicas as professoras Dulce e Ivana registraram com emoção a

recepção dos novos objetos epistolares. No final da carta, Ivana manteve o pacto

estabelecido com a pesquisadora, antecipando no texto a inclusão das novas

fotografias reunidas à sua carta. As legendas nas fotografias acrescentaram e

ampliaram os significados às imagens escolhidas para apresentar o bairro em que

morou e onde se localizava a escola em que trabalhava, como revelam os trechos

das cartas e o quadro com as legendas das fotografias:

Olinda, 26 de março de 2001 Cara amiga, Emília Estou muito bem graças as bênçãos de Deus, e você? Fiquei também emocionada com suas cartas, cartão e foto, acho você com uma fisionomia conhecida. O conhecimento entre as pessoas às vezes é de outras, vidas concorda? Eu acho que te conheço também do Centro de Educação. (trecho do início da 4a carta de Dulce)

Adorei a última carta e a resposta da foto, você é muito simpática (trecho do início da 3a carta de Ivana, escrita em 21 de abril de 2001) Olha vou ficando por aqui. Sim! Estou enviando uma foto daqui do Pina, a comunidade onde morei à trinta anos e onde trabalho hoje. (trecho final da 3a carta de Ivana, escrita em 21 de abril de 2001)

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Foto 1: Bairro do Pina enviadas pela professora Ivana na sua 3a carta

Legendas das fotos ao lado

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O cartão-postal, solicitado pela professora Angélica, se estendeu a todas

as professoras da pesquisa, que também receberam postais com imagens da

cidade de Paris e, posteriormente, de Belo Horizonte, com o objetivo de atender o

pedido da docente e, ao mesmo tempo, estreitar os laços entre as

correspondentes. Esse pedido incentivou a pesquisadora a iniciar o envio dos

cartões-postais com a expectativa de estimular as participantes, mantendo-as na

rede de correspondências.

Ps. Caso fosse possível, você poderia enviar-me um postal de Paris ou de qualquer lugar da França? (trecho final da 2a carta de Angélica escrita no dia 08 de novembro de 2000)

Nos cartões-postais diferentes paisagens e imagens escolhidas

completavam as mensagens escritas. No dia vinte e dois de novembro de 2000, a

pesquisadora enviou para todas as professoras cartões-postais da cidade de

Paris, tendo no verso o texto manuscrito que revelava a chegada na cidade, as

expectativas em relação ao estudo e anunciava a próxima carta às professoras.

Cartão Postal enviado pela pesquisadora

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As reações das professoras foram expressas por frases como: “Adorei o

postal!” e “Muito obrigada pelo cartão postal e um forte abraço”. Outras reações

das professoras, indiretamente, no corpus das cartas, indicavam: início com

informalidade, mais informações sobre os aspectos pessoais, do cotidiano e das

novidades, enquanto que a entrada no conteúdo sobre a temática da pesquisa

aparecia na metade e no final do texto da carta.

Outros dois cartões-postais foram enviados às docentes, na partida de

Paris e na chegada a Belo Horizonte, com os seguintes textos:

Quadro 15

Cartões Postais

CARTÃO 2 – SAÍDA – PARIS

Paris, 20/6/01 Querida Abda, Tudo bem com você? Estou na contagem regressiva para a minha viagem no próximo dia 9/7 para BH. Nessas últimas semanas, venho finalizando as atividades do estágio e, também, vivenciando a despedida da cidade. Durante esse período, foi muito gratificante e prazeroso nossa troca de cartas. Muito obrigada por tudo! Desejo que o São João seja bem animado para você e sua família. Um grande abraço e beijos, Emília. CARTÃO 3 – CHEGADA – BELO HORIZONTE

BH, 30/07/01 Querida Abda,

Tudo bem com você? Adorei receber sua carta e conhecer um pouco mais sobre você. Para mim, está sendo legal nossa troca de cartas.

Cheguei a uns 15 dias em BH e estou saboreando as coisas boas, matando a saudade dos amigos e da cidade. Nos primeiros dias, sentia que estava “desfusorada” porque só sentia sono e fome no horário de Paris. Agora já estou no maior pique e trabalhando bastante.

A saudade de Recife, dos familiares e amigos ainda é enorme mas, em breve, estarei chegando por aí.

Assim que puder envia notícias para mim, tá? Saudades e um grande abraço, Emília.

A professora Potira, no final da sua 4a carta, agradeceu os cartões postais

recebidos e finalizou escrevendo:

Agradeço pelas notícias sobre a França como também os cartões postais, adoro ele. Abraços! (final da 4a carta de Potira).

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A professora Dulce, junto a sua última carta, enviou um cartão postal da

cidade de Olinda ao responder sobre a atividade das cartas com os alunos.

Interessante observar que a utilização do espaço limitado do cartão serviu para

justificar a ausência do relatório sobre a atividade da correção das cartas dos

alunos, solicitada na 5a carta da pesquisadora. Talvez, esse “desvio” no uso do

cartão postal, por um lado, revele a dificuldade exigida na execução da atividade

como anteriormente discutido. Por outro lado, sua iniciativa pode ser

compreendida como um gesto de agradecimento e retribuição aos cartões

recebidos.

Cartão Postal enviado pela professora Dulce no dia 10/09/01

junto às duas cartas

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Os cartões de Natal, com imagens diferentes, enfatizavam o espírito da

época festejada. No entanto, a imagem escolhida pela professora Márcia trazia

um vitral de uma igreja em uma cidade da França e a mensagem escrita com

caneta esferográfica de cor ocupava o espaço em branco destinado à expressão

espontânea do remetente, enviado de modo independente em envelope e

postagem providenciados pela docente, enquanto que no cartão enviado por

Maria das Dores o texto impresso servia como mensagem, sendo incluído apenas

uma frase e a assinatura da professora, como podemos observar nos seguintes

cartões:

Cartões de Natal enviados pelas professoras Márcia e Maria das Dores

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Ampliando essa rede de escrita, acompanhamos vários outros suportes e

conteúdos de escrita, no decorrer da troca de cartas. Logo na 1a carta da

professora Jacqueline ela enviou um recorte de jornal em que solicitava que a

pesquisadora divulgasse a notícia do prêmio recebido pelo desenvolvimento de

um projeto na escola em que trabalhava. Ela destacou a notícia do jornal Diário

de Pernambuco, veiculado no dia 22 de outubro de 2000, realçou o seu nome na

notícia e escreveu acima da notícia seu pedido de divulgação, como observamos:

Segundo Lacerda (2000), a citação é uma característica identificada entre

as memórias, diários e autobiografias, e poderíamos acrescentar que, no caso

dessa correspondência, com interfaces nesses outros gêneros textuais, também a

citação se fez presente em diferentes momentos nas cartas das docentes. Para

Walter Benjamim in Otte (1996, p. 212) apud Lacerda (2000, p. 91), a citação é

uma das muitas formas de conexão com certos pontos de vista ou afinidades

Notícia retirada do jornal Diário de Pernambuco – Caderno Vida Urbana - Recife, domingo, 22 de outubro de 2000

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intertextuais. Alguns exemplos revelaram como a citação se baseava no universo

das leituras ou das experiências e sociabilidades das professoras.

(...) plagiando Chicó (personagem de Ariano Suassuna no Auto da Compadecida). Não me pergunte mais nada, só sei que foi assim... (trecho da 2a carta de Jacqueline)

Gosto muito da comparação do José Paulo Paes na poesia Convite: “As palavras são como as águas do rio que são sempre novas” (trecho da 1a carta de Solange).

(...) espero adquirir, como diz o ditado popular: nunca é tarde... (trecho da 1a carta de Potira)

Emília, esse versinho biblíco é para sua meditação: “O Senhor é a minha luz e a minha salvação; a quem temerei? O Senhor é a força da minha vida de quem me recearei? Salmos 26:1 (trecho final da 3a carta de Adba)

10. O tempo de escrever

O fluxo da organização temporal das cartas enviadas e recebidas revelou

que o tempo de elaboração entre uma carta e outra e entre uma carta e sua

resposta foi, tanto em relação às professoras quanto à pesquisadora, bastante

variado.

Inicialmente, considerando o processo de escrita das cartas pela

pesquisadora, verificamos que o tempo da elaboração entre a primeira e a

segunda carta ocorreu em um período de três meses, apenas para as sete

professoras que iniciaram a pesquisa. As demais docentes que se integraram ao

pacto, posteriormente, encontraram a segunda carta elaborada, tendo seu envio

seguido imediatamente após o recebimento da carta-resposta. Quanto ao tempo

utilizado entre a segunda e terceira carta, um período maior para sua preparação

foi necessário. Para as primeiras sete correspondentes, engajadas na troca

epistolar, sete meses decorreram entre uma e outra carta, e, em seguida, esse

período diminuiu para cinco meses para um segundo grupo formado por seis

professoras, e para quatro meses para o último grupo constituído de seis

professoras.

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Nas cartas das docentes, alguns depoimentos refletem uma reação

decorrente da própria natureza do pacto epistolar, em que apresentar os pedidos

de desculpa consiste num ritual próprio do estilo desse gênero, mesmo que, a

resposta tenha sido enviada com brevidade. Nesses casos, a correspondente

reporta-se ao que pode ser considerado como o “tempo subjetivado” da espera de

uma resposta, tornando compreensiva essa atitude ao iniciar a carta. Nesse

sentido, a postura atenciosa de Elaine revelou que, apesar de ter enviado a carta

rapidamente (recebeu a carta no mês de setembro, escreveu no dia quatro de

outubro e a postagem acusou o envio no mesmo mês e ano), ela iniciou sua 1a

carta-resposta apresentando as razões do que considerou ter sido um processo

longo, entre o prazer de ter recebido minha carta e a vontade de ser prontamente

recebida e lida pela pesquisadora, devolvendo-lhe a mesma sensação prazerosa

no encontro com a carta.

Cara Emília Antes de mais nada, desculpe a demora da resposta. Sua carta chegou em um momento de sufoco em casa e no trabalho e só agora tenho tempo para respondê-la (trecho inicial da 1a carta de Elaine).

Portanto, a demora a que se refere Elaine diz respeito, principalmente, à

atitude da espera de uma resposta e a conseqüente curiosidade que a próxima

carta incita no seu destinatário.

Além do tempo na elaboração, deve-se contar ainda com o tempo do

percurso da carta que seguia entre uma cidade e outra, entre um país e outro. No

conjunto das docentes, poucos problemas foram relacionados com a instituição

do correio. Chamaram atenção, no entanto, alguns casos de atraso no

recebimento das cartas, como, por exemplo, o caso de Adriana, que acusou o

recebimento no início da sua carta postada em janeiro de 2001, afirmando que

“há pouco tempo, mais de uma semana” tinha recebido minha carta. No entanto,

em Paris, o envio da minha carta registrou o mês de novembro, ou seja, dois

meses entre a carta enviada e sua resposta. Portanto, parece que, nesse caso e

em alguns outros, ocorreu dificuldade do correio em função do movimento intenso

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de correspondências nos últimos meses do ano, em decorrência das

comemorações vivenciadas na passagem das festas natalinas e da chegada do

novo.

Recebi sua carta há pouco tempo mais de uma semana mas só agora estou podendo responder. Elaine já havia me dito que você talvez me escrevesse e eu já estava, por isso, esperando notícias suas. Fico contente em saber que vou, de alguma forma, poder contribuir para suas pesquisas e por isso aceito seu convite e me sinto honrada com ele (trecho do início da 1a carta de Adriana).

Apesar dos três meses na elaboração e envio das duas primeiras cartas

pela pesquisadora não ocorreu reação de estranhamento das docentes. Uma

explicação para essa ausência de referências ao tempo, possivelmente, deve-se

ao aviso acusando recebimento que foi enviado para as primeiras professoras a

se engajarem prontamente à rede de correspondências. Para esse grupo, foi

necessário esse recurso, pois permitiu manter o pacto entre as correspondentes.

No entanto, as primeiras justificativas na elaboração entre essas duas

cartas (a primeira e a segunda) começaram a surgir nas respostas das docentes.

Alguns depoimentos trazem o sentimento de “estar em débito” com a

pesquisadora, quando passavam três a quatro meses para responder a carta.

Nesse sentido, nos relatos de Maria e Adriana, encontramos os acontecimentos

cotidianos relacionados à família ou ao trabalho como os motivos pela demora da

carta.

Peço desculpas pela demora desta, pois estava passando por momentos de grande dificuldade na minha família, com problemas de saúde, mas graças a Deus as coisas melhoraram um pouco. Fico feliz de você não ter desistido de mandar cartas para mim, pois continuo com imenso interesse em desenvolver um trabalho com você, principalmente após ter lido e conhecido melhor sua experiência com a escrita e confesso que realmente me identifiquei com várias situações da qual você passou (trecho do início da 2a carta de Maria). Professora, segue o meu e-mail, caso você deseje se comunicar comigo via e-mail, pois assim será mais fácil e rápido podermos nos comunicar. Aguardo notícias (trecho final da 2a carta de Maria). Estou te devendo um milhão de desculpas e quase a mesma quantidade de respostas. Para minha vergonha, sou obrigada a confessar que recebi tua carta de Paris. Aliás, recebi todas elas. Nem lembro mais quando foi que eu te escrevi, mas quero que você saiba que continuo disposta a participar das tuas pesquisas e

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a tentar te ajudar no que for possível. Realmente o meu semestre foi muito atribulado, embora não tenha havido nenhum problema. Foi apenas muito trabalho. (...) Como faz muito tempo que eu não te escrevo não me lembro mais sobre o que eu já falei ou não em relação à escrita na minha vida, por isso vou escrever um pouco sobre isso. Se eu me repetir em algo você desculpe-me (trecho do início da 2a carta de Adriana).

O motivo atribuído à dificuldade em escrever justificou as tentativas na

elaboração da carta-resposta de Ivana, como ela afirmou:

Emília, ensaiei algumas cartas para te enviar, mas não conseguia terminá-las pois as achava mal elaboradas (muita insegurança). Fiquei preocupada em perder contato com você, pois como já disse antes, senti afinidade por sua pessoa (trecho inicial da 2a carta de Ivana).

As professoras Amara e Márcia reagiram ao tempo prolongado na resposta

da pesquisadora, em relação à elaboração da 3a carta, demonstrando

estranhamento e expectativa com a chegada da carta.

Tudo bem com você? Pensei que tinha acontecido algum imprevisto e que minha carta não tinha chegado até você. Quando sua carta chegou eu estava naqueles momentos da vida em que você acha tudo horrível na vida. A mesmice, nada diferente e naquele momento fiquei com muita inveja de você, que podia está longe daqui, com acesso a coisas diferentes, porém o momento passou e tento me convencer que a vida é assim mesmo, cada um com a sua, cada um com seus sonhos, desejos e também com o que conseguiu tornar realidade. Como você pode perceber na minha vida, “principalmente”, “profissionalmente” não houve muitas mudanças (trecho inicial da 3a carta de Amara).

Oi Emília! Como vai? Sei que estou em falta com você, mas em momento algum pensei em deixar de lado nossa troca de experiências, mesmo porque tem sido muito legal o exercício de escrever, pois como já disse antes depois que terminei a faculdade uma das coisas que senti falta foi de escrever e agora me sinto “desenferrujando”. Confesso até que tive vontade, no começo de ano, de te escrever uma carta “desaforada” cobrando uma resposta, mas agora estou sem moral... Quero começar me justificando um pouco meu atraso. Este ano aconteceram algumas coisas que modificaram minha rotina e como eu sou lenta pra me acostumar com as coisas, fiquei um pouco “desbaratinada” (trecho do início da 3a carta de Márcia).

A professora Dulce, ao contrário dos depoimentos anteriores, expressou

uma reação em que reconhece para si a “demora” no envio da sua resposta a

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essa carta36, apesar da sua elaboração ter ocorrido no mesmo mês do

recebimento.

Você deu notícias rápido, eu sim é que demorei para te responder. É natural que você demore a se organizar, pois a terra é estranha, o povo, os costumes, até você se adaptar é assim, demora um pouco, não se preocupe. Eu demorei muito para te responder porque este ano começou hiper movimentado para mim e minha família. (...) É um desafio para você escrever e para mim responder pois tenho 3 jornadas de trabalho, 2 em escola e 1 em casa e lá pelas madrugadas ainda rola o amor! Pense nisto! (...) Mil desculpas, pelo atraso, foram as coisas da vida. Um abraço carinhoso da amiga Dulce (trechos do início e final da 4a carta de Dulce).

Angélica justifica o tempo, apontando aspectos das estratégias para

escrever a carta. Para ela, escrever requer tempo para elaborar a carta de uma só

vez, sem interrupções. Com isso, ela sugere que não utiliza rascunho e que

redige sua carta diretamente na tela do computador (todas as cartas de Angélica

foram impressas).

Antes de qualquer coisa quero pedir desculpas pela demora em te escrever, mas é que eu tenho andado muito ocupada, deixa eu começar a te explicar que logo você vai entender o que eu digo. Eu acho interessante quando você fala da dificuldade em escrever diante do papel em branco, em iniciar a conversa com alguém que você “não conhece”, acho até engraçado, pois apesar de ter dificuldade em escrever, eu não sinto nenhum problema em escrever para você. Muito pelo contrário, eu tenho tanta coisa para falar, para contar o que vem acontecendo comigo, para perguntar que eu é que não sei nem por onde começar. Um dos motivos de ter demorado a escrever também foi este, pois não queria começar e ter que parar, queria escrever toda a carta e sabia que iria tomar tempo e que não dispunha deste tempo todo. Mas hoje eu disse para mim mesma, a primeira coisa que faço hoje ao sair da cama é sentar ao computador e redigir tua carta, e é isto que estou fazendo. (trecho do início da 3a carta de Angélica)

Uma das conseqüências do tempo prolongado entre uma carta e outra,

entre uma carta e sua resposta, pode resultar na perda do sentido para a

manutenção do pacto epistolar, pois, em decorrência do esquecimento sobre o

que foi dito/escrito, a perda de motivação vai-se instalando nas razões que

justificavam o engajamento da docente. O depoimento de Potira expressou essa

36 Deve-se considerar que a professora Dulce enviou e recebeu carta-extra, elaborada entre a 2a e 3a carta padrão e comum a todas as docentes da pesquisa. Portanto, essa quarta carta enviada por ela corresponde, na verdade, à resposta a minha 3a carta.

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perda de sentido na realização da atividade solicitada na última carta, em

decorrência da demora na elaboração da sua carta-resposta.

Recebi seu cartão, gostei muito. Tanto tempo se passou e não respondi suas cartas, estou em débito com você em relação as atividades que pediste, fiquei adiando pelos atropelos do cotidiano, veio o recesso e agora penso que não tenho mais pique nem sentido para responder-lhe. A última atividade fica um pouco difícil, pois estou com uma sala de ensino infantil (trecho inicial da 4a carta de Potira).

Em suma, apesar de reconhecermos que o tempo da elaboração das

cartas foi variável e prolongado para algumas cartas, grosso modo, podemos

verificar que o aviso de recebimento, os cartões-postais e, para algumas

professoras, as fotografias contribuíram para a manutenção do pacto epistolar

entre as correspondentes.

11. O tempo e as condições para escrever

A maioria das professoras apresentou justificativas em relação à “falta de

tempo” para escrever. Essas justificativas têm como pressuposto a crença de que

escrever exige tempo, calma e tranqüilidade.

Para a maioria das professoras escrever as cartas foi uma tarefa difícil,

pelo esforço em organizar o tempo, diante da dupla ou tripla jornada de trabalho,

em que fazem parte as atividades domésticas, o cuidado com os filhos, as

atividades profissionais e da formação. No entanto, elas criaram condições para

escrever nas folgas entre uma e outra atividade e até mesmo nas madrugadas.

Esse resultado encontra algumas hipóteses explicativas no trabalho

realizado por Christine Garbe (1993), que analisou os sentidos dos investimentos

de leitura de um grupo de mulheres de 30 a 50 anos de idade. A autora verificou

que a maioria das mulheres coloca de lado suas próprias expectativas e desejos a

favor da família. Apesar das múltiplas conseqüências na relação com a leitura, as

mulheres procuram refúgio no cotidiano, elaborando estratégias para superar

essas condições. Algumas mulheres desenvolvem a capacidade de ler nos

instantes livres; outras podem ler, em um mesmo espaço, enquanto o marido e os

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filhos se distraem na televisão; outras, ainda, aproveitam a ausência dos

familiares (geralmente pela manhã) para realizar suas leituras preferidas.

Portanto, na esfera doméstica, a leitura ocorre como uma alternativa em uma

“relação de concorrência” (p.201) no convívio familiar, em que renunciam,

freqüentemente, a sua individualidade em favor dos desejos da família.

No caso desta pesquisa, algumas docentes também apresentaram atitudes

e comportamentos semelhantes diante da escrita, como ilustra a reflexão de

Socorro Barros:

Bom dia Emília! Sei que aguardava notícias antes, mas agora que consegui organizar melhor minha cabeça para escrever. Isto devido a tantos encontros e desencontros da vida cotidiana. Imagine você o que significa ser mãe de um filho único de 11 anos que está sempre solicitando atenção, ser dona de casa, trabalhar fora e estudar à noite com todas as exigências de trabalhos acadêmicos como você bem sabe. Pois é, essa é a minha ciranda cotidiana que tenho dá conta dela e ainda arranjar tempo pra ser feliz. Bom, isto também não chega a ser um sufoco total, também organizo meu tempo dentro disso tudo para respirar e descobrir o sentido destas coisas em minha vida. Com isto quero apenas me justificar pelo tempo que passei sem dar notícias e também para que me conheça melhor. Pois já acrescentamos algumas informações que me pede o tempo é um dos grandes impedimentos da minha escrita com maior clareza, precisão e mesmo inspiração. (trecho inicial da 2a carta de Socorro Barros)

A maneira de se relacionar com a escrita serviu para as professoras

Luciene e Ivana justificarem o tempo e as condições para escrever. Para elas, a

relação de dificuldade com a escrita explica a própria elaboração da carta, como

ilustram seus depoimentos:

Peço-lhe desculpas pela demora em lhe escrever, pois saiba que uma das minhas dificuldades é iniciar a escrita de um trabalho, até mesmo de uma carta. Oh! Como é difícil. Mas receber suas cartas é gratificante, porque revivo lembranças de minha infância, adolescência e vida adulta. (trecho do início da 3a carta de Luciene)

Olá, Emília, como vai? (...) Demorei pra responder porque ando bastante atribulada e com muitas “caramiolas” na cabeça ... lembra dessa palavra, né? As caramiolas são reflexos dos meus questionamentos quanto mulher, guardados a sete chaves. Sinto que preciso dar passos largos e ousados, pois o tempo está passando (trecho do início da 3a carta de Ivana).

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Sabe, fiquei com fome de escrever depois que comecei. Emília, estou sentindo cada vez mais uma soutura no ato de escrever e principalmente quando escrevo para você. Eita! Até rimou! Olha vou ficando por aqui. Sim! Estou enviando uma foto daqui do Pina, a comunidade onde morei à trinta anos e onde trabalho hoje. Tchau! Um grande abraço. Ivana Obs: Você está me fazendo escrever as cartas que não escrevi desde a adolescência (...) (trecho final da 3a carta de Ivana).

12. A progressão da formalidade para a informalidade

Além do uso do vocativo inicial e a forma da despedida, analisados

anteriormente, outros elementos indicam uma aproximação progressiva entre as

correspondentes, na passagem da formalidade para a informalidade nas cartas.

Esses elementos se revelam de diferentes maneiras: nas novidades e

preocupações cotidianas compartilhadas e nas demandas e pedidos à

pesquisadora.

Freqüentemente, ao término das cartas, as professoras procuravam manter

o pacto epistolar através da expressão dos sentimentos de confiança, na

disponibilidade em dialogar com a pesquisadora, estendendo as reflexões para

temáticas diferentes e, ainda, formulando demandas na realização de algum

projeto pessoal ou profissional, como revelaram inúmeras das suas missivas.

Elaine, por exemplo, finalizou suas cartas de maneira a deixar “pretextos” para

que novas cartas retornassem com brevidade, e Socorro Barros sugeriu assuntos

que indicavam o conteúdo da próxima réplica.

São tantas as coisas que coloquei aqui e talvez tivesse algo mais a dizer. Mas, pensando bem, é melhor deixar para a próxima, como um pretexto para você devolver com novas perguntas (trecho final da 1a carta de Elaine).

Na próxima carta gostaria de comentar a minha relação c/ a leitura a ter que enfrentar a elaboração de projetos e relatórios. Quanto a Faculdade, estou terminando o Curso de Pedagogia este ano, outro ponto que gostaria de falar mais na próxima carta. Quero finalizar dizendo que fico contente em poder contribuir com sua pesquisa e ao mesmo tempo me beneficiar dessa reflexão com esses pontos que vou refazendo um pouco da minha história e descobrindo os significados na minha vida.

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Esse é também um encontro bastante delicado quando se trata quase de um momento terapêutico ao passo que vou abrindo um baú para tirar coisas a tanto tempo guardado e hoje na memória vou descobrindo o quanto isto significou nos limites e avanços de minhas capacidades. É preciso estar disposta a falar dessas coisas e recolocar muita coisa em seu lugar. Fico no aguardo do retorno desta carta. Um grande abraço (trecho final da 2a carta de Socorro Barros) A atenção em expressar experiências comuns e significativas da cultura

nordestina, além de compartilhar a sensação de conhecimento estimulada pela

troca de cartas, parece também indicar o movimento progressivo na escala do

engajamento pessoal entre as correspondentes. A reflexão realizada por Socorro

Barros expressa essa mudança nas disposições para escrever suas cartas.

Como vai você com este tempo de fogueira e São João? - Milho na brasa, canjica, pé-de-moleque, adivinhações, ciranda, coco e outras coisas mais. Sei que você está distante disso tudo, pelo menos em área geográfica, mas, imagino que nas veias corre o sangue nordestino e no coração, o sentimento de nossa cultura calorosa e cheia de emoções. É bom poder falar de você como alguém que já conheço um pouco e já posso ter uma imagem formada, a partir destas relações construídas através das cartas. Sinto que o tempo passou rápido e eu queria já ter respondido esta carta antes, porém, os meus afazeres do dia-a-dia não me permitiram este tempo tão especial e prazeroso. Só agora, entrando nas férias da Faculdade e num final do curso, é que pude me dar este direito de parar e escrever, e até me centrar em mim mesma. (trecho do início da 3a carta de Socorro Barros). Quero dizer também dizer, Emília, que é uma grande satisfação em aceitar o seu convite e poder conhecê-la pessoalmente. Pois, quando estou escrevendo para você, as vezes, tenho a impressão de que estou dialogando com alguém que já conhecia há algum tempo. Aguardo a sua vinda e será um grande prazer conhecê-la pessoalmente. Um grande abraço. (trecho final da 3a carta de Socorro Barros). Os exemplos de demandas apresentam uma enorme variedade no

conjunto das missivas: vão desde a curiosidade em conhecer a “pessoa” da

pesquisadora, os aspectos da vida e da cultura em Paris, bem como as

oportunidades de estudo, até a busca por indicações de leitura, material para a

elaboração de uma monografia ou projeto. O final da carta de Adriana reflete o

desejo em ampliar a aproximação com a pesquisadora:

(...) Gostaria de saber mais de você, como pessoa. Como você é? O que gosta de fazer? Que tipo de música gosta de ouvir? Que filme gosta de assistir? Enfim, esse tipo de coisa que possa me mostrar um pouquinho mais de você. Quero, além de te ajudar nas pesquisas, poder fazer laços de amizade com você. Peço mais uma vez desculpas pela demora e aguardo em breve tua resposta. Um abraço (trecho final da 2a carta de Adriana).

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A maioria das docentes compartilhou as novidades recentes na esfera

pessoal, familiar e profissional como expressão da informalidade adquirida no

decorrer da troca epistolar, através do acontecimento de uma viagem inesperada,

da preocupação com um problema de saúde, do sucesso em uma atividade

profissional, das inquietações existenciais vividas, etc. Outra reação freqüente nas

cartas foi o desabafo quanto à maneira como a pesquisadora guiava o diálogo,

principalmente nas duas primeiras cartas, avaliado por algumas professoras como

bastante formal, o que restringia uma aproximação de natureza informal entre

elas e a pesquisadora. Os depoimentos de Márcia e Angélica revelam essas

reações.

Mas agora quero falar de coisas boas. Na semana passada fui pra Salvador participar do 58o SBPC, a Prefeitura que financiou a viagem para todos os professores da rede como parte política de capacitação e valorização profissional. Tive oportunidade de participar de boas palestras e debates, na área de educação, além de conhecer outras pessoas e realidades, e tudo isso fez com que a sede de conhecimento aumentasse cada vez mais. E pra mim conhecimento é uma coisa impagável que alimenta a alma e enche a gente de alegria, ninguém pode tirar isso de você, o melhor, ele pode ser compartilhado com as pessoas, portanto, não existe fronteiras, isso é muito bom! Sabe, que é mais ou menos isto que eu sinto me correspondendo com você? (trecho da 3a carta de Márcia).

Também tenho certeza de que com o tempo mais confiança vá surgindo entre nós e possamos nos tornar amigas. Não se preocupe, não acho que você fique fuxicando minha vida, eu é que estava um pouco receosa em relação as cartas que escrevia para você, pois tinha vontade de fazer um montão de perguntas, de contar o que estava se passando por aqui, saber como você se sente aí, mas tinha medo de que você achasse que eu estava passando dos limites. Já que nas tuas cartas você se mostrava muito séria, interessada somente na minha relação com a escrita, então eu me limitava a responder as tuas perguntas, se bem que para mim isto não é muito difícil, pois adoro conversar quer seja pessoalmente ou por escrito, para mim é tudo a mesma coisa. (...) Bem, mas como você deixou claro, está aberta para mais diálogo, então vamos lá... (risos) Não se assuste! Não vou encher o saco. Acho que não. É realmente interessante como duas pessoas até então desconhecidas possam ter tantas coisas parecidas. (…) A cada parágrafo da tua carta, me encontro na tua fala (…) (trecho do início da 3a carta de Angélica).

A análise desses elementos constitutivos do engajamento epistolar

possibilitou compreender as relações que o grupo de docentes integrantes dessa

rede de correspondência estabeleceu com o ato de escrever em um contexto de

escrita específico: a escrita epistolar. Nessa situação de escrita, as professoras se

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expressaram de diferentes formas em relação aos sentidos e razões para

escreverem, apesar das condições limitadas e do tempo reduzido para manter o

diálogo. Mesmo considerando a relação de dificuldade com a escrita, algumas

das professoras (por exemplo, Ivana, Potira, Luciene, Maria, Abda, Amara e

Márcia) superaram as próprias imagens negativas como usuárias da escrita na

relação vivenciada pela troca epistolar. No próximo capítulo, apresentarei uma

análise sobre os conteúdos da escrita nas cartas de um conjunto de docentes que

tiveram uma participação efetiva e representativa nessa troca epistolar.

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CAPÍTULO 3

A ESCRITA NAS CARTAS

Neste capítulo, estão sistematizados resultados da pesquisa, que se

organizam através dos depoimentos escritos nas cartas de um grupo de

dezesseis docentes, e, ainda, incorporam-se os relatos orais desencadeados

pelas entrevistas realizadas após o término da troca epistolar.

A análise se desenvolveu a partir de duas direções: uma perspectiva

analítica e uma outra descritiva, que nos levou a considerar o que as professoras

dizem e a maneira como elas dizem sobre os sentidos e as funções que atribuem

à escrita. Inicialmente, a análise se apoiou nas produções escritas. Para

enriquecer os dados, os discursos sobre a escrita foram incorporados em termos

de complementaridade, semelhança, contradição e oposição. Inicialmente,

organizei os perfis individuais das docentes nos grupos de configurações

familiares. Em seguida, ordenei os depoimentos dessas professoras em função

de três domínios: os ambientes de socialização – no contexto familiar em que

ocorreram as escritas privadas e domésticas e no contexto escolar onde

aconteceu o processo de aprendizagem da escrita dessas professoras - que

influenciaram nos modos de escrever; os espaços da formação e práticas

docentes que estabeleceram as práticas de escrita, e por fim, os projetos de

escritas que revelam as aspirações das docentes.

1. PERFIS DE CONFIGURAÇÕES FAMILIARES E AS PRÁTICAS DE ESCRITAS

Pretende-se, nessa seção, descrever e analisar as configurações familiares

em três grupos de professoras, reunindo as combinações específicas dos traços

gerais na relação entre esses elementos e o universo das práticas de escrita,

assim como realizou Bernard Lahire (1997) em seu estudo sobre as

configurações familiares nos meios populares.

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Compreendemos que, mesmo no interior de um grupo social homogêneo

(grosso modo, como é o caso das professoras desta pesquisa), as práticas de

escrita podem se evidenciar de maneira contrastada e, ainda, se ordenarem

segundo uma lógica diferente da lógica encontrada na estratificação do capital

econômico e cultural (ALBERT, 1993, In: FABRE, 1993). Advém dessa

compreensão essa intenção em elaborar perfis das configurações familiares das

professoras para que se possa evidenciar os “desvios” singulares.

Escrever enquanto prática social encontra-se freqüentemente relacionado

à escola. A escola enquanto instituição é a responsável pelo ensino da técnica, da

instauração de uma ordem, da regulamentação das formas e normas dos usos da

escrita, construídas socialmente (BARRÉ-DE-MINIAC, 1997:43). No entanto, a

família é outra instituição importante e essencial na socialização e familiarização

informal da escrita. A escrita praticada por adultos no cotidiano doméstico envolve

diversos significados, usos e funções que podem ser considerados relevantes na

formação das habilidades em torno da escrita. Essa influência dos adultos ocorre

em torno do desempenho no papel de dirigir a escrita das crianças e de garantir o

acesso às práticas de escrita, ou, ainda, em decorrência das experiências de

escrita motivadas por outras esferas de socialização, fora do contexto familiar,

que podem atuar como responsáveis por introduzirem novas demandas de escrita

na família.

Portanto, interessa-nos compreender como as professoras situaram as

formas de mobilização em torno do estudo e como as vivências familiares

repercutiram nas suas práticas de escrita. A análise das histórias escritas e

narradas pelas professoras foi guiada pelas seguintes questões: Que relação

estabeleceu com a escrita no contexto familiar? Quais as pessoas que exerceram

um papel significativo na familiarização da escrita no ambiente doméstico? Quais

os fatos marcantes (agradáveis e/ou desagradáveis) vivenciados na família?

Como as práticas educativas familiares na infância e adolescência contribuíram

para o estabelecimento das práticas de escrita?

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No conjunto das docentes participantes desta pesquisa, algumas

regularidades e irregularidades foram percebidas na organização das

configurações familiares. A partir de alguns critérios, reagrupei as docentes em

três tipos de configurações familiares. O primeiro grupo, constituído pelas

professoras Elaine e Adriana, Angélica, Jacqueline e Márcia foi analisado a

partir de alguns dados que caracterizam seu perfil:

Escolaridade dos pais: Graduação em Pedagogia (1 pai e 1 mãe), ensino

médio (1 pai e 1 mãe), ensino fundamental II (1 pai e 1 mãe) e ensino

fundamental I (1 pai e 1 mãe).

Profissão dos pais: professor e comerciante (dono de fábrica de sapatos),

técnico mecanógrafo, bancário e funcionário de multinacional.

Profissão das mães: professora, secretária escolar e bibliotecária, dona

de casa.

Situação financeira: ausência de referência à situação financeira da

família (não enfatizaram dificuldades financeiras), exceto Elaine, que teve os

estudos financiados por um tio e obteve bolsa de estudo em escola particular.

Tipo de escolaridade: a maioria das professoras realizou o ensino

fundamental e médio em escolas particulares (exceto Jacqueline, que estudou na

escola pública em que sua mãe foi professora).

Em relação à educação: convivência com tias professoras que

estimularam a leitura de histórias na família e corrigiam as atividades da escola;

familiares que forneciam assistência e tempo de socialização às filhas.

Em relação à escrita: existência de práticas diversificadas de escrita na

família (poesia, diário, carta, planejamento de aula, atividades de alunos, etc.); na

adolescência escreveram diário, conto, poesia, desabafo, carta.

Outras socializações: convivência com outros familiares que exerceram

influências positivas: avô escritor de romance, tia professora e tio publicitário.

Além dessas características, as professoras apresentaram em suas

memórias algumas semelhanças e diferenças em relação aos modos de situar a

presença ou ausência da escrita no ambiente familiar.

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As professoras Elaine e Adriana relataram, tanto nas cartas como nas

entrevistas, terem convivido em um espaço familiar incentivador e propiciador de

práticas de leitura e escrita diferenciadas: das situações de escrita corriqueiras ao

universo da escrita prestigiada e valorizada socialmente. Elas reconhecem a

presença da escrita no ambiente familiar, seja quando falam do avô escritor de

romances e novelas de rádio, que exerceu um papel de interlocutor/incentivador

do que liam e escreviam, do pai que estimulava o exercício da escrita, ou, ainda,

dos tios que seguiram a carreira publicitária. Apresentaram, portanto, um

ambiente em que a escrita foi situada no “mundo dos produtores de textos”. Os

seguintes depoimentos revelam a convivência com esse universo:

Uma parte da minha família é de gente que costuma trabalhar com idéias, são publicitários, e estão sempre escrevendo e meu avô materno, além de publicitário, era escritor de programas e novelas de rádio e chegou a publicar dois livros. Talvez por isso, desde pequena eu também tenha querido, se não ser escritora profissional, ser escritora amadora, ou seja, conseguir publicar pelo menos um livro de poesias ou contos. (Elaine, 1a carta).

[...] eu nunca tinha parado pra pensar assim, a escrita presente na minha vida. Eu sou neta de escritor, neta de publicitário, sobrinha de publicitário, assim, essa questão das idéias e da presença da escrita sempre teve, mas nunca é consciente. E eu sempre me arrisquei a escrever, tinha vergonha do que escrevia, rasguei muita coisa. Eu acho que pela influência do meu avô ser escritor, por eu gostar de ler, eu sempre quis escrever contos, escrever romances, escrever poesias, eu tenho algumas poesias escritas. [...] (trecho da entrevista com Elaine).

A convivência com esse ambiente familiar, criou expectativas em Elaine,

que deseja se tornar escritora profissional, e também estimulou o gosto pela

escrita dos contos, romances e poesias. Ela atribui ainda essa vontade de

escrever à prática da leitura. Isso evidencia a crença de que a leitura favorece a

produção de textos e a fluidez das idéias no ato da escrita. Para ela, escrever,

portanto, e ser considerada “escritora” significa escrever para além das situações

de escrita envolvidas nas práticas rotineiras.

Para Adriana, essa influência familiar se revelou no desejo em escrever

para crianças e de organizar e editar o romance autobiográfico do seu avô. Para

ela, o avô escritor e o pai exerceram influências estimuladoras e positivas na sua

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relação com a escrita. Quando solicitei que pensasse sobre algum fato ou pessoa

que tivesse influenciado a sua relação com a escrita, ela escreveu:

Lembro de duas coisas que considero importante: Meu avô materno era escritor, chegou inclusive a publicar dois romances “Mulher sem nome” e “Sangue Maldito”, que eu nunca li, mas ele foi um exemplo para mim e eu sempre tive muita admiração e ele foi uma pessoa que sempre me deu muita força. Lia sempre as coisas que eu escrevia e fazia suas críticas mas sempre me encorajou. Quando ele faleceu, há nove anos atrás, estava escrevendo um novo romance que contava a história da vida dele. Os originais deste romance, bem como algumas crônicas que ele tinha, ficaram comigo após sua morte e eu tenho um projeto, ou melhor, por enquanto é só um desejo, de organizá-lo e editá-lo. Quem sabe!? Outra pessoa que foi muito importante nesse processo foi meu pai que sempre foi um fã incondicional. Vibra com tudo que eu escrevo. Acredito que foram eles dois os maiores incentivos que eu tive na vida. Hoje Adriano, meu quase marido, também me incentiva muito, mas ele acaba, mesmo sem saber, me inibindo um pouco. É que ele é escritor, um excelente escritor, e mesmo não tendo intenção eu acabo ficando um pouco intimidada. Acho que eu tenho medo de não ser tão boa como ele (Adriana, 2a carta).

Interessante perceber que, apesar de nunca ter lido os romances do avô,

Adriana recordou da postura de leitor, assumida por ele, quando lia “as coisas”

que a sua neta escrevia. A recordação de Adriana se fixou nessa orientação

assistida pelo avô, destacando, com menor freqüência, as memórias em torno dos

objetos escritos em si mesmo, ou seja, sobre o que escrevia na esfera familiar.

Adriana recorria à leitura compartilhada, socializando o que escrevia com o avô, o

pai e o marido escritor. O que escrevia passava pelo “crivo” do outro, que

reorganizava, reestruturava a forma e o conteúdo do texto, autorizando sua

publicação. Outro fato se refere à ausência da figura feminina nos momentos de

socialização sobre o que ela escrevia, confirmando um papel desigual exercido

pelas mulheres nas práticas e socializações em torno das práticas de escritas no

seu ambiente familiar.

Em outro depoimento escrito, quando solicitei que explicasse os motivos a

que atribui a sua facilidade em escrever, ela afirmou:

[...] eu sempre associei, pode não ter assim muita lógica, mas eu sempre pensei assim, que era um dom, mesmo. Meu avô, ele foi escritor, inclusive, chegou a publicar livros e tudo. Na minha família todo mundo escreve com uma certa facilidade. Na escola, eu não me lembro de nenhum fato que tenha levado ou estimulado isso, mas como eu sempre tive... eu não sei se a escola ajudou, mas

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na minha cabeça, né. Como eu sempre tive essa facilidade para escrever, então na escola eu também nunca tive nenhum bloqueio, assim, nunca tive nenhum trauma. Como a gente sabe por aí, casos que tem, que me levasse a não gostar, ou a ficar meio, com escrever. Eu não consigo na minha cabeça ligar o fato de eu gostar de escrever à escolarização, realmente eu não consigo. Pode ter algum fato, mas associo mais à família. Pode ter algum fato, mas se tem é bem inconsciente. A minha associação sempre foi a família, muito estímulo do meu pai... (trecho da entrevista com Adriana)

Associar a facilidade com a escrita a um “dom” revela uma concepção de

escrita destinada a poucos privilegiados: aqueles que, tendo facilidade para

escrever, escrevem livros a serem publicados. Um “dom” herdado na família, na

ligação com o avô escritor e com os livros de sua autoria. “Dom” em escrever

estendido e presente em “toda a família”. A concepção do dom justifica a

naturalidade e a facilidade em escrever, dissimulando as desigualdades nas

competências em escrever, ao se considerar ser uma habilidade pré-destinada a

poucos na cultura escolar. Essa desenvoltura adquirida antes da sua inserção na

escola faz questionar, portanto, se foi estabelecida na família a sua relação fluida

e prazerosa com a escrita. É nesse ambiente familiar que Elaine e Adriana

formaram suas crenças, atitudes e competências em relação ao universo

prestigioso da escrita reconhecida socialmente e nas vivências com as escritas

cotidianas.

Adriana lembrou, ainda, o fato de ser filha de uma secretária de escola e

de ter sido criada dentro dessa instituição. Ela recorda-se que gostava muito de

brincar de “dar aulas aos bonecos” e de que “as brincadeiras sempre foram com

papel e lápis”. Com isso, desde a infância, a sua relação com a escrita foi e é

prazerosa, não tendo dificuldade de se expressar por escrito. Portanto, Adriana foi

estimulada tanto pela convivência com os familiares que escreviam, quanto pelo

convívio com a mãe na escola, resultando ainda, posteriormente, na sua escolha

pelo magistério, como nos mostram os seguintes depoimentos:

Fui criada dentro de uma escola, minha mãe era secretária, e sempre adorei brincar de dar aulas aos meus bonecos. Quando entrei no 2o grau, agora ensino médio, decidi que não queria ser professora e fui fazer o curso de Edificações na Escola Técnica, passei cinco lá, me formei mas nunca exerci a profissão pois não me identificava com ela. Aí, voltei, fiz o magistério em dois anos e ingressei na

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Universidade fazendo Pedagogia [...] Como já deve ter dado para perceber adoro escrever, sempre gostei desde que era criança, sendo assim, acho que não vamos ter dificuldade de nos comunicar. Acho mais fácil, inclusive, me expressar através da escrita que da fala algumas vezes. (Adriana, 1a carta).

[...] minhas brincadeiras sempre foram com papel e lápis. Eu sempre estava brincando de escrever, fosse dando aula de brincadeirinha, eu arrumava os meus bonecos, tudinho no chão, botava o quadro, na minha casa tinha um quadrinho da gente estudar, botava o quadro e ia dar aulas pra eles, fosse de escritório, mas eu sempre me lembro das minhas brincadeiras muito ligada, escrevendo sempre [...] (trecho da entrevista com Adriana).

Além dos eventos de escrita, as leituras estiveram presentes na infância e

adolescência dessas professoras. Elaine revelou, durante a entrevista, que teve

uma “vida muito certinha, muito vigiada, muito centrada pela mãe”, que a cercava.

Por isso, ela ingressou na convivência com o mundo dos livros para amenizar a

ausência da socialização com outros adolescentes. Para ela, esse convívio com a

leitura de contos, gibis, fotonovelas e os títulos da Biblioteca das Moças estimulou

também a vontade de escrever, como lembrou:

[...] eu acho que a minha vontade de escrever veio daquela questão, eu era muito presa, minha mãe era esse tipo de mãe que não queria que a gente brincasse com a vizinha, ou então, brincar com o vizinho, porque terminava saindo em briga. Então era muito presa, o meu mundo normalmente foi o livro. Eu tinha contos de fada, eu lia contos de fadas, eu tinha acesso a gibi, e eu comecei a ler as fotonovelas que a minha mãe lia muito. Então isso vai ficando na cabeça da gente, não só a vontade de ler, pelo menos na minha não funcionava só assim. Eu quero ler mais, eu queria escrever também. Eu tive acesso a mais da metade da Biblioteca das Moças, porque a minha avó colecionava. Minha casa tinha todos, eu li quase tudo. Aí, vai ficando na cabeça, tem a história também do meu avô trabalhava, eu sabia que meu avô tinha publicado dois livros. Eu gostava de ler, eu gostava de escrever, eu queria ter o meu livro também. Eu sabia que meu tio trabalhava com publicidade, eu queria trabalhar com idéias. Acho que tudo isso foi somando. Eu nunca parei assim pra pensar a relação com a escrita. [...] Escrever para mim era criar um mundo que me tirasse daquele que eu vivia (trecho da entrevista com Elaine).

Adriana falou na entrevista que também “brincava sozinha”, pois, sendo

Elaine “oito anos mais velha, não era mais companhia” para ela, e que, em suas

brincadeiras infantis, “sempre escrevia muito”. Ela reafirma que “gostava de

escrever, gostava de estar com lápis e papel na mão”. Ao contrário de Elaine,

recorreu com mais freqüência aos eventos de escrita nos momentos solitários das

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brincadeiras com os bonecos, embora tenha dito que “sempre queria ler tudo: ler

revista, ler jornal, ler gibi, o que caísse na minha mão”, confirmando, também, seu

gosto pela leitura.

Outro aspecto interessante, no depoimento dessas duas professoras, trata-

se da dificuldade em reconhecerem as escritas cotidianas vivenciadas na família

como legítimos eventos de escrita. No trecho da entrevista com Adriana, ela nos

revela que os verdadeiros eventos de escrita são aqueles destinados para a

publicação ou para o ensino na escola. As escritas cotidianas realizadas por

pessoas comuns não foram reconhecidas como eventos de escrita de fato, apesar

de lembrar que os seus irmãos escreviam. Parece, portanto, que o não

reconhecimento ou a inexistência da escrita se confirma na crença de que os

“estímulos”, ou seja, a herança adquirida, garantiram uma certa familiaridade com

a escrita, mais do que os eventos de escrita cotidianos, praticados por Adriana e

seus irmãos.

Emília: Você via quem escrevendo? Você lembra de ter visto pessoas escrevendo?

Adriana: De práticas de escrita no meu dia-a-dia, não. Eu via minha irmã, eu via Elaine, porque Elaine é oito anos mais velha do que eu. Então, eu sempre via muito escrevendo. Mas dentro de casa, eu nunca tive essa prática de ver. Eu sempre tive essa prática de ser estimulada, mas de ver não. De ver, realmente, teria sido na escola, porque na escola eu sempre estava vendo as professoras escrevendo.

Emília: Mas em casa, na família?

Adriana: Tinha muito essa coisa do escrever, porque meu avô tinha até livros publicados, meus tios trabalham com propaganda, se falava muito sobre isso, então quem trabalha com propaganda também escreve muito. Elaine começou escrevendo, fazendo as coisas dela. Eu também, meu irmão que é mais velho também passou uma fase, depois deixou mais. Sempre teve muito essa ligação, sempre foi muito falado isso, na família, a questão do escrever. E agora o que eu via muito era leitura, meu pai lia muito, agora escrita, que eu me recorde, não.[...] (trecho da entrevista com Adriana).

Em seu depoimento, ainda é possível analisar que Adriana “vê” a escrita na

escola, através do seu ensino, já que as professoras escrevem. Ela não

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reconhece esses eventos em casa, apenas “vendo” acontecer na escola, embora

a leitura fosse reconhecida como presente na sua família.

O estímulo que eu sempre tive assim da minha família de um modo geral, do meu pai de um modo muito mais específico, porque assim, qualquer coisinha que eu mostrava pra ele, ele elogiava muito, sabe? E dizia que estava muito bom, e até hoje é assim. Às vezes, eu estou fazendo meus trabalhos, agora mais não, porque ele casou, está morando em outra casa. Mas quando ele morava ainda com a gente, às vezes, eu estava fazendo meus trabalhos, eu dizia: “pai eu vou ler isso pra tu, pra tu dizer se está bom”. Eu lia, quando acabava de ler, ele dizia: “olhe, tem coisa aí que eu não posso dizer, porque eu não entendo do assunto específico, mas a escrita, o modo de se expressar em si, está muito bom” (trecho da entrevista com Adriana).

Provavelmente, as professoras Elaine e Adriana vivenciaram um conjunto

de práticas no interior do grupo familiar, uma diversidade de usos de leituras e de

escritas cotidianas, embora, como verificamos, as lembranças desses eventos de

escrita cotidianos estivessem ausentes nas cartas e entrevistas. Parece que a

garantia do contato com familiares que escreviam textos, que caracterizam um

escritor, tornou invisíveis os eventos cotidianos de escrita presentes no ambiente

familiar. Desse modo, adquiriram um aprendizado pela familiarização e herança,

seja através do contato com o avô materno que foi escritor ou com os tios

publicitários, seja pelo convívio com a mãe e a escola, que promoveram o

exercício de práticas escolares da leitura e da escrita durante a infância e

adolescência das docentes.

Outra forma de inserção na cultura escrita, vivenciada por outras duas

professoras, trata-se do convívio com familiares professores que, no espaço

doméstico, garantiram o acesso às práticas de leitura e escrita vivenciadas na

escola. Duas famílias, das professoras Angélica e Jacqueline, ilustram essas

práticas de formas diferentes.

A professora Angélica teve “[...] uma família repleta de professores”, que

estimulou a aquisição de livros durante toda a infância em que esteve, como

afirmou, “[...] rodeada de livros e disquinhos de historinhas”, que “[...] adorava lê-

los”. Lembrou ainda que, após os 11 anos, a leitura de novos títulos foi

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intensificada com: “Polianna Menina e Moça, os livros da coleção vaga-lume,

Sidney Sheldon, Agatha Christie, Paulo Coelho e outros”. As práticas de leitura,

portanto, foram estimuladas e vivenciadas em sua família.

Nesse contexto familiar, os esforços em garantir o acesso aos livros

revelam uma forma de aproximar-se da cultura escrita. Essa atitude caracteriza

uma forma de apropriação da cultura letrada, intensificada pelos pais na compra

de livros e disquinhos de histórias infantis.

Como verificado nos depoimentos anteriores, a professora Angélica, em

suas cartas, também confirmou a ausência de lembranças sobre as práticas de

escrita. Vimos que tal dificuldade em recordar acontecimentos diversos da escrita

pode ser atribuída seja em função da própria natureza inacessível da escrita,

como discutido no primeiro capítulo desse trabalho, ou ainda em razão do não

reconhecimento das práticas de escritas existentes como legítimas.

No entanto, no decorrer da troca das cartas, lendo os relatos da

pesquisadora, as lembranças foram surgindo, fazendo com que Angélica

recordasse a aquisição do diário, as mensagens escritas pelos professores e

colegas, os riscos advindos da escrita, que resultou na leitura não autorizada do

diário pelos irmãos, e as correções ortográficas realizadas pelas tias, que eram

professoras:

Quando você falou em diário, eu lembrei que quando completei 12 anos ganhei um diário e adorava passar os dias escrevendo sobre tudo o que me acontecia. É interessante como eu não lembrava mais disto. Também na minha adolescência, tinha um caderno onde todos os professores e colegas escreviam mensagens para mim, hoje não tenho nem idéia de onde possa ter ido parar este caderno. Emília, por incrível que pareça, eu não consigo lembrar da minha infância, somente a partir dos 8 anos é que eu tenho recordações. Não lembro da minha primeira escola, da minha professora de alfabetização, dos colegas, das tarefas, do livro, das festas, não lembro de nada e também não tenho fotos deste período. Eu sempre achei isto estranho, mas também nunca procurei perguntar a ninguém (Angélica, 2a carta).

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No momento em que respondeu a respeito dos fatos desagradáveis em

sua vivência da escrita na família, ela registrou:

Eu nunca fui de escrever muito, e minha memória não é muito minha amiga, mas o que me recordo é que meus irmãos uma vez leram meu diário e eu odiei. Minha tia vivia falando da minha letra, que por sinal era horrível e dos erros de ortografia. O interessante é que com o tempo os dois melhoraram (Angélica, 3a carta).

Angélica, inclusive, retomou a reflexão sobre os esquecimentos e as

lembranças dos acontecimentos vividos na infância, expressando sua

preocupação e insatisfação, no seguinte depoimento:

E fico me perguntando se o fato de não lembrar de muita coisa da minha infância se dê a algum trauma vivido por mim. Pois, geralmente as pessoas lembram de quando tinha 5 anos ou menos, da primeira casa em que morou, da primeira escola e eu não lembro nada disto, apenas algumas cenas perdidas e que sempre estão relacionadas a fatos traumatizantes como por exemplo: Lembro da minha casa em Santo Amaro na qual vivi até os quatro anos e meio, apenas do dia, em que minha mãe foi à feira com meu pai e me deixou dormindo sozinha, eu acordei e minha tia que era vizinha entrou e me pegou no berço. Eu lembro que chorava muito. Da escolinha que estudava em Santo Amaro não lembro, lembro apenas de outra que ficava em Cajueiro, onde eu fiz a alfabetização. Desta só lembro do dia em que vomitei no parque após ter lanchado e brincado no carossel e do dia em que estava chorando pois queria ficar na minha sala, queria ir para a sala da minha tia (duas irmãs da minha mãe ensinavam nesta escola). Isto me incomoda [...] (3a carta de Angélica).

Torna-se evidente que Angélica reconheceu que houve um investimento

familiar nas práticas de leitura, ao contrário das práticas de escrita, que só foram

lembradas quando a pesquisadora recordou a escrita do diário na adolescência.

Um fato interessante é que sua memória funcionou para os acontecimentos que

marcaram ou foram significativos, escritos numa seqüência contínua de fatos

lembrados por ela, mesmo ainda considerando que é insuficiente o que lembra

dessas vivências da infância. O exercício em lembrar sobre os eventos de escrita

cotidianos confirma, portanto, ser uma tarefa bastante difícil para as docentes.

Um outro exemplo também atesta que o convívio e a proximidade com a

cultura escolar através das atividades de escrita desenvolvidas na sala de aula

favoreceram os contextos diversificados de usos da escrita. Trata-se da família da

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professora Jacqueline. Acompanhar, quando criança, mesmo sendo apenas

“como ouvinte”, as aulas lecionadas pela sua mãe professora fez com que

ingressasse precocemente no estudo das primeiras letras e que aprendesse a ler

com apenas “dois meses de aula”. Essa convivência favoreceu ainda a sua

escolha pelo magistério, pois quando foi estimulada a pensar sobre os motivos

que a levaram a se tornar professora, ela associou a escolha pela profissão

docente à familiaridade adquirida com as atividades de escrita vivenciadas na

cooperação com a mãe, como relatou:

Penso que não me tornei professora, mas já nasci assim, com essa mania de ensinar tudo a todo o mundo, mania de experimentar com as pessoas. [...] Minha mãe foi professora primária [...] comecei a fazer o magistério [...] Ensinar eu já sabia, passei toda a minha vida dentro de salas de aula com minha mãe, corrigia as provas, questionava planejamentos, tirava médias dos alunos, orientava as tarefas dos colegas, etc. O curso de magistério veio só regularizar uma prática que já existia (Jacqueline, 3a carta). Nesse convívio, ela foi incentivada a lidar com a escrita em diversas

situações de usos, o que favoreceu o exercício da escrita no contexto profissional.

Além disso, sua mãe conduzia a avaliação da escrita, considerando as normas

apropriadas para escritores iniciantes, como podemos acompanhar no seu

depoimento:

[...] minha mãe procurava corrigir tudo o que nós escrevíamos, eu, meu irmão (mais velho) e minha irmã (mais nova). Eu adorava copiar adivinhações para pegar os colegas [...] numa dessas adivinhações escrevi a palavra jaula com “g” três vezes seguidas e até hoje me enchem com esse erro. Só esquecem que eu tinha apenas esse erro em um caderno de quarenta páginas escrito, bem se tinham outros não acharam, e procuraram bastante (Jacqueline, 3a carta). Na entrevista, Jacqueline detalhou os aspectos dessa influência cotidiana

na sua relação com a escrita e o estímulo à leitura:

Eu sempre gostei (de escrever), mas só que eu tinha muito medo. Minha mãe me reprimia demais, filha de professor não pode errar, filho de professor de português, aí é que não pode errar mesmo. Meu irmão já olhava minhas cartas, já falava também. Primeiro que minha letra sempre diziam que era horrorosa. Eu achava bonita, fazia redondinha. Mas todo mundo achava que era horrorosa e ainda acham, mas eu continuo achando que tá legal (risos) (trecho da entrevista com Jacqueline). [...] eu lia muito, minha mãe era professora, né, então eu lia muito, assim, as histórias e as poesias que tinha nos livros didáticos. Tinha muito Cecília Meireles, Vinícius de Moraes, aquela história do “Pardalzinho”, que eu não lembro de quem

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é, do “Pardalzinho de Sanchaz". Eu lia muito aquilo ali, eu pegava em vários livros, eu lia mais, eu comecei a ler mais os livros infantis (trecho da entrevista com Jacqueline).

Dessa forma, podemos observar que, para Jacqueline, sua mãe foi uma

referência de professora e modelo de usuária da escrita e da leitura. Verificamos

ainda que a estratégia de ensino em torno do aprendizado no traçado da letra e

da ortografia gerou uma expectativa de medo e ansiedade na sua relação com a

escrita.

Por fim, a professora Márcia ilustra o perfil desse primeiro grupo de

configurações familiares. Ela não se recordou de “nada muito marcante” em

relação aos fatos da sua vivência com a escrita na família, como afirmou: “só

lembro que minha mãe pegava muito no meu pé por causa da letra e achava

verdadeiro absurdo quando encontrava erros de ortografia”.

Interessante verificar que, apesar de não ser professora, como a mãe de

Jacqueline, a preocupação com a forma correta da escrita das palavras, esteve

presente nas orientações da sua mãe. Portanto, não se confirma a crença

expressa por Jacqueline, anteriormente, de que filha (o) de professora de

Português sofre mais com as exigências em não cometer erros de ortografia, quer

dizer, eles têm uma certa obrigação em escrever corretamente. Essa idéia

assegura o valor simbólico atribuído a um campo para garantir a permanência de

um certo status social. Mesmo sem uma formação específica na área de

Português, algumas famílias, detentoras de níveis elementares de escolaridade,

mostraram-se atentas e se mobilizaram em torno do ensino correto da grafia das

palavras, como veremos mais adiante em outras famílias.

Márcia recordou que durante a adolescência iniciou uma experiência de

troca epistolar com os amigos, quando se mudou de São Paulo para Recife,

lembrando que:

Mudei na melhor época da adolescência, época de namoro, muitas amizades e paqueras. [...] durante os primeiros seis meses de 1982, passamos escrevendo e recebendo cartas. Minha mãe conta, que comprou, na época, 400 envelopes, o

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que correspondia a quantidade de cartas que eu, minhas duas irmãs e ela enviávamos. Considero este exercício importante de escrita, embora que bastante espontâneo, porque eu escrevia obedecendo ao padrão estético de cartas, mas a linguagem era bem parecida com a linguagem oral, com gírias e expressões que usávamos (2a carta de Márcia).

Nesse depoimento, Márcia realizou uma reflexão metalingüística sobre o

estilo da linguagem que utilizava na escrita desse gênero epistolar. Para ela,

escrever cartas significava obedecer às normas na composição do texto,

adequando o estilo da linguagem ao seu destinatário. Dessa forma, a oralidade e

as expressões com gírias estiveram presentes na sua experiência epistolar com

os amigos.

Embora distante do universo prestigioso da escrita socialmente valorizada,

Márcia e suas irmãs estiveram próximas a um evento de escrita popularmente

reconhecido e praticado com bastante freqüência nas famílias. Como avaliado

pela docente, essa prática de escrita favoreceu sua relação com a escrita, pelo

menos ao escrever cartas de forma espontânea e fluida para os amigos. No

entanto, Márcia foi a única professora nesse primeiro grupo familiar que afirmou

estabelecer uma relação tensa com a escrita. Em que contextos de uso da escrita

se estabelece essa relação de tensão?

Para responder a essa questão, analiso seu relato seguindo as reflexões já

realizadas no capítulo anterior, com relação ao impacto da imagem construída

pela pesquisadora nas representações que fazem as docentes de si mesmas.

Nesse sentido, Márcia, principalmente na 2a carta, refletiu sobre a dificuldade em

escrever em outros contextos de uso da escrita, especialmente nos eventos de

escrita exigidos no universo profissional e da formação acadêmica. Entretanto,

assim como ocorreu com a professora Dulce (como apontou a análise da segunda

carta, no Capítulo 2), essa reflexão pode ter sido provocada pela imagem que

construí de minha relação com a escrita. Ela se apresentou para mim, relatando

várias situações de avaliação da escrita: ao elaborar um texto para uma seleção

de especialização, uma prova escrita para promoção no trabalho e um texto sobre

suas memórias de leitura. No decorrer do seu relato, Márcia destacou,

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inicialmente, suas dificuldades com a escrita na elaboração dos textos, os

insucessos nas seleções a que se submeteu e finalizou, ressaltando os avanços

na elaboração do texto sobre as memórias e os elogios recebidos pelas

professoras que haviam solicitado essa atividade.

Portanto, as imagens construídas nas relações estabelecidas com a escrita

decorrem do clima de tensão e pressão dos momentos avaliativos em que as

situações de usos da escrita ocorreram. Outra interpretação, a respeito da mistura

e da duplicidade nos lugares construídos para si mesma, provavelmente, pode ter

sua explicação em função da própria diversidade de usos da escrita que, num

grau de maior ou menor tensão, estabelece objetivos e condições de produção

variados.

Diferentemente da experiência epistolar com os amigos, Márcia destacou

uma relação tensa com a escrita nas situações avaliativas. No entanto, seu

engajamento epistolar na pesquisa foi favorável à evolução de uma relação de

proximidade com a pesquisadora através da escrita das cartas.

Em suma, essas famílias, inseridas ou beneficiadas com a cultura da

escrita, seja na presença de pessoas que exercitaram a escrita valorizada e

reconhecida socialmente ou ligadas profissionalmente ao ensino da leitura e da

escrita, direta ou indiretamente estimularam os eventos de escrita, e, ainda,

construíram um conjunto de disposições, crenças e atitudes mais favoráveis a

uma relação menos tensa com a escrita, embora reconhecemos também que os

momentos de escrita possam ocorrer num clima de medo e apreensão entre

essas docentes.

Nesse primeiro grupo, trata-se de uma estrutura familiar em que os pais

possuem nível de escolaridade elevada, as professoras foram familiarizadas em

um ambiente de escrita em que o romance, a correspondência, as atividades

escolares circulavam no cotidiano dessas famílias. No entanto, um fato

interessante refere-se à ausência de memórias que descrevessem outras

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situações de escritas cotidianas, provavelmente, vivenciadas pelas professoras no

contexto familiar. Parece que, para as docentes, sendo herdeiras de um contexto

familiar favorável, foi suficiente demonstrar que foram expostas a situações

diversificadas de escrita, pois tiveram condições objetivas estimuladoras na

construção de uma auto-estima. Portanto, o cotidiano dessas docentes foi

marcado pela vivência da escrita como uma prática comum, usual e presente no

dia-a-dia de suas famílias, tanto nas escritas privilegiadas como nas atividades

corriqueiras.

O segundo grupo foi constituído pelas famílias das professoras Dulce,

Abda, Ivana, Solange, Shirley e Maria. Considerando-se os mesmos critérios

utilizados na composição familiar anterior, o perfil dessas famílias se caracteriza a

partir dos dados seguintes:

Escolaridade dos pais: ensino fundamental I (4 pais, sendo 1 incompleto,

e 5 mães, sendo 3 incompletos), ensino fundamental II incompleto (1 pai), ensino

médio (1 mãe), exceto o pai de Abda, que tinha superior completo.

Profissão dos pais: motorista de táxi, funcionário do porto, comerciante,

carpinteiro e agente administrativo.

Profissão das mães: recepcionista, costureira, dona de casa e professora

de Arte e Costura.

Situação financeira: ausência de referência à situação financeira da

família (a maioria não enfatizou dificuldades financeiras. No entanto, Dulce, criada

pelos avós maternos, enfatizou condições econômicas favoráveis, teve acesso a

bens culturais como: teatro, cinema, balé, acordeon, etc).

Tipo de Escolaridade: a maioria das professoras realizou o ensino

fundamental e médio em escola pública, exceto Solange, que obteve bolsa de

estudos em escola particular.

Em relação à educação: investimento de estudo de maneira geral;

incentivo ao estudo como mobilização social.

Em relação à escrita: ausência de referência às práticas de escrita ou

práticas de leitura e escrita diversificadas (escrita de cartas, diário, poesias, etc.).

Outras socializações: ausente nas memórias escritas.

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Algumas características semelhantes e diferentes recaem sobre os grupos

familiares inseridos aqui e que também se aproximam e se distanciam do

contexto familiar apresentado anteriormente. Como as docentes situam a

presença ou ausência da cultura escrita no universo de suas famílias?

Nas cartas de Maria e Shirley as memórias sobre o contexto familiar no

contato com a escrita foram ausentes. Apenas num trecho da entrevista, Maria

ressaltou a experiência com a troca de cartas vivenciada na fase da adolescência.

Na correspondência com uma amiga, ela destacou a facilidade em escrever, no

entanto, expressou o sentimento de medo ao cometer erros referentes à questão

da ortografia e da concordância como uma preocupação ainda presente em sua

experiência com a escrita, nos momentos atuais.

É, eu tive uma colega que mora em outro estado e eu escrevia cartas com ela também. Eu nunca tive assim tantos problemas com a escrita, no sentido de escrever. Meu problema é na questão do medo de errar, a questão ortográfica, a questão da concordância (trecho da entrevista com Maria).

Vale destacar que a professora Maria foi uma das docentes que

concentrou nos seus relatos as situações do presente, no caso, a elaboração do

projeto de pesquisa no curso do Mestrado em Educação. Em nenhuma das suas

cartas recordou os acontecimentos na infância e adolescência; apenas quando foi

estimulada a rememorar, na situação da entrevista, ela lembrou que vivenciou o

uso da correspondência na adolescência, como revelou o depoimento anterior.

Portanto, apesar de ter o maior nível de letramento no conjunto das docentes

desta pesquisa, e, talvez, exatamente por estar submetida a um nível constante

de tensão na escrita do seu projeto de pesquisa, Maria priorizou no pacto

estabelecido com a pesquisadora a expressão de suas inquietações e receios na

escrita de um trabalho acadêmico, semelhante à situação da pesquisadora, que

também estava inserida em um contexto de escrita institucional: a elaboração da

tese.

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Em relação às cartas de Abda, Ivana e Solange, elas destacaram a

ausência de fatos marcantes de escrita na esfera familiar. As professoras

realizaram reflexões, analisando as repercussões dessa ausência em seu

percurso de socialização fora do contexto familiar, como realizou a professora

Ivana nas suas primeira e segunda cartas. A professora Solange recordou que,

apesar de a distância entre os familiares ser uma boa justificativa para se iniciar

uma troca de cartas, essa prática epistolar esteve ausente no seu universo

familiar. Recordou, ainda, o uso do suporte (papel de pão) nas escritas realizadas

na esfera doméstica e nas leituras de fotonovelas preferidas pela sua mãe.

Na família não me recordo de nenhum fato desagradável no que diz respeito a escrita (Abda, 3a carta).

Não me lembro de sessões de escrita em minha casa. Morávamos distante de toda família, mas carta não se escrevia. Algumas coisas eram escritas em papel de pão. Minha mãe gostava apenas de ler fotonovela quando terminava os afazeres de casa (Solange, 3a carta).

[...] durante minha vida de estudante, quando não fui influenciada pela escola, nem pela família, na arte de escrever cartas. Acho que este atropelo repercutiu até hoje na arte de fazer amigos de longe, que não receberam resposta e não se comunicaram mais. Como vê, não sou muito boa nisso (Ivana, 1a carta).

[...] rememorando a escrita não teve muito presente, nestes períodos em minha vida (infância e adolescência) [...] percebi que a escola e família me deviam o acesso devido aos padrões de compreensão a leitura e escrita e que foram puladas etapas precisas para um melhor aprendizado nesta área (Ivana, 2a carta).

Nesses dois últimos depoimentos, Ivana atribuiu à escola e à família o

acesso restrito às práticas de escrita a que esteve exposta na infância e

adolescência, que, inclusive, não estimulou nem “na arte de escrever cartas”. Em

vários depoimentos (Solange, Márcia, Socorro Barros e Socorro Damasceno,

Ivana, etc.), verificamos que, através das cartas, as docentes realizaram reflexões

“com as lentes” do presente ao avaliar as experiências do passado.

Nesse sentido, Solange, ao responder sobre o perfil da escolaridade dos

pais, refletiu também sobre a realidade de sua família, afirmando a expectativa

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dos pais em torno do futuro dos filhos e da crença no estudo como forma de

ascensão social, escrevendo:

Minha mãe 67. Ela cursou apenas até a 4a série. Tinhas sonhos: ser bailarina, estudar e se formar. Nada se efetivou. Era paupérrima sua família. O pai morrera quando aos 14 anos foi trabalhar numa fábrica de bombom, embrulhando-os. Da janela avistava-se a Rua da Moeda. Cenário de casas de prostituição. Certa vez, o patrão pegou-lhe a olhar para a rua e repreendeu-a. Para ela foi doloroso. Queria vida melhor. Casou com alguém que amava, porém pobre. Quis que os filhos estudassem. Casamento nem pensar. Nunca se falava sobre isso. Havia uma frase que se repetia quando se falava sobre namorado: “Primeiro vocês estudam, têm um bom trabalho para ter uma vida melhor que a minha”. Apenas 3 irmãos casaram-se os cinco restantes estão solteiros. Até a 4a série estudei numa escola pública estadual. Fui aprovada no exame de admissão e consegui ser bolsista numa escola particular. Um grande colégio religioso (3a carta de Solange).

Na sua carta 2a carta, Solange iniciou uma reflexão interessante sobre as

condições sociais familiares. Para ela, os precários estímulos herdados, em

função da escolaridade dos pais e das suas concepções de mundo e, ainda, a

ênfase, essencialmente, no estudo como forma de mobilização social são

aspectos insuficientes na garantia e condução na formação de leitores, escritores

e produtores de histórias. Para ela, apenas “desejar que os filhos estudem” não é

suficiente para produzir oportunidades de usos da leitura e escrita. Parecem ser

necessários, portanto, ambientes de socialização favoráveis ao estímulo das

várias competências envolvidas nas práticas de leitura e escrita.

Nesse momento, surge-me um pensamento: a questão da escrita deve também estar relacionada com a formação dos pais e suas concepções de leitura de mundo. Os pais apenas desejarem que você estude não está diretamente ligado à formação do filho leitor, “escritor”, produtor de histórias. Essa formação para pais pobres não casava. Não dava futuro. Entre minhas colegas de classe, meus vizinhos e familiares, não havia prática de produção escrita. A cultura de um modo geral não era explorada. O sistema não ajudava – penso hoje – naquela época não tinha dimensão disso. Precisamos de estímulos externos para fazer leitura, muitas vezes, oportunidade que na sua inexistência exclui competências latentes. (Solange, 2a carta).

Esse depoimento revela ainda que Solange, estimulada pela troca de

cartas, realizou uma reflexão interessante sobre suas condições familiares,

situando outros grupos de socialização a que pertencia, quando analisou a

ausência de produção escrita entre os colegas e vizinhos.

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Essa socialização familiar esteve presente nas vivências cotidianas de

Abda, que, na entrevista, recordou que lia história infantil e escrevia estimulada

pela mãe, considerada um modelo de não-leitora. Abda compreende que esse

estímulo contribuiu, ao menos, na ausência de recordações negativas.

Sempre quando eu escrevia alguma coisa, mamãe também não gosta de ler, ela me incentivava. Eu me lembro quando era criança, uma coisa que eu gostei e que gosto de ler até hoje é história. Eu fui incentivada nisso, gosto de ler história infantil. [...] na família nunca teve nenhuma experiência negativa (trecho da entrevista com Abda).

No entanto, no próximo depoimento, Abda analisou as conseqüências de

uma aquisição precária das práticas de leitura nas competências em relação à

escrita. Para ela, o hábito da leitura estimula a escrita pela estratégia da imitação,

ou seja, lendo as pessoas se apropriam de um estilo, incorporam formas e

normas da escrita. Outra reflexão interessante se refere à necessidade de ser um

modelo de leitora para seus alunos, pois ela não acredita que apenas

estimulando-os a ler eles se tornarão leitores. Parece que essa reflexão se refere

a sua própria experiência familiar, pois o fato de ter sido estimulada pela mãe não

garantiu que ela se tornar uma leitora.

[...] a falta do gosto pela leitura, eu não fui acostumada a estar lendo [...], mas eu não sou uma pessoa que gosto de ler, de ter um livro do meu lado lendo o tempo todo, não vou mentir, não sou e acho que isso atrapalha. Quando você tem o hábito de ler, acho que a minha maior dificuldade é essa, você se apropria daquele tipo de escrita e quando você vai escrever você já imita, sua tendência é imitar, aí você tem mais facilidade, mas como eu não tenho, nem fui ensinada para isso, nem gostar de estar lendo. Eu só leio aquilo que me interessa, até quando E. (professora do Centro de Educação) veio fazer uma entrevista comigo quando eu estava grávida eu disse: “no momento, meu livro de cabeceira é aquele” "A vida do bebê”. Eu só leio mesmo aquilo que está me interessando. No jornal, mesmo, eu pego o jornal, se tiver alguma notícia de professor, eu não sou de estar lendo tudo que tem. Eu vejo televisão, está bom demais, não preciso de estar lendo, especulando, não tenho aquele prazer, aquele gosto de ler. E tenho essa dificuldade de passar isso para os meus alunos. Como é que você vai incentivar, “leiam que é muito bom”, se você não gosta de ler? É difícil você incentivar (trecho da entrevista com Abda).

Nesse depoimento, merecem ser destacadas, as semelhanças com as

reflexões anteriormente elaboradas por Solange. A docente questionou a crença

de que os estímulos gerados no contexto familiar seriam suficientes. Para ela,

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deve-se considerar as concepções de leitura e modelos de leitores, e

acrescentaria, também, as concepções de escrita e de escritores, além da própria

formação escolar dos pais. Todos esses elementos foram considerados

fundamentais na construção de uma herança familiar, o que parece, nesse

sentido, refletir as inquietações de Abda.

Por fim, nesse grupo, um exemplo diferente de mobilização familiar se

refere à professora Dulce. Criada pelos avós que tiveram condições financeiras

favoráveis, foi beneficiada com uma boa educação, pois, como afirmou: “fui muito

bem criada [...] minha avó até hoje é viva, 86 anos, me educou muito bem, bons

colégios, aulas de acordeon, balé, teatros, cinemas, programas de auditório,

escolas públicas e particulares, enfim, tive uma boa infância”. Apesar da ausência

de lembranças com eventos de escrita, o contexto familiar de Dulce leva a crer

que, mesmo não tendo herdado os “estímulos” provenientes de uma exposição

mais direta com práticas de escrita ou de ter vivenciado, de forma sistemática, o

ensino da escrita na esfera familiar, ela foi beneficiada com o acesso a diversos

bens culturais. Portanto, parece que a herança cultural possibilitada pela

disponibilidade financeira supriu a ausência de uma interferência familiar mais

intensa nas práticas de escrita cotidianas.

Assim como vivenciada na família de Márcia, a prática epistolar também

esteve presente nos contextos de usos da escrita entre os familiares de Dulce e

de Maria. Entretanto, Dulce acrescentou outros eventos de escrita, nas suas

memórias, que integram as escritas desenvolvidas na esfera privada. Apesar de

ter cultivado a prática epistolar, durante o curso primário, a compreensão tomada

aqui reconhece que essa troca de missivas se deu, principalmente, no espaço

familiar, embora outras práticas de escrita tenham ocorrido na escola:

Nunca possui diário. Gostava de escrever música tinha vários cadernos pessoais, questionários íntimos, cadernos de romance, cadernos de pensamentos, cadernos de poesias. Sempre gostei de me corresponder, com meus familiares que moram em São Paulo, outros na Suíça, outros na França, em Tocantins, na Paraíba, em Portugal e na querida Belo Horizonte. Esta minha diversão foi cultivada durante meu curso primário, pois fazíamos cartas, bilhetes, telegramas, cartões com mensagens e esta atividade me marcou, pois gostava de fazê-los (Dulce, 2a carta).

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Posteriormente, voltaremos às memórias da professora Dulce para

evidenciar de que forma se estabeleceu sua relação com a escrita na escola e no

processo de formação acadêmica, incluindo o magistério e o curso da graduação

em Pedagogia, numa época de repressão militar, vivida nos anos 70.

Em suma, o perfil desse grupo familiar caracteriza-se em função de um

conjunto de investimentos familiares destinados a assegurar o acesso aos

estudos, significando uma forma de ascensão social, independente do estímulo

direto e intencional sobre as práticas de escrita cotidianas.

O terceiro e último grupo, apresentou um perfil familiar bastante diferente

das configurações anteriores. As famílias das professoras Luciene, Amara,

Potira, Socorro Barros e Socorro Damasceno se assemelham a partir de

alguns dados que caracterizam o perfil desse grupo:

Escolaridade dos pais: analfabetos (3 pais e 2 mães), alfabetizados, sem

escolarização formal (1 pai e 3 mães) e ensino fundamental (1 pai).

Profissão dos pais: comerciante (barraca na favela), servente, agricultor e

vigilante, feirante e administrador de engenho.

Profissão das mães: comerciante (ajudava o marido), dona de casa,

agricultora, feirante.

Situação financeira: condições precárias.

Tipo de Escolaridade: a maioria das docentes realizou o ensino

fundamental e médio em escolas públicas, exceto Socorro Damasceno e Potira,

que obtiveram bolsa de estudo;

Em relação à educação: A maioria das famílias (quatro entre as cinco

famílias analisadas), mudou do meio rural para a cidade com o propósito de

oferecerem uma educação que oportunizasse melhores condições às filhas. A

maioria das famílias incentivou o estudo como forma de mobilização social;

apenas a mãe de Socorro Barros realizou um investimento semelhante às

estratégias escolares no ensino da escrita, como ela relatou sua mãe

acompanhava as suas atividades escolares.

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Em relação à escrita: ausência de referência às práticas de escrita ou

práticas de leitura e escrita diversificadas (escrita de cartas, diário, poesias, etc.).

Outros indícios no discurso: as professoras tornam explícito o nível

precário da escolarização dos pais e as condições financeiras espontaneamente

nas cartas (identificado nas primeiras duas cartas-resposta, antes da elaboração

da 3a carta).

As famílias desse grupo se diferenciam das famílias discutidas

anteriormente, por se caracterizarem precariamente tanto em função da formação

escolar elementar dos pais quanto do baixo poder aquisitivo. Além dessas

características gerais, outros elementos conduzem a uma compreensão

aprofundada desse grupo, a serem analisadas a seguir:

Nesse grupo de famílias, duas formas de mobilização em torno do acesso

à escola foram identificadas: a primeira diz respeito ao incentivo nas estratégias

de ensino da escrita semelhantes às enfatizadas pela escola e a segunda recai

na ênfase sobre a importância dos estudos de uma maneira geral. Quer dizer,

uma mobilização específica em torno da escrita e uma outra mobilização no

estudo como forma de ascensão social marcaram o cotidiano dessas famílias.

A família da professora Socorro Barros ilustra inicialmente esse grupo, em

que a ênfase na estratégia de instrução da aprendizagem da escrita foi

semelhante às adotadas na cultura escolar presentes no exercício caligráfico dos

diferentes tipos de letra, na cópia da carta do ABC, na escrita do nome próprio, na

cópia de frase do livro, do jornal ou do papel de embrulho, na escrita de história e

no aprendizado da ortografia. No depoimento da professora Socorro Barros essa

forma de mobilização se evidenciou quando lembrou:

[...] sou do interior de Alagoas da área rural, do município de Porto Calvo e meu grande sonho sempre foi estudar, o que no momento era muito difícil por não ter escola perto, às vezes tinha escola e faltava professora, o que me fez aprender a ler e a escrever com meus próprios esforços ajudado pela minha mãe que me ensinava na carta do ABC. Com isto me recordo minha primeira escrita copiando as letras da carta do ABC e depois escrevendo o meu próprio nome com letras de forma com o meu próprio esforço. Quando a minha mãe descobriu o que eu

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estava escrevendo disse: não se escreve com esta letra e me ensinou a escrever em letra cursiva. Daí eu fiquei copiando o meu nome várias vezes até sentir que já havia aprendido. Lembro-me que ficava muitas vezes copiando frase do livro, de jornais velhos que aparecia em casa como papel de embrulho e com isto fui aprendendo com meus próprios esforços. Nessa época eu de 10 pra 11 anos. E tinha muita vontade de ir pra escola (Socorro Barros, 2a carta).

Apesar de ter sido apenas alfabetizada, sua mãe promoveu uma

mobilização sistemática em torno do aprendizado da escrita, o que garantiu a

aquisição da escrita para Socorro Barros, e, ainda, estimulou o sonho em estudar

na capital, sonho alimentado desde cedo na sua infância.

Tanto na carta como na entrevista Socorro Barros recordou a época em

que as missivas acompanharam sua mudança para a cidade, socializando as

novas conquistas com a irmã, a mãe e as primas, que ficaram no interior. No

momento em que avaliou o processo vivenciado na troca epistolar, durante a

entrevista, ela disse:

Foi uma ótima oportunidade de relembrar muita coisa, muitos elementos dessa fase, dessa minha trajetória de vida, dessa minha luta de sair do interior pra vim pra cá, pra estudar e está exercitando mais a escrita mesmo. Eu lembrava muito do momento das cartas, do momento que eu cheguei aqui, que foi em 77, que eu escrevia pra minha irmã, escrevia pra minha mãe, escrevia pra minhas primas. Depois fui pro telefone, mais fácil, é computador, essa coisa toda. A gente foi perdendo esse hábito, mas eu sou ainda daquele tempo atrasado (risos) (trecho da entrevista com Socorro Barros).

Interessante acompanhar, ainda, nesse depoimento, a mudança das

formas de se comunicar com a família: indo da troca das cartas ao telefone e ao

computador, marcando um tempo em que os meios se tornaram mais rápidos,

fáceis e menos tradicionais na transmissão das mensagens.

Outra memória interessante trata-se do incentivo da mãe às produções

escritas de Socorro, que favoreceu a sua auto-estima em relação à escrita e

cultivou a vontade em se tornar uma escritora, como ela avaliou nesse outro

depoimento:

[...] me recordo de um momento muito significativo, quando um dia, escrevi uma pequena história descrevendo uma moça na janela que tinha um sonho [...]

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quando contei essa história para a minha mãe ela comentou com tom de incentivo e de reconhecimento da minha capacidade: Quando crescer você vai ser uma escritora. Essa frase soou como reforço na minha auto-estima e certamente contribuiu muito como incentivo à escrita (Socorro Barros, 2a carta).

As práticas de leituras também estiveram presentes na vida familiar da

docente. Socorro Barros nos lembra que a mobilização em torno da leitura se deu

“por conta própria”, num exercício de autodidatismo, já que sua família vivia em

condições pouco favoráveis a um aprendizado propiciador de uma variedade de

eventos de leitura e de escrita. Portanto, Socorro Barros se valeu do esforço

próprio e de muita curiosidade para superar as condições adversas a que foi

submetida na infância.

[...] eu já gostava muito de ler, eu sempre tive um desejo muito grande de estudar, e não pude, no interior; depois vim pra cá, aquele processo todo. Eu sempre tive uma relação com a leitura como descobrir conhecimento. Eu sempre tive um desejo e uma sede muito grande de conhecimento. E isso, por conta de toda a minha história. Essa sociedade desigual me tirou muito isso, mas, assim por conta própria, eu sempre antes de fazer a faculdade, eu me sentia muito autodidata. Porque eu era uma pessoa que gostava de ler, que gostava de pesquisar, que gostava de descobrir as coisas, curiosa nesse sentido. [...] Para mim, nunca foi nenhum sacrifício ler, como eu vejo muita gente dizer “eu acho um saco ler”. O que era difícil era articular o meu tempo para leitura. Eu sempre dizia assim: “Meu Deus, eu queria ter mais tempo pra ler, sabe. A minha vida é tão corrida, com filho, com casa, com tanta coisa. Aí me falta tempo, mas essa relação com a leitura sempre foi muito boa" (trecho da entrevista com Socorro Barros).

Em síntese, podemos observar que, mesmo não tendo as condições

favoráveis a que estiveram expostas outras famílias, Socorro Barros e os seus

familiares tiveram na prática da troca epistolar a garantia na socialização e

expressão das idéias, sentimentos e acontecimentos através de um evento de

escrita cotidiana: a correspondência íntima na esfera familiar. Além disso, outro

investimento materno envolveu situações em que o aprendizado da escrita foi

acompanhado através de atividades, como o exercício de caligrafia, a escrita do

nome próprio, a cópia de palavras, entre outras.

Diferente da família de Socorro Barros, as outras famílias realizaram uma

mobilização em torno do acesso à escola, enfatizando a importância do estudo de

uma maneira geral, semelhante às famílias das docentes do grupo anterior

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(Dulce, Abda, Ivana, Solange, Shirley e Maria). Trata-se das famílias das

professoras Luciene, Amara, Potira e Socorro Damasceno. Como discutido por

Batista (1998), essas famílias parecem ter desenvolvido uma forte mobilização

para possibilitar a seus filhos a aquisição das habilidades relacionadas à escola,

garantindo assim o sucesso escolar.

Luciene e Amara, ao recordarem os motivos da escolha pelo magistério,

Potira e Socorro Damasceno, quando trouxeram as memórias do diário,

retrataram a realidade precária de suas famílias através de alguns elementos,

como: a formação elementar dos pais, a situação financeira, as condições

precárias dos pais em avaliar o ensino nas escolas e, ainda, a própria relação dos

pais com o ato de escrever e a leitura, nas seguintes memórias:

Lembro-me que não sonhava em ser professora, mas sonhava em estudar para ter uma vida melhor, isto é, diferente da vida de meus pais [...] eles foram maravilhosos e minha mãe sempre preocupou-se com os estudos dos filhos. Ela era alfabetizada e trabalhava na agricultura para ajudar na renda familiar. Meu pai é analfabeto e o único emprego que conseguiu foi de servente no Recife, tendo que passar a semana longe da família, já que morávamos na cidade de João Alfredo em um sítio que ficava a 45 minutos da cidade (Luciene, 3a carta).

A escolha de ser professora para mim foi uma “opção” ou uma falta de opção e orientação. Meus pais, a nível de ensino, são praticamente semi-analfabetos, sabem ler e escrever, mas não possuem escolarização a nível formal, frequentaram escola muito pouco. [...] Minha mãe sempre achou que nós deveríamos estudar porém, ela não tinha condições de avaliar as escolas, qualquer uma servia, desde que fosse escola (Amara, 3a carta).

[...] minha vivência com a escrita que foi marcada por experiências não muito agradáveis, tanto na escola, como em casa. Meus pais são analfabetos funcional, minha mãe sempre estimulou a importância dos estudos para a vida de uma forma positiva, meu pai não estimulava e só cobrava chegando a atrapalhar (Potira, 2a carta). [...] minha família passou por muita dificuldade financeira [...] todos os filhos tinha que trabalhar cedo, todos, meninos e meninas, não tinha boquinha não, lá em casa. [...] ela dizia (mãe) sempre que aprender a escrever o nome e a ler, é a melhor riqueza que dá-se a um filho (trecho da entrevista com Socorro Damasceno).

Portanto, para essas docentes, os pais carecem de um repertório de

escrita e leitura suficiente e adequado que pudesse transmitir às novas gerações.

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Mesmo reconhecendo que houve uma mobilização para oferecer melhores

condições de estudo aos filhos, elas consideram que os pais não representaram

bons modelos como escritores e, assim, tentam justificar as lacunas existentes

nas práticas propiciadas no seu ambiente familiar.

Para essas docentes, os eventos de escrita estiveram ausentes no

cotidiano de suas famílias, ou, ainda, não recordam de nenhum fato marcante

sobre a escrita no ambiente familiar, como elas escreveram:

Não tinha experiência de escrita na minha família, meu pai sempre comentava que ler ainda conseguia mas escrever nem pensar. Minha mãe sempre tinha a mesma opinião (Amara, 3a carta). Na minha família não há nenhum fato marcante que seja desagradável, só havia incentivos por parte da minha mãe. (Potira, 3a carta).

Para Pierre Bourdieu (1974), parece importante não negligenciar a

possibilidade de que as ambições menos elevadas dessas professoras e suas

famílias pode ser um reflexo de uma percepção realista dos obstáculos a serem

superados, ocorrendo, segundo o autor, uma interiorização das probabilidades

objetivas em esperanças subjetivas. Assim, portanto, podemos compreender o

fato de as professoras não recordarem e/ou não reconhecerem as práticas de

escritas no espaço doméstico.

Portanto, a interiorização da negação - quanto ao se “ver” - na condição de

escritor esteve presente nesse grupo, principalmente, se estabelecermos uma

comparação com as práticas de leitura - lembradas e reconhecidas como

legítimas pelas docentes. Portanto, Luciene lembrou que os pais e os tios reuniam

os irmãos e primos para ouvirem as histórias infantis contadas por eles.

Provavelmente, como não havia livros, esses adultos recorriam às memórias das

histórias transmitidas pelos familiares mais velhos, garantindo assim a

preservação de uma prática comum na vida do interior e no meio rural: a roda de

contação de histórias.

[...] minha experiência com a leitura e escrita teve início desde criança, quando eu, meus irmãos e primos se juntava à noite, principalmente, nas noites de lua

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para ouvir histórias narradas por meus pais e tios. Sentados numa calçada ao luar, ouvíamos as histórias que eram contadas por pessoas simples, que tinham um jeitinho especial de nos envolver e levarmos para um mundo imaginário. Ali não havia livros nem tão pouco imaginava-se que aqueles contos maravilhosos estivesse sido escritos por Grimm, Andersen ou Perrault. (Luciene, 1a carta).

Por fim, a professora Socorro Damasceno evidenciou que, para além da

esfera familiar, outras redes de sociabilidades, como a comunidade, exerceram

influência sobre a oralidade, a leitura e a escrita nas práticas cotidianas. Na 2a

carta, ela recordou da influência da literatura de Cordel, das leituras das músicas

de Luiz Gonzaga e do livro “O Manifesto”, de Marx, da participação no grupo de

jovens em que escrevia manifesto e jogava fora, das memórias que escrevia dos

acontecimentos vividos e que também jogava fora, embora estivessem ainda

presentes nas suas memórias.

O Cordel influenciou o meu gosto pela leitura e escrita. Passei por todo processo da ditadura e repressão política e me revoltava com o sofrimento dos camponeses na minha terra. Gostava de escrever como seria o Brasil se eu fosse presidente. Em 64 eu tinha 12 anos e vi tudo o que acontecia mas minha consciência política ainda não estava acordada. Só em Brasília Teimosa a partir das leituras das músicas de Luiz Gonzaga e o livro de MARX O Manifesto que eu descobri o que tinha acontecido com o nosso país em 64. Em 1970 eu fazia parte de um grupo de jovens e gostava de escrever manifesto sobre meus colegas que iam presos ou sobre o SNI nos rondando eu escrevi tudo e rasgava. Estas memórias registradas joguei-as foras mas tudo eu guardo não esqueci de nada. Muitas eu busco no fundo do baú e encontro lembranças que o tempo não pode apagar (Socorro Damasceno, 2a carta).

Na entrevista, quando recordou das orientações que fornecia aos irmãos

menores com a “ajuda” da sua mãe, que “fazia de conta” que lia e escrevia para

estimulá-los a aprender a ler, escrever e contar, ela relatou:

[...] ela codificava, agora ela era uma sábia, pelo fato de ter muitos filhos, ela colocava todo mundo de tarde, os menores pra aprender a ler, e me usava muito como professora. Veja onde está a minha vida de professora (risos) [...] minha mãe sentava e fazia de conta que sabia ler e escrever bem (eu não esqueço isso nunca!), Emília. Aí ela: “Tal exercício, é assim”. “Mãe, é assim!”. Ela: “É desse jeito. Ó, Socorro você fez assim? É assim?”. Pronto, ela era sábia, ela fazia de conta que sabia pra estimular os filhos, e então todo mundo aprendeu a ler, escrever e contar (trecho da entrevista com Socorro Damasceno).

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Na sua família a aprendizagem do nome próprio se transformava em um

acontecimento compartilhado com outros vizinhos da comunidade.

[...] agora, nós tínhamos que aprender a ler, agora quando se aprendia a escrever o nome, era uma festa. Isso era contado assim, na rua, chamava-se de povoado. Todo mundo ficava sabendo: “a filha de D. Beturina aprendeu a ler, ela está sabendo ler”. Isso era uma coisa assim, fantástico, era um fato aprender a escrever o nome, era um fato (trecho da entrevista com Socorro Damasceno).

Outro acontecimento incentivado na família da docente se refere à roda de

contação de histórias, em momentos compartilhados na comunidade, que

participava contando histórias da tradição oral. Posteriormente, Socorro estendeu

essa prática no convívio com as prostitutas que ouviam as histórias lidas por ela.

[...] minha mãe incentivou muito a leitura, no fundo, no fundo, ela incentivou muito. A leitura do hino nacional, a leitura da Bíblia, a leitura do catecismo, não existia jornal [...] Ela contava muita história de “trancoso”, ela e junto com as comadres se juntava de noite. Agora veja, existia história de vampiro, de alma penada, de defunto que voltava do cemitério. Histórias, essas histórias, assim, pouco a gente ouvia histórias de príncipes encantados. Eram mais as histórias, tinha história da “barba vermelha” que era fora do normal, e da “cumadre florzinha”. Meu Deus, era tão real! Minha mãe contava com uma veracidade tão grande que de noite eu me acordava assustada, pensando que vinha defunto, vinha alma, vinha tudo me pegar (risos). Mas, mesmo assim, eu sinto que me induziu muito ao ato de querer, querer saber as coisas. Eu tenho uma ganância, pronto, se existe uma ganância que eu tenho muito grande na minha vida é pelo ato do conhecimento. Eu tenho uma ansiedade muito grande por conhecer as coisas, pelo conhecimento, muito grande mesmo, eu quero está sempre estudando [...] (trecho da entrevista com Socorro Damasceno).

Em linhas gerais, podemos verificar que as docentes que integram esse

último grupo, não compartilharam das condições favoráveis que constituem e

caracterizam as outras famílias, no que se refere à formação escolar dos pais e

as condições econômicas. No entanto, as professoras Socorro Barros e Socorro

Damasceno não apresentaram uma posição submissa em relação às condições

objetivas a que estiveram expostas nas suas famílias. Para elas, apesar de

reconhecerem as limitações familiares e suas próprias dificuldades em escrever,

elas escrevem, expressando as idéias e pensamentos, diferente das professoras

Luciene, Amara e Potira, que assumiram uma postura conformada e marcada

pelas dificuldades familiares, incorporando às suas expectativas subjetivas,

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refletindo-se, por exemplo, na relação tensa estabelecida com a escrita.

Observamos que, principalmente, a professora Potira justificou sua dificuldade

com a escrita em razão da situação precária de sua família, sem considerar ao

menos o seu percurso na formação acadêmica.

Nas próximas seções analisarei as três esferas de socialização das

práticas de escrita, identificando o que escreviam: no contexto familiar, no

processo de aprendizagem escolar, na formação e prática docente.

2. ESCRITAS NA ESFERA FAMILIAR

Na seção anterior foram descritas as diferentes configurações familiares

em torno do universo da cultura da escrita. Apesar do “não reconhecimento” ou

“esquecimento” dos eventos de escrita no contexto familiar, algumas professoras,

estimuladas pela pesquisadora, recordaram usos diferenciados da escrita. Neste

sentido, as seguintes questões orientaram nossa análise: O que lembram as

docentes de seus primeiros gestos de escrita na família? Elas recordam onde,

quando, o que e para que escreviam no contexto doméstico? Que

situações/eventos de escrita foram vivenciados por elas no espaço familiar?

Em linhas gerais, o diário e a correspondência foram os usos de escrita

mais freqüentes no cotidiano das docentes. Esse resultado confirma os estudos

anteriores (ver Capítulo 1), que ressaltaram a freqüência da prática do diário no

universo feminino na cultura da escrita, bem como aponta a existência do gênero

epistolar nas escritas domésticas. Portanto, na diversidade de escritas no

universo privado, as memórias das docentes enfatizaram a escrita do diário,

reservada ao uso privado, e as escritas destinadas para o outro, no caso da

correspondência.

O diário esteve presente nos relatos de seis professoras, enquanto outras

cinco afirmaram nunca terem mantido um diário na época da adolescência. A

correspondência foi vivenciada nas famílias de nove professoras. A maioria das

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docentes recordou outras produções textuais, como: conto, poema, poesia,

história, música, romance, pensamento, desabafo, cartão, mensagem, telegrama

e bilhete. Apenas duas professoras não trouxeram nenhuma recordação sobre os

usos da escrita na esfera familiar ou pessoal. Abordaremos, a seguir, as práticas

de escrita do diário, da correspondência e de outros textos mencionados pelas

professoras. O quadro a seguir resume o que e para que as professoras

escreveram na infância e adolescência, na esfera doméstica.

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Quadro 16 : Materiais e razões para escrever na família nos relatos

escritos e orais

Professora Materiais escritos Razões para escrever 1. Abda Não teve diário.

Carta e cópia de carta Mensagem

Comunicação com o namorado “Escriba” das cartas da avó para o tio Recordação dos amigos

2. Adriana Diário História, poema. Cartão

Expressão de sentimentos Confissão dos segredos Expressão dos sentimentos para o pai

3. Amara Nenhuma informação Nenhuma informação 4. Angélica Diário

Caderno de mensagem Carta

Expressão de sentimentos Recordação dos colegas Comunicação com amigos

5. Dulce Não teve diário. Carta, bilhetes, telegramas, cartões com mensagem Música, cadernos pessoais, questionários íntimos, cadernos de romance, cadernos de pensamentos, cadernos de poesias

Comunicação com os familiares

6. Elaine Diário Poesia e conto Carta

Expressão de sentimentos Relato de vida, confidências, segredos Comunicação com amigos

7. Ivana Não teve diário e não escrevia cartas. Desabafo

Expressão de sentimento e conflitos para o namorado

8. Jacqueline Diário Poesia Adivinhações

Expressão de sentimentos Inspiração Socialização através do jogo com colegas

9. Luciene Nenhuma informação Nenhuma informação 10. Márcia Carta Comunicação com amigas 11. Maria Diário

Cartas Conservar e lembrar o que viveu Comunicação com amigas

12. Potira Não teve diário. - 13. Shirley Carta Comunicação com namorado 14. Socorro Barros

Diário Poesia Carta História Cópia das letras da carta do ABC, nome próprio, frases do livro e de jornal velho.

Expressão de sentimentos Inspiração Comunicação com familiares

Aprendizagem da leitura e da escrita

15.Socorro Damasceno

Carta Cadernos de poesias e versos Desabafo, manifesto.

Anotações das medidas das roupas Lista das mercadorias e dos respectivos preços

“Escriba” das cartas da mãe com familiares e das prostitutas com amantes

Expressão de sentimentos Organização e memorização

16. Solange Não teve diário e não escrevia cartas.

-

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2.1. A ESCRITA DO DIÁRIO

O que significou a escrita do diário para as docentes? Como podemos

observar no quadro apresentado anteriormente, o diário foi associado à

expressão de sentimentos, conflitos, segredos, confidências e desabafos, assim

como foi encontrado no relato da memorialista Cecília de Assis Brasil, analisada

por Bastos (2000), conforme discutimos anteriormente. Portanto, uma das

principais funções da escrita do diário serve à constituição da identidade pessoal,

manifesta ou confirma a identidade a si próprio ou ao grupo a que pertence.

Geralmente é na adolescência que essa prática de escrita começa a ser

vivenciada. É interessante observar que, para a maioria das professoras de nossa

pesquisa, a adolescência marca o período em que se iniciam as escritas

produzidas no foro íntimo e privado, enquanto que os eventos de escrita ocorridos

na infância foram menos lembrados.

A razão da ausência de lembranças em uma determinada época – no

caso, a infância das professoras desta pesquisa - foi analisada também por

Lacerda (2000) no estudo dos relatos das memorialistas. Segundo a autora, elas

elaboravam seus discursos buscando evitar os acontecimentos dos tempos mais

distantes, num esforço de não-lembrança. Podemos compreender que escrever e

rememorar os acontecimentos vividos são uma tarefa movida pela realidade à

qual se está exposto cotidianamente, sendo marcada pelas limitações e

possibilidades do uso da memória.

Em resposta ao meu depoimento, onde compartilhei com as docentes

dessa prática de escrita, seis afirmaram terem escrito diários na adolescência.

Esperava que essa referência suscitasse as memórias das docentes quanto à

presença ou ausência do diário e dos outros usos da escrita no universo familiar -

escritas produzidas na esfera privada, embora, algumas vezes, destinadas à

socialização, como no caso da correspondência ou do caderno de mensagens

trocadas entre amigas.

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Apesar de a maioria das docentes terem rememorado o diário após o

estímulo da pesquisadora, essa prática de escrita foi lembrada por três

professoras – Elaine, Adriana e Socorro Barros – desde a primeira carta que

escreveram, em resposta à minha carta-convite, como evidenciam os seguintes

depoimentos:

[...] durante minha vida escrevi coisas que depois jogava fora, sem deixar ninguém ler. Eram só meus. Como toda adolescente, também tive meu diário e nele, além de escrever algumas coisas que aconteciam na minha vida, que eu achava totalmente sem graça, escrevia também as coisas que eu queria que acontecessem: os diálogos com os paqueras, as respostas desaforadas a minha mãe, a vitória em cima da rival. Também eram escritos escondidos até que alguém arrombou meu diário e deixei de escrevê-lo (Elaine, 1a carta).

Escrevi diário durante vários anos, e ainda escrevo às vezes, por isso acredito que tenha coisas para contar que possam te ajudar, se o que você quiser for experiências pessoais (Adriana, 1a carta).

Confirma-se, nesses depoimentos, que a função do diário na vida de uma

adolescente significa a possibilidade de, através da escrita, confessar os

segredos, desabafar, expressar os desejos, as fantasias e os sonhos. A escrita do

diário representava para Elaine o desejo de transformar a “vida monótona” em um

“conto de fadas”. Corresponde a uma escrita íntima, privada, para si, que não é

para ser compartilhada com outras pessoas. Essa professora fala, tanto no

depoimento anteriormente mostrado, como no que segue, da forma como foi

invadida no momento em que uma outra pessoa – seu ex-noivo – se apossou de

seu diário, invadindo sua privacidade:

Como você, quando adolescente eu também tinha um diário que era o meu tesouro. Era nele que eu fazia da minha vida monótona um conto de fadas, escrevendo mais o que eu queria que fosse do que o que realmente acontecia. Até que meu ex-noivo o arrombou e foi uma confusão só porque ele não se reconheceu no mocinho da minha história. Me senti invadida, violada, espionada e até traidora porque ali estavam meus sonhos, meus desejos, minhas angústias e, mesmo sendo em grande parte fantasia, não estava pronta para ser mostrada. Rasguei o diário e não escrevi mais nada do tipo até uns três anos atrás quando fiz da minha agenda também o meu diário onde festejo ou desabafo o que quero. Mas continuei escrevendo algumas poesias (que já não eram rasgadas, embora não fossem mostradas) e arrisquei em dois contos (estou iniciando o terceiro) e quem sabe um dia eu não me torno escritora (Elaine, 2a carta).

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Adriana, como Elaine, via no diário a possibilidade de uma escrita íntima:

uma forma de expressar, de “canalizar os sentimentos”, sendo assim um meio de

desabafar as confidências:

Sempre gostei muito de escrever e sempre tive uma certa facilidade para isso. Escrever representa para mim uma forma de canalizar meus sentimentos. Durante anos escrevi diário e colocava nele coisas que eu não queria que ninguém soubesse, meus segredos. Era a forma que eu encontrava de me abrir, já que nunca fui muito boa para falar de sentimentos que me machucavam. Ainda possuo esses diários, embora não escreva neles há quase dois anos, desde que a minha mãe morreu. Este é um dos últimos registros que está lá (Adriana, 2a carta).

Angélica lembrou da escrita do diário como uma atividade prazerosa, a

qual adorava fazer:

Quando você falou em diário, eu lembrei que quando completei 12 anos ganhei um diário e adorava passar os dias escrevendo sobre tudo o que me acontecia. É interessante como eu não lembrava mais disto (Angélica, 2a carta).

Para Socorro Barros, a escrita do diário corresponde a uma “escrita livre”,

sem preocupações com “a forma, a estética, com a gramática ou com a

pontuação”. E ela complementa afirmando que, com essa experiência, “a escrita

ia também ganhando novo significado”:

Outro passo na aquisição da escrita foi a relação com o diário. Botar tudo pra fora sem muita preocupação com a forma, a estética, com a gramática ou com a pontuação. E cada passo que eu ia avançando no diário a escrita ia também ganhando novo significado [...] (Socorro Barros, 1a carta).

Já Jaqueline, ao contrário de Socorro, ressalta que mesmo as escritas

exercidas no espaço privado não escapam das regulamentações e normas

definidas em outras situações de escrita, que terminam marcando os modos de

escrever. Por isso, a docente destacou sua imagem como crítica diante do que

escrevia e afirmou que, “só após compreender” a relação de poder implícito no

ato de escrever, os valores atribuídos à escrita foram analisados por ela como

inibidores no ato de escrever com fluidez e desenvoltura. Para ela, essa reflexão

contribuiu para que a escrita pudesse ser exercida “com prazer” e “sem censura”

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e ainda atribuiu sua dificuldade em escrever diário em função da auto-avaliação

exigente que realizava diante do que escrevia:

Tive dificuldades de escrever diário de minha vida pôr sofrer de uma auto-correção crônica, e só após compreender o verdadeiro valor e relação de poderes implícitos na escrita é que comecei a exercer esse ato com prazer, como lazer, sem preconceitos, sem censuras (Jacqueline, 2a carta).

Provavelmente, Jacqueline se refere ao ato de escrita desenvolvida na

esfera pública em que a escrita se apóia, com a função de garantir a regra, a

norma e a forma inscritas na idéia do “escrever corretamente”. Portanto, a relação

de poder da escrita é captada no ato de escrever e incorporado pelo escritor, que

estende a outros eventos de escrita, mesmo aqueles desenvolvidos na esfera

privada.

Maria, ao falar da escrita do diário na entrevista, destaca a possibilidade de

através dele reviver na atualidade os momentos vividos na adolescência:

[...] eu também tive uma época que fiz diário, é. Eu só fiz um diário. Mas eu achei interessante, porque hoje você pega o que está escrito e você vai ler, você vai lembrando daquelas coisas que você viveu (trecho da entrevista com Maria).

Outras cinco professoras - Ivana, Potira, Solange, Dulce e Abda -

afirmaram, em resposta ao meu depoimento sobre a escrita do diário, que não

vivenciaram essa prática na adolescência. Ivana e Dulce apenas afirmaram que

não tiveram diários:

Nunca tive um diário (Ivana, 2a carta).

Nunca possui diário (Dulce, 2a carta).

Potira registrou a ausência do diário e acrescentou que “se tivesse”

exercitado essa prática de escrita “teria gostado”. Dessa forma, ao mesmo tempo

em que destacou a diferença em relação ao depoimento da pesquisadora,

expressou sua semelhança quando confessou o gosto pela escola. Seu

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depoimento parece pressupor ainda que a ausência do diário não se justifica, no

seu caso, pela falta de gosto com as atividades escolares.

Ao ler sua carta com as experiências de escrita com o diário lembrei-me que nunca tive um, mas acredito, se tivesse teria gostado, porque eu gostava da escola, de estudar e do trato com o material escolar (Potira, 2a carta).

Por fim, Solange, ao afirmar que não teve diário, justifica a ausência

relacionando essa prática de escrita a pessoas com poder aquisitivo:

Gostava era sim de jogar espetinho no barro quando chovia, empinar pipa próximo à serra. Correr de bicicleta emprestada. Sentar no meio fio da calçada para passar o anel. Quantos sonhos! Escrita e leitura dessa fase não tenho recordação. Nada marcou. Sei apenas que era boa aluna. Nunca gostei de caderninho de recordação. Era para as garotas ricas. Podiam comprar. Diário nem pensar. (Solange, 2a carta).

Dessa forma, vimos que o diário foi uma dos usos da escrita presente nos

cotidianos familiares das docentes dessa pesquisa. Veremos no uso da

correspondência como se deu a relação com essa prática epistolar.

2.2. A ESCRITA DE CORRESPONDÊNCIAS

Outra prática de escrita rememorada pelas docentes foi à troca de

missivas, provavelmente estimulada pela própria prática em ato. A referência a

essa prática de escrita se deu através da situação real de comunicação que se

vivenciava, portanto, nenhuma experiência familiar foi lembrada pela

pesquisadora. No entanto, as docentes lembraram vários momentos em que essa

prática esteve presente nas famílias. O que elas escreveram sobre a troca de

missivas?

O uso da correspondência na família foi uma das práticas de escrita

citadas com freqüência nos depoimentos das docentes. Escrever cartas para os

familiares, o namorado e amigos representou situações em que a escrita assumiu

uma finalidade e contexto de uso significativo e prazeroso, favorecendo o

estabelecimento de uma relação fluída com a escrita.

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Dulce, Elaine, Angélica, Márcia, Socorro Barros, Abda, Socorro

Damascena, Maria e Shirley lembraram da escrita das cartas vivenciadas na

família, iniciadas por motivações diversas: para estabelecer um canal de

comunicação, encurtar as distâncias geográficas, manter uma amizade ou

namoro com o paquera. Apenas Ivana e Solange registraram a ausência da

prática epistolar na esfera doméstica. Elas mencionaram essa ausência logo na

primeira carta, talvez para justificar para mim, que estava solicitando que se

correspondessem comigo, o fato de não terem muita experiência com essa

prática de escrita:

[...] durante minha vida de estudante, quando não fui incentivada pela escola, nem pela família, na arte de escrever cartas. Acho que este atropelo repercutiu até hoje na arte de fazer amigos de longe, que não receberam resposta e não se comunicaram mais. Como vê, não sou muito boa nisso (Ivana, 1a carta).

[...] não lembro a data em que escrevi uma carta – pelo menos uns 28 anos (Solange, 1a carta).

Socorro Barros, Elaine e Angélica destacaram, no exercício da troca de

cartas com familiares e amigas, o estabelecimento de uma relação prazerosa com

a escrita, vinculando à facilidade de escrever.

[...] eu escrevia e recebia cartas com freqüência. As cartas eram da minha família, de amigas... Foram também as cartas um canal de comunicação e de desenvolvimento da minha escrita, pois elas conseguiram, de certa forma, estabelecer uma relação prazerosa e calorosa com o ato de escrever (Socorro Barros, 1a carta).

Hoje o que eu mais sinto falta são das longas cartas que trocava com amigos (adoro fazer amigos seja pessoalmente, por carta ou por telefone) e que a falta de tempo transformou em bilhetes e depois em breves telefonemas de fim de ano e de aniversário (Elaine, 1a carta).

Talvez esta minha facilidade se dê a minha adolescência, na qual eu vivia escrevendo cartas para amigos que nunca vi pessoalmente, tanto das diversas regiões do Brasil como de países que falam português como Angola e Portugal e países que falam espanhol (3a carta, Angélica).

O que as docentes escreviam nessas cartas? Elas contavam as novidades,

expressavam as idéias, as confidências e os sentimentos. Além de explicitar os

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motivos para utilizar a carta, o suporte utilizado (caderno, envelope, folha avulsa),

as estratégias na elaboração da escrita (rascunho, organizar as idéias), o lugar de

onde a carta é escrita e para onde a carta seguia, as pessoas que escreviam

cartas na família, o tipo de linguagem informal utilizado nas cartas entre amigos, o

uso de gírias e expressões utilizados por jovens, os erros ortográficos cometidos

com freqüência também foram mencionados pelas docentes em suas memórias.

[...] nessas cartas eu envolvia muito sentimento, fazendo também um grande esforço em organizar as idéias e formular frases completas expressando o assunto que eu queria transmitir (Socorro Barros, 2a carta). Durante a adolescência, além de escrever o que era solicitado na escola, comecei a escrever cartas [...] morava em São Paulo e mudei para o Recife [...] durante os primeiros seis meses de 1982, passamos escrevendo e recebendo cartas. Minha mãe conta, que comprou, na época, 400 envelopes, o que correspondia a quantidade de cartas que eu, minhas duas irmãs e ela enviávamos. Considero este fato um exercício importante de escrita, embora que bastante espontâneo, porque eu escrevia obedecendo ao padrão estético de cartas, mas a linguagem era bem parecida com a linguagem oral, com gírias e expressões que usávamos entre nós (Márcia, 2a carta).

Certo dia peguei uma carta que escrevi quando era adolescente e vi como escrevia mal (Shirley, 2a carta) [...] peguei um rascunho das cartas que eu enviava para ele (namorado) e notei que cometia erros de português terríveis (Shirley, 3a carta).

A professora Dulce mencionou, além da prática da troca de

correspondências entre os familiares, outros eventos de escrita – telegramas,

bilhetes, cartões - que comungam da mesma função de estabelecer a

comunicação com o outro que está distante, como nos revela o seu depoimento.

Sempre gostei de me corresponder, com meus familiares que moram em São Paulo, outros na Suíça, outros na França, em Tocantins, na Paraíba, em Portugal, e na querida Belo Horizonte. Esta minha diversão foi cultivada durante meu curso primário, pois fazíamos cartas, bilhetes, telegramas, cartões com mensagens e esta atividade me marcou, pois gostava de fazê-los (Dulce, 2a carta).

As professoras Maria, Abda e Socorro Damasceno, na entrevista,

lembraram da correspondência evidenciando aspectos diversos. Maria destacou a

preservação das missivas trocadas entre amigas, acumuladas e guardadas como

uma forma de preservar as vivências e experiências passadas. Abda, além de

recordar a comunicação com o namorado que morava em outra cidade, vivenciou

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a experiência de “escriba” nas cartas trocadas entre a avó e o tio, quando era

pequena.

[...] e algumas cartas, eu guardava muitas cartas de correspondência com as amigas, eu guardava. Hoje em dia eu já estou eliminando essas coisas... (trecho da entrevista com Maria).

Antes eu já me correspondia com meu namorado. Eu namorei um menino quando eu tinha 14 anos, ele morava em Natal, e a gente se correspondia muito, escrevia muito durante uns dois meses. Era carta quase todos os dias, depois disso eu não me correspondi mais com ninguém. […] Eu passava a limpo as cartas que minha avó recebia de um tio meu. E eu era bem pequenininha [...] (trecho da entrevista com Abda).

Socorro Damasceno evidenciou a expectativa dos pais na aprendizagem

da leitura e escrita das filhas, que serviriam como “escribas” na família – função

assumida também pela professora Abda. Interessante perceber que, na família de

Socorro, a leitura e a escrita das missivas era uma tarefa destinada às mulheres.

Essas missivas que ficavam sobre a responsabilidade feminina tratavam dos

acontecimentos cotidianos, como a necessidade em comunicar sobre o

falecimento de um parente ou as comemorações de um casamento.

A correspondência também foi exercida fora do contexto familiar, no

convívio com as prostitutas a quem Socorro servia como escriba das cartas para

os amantes, em troca de adornos e presentes pelo seu trabalho, função

reconhecida tanto na família como na comunidade. Assim, a função de escriba

das missivas que circulavam na sua família foi extrapolada para as experiências

de escrita fora do ambiente doméstico.

[...] (os pais esperavam que) as filhas teriam que aprender a ler e a escrever, e fazer carta, porque se um dia precisasse escrever uma carta, morrer alguém da família, precisar é, comunicar um casamento, alguma coisa, então a gente tinha que aprender a escrever uma carta. Era o principal instrumento que lá, dentro de casa, tinha que aprender. É interessante, quando eu fiz esse trabalho, eu fiz uma ligação muito grande com a minha mãe. [...] A carta era muito incentivada. [...] eu era a escritora das cartas da minha casa. Todo mundo que precisava de cartas na vizinhança, quando eu vejo aquela história da estação (sobre o filme “Central do Brasil”), eu me lembro muito de mim. Os vizinhos, “ave maria”, eu vivia assim, era a minha casa e ao lado vivia um monte de prostituta, tinha pra mais de 10. Eu ia pra casa dela: “ah, minha filha, era cada coisa de arrepiar os cabelos!” Que ela mandava colocar nas cartas para os amantes delas. Mas, eu louca pra escrever

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(risos). E elas faziam assim: “Ó, Socorro, quando a gente ganhar perfume e batom, a gente traz pra você”. Elas me deram um estímulo grande (trecho da entrevista com Socorro Damasceno).

Elaine, durante a entrevista, estimulada pela pesquisadora, recordou das

“longas cartas” que escreveu na adolescência. Como escrito na sua primeira

carta-resposta, ela confirmou essa prática e forneceu informações sobre a

materialidade e o conteúdo dessas missivas, como revela no seguinte trecho:

Emília: Você fala que durante a adolescência trocava muita carta. Elaine: Muita, muita e eram assim cartas. Eu tinha uma colega que se correspondia sempre comigo e, no mínimo, minha mãe dizia que era um caderno, porque no mínimo iam 4 a 5 folhas frente e verso. Mamãe dizia: “vocês vão me levar à falência, vocês vão levar a mim e a mãe dela à falência, porque isso não é carta não, é bloco”. A gente trocava todo tipo de confidência, de fofoca, de sentimento, tudo vinha nessas cartas (trecho da entrevista com Elaine).

Portanto, as missivas foram espontaneamente lembradas como uma

prática de escrita bastante comum nos lares das docentes dessa pesquisa. Além

da correspondência e do diário, outros gêneros textuais estiveram presentes na

esfera familiar, como veremos na próxima seção.

2.3. A ESCRITA DE OUTROS GÊNEROS TEXTUAIS

Poema, poesia, desabafo, mensagem, cartão, história, caderno de

pensamento, caderno de romance, questionário íntimo, música, bilhete, anotação

constituem o universo diverso dos outros eventos de escrita presente na esfera

familiar das docentes, além da escrita do diário e da correspondência, analisados

anteriormente. A época da adolescência marca o momento em que se iniciam

essas escrituras confessionais e privadas.

Várias docentes relataram suas memórias com a escrita desses gêneros –

Adriana, Angélica, Jacqueline, Dulce, Socorro Barros, Socorro Damasceno, Abda

e Ivana, – como veremos a seguir:

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Adriana recordou que, na mesma época do diário, iniciou sua produção de

poemas e poesias e, “antes mesmo” dessa prática com o diário, ela escreveu

“pequenas histórias”.

Desde muito cedo, antes mesmo dos diários, gostava de escrever pequenas histórias que eu assinava com outro nome nem me lembro qual agora. Sempre fui, e ainda sou, muito crítica comigo mesma e com raras exceções não gosto do que eu escrevo. Depois dessa fase, da qual infelizmente eu não tenho nada, eu comecei a escrever poemas. Tenho bastante coisa escrita, embora nos últimos meses não tenha produzido nada (Adriana, 2a carta).

Teve uma época, coincidentemente, na mesma época do diário, eu produzia muito poema, independente da qualidade, eu acho a qualidade deles meio duvidosa, mas eu escrevia. Hoje em dia, eu ainda me arrisco, de vez enquanto está saindo alguma coisa (trecho da entrevista com Adriana).

Quando foi assim, por volta dos meus dez, onze anos, eu comecei a escrever histórias. Eu não sei classificar, eu sou muito sincera em lhe dizer, eu não sei classificar num gênero literário. Eu não sei se era conto, se era poema, não, não era poema, mas assim, não sei se era conto, se era crônica. Então eu imaginava uma história e escrevia, mas aí eu tinha vergonha de dizer que era eu que escrevia, na hora. Besteira, né, todo mundo conhecia minha letra, mas na hora de assinar eu botava outro nome, de outra pessoa, um pseudônimo, que era sempre o mesmo nome, mas eu não me lembro mais qual é. E hoje em dia, eu morro de pena, porque assim, dessas fases, eu rasguei, joguei tudo fora. Eu queria muito ter essas coisas. Depois, eu comecei a escrever mais em forma de poemas mesmo, eu não tenho muito aquela coisa da rima da métrica, mas eu gosto de escrever em forma de poemas; eu tenho muito, muito poemas escritos, como eu disse, a qualidade deles hoje em dia eu questiono, mas hoje em dia eu já não rasgo, porque foi uma coisa que eu produzi. Mas esses primeiros, eu lembro que eu escrevia, no final eu colocava três coraçõezinhos e assinava com outro nome pra ninguém saber que era eu (trecho da entrevista com Adriana).

Por fim, Adriana recordou a escrita de um cartão para o pai que ainda o

preserva guardado, fato que provavelmente demonstra uma relação positiva que

o pai mantém com as produções escritas da sua filha.

Eu me lembro de um cartãozinho que eu fiz pra ele (o pai), que eu não lembro o que eu tinha escrito, mas eu lembro de um cartãozinho que eu fiz pra ele, quando eu tinha sete anos, que ele tem guardado até hoje, porque ele disse que era a coisa mais linda do mundo (trecho da entrevista com Adriana).

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Socorro Barros e Jacqueline destacaram a escrita de poesias como fonte

de inspiração, como os seus depoimentos nos revelam:

A poesia também foi ou é outro ponto de inspiração que faz com que agente não sonegue enquanto que a gente não passe pro papel nossas idéias mas também é outra forma de escrever e reescrever, cortar aqui acrescentar ali, até chegar a uma organização mais ou menos satisfatória. Às vezes, flui naturalmente, outras vezes é um quebra-cabeça difícil de juntar as peças (Socorro Barros, 1a carta). Na adolescência, escrevi algumas poesias sob influência das amigas e de uma professora (evangelizadora espírita que é poetisa). Quando escrevi tinha sempre como inspiração MINHA MÃE (Jacqueline, 2a carta).

Além das poesias, dos poemas e das histórias, Dulce e Angélica

lembraram que tiveram os cadernos pessoais e escreveram mensagem, romance

e pensamento. No entanto, apesar de “escrever para si”, Dulce emprestava os

cadernos entre as colegas, para que fossem lidos e as opiniões fornecidas,

socializando, assim, o que escrevia.

Gostava de escrever música tinha vários cadernos pessoais, questionários íntimos, cadernos de romance, cadernos de pensamentos, cadernos de poesias (Dulce, 2a carta).

Também na minha adolescência, tinha um caderno onde todos os professores e colegas escreviam mensagens para mim, hoje não tenho nem idéia de onde possa ter ido parar este caderno (Angélica, 2a carta).

Outros usos da escrita produzidos na esfera privada mais destinada à

socialização se fizeram presentes durante a adolescência de Dulce, Ivana, Abda e

Socorro Damasceno. Ivana, por exemplo, escrevia para o namorado com o

objetivo de “expressar o que sentia”, ou seja, a escrita para desabafar os

sentimentos, os conflitos e as descobertas, apesar de ressaltar o pouco

investimento da sua família em relação ao “exercício da escrita como canal de

comunicação”.

[...] lembro-me que na adolescência escrevia para o meu namorado (hoje meu atual marido) sobre os meus sentimentos, conflitos e descobertas. Acho que tinha muita confiança nele (Ivana, 2a carta). [...] a escrita não teve muito presente, nestes períodos em minha vida. [...] Nunca fui incentivada para o exercício da escrita como canal de expressão, escrevia quando necessário, só na adolescência, como já disse, escrevi para expressar o que sentia (pouco tempo da adolescência) (Ivana, 2a carta).

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Abda, no entanto, destacou ser diferente da pesquisadora em relação ao

prazer em escrever na infância e adolescência, confirmando que “nunca fui de

escrever” na sua família, embora tenha vivenciado a troca de cadernos de

recordação entre os colegas da escola, mesmo não gostando de escrever para

eles.

Em sua carta você fala do prazer que sentia em escrever na infância e na adolescência. Eu sou diferente. Nunca fui de escrever. Também tinha aqueles diários de recordação quando era adolescente, onde pedia que os amigos escrevessem para mim. Mas, não gostava muito de escrever no diário dos colegas (Abda, 2a carta).

Também a professora Socorro Damasceno lembrou que a socialização e

troca dos cadernos de poesias e versos foram vivenciadas na sua adolescência.

Em seu depoimento, ela se refere à prática de escrever “o que sentia no

momento”, para “depois jogar fora”, como reflexo da educação repressora que

recebeu em sua família.

Minhas memórias em relação à escrita [...] eu guardo grandes lembranças e boas recordações e aprendizado enquanto pessoas [...] Quando criança/adolescente as colegas tinha cadernos de poesias e versos e trocávamos na hora do recreio. Outra prática era escrever o que eu sentia no momento, mas depois joga fora, pois eu tive uma educação repressora então queria que ninguém soubesse dos meus sentimentos (Socorro Damasceno, 2a carta).

Apenas na entrevista, Socorro Damasceno recordou eventos de escritas na

socialização com pessoas da comunidade, indo além da esfera estritamente

familiar, como no caso da relação que estabeleceu com a costureira, quando

anotava as medidas de roupas ou escrevia bilhetes, também para as prostitutas, a

lista de material para a professora e, ainda, o preço dos produtos da feira para o

pai e as músicas que ouvia com a mãe.

[...] com 16 anos fui traballhar com uma costureira, ela era analfabeta. Ela me pedia pra fazer anotações das medidas, me pedia pra fazer anotações de tudo, escrever os bilhetes pra quem estava devendo. Eu sou muito usada na história da escrita, por isso eu não ligo (risos). Teve uma época, eu escrevia bilhetes pra elas, escrevia tudinho, das costureiras. [...] minha mãe comprou uma radiola grande e velha que tinha um estilo diferente e começava a colocar Luís Gonzaga e Nelson Gonçalves. Adoro os dois, faz parte da minha infância. Essas músicas

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gostava de ouvir e escrever as músicas; escrevia muito as músicas delas, porque desde criança eu tenho o sonho de ser escritora. Não é possível que eu morra e não vá realizar (risos); é um sonho frustrado, mas que eu pretendo... Emília: Esse sonho vem dessa experiência, é? Socorro D: De toda essa experiência. Da feira de Vitória de Santo Antão, de fazer relações para comprar o cuminho, o preço da farinha. Meu pai me usava: “Vai Socorro, faz aí!”. Eu me acordava de 4 horas da manhã, e eu adorava aquele mundo fantástico daquela feira, aquele povo gritando, aquela oralidade popular, aquilo me impressionava muito [...] (trecho da entrevista com Socorro Damasceno). [...] me lembrava das prostitutas, que eu fazia bilhetes dela, as cartas, eu lembrava de minha mãe, que mandava fazer as cartas para as pessoas da família, lembrava do meu pai, que mandava escrever as relações de farinha, de preço, de tudo. E tudo isso, e também de Tecla Floro, às vezes, me mandava fazer relações de material, de limpeza [...] eu recordei tudo isso, reportei a todo esse meu passado (trecho da entrevista com Socorro Damasceno).

Para Daniel Fabre (1993), penetrar “la maison des écritures” significa

reconhecer que o espaço doméstico envolve uma diversidade de escritas, sendo,

ao mesmo tempo, uma escrita múltipla e desigualmente compartilhada na esfera

doméstica.

Vimos no conjunto desses depoimentos que as escritas domésticas se

estendem desde aquelas destinadas à organização das coisas (caso de Socorro

Damasceno), estabelecendo relações que podem se estender para fora da

família, até aquelas outras escritas que se desenvolvem no interior da esfera

familiar, mas de uma certa maneira contra ela, na esfera secreta em que algumas

professoras se protegem, preservando a construção de uma identidade. Podemos

acompanhar, ainda, em alguns depoimentos, de forma pouco aprofundada, a

questão do sexo e da idade definidos para a escrita de determinados gêneros. A

carta foi associada à imagem da mãe, assim também como a correção dos erros

de ortografia, a compra de envelopes para carta e o incentivo ao estudo se

relacionam à figura materna. O uso do diário, assim como a escrita de poesias e

desabafos, se inicia na adolescência.

No percurso das memórias sobre as escritas na família, uma passagem

que considero interessante na entrevista com Elaine se deu no momento em que

a pesquisadora buscou compreender a relação entre a presença da leitura na

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infância da docente e a relação prazerosa com a escrita estabelecida na

adolescência. A sua análise da relação entre a leitura e a escrita foi semelhante à

compreensão que Roger Chartier (1994) elaborou quando afirma que a leitura

significa uma sujeição ao texto, enquanto a escrita expressa a autonomia do

sujeito. Para Elaine, a escrita dá “asas”, escrever é “reinventar”, “assumir papéis”,

é “ter outra vida através dos personagens”, enquanto a leitura para ela assume o

lugar que permite ”o sonho, a liberdade, a viagem, o vôo“.

Emília: O fato de você ter tido uma infância muito voltada para a questão da leitura pode ter contribuído para a sua relação prazerosa com a escrita? Elaine: Eu acho que pode, porque é aquilo que eu venho falando sempre, escrever para mim era criar um mundo que me tirasse daquele que eu vivia. Emília: E a leitura, fazia isso? Elaine: A leitura fazia isso, e assim quando eu escrevia as minhas histórias a Elaine ganhava asas quando eu escrevia. A leitura ela já dava o sonho, a liberdade, e quando eu escrevia eu ia, eu assumia os papéis, eu tinha outra vida. Era diferente de ler, eu acho que eu criava. Apesar da identificação que eu tinha com os personagens, eram outros personagens, e ali eu inventava minha história, a partir do momento que eu escrevia. Emília: A relação é diferente? Elaine: A relação era um pouquinho diferente. A leitura propicia esse vôo, essa viagem, mas eu acho que quando (eu nunca tinha parado pra refletir sobre isso), mas eu acho que quando eu parava pra colocar as histórias no papel, eu reinventava Elaine, eu reinventava. Eu fazia uma vida diferente daquela que eu tinha, então eu acho que eu me dava asas (trecho da entrevista com Elaine).

Um outro depoimento, que também amplia as questões aqui discutidas,

refere-se à atitude avaliativa da escrita do outro, como foi mencionado por Abda

na sua entrevista, quando comparou a escrita da prima com a sua maneira de

escrever. Para ela, a ausência de leitura pode explicar a sua relação tensa com a

escrita, como nos revela no seguinte depoimento:

[...] na minha convivência com C. (sua prima), quando a gente era criança convivia muito, muito mesmo. Mas ela é completamente diferente de mim em relação a escrever. Porque C. sempre gostou de ler, ler muito, de ser mais estudiosa e gostava de escrever. Ela tinha um diário, ninguém podia ver e fazia poesias bonitas. Ela fez até uma poesia para Recife. Eu fiquei assim: “menina foi você mesmo que escreveu isso?” Eu era criança e não conseguia escrever uma poesia, assim. Eu já tinha refletido com outras pessoas mais próximas antes e foi bom, porque eu consegui ver o porquê da minha dificuldade. Antes eu não percebia que não gostava muito de ler. Depois eu vi outras pessoas lendo e que eu senti a necessidade de escrever e ler também, é que eu percebo que eu não gosto de ler. A paciência diz que eu não gosto de ler e piorou de escrever (trecho da entrevista com Abda).

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Finalizando, podemos verificar que as professoras mencionaram, então,

três grandes funções da escrita (BALCOU,1997) na esfera doméstica: as escritas

que servem à expressão das idéias e construção da identidade, as destinadas à

comunicação e as que servem à organização e memorização. As duas primeiras

funções encontram sua expressão no diário e na correspondência, utilizados pela

maioria das docentes. As escritas relacionadas à função de organização e

memorização foram expressas apenas em duas situações: para orientar o

trabalho cotidiano das costureiras, Socorro Damasceno lembrou que escrevia as

anotações com as medidas das roupas e também elaborava a lista com os preços

das mercadorias que seu pai vendia na feira popular, enquanto Maria, ao destacar

a escrita do diário, lançou um olhar do presente sobre o que escreveu no

passado, quando enfatizou a função de conservação da memória do que viveu na

adolescência. Portanto, diversos materiais escritos e razões para escrever foram

relatados pelo grupo de docentes em torno das memórias de escrita na família. E,

na atualidade, essas professoras continuam escrevendo? O que revelaram nas

cartas sobre suas práticas atuais de escritas?

Uma diversidade de escritas para uma pluralidade de finalidade convive no

universo das práticas atuais de escrita das docentes. Elaine, Adriana, Márcia,

Dulce, Socorro Damasceno e Jacqueline, nas cartas, afirmaram que continuam

escrevendo os poemas, as poesias, os contos, o cartão de Natal, o cordel e o

diário do filho. Jacqueline tenta registrar as descobertas e travessuras do filho no

diário, “como se pudesse assim guardá-la e preservá-la num tempo estático e

eterno”, enquanto Elaine ainda mantém a prática de escrever para resolver os

conflitos internos no papel, utiliza sua agenda no estilo confessional, próprio do

diário pessoal, praticado na sua adolescência. O depoimento de Dulce amplia a

esfera dos usos de escrita presentes no seu cotidiano.

Apesar de sentir-se incompetente para escrever gosto de planejar, elaborar planejamentos escolares, e síntese dos assuntos a serem dados. [...] A escrita está presente no meu cotidiano, em casa, na escola e na igreja [...] hoje mesmo na missa, fiz uma pequena homenagem para minha 1a professora que estava presente na missa, aquela do jardim da infância que toca acordeon... [...] Tenho uns 9 cadernos de receita, pois adoro cozinhar, e as escrevo quase diariamente e as faço é claro! Na escola, corrijo, planejo, elaboro projetos [...] Escrevo cartas também para minhas filhas, minha família [...] escrevo bastante no meu cotidiano.

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Procuro Emília afastar este fantasma que me persegue, o medo de errar. Enquanto professora, escrevo muito, mas como dona de casa às vezes, bilhetes, receitas e etc (Dulce, 2a, 3a e 5a cartas).

Na análise dos quadros enviados por nove professoras sobre a atividade

de escrita, solicitado na 4a carta, os eventos de escrita cotidianos ganham uma

visibilidade diferente em relação aos relatos encontrados nas cartas e nas

entrevistas. Selecionei seis professoras para apresentar o que elas escreveram

nos dias da semana e no sábado em suas práticas de escrita cotidiana, como

poderemos acompanhar na descrição das informações retiradas dos quadros:

� Elaine escreve bilhete para anotar recados; endereços e telefones no diário

de viagem ou no cartão de visita; anotação na agenda ou em pedaço de

papel de atividades cotidianas (por exemplo: “revelar fotos”), para não

esquecer; as memórias de viagem na caderneta, no diário de viagem e nas

legendas das fotografias; os acontecimentos do dia e os compromissos para

serem lembrados na agenda pessoal; a lista de compras em folhas de

caderno para realizar o controle do que precisa ser comprado; a carta em

papel de fichário para responder à pesquisadora; rabiscos aleatórios (nomes,

palavras soltas e sinais) em papel de propaganda para organizar o que

precisa falar ou para se distrair em uma conversa longa no telefone;

comentário sobre um filme assistido na agenda pessoal.

� Maria escreve, no final de semana, geralmente, as coisas pessoais e durante

a semana as escritas destinadas ao trabalho, ao estudo e à pesquisa.

Número de telefone de uma visita em folha de papel avulso para não

esquecer; fichas de material descrevendo o que há em cada caixa em folha

de papel avulso para organizar os materiais em caixas e facilitar a

identificação posterior; cálculos de orçamentos e despesas, discriminando os

produtos no caderno de anotação para planejar os gastos do mês e avaliar

as possibilidades de compra de novos produtos.

� Solange afirmou: “Não preencho nem cheque. Aposento a caneta. Atividades

de escrita zero. Não lembro quando escrevi num dia de sábado”. Nos dias de

semana, as atividades de escrita priorizam o espaço da sala de aula,

causando-lhe a impressão de que escreve “apenas o essencial”.

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� Potira escreve lista de compras em papel avulso para não esquecer o que

precisa ser comprado; anota o recado e o nome de quem ligou para o marido

em papel avulso para não esquecer as informações.

� Márcia escreve bilhete em bloco que carrega na bolsa para anotar pedido e

preenche cheque para pagamento de produto em uma farmácia.

� Shirley escreve receitas retiradas de programas de televisão no caderno de

receitas para melhorar o cardápio da família; lista de compra na agenda

pessoal para lembrar do que precisa ser comprado; recados dos telefonemas

recebidos na agenda para não esquecer e oração quando realiza a leitura da

bíblia.

Grosso modo, observamos uma diversidade de usos, finalidades,

contextos, sociabilidades de escritas que permeiam o universo das práticas

cotidianas de escritas dessas professoras.

Na próxima seção abordaremos as escritas desenvolvidas no espaço

escolar quando as professoras iniciavam a aprendizagem em torno da escrita.

3. A ESFERA ESCOLAR: A APRENDIZAGEM DA ESCRITA

Os relatos sobre escritas na escola se revelaram semelhantes aos

resultados identificados no estudo de Freitas (2000) sobre a escrita de

professoras, em que predominavam as atividades para desenvolver o ofício de

escrever, utilizadas como estratégias de memorização e habilidades para

apreensão do traçado da letra. Essa forma de ensinar a escrita priorizava os

exercícios caligráficos, a cópia e o ditado na alfabetização.

Ao contrário, do contexto familiar que predominou a diversidade de

eventos, de práticas e de interlocutores envolvidos em situações de escrita, na

escola, a maioria das professoras, em suas narrativas, destacaram uma finalidade

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padrão de tratar a escrita, bem como uma única destinação ao material escrito,

que é centrado na figura do professor.

[...] não costumava escrever carta e a única coisa que gostava era de redigir na escola, só os textos que a professora pedia, denominado de composição naquela época, e não escrevia carta (trecho da entrevista com Solange).

A análise dos relatos escritos e orais permite afirmar que o exercício

caligráfico, a cópia, o ditado, a dissertação, a composição, a redação, a ortografia,

a concordância, a gramática foram as atividades e os conteúdos que ocuparam o

espaço de escrita no contexto escolar do grupo de docentes dessa pesquisa. A

escrita parece ser exercida, exclusivamente, pelo professor, que era o

responsável pelo seu ensino na sala de aula, como recordou a professora

Adriana: “na escola sempre tava vendo as professoras escrevendo”.

Embora a escola assuma a tarefa de ensinar a aprendizagem das

primeiras letras e de ingressar os alunos na leitura de uma diversidade de textos,

devemos compreender que a formação das habilidades e modos de escrever

ocorre de forma desigual para aqueles que se submetem aos seus ensinamentos.

Nesse sentido, compartilhamos a idéia de que outras esferas da vida social

influenciam e moldam as apropriações em torno na escrita, consolidando novos

valores e imagens acerca das práticas de escrita.

Partindo desse pressuposto, na minha segunda-carta37, fiz referência ao

início da escolarização, durante a alfabetização, e, mesmo não tendo fornecido

informações sobre o processo de aprendizagem da leitura e escrita, esperava

compreender a repercussão dessa aprendizagem para as vidas de escritoras das

docentes, considerando tanto os aspectos negativos quanto positivos.

37 Na segunda-carta relatei o seguinte: “Lembro-me, também, que desde a minha infância, conservava o hábito de sempre escrever. No início de minha escolarização, durante a alfabetização, ao retornar da escola, sentava-me a mesa preparada para o almoço, e não largava o caderno e lápis, e mesmo, com as constantes reclamações de mamãe não abandonava meu caderno”.

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As memórias sobre a aprendizagem da escrita na escola foram trazidas por

treze professoras do grupo investigado. Assim, a maioria das professoras

recordou as escritas na escola, enfatizando diferentes aspectos: a aprendizagem

da escrita – a alfabetização -; as atividades de caligrafia, cópia e ditado; a

realização de redação/composição; o ensino de ortografia e gramática,

relacionado ao “escrever bem e certo”; a produção de cadernos de mensagens e

recados; a escrita de cartas, poesias, romances. O Quadro 17a seguir apresenta

os dados relacionados às práticas de escrita das professoras na escola.

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Quadro 17: Materiais e práticas de escrita na escola nos relatos

escritos e orais

Professora Materiais escritos Razões para escrever 1. Abda Redação e o livro didático. Professor corrigia a redação. 2. Adriana Não lembrou de nenhum fato que tenha

levado a um bloqueio com a escrita, não teve problemas na escola.

3. Amara Nenhuma informação. Nenhuma informação. 4. Angélica Cópia de anotações, cálculos e produção

de textos. Professor copiava no quadro e depois verificava no caderno da aluna.

5. Dulce Alfabetização: alfabeto maiúsculo e minúsculo, Carta do ABC, desenho, continhas, leitura, caligrafia, cópia, ditado. Dissertação de postal com cena. Primário: cartas, bilhetes, telegramas cartões com mensagem. 1o ginasial: romance e redação (com inúmeras correções). Imitava a letra das professoras, passava a limpo os assuntos dados nas aulas, criava história e desenhava. 5a série: composições, redação e dissertação: rabiscadas de vermelho.

Fez uma avaliação da aprendizagem na passagem para nova turma (alfabetização). Escrevia como treinamento da escrita (ensino tradicional) e depois como expressão criativa (ensino moderno). Caligrafia: forma de castigo. 1o ginasial: escrevia e socializava com as colegas: “elas liam e davam suas opiniões”. Escrevia para o professor corrigir as redações que eram rabiscadas de vermelho. Registrou o sentimento de vergonha e de receio em escrever devido aos erros de ortografia e de concordância verbal.

6. Elaine Redação a partir de um tema. Escrevia para realizar atividade sobre o que a professora pediu.

7. Ivana Nenhuma informação. Nenhuma informação. 8. Jacqueline Escrita do nome próprio e redação Para o professor 9. Luciene Caderno de redação e recado. Escrevia para a professora de português na 5a

série (para conquistar boas notas). Ajudava a professora na correção de provas.

10. Márcia 2a série: figura para fazer história. 3a série: redação com tema livre. Orientação para escrever uma redação com atenção à concordância e a ortografia.

Infância: escrevia o que a professora pedia para tirar boas notas. Escrevia para a professora avaliar a escrita e a organização das idéias.

11. Maria Nenhuma informação Nenhuma informação 12. Potira Ditado, escrevia atividades no quadro,

cópia, caligrafia. Escrevia para a professora de português (5a série), que não escrevia no quadro e mandava que escrevessem no seu lugar. Escrevia para ser avaliada no desenho da letra e na quantidade de erros gramaticais.

13. Shirley Não teve dificuldade para aprender a ler e escrever na alfabetização

Faltaram professores que exigissem mais e alertasse sobre os erros que cometia.

14. Socorro Barros

Cópia, caligrafia e redação. Escrevia para aperfeiçoar a letra e aprender a escrever, evitando os erros de pontuação, gramática e conteúdo. Escrever para tornar a letra bonita.

15. Socorro Damasceno

Alfabetização: padrões silábicos, letras do alfabeto, leitura de cordéis.

16. Solange Alfabetização aos sete anos, apenas decodificava. Primário: descrição de cartazes para composição, caligrafia, dissertação. Leitura dos textos do livro de Comunicação e Expressão de José Brasileiro Vila Nova, fábulas e poesias de várias coleções, fotonovelas, grupo de leitura para troca de livros.

Primário: “comecei a escrever” para a professora. Os textos eram elogiados pela professora de português. Anos 60: liberdade de expressão tolhida (“falava pouco e escrevia nada”). Leitura para ampliar o vocabulário e melhorar a ortografia.

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3.1. APRENDIZAGEM DA ESCRITA: A ALFABETIZAÇÃO

Algumas docentes recordaram o processo de alfabetização, iniciado em

casa. Dulce, Jacqueline e Socorro Damasceno, por exemplo, revelaram que já

chegaram à escola com habilidades adquiridas na família, que facilitaram o

aprendizado da leitura e da escrita:

[...] a minha relação com a escrita, foi um pouco dolorosa. [...] aos 5 anos de idade no Grupo Escolar Duarte Coelho, no jardim de infância, no 1o dia de aula recebi um quarto de folha de papel jornal para desenhar, enquanto a nossa professora D. Zilda Sena tocava acordeon. Eu não desenhei, fiz várias continhas e entreguei a outra professora D. Geni Barros Lima (falecida) o que causou-lhe espanto geral, e, a todas, imediatamente fui mandada para alfabetização. Ao chegar à nova turma, estava a professora ensinando o alfabeto minúsculo e maiúsculo e apresentando a nova carta de A.B.C., fiquei deslumbrada, super motivada. Vendo meu interesse a minha avó materna (e minha mãe de criação) me matriculou numa escola particular e o sucesso foi total, no fim do ano letivo estava lendo corretamente (Dulce, 2a carta).

Quando criança sempre fui adiantada nos estudos, ingressei na primeira série com cinco anos de idade e devido ao acompanhamento escolar (como ouvinte) nas turmas de minha mãe (ela era professora do estado e tinha que me levar junto para suas aulas) aprendi a ler com dois meses de aula isso com outra professora [...]. Quanto à escrita [...] queriam me forçar a escrever com a mão dita “direita” (pois pra mim a certa é a esquerda até hoje) e com isso passei um tempo escrevendo de trás para frente (espelhado). Por exemplo: escrevia meu nome assim enileuqcaJ. Porém iniciando a escrita do “J” até o “e” (Jacqueline, 2a carta).

[...] então comecei a ler. Foi uma loucura minha vida com os cordéis; daí por diante, me alfabetizei, comecei a ler, aí entrei na escola. Eu era a primeira da turma, considerada muito inteligente, por sinal, porque lia, por um esforço mesmo próprio, agora minha mãe era muito envolvida com essa coisa de dar cidadania a gente (trecho da entrevista com Socorro Damasceno).

Alguns estudos (BARRÉ-DE-MINIAC, 1997; LAHIRE, 1997) comprovam o

forte investimento familiar na aprendizagem dos filhos, visando os processos de

integração e exprimindo a convicção da importância e do domínio da escrita.

Explica-se esse investimento quando as famílias adotam os modelos escolares de

aprendizagem e dos usos da escrita, transmitindo os valores próprios da escola,

em detrimento dos usos pessoais e sociais da escrita, como, por exemplo, o

interesse na forma correta de escrever o nome próprio, narrado por Jacqueline.

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Solange, logo na sua primeira carta-resposta, e Socorro Damasceno, na

entrevista, recordaram que foram alfabetizadas cedo. Em seguida, considerando

o que para elas hoje consiste o “ser alfabetizado”, completam afirmando que, de

fato, naquele momento aprenderam apenas a “decodificar”:

Aos sete anos fui “alfabetizada”, sei hoje que apenas decodificava. Não lembro de algo que registre aqueles primeiros momentos de leitura e escrita. (Solange, 1a carta).

[...] eu fui alfabetizada cedo, é, codifiquei as palavras, não interpretava, eu codificava só. Com dona T., ela me ensinou a partir do alfabeto, né. Só as letras, como antigamente. E então, mas eu não entendia cordel, codificava os padrões silábicos, as palavras com a ajuda dessa professora, que também ensinava as primeiras letras [...] (trecho da entrevista com Socorro Damasceno).

Já Shirley, tanto na primeira carta-resposta, quanto na segunda, afirmou

não ter tido dificuldades para se alfabetizar:

Quando pequena não tive muitas dificuldades para aprender a ler e escrever (Shirley, 1a carta). A respeito da minha relação com a escrita eu não tive muitos problemas para me alfabetizar (Shirley, 2a carta).

Ainda em relação à aprendizagem da escrita, algumas professoras

mencionaram a aprendizagem do traçado das letras, geralmente realizada através

dos exercícios de caligrafia. É interessante observar que algumas delas

lembraram dos treinos caligráficos como uma experiência positiva, como

demonstram esses depoimentos:

Em relação a letra lembro-me de uma professora que tinha uma letra muito bonita e eu e minhas irmãs vivíamos treinando letras para ficar tão bonita quanto a dela, o que nunca conseguimos. A minha mãe também tem, tinha uma letra muito bonita tendo só mesmo “o curso primário” incompleto. Ela também vivia exibindo a sua letra e disputando com a gente para ver quem escrevia melhor. De certa forma, estas coisas iam nos incentivando na relação com a escrita, seja para aperfeiçoar a letra, seja para aprender a escrever (Socorro Barros, 2a carta).

Sempre gostei de escrever, e procurei imitar as belas caligrafias das minhas professoras (Dulce, 2a carta). Na escola gostava muito de escrever e imitar a letra das minhas professoras (Dulce, 4a carta).

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Portanto, os exercícios caligráficos realizados com o objetivo de adquirir

um traçado bonito da letra foram uma atividade estimulada e vivenciada

positivamente tanto na escola, como nas “competições” – ou seja, as estratégias -

familiares entre a mãe e as filhas, servindo, inclusive, como incentivo ao

aprendizado da escrita. A função prazerosa da escrita exercida nessa situação

permitiu estabelecer uma relação que estimulou o desejo de se comunicar e de se

exprimir na socialização com os outros. Portanto, a entrada na escola parece ser

uma preocupação que se traduz em situações de aprendizagem em torno da

escrita na família.

No entanto, Dulce, por exemplo, atribuiu tanto um sentido positivo nos

momentos que espontaneamente imitava a letra das professoras, como avaliou

negativamente o exercício da caligrafia quando este era realizado como castigo.

[...] nas escolas que estudei, a caligrafia trabalhada escrevia muito mas em forma de castigo, isto para mim era negativo, o que jamais farei com meus alunos (Dulce, 4a carta).

Provavelmente a ênfase no sentido negativo da atividade ocorreu pelo uso

da escrita associado à função de poder, exercido como prática instauradora para

regular e conduzir modos e normas do comportamento. Dessa forma, o sentido

negativo incorpora-se ao conhecimento da escrita e sobre as competências do

usuário da escrita.

Potira atribuiu também um sentido negativo à ênfase no ensino da escrita

através da caligrafia e da gramática.

[...] na maioria das vezes esbarrei com profissionais que estavam preocupados com a letra que não estava bem coordenada ou com a quantidade de erros gramaticais (Potira, 1a carta).

Além da caligrafia, a cópia e o ditado foram atividades de escrita comuns

no cotidiano escolar dessas professoras. Algumas docentes, ao lembrarem

desses exercícios, destacaram a falta de “criatividade” que os caracterizava, o

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que restringia as competências em escrever e formar escritores. É o que se

revela nos depoimentos de Socorro Barros, Potira e Dulce:

Quando entrei na escola de engenho que ficava à cerca de 6 km de distância, onde eu e minhas irmãs caminhávamos todos os dias até lá. Nessa escola a minha escrita se limitava às cópias, nada de criatividade, mas mesmo assim eu gostava muito de escrever e querer ter uma letra muito bonita, mas nunca cheguei a letra que queria. De tanto desenhar a letra hoje escrevo um tanto devagar porque fico ainda preocupada com uma letra bonita e sempre acho que nunca cheguei a desejada. Juntamente com o desejo de uma letra bonita nasce também comigo o desejo de aprender a escrever (Socorro Barros, 2a carta). [...] sinto a responsabilidade de despertar nele/a (o aluno) o leitor e o escritor que tem dentro dele/a e não torná-lo/a um mero copiador como um dia fui. De modo que, mesmo gostando de estudar meus/minhas professores/as não foram sensíveis ou não tiveram formação adequada que trabalha-se nessa perspectiva [...] (Potira, 1a carta). Quando estudei da 5a a 8a série, peguei uma única professora de português ela costumava não escrever e mandava que escrevesse no seu lugar, quando não fazia ditado, eu me perdia toda, não gostava de nenhuma das duas formas (Potira, 3a carta). Fiz muitas cópias, ditados e cadernos caligráficos, tudo isso como treinamento da escrita. Era preciso de algo, que faltava naquele ensino tradicional seria a EXPRESSÃO CRIATIVA (Dulce, 2a carta). A produção de textos na escola foi lembrada pela maioria das professoras,

que usaram diferentes denominações ao se referirem a essa prática. Escrever

sobre um tema livre a partir de uma gravura ou com temas definidos marcou a

escrita da composição, também denominada dissertação e redação. Escrever

para a professora corrigir e avaliar o domínio da escrita; escrever muitas linhas;

escrever com coerência e coesão; escrever sem motivação e por obrigação;

escrever corretamente... Todas essas atividades e instruções geraram um

conjunto de incompreensões e reações adversas ao ato de escrita, como pode

ser observado nos seguintes depoimentos das professoras Márcia, Luciene e

Jacqueline:

[...] na escola as orientações que recebia para fazer uma redação eram: não escrever muitas palavras repetidas no mesmo parágrafo; evitar usar a palavra coisa; o primeiro parágrafo é a introdução, o segundo e o terceiro são para o desenvolvimento e o quarto é a conclusão; fora os cuidados com a concordância e a ortografia. Todos estes cuidados, me influenciam até hoje quando escrevo, mas não fazem com que diminua a dificuldade que eu tenho de escrever e de organizar o que estou pensando quando escrevo (Márcia, trecho final da 2a carta).

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Na minha infância eu escrevia o que a professora pedia. Lembro-me que na 2a série a professora deu uma figura que tinha um cão para que a gente fizesse uma história. Senti muita dificuldade, mas fiz o que ela tinha pedido e tirei “ótimo”. Nesta escola as notas eram dadas através de conceitos: ótimo, bom, regular, fraco, insuficiente. No ano seguinte, já na 3a série com outra professora, foi solicitado que escrevêssemos uma redação cujo tema era livre. Não tive dúvida, escrevi a mesma história com o cão, na certeza que ia tirar a mesma nota. Tirei fraco. Fiquei decepcionada e sem entender como uma história podia ser boa e ruim ao mesmo tempo (Márcia, trecho inicial da 2a carta). Lembro-me que a dificuldade na escrita era grande e achava que quanto maior fosse a minha produção a professora iria gostar, sem preocupar-se de escrever com coerência, achando que um texto grande, imprecionava quem a lesse e assim conquistava boas notas, mas infelizmente isso não acontecia eu ficava indignada (Luciene, 2a carta). [...] tinha aquelas aulas de redação que se tem; eu acho tão errado aquelas aulas de redações, eu acho que as pessoas têm que viver o momento e relatar como elas acham que é que deve ser, porque eu nunca segui “a primeira linha tem que ter o conceito do título, a segunda linha tem que ter objetivo do não sei o quê...”, eu não faço isso não (trecho da entrevista com Jacqueline).

Dulce, ao recordar da escrita de “dissertações” a partir de gravuras, ao

mesmo tempo em que afirmava gostar dessa atividade, destacou o “vazio” que a

cercava, vazio esse provavelmente relacionado à falta de finalidade da escrita

nessa situação.

Gostava de fazer dissertações olhando para aqueles postais grandes com cenas: de praia, sítios, praças etc. Isto era moderno naquele momento, mas eu achava um vazio (Dulce, 2a carta).

A professora Elaine, na entrevista, refletiu sobre a (des)aprendizagem da

escrita na escola, incluindo uma análise sobre a sua própria formação escolar e a

dos filhos em relação ao padrão de escrita incentivado pela escola:

desvalorização da escrita espontânea e criativa que a escola promove ao priorizar

uma escrita padronizada, descontextualizada, sem objetivos sociais e limitados a

temas abstratos:

[...] a escola foi muito tradicional. Eu vim trabalhar com redação na escola, eu acho que na 4a, na 5a série, eu fui começar a trabalhar com redação, criar alguma coisa e aí o criar alguma coisa era aquele criar que prendia, não era criar espontâneo. Era em cima de um tema, um tema que não me agradava, eu achava que eu não sabia falar sobre aquilo, queria falar sobre outra coisa, mas eu tinha que falar sobre aquilo ali. Nessa época eu tive muita insegurança de dizer: “Pôxa,

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eu devo fazer redação, eu não sei fazer redação sobre isso”. Dava um monte de tema, mais eu dizia: “eu não gosto desse tema, eu não gosto desse, eu não gosto desse, eu não sei escrever”. E foi uma coisa que eu comecei a refletir depois quando meus filhos começaram a escrever. O meu filho escrevia, quando chegou na escola ele começou a dizer: "eu não sei escrever” e fazia histórias imensas, aí dizia: “eu não sei escrever”. Eu comecei a refletir, essa escola com tanto padrão que você vem com a vontade de escrever e de repente quando você se vê com o padrão, talvez seja isso, você entra numa de “eu não sei fazer desse jeito, eu sei fazer do meu jeito, mas o meu jeito não é o jeito que a escola quer”, dá pra entender como é que é? Aí nessa época eu sentia muita insegurança (trecho da entrevista com Elaine). Elaine destacou, ainda, a dificuldade que sentia ao ser avaliada pelo que

produzia, pelo fato de a escola cobrar uma escrita elaborada, parecida com a dos

“grandes escritores”:

[...] quando eu escrevia eu não mostrava pra ninguém, eu tinha vergonha de mostrar, porque eu achava que a escola dava muito valor ao que José de Alencar escrevia, ao que Machado de Assis escrevia, aos grandes escritores, então eu achava que a minha produção era uma produção menor, e a escola, eu acho que ainda hoje, a escola não elogia o que você produz. Ela dá valor ao que já tá produzido, ela não vê, ela não vê assim que são, como é que eu posso dizer, instâncias diferentes de produção, ele produz por profissionalismo, por sei lá pra quê... e eu tô tentando pro outro caminho. Mas em tudo que a escola mostra o padrão superior de qualidade pra gente que tá tentando fazer alguma coisa, fica complicado a gente tentar abrir e expor, dizer: “olha fui eu que escrevi”. Eu sentia tanto, que as coisas que eu escrevia ou eu rasgava ou eu guardava (trecho da entrevista com Elaine). Embora tendo sido ensinados os conteúdos sobre as formas da redação

escolar, a dificuldade em produzir um texto prevalecia no ato de escrevê-lo.

Portanto, as docentes parecem reconhecer que escrever envolve um conjunto de

elementos complexos e que apenas conhecer as regras sobre a escrita não

garante que as dificuldades sejam minimizadas.

3.2. ESCRITA DE TEXTOS PARA DIFERENTES FINALIDADES/INTERLOCUTORES

Para algumas docentes, além da caligrafia, da cópia, do ditado e da

redação, a escola permitiu acesso a outros eventos de escrita, como os cadernos

de recados e de mensagens, como revelam os relatos de Luciene e Angélica:

[...] nunca tive diário pra registrar mensagens ou algo parecido, o que lembro no momento aconteceu a partir da 5a série com a influência da professora de português, pois a mesma fazia questão que seus alunos tivessem um caderno para redações e recados (Luciene, 2a carta).

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[...] na minha adolescência, tinha um caderno onde todos os professores e colegas escreviam mensagens para mim, hoje não tenho nem idéia de onde possa ter ido parar este caderno (Angélica, 2a carta).

Dulce recordou a escrita de romances que foram destinados à troca entre

as colegas, ou seja, escrevia para promover a socialização e, com isso, a escrita

assumia uma função extra-escolar.

Ao chegar ao 1o ano ginasial comecei a escrever romances, claro que em cadernos, emprestava para minhas colegas, elas liam e davam suas opiniões. [...] durante meu curso primário pois fazíamos cartas, bilhetes, telegramas, cartões com mensagens e esta atividade me marcou, pois gostava de fazê-los (Dulce, 2a carta).

3.3. LER PARA ESCREVER

A escrita relacionada à leitura foi enfatizada de diferentes formas. Elaine

aborda o ler para escrever/fazer síntese como algo difícil, chato e que

impossibilitava a realização da “leitura por prazer”:

[...] senti uma dificuldade enorme e tenho até hoje [...] que é ler José Lins do Rego pois fui massacrada com o livro de tal maneira que eu não li, apenas “pesquisei” o que a professora pediu. Ai foi chato porque o que eu lia com prazer passou a ser apenas obrigação e eu tinha raiva só de pensar em fazer as chamadas sínteses (tenho uma dificuldade enorme, talvez porque meu cérebro ainda pense que falar e escrever tem ligação e como falo muito, vou no rumo) (Elaine, 3a carta).

Já Solange, em sua primeira carta, na qual fez um longo relato sobre sua

experiência escolar com a leitura e a escrita, o qual analisaremos detalhadamente

a seguir, revelou uma outra relação entre leitura e escrita: o ler para poder

escrever bem. Recitar poesias, descrever cartazes para composição, escrever

dissertações, ler e trocar livros, fazer exercícios de caligrafia e de ortografia,

receber elogios da professora sobre os textos escritos, tudo isso marcou o

universo escolar dessa professora. Ela escreveu:

[...] trechos e textos dos livros de Comunicação e Expressão de José Brasileiro Vila Nova me fascinavam. (Na escola pública onde estudava não havia biblioteca). Quanta falta me fizeram os paradidáticos!

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Lembro-me claramente do mundo mágico de Malba Tahan, sempre com lições de vida, cheios de valores. Quantas fábulas!! Narrativas extraordinárias!! Ainda no “primário” a poesia me conquistou. Entrou na minha vida pé ante pé. Sorvi devagarinho até hoje me embala, acaricia meus pensamentos. A linguagem lúdica, cheia de significados é mágica e me fascina. Os sentidos são absorvidos e como um cometa na escuridão do espaço deixa apenas um flash em nossas mentes. Se repensado outros tantos significados e idéias novas afloram e permeam nossas mentes como um turbilhão. As palavras tornam-se sempre novas. Gosto muito da comparação do José Paulo Paes na poesia Convite: “As palavras são como as águas do rio que são sempre novas” As palavras exercem em mim um extraordinário poder de sedução, muitas vezes mais que as ações (Quero crer que isso não seja ruim.) (Solange, 1a carta).

Ela deu continuidade ao longo relato escrito, avaliando a repercussão que

a repressão política vivida nos anos 60 exerceu tanto sobre a liberdade de

expressão oral quanto na produção escrita.

Os anos 60 tiveram forte influência na minha educação e certamente tolheram a liberdade de expressão de muitos da época. Era obedientíssima! Introverti-me. Falava pouco e conseqüentemente escrevia “nada”. “Saudade” de Bastos Tigre foi a poesia que me tornou conhecida na escola. Era longa, de linguagem emotiva; tocava no coração de todos que a ouviam. Convite para recitá-la não faltava. (Vencia a timidez nesses momentos mágicos). No último ano “primário” a descrição de cartazes para composição (assim era chamada a produção de texto) despertou-me. Mergulhava nas cenas e comecei a escrever. Os textos passaram a ser elogiados. Chegou o Exame de Admissão. Aprovada! Se fora da escola pública, agora aluna pobre filha de motorista e doméstica estaria no melhor colégio da cidade: COLÉGIO NORMAL REGINA COELI de direção alemã. Precisava ter ótima caligrafia, ortografia e ser boa aluna em conteúdos para não ser esmagada pela burguesia local. Preconceito e discriminação seriam iminentes. Disciplinada, esportista. Pouco ainda para ser respeitada pelo grupo. Ler, ler, ler... a bandeira a ser perseguida. Não faltava à biblioteca da escola. Era um momento muito feliz – lembro-me. Nos anos seguintes debrucei-me na leitura de várias coleções. Apelidaram-me de “rato de biblioteca”. A Ilíada e a Odisséia não faltavam no acervo. A autora M. Delly fora uma das mais lidas. “Solar dos Castanheiros” o título jamais esquecido. A minha fala destacava-se do grupo escolar não me consternava, pois a fala superava, além do coleguismo. Convivia com a burguesia sem aparentemente diferenças. Lia tanto que formamos grupos de leitura para troca de livros. Competíamos até! Quem lia mais? Eu nunca ficava atrás. Interessante: nunca comprei um livro. Todos eram emprestados. Até hoje... Como toda adolescente lia também fotonovelas. Mamãe lia nas horas vagas. Tinha muitos filhos, mas sempre encontrava um tempinho. Nos finais de semana, exceto às horas de ir à Igreja, todo tempo era lendo essas revistas na casa de uma colega que sofrera paralisia infantil. Li centenas... Divagava muito. O platonismo era uma constante em mim.

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Era adepta do ultraromantismo!!! Assim fantasiei a realidade – acho que até hoje... Estava sempre entre as cinco melhores alunas da sala. A produção escrita nas chamadas composições desenvolviam-se a contento na apreciação da professora de português. Havia muita dissertação nas provas de História e Geografia e isso nos instigava a cada dia ler mais e consequentemente se escrevia com ampliação vocabular e uma boa ortografia. Engraçado! A linguagem literária já me acompanhava. De preferência utilizava vocábulos não comuns à fala do cotidiano. Acreditava e até hoje comento com meus alunos que ampliar o nosso vocabulário e enriquecê-lo é relevante em muitas ocasiões até mesmo para que não sejamos “logrados” pelos mais diversos segmentos da sociedade. Assim mostro que a leitura tem muitas funções e entre elas nos ajuda a sair do anonimato e da ignorância (Solange, 1a carta).

Algumas crenças foram consolidadas pela docente em sua experiência

escolar, elaboradas a partir da idéia de que existe uma relação de causa e efeito

entre a oralidade, a leitura e a escrita, interpretadas e resumidas por mim, nas

seguintes premissas: 1) escreve-se melhor quando se lê sobre um tema; 2)

aprende-se a escrever “com ampliação vocabular e uma boa ortografia” lendo e

escrevendo; 3) “o anonimato e a ignorância” podem ser superados através da

leitura que amplia o vocabulário e, conseqüentemente, aprimora as produções

oral e escrita, e, por fim, 4) “escrever bem” não se restringe a ter uma “ótima

caligrafia e ortografia”, mas é necessário escrever tendo o domínio dos

conteúdos.

Enfim, essas crenças sobre o “escrever bem” e “ser boa em conteúdos”

revelam algumas das estratégias desenvolvidas pela professora para superar o

preconceito e a discriminação social. Assim, a escrita escolar é reconhecida por

ela como uma forma de acesso à cultura que permite posições diferentes na

esfera social.

3.4. REPERCUSSÕES DAS PRÁTICAS ESCOLARES DE ESCRITA NA RELAÇÃO

ESTABELECIDA COM O ATO DE ESCREVER

Provavelmente estimuladas pelo relato da pesquisadora, as docentes

também refletiram sobre as repercussões das práticas escolares de escrita na

relação estabelecida com o ato de escrever. Apesar da experiência negativa com

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a escrita na experiência escolar da pesquisadora, algumas docentes revelaram

serem diferentes, ao enfatizarem os aspectos positivos na relação com a escrita.

Nesse sentido, algumas docentes revelaram uma avaliação positiva dos

professores sobre o que elas escreviam, refletindo na auto-avaliação das suas

competências para escrever.

[...] reencontrei-me com D. Geni, professora de português por oito anos, cujas lembranças eram minhas produções de texto. Dissera-me: Solange, não esquecerei de você, seus textos eram ótimos... (Solange, 1a carta). Eu me lembro que nunca tive muita dificuldade quando a professora mandava fazer as famosas redações, que agora a gente mudou pra produção de texto, mas nunca tive. Eu sempre escrevia, os professores sempre elogiavam [...] não tive problema ou bloqueio (trecho da entrevista com Adriana).

Outras docentes, analisando as condições de produção, avaliaram suas

competências, destacando a facilidade e/ou dificuldade, o gosto e/ou desgosto

para escrever, relacionando ao ensino e a avaliação da escrita na escola. Assim,

a prática da correção dos erros ortográficos, geralmente, vem associada a uma

repercussão negativa na imagem e auto-estima da docente enquanto escritora.

[...] sobre a minha dificuldade acho que foi trauma, lembro que no 1o ginasial as minhas redações eras todas riscadas de vermelho e isso me envergonhava! Creio que partindo deste fato me encolhi evitando escrever. [...] Tenho facilidade para escrever quando há uma motivação externa. (Dulce, 3a carta) Para mim acho que sempre escrevi mal, muitos erros de ortografias e concordância verbal, minhas redações sempre tinham inúmeras correções, e por isto eu me sentia um trapo humano. Mas sempre gostei de escrever, me acho até atrevida (Dulce, 4a carta). Vejo na escrita uma arte e sempre tive a vontade de aperfeiçoá-la. Sempre admirei a quem sabe escrever bem e as vezes me sinto muito incapaz quando me confronto com o meu limite na escrita, sem saber como avançar. Nas redações escolar sempre gostei de escrever mas a minha grande dificuldade era com a pontuação, a gramática nem tanto, mas o conteúdo então, sempre achava desprovida de significado ou faltando idéias para recheá-lo e argumentar o pensamento (Socorro Barros, 2a carta).

Os valores e sentimentos atribuídos à escrita, como arte, desejo e

necessidade, felicidade e vergonha, gosto e desgosto, facilidade e dificuldade em

escrever, bem como as referências à materialidade no ato da escrita (instrumento,

suporte, gesto, contexto e lugar), tipicamente escolares (caderno, papel, quadro,

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caneta vermelha, por exemplo). foram mais comumente evocados e associados à

esfera escolar, instituição responsável pela aculturação formal da escrita,

enquanto que os usos da escrita cumprindo a finalidade de expressão pessoal

foram relacionados ao âmbito familiar.

Portanto, as docentes compreendem a repercussão do ensino da escrita

na escola para as suas vidas de escritoras, apontando tanto aspectos positivos

quanto negativos.

Geralmente, as lembranças das atividades de caligrafia como forma de

castigo, da redação e composição rabiscadas de vermelho, bem como a

constatação de que tiveram professores pouco exigentes, ou, ainda, a ausência

de apoio dos professores formaram o princípio de que essas práticas escolares

de escrita não podem ser repetidas com os alunos e filhos. O monitoramento

assistido aos alunos e filhos garante a possibilidade em ser diferente das

professoras que tiveram.

[...] coisas negativas sofri mais no curso primário e ginasial. [...] nas escolas que estudei, a caligrafia trabalhada escrevia muito mas em forma de castigo, isto para mim era negativo, o que jamais farei com meus alunos. Na escola gostava muito de escrever e imitar a letra das minhas professoras, gostava de passar a limpo os assuntos dado nas aulas, fazer cópias, criar histórias e desenhar adoro desenhar! Na 5a o que, não gostava era de ver minhas composições, redações, dissertações todas rabiscadas de vermelho, eu odiava! Na faculdade não lembro de problemas desta natureza! (Dulce, 4a carta).

Quando pequena não tive muitas dificuldades para aprender a ler e escrever. Posteriormente o que eu acho que me faltou foi professores que exigissem mais de mim (Shirley, 1a carta) A respeito da minha relação com a escrita eu não tive muitos problemas para me alfabetizar, mas não tinha uma pessoa que me alertasse sobre os erros que cometia como hoje faço com meus filhos (Shirley, 2a carta).

[...] percebi que escola e família me deviam o acesso devido aos padrões de compreensão a leitura e escrita e que foram puladas etapas precisas para um melhor aprendizado nesta área. Hoje, sinto insegurança quando vou ensinar e medo de transforma-los (meus alunos) no que sou insegura e medrosa (Ivana, 2a carta).

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Por fim, a análise do depoimento de uma docente sugere que pensar sobre

a escrita e a leitura na escola não pode ser desvinculado de uma análise das

condições sociais das famílias, que conformam as próprias condições dos

usuários da escrita no universo escolar. Portanto, nas socializações familiares são

veiculados valores, atitudes e crenças que contribuem para a formação das

imagens das docentes sobre as competências enquanto leitoras e escritoras na

escola e fora dela. Nesse sentido, o depoimento de Potira nos faz refletir que

outras situações vivenciadas na escola, não relacionadas diretamente com o

ensino da escrita e da leitura, provocam a sensação de estranhamento e

distanciamento com os objetivos e valores da escola. Assim, outros elementos,

além da forma de ensinar os conteúdos e as atividades de escrita, contribuíram

para o sentimento de inadaptação ao ambiente escolar, como, por exemplo, a

condição socioeconômica da família da professora Potira, que gerou um

sentimento de “ser diferente” dos colegas da escola, fazendo-a sentir-se “um

peixe fora d’água”, fato que, provavelmente, repercute também na imagem sobre

suas competências para escrever.

[...] a escola era muito desagradável demorei para me adaptar. Vinha de uma escola pública da comunidade onde a maioria de nós nos conheciamos e alguns tinham histórias parecidas, então fui para uma escola particular quilometros de distância da minha casa, muitas vezes saia de casa sem tomar café da manhã e encontrava com uma porção de patricinhas que só sabiam falar de namorados e casamentos, enquanto eu não havia nem menstruado, de modo que, me sentia “um peixe fora d’àgua” de uma certa forma foi um período que me ensolei. (Potira, 2a carta) Para mim o fato desagradável na escola era ser muito pobre, então não tinha condições de participar das atividades desenvolvidas na escola, como também, passava por situações desconfortáveis [...] tinhamos que almoçar na escola, [...] isso era motivo para algumas professoras nos humilhar, eu nunca esqueci dessas professoras nem das cenas. Um outro fato foi quando fiz uma atividade com pintura e a professora falou que estava uma sujeira. [...] Me marcou quando passei para o 2o grau, então tive que ir estudar numa escola particular longe de casa com pessoas que na época eu pensava que não tinha nada haver comigo, me sentia sozinha, diferente, principalmente porque eu era muito nova e não menstruava ainda e as conversas delas era sobre: namorados, menstruação e casamento, realmente me sentava na frente, não falava nada e nem com ninguém (Potira, 3a carta).

Em síntese, escrever na e para a escola assume a função de que se

escreve para aprender a escrever, predominando a realização de atividades que

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tomam estritamente o sentido de uma escrita escolar: cópia, ditado, caligrafia e

redação, em detrimento de um investimento nos usos pessoais e sociais da

escrita.

4. ESCRITAS NA FORMAÇÃO DOCENTE

Estimuladas pelo relato sobre as memórias no magistério e na

graduação38, as docentes também recordaram os usos da escrita, as finalidades

para escrever, as avaliações sobre a escrita pelo professor e as repercussões nas

maneiras de se relacionar com o ato de escrever.

No caminho percorrido pelas memórias, algumas professoras priorizaram

com maior ou menor intensidade alguns desses aspectos. Portanto, elas

conferiram sentidos diferentes no que tange à escrita em relação ao contexto de

formação.

Um grupo de quatorze professoras recordou aspectos da participação nos

contextos de uso da escrita no percurso da formação docente, durante o curso do

magistério, na graduação e na pós-graduação (especialização e mestrado). Em

seus relatos, cinco professoras relembraram o período em que realizaram o

magistério, entretanto, apenas uma docente explorou os usos e finalidades da

escrita. Apenas duas professoras, Amara e Solange, não contribuíram com

informações sobre a formação docente. O Quadro 18 apresenta os aspectos

considerados na organização dos dados extraídos das cartas39.

Para algumas delas, a participação em práticas de escrita adquiriu um

sentido ora positivo, ora negativo. Os elogios recebidos, bem como as críticas

conferidas ao que escreviam, foram recordações trazidas com freqüência no

curso de nível médio e na graduação universitária.

38 Na 2a carta a pesquisadora, durante o curso do magistério e da graduação, lembrou as atividades de escrita, as correções na avaliação do texto escrito, a relação com a atividade de escrever e as dificuldades com o ato de escrever. 39 O material da entrevista não foi analisado na temática desta seção.

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Quadro 18: Socialização na formação docente e materiais de escrita

nos relatos escritos

Professora Espaços de socialização

Aspectos mencionados

1. Abda Magistério, graduação e especialização.

Dificuldade com ortografia e avaliação do professor.

2. Adriana Magistério Avaliação do professor e desenvoltura para escrever.

3. Amara Nenhuma informação Nenhuma informação. 4. Angélica Magistério, grupo de

pesquisa e especialização.

Gosto pela escrita, dificuldade em escrever (concordância e pontuação), compreender as solicitações do professor e iniciação em contextos de escrita.

5. Dulce Magistério Materiais de escrita (o que escrevia) e rede de socialização (para quem escrevia).

6. Elaine Graduação Avaliação do professor 7. Ivana Magistério, graduação

e Oficina de Leitura no CCLF.

Avaliação do professor (insegurança para escrever) e estímulo para ler e escrever.

8. Jacqueline

Graduação Participação em congresso, curso, palestra.

9. Luciene Graduação Ampliação nas concepções de ensino da leitura e escrita.

10. Márcia Especialização e Oficina de Leitura no CCLF

Iniciação em outros contextos de escrita e leitura.

11. Maria Mestrado Projeto de pesquisa e dificuldade em escrever (articular as idéias).

12. Potira Grupo de pesquisa Iniciação em outros contextos de escrita. 13. Shirley Graduação Ampliação nas concepções de ensino da

leitura e escrita. 14. Socorro Barros

Oficina de Leitura no CCLF

Iniciação em outros contextos de escrita e leitura.

15. Socorro Damasceno

Graduação e Oficina de Leitura no CCLF

Iniciação em outros contextos de escrita e leitura.

16. Solange

Nenhuma informação Nenhuma informação

As docentes Dulce, Ivana, Abda, Angélica e Adriana recordaram dos

espaços de formação docente, trazendo as lembranças da época do magistério.

Dulce acrescentou às suas memórias o curso de Pedagogia realizado na época

da repressão40, nos anos 70, refletindo sobre o controle exercido sobre o que se

40 As professoras Dulce e Socorro Damasceno, sendo de uma mesma geração, recordaram da época da ditadura militar. Ambas lembraram que as formas de expressão escrita foram marcadas por um regime de repressão e controle.

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escrevia nas universidades. Ela destacou uma variedade de materiais de escrita

que, provavelmente, contribuíram para a consolidação de uma prática intensa e

diversificada no universo de escrita dessa professora, tais como: música para os

professores, paródia e verso, parlenda e novela para os grêmios cívicos, carta de

amor e mensagem para os colegas, enfim, para uma complexa rede de

socialização destinavam-se seus escritos.

[...] durante o magistério gostava muito de compor músicas para os professores, fazer paródias, versos para serem apresentados nos Grêmios Cívicos, até parlendas com novelas da época; cartas de amor para colegas e mensagens também. [...] Entrei na Universidade Federal de PE em 1976 [...] Politicamente foi uma época horrível de repressão universitários, tinha vários policiais na sala de aula o que já nos tolhia a livre expressão, em fazer cartazes, dar opiniões, e nos seminários. Fiz vários trabalhos acadêmicos, síntese de livros, aulas simuladas, peças teatrais, relatórios; nunca fiz uma resenha e outros novos títulos (Dulce, 2a carta).

Portanto, outros usos e finalidades da escrita fora do contexto da sala de

aula, destinados a um público diversificado (colegas, grêmio escolar, namorado),

estiveram presentes no seu cotidiano. Escrever no curso do magistério significava

também escrever para outros destinatários, além do professor em sala de aula.

Essa rede de sociabilidade ampliada pode ter contribuído para consolidar a sua

relação desenvolta com a escrita.

Diferentemente do estudo desenvolvido por Sônia Kramer (2001, p.22),

com futuros professores que “aprendiam a ensinar a escrever”, nas memórias de

Dulce não se confirmou o uso do quadro-negro como o espaço, por excelência,

da escrita na sala de aula. A autora, através da observação, constatou que o lugar

e o valor da escrita nas salas de aula investigadas compreendiam “os exercícios

repetitivos, tarefas voltadas à gramática de modo mecânico, situações em que se

ensina a ler ou a escrever, mas pouco se escreve e lê”. Para a autora, essas

atividades sobre o ensino da escrita se desenvolve, exclusivamente, com

objetivos escolares instrumentais que não tornam a escrita uma produção

significativa.

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No caso da professora Dulce, durante o magistério, a escrita ocorreu em

diferentes contextos de uso. Provavelmente, a utilização da observação atingiu

um espaço de análise não alcançado pelo uso da correspondência: as interações

em ato, ocorrendo no espaço em que as aprendizagens ocorriam entre os

professores formadores e as futuras professoras. Essa hipótese, talvez, explique

as variações nos resultados entre os dois estudos.

Quanto ao curso da graduação, as professoras Luciene e Shirley

ressaltaram as possibilidades de ampliação no ensino da leitura e da escrita em

sala de aula. Nesse ambiente de formação, elas destacaram a possibilidade em

melhorar o desempenho em relação ao ato de escrever. Outro elemento se refere

à ampliação nos seus repertórios de leitura, o qual acarretou expectativa de

mudança na concepção de ensino e na prática pedagógica dessas docentes.

[...] ao ingressar na universidade no curso de pedagogia e cursar a disciplina de Literatura Infanto-Juvenil, que percebi a importância da leitura na formação do indivíduo. Daí procurei desenvolver um trabalho com meus alunos, que pudesse despertar interesse e prazer pela leitura e escrita (Luciene, 1a carta).

Estudei Letras por que gostava dos mistérios da “Língua portuguesa” e porque queria melhorar meu desempenho na escrita e leitura. Melhorei bastante. Sei que ainda posso melhorar mais [...] Sei que importante para alguém saber escrever bem e quero isso para meus filhos e também para meus alunos (Shirley, 1a carta).

Portanto, elas atribuem à formação docente essas mudanças na introdução

de novos conteúdos e na exigência em melhorar o padrão de escrita, marcando

uma nova posição no desempenho em relação à escrita.

Essa ampliação nas concepções de ensino proporcionada no espaço da

formação continuada se inicia com a experiência na graduação em que ocorre

uma diversificação das práticas de escrita e leitura. No entanto, estende-se a

outros grupos de socialização, como, por exemplo: para ingressar em um grupo

de pesquisa realiza uma prova escrita, lida com a atividade de leitura e escrita de

textos para um levantamento bibliográfico, realiza coleta de dados sobre material

da pesquisa. São atividades de escrita específicas ao universo acadêmico que

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fizeram parte do cotidiano no âmbito da pesquisa científica e de seus processos

de divulgação, para algumas professoras desta pesquisa, como atestam os

seguintes depoimentos:

[...] fui selecionada para um grupo de pesquisa no Centro de Educação, uma experiência fantástica, obtive uma aprendizagem maravilhosa: como pesquisar, como lidar com uma bibliografia etc. (Potira, 2a carta).

[...] soube da pesquisa de A [professor da universidade] fiz a prova e passei, comecei a trabalhar com ele e foi uma experiência maravilhosa. Quando estava perto de me formar conheci P [professor da universidade] e comecei a recolher material para ele, pois ele estava em São Paulo fazendo doutorado. Li vários textos com ele [...] e discutíamos os textos, era bem interessante, porém bem difícil (Angélica, 2a carta).

[...] iniciei com bastante dúvidas porém sempre em busca de respostas significativas. Com isso participava de todo tipo de curso, seminário, congresso, palestras, exposições, etc. além de ler livros, revistas, jornais, documentários, etc. (Jacqueline, 1a carta).

Semelhante ao relato da pesquisadora, a professora Angélica recordou

que, durante o magistério, teve dificuldade em compreender as orientações dos

professores na produção de textos e também reconheceu que cometia erros de

concordância e de pontuação nos textos escritos que produziu.

[...] fui para o 1o ano fazer magistério. [...] Continuava lendo muito, mas havia percebido que estava começando a gostar de escrever. Porém, sempre tive muitas dificuldades em escrever, confundia o que os professores queriam, fugia do tema, tinha e tenho até hoje erros de concordância e pontuação. O interessante é ortografia eu sempre errei muito pouco (Angélica, 2a carta).

Assim como a pesquisadora, as professoras, tanto no nível do magistério

quanto na graduação, conviveram com posturas e práticas docentes que ora

estimulavam o que escreviam, ora ressaltavam os aspectos negativos, diante da

presença dos erros (ortografia, concordância, pontuação ou gramática).

Interessante encontrar na 1a carta de Elaine uma reflexão sobre a

avaliação do professor sobre o que escrevia e a repercussão na relação que

estabelece com o ato da escrita das suas poesias e contos. Apesar da esfera

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privada desses escritos, as normas estabelecidas socialmente foram incorporadas

e aplicadas na auto-avaliação que a docente realizou sobre o que escreveu.

Sempre achei que meus outros escritos como poesias e contos, não tinham a qualidade literária que a escola ensina e por isso os jogava fora até que uma professora me disse que os guardasse pois, por mais bobo que fosse, muitas vezes poderiam até ajudar alguém. Só guardei o que considerei melhorzinho e para piorar, um professor universitário falou em sala certa vez que, aquilo que a gente escreve sem conhecimento técnico do escrever, sem métrica, sem um monte de coisas que não lembro mais, era besteira, não tinha valor nenhum, eram só escritos e não serviam de literatura, alguns dos “melhorzinhos” foram também para o lixo. Continuo escrevendo, mas tenho poucas coisas e permito a poucos que os vejam, talvez por não querer que digam que eles não tem valor porque só usei rimas pobres ou a interpretação que se tem é única (mas não perdi o sonho de ter um livro meu publicado) (Elaine, 1a carta).

Portanto, a repercussão das experiências de avaliação, com maior ou

menor intensidade e significação, foram sendo incorporadas às imagens que as

docentes construíam de si, diante da atividade de escrita. Dessa forma, consolida-

se uma relação mais tensa ou desenvolta com o ato de escrever, que se revela

nas habilidades e competências com a escrita, aplicadas a uma variedade de

finalidades e contextos de escrita.

Outras professoras, Adriana, Ivana e Abda, também lembraram das

experiências positivas ou negativas com as intervenções dos professores na

formação acadêmica:

Tive uma professora, no magistério, que dizia que eu deveria fazer jornalismo devido a essa desenvoltura para escrever (Adriana, 2a carta).

[...] meu professor de português no magistério que nos chamava de vez em quando de professorandas burras. Isto me deixava mais perturbada ainda, pois sabia das minhas dificuldades e que já estava no 2o grau. Eu achava que nunca ia conseguir escrever com segurança, sem medo, sem receio. Eu ainda hoje, sinto insegurança quando vou escrever para pessoas desconhecidas ou colegas de trabalho, parece que ainda ouço as palavras do professor (Ivana, 3a carta).

[...] em uma das redações tinha uma professora chaterma e cafonerma que fazia as provas na sala de datilografia (ainda estava na idade da pedra lascada, não tinham inventado o computador). Eu não sabia bater a máquina, havia um tempo determinado para entregar o texto pronto, a professora deu o tema, deveríamos redigir uma notícia sobre um assassinato. Na hora me deu um branco e eu não

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sabia escrever “assassino”, fiquei na maior dúvida quanto a ortografia. Não é possível que assassino se escreve com (ss) duas vezes, acho que se escreve assim: (ASSACINO). Escrevi todo o texto dessa forma. Na aula seguinte a professora disse que estava chocada com a incompetência da turma em geral pois não sabiam redigir um texto jornalístico e que tinha gente tão burra que escreveu assassino com “C”, ela não citou o nome, mas eu me toquei na hora, claro! Nunca mais consegui encarar esta professora. Agora não erro assassino de jeito nenhum, também, depois dessa! (Abda, 3a carta). A finalidade do que se escreve se destina, principalmente, ao professor,

que assume a função de avaliar o outro sobre o que escreve e de consolidar, de

modo positivo ou negativo, a imagem do(a) aluno(a) construída sobre si mesmo

diante do ato de escrever.

Nesse processo avaliativo sobre o que se escreve, a professora Márcia

realizou uma reflexão em que revelou a escrita do outro, exercitou a análise das

suas próprias limitações e possibilidades de avanço, nesse exercício de se ver

através do outro, como uma imagem refletida no espelho.

[...] lembro-me de voltar a escrever com mais freqüência quando estava na faculdade. Minha escrita sempre foi bem sintetizada, eu tinha uma amiga, Graciane, que escrevia com uma facilidade invejável. Quando tínhamos que escrever sobre um determinado assunto, ela usava umas três folhas, por exemplo, e eu conseguia escrever em uma no maior sacrifício. Não quero dizer que a quantidade é igual a qualidade, mas o que eu admirava era que ela ampliava o pensamento, as idéias fluíam com muita facilidade, o que não era o meu caso (Márcia, 2a carta). Abda, nesse sentido, também realizou uma análise reflexiva sobre o modo

como escreve, sobre os estímulos recebidos nos espaços de formação, além de

avaliar, de modo mais amplo, as escritas produzidas pelas professoras que

conviveram com ela nos espaços de formação, socializando momentos de escrita.

[...] cada pessoa tem um dom. Temperamento natural. Tem uns que têm temperamento para cantar, para tocar, para escrever, eu acho que eu não tenho. E outra também, a maneira como eu fui ensinada. Eu nunca fui ensinada para escrever, era mais no livro mesmo e pronto. Tanto que quando eu comecei a escrever eu tive muita dificuldade, na faculdade, na pós-graduação, no dia-a-dia da escola. Eu escrevo e ainda me considero melhor do que muita gente, se você for olhar o nível dos professores é um nível baixo. O pessoal que tem dificuldade mesmo, não escreve, não faz nada. Até na especialização se especulava que tinha gente que não escreveu, porque tinha muita dificuldade. Acho que fulaninho não escreveu isso não, fulaninho tem muita dificuldade, acho que ela mandou alguém fazer, quando ia ler, porque a gente percebe a dificuldade dos colegas de escrever, de produzir (trecho da entrevista com Abda).

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Assim como Adriana, no início desse capítulo, ela reforça a crença no dom,

no temperamento natural, nas habilidades intrínsecas ao sujeito, na vocação para

escrever destinados a um reduzido número de eleitos, escolhidos e, por que não

dizer, convocados para aceitarem sua condição natural de escritores. Nesse

complexo e dissimulado entendimento, elaborado por Abda e Adriana,

conformam-se as crenças e atitudes de algumas das professoras investigadas

neste estudo.

Outras professoras buscaram formas de aperfeiçoar os conhecimentos

adquiridos na graduação, através de iniciativas isoladas de permanência e

continuação nos estudos, seja ao ingressar em um curso de pós-graduação,

como a especialização, por exemplo, seja recorrendo aos estudos sistemáticos

sobre um tema de interesse próprio. Portanto, o acesso a novas possibilidades de

escritas ocorreu atrelado às exigências no processo de formação acadêmica e

profissional: escrever para uma seleção para concurso, uma prova de

especialização, uma monografia e um projeto de pesquisa e de intervenção, como

revelaram as docentes Adriana, Márcia, Angélica, Maria e Socorro Damasceno.

No lado profissional, acadêmico, esta facilidade também me ajuda muito. Gosto de fazer pesquisas e depois escrever sobre um tema (Adriana, 2a carta).

No ano passado tentei ingressar no curso de pós-graduação em supervisão escolar, mas não passei. Na prova os candidatos deveriam escrever sobre um tema, que era sorteado na hora, entre cinco que eles davam para a gente estudar. (Márcia, 1a carta). [...] na seleção para o curso de pós-graduação na UFPE [...] no dia da prova teríamos que escrever sobre um dos temas [...]. Preparei-me durante uns vinte dias, li alguns livros, apostilas e fui escrevendo sobre cada tema [...] escrevi um monte de asneiras e não passei (Márcia, 2a carta).

[...] estou pensando em fazer minha monografia de especialização [...] e estava na Biblioteca do CE fazendo uma pesquisa quando encontrei uma monografia [...] que foi orientada por você. [...] A princípio, pensava em fazer minha monografia na linha de aquisição da escrita, até porque como professora de alfa este é um tema que muito interessa-me e deixa-me muita dúvida em como fazer, o que fazer e se o que estou fazendo tem realmente surtido o efeito esperado [...] estou pensando em trabalhar em como a informática educativa pode ser usada como meio para auxiliar na luta contra os problemas de aprendizagem. Não tenho bem certeza do que quero e espero que esta nossa conversa sirva também para dar-me algumas idéias (Angélica, 1a carta).

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Minha maior angustia em relação a escrita, está limitada ao meu projeto de pesquisa [...] entrei para o Mestrado, em Educação [...] tive que modificar muito meu projeto, pois estava muito perdida, a minha dificuldade com a escrita apareceu claramente neste momento de fazer e refazer o texto do projeto, não consegui articular as idéias, dar um sentido lógico ao texto, ser clara em meu objeto de estudo, tudo isso me deixou muito angustiada [...] (Maria, 3a carta). [...] estou desenvolvendo um projeto para a faculdade baseada nas “10 novas competências para ensinar” de Philippe Perrenoud, gostaria de saber se é possível você descobrir o endereço da faculdade ou da editora que ele desenvolve e registra suas pesquisas a “Université de Genève”. Vou transformar este projeto da faculdade em objeto de estudo na minha comunidade (Socorro Damasceno, 2a carta).

Por fim, é importante ressaltar a presença de um grupo de professoras

desta pesquisa participando de outras comunidades de leitura e de escrita em

espaços diferenciados: o envolvimento com a comunidade e a igreja do bairro,

com o Centro de Cultura Luis Freire, nas oficinas de leitura, com projeto de leitura

em parceria internacional, com pessoal envolvido em editoras e com iniciativas de

publicação na produção de textos em revistas.

No final de 99 comecei a freqüentar as Oficinas de Leitura [...]. Participar destas oficinas, foi muito importante porque me fizeram descobrir coisas em mim que eu não conhecia e me despertaram o prazer de voltar a estudar, pesquisar e ler (Márcia, 1a carta).

Participei das Oficinas de Leitura que muito me ajudaram [...] não só a gostar de ler, mas de escrever também (Ivana, 2a carta).

Fiz parte do Projeto PRO-LEITURA – parceria com a França e o Brasil. Depois mando uma xerox do meu trabalho neste projeto (Socorro Damasceno, 1a carta).

Saiu também um artigo meu com uma memória de leitura na revista “Alfabetização e Cidadania”. Fiquei muito contente em ver minha publicação (Socorro Barros, 4a carta).

Para essas docentes, a oficina de leitura repercutiu positivamente nas suas

vivências de leitoras e escritoras. A participação das docentes nesse grupo

representou um modo de inserir-se, com legitimidade, na cultura escrita,

marcando novas formas de compreender e de exercer com autonomia o trabalho

docente. Inaugurou formas de participação em práticas de leitura e de escrita que

foram reconhecidas como importantes na sua formação pessoal e profissional.

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5. ESCRITAS NA PRÁTICA DOCENTE

O exercício da docência desenvolvida na sala de aula compreende,

basicamente, três contextos de usos e finalidades da escrita: o planejamento de

aulas, a preparação das atividades sobre os conteúdos de ensino e o

acompanhamento e registro sobre a aprendizagem dos alunos. Dessa forma, as

docentes utilizam a escrita na elaboração de projetos didáticos, no diário de

classe, no registro sobre a prática educativa, na avaliação e correção das tarefas.

No entanto, quando assumem outras funções na escola, além da docência, a

escrita cumpre a finalidade de socializar estudos e leituras sobre um tema ou

assunto, na elaboração de síntese, relatório e solicitação específica às funções de

administração escolar e da coordenação pedagógica assumidas pelas docentes

no decorrer da pesquisa.

5.1. ESCREVER PARA PLANEJAR E ORGANIZAR O TRABALHO DOCENTE

A maioria das docentes confirmou que o planejamento escolar e a

elaboração de atividades são práticas de escrita comuns ao ofício de professor.

Além disso, elas escrevem sobre os acontecimentos em sala de aula e sobre a

aprendizagem dos alunos no diário de classe.

[...] uso a escrita nos planejamentos da escola (Márcia, 2a carta). [...] planejamento das atividades em meu trabalho, a passar algumas atividades para meus alunos (Maria, 3a carta). Escrever sobre a minha prática e também um hábito que tenho (Socorro Damasceno, 2a carta). O tempo para escrever é um dos fatores que impedem que os registros

aconteçam de forma sistemática, como revelou Elaine em seu depoimento:

Hoje, quando dá tempo registro as coisas que acontecem na sala de aula e que me ajuda na minha avaliação e na das crianças. (Elaine, 1a carta) [...] Ah! Esqueci de falar um pouco antes que também começo todo ano meu diário de classe (e não é que ele se aproxima do hoje popular DIÁRIO ETNOGRÁFICO) onde escrevo sucessos, avanços, retrocessos e reflexões sobre minha turma. Só que é tanta coisa para fazer que ele, invariavelmente, morre antes da metade do ano (Elaine, 2a carta).

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A professora Jacqueline exercita há vários anos a escrita do diário de

classe, com a finalidade de acompanhar sua turma. Nele, ela registra, além da

avaliação dos alunos, os desabafos e confidências, realizando assim uma

memória profissional com a intenção de produzir um material que possa ser

investigado por ela ao realizar um curso de pós-graduação. Diário de classe que

se confunde com o diário do filho, escrita no âmbito profissional que se mistura ao

estilo de uma escrita confessional, escrita que mescla as atividades

desenvolvidas na creche e os avanços alcançados com os alunos com a escrita

dos desabafos e das confidências pessoais e profissionais, escrita promovida na

esfera pública e institucional, embora restrita ao uso individual, não sendo

destinada à socialização para os outros docentes.

Na fase profissional, tenho meus diários das creches desde que ingressei na prefeitura. Não somos cobrados para fazê-lo, mas é como desabafo, confidências que só a mim interessam. Registro nele os problemas ocorridos em sala, os avanços e fracassos tanto meus como das crianças, tudo que faço na sala de aula com elas, o que gostaria de fazer e como foi feito realmente, onde vou quando me ausento da creche (nesse caso recorro a ele como agenda pessoal), todas as alternativas usadas em sala de aula para contornar esse ou aquele problema, enfim minha vida profissional da creche está toda lá isso desde 1990. Muitas vezes enquanto escrevo ou leio esses diários choro outras vezes dou verdadeiras gargalhadas, e fico tentando lembrar das coisas que pôr algum motivo censurei e risquei desses diários. Sinto que esse material pode me servir quando estiver fazendo algum curso de pós graduação na área de educação, no mínimo para mostrar a evolução de um professor na linha construtivista (Jacqueline, 2a carta).

Portanto, elas escrevem para organizar o trabalho pedagógico e, também,

quando assumem provisoriamente funções extraclasse, as solicitações de escrita

se voltam para finalidades burocráticas, como lembrou Maria e Abda. Escrevem

para elaborar um ofício, uma solicitação, sugestões de atividades, síntese de

texto, projetos e oficinas para serem realizadas com os docentes nas reuniões

pedagógicas. Essas demandas de escrita surgem dos espaços institucionais,

como ocorre na elaboração de um projeto escolar ou em decorrência das

exigências da nova função assumida.

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5.2. ENSINANDO A ESCREVER: AS ATIVIDADES DE ESCRITA

Algumas docentes elaboraram objetivos para o ensino da leitura e da

escrita no trabalho em sala de aula, ampliando as atividades de escrita para

finalidades significativas de produção, além das atividades provavelmente

vivenciadas no contexto escolar, como a cópia, o ditado e a caligrafia, que

integram as atividades de escrita.

[...] procuro desenvolver em ambas séries um trabalho de leitura e escrita, principalmente, com os alunos da 1a série, os quais estão sendo alfabetizados e acredito que desde cedo a criança precisa ter contato com a leitura e a escrita de forma prazerosa e lúcida para tornar-se cidadãos leitores e escritores (Luciene, 1a carta). Acompanho minha turma desde a 1a série. Este ano farão a 3a série. Os meus objetivos de permanecer com a turma é para investigar até que ponto as práticas de leituras relacionadas com as experiências que cada criança traz ao entrar na escola, sua vida cotidiana ajudam na formação de leitor/escritor como eles constroem a cidadania. O projeto que desenvolvo em parceria com o Luiz Freire antes era só na minha sala, mais a escola viu que trouxe benefícios para todos da escola que este ano a leitura/escrita e suas práticas será um projeto da escola. A editora Caranguejo vai editar livros da escola depois de outras crianças (Socorro Damasceno, 2a carta).

Dulce, no próximo depoimento, fez uma crítica à forma tradicional de

ensino à qual foi submetida e, como acrescentou na entrevista, tenta superar os

aspectos negativos dessa prática. Essa autocrítica, provavelmente, sugere uma

nova forma de perceber o ensino, como uma professora que se aproxima das

expectativas construídas em torno do ensino construtivista, embora também

evidencie um efeito da imagem da pesquisadora construída pela docente. Na

entrevista, Dulce também revelou sua preocupação com a avaliação da

pesquisadora em relação aos métodos e formas de ensino, na seguinte narrativa:

Em relação ao trabalho que eu fazia com a escrita, eu não sei se eu me sinto um pouco ou talvez muito tradicional no ensino. Eu acho assim: uma coisa que deu certo até certo ponto, não deveria ser tão modificado, compreende? Aí eu digo: “Meu Deus, será que eu trabalho a escrita de uma forma autoritária, de uma forma tradicional?” A minha preocupação com a escrita passa por aí. [...] No meu caso específico, eu tenho uma supervisora que ela critica muito a forma das professoras trabalharem. Tudo o que a gente passou. E não foi bom? A gente não chegou aqui? Então por que é que agora, alguém chega com uma teoria nova de escrita e de leitura e vai abolir tudo aquilo que serviu? Compreende? Então diz: “não é em detrimento das classes populares, porque o coitadinho que mora lá na

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rua, que é meu aluno aqui, ele vai se senti ofendido em fazer uma cópia”. Eu ficava preocupada com você: "Será que Emília está assim, em um estágio super avançado de modernidade da leitura e da escrita e vai me criticar em relação ao que eu faço? Eu tenho que ser real. [...] eu faço ditado, cópia, separação de sílaba, junção de sílaba, tomo leitura, compreende? Agora, isso não impede de fazer, por exemplo, uma pesquisa, pesquisar em revistas, pesquisar em jornais, cantar música, poesia, colar letrinha. Quer dizer, eu faço uma mistura do que é bom em um e do que é bom no outro. [...] A minha preocupação é essa, porque ela critica a gente:”Mas vocês não devem estar fazendo assim, porque isso é coisa do passado”. Aí eu falei: “Tudo bem, é do passado, mas eu só sei fazer assim, e a coisa caminha [...] (trecho da entrevista com Dulce). Portanto, apesar de lançar um olhar crítico sobre o ensino tradicional de

como foi alfabetizada, Dulce avalia sua própria prática docente oscilando entre

uma perspectiva “avançada” e “tradicional” de ensino, ao escolher atividades que

contemplam tanto a cópia e o ditado, como também a pesquisa, a música e a

poesia, consideradas por ela como indícios das novas aprendizagens e teorias

sobre a escrita.

Quando se referem ao ensino da escrita em sala de aula, as atividades

promovidas foram diversas, como a produção de textos, a redação, a produção

de carta, a criação de jornal, o recital de poesia, a exposição com produções

artísticas dos alunos e, ainda, o ditado, a cópia e as atividades de gramática, que

foram indicadores das práticas de escritas da maioria das docentes. Por exemplo,

a professora Socorro D. relatou a experiência na elaboração e confecção de um

livro produzido com os alunos, a partir de um projeto mais amplo desenvolvido

pela docente na escola, enquanto Márcia realizou um projeto de pintura

associado à literatura.

Meus alunos lançaram um livro sobre as lendas do mar e inauguraram uma editora com o título “Editora Caranguejo” em homenagem a comunidade de Brasília Teimosa. e seus pescadores e o escritor Sr. Josué de Castro (Socorro Damasceno, 2a carta). [...] resolvi desenvolver um trabalho com pintura, onde procuro fazer uma associação entre a pintura, a vida e obra de alguns pintores e a literatura infantil. Em novembro, pretendo organizar uma exposição com as produções artísticas dos alunos (Márcia, 1a carta). [...] tenho desenvolvido algumas atividades pedagógicas e oficinas de leitura. A última atividade foi uma “Roda Aberta de Diálogo” com o tema Produção Literária, onde fizemos um recital de poesia com um grupo bastante diversificado, o que foi muito interessante (Socorro Barros, 4a carta).

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Interessante verificar nos relatos das professoras Jacqueline, Socorro

Barros, Márcia e Angélica a intenção em divulgar a experiência com trabalhos e

projetos desenvolvidos em sala de aula, no uso da escrita em projetos

inovadores. Dessa forma, por iniciativa própria, elas escreveram artigo, projeto,

ou relataram as experiências para serem publicadas em revistas de divulgação

local e nacional.

[...] temos ousado um pouco em trabalhar com projetos e um dos quais foi selecionado dentre 32 do país e 2 do estado de Pernambuco, pelo Instituto C&A e Fundação Odebrecht, ficamos eufóricos e duplamente compromissados com tudo isso (Jacqueline, 1a carta). Agora pouco escrevi um texto para a Abrinque a respeito de um projeto de leitura que eu estava desenvolvendo com os meus alunos da alfabetização. Eles gostaram e disseram que iriam publicar o texto e as fotos em uma revista que eles divulgam os projetos que eles apoiam. Eu só não lembro o nome da revista (Angélica, 3a carta).

5.3. A ESCRITA COMO ELEMENTO AVALIATIVO NA PROMOÇÃO PROFISSIONAL DAS

DOCENTES

Por fim, com o objetivo de ingressar em outra função na escola, algumas

docentes vivenciaram a experiência de seleção interna na rede de ensino à qual

estão vinculadas, registrando a sensação de serem avaliadas através da

produção escrita, nesses momentos de promoção profissional.

[...] fiz duas provas escritas para o mesmo concurso interno. Fiz num ano, não passei, fiz no outro não passei. Fiquei decepcionada. Percebi que quando não estou num ambiente de teste, com tempo cronometrado, vendo o tempo passar e as pessoas saírem da sala escrevo legal. Percebi também que preciso de mais teoria. Emília o que me dói é ver tanta gente passar nestes concursos porque escreve legal e não terem autonomia sob sua prática para refletir, criar, mudar e transformar. São pessoas com discursos belos, mas sem força, sem verdade, sem sangue nas veias, sem esperança. [...] passei na 1a etapa dos concursos quando levei o texto organizado e escrito em casa, porém na 2a etapa dos mesmos, fui reprovada, quando as provas foram feitas com tempo cronometrado (Ivana, 3a carta). [...] escrevi uma redação para o concurso para professores da Prefeitura do Recife [...] eu estava muito apreensiva, pois no dia da prova fiquei um tempão para começar a escrever e estava em dúvida para onde direcionar o raciocínio sem me perder. Escrevi dentro dos critérios explicitados no manual de inscrição, mas saí da prova sem gostar do que tinha escrito. Apesar do sufoco, passei no concurso e estou aguardando ser chamada (Márcia, 2a carta).

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Na próxima seção encontramos os depoimentos das professoras que,

espontaneamente, revelaram as intenções e projetos de escrita, estimuladas pelo

diálogo e reflexão, realizados através da correspondência.

6. OS PROJETOS DE ESCRITA

Algumas docentes expressaram suas aspirações em elaborar projetos

escritos para diferentes finalidades. Publicar os escritos, em síntese, é a

finalidade atribuída aos textos, revelando o desejo de serem reconhecidas

socialmente. Escrever o que pensa, as experiências acumuladas pelo tempo nas

atividades em sala de aula, representa a busca de uma autonomia ainda não

alcançada pela maioria das docentes. Desde a primeira carta, a expressão

desses projetos revelou professoras com sede em escrever, como afirmou Ivana

em uma de suas cartas. Escrever poesias e contos, os registros de uma prática,

cartas em jornais, livros para crianças realça as intenções de escrita das

docentes, nos seguintes depoimentos:

[...] desde pequena eu também tenha querido, se não ser escritora profissional, ser escritora amadora, ou seja, conseguir publicar pelo menos um livro de poesias ou contos (Elaine, 1a carta). [...] o que falta para me completar é escrever um livro. [...] Quando eu editar o livro que tenho engavetado “Professor mude essa aula” serei realizada totalmente. O livro são registros que faço dos 21 anos das práticas que aprendi com as crianças, colegas de trabalho, os familiares e com o povo da minha querida comunidade “BRASÍLIA TEIMOSA” (Socorro Damascena, 1a carta). Sempre desejei fazer publicações, mandar cartas para jornais, escrever livros, mas não me sinto capaz, porém o desejo é grande, me acho uma profissional criativa e até atrevida, o medo do erro, da crítica negativa, e de como chegar lá, deixa-me incompetente (Dulce, 2a carta). Só sinto nunca ter escrito nada para crianças, apesar de trabalhar com elas e adorar o que faço. Acho que elas são mais exigentes, por isso não me arrisco (Adriana, 2a carta). Já tive sonhos que poderiam ter se transformado em livro infantil, já tive histórias criadas em minutos que também poderiam ter se transformado, mas quando penso em escrever me bate um grande desânimo e recolho as histórias e sonhos para o baú das memórias (Ivana, 2a carta).

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Outros projetos direcionados ao ingresso em um curso de mestrado, por

exemplo, sugerem a inserção em outros contextos de escrita com finalidades

acadêmicas. A aproximação com a pesquisadora incentivou a realização de

pedidos de natureza diversa: orientações e sugestões de temas de pesquisa,

sugestão para elaborar jornal escolar, textos para desenvolver projeto de ensino.

[...] gostaria de fazer mestrado em Psicologia Cognitiva [...] Gostaria que você me orientasse sobre livros e estudos que facilitassem meu ingresso na UFPE para fazer mestrado, seja em qualquer área. Estou louca para voltar a estudar, nunca repeti de ano, sempre gostei do estudo. Aguardo dicas, quanto ao mestrado (Jacqueline, 2a carta). Estou bolando a criação de um jornal para a 4a série [...] escrevi apenas a idéia desta vontade, mas pretendo escrever o projeto, pois vejo o jornal como um recurso legal para fazer a ponte entre a escola, o aluno e a comunidade. [...] este jornal também esta me tirando o sono, pois fico pensando já na atuação das crianças, fotografando, observando, registrando, gravando etc... etc... (Ivana, 3a carta). [...] terei que desenvolver (um projeto) sobre sexualidade, pois a coisa está latente e não dá para fazer de conta que não vê [...] O que está me preocupando é a minha monografia, que me deu um branco e não consigo pensar em nada e estou com preguiça de ler os textos (Angélica, 3a carta).

Por fim, o desabafo de Márcia, em sua 3a carta, revelou as reflexões e

inquietações que a angustiam, no seu trabalho docente, para resgatar os sentidos

em permanecer no caminho (e descaminhos) da sala de aula, na atividade do

ensino e da educação no contexto brasileiro.

Hoje sinto vontade de diversificar minhas atividades em educação, pois acho que ficar somente em sala de aula, dentro desse sistema educacional do Brasil, consome física e intelectualmente o professor, pois limita a sua capacidade de investigação, restringe seu tempo de estudo que são necessidades vitais para a sobrevivência da profissão. Estou com mil projetos em fase de amadurecimento, tenho vontade de voltar a estudar (uma especialização ou quem sabe um mestrado), gostaria de trabalhar com educação artística, motivada pela experiência que tive com meu projeto de pintura o ano passado, entre outras coisas, aprender outro idioma (espanhol ou italiano ou inglês, este último só por necessidade), também faz parte dos meus planos (Márcia, 3a carta).

Márcia ressaltou que a necessidade de mudança se justifica para a própria

sobrevivência da função docente, pois, no contexto escolar brasileiro, o professor

está situado dentro dos limites da sala de aula. Para ela, é preciso mudar a

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organização do tempo para que favoreça melhores condições de estudo e novas

possibilidades de inserção no universo da cultura escrita. Para isso, ela aponta

que essas mudanças dependem da sua vontade em continuar estudando para

que, de alguma forma, possa sobreviver ao anonimato que se impõe ao trabalho

cotidiano. Anonimato que age sorrateiramente e reforça a descrença das

professoras em sua autonomia e criatividade para escrever.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Inevitavelmente, na tarefa de realizar uma discussão final deste trabalho,

reporto-me ao início, onde tudo começou. Lembrar do começo dessa experiência

é recordar minha sensação emocionada, por um lado, ao receber com surpresa a

primeira carta-resposta de uma professora. E, por outro, perceber que, apesar

das grandes revoluções tecnológicas nas formas de estabelecer uma

comunicação com o outro, o convite em participar de uma pesquisa sobre a

escrita – através da correspondência – foi viabilizado por um provável

reconhecimento das docentes sobre a possibilidade de manter um diálogo na

busca de um entendimento de um tema comum, mas singular, já que, embora

presente na vida cotidiana, implicava, nos moldes que propus, revelar-se na troca

partilhada, no conhecimento do outro.

Naquele momento em que recebi a primeira carta, percebi que iniciava uma

experiência da qual (não) tinha idéia do caminho que deveria seguir, tal qual foi o

impacto do (des)conhecido que aquela carta suscitou. Em seguida, constatei as

amplas possibilidades que a quantidade de informações de diferentes naturezas,

oriundas desta experiência, representariam para mim, no decorrer do estudo.

Constatei, aos poucos, que poderia analisar o material recebido de diversas

maneiras.

Depois de ter “concluído” o trabalho, posso assumir que foi um desafio

prazeroso escrever e uma tarefa fascinante ler as cartas das professoras. Além

disso, foi bastante gratificante, para mim, confirmar o pressuposto que me levou a

realizar esta pesquisa: “as professoras escrevem”.

Com essas lembranças, gostaria, inicialmente, de discutir aqui algumas

possibilidades e limites no uso da carta como procedimento metodológico.

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A experiência deixou evidências das potencialidades deste “instrumento” na

formação de uma rede de interlocução com as professoras. No espaço dessa

interlocução, uma situação bastante próxima de uso da linguagem escrita foi

mantida, criando significados singulares na troca de cartas entre a pesquisadora e

as professoras, na tarefa de ler e escrever para um interlocutor desconhecido.

Além do confronto com o desconhecido, ao mesmo tempo se processava uma

relação de desenvoltura e/ou tensão com o ato de escrever, nas negociações

constantes realizadas para a manutenção do pacto epistolar.

Mesmo não tendo negociado no pacto uma intenção explícita de formação

docente, indiretamente, as professoras parecem ter entrado em um espaço de

formação “experiencial”, favorável, dentre outras coisas, ao desenvolvimento de

capacidades específicas: escrever, escrever para um outro desconhecido, ler,

refletir sobre usos da escrita, sobre o ensino.

No exercício da reflexão, a carta proporcionou que as professoras, diante das

inquietações e questionamentos, buscassem os sentidos da prática pedagógica e

do desempenho profissional, revelando aspectos variados sobre os conteúdos de

sua escolarização básica e formação docente.

Nas cartas, as professoras se defrontaram com a linguagem escrita de

maneira sistemática (apesar de reconhecermos o fluxo desigual das

correspondências), o que teria imposto uma interação com um tema que tem a

característica da “invisibilidade” (decorrente, contraditoriamente, da presença

costumeira da escrita na vida cotidiana, mesmo que de forma difusa e desigual).

Nesse confronto elas refletiram sobre os inúmeros problemas com a escrita,

decorrentes do nível desigual de inserção nas práticas de leitura e escrita e da

ausência de práticas permanentes que lhes estimulem a escreverem em

contextos significativos sobre sua prática docente e experiência profissionais.

Essa situação (quase) real de interlocução exigiu uma responsabilidade na

manutenção do pacto estabelecido com a pesquisadora e refletiu, também, uma

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vontade em aprimorar os conhecimentos, o que se revelou nos relatos sobre a

busca de uma autonomia na condução do aperfeiçoamento da formação, quando

elas tomavam, para si, o desafio em melhorar o ato de escrever, em melhor

compreender a relação com a escrita, ou, ainda, em promover atividades de

leitura e escrita significativas e contextualizadas em sala de aula, como

compartilharam algumas professoras em suas cartas-resposta. Parece-me

importante frisar esse cuidado, por muitas delas reiterado, em reinventar/não

reproduzir com seus alunos certas experiências que hoje consideram negativas

na formação de um usuário da escrita. Quando digo hoje, é porque há que se

considerar que o “exercício de rememorar”, por elas vivido, é filtrado por um

conjunto de conhecimentos e disposições de que nem sempre dispunham quando

eram apenas aprendizes ou quando começaram a ensinar. Esse posicionamento

crítico parece ser influenciado por um olhar do presente, marcado pelas

expectativas e conhecimentos disponíveis à professora, advindos de suas

experiências enquanto usuárias da leitura e da escrita.

Dentre os vários objetos de reflexão suscitados nas professoras pelo pacto

epistolar, creio que dois outros ainda mereceriam um destaque especial. Em

primeiro lugar, ressalto que diferentes professoras, ao rememorarem suas

experiências com a escrita, conseguiram formular, de forma explícita, reflexões de

corte sociológico, considerações sobre a desigual distribuição dos bens da cultura

escrita que viveram em nossa sociedade, e que marcou seus relacionamentos

cotidianos “com o escrever”. Ao conhecer os condicionamentos do mundo social,

por meio dessa reflexão, as professoras puderam “desnaturalizar” o modo pelo

qual esse mundo se gravava em suas relações com a escrita: as dificuldades de

escrever, os usos às vezes parcimoniosos da língua escrita, as tensões, as

competências mais ou menos limitadas puderam, assim, deixar de ser vividas

como um déficit pessoal, como um handicap individual e passaram a ser vistas

como produtos de uma distribuição injusta de competências e bens culturais. Ao

contrário, portanto, do que defendem os estudos e pesquisas baseados no

“empowerment” da identidade docente, no reforço dessa “identidade”41, a

41 Cf, por exemplo, Ângela Kleiman (2001) e Ana Lúcia Guedes-Pinto (2001).

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pesquisa revela que o conhecimento das determinações sociais é uma das

condições de “empowerment”. É uma das condições para a crença em si e para a

transformação das desigualdades do mundo social42.

Um outro aspecto que chamou a atenção foi a recorrência, nas cartas de

algumas professoras, de depoimentos marcados por verdadeira “reflexão

metalingüística”. Como vimos, algumas faziam julgamentos sobre épocas em que

suas escritas apresentavam mais marcas de oralidade, teciam considerações ou

revelavam dúvidas sobre especificidade de certos gêneros textuais, etc.

No contexto deste trabalho, outras decisões poderiam ter sido adotadas,

levando em conta, por exemplo, a alternativa de uma redução do quantitativo de

professoras envolvidas na troca de cartas, a fim de propiciar uma discussão

específica com cada professora. No entanto, diante do caráter exploratório da

pesquisa e do reduzido conjunto de estudos sobre a temática da relação dos

professores com a escrita, optou-se pela realização de uma troca epistolar com

base na escrita de cartas-padrão para o grupo, com algumas alterações em

decorrência das respostas das professoras. Portanto, decidi não limitar o número

de docentes, mas esperar que este quantitativo refletisse o engajamento das

professoras, evidenciando, assim, aspectos da relação das mesmas com o ato de

escrever em uma situação real.

Provavelmente, o uso da correspondência permite pensar em uma infinidade

de maneiras de conduzir um diálogo em uma situação de pesquisa, levando em

consideração os propósitos e as temáticas que podem ser beneficiados por ela.

Além da escrita de cartas, realizei entrevistas no final da troca de

correspondências, com o objetivo de ampliar alguns temas presentes nos

depoimentos, por meio de uma reflexão sobre o que foi escrito. Na entrevista, por

existir uma elaboração anterior do material apresentado por escrito, foi possível

às mestras realizar uma nova reflexão sobre o que haviam “dito por escrito”.

42 Como, aliás, defende Pierre Bourdieu (ver, por exemplo, Bourdieu e Wacquant, 1992).

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Nesse momento, esclarecimentos e novas informações puderam ser

acrescentados e possíveis questões advindas dos esquecimentos, fruto dos

exercícios da memória, foram retomadas. Parece-me importante ressaltar que

foram praticamente ausentes evidências de contradições entre as informações

expressas por escrito e as obtidas durante a entrevista. Se, na “ótica de

pesquisadora”, as entrevistas permitiriam detalhar/afinar certos dados colhidos

nas cartas, constatei que, em muitos dos depoimentos orais, várias professoras

deram indicações do quanto o pacto epistolar teria permitido que vivessem uma

experiência singular. Isto é, através das cartas, teriam podido tomar consciência

de certas características e peculiaridades de sua formação como escritoras, num

grau que até então não teriam elaborado.

Ao contrário das cartas, na entrevista não utilizamos um roteiro único para as

professoras. Cada entrevista foi um momento de interlocução singular entre

pesquisadora e professora, pois tomei como eixo não só o que elas escreveram,

mas o significado dessa experiência, da troca de correspondência, para cada

uma.

Voltando a considerar o objeto de estudo da pesquisa – práticas de escritas de

professoras – e a pergunta apresentada no início do trabalho – “e as professoras

escrevem?” – algumas outras reflexões precisam ser consideradas nesse

momento final do trabalho.

A primeira se refere à discussão sobre os grupos de configurações familiares,

realizada no último capítulo. Ao dividirmos as professoras em três possibilidades

de configurações familiares, é importante destacar alguns pontos, que vão

explicados em seguida.

A partir dos depoimentos obtidos, vimos que as professoras pertencentes ao

primeiro grupo familiar, com nível de escolaridade elevada, vivenciaram práticas

de leitura e escrita na infância, receberam orientações e estímulos de pessoas

adultas que valorizavam suas escritas e apresentaram uma relação fluida com a

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escrita, tanto na troca de correspondência comigo, como no que diz respeito ao

que expressavam sobre o que escreviam e ainda escrevem na esfera familiar e

na prática docente.

Esse dado poderia levar a uma conclusão de que o nível socioeconômico e de

escolaridade dos pais e familiares são determinantes primordiais na inserção das

práticas de leitura e escrita. É importante ressaltar, no entanto, que esses

elementos influenciam, mas não parecem determinar isoladamente as

disposições, competências e condutas da ordem do escrever. Se, por um lado,

encontramos uma professora inserida naquele grupo que revelou estabelecer

uma relação tensa/menos desenvolta com o ato de escrever, por outro,

professoras pertencentes aos outros grupos familiares, cujos pais tinham níveis

elementares de escolaridade, demonstraram apresentar uma relação

aparentemente mais fluida/desenvolta com a escrita. Nesse caso, parece

necessário destacar a influência que essas últimas professoras receberam de

outras redes de socialização, como a escola, a comunidade, as instituições de

formação.

No que diz respeito especificamente à escola, a maioria das professoras

vivenciaram práticas de escrita cujos objetivos se restringiam ao aprendizado de

regras gerais, desvinculadas de usos efetivos da língua escrita. Foi nesse

contexto que as docentes começaram a se familiarizar com a dimensão normativa

do escrever, em que observações sobre o “escrever corretamente”, “evitar o erro”

conformaram, por um lado, certas crenças reveladas através dos julgamentos “eu

não sei escrever”, “tenho dificuldade em escrever”, “não consigo me expressar por

escrito”, mas que também conformaram, por outro lado, sentimentos de

insegurança e medo de escrever para não errar, para evitar o olhar avaliativo e o

julgamento – às vezes, depreciativo - do outro, resultando, por fim, na atitude de

associar o ato de escrever às práticas “escolares” de escrita.

Os relatos das “duas Socorro”, entretanto, ampliam as possibilidades de

compreensão dessas questões. Ambas demonstraram ter superado, de certo

modo, as limitações provenientes de sua origem socioeconômica e das

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experiências escolares. Essa realidade foi contornada pelas possibilidades de

acesso em outras redes de socialização, provenientes do engajamento político na

comunidade, de uma atuação permanente na luta por melhores condições e

oportunidades de acesso a bens culturais, ou da inserção em grupos de estudo e

reflexão sobre as condições formativas e profissionais. A participação nessas

redes permitiu o acesso a vivências múltiplas nas experiências de leitura e escrita

em contextos diferenciados (família, comunidade, instituições de formação). Disto

teria resultado, de certo modo, uma ”superação” no modo de se relacionar com a

escrita, apesar do reconhecimento da persistência de dificuldades com o ato de

escrever. Essa postura de autonomia se revelou na crença daquelas professoras

que se reconheciam como profissionais comprometidas, sérias e competentes

com o que fizeram e continuam construindo em sala de aula.

No que se refere à formação continuada e à prática docente, encontrei um

grupo de docentes particularmente especial. Algumas delas tinham concluído ou

estavam realizando cursos de pós-graduação. Sabemos que nesses espaços

demandas de materiais escritos e o contato com novas leituras são estimulados,

colocando para essas professoras o contato com práticas como a escrita de um

memorial, de uma monografia, de uma dissertação – práticas de escrita que,

anteriormente, eram para a maioria delas desconhecidas. Entendemos que,

nesse confronto com práticas de escrita específicas e distintas das vividas em sua

escolarização básica e formação inicial, as professoras foram superando suas

dificuldades. Portanto, também no exercício da profissão – que inclui a formação

continuada – as práticas de escrita e de ensino de escrita teriam sido ampliadas e

diversificadas.

O conjunto dos dados permitiu realizar algumas interpretações sobre as

escritas docentes e, particularmente, pareceu comprovar que elas são escritoras,

submetidas a condições determinadas de usos no âmbito privado e profissional.

As imagens que as docentes constroem de si, como sendo ou não escritoras,

oscilam como resultado de um fenômeno complexo. Parece que tanto a

participação da família na condução de práticas de escrita quanto as influências

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positivas e negativas das aprendizagens escolares (particularmente, no que se

refere ao acesso aos procedimentos e normas que regulam a escrita e o domínio

das habilidades e conhecimentos sobre as suas convenções aplicadas em

diferentes situações de comunicação e sociabilidades) interagiram e

condicionaram os modos de escrever e de se relacionar com a escrita no

cotidiano das docentes.

Por fim, da rede de correspondência instalada, surgiram algumas idéias ou

perspectivas – a meu ver interessantes – quanto à continuidade da investigação e

desenvolvimento da compreensão da temática aqui discutida, a partir de novas

hipóteses de trabalho, advindas das novas questões. Poderíamos pensar em

como ampliar o conhecimento sobre esse objeto de estudo, estimulando o

confronto permanente entre as atitudes e crenças consolidadas e as ações

oriundas desses dispositivos, promovendo o diálogo com os sujeitos investigados

tanto no contexto investigativo quanto nas questões formativas que uma

pesquisa, nesses moldes, poderia promover.

Acredito, portanto, na alternativa de promover espaços em que as professoras

pensem, reflitam, construam conhecimentos em contextos diversificados de

escrita, em que suas competências sejam estimuladas, buscando, assim, superar

o anonimato das situações em que ocorrem/tendem a ocorrer, cotidianamente,

suas práticas de escrita.

Foi no envolvimento e na dedicação das professoras que apresentaram

grande disponibilidade para aprender e trocar informações, mantendo aceso o

desejo de se desenvolver e se aperfeiçoar, que renovei a esperança em acreditar

no improvável de certas verdades e crenças construídas socialmente.

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ANEXOS

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ANEXO 1: ROTEIRO DA ENTREVISTA

1. Dados gerais de identificação

Nome:

Idade:

Estado Civil:

Tem filhos?

Escolaridade do pai:

Escolaridade da mãe:

Profissão do pai:

Profissão da mãe:

2.Nível de formação (2o e 3o graus, pós-graduação)

Tipo de escola em que estudou:

1o grau: particular ( )

pública estadual ( )

pública municipal (...)

2o grau: particular ( )

pública estadual ( )

pública municipal (...)

3o grau: particular ( )

pública estadual ( )

pública municipal (...)

Pós-graduação:

3. Experiência profissional

Anos de experiência no magistério:

Séries em que já lecionou:

Série que leciona, atualmente:

Escolas/turnos em que trabalha:

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4. Questões que orientaram as entrevistas:

Primeira Parte: A troca de correspondências e o ato de escrever

Como foi participar da troca de cartas?

O que achou das cartas recebidas?

Como foi escrever as cartas?

Onde escrevia as cartas?

Utilizava rascunho?

Segunda Parte: Ambiente familiar e esfera escolar: os contextos de escrita

na infância e na adolescência.

Quais as situações cotidianas de escrita comuns na família e na escola? Quem

escrevia? Alguém incentivava a escrever?

Quais as formas de acesso a material escrito?

Como e quando aprendeu a escrever? O que recorda da aprendizagem da

escrita?

O que recorda sobre o que escrevia na escola? Quais as atividades de escrita

mais comuns na escola e na família?

Terceira Parte: A formação e a prática docente: os eventos de escrita

Como foi a escolha pelo magistério?

O que escrevia no período da formação docente?

Quais as experiências positivas e negativas desse período? (formação)

O que os eventos de escrita que utiliza na sua sala de aula?

Como é a correção das atividades de escritas dos alunos?

Quarta parte: A escrita no cotidiano da professora

O que você escreve, atualmente? Para que escreve?

O que você guarda do que escreve? O que você joga fora do que escreve?

O que você mais gosta de escrever? O que você menos gosta de escrever?

Ps: Recolher o quadro sobre a escrita e a atividade com os alunos.

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ANEXO 2: CARTA-CONVITE PARA PARTICIPAÇÃO NO SEMINÁRIO DE

SOCIALIZAÇÃO

Recife, 19 de abril de 2002. Olá Abda,

Das outras vezes, em que escrevi cartas para você, estava tão distante. Hoje, é diferente. Escrevo acompanhada das lembranças do nosso encontro. Coisa engraçada, tinha a sensação de que iria encontrar alguém conhecida, acho que conhecê-la através de suas histórias, memórias e idéias nas cartas proporcionou essa sensação de familiaridade.

Hoje poderia ter escolhido fazer uma ligação telefônica, ao convidá-la para o nosso seminário no próximo sábado (27/04) no CE/UFPE, mais preferi recordar a sensação de escrever carta e de recebê-la. Lembro que a chegada de uma carta era uma grande emoção e sinto saudades dos dias em que vivi acompanhada do barulhinho das cartas por detrás da porta no apartamento da ‘Rua Timbiras’ e no studio da ‘Avenue des Gobelins’. Lembro também que, muitas vezes acordei correndo para abraçar as cartas, emocionada com as histórias que você me contava. Foi muito bom e gratificante contar com você nesse período em que trocamos cartas. Muito obrigada pela disponibilidade em fazer novas amizades e também por ter contribuído com a pesquisa.

Com o objetivo de apresentar a análise preliminar que venho realizando com os dados obtidos através da troca de cartas é que estou organizando um seminário de socialização com as professoras que participaram da pesquisa. A programação é a seguinte:

8:30h – Chegada no Hall do CE/UFPE 9:00h - Apresentação do grupo de professoras e dos objetivos do seminário 9:30h – O processo da pesquisa: origem do problema, objeto de estudo,

metodologia: a escolha da correspondência 10:00h – O campo de estudo sobre as práticas cotidianas de escrita 10:30h – As práticas de escrita das professoras: Abda, Adriana, Amara,

Amélia, Angélica, Dulce, Edileusa, Elaine, Fabíola, Maria, Ivana, Jacqueline, Luciene, Márcia, Ma das Dores, Potira, Socorro Damascena, Solange, Shirley, Simone e Socorro Barros.

11:30h – Vídeo: “Paris vista do céu” e Coquetel Espero poder mais uma vez contar com a sua participação. Prometo que

depois dessa proposta indecende (encontro dia de sábado pela manhã!!!!) só irei aperriá-la com a promessa de escrever novas cartas e cartões postais, sem o compromisso com uma pesquisa, apenas pelo prazer de escrever, de conversar e de contar novidades.

Um grande abraço, PS: Se puder confirmar sua presença, ligue para mim (F: 34540605). E,

quem ficou de preencher o quadro sobre a escrita e/ou realizar a atividade das cartas com os alunos, favor levar para o encontro.

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ANEXO 3: CARTA AVISO DE RECEBIMENTO

Belo Horizonte, 29 de maio de 2000.

Cara professora Edileusa,

Gostaria de lhe agradecer pela carta, fiquei muito feliz ao

recebê-la. Agradeço sua disponibilidade em participar da pesquisa e

a possibilidade em conhecer você e seu trabalho. Sua contribuição

será muito valiosa para a pesquisa e espero continuar refletindo com

você na próxima carta sobre os aspectos relacionados à escrita.

Em breve, estarei lhe enviando outra carta para prosseguirmos

com nosso diálogo. Muito obrigada e até breve.

Um abraço.

Emília Lins.

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ANEXO 4: CARTA PARA OS ALUNOS

Paris, 19 de junho de 2001. Querido (a) aluno (a) da Professora Jacqueline, Antes de mais nada, vou me apresentar. Meu nome é Emília. Sou

professora num curso que dá aulas para professores e estudo sobre como se ensina e se aprende na escola. Vou contar para você um pouco sobre mim e gostaria que você me contasse um pouco sobre você também.

Sou de Recife, mas atualmente, estou morando e estudando em outro país, chamado França, na cidade de Paris que é muito bonita. Você sabia que a França é um país menor que o Brasil e a cidade de Paris menor que a cidade de Recife? Aqui existe o Rio Sena e muitas pontes que cortam a cidade, assim como o Rio Capibaribe em Recife. Os prédios são antigos e os parques e jardins são conservados e muito floridos nessa época da primavera. Vim para cá, em outubro do ano passado, e, no início de julho, estarei voltando para o Brasil.

Minha vida aqui, foi bem diferente do meu trabalho em Recife. Aqui fiquei estudando muito, fui assistir aulas, visitei as bibliotecas e conheci outros professores que também estão estudando sobre a escola. Essa experiência foi muito boa porque aprendi muitas coisas novas, mas confesso que uma das coisas que mais gostei de fazer foi pensar e escrever as cartas para a sua professora.

Agora que você já conhece um pouco sobre mim, deixa contar como conheci sua professora. Não sei se você sabe, mas sua professora e eu estamos nos conhecendo através de cartas. Nós duas, adoramos escrever e ler cartas. Você já imaginou que duas pessoas até então desconhecidas possam se conhecer através da carta? Você já teve essa experiência na sua vida?

Hoje resolvi escrever uma carta para você porque estou precisando saber uma coisa que muito me interessa e espero que você possa me ajudar. Um dia desses, aqui em Paris, fui visitar uma sala de aula numa escola pública e conversei com uma professora e seus alunos. Nesse dia, levei um cartaz do Recife para que eles pudessem conhecer a cidade e as praias, o Carnaval e a música do frevo. Os alunos adoraram a foto do Carnaval e ficaram surpresos com a multidão do bloco do Galo da Madrugada e gostaram muito de conhecer um pouco da cidade do Recife.

O trabalho da professora e dos alunos foi sobre as formas de comunicação na família e no cotidiano das pessoas. Os alunos trouxeram de casa informações sobre as formas de comunicação que a família utiliza para se comunicar com os amigos e os familiares que estão distante ou que moram em outra cidade. Durante a aula, a professora me perguntou sobre as formas de comunicação dos alunos nas escolas do Brasil.

Assim, é que surgiu a idéia de escrever essa carta. Você aceitaria me escrever uma carta falando sobre essas coisas? Gostaria que me contasse na carta como você e/ou sua família fazem para se comunicar com as pessoas que estão distante ou que não moram na sua cidade. Alguém recebe ou já recebeu carta na sua família? Você escreve ou já escreveu uma carta para alguém?

Acho que a partir da sua carta, poderei escrever para a professora que conheci aqui e contar para ela as coisas que você me contou sobre as formas de comunicação que você e sua família utilizam no dia-a-dia.

Muito obrigada pela sua participação e um grande abraço.

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ANEXO 5: ADAPTAÇÕES NAS CARTAS COMUNS

EXEMPLO DE ADAPTAÇÃO NA CONSTRUÇÃO DA 2a CARTA

INÍCIO DE CARTA:

Belo Horizonte, 05 de outubro de 2000. Fabíola,

Desde que recebi sua carta-resposta, na semana passada, só hoje estou conseguindo parar e te escrever. Sei que você deve ter ficado sem entender a minha demora em responder sua carta, mas gostaria que você soubesse que fiquei muito feliz ao recebê-la e gostei muito do que você escreveu. Muito obrigada em aceitar participar de meu trabalho. Apesar da demora em enviar-lhe outra carta, espero ainda recuperar seu interesse e motivação em continuar se comunicando comigo.

Como te falei por e-mail ontem, estive nas 3 últimas semanas envolvida com minha mudança. Com isso, precisei investir todo tempo em encaixotar coisas e espalhar caixas, móveis e eletrodomésticos nas casa de alguns amigos. No próximo dia 19/10, estarei indo realizar um estágio de oito meses em Paris com o objetivo de aprofundar os estudos do doutorado. Após esse estágio, pretendo voltar para BH e permanecer até a defesa, assim, não compensaria enviar minhas coisas para Recife, o custo seria altíssimo. Hoje, um pouco mais aliviada, retomei as correspondências com as professoras que me enviaram cartas durante esse período agitado para mim. Espero que compreenda meus motivos e retome com vigor nosso diálogo. Mesmo durante esse período no exterior, pretendo manter as correspondências com as professoras que já iniciaram as conversas comigo. Continuarei enviando o envelope selado, não acarretando nenhum custo no envio da carta para mim. Estou indo munida de selos internacionais para garantir nosso contato. Assim que estive com endereço eletrônico pretendo enviar notícia e comunicar meu novo e-mail.

Fabíola apesar da ausência nos contatos, lembro muito bem de você. Recordo que visitando Eliana no edifício onde morou na Cidade Universitária, encontrei com você e seu marido na entrada do prédio. Confesso que não lembrava da comemoração do mestrado mais recordar a partir de suas lembranças me deixou com saudades daquele tempo.

Na primeira carta, você revela o interesse em participar da minha pesquisa. Hoje, gostaria de continuar dialogando com você revelando minha própria relação com a escrita, falar um pouco da minha trajetória pessoal e profissional para que assim você me conheça um pouco melhor. MEIO DA CARTA:

Na sua primeira carta você já inicia alguns dados sobre sua vida acadêmica e profissional. Fico feliz em saber que você está dando continuidade a seus estudos e com projetos futuros bastante promissores. Gostaria que você contasse um pouco mais da sua experiência profissional e de sua escolarização anterior. FINAL DA CARTA:

Obs: Estou enviando o envelope com o novo endereço. Portanto, desconsidere o endereço de Belo Horizonte. Caso, consiga alguma professora (o), me avise que envio minha carta-convite, Ok.

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EXEMPLOS DE ADAPTAÇÃO NA CONSTRUÇÃO DA 3a CARTA

INÍCIO DA CARTA: Paris, 6 de março de 2001.

Oi, Amara,

Espero que você esteja bem. Fiquei muito feliz em receber sua carta, embora já estivesse um pouco preocupada e ansiosa para saber de você. Engraçado, não é, mesmo já te conhecendo a um tempo, desde a graduação (recordo da escola em Santo Amaro que você ensinava junto com a Eliana e Rosário, lembra-se?) Você continua na mesma escola? Tem notícias de Rosário, como ela está? Tentei falar com ela antes de vir para cá, para conseguir o endereço e enviar as cartas, mais não consegui. Depois te encontrando no curso de especialização quando você foi orientanda da Eliana, não imaginava que um dia poderia trocar cartas com você e que possamos aos poucos se conhecer, se emocionar e também se identificar com as histórias de vida.

Espero também que, apesar do longo tempo sem dar notícias, a gente possa recomeçar nossas cartas. Nesse meses iniciais, aqui, em Paris, as atividades têm sido tão diversificadas que vêm me dando muito trabalho e muito pouco tempo. MEIO DA CARTA: Amara, lembrei de uma passagem na minha infância que acho que tem um pouco a ver com o que você falou sobre ser avaliada e o medo de escrever. Como tu mesma disseste, em tua segunda carta, quando se estar sendo avaliada através da escrita sempre o medo aparece porque as pessoas emitem juízo de valor.

INÍCIO DA CARTA: Paris, 30 de março de 2001. Oi, Abda, Espero que você esteja bem. Imagino que não é fácil conjugar as atividades tanto de casa como do trabalho, e fico muito grata por você, mesmo assim, escrever para mim. Fiquei emocionada e feliz com sua última carta: engraçado, não é, que duas pessoas, até então, estranhas uma à outra, possam aos poucos se conhecer, se emocionar, se identificando com as histórias....

Como você me pediu vou te falar um pouco das coisas que ando fazendo aqui, em Paris. Nesses meses iniciais, as atividades têm sido tão diversificadas que vêm me dando muito trabalho e muito pouco tempo. Paralelamente ao trabalho, venho vivendo a descoberta da cidade de Paris, das semelhanças e diferenças nos costumes, no dia-a-dia, na feira, nas lojas, no transporte. Tudo isso tem sido muito bom e, ao mesmo tempo, importante para conhecer diversos detalhes dessa cidade tão apaixonante (e tão difícil às vezes).

MEIO DA CARTA:

Pois é. Eu, assim como você, acho também que é um sacrifício escrever. Abda você falou que tem uma filha chamada Laís que estava com 1 ano de 4 meses em outubro de 2000, agora ela já deve estar uma mocinha, não é mesmo?

FINAL DA CARTA:

Abda vou tentar na próxima uma carta contar mais coisas de Paris e do curso, tá bom?

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MARIA DAS DORES: INÍCIO DA CARTA:

Paris, 6 de março de 2001.

Oi, Dôra,

Espero que você esteja bem. Fiquei muito feliz em receber sua carta, por dois motivos: primeiro; porque apesar do teu tempo corrido tu ainda encontras um tempinho para escrever para mim e segundo pela boa notícia da vitória de João Paulo em Recife. Acompanhei um pouco daqui, através da internet e dos e-mails enviados pelos amigos, a grande emoção que tomou conta de Recife durante as eleições e nas comemorações da vitória. Espero que apesar das dificuldades que irão aparecer (em função da história política do Estado de PE), a equipe consiga realizar um bom trabalho na administração da cidade. Bem, voltando as cartas.... engraçado, não é, que duas pessoas, até então, estranhas uma à outra, possam aos poucos se conhecer, se emocionar, se identificando com as histórias...

MEIO DA CARTA: Pois é. Eu, mais não sei ainda se com você, acho que é um sacrifício escrever. Fico evitando responder às cartas até onde não posso mais. Depois que sento e escrevo é bom. Mas o antes e o durante... que sacrifício, menina. .....Dôra, lembrei de uma passagem na minha infância que gostaria de compartilhar com você. ....Fiquei curiosa para saber como você se tornou professora. FINAL DA CARTA: IGUAL A CARTA PADRÃO

EXEMPLO DE MARIA: INÍCIO DA CARTA:

Paris, 5 de março de 2001.

Oi Maria,

Espero que você esteja bem. Existem momentos difíceis na vida da gente mesmo. Tomara que você esteja podendo enfrentar inteira esses problemas por que está passando com sua família. Problemas de saúde sempre mexe com todo mundo, fico aqui torcendo para que os meus pais e irmãos em Recife tenham saúde todo dia. Fiquei emocionada com sua última carta: engraçado, não é, que duas pessoas, até então, estranhas uma à outra, possam aos poucos se conhecer, se emocionar, se identificando, e terminar, com a vontade de permancer dialogando, fico muito feliz em saber que você também não vai desistir de enviar cartas para mim e que de alguma forma se idendificou com a minha história.

MEIO DA CARTA: Quando você falou que essas coisas de dificuldade com a escrita é um reflexo de nossa educação, lembrei de um período da minha infância em que vivi alguns anos em Ipojuca (você conhece?). Acho que a gente não gosta tanto de escrever por causa disso. Como tu mesma disseste, em tua segunda carta, por medo de errar evitamos escrever.

Uma coisa que achei parecida nas nossas histórias: eu sempre pensei em ser professora. Para mim sempre foi a primeira opção.

Foi assim também com você ou foi diferente?

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EXEMPLO DE DULCE: INÍCIO DA CARTA: Paris, 8 de março de 2001.

Oi, Dulce,

Espero que você esteja bem. Fiquei muito feliz e emocionada com sua última carta (e a segunda carta, também): engraçado, não é, que duas pessoas, até então, estranhas uma à outra, possam aos poucos se conhecer, se emocionar, se identificando. Adorei conhecê-la através da foto. Sabia que te achei tão familiar, penso que te conheço. Será lá do Centro de Educação?

MEIO DA CARTA: Dulce você já me falou que tinha 46 anos (maio de 2000) e nesse ano de 2001 já mudou de idade? Qual o dia do seu aniversário?

FINAL DA CARTA: Dulce, fiquei com a impressão que você também parece ter esse sonho, talvez pela vontade de escrever o livro sobre o “Batata”... PS: Dulce, e como está o projeto do livro sobre o seu irmão? Já conseguiu o contato com o pessoal da Editora Bagaço? Acho que você poderia começar reunindo todo material referente ao Batata, como documentos pessoais, cartas recebidas ou enviadas (lá vem eu com essa história de cartas, né?... risos), anotações, fotografias, recolher depoimentos de pessoas da família, amigos, da comunidade, etc... Talvez seja um caminho para começar se aproximando do projeto do livro. O que você já vêm pensando sobre isso?

PS: Acho que nem preciso perguntar se você é carnavalesca, né? Lembrei tanto de você nesse carnaval. Mesmo já tendo terminado, me conta as novidades desse carnaval, o primeiro em minha vida que não passei em Recife e Olinda... que inveja de quem estava aí).

PS: Parabéns e muitas felicidades pelo nosso Dia das Mulheres!!

Meu endereço eletrônico é: [email protected]

E vc, já está com e-mail? EXEMPLO DA CARTA DE ELAINE: MEIO DA CARTA: Uma coisa que achei parecida nas nossas histórias: eu sempre pensei em ser professora. Eu sei que você disse outra coisa, quer dizer, que essa nunca foi sua primeira opção. Para mim sempre foi a primeira. Elaine, você já falou sua idade 34 anos em outubro de 2000. Qual o dia do seu aniversário? Já mudou de idade nesse ano de 2001?

Tem um companheiro ou marido? Emília: Não. Você me falou que está divorciada. Uma curiosidade: você disse na segunda carta que havia mudado de nome e fiquei sem entender... Você tinha outro nome? Me explica isso depois, tá...

Tem filhos? Emília: Não. E... você também me falou que têm três filhos, qual a idade deles?

FIM DA CARTA: Elaine acho que nesse ponto agente também se parece muito, essa história de ser escritora e publicar um livro... achei tão engraçado quando li tuas cartas e encontrei o “meu sonho” em você... (risos). Saiba que ficarei esperando ansiosa tua próxima carta, espero que você arrume logo um tempinho para me escrever. Imagino que não deve ser nada fácil conciliar tanta coisa no teu dia-a-dia: os filhos, o trabalho, a faculdade e cuidar de tu também, não é? Sinto um grande privilégio em saber que mesmo com todas essas coisas, você ainda escreve cartas para mim. Tenho que confessar: adoro ler as tuas cartas.

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ANEXO 6: EXEMPLO DE UMA CARTA-EXTRA ENVIADA

Paris, 14 de maio de 2001.

Olá Abda,

Recebi sua carta-resposta e gostei muito de continuar com o nosso jogo de perguntas e respostas. Achei muito bom, você ter ficado à vontade para fazer perguntas para mim também. Antes de começar com o bate-rebate deixa falar um pouco das coisas do meu dia-a-dia em Paris.

O estágio “sanduíche” que estou realizando de 8 meses durante o curso do doutorado envolve diversas atividades: levantamento bibliográfico, conversa com o professor Jean Hébrard, que é o meu orientador da pesquisa durante o estágio, leituras de livros, artigos e pesquisas; conversa com outros pesquisadores. Desde novembro, participo de 2 seminários na quinta-feira, um de manhã e outro à tarde. Nos outros dias da semana, freqüento bibiliotecas, assisto palestra ou comunicação de trabalho de pesquisa de outros pesquisadores ou fico em casa estudando.

Com relação ao lazer, gosto de ir ao cinema e de passear no parque Luxemburgo perto de casa. Paris é uma cidade cara para viver, mais oferece ótimas opções de lazer. Muitas vezes, uma simples caminhada nas ruas ou passear num parque é um agradável momento de descontração e descanso. Outra opção que gosto de fazer é conhecer os museus (aqui se você apresentar algum documento comprovando que é professor o acesso é gratuito em quase todos os museus). Outro dia, resolvemos fazer um passeio bem diferente: fomos conhecer um cemitério que é famoso pela quantidade de celebridades que estão enterradas lá. Encontramos vários mortos famosos, como: Edit Piaf, Proust, Chopin, Alan Kardec, Moliére, Aberlado e Heloísa, Oscar Wilde, La Fontaine (o autor dos contos de literatura infantil). Enfim, são muitas possibilidades de passeios culturais e históricos que são interessantes e acessíveis a todos.

Em relação a outros brasileiros: é o que a gente mais encontra aqui, nas ruas passeando, nos metrôs, nos museus, etc... Conheci muitos na escola onde estou vinculada. Existem os que estão em situação de passagem para realizar um estágio de alguns meses, como no meu caso. Outros brasileiros permanecem mais tempo para realizar o doutorado completo. Existem aqueles que já fixaram moradia aqui, constituindo família. Outro dia, no metrô, uma garota de Campina Grande ouvindo o que falava para a Eliana e um amigo, ficou toda feliz e começou a conversar com a gente. Falou da saudade do Brasil, da cidade dela, do como era bom ouvir o nosso sotaque. Resumindo: em pouco tempo, ela falou um monte de coisas da história dela: como chegou em Paris, o que fazia, onde morava e etc.... Foi super legal conhecê-la, e fiquei pensando que deve ser difícil fazer a opção de morar noutro país por muito tempo. Apesar de estar sendo uma experiência muito boa para minha vida pessoal e profissional, quero voltar para meu canto em Recife, cidade que adoro e que a cada dia sinto que é meu lugar preferido.

Quanto a lenda dos franceses não tomarem banho, confesso que já escutei muito. Acho que aqui, como em outros lugares, a gente encontra todo tipo de costumes entre as pessoas: deve existir os que confirmam e os que não confirmam a lenda. No inverno, é super comum encontrar nos metrôs ou ônibus lotados alguns casacos mal cheirosos, mais como a quantidade de roupa que se usa é muita, fica difícil conseguir chegar no cheiro dos franceses (risos).

Abda, vamos então as minhas respostas às questões que você elaborou? Qual a sua religião?

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Emília: sou católica, embora, não praticante como minha mãe gostaria. Minha mãe foi freira durante muito tempo em sua vida. Na minha adolescência e dos meus irmãos, você pode imaginar que os ensinamentos da religião católica estiveram sempre presente em nossas vidas. Nós freqüentávamos a missa, participávamos de grupos de jovens, fizemos comunhão, enfim, era praticante. Atualmente, continuo me definindo com católica, mais considero que o importante é ter um reconhecimento e prática da fé em nossa vida, praticando-a diariamente junto aos que encontramos em nossa caminhada.

Você já viu alguma Igreja Batista aí em Paris? Emília: Vi apenas uma Igreja. Como estou um pouco caseira, resolvi perguntar a

meu orientador. Ele falou que existem várias Igrejas Batista em Paris. Você gostaria que fotografasse essa que vi para você? Seria um prazer para mim, e, em nosso encontro no final do ano eu poderia levar a foto para você. O que você acha?

Qual a situação mais engraçada que você viveu aí? Emília: deixa ver... aqui em Paris existe uma prática comum das pessoas catarem

coisas no lixo. Existem dias marcados em calendário pela prefeitura, para os moradores jogarem as coisas na rua. Antes de o caminhão recolher, muitas pessoas passam e recolhem o que querem e tem interesse para serem os novos donos. As coisas que vão para o lixo é de todo tipo, com boa situação de uso e muitas pessoas adquirem as coisas dessa forma.

Toda essa história, é para começar a contar a minha aventura: em nosso prédio existe um quarto no corredor com depósitos de lixo um para cada tipo de material: plástico, vidro e papel. Certo dia, ao levar o lixo para jogar, Eliana encontrou uma sacola cheia de bichos de pelúcia e me chamou para olhar. Quando vi a sacola não acreditei e pensei: “Vamos lavar todos eles e ficar para nós”. Foi o que fizemos, trouxemos a sacola morrendo de rir do que estávamos fazendo, colocamos todos os bichos numa bacia com sabão, deixamos de molho e hoje estão todos limpos e cheirosos, prontos para embarcarem em nossas malas para o Brasil. Abda, dá para você acreditar nisso? Confesso que foi divertido e recordei da minha infância em que brincava muito de boneca com a minha irmã e as minhas primas. Lembrei das outras brincadeiras da minha infância: carrinho, pipa, bola de gude, jogos. Bem, foi essa a situação mais engraçada que vivi até aqui.

Qual o prato mais esquisito ou gostoso que experimentou? Emília: acho super estranho comer as coisas que envolve repolho com lingüiça ou

um tipo de presunto sem cor. Não gosto muito dessa comida que se chama “Chucrute” (já viu que nome mais esquisito?), a comida para mim também é como o seu nome: esquisita.

A comida mais gostosa são várias: adoro as coisas salgadas como: os pães e os croissants. Os queijos e vinhos franceses são um dos cartões de visita da culinária francesa. A riqueza de tipos e sabores é imensa. Os queijos são de todo formato e cheiros. No início, achava estranho encontrar os queijos com uma capa que os envolve e que parece mofo ou coisa estragada. Encontram-se os queijos com essa aparência nas prateleiras dos supermercados e não estão estragados apesar do cheiro forte. Ainda tenho alguma resistência em comê-los, mais como sou fã de queijos e vinhos, gosto da combinação entre eles.

As comidas com batata aqui é muito variada também. A gente tem acesso ao restaurante de dois Centros de Pesquisas: a École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e no Institut National des Recherches Pédagogique (INRP). O ritual é o mesmo nos dois restaurantes: entrada (com saladas verdes), prato principal (com 2 ou 3 opções de escolha), uma fruta, uma sobremesa, uma fatia de queijo, pão e água livre. Esse ritual é típico da culinária francesa que consiste em um pouco de cada coisa mais com variedade.

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Alguns dias, não aguento ir comer nesses restaurantes e resolvo fazer alguma coisa rápida em casa. Gosto de preparar minha comida, o problema é o tempo que a gente leva para fazê-la.

Uma outra coisa: adoro ir comer o “moule com fritas”, um tipo de marisco típico da Bélgica. Existe uma rede de restaurantes que são especialistas nesse prato de Bruxelas. Gosto muito de coisas do mar e lembro muito do contexto da praia, comendo meus caranguejos e mariscos, tudo o que encontro quando vou a Porto de Galinhas. Acho que alivia a minha saudade do mar.

Outra comida que conheci e que gosto muito é o cuscuz marroquino com verduras com molho e frango com lingüiça. Uma outra coisa fantástica é as sobremesas com variedades e sabores de deixar qualquer um de água na boca. Existe muita coisa preparada com pêra e maça e a cada nova descoberta ganho mais alguns quilos na balança.

Como você pode observar, Paris é uma grande metrópole onde se encontra comida de todo canto do mundo, com muitas opções e variedades.

Qual a pessoa mais esquisita ou interessante que conheceu? Emília: A pessoa mais esquisita não cheguei a conhecer pessoalmente, mais se

encontra com freqüência nos metrôs, ônibus, ruas e esquinas de Paris. Estou falando de uma quantidade de pessoas “doentes mentais” que perambulam pelas ruas falando sozinhas. Fiquei impressionada com a quantidade de pessoas como essas nas ruas. Outra coisa: os pedintes que ficam de joelho na rua ou dentro das estações de mêtro pedindo dinheiro. Já encontrei vários com livros lendo enquanto esperam alguma ajuda. Os mendigos daqui são alfabetizados, bem diferentes da nossa realidade.

Acho que desmitifiquei muita coisa desse “primeiro mundo”. Aqui existe outros tipos de miséria social e exclusão diferentes da miséria do nosso país, mais igualmente dura e cruel, como toda situação de miséria humana e degradação do ser humano.

As pessoas mais interessantes são os próprios franceses que tive oportunidade de conhecer em situações e momentos diversos: por exemplo, o zelador do nosso prédio que é o homem que cuida da limpeza, entrega as correspondências e etc. No início, como todo francês, sempre foi bem reservado. Aos poucos, a troca de um “bom dia” no corredor foi se transformando em saudações seguidos de “bisous” (beijos) e abraços. Acho interessante perceber que com simplicidade o senhor de expressão fechada foi se revelando um homem que traz um sorriso que revela a simpatia, atenção e carinho dele por nós. Um dia, ele pediu os selos que chegam das cartas que recebo para anexar a sua coleção.

Outra pessoa interessante que conheci: fiz um colega através da troca de e-mail. Ele aprende português e eu vou melhorando o francês. Ele se chama Olivier, é super simpático e atencioso. No início, trocávamos e-mails em francês e português e cada um corrigia os erros que encontrávamos. Em seguida, ele convidou para em um dia na semana, ficar uma hora conversando ou lendo em francês/português para corrigir a pronúncia. Está sendo uma ótima experiência para mim.

Abda, você me estimulou com as perguntas interessantes que elaborou para mim. Gostei muito de contar para você essas pequenas histórias.

Outra coisa: adorei o versículo que você escreveu para mim. Muito obrigada pela oração. Fico feliz em saber que de alguma forma você me inclui em suas orações. Um grande abraço e tudo de bom para você e sua família.