Maria Lúcia Karam - A esquerda punitiva
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5/11/2018 Maria L cia Karam - A esquerda punitiva - slidepdf.com
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CRIMINOLOGIA
A esquerdapunitivaMARIA LÚCIA KARAM
1. As primeiras r e i v in d icaçõ esr ep r es s o r as : o co m bat e àcriminalidade d o u r a d a
Na his tór ia recente, o primeiro m o-mento de in teresse da esquerda pe la
rep ressão à cr im ina l idade é m a rc a d opo r reivindicações de extensão da re-a ç ã o pun i t iva a condutas t rad ic iona l -mente imunes à in tervenção do siste-
m a penal, surg indo fundamenta lmen-
te com a a t u a ç ã o de m o v i m en t o s po-pulares , por tadores de a s p i ra ç õ es d e
g ru p o s socia is especí f i cos , como osmovimentos fem in is tas , que, notada-
m ent e a partir do s anos 70 , incluíramem suas pla ta form as de lu ta a busca
d e p u n i ç õ es ex em p l a res p a ra a u t o res
de a tos v io lentos con t ra m ulheres ,febre repr esso ra que logo se es ten-
d e n d o a o s m o v i m en t o s ec o l ó g i co s ,
igua lmente re iv ind icantes da in terven-
ção do s i s tema penal no comb ate aosatentados ao meio ambiente, acaba
po r at ingir os mais amplos setores d a
e s q u e r d a .
D i s t a n c i a n d o - s e d a s t e n d ê n c i a s
abo l i c ion is tas e de intervenção m ín i -
m a, resul tado da s re f lexões de cr imi -nólogos c r í t i cos e penal i s tas progres-
sistas, qu e v i e ra m d es v end a r o p a p e l
do s i s tem a penal como um dos mais
poderosos . ins t rumentos de manuten -ção e reproduçã o da dom inaçã o e da
exc lusão, carac ter ís t i cas da formaçã osoc ia l capi ta l i s ta , aqueles amplos se -
to res da esquerda, percebendo ape-
na s super f i c ia lmente a c o nc en t ra ç ã o
da a t u a ç ã o do s is tema penal sobre os
m em b ro s da s classes suba l te rn i zadas ,a deixar inant ig idas condutas social -
mente negat ivas da s c lasses dominan-
tes, não se p reo c u p a ra m em enten-
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der a clara razão desta atuação desi-
gual, ingenuamente pretendendo que
os m e s m o s m e c a n i s m o s rep resso res
se dirigissem ao enfrentamento da
chamada cr iminal idade dourada, mais
e s p e c i a l m e n t e ao s abusos do pocíêr
LH po.IItico e -d o poder econômico.
w P a r e c e n d o ter descober to a supos-ta s o l u ç ã o p e n a l e ta lvez a inda in -
consc ien tem ente saudosos dos para-
d igmas de j u s t i ç a do s ve lhos tempos
e de Sta l i n (um mínimo de coerênc ia
dever ia levar a que em determinadas
man i fes tações de dese jo ou ap lauso
a acusações e c o n d e n a ç õ e s l e v i a n a s
e arb i t rá r i as se e log iassem também os
t r i s t e m e n t e f a m o s o s p r o c e s s o s d e
Moscou) , amplos setores da e s q u e r -
da a d e r e m à p r o p a g a n d e a d a i d é i a
que, em per igosa d is to rção do pape l
do Poder Jud ic iá r io , cons t ró i a ima-
gem do bom m agist rad o a part ir do
perfil de condenadores implacáveis e
s e v e ro s . A s s i m , s e e n t u s i a s m a n d o
com a p e r s p e c t i v a de ver estes " b o n s
magist rados" impondo r igorosas pe-
na s a réus enr iquec idos (só por isso
v is tos c o m o p o d e r o s o s ) e apropr ian-
do-se de um genera l izado e i nconse-
qüente c lamor cont ra a impun idade,
es tes amplos se tores da esquerda fo -
ram tomado s por um desenf rea do fu -
ro r persecutó r io , cen t ra l izando seu
d iscu rso em um histér ico e ir racional
T o m a d o s por um desenfreado
furor pe r s e c u t ór i o , amplos
' se tore s da esquerda centra l i zaram
seus discursos em histér ico e
i r rac ional comb ate à corrupção ,
não só esquecidos das l ições da
história, c o m o incapazes de ver
acontecimentos presentes
combate à corrupção, não só esque-
cidos das l ições da histór ia, a demons-
t rar que este discurso t radic ionalmen-
te monopolizado pela direita já fun-
c ionara mui tas vezes como fa to r de
leg it imação de forças as mais reacio-
nár ias (bas ta lembrar , no Brasi l , da
e le ição de Jân io Quadros e do golpe
de 64),como incapazes de ver acon-t e c i m e n t o s p r e s e n t e s ( p e n s e - s e na'
simbólica vitória dos partidos aliados
a Berlus coni nas eleiçõe s i tal ianas, no
a u g e da tão a d m i r a d a O p e r a ç ã o
Mãos Limpas).
Este histér ico e i r rac iona l combate
à corrupção, reint roduzindo o pior do
autor i t a r ismo que mancha a h is tó r ia
de generosas lutas e importantes con-
qu is tas da esquerda, se faz revital iza-
dor da hipócrita prát ica de t raba lhar
com dois pe sos e duas medidas (o
furor p e r s e c u t ó r i o voj.ta-s£__ap_e_nas
contra adversár ios políticos, eventu-
ais c o m p o r t a m e n t o s não muito ho-
nestos de companhe i ros ou a l iados
sempre sendo compreendidos e jus-
t i f icados) e do aét ico princípio de f ins
que just i f icam meios, a incent ivar o
rompimento com h is tó r icas conqu is -
ta s da civilização, com imprescindí-
ve is garant ias das liberdades, co m
princípios fundamenta is do Estado de
Direito.
Dese jando e aplaudindo pr isões e
condenações a qualquer preço, estes
se to res da esquerda rec lamam cont ra
o fato de que réus in teg rantes das
c lasses d o m i n a n t e s e v e n t u a l m e n t e
submet idos à in te rvenção do s is tema
pena l me lhor se ut i l izam de mecan is -
mo s de de fesa , f reqüentem ente pro-
pondo como s o l u ç ã o a re t i rada de
direitos e garant ias penais e proces-
sjja ís, n o mínimo esquec idos de qu e
a desigualdade i neren te à fo rmação
social capital is ta que,Jógica e natu-
ralmente, proporciona àqueles réus
melhor utilizacãgjJos m e c a n i s m o sde
defesa, certamentejiã^i_^e_res2liiexia
COTÍI a r^tir^Ha rloJrlirpifO-V P garímt1-
as, cuja vulneracão repercute s im —
e de mane i ra multo mais intensa — sp -
bre as classes subalternizadas,_ciue
vivem o dia-a-dia da Jus t iça-Gr im ina l ,
cons t i t u indo a cl ientela para a qual
esta pr ior i tar iamente se vo l ta .
I neb r iados pe la reação punitiva,
es tes s e t o r e s da e s q u e r d a p a r e c e m
estranhamente próximos dos arautos
neo l ibera is apregoadores do fim da
histór ia, não consegu indo perceber
que, sendo a pena, em e ssênc ia, pura
e s imples man i fes tação de poder — e,
no que nos diz respe i to , poder declasse do Estado capital is ta — é ne-
cessá r ia e pr io r i t a r iamente dirigida
ao s excluídos, aos desprov idos des te
poder. Parecendo te r se e s q u e c i d o
da s contradições e da divisão da so-
ciedade em classes, não conseguem
perceber que, sob o ca pital ismo, a se-
leção de que são objeto os au tores
de condutas con f l i t uosas ou soc ia l -
mente negat ivas , de f in idas como cri-
me s (para que, sendo presos , p roces-
sados ou condenados , desempenhem
o pape l de cr iminosos), naturalmen-
te , t e rá que obedecer à reg ra bás ica
de uma tal formação social — a desi-
gualdade 'na dist r ibuição de bens. Tra-
tando-se de um atributo negat ivo, o
status de criminoso necessariamente
deve recair de forma prefere ncial so-
bre os m e m b r o s da s classes suba l te r -
nizadas, da mesma forma que os bens
e at r ibu tos pos i t i vos sã o pre ferenc i -
almente dist r ibuídos entre os mem-
Perdendo sua antiga visão crí t ica
sobre a " imprensa burguesa",.
setores da esquerda reproduzem
l i tera lmente o que dizem
os órgãos mass ivos de i n f o r ma ç ã o
q u a n t o a u m a u m e n t o
d e s c o n t r o l a d o d a c r i m i n a l i d a d e
b ros da s classes dominantes , serv in-
do o excep c iona l sac r if í c io , represen-
t ado pela imposição de pena a um ou
out ro membro das classes dominan-
tes (ou a a lgum condenado enr ique-
cido e, assim, s u p o s t a m e n t e p o d e r o -
so), t ão som ente para leg i t imar o s is -
tema penal e melhor ocultar seu pa-
pel de inst rumento de manutenção ereprodução dos mecan ismos de do-
m inação.
N ão percebem estes setores da es-querda que a pos ição política, socia l
e econômica dos au tores dos abusos
do poder político e e c o n ô m i c o lhes
dá imunidade à p e r s e c u ç ã o e à impo-
sição da pena, ou, na melhor dís hi-
póteses, lhes assegura um t r a t a m e n -
to pr iv i legiado por parte do sisteTna
penal, a re t i rada da cober tu ra de in-
v u l n e r a b i l i d a d e d o s m e m b r o s da s
classes dominantes só se d a n d o em
pouquíss imos casos , em que conf l i tos
ent re se tores hegemô nicos perm i tem
o sacr i f íc io de um ou outro responsá-
vel por fa tos des ta 'natureza, que co-
lida com o poder maior, a que já não
s i rva . N ã o p e r c e b e m que, q u a n d o
chega a haver a lguma pun ição re lac i -
onada com fatos desta natureza, esta
acaba reca indo sob re personagens su -
ba l te rnos .
Ao cent ra l izarem o c o m b a t e à cor-
rupção na ut i l ização da reação puni-
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t iva e s o m a r e m s u a s v o z e s a o c l a m o rcon t ra a i m p u n i d a d e e ao apelo por
u m a m a i o r e f i c i ê n c i a d a r e p r e s s ã o ,
es tes se to res de esquerda aderem à
idé ia de que um ma io r r i go r r e p re ss i -
vo se r i a necessár i o pa ra acabar co m
a q u e l a s prá t i cas de c o r r u p ç ã o e com
a i m p u n i d a d e de s e u s a u t o r e s , ass im
ignorando o fa to de que nenhum a re -
a ç ã o pun i t i va , por ma io r que se ja su ai n t e n s i d a d e — e a inda q ue fo sse pôs;
síyel a s u p e r a ç ã o do s cond ic ionamen-
to s de c lasse — p o d e pôr f im à i m p u -
n idade ou à criminalidade de qua l -
q u e r n a t u r e z a , a té p o r q u e n ã o é e st e
se u o b j e t i v o .
A impos i ção da pena , va le repet i r ,nã o passa de p u r a m a n i f e s t a ç ã o depoder , des t i nada a manter e reprodu-
z i r o s va lo re s e i n t e r esses dominan-
te s enfurna dada sociedade. Para isso,
não é n e c e s s á r i o ne m func iona l aca -bar com a cr im ina l i dade de qu a lquer
n a t u r e z a e , m u i t o menos , fazer reca -
ir a p u n i ç ã o s o b r e to d o s os a u t o r e s
de cr imes, sendo, a o contrário, impe-
ra t i va a i nd i v idua l i zação de apen as a l -
g u n s d e l e s , p a r a q u e , e x e m p l a r m e n -
te i den t i f i cados como cr im inos os , em-
p re s t e m su a i m a g e m à p e r s o n a l i z a ç ã o
da figura do mau, do inimigo, do pe-
r i goso , ass im p o s s i b i l i t a n d o a s imu l -
t â n e a e c o n v e n i e n t e o c u l t a ç ã o d o s
p e r i g o s e dos m a l e s qu e s u s t e n t a m a
e s t r u t u r a d e d o m i n a ç ã o e p o d e r .
A e x c e p c i o n a l i d a d e d a a t u a ç ã o d o
s i s t e ma p e n a l é de sua própr i a essên-
cia, regendo-se a lógica da pen.a pela
se le t i v idade, que permi te a i nd i v idu -
al ização do cr im inoso e sua conse-
q ü e n t e e útil d e m o n i z a ç ã o , p r o c e s s o
q u e s e re p r o d u z m e s m o q u a n d o s e
pre tende, como no s delitos sócio-eco-
n ô m i c o s , t rabalhar co m a r e s p o n s a -
b i l i dade ' pena l de pessoas j u r íd i cas ,
po i s a i nd i v idua l i zação e a d e m o n i -zação do criminoso sã o característi-
ca s i n e r e n t e s à r e a ç ã o punitiva, e m -
presas ou i ns t i t u i ções também poden-
do p e r f e i t a m e n t e se r in d iv id ua l i zad as,
e d e m o n i z a d a s , d e i g u a l f o r m a s e
ocultando, a t ravés des tes mecan i s -
m os ideo lóg i cos , a lógica e a r a z ã odo s i s tem a gerador e i ncen t i vador dos
a b u s o s do p o d e r r e a l i z a d o s e m ativ i -d ad e s d e s e n v o l v i d a s n a q u e l e s o r g a -
nismos.
AJTTOnppol izadora reacJ icMaurHt jva
contra um ou outro autor de ^:ondu-
t a s ^ soc ia lmente nega t i vas , gerando a
sa t i s fação e o alívio e x p e r i m e n t a d o scom a pun i ção e conseqüe n te i den t i -
f i c a ç ã o do inimigo,, do m a u , do per i -goso, não só desvia as a tenções como
a f a s t a a b u s c a d e o u t r a s s o l u ç õ e sma is e f i cazes , d i spensando a i nves t i -
g açã o -d as r a z õ e s ense jadoras d a q u e -
la s s i t u a ç õ e s n e g a t i va s , a o p r o v o c a r
a superficial sensação de que, co m a
p u n i ç ã o , o p r o b l e m a já e s t a r i a sat is-
fatp,r iamente reso lv ido . A í se e n c o n -
t r a um d o s pr inc ipa i s â ngu los da fun-
c i o n a l i d a d e do s i s t e m a penal, q u e ,
to rnando inv isíveis a s fon tes gerado-ra s da cr im ina l idade de qua lquer na -
t u reza , permi te e i ncen t iva a c r e n ç a
e m d e s v i o s p e s s o a i s a 'serem c o m b a -
t i dos , de i xando encober tos e i n toca -
dos os desvios estruturais q u e o s ali-m e n t a m .
Chega a ser, assim, espantoso qu e
f o r ç a s p o l í t i c a s q u e s e d iz e m ( o u /
pelo m e n o s , originariamente, se dizi-
a m ) vo l tadas para a l u t a^p o r t r a n s f o r -
m a ç õ e s s o c i a i s p r o n t a m e n t e f o r n e -
çam sua a d e s ã o a u m m e c a n i s m o tã o
82
ef icaz de pro teção do s i n t e r e s s e s e
v a l o r e s d o m i n a n t e s de s o c i e d a d e s
qu e s u p o s t a m e n t e d e v e r ia m se r t rans-
f o rmadas .
2. As n ovas p r e oc u p aç õe s co m ac r i m i n a l i d a d e d e mas s as e com
a c r i m i n a l i d a d e o r g a n i z a d a
Majs jg rayes d o q ue as i l u s õ e s polí-t i co - ideo lóg icas que levam às re i v i n -
d i cações de e x t e n s ã o da reação pu -n i t i va a os a b u s o s do p o d e r político eeconômico, são as novas preocupa-
ções da esquerda com a cr im ina l i da -
de de m assas e com as r ea is o u s u -
postas mani festações da chamada cr i -
m ina l i dade o rgan i zada , p reocu pações
qu e logo se segu i ram àque la su a des -coberta do s i s tema pena l .
O a b a n d o n o d a utopia da t rans fo r -
maçã o soc ia l , cedendo l uga r a dese-jo s mais imed ia tos de c o n q u i s t a decargos po l í t i cos no apare lho de Esta-
do , parece s e r u m a pr ime i ra exp l i ca -
çã o para o surgimento des tas novas
preocu paçõe s . Mas , ta l vez , se deva
pensar t a m b é m no p r o c e s s o de e n v e -
l h e c i m e n t o e. e s t a b i l i z a ç ã o m a t e r i a lde grande par te do s a n t i g o s .mi l i tan-t e s — e m s u a maioria, oriundos da s
c l asses médias — , agora temerosos e
sensibi l izados co m a violência da cri-minal idade de massas, á ameaçar seus
'novos ideais de "paz" e t ranqüi l idade.
P erdendo sua an t i ga v i são cr í t ica
s o b r e a " imprensa burguesa" , amplosse to res de esquerda reproduzem l i te-
r a l m e n t e o q u e dizem os ó r g ã o s mas-
s i vos de i n fo rmação, q u a n t o a u m a u -
m<ento descon t ro lado da cr im ina l i da -
de, s e n d o c o m u m ouvir de s u a s vo -ze s a repetição do apelido de V/e£nam
dado a determinados loca i s — c e r t a -
mente do R io de J an e i ro — o n de r o u -
b o s p r a t i c a d o s p r i n c i p a l m e n t e po r
meninos d e r ua acontecem co m cer -
ta f reqüênc ia , voz"es p r e o c u p a d a s e ma u m e n t a r a s e g u r a n ç a p a r a c o m b a t e r
ta l v io lênc ia , p a r e c e n d o te r t r o c a d o
d e p o s i çõ e s , a g o r a d e s e m p e n h a n d o
o papel de EU A, na busca de fórmulas
para con ter o avanço do s vietcongs.. .
T a lvez es t a t r o c a d e p o s i ç õ e s ta m -
bé m p u d e s s e s e r u m a b o a e x p l i c a ç ã o
para a acrílica ace i tação da expres -
s ã o n a r c o t r á f ic o , q u e s e i n c o r p o r o u
a o v o c a b u l á r i o d a e s q u e r d a , r e f l e t i n -
do sua submissão às regras da i n te r -
nac iona l i zaçã o da po lí t ica de d rog as ,
di tada pelos EUA, a parti r da década
de 80, q u a n d o , s i m u l t a n e a m e n t e aod e s e n v o l v i m e n t o da " g u e r r a c o n t r a a s
drogas", p a u t a d a p e l a e l e i ç ã o e lo
a g e n t e e x t e r n o (os p rodu to res , e d i s -t r i b u i d o r e s do s países l a t i n o - a m e r i c a -nos ) como o inimigo a ser e n f r e n t a -
do , a d o t o u - s e o uso d o r a d i c a l dapalavra inglesa n ar co t /cs ; utilizável
t a m b é m e m e s p a n h o l o u e m p o r t u -
g u ê s , p a s s a n d o - s e e n t ã o a fa la r c i e
narco t rá f i co , na rc odó la res , e tc . inobs-
t an te o p r i nc ipa l a l vo da po l í t i ca -do
momento — a cocaína — s e q u e r pu -
desse s e r v i s to como n arcó t i co , t ra -
tando-se, ao contrár io, de ev ide nte es-
t i m u l a n t e .
E n v e r n i z a n d o s u a s inquietações
com a cr im ina l i dade conven c iona l de
m a s s a s ( d e c e r t o a m e a ç a d o r a "pãTa
quem q u e r usu f ru i r do s pr iv i légios de
u m a es tab i l i zação mater i a l , se m se r
i ncomodado co m r o u b o s e f u r t o s ) e
p r e o c u p a d o s e m melhor j u s t i f i car su a
ideo log ia r e p re sso ra , amp lo s s e t o r e s
da esquerda aderem ao ape lo de mai-
83
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Q u a n d o se concil ia co m a idéia
de qu e o e n f re n tame n to d a
cr imina l idade cor r esp onde a
um a si tuação de guerra , não se
p o d e p r e t e n d e r dos agentes da
r e p r e s s ã o re s pe i to ao s direitos do s
e ve n tu ais v io lador es da le i
o r i n t e r v en ç ão d o s i s t e m a penal, t ra-
b a l h a nd o — à s e m e l h a n ç a da ideo lo -
gi a d o m i n a n t e — n ã o c o m a q u e l a s
m a i s v e r d a d e i r a s nqu ie t a ç ões c o m a
c r im ina l i d a d e convenc iona l , m a s c o m
po d e r o s o s f a n t a s m a s d e u m a s u p o s -
ta c r i m i n a l i d a d e o r g a n i z a d a ( a q u i
t a m b ém r ep r o d uz ind o d i s c u r s o im -po r t a d o dos países cent ra is ) , f an tas -
m as que, ecoando nos sent imentos de
i n segurança e no medo co le t ivo d i fu -
s o , c a r a c t e r í s t i c o s d a s s o c i ed a d es
c o n t em po r â nea s , f a v o r ec em o s cres:
cen tes anse ios de seg urança , de in-
t e n s i f i c a çã o da rep ressão, de ma io r
r igo r pena l , , f o r t em en t e presen tes no
m o m en t o h i s t ó r i c o em que v i v em o s .
T ra b a l h a n d o co m estes f a n t a s m a s
d o m a l d e f in i d o f enôm eno d a c h a m a -
da c r im ina l i d a d e o r ga n i z a d a , es tes
se tores da es que r d a a p r e s s a m - s e em
ident i f icá- lo — c o m o o d i s c u r s o d o m i-
nan te — na a t ua ç ão do s va re j i s ta s do
c o m é r c i o da s d ro g a s i l íc i tas es tabe-
lec idos na s f a v e l a s c a r i o c a s , em b o r aquem fo i aco s tum ado a ter na prát i-
ca o cr itér io da verdade t a lvez deves-
se p r es t a r m a i s a t enç ão à s i na l i z a ç ão
que vem -da rea l idade, dando conta
das-cons tan tes d i s pu t a s po r pontos de
v end a , a melhor suger i r um a cer ta de -
s o r ga n i z a ç ão em ta l at iv idade. Mas,
o rgan izada ou desorganizádamente,
o fa to é que es ta cr im ina l idade l iga-
da a o t rá f ico de d rogas nas f ave las do
R io de Janei ro t rouxe a o d i s c u r s o d es -
tes se tores c r im ina l i za n t es d a es que r -
da o vern iz de que necess i t ava m, pas-
sando a j us t i f i ca r s ua ideo log ia repres-
sora e punit iva com os a rgume ntos de
que aquela dita criminalidade organi-
z a d a es t a r i a dominando a s f a v e l a s d o
Rio de Ja nei ro e oprimindo seus m o-radores , cont ro lando a s a s s o c i a çõ e s
pela in t im idação e c o o p t a ç ão de li-
deranças (genera l ização , a l iás , bas tan-
te ques t ionável ) , ass im sufacaado_QS
m o v im en t o s po pu l a r es . Será m e s m o
que é a in tim idação ou a cooptaç ão
de l ideranças que impedem a o rgan i -
zação popula r? Não ser ia esta um a
c ôm o d a d es c u lpa pa r a a i n c a pa c i d a -
'de polí t ica da própr ia esquerda?
U m a a ná l i s e s é r i a d a o r ga n i z a ç ão
e dos movimentos popula res não po-
der ia omitir a d is to rc ida política que
pres id iu á fo rmação das a s s o c i a çõ e s
de moradores ,no R io de Janei ro , po -
l í t ica que, m a i s do que provocar o en-
f r a quec im en t o d a que les m o v im en t o s ,
c o m p a c t u o u com o a c i r r a m en t o das
d i ferenças ent re os hab i t a ntes das fa -
ve las e os h a b i t a n t es do a s f a l t o , a c i r-
r a m e n t o que c e r t a m e n t e contribui
para uma ma io r a gress iv idade recípro -
ca e , conseqüentemente, para um au-
m en t o de at i t udes v io lentas . Em s ua
o r ga n i z a ç ã o , im pu l s i o na d a pe l a e s -
q u e r d a , n o t a d a m e n t e no início dadécada de 80 , as as soc ia ções de m o-
radores fo r a m div id idas em d ua s ca -
tegor ias , que reproduz ia m a a r t i f i c ia l
e reac ionár ia separação morro x as-
falto, C r i a n d o- s e a s s o c i a ç õ e s de ba i r -
ro, que, tendo ma io r c resc imento na
zona su l , in tegravam em seus qua d r o s
moradores das c lasses médias, com
predom inânc ia de m i l i tan tes de es-que r d a , e, para le la e d i s t a nc i a d a m en -
84
te , a s s o c i a çõ e s d e m o r a d o r es d e f a -
v e l a s , c o m o s e es tes não v ivessem
no s m es m o s b a i r r o s o nd e se s i t uavam
as assoc iações da s c l a sses m éd ia s .
Ta lvez antes de l a m en t a r um a s u -
pos ta perda de a s s o c i a ç õ e s de m o r a -
dores para o t rá f ico e se assus ta r co m
a v io lênc ia da c r im ina l idade, a ponto
de se unir a o dese jo dominante derepressão e punição, d e v e s s e a es -
querda re tomar às sessões de a u t o -
c r í ti ca ( sem pre sau dáveis , desde que
natura lmente podadas de seus exces-
so s h is tór icos ) , de modo a reconhe-
cer, e s u p e r a r os " d es v i o s " que a le-
v a r a m a contribuir, a ind a que i nc o ns -
c ientemente, para a ins t i t uc iona l iza-
ção de nosso apartheid soc ia l .
Embora apelando para aquela su-
pos ta responsab i l idade do t ráf ico peladesorgan ização de mov imentos popu-
la res e tentando ma nter a lguma coe-
rênc ia com seus or iginár ios ideais, ao
suger i r qu e suas p r eo c upa ç ões , nes -
t e c a m po , d ec o r r e r ia m d a nec es s i d a -
de de r o m pe r com a opressão impos-
t a aos m o r a d o r e s da s f ave las pelos
a gen t es d o comércio v a r e j i s t a d a s
d rogas ilícitas lá ins ta lados , o fa to éque ta is p r eo c upa ç ões s ó a pa r ec em
quando a vio lênc ia dos conf l i t os t r a -
v a d o s na s desorgan izadas d isputas de
pontos de com érc io de d rogas , no R iode Janeiro, se m o s t r a a m ea ç a d o r a -
mente próx ima dos loca is de morad ia
da s c lasses méd ias , assus tadas com as
"ba las perdidas", per turbadas em seus
anse ios de paz e t r anqüi l idade.
C o m pa c t ua nd o c o m a r ep r es s ão ,
nã o procurando qua lquer a l terna t iva
m a i s s ó l i d a e m eno s pe r n i c i o s a d o
que a r ea ç ão punitiva, apressando-se
em a der i r ao d iscu rso dom inante ( ta l -
ve z para nã o d issent i r do s r e c l a m o s
represso res e punit ivos da opinião pú-
.blica, em t em po s d e s o n h a d a s vitó-
rias e le i to ra is ) , nem m esm o o ant igo
ins t rume nta l de aná l i se , que antes pa-
recia lhes pe r m i t i r d es v end a r as leis
d a ec o no m ia e d o d es env o l v im en t osoc ia l , conseguiu es t imula r estes s e-
tores da es que r d a a b us c a r um a c o m -
preensão ma is pro funda da rea l idade,
para ass im enc o n t r a r a m e lh o r f o r m a
de t r a n s f o rm á - l a .
Fazendo sua a polí t ica de gue r r a
in terna cont ra a s d r o ga s , s em no t a r a
seme lhança com a po l ít i ca ex tern a de
seus ant igos a rqu i in im igos nos anos
80 , optando pe la f a l sa e fác i l so luç ão
pena l , não enxergam aqueles se to res
da esquerda a contradição (que, em
t em po s outros, se dir ia antagônica)ent re a pre tend ida u t i l i zação de um
m ec a n i s m o p r o v o c a d o r de um prob le-
m a c o m o s o l uç ão pa r a este m e s m o
p r o b lem a . A o o p t a r em pe l a r e a çã o
punitiva, não pe r c eb em que , no c a m -
po de negóc ios ilícitos, é e x a t a m e n t e
es ta m e s m a reação puni t iva a c r i a d o -
r a d a c r im ina l i d a d e ( o r ga n i z a d a ou
não) e da v io lênc ia po r e la gerada ;
não percebem que é o processo de
cr im ina l ização que, produz indo a ile-
ga l idade do m ercado de bens e servi -
ços de g r a nd e d em a nd a ( c o m o a s dro-ga s ilícitas ou o jogo), igualmente pro-
A s p r eocup ações com a o pre s s ão
i m p o s t a pelo t ráf ico ao s m o r a d o r e s
da s f ave las só a p a r e c e m q u a n d o
a v io lência do s conf litos se m o s t r a
a m e a ç a d o r a m e n t e p r ó x i m a
do s locais de moradia
da s classes m édias
5/11/2018 Maria L cia Karam - A esquerda punitiva - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maria-lucia-karam-a-esquerda-punitiva 5/8
duz a i n s e r ç ã o n e s t e m e r c a d o de or -g a n i z a ç õ e s c r i m i n o s a s , s i m u l t a n e a -
m e n t e t r a z e n d o a v i o l ê n c i a e a c o r -
r u p ç ã o c o m o s u b p r o d u t o s n e c e s s á -
r i os das a t i v i d a d e s e c o n ô m i c a s ass i m
desenvo l v idas . T a m p o u c o c o n s e g u e m
p e r c e b e r que, po r m ais r i gorosa qu ese j a a r e p r e s s ã o , es t as a t i v i d a d e s e c o -
n ô m i c a s i le g a i s s u b s i s t i r ã o e n q u a n t oe s t i v e r e m presen tes as c i r c u n s t â n c i a s
s o c i o e c o n ô m i c a s f a v o r e c e d o r a s d e
u m a d e m a n d a c r i a d o r a e in c e n t i v a d o -
ra d o m e r c a d o , o que, no mínimo,
dever ia suger i r um a a l te ração de ru -m o s , b u s c a n d o - s e i n s tr u m e n t o s m e -
no s p e r n i c i o s o s e mais e f i c a z e s d e
c o n t r o l e d e u m a t a l d e m a n d a .
D e s v i n c u l a d o s d e u m a a n á l i s e sé -
r ia da r e a l i d a d e e a c o m p a n h a n d o ae x a c e r b a ç ã o d o d e s e j o p u n i t i v o , qu esegue o i d e a l i m e d i a t i s t a d e "v iver e mp a z " , s e q u e r e s t r a n h a m a q u e le s s e t o -
re s da e s q u e r d a esse d e s e j o de pa zque adm i te a té a guerra , com o expres-
sado na p r o p o s t a d e t r a n s f e r i r as ta -
re fas d e s e g u r a n ç a públ i ca pa ra as
F o r ç a s A r m a d a s , c o n c r e t a m e n t e en -
sa iada , no Rio de Janeiro, no f ina l de
1994, e só abandonada porque, com oser ia de esperar, não se produz i ram os
resu l t ados conc re tos com que a fanta-
sia da ideo log ia repre ssora sonhava .
N e m m e s m o e s t a exp l íc i ta (e , de-
cer to , a n t a g ô n i c a ) c o n t r a d i ç ã o e n t r eo idea l de v i ver em paz e o ape lo à
g u e r r a — c o n t r a d i ç ã o , se m d ú v i d a ,
m a i s f a c i l m e n t e perceb íve l .do q u eaque la m a is su t i l , m as , de todo m odo,
c e r t a m e n t e e x i s t e n t e , e n t r e p a z e p u -
n ição — d e s p e r t o u m a i o r e s q u e s ti o -
n a m e n t o s s o b r e o s e s t r e i t o s l im i tes
c lass i s t as d e s t e n o v o i d e a l , s o b r e su a
t r a n s f o r m a ç ã o em um idea l de ordem
— e, por tan to , de m anu tençã o do s ta -
tu s qu o — a requerer m ed idas im ed ia -
ta s d e r e p r e s s ã o e c o n t r o l e , m ed idas
c o m o , d e reg ra , d i r i g idas cont ra a sc lasses s u b a l t e r n i z a d a s .
T r o c a n d o q u a i s q u e r i n q u i e t a ç õ e sde um p a s s a d o p r ó x i m o p e l a a d e s ã o
à s u p o s t a n e c e s s i d a d e i n a d i á v e l d ea p r o f u n d a m e n t o d o c o m b a t e à cr im i -na l i dade, os m a i s a m p l o s s e t o r e s d a
e s q u e r d a t r a n q ü i l a m e n t e a c e i t a r a m
aquela indev ida u t i l i zação d a s ForçasArm adas nas ta re fas de segu rança pú-
bl ica , e m n e n h u m m o m e n t o l e v a n t a n -
d o suas v o z e s ( ta l vez , a i n d a u m a vez ,n ã o q u e r e n d o d i s s e n t i r d a o p i n i ã o
púb l i ca — ou , m a is p r o p r i a m e n t e , da
opin ião pub l i cada — p r o v a v e l m e n t e
p r e o c u p a d o s com os e f e i t o s de umta l d i s s e n s o n a c a m p a n h a e l e i t o r a lq u e e n t ã o s e . d e s e n r o l a v a ) , n e m m e s -
m o se i m p r e s s i o n a n d o com a tá t i ca
da repres são m i l i ta r i zada , cent rada noc e r c o e o c u p a ç ã o d a s f a v e l a s c a r i o -
cas, c o n q u i s t a d a s c o m o se fossem ter -
r i tór ios inimigos, tát ica qu e seque r d is-
farçava a genérica ident i ficação da s clas-
s e s suba l te rn i zadas com o classes peri -
g o s a s > t rad ic iona lm ente fe i ta de form amais su t i l a t ravés do norm a l func iona -m ento do s is tema penal .
P r e o c u p a d a c o m a c r i m i n a l i d a d e ,e m b o t a d a p e l o d e s e j o r e p r e s s o r e p u -
nitivo, d e i x o u a e s q u e r d a passar des-p e r c e b i d o o e d i t o r i a l d e u m g r a n d e
jorna l , que, preocupando-se em mini-
m i z a r a f a l t a de r e s u l t a d o s v i s ív e i s da
Ope ração R io e jus t i f i c a r as i lega is ,
v i o l e n t a s e h u m i l h a n t e s rev i s tas p e s -
s o a i s d i r i g i d a s a t é c o n t r a c r i a n ç a s ,
be m esc la rec ia a rea l f i na l i dade da re-
p r e s s ã o m i l i t a r i z a d a , s u g e r i n d o q u eseus ob je t i vos ter i am s ido a t ing idos ,
a o perm i t i r que os m ora dore s das fa -
ve las r e a v a l i a s s e m suas r e l a ç õ e s co m
a a u t o r i d a d e pública, e m e x p l í c i t ade fesa da necess idade de um a v io l en-
t a e d u c a ç ã o d a s c lasses s u b a l t e r n i z a -
da s p a r a a s u b m i s s ã o .
M a s , t a l v e z e s t e i m o b i l is m o n ã od e v a se r ass im tã o s u r p r e e n d e n t e , re -
fletindo a m esm a pos tu ra (quem sabe,
c o m o e m o u t r o s t e m p o s t a m b é m s ed i r i a , d e t e r m i n a d a p o r c o n d i c i o n a -
m e n t o s d e c l a s s e ) d e q u e m , a n t e s ,co m suas assoc iações , não se incom o-
d a r a e m a p a r t a r o s m o r a d o r e s d o s
m o r r o s d os h a b i t a n t e s d o as fa l to , d eq u e m n ã o h e s i t a e m d a r s u a a d e s ã oa u m a p r e t e n d i d a " p a z " c l a s s i s t a e
e x c l u d e n t e , d e q u e m , p r i o r i z a n d o ocom ba te à c r im ina l i dade, pa rece terd e f i n i ti v a m e n t e r e l e g a d o a s e g u n d o
plano as m e d i d a s m a i s p r o f u n d a s e de
l o n g o prazo que, ap tas a cr ia r m elho-re s cond ições de v ida e m a iores opor -
t u n i d a d e s s o c i a i s p a r a a s c lasses su -
b a l t e r n i z a d a s , s i m u l t a n e a m e n t e c o n -
t r i buam pa ra o r o m p i m e n t o c o m o sm e c a n i s m o s e x c l u d e n t e s ( t ã o e f i c a z -
m e n t e r e p r o d u z i d o s p e l o s i s t e m a p e -
na l ) e cond uzam a um a — não im por-
ta q u ã o d i s t a n t e — t r a n s f o r m a ç ã o so -
cia l , v o l t a d a p a r a a c o n s t r u ç ã o de re-l ações m a is i gua is e m a i s s o l i d á r i a s
ent re todas as pessoas, que ass im pos-sa m e f e t i v a m e n t e v i v e r e m p a z .
3. O discurso s impl is ta co n t ra a
co r ru p ção e a violência pol iciais
Em seus a c e n o s com a v i o l ê n c i a
rea l ou im ag inár ia d e u m a supo s ta c r i-m ina l i dade organ izad a , a c l am ar por
m a ior repressão, os se tores c r im ina l i -
z a n t e s d a e s q u e r d a r e c h e i a m suas re -
f l e x õ e s c o m a n e c e s s i d a d e d e u m a
m e l h o r e s t r u t u r a ç ã o do s a p a r e l h o s d <
rep ressão d o s i s t e m a p e n a l . S e m p r e
f a z e n d o suas a s p a l a v r a s d o d i s c u r s o
d o m i n a n t e , f a z e m c o r o a o s q u e d i -
zem que "a polícia e s t á p o d r e " e p r e -
c i sa s e r r e e s t r u t u r a d a ( a q u i t a m b é m ,com o quer a mídia, re fe rem-se e s p e -
c i a l m e n t e à pol íc ia do E s t a d o do R iode Jane i ro ) , r e i v i n d ic a n d o m e d i d a s ur -
g e n t e s , a d o t a n d o a s m e s m a s r a z õ e s— ou d e s r a z õ e s — que a b r i r a m e s p a -
ç o p a r a a j a c o m e n t a d a u t i li z a ç ã o d a s
Forças A r m a d a s em um s u p o s t o c o m -b a t e a o crime, no Rio de j a n e i r o , no
f i na l d e 1994.
R e p e t i n d o a q u e l a s i m p l i s t a a f i r m a -
çã o de que "a pol íc ia está podre" , ne-c e s s i t a n d o d e u r g e nt e r e e s t r u t u r a ç ã o
( a d m i t i n d o - s e a té m e s m o sua d i sso -l ução) , em v e r b e r a ç õ e s q u e , n e s t e
c a m p o d a a t u a ç ã o -do a p a r e l h o p o l i -
cia l , pr io r i zam o s m a l e s d a c o r r u p ç ã oque es ta r i a a d e t e r i o r a r a q u e l a a t u a -
ção e e n f r a q u e c e r o d e s e j a d o c o m -
ba te ao c r im e (espec ia lm ente e , com o
s e m p r e , o c r i m e o r g a n i z a d o ) , nã o s e
d e t ê m nas razões dos desv iados c o m -
p o r t a m e n t o s d e a lguns agen tes pol i -
c ia i s , o u d e m u i t o s , ou m e s m o d am aior ia — não é i s to o m a i s i m p o r t a n -
te .
N ão notam es t es se t ores d a e s q u e r -
d a q u e t o d a f o r m a d e c o r r u p ç í o
( c o m o o c o r r e c o m a q u e la m a i s ref i -n a d a , o b j e t o c e n t r a l d e suas c a m p a -nhas c o n t r a a c r i m i n a l i d a d e d o u r a d a )
tem se m p re do is vé r t i ces , não se per -
t u r b a m com as c o t i d i a n a s e fnúmêras
p r á t i c a s d e s o n e s t a s r e p e t i d a s e i n t e -
r io r i zadas pe la m a ior ia d as pessoas ,
d e s e j o s a s de a t e n d e r à s ex igênc ias e
o b t e r os favo res e r e c o n h e c i m e n t o sde um a s o c i e d a d e ego ís t i ca e c x c l u -
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5/11/2018 Maria L cia Karam - A esquerda punitiva - slidepdf.com
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dente, que cer tamente não aposentou
a ve lha máx ima do " levar vantagemem tudo".
P or que apenas a polfcia estar ia
podre e seria, a part ir de uma supos-
ta reestruturação, transformada,
c o m o nu m passe de mágica, em uma
ilha de honest idade? Não c o ns e gu e mve r estes setores da e s q u e r d a que o
d iscurso h is tér ico e vaz io cont ra a
cor rupção policial é análogo ao dis-
cu rso mais geral sobre a cr iminal ida-
de, selecionando preferencialmente
nas classes subal tern izadas (d e onde
vem a imensa maioria dos agentes po-
l ic iais) personage ns que, convenien-
t e m e n t e e s t i gm a t i z ad o s , d e s e m pe -
nham o papel de maus, para que os
dema is possam segui r desempenhan-
do seu papel de "c idadãos de bem".
Tão nefasto quanto este discursoest igmat izan te cont ra a cor rupção é
o discurso, igualmente simplista e hi-
pócr i ta , cont ra a v io lênc ia policial.
Seguindo a linha da individualiza-
ção e d e m o n i z aç ã o de alguns auto-
res de condutas definidas como cri-
mes, como determina a opção pela
reação punitiva, limitam-se estes se-
to res da e s q u e r d a a clamar contra a
impunidade de polic iais acusados de
atos v io l e n t o s ou a exigir maior r igor
em eventua is pun ições, espec ia lmen-
Em 1988, a Ü E R J analisou 42inquéritos de homicídio e 2 de
. lesão. Das 44 ví t imas, 3 3 eramnegras e 19 foram mortas
co m t i ros pelas costas. 3 5 dessesinquéritos foram arquivados, esequer indiciados os polic iais
te diante de ações mais divulgadas e
mais par t icu larmente c rué is , como
ac o n t e c e u com o massacre do Caran-
diru, em São Paulo, com os extermí-nios coletivos da Candelária e de Vi-
gário Geral, no Rio de Janeiro, ou com
o homicídio atribuído a um policial
mili tar, em frente ao shopping Rio-Sul,
t ambém no Rio de Janeiro.
Não percebem que o clima geral
de e x ac e r baç ã o do desejo punitivo,
que conta com seu decidido apoio, é
o grande incentivador da violência da
rep ressão informal, dirigida c o n t r a
aqueles que correspondem à imagem
de c r im inosos . Não percebem que o
apelo à autor idade e à ordem e a am-
pliação do poder punitivo do Estado
— resu l tado da d e m and a de maior re-
pressão à criminalidade — embute
u m a c r e s c e n t e d e s u m a n i d a d e n ocombate ao crime, favorecendo o
ap r o f u nd am e n t o e a crue ldade da re-
pressão informal, seja através da atu-
ação i legal de agentes pol ic iais, seja
at ravés da ação de grupos de ex ter -
mínio, seja através de linchamentos.
O que alimenta a repressão infor-
mal, dese nvo lv ida à imagem e s e m e -lhança da repressão formal, é a pró-
pria ideologia que sus tenta o s is tema
penal. A idéia de pena, de a fastamen-
to do convívio social, de punição, ba-seia-se no maniqueísmo simplista, que
divide as pessoas entre boas e más:
o cr im inoso passa a ser v is to como o
mau, o outro, o diferente, o que irá
permit ir e al imenta r a violên cia puni-
tiva realizada fora do direito (a repres -
sã o informal). Produz-se, nes te cam-
po, um pro cesso semelhante ao que
al imenta a repressão política das di-
taduras, em que a idéia de que é pre-
ciso manter a ordem aqui se t raduz
na idéia de que é prec iso combater o
cr ime, gerando todo tipo de violên-
cia — da t o r tura ao extermínio — nas
ditaduras, contra os d iss identes , e,
na s democrac ias mais ou m e no s re -
ais, contra os "delinqüentes", vistoscomo os inimigos, os maus, os peri-
gosos.
Quando se conci l ia com a idéia deque o enf rentamento da cr iminal ida-
de cor responde a uma s i tuação de
guerra, não se pode, ao mesmo tem-po, hipocr i tamente pre tender que os
agentes da repressão pautem su a atu-
aç ã o pelo respe i to aos d i re i tos de
eventua is violadores da lei. Em guer-
ras, como é sabido, o combate ao ini-
migo signif ica sua el iminação, não pa-
recendo assim lá muito coerente ex i -
gir r igorosa punição para quem, atu-ando, como se est ivesse em guerra,
ponha em prát ica ta l ens inamento. E
nã o há dúvida de que amplos setores
da esquerda parecem convenc idos de
que o combate à cr iminal idade efet i-
vamente cor responder ia a uma si tua-
ção de guer ra . N ão bas tassem a pas-
siva aceitação da convocação das For-
ça s Armadas para assumir , no Rio de
Janeiro, no final de 1994, as tarefas
da segurança pública, ou a adoção dadenominação de Vietnam para luga-
re s supos tamente per igosos , ta l con-
cepção fez -se most rar a inda mais c la-
ramente na escolha de of ic iais-gene-
rais da s Forças A r m ad as pa r a assumi-
rem os cargos de S ecretár ios de Esta-
do na área da segur anç a pública, pe-
los dois Governadores eleitos pelo PT
na s úl t imas e le ições , um de les aca-
bando por exon erar seu Secretár io ,
quando, somente d iante de dec lara-
ções explícitas de estímulo a uma atu-
"Os policiais exercitavam su am is s ão , bem c om o t inham aob r i ga ç ão de ev i tar a f u ga do
perigoso indivíduo que era umv erdade iro m ic rób io s oc ia l
(...)absolvido assim, neste Planeta,pela su a m o r t e " (Reg is tro de
Ocorrência, 8.7.1982)
ação mais violenta da repressão, con-
segu iu pe r c e be r a i n a d e q u a ç ã o da
esco lha .
Os age ntes po lic ia is , que i lega l -
mente eliminam os supos tos crimino-
sos ou suspe i tos com que se def ron-
tam, da m e s m a forma que os ntegran-
tes de g r u po s de ex termín io ou os pa-
catos c id ad ã o s au t o r e s de l inchamen-
tos, na real idade, apenas reproduzem
e concret izam a divulgada idéia — queconta com o apoio de amplos seto-
res da e s q u e r d a — de que o c o m ba t e
à criminalidade há que se fazer a qual-quer preço, com leis e x c e pc io na i s ,
co m c o nd e naç õe s s is temát i cas ( a i n -
da que a r b i t r á r i as ) , ou a té m e s m o
co m l i ções ex t ra ídas da guer ra .
Esquecidos des ta sua i n c o ns c ie n t e
contribuição para o incremento da vi-
o lênc ia polic ial e já ac o s t u m ad o s co m
a fácil e falsa solução penal, os seto-
re s cr imina l i zan tes da esquerda d i re-
c i o nam suas r e i v i n d i c a ç õ e s , n e s t e
campo, pe lo rep isado c lamor cont raa impunidade, pre tendendo pôr f imàquela violência com o r igor punit i -
vo que querem se despeje cont ra os
policiais eventua lmente a lcançados
pelo s is tema penal . Ass im se mobil i -
zam, pr io r i t ar iamente, com ques tões
secundár ias, s imples decor rênc ias de
outras questões maiores , como a pre-
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5/11/2018 Maria L cia Karam - A esquerda punitiva - slidepdf.com
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A s v í t imas , quand o não sãomor tas , t rans formam-se e m réus ,
acusados de t en ta t iva de homic íd iocont ra os pol i c ia is e até de c r i m ed e f o rm a ç ã o de q u a d r i l h a , no caso
do s t raba lhadores rura is
t end ida ex t inção da s J u s t i ç a s Milita-r e s Es t adua i s , ou, m a i s m o d e s t a m e n -
t e , a t ran s fe rênc i a para a J u s t i ç a co -
m u m d a c o m p e t ê n c i a p a r a o c o nh e -
c imento de c a u s a s r e l a t i v a s a homicí-
dios at r ibu ídos a po l i c ia i s mi l i ta res .
Dominados p e l o des e j o da r ep r e s -
sã o e do cas t igo , de ixam de lado —
como o c o r r e s e m p r e q u e s e opta pela
m o n o p o l i z a d o r a e s u p e r f i c i a l r eaç ã o
puni t iva — a q u e s t ã o m a i o r c o n s u b s -
tanciada na mi l i ta r i zação da at i v ida-
de pol ic ial , a s u g e r i r , den t r e o u t r o s
temas, o q u e s t i o n a m e n t o da ex i s t ê n -
ci a de p o l í c i a s m i l i t a r e s , i n s t i t u í das
c o m o f o r ç a s a u x i l i a r e s d o E x é r c i t o ,
este sim — e não a de r i v ada ex i s t ê n -
cia de uma j u s t i ç a e s p e c i a l — c o ns t i -
t u i ndo um ponto re levan te no deba-
te em to rno daqu ela at i v idade, que,
ent re tanto, é bom re ssa l t a r , c e r t am en-
te não se esgo ta na f o r m a de r ea l i z a -
çã o do p o l i c i am en t o o s t ens i v o e pre-
se rvação d a ordem púb l i ca.
Mant ido o q uad r o d i t ado p o r um a
s u p o s t a n e c e s s i d a d e de c o m b a t e im -
p l acáve l à c r imina l idade, nã o s e r ã o
eventua is p un i ç õ es r i g o ro s as , s e l ec i -
onadamente i m p o s t a s ( c o m o é da re-
gr a da i m p o s i ç ã o de p enas ) , qu e i r ão
reduz i r o e l ev ado nú m er o de homicí-
dios p ra t i cados p o r p o l i c i a i s c o n t r a
s u pos to s c r i m j n o s o s ou s u s p e i t o s , ou
rompe r com a r o t i ne i r a p e r m anê nc i a
da t o r t u ra c o m o m é t o do d e i n v es t i -
gação . A só l ida res i s tên c ia de ta i s p rá-
t i cas a mudanças po l í t i cas ge ra i s ou
a t r o c as de c o m ando s nas i n s t i t u iç õ espol ic iais , q u e n e n h u m a r e p e r c u s s ã oa p r e s e n t a m n a r eduç ã o d e s t e s aten-
t ado s ao s d i r e i t o s f undam en t a i s de
c o ns e r v aç ã o da v i da e da i n t eg r i da -
de f í s i ca , j á bas tar ia para demons t rar
a inutilidade e a in jus t i ça de m edidasque, como o r igor punitivo que aq ue -
le s am p l o s s e t o r e s d a es q ue r da q ue -
r em f az e r ab a t e r s o b r e um o u o u t r o
policial a c u s a d o d a p r á t i c a d e t a i s
atentados , de ixam in tac ta a conc ep-
ção ideo lóg ica t raduz ida n o d e s e j o
gera l da r e p r e s s ã o e do cas t igo .
4. A luta por t r a n s fo r m a ç õ e ss o c i a i s e a n e c e s s i d a d e de
rompimento com a
ideologia da r e p r e s s ã o
A a d e s ã o de amplos s e t o r e s da es -
que rda à ideo log ia da rep ress ão , da
lei e da ordem, s eu i n t e r e s s e p o r um
imp lacá vel comba te à c r imina l idade,
s u a " d e s c o b e r t a " d o s i s t e m a p e n a ls u r g e m em um t em p o em q ue o s s en -
t imentos de insegu rança e o medo co -
let ivo difuso, provocados pe lo p roces -
s o de i s o l am en t o individual e de au -
s ê n c i a de s o l i da r i z aç ã o no convívio
soc ia l , a l i am-se à dec ep ç ã o en f r aq ue -
c edo r a da s u t o p i a s e à n e c e s s i d a d e
de c r i aç ã o de no v o s inimigos e fan-
t a s m a s c ap az es de a s s e g u r a r a c o e -
s ão em f o r m aç õ es s o c i a i s q ue , c o m
o des m o r o na m en t o das t r aduç õ es r e -
a is d o s o c i a l i s m o , n ã o m ai s t ê m
ex i g i da a d e m o n s t r a ç ã o de s u a s u p e -
r i o r i dade dem o c r á t i c a .
O q uad r o v i v i do n e s t e novo tem-
po, p r o p o r c i onando c am p o ex tr em a-
mente fé r t i l para a in tens i f i cação do
cont ro le soc ia l , p ropo rc iona e al imen-
ta o c resc imento da demanda de mai -
o r r e p r e s s ã o , de maior r igor punitivo,
de maio r in terven ção do s i s tema pe-
na l , t r az endo des m ed i da am p l i aç ã o
do p o de r punitivo do E s t ado .
So f r endo m a i s d i r e t am en t e aq ue l a
dec ep ç ã o en f r aq uec edo r a das utopi-as , c o n s e q ü e n t e ao d e s m o r o n a m e n -
to das t r aduç õ es r ea i s do s o c i a l i s m o ,
am p l o s s e t o r e s da e s q u e r da v o lt am -
s e p a r a o b j e t i v o s m a i s imediatos,
ab ando nando a p e r s p ec t i v a de c o n s -
t r u ç ã o de um a no v a s o c i edad e e s e
en t r eg ando a u m p r ag m a t i s m o políti-
c o ex t r em am en t e d i s t an t e d os pr incí-
p ios e ideai s que a v i r am nas c e r .
O eq u i v o c ado d i s c u r s o s o b r e a cr i -
minalidade, enc e r r ando a en t u s i a s m a-da c rença no s i s tema penal e as re i-
v i nd i c aç õ es r ep r e s s o r a s , na linha d e s -
te p r ag m a t i s m o político-eleitoral,sem
princípios e s em i dea i s , f av o r ec edo r
da amp l iação do poder punitivo do
E s t a d o , ho je f az de amp los se to res da
e s q u e r d a um a r eac i o ná r i a m a s s a de
m ano b r a da "direita penal" e do s i s -
tema de dominação v igente , parec en-
do da r s up o r t e ao s q ue eng anado r a -
mente s u s t en t am que a c o n t r ap o s i ç ã o
ent re d i re i ta e esq uerd a te r ia perd i -
do s ua razão de s e r .
Ent re tanto , es ta cont rapos ição , cer -
tamente, ainda se f az f undam enta l .
A o r d e m i n j u s t a d e s o c i e d a d e s
in igua l i tá r ias , n as q ua i s o s pr iv i lég ios
do s q ue s e colocam no topo da e s c a -
la s o c i a l s e c o n t r ap õ em à s p r i v aç õ es
e à s d i s c r i m i naç õ es s o f r i das p e l os qu e
s ã o s u b a l t e r n i z a d o s , o i s o l a m e n t o
eg o í s t a e a des um ana f a l t a de s o l i da -
r i z a ç ã o n o convívio ent re as p e s s o a s
q ue av u l tam nas s o c i edades c o n t em -
po râneas , cer tamente , es tão a c l am a r
p o r q ue s e reav ive a g e n e r o s i d a d e do sidea i s de t r ans f o r m a ç ã o s o c i a l p a r ac o n s t r u ç ã o d e s o c i e d a d e s m e l h o re s e
mais j u s t a s , q u e h i s t o r i c am en t e d i s t i n -
gu i ram as l u tas da e s q u e r d a .
A c o m p r e e n s ã o d e no v as c o n t r ad i -
ç õ e s q u e s e p õ em n a s s o c i e d a d e s
c o n t e m p o r â n e a s e o r o m p i m e n t o
com as d i v e r s a s f o r m a s d e a u t o r i t a -
r i s m o , qu e d e s v i r t u a r a m a c o n c r e t i z a -
ção do soc ia l i smo , são p a s s o s i nd i s -
p e n s á v e i s n a n e c e s s á r i a r e t o m ada d o
caminho h i s tó r i co da s l u tas d a e s q u e r -
d a pela t r a n s f o r m a ç ã o s o c i a l , p e l a
c o ns t r u ç ã o de s o c i edades m e l h o r e s e
mais j u s t a s , que, s endo m a i s g ene r o -
s as e s o l i d á r ia s , n e c e s s a r i a m e n t e de -
vem se r m ai s t o le r an t e s .
E s t e c a m i n h o t r a n s f o r m a d o r n ã o
pode ser t r i l hado com a rep rodu ção
d os m e c a n i s m o s e x c l u d e n te s c a r a c t e -
r í s t i cos d as s o c i edades q u e s e q u e r
t r ans f o r m a r . N ã o h á c o m o a l c a n ç a r
s o c i e d a d e s mais g e n e r o s a s e s o l i d á -
r i as , u t i l i zando- se d o s m e s m o s m é t o-
d o s q u e s e q u e r s u p e r a r .
Q u a n d o s e ac e i t a a l óg i ca da rea-
çã o puni t i va , e s t á s e a c e i t a n d o a ló-
g ica da v io lênc ia , da s u b m i s s ã o e H -ie x c l u s ã o , em típica i deo log ia de c l a s -
"É p r e c i s o suje i ta r o gent io efazê - lo guardar a le i na tura l .
S e m s u j e i ç ã o , os gent ioscont inuam a mata r e c o m e r c o r p o s
humanos sem e x c e ç ã o depessoas . " (Ca r tas dos Pr ime i ros
Jesuítas do B rasi l )
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w * }
s e d o m i n a n t e — i d e o l o g i a p r e s e n t eno s t rág i cos e n e f a s t o s e q u í v o co s q u ec o n d u z i r a m à s p e r v e r s i d a d e s t o t a li t á -r ias do soc ia l i smo rea l . Conv i vendoc o m a d o m i n a ç ã o , a o c o n t r a d i t o r i a -m e n t e p r e t e n d e r a p r o f u n d a r a d e m o -c rac ia a t ravés d a d i tadu ra d o pro l e ta -r iado, a s s i m a p e n a s s u b s t i t u in d o a do-m i n a ç ã o d e u m a c l a s s e pe la domina-
ção d e ou t ra ( o u d e s e u s s u p o s t o s re -p r e s e n t a n t e s ) , c e r t a m e n t e n ã o p o d e -ria a p r o p o s t a s o c i a l i s t a a s s i m m a t e -r i a l i za d a r e p r e s e n t a r a t raduç ão do sg e n e r o s o s i d e a i s t r a n s f o r m a d o r e s ee m a n c i p a d o r e s d e q u e n a s c e u a e s -q u e r d a .
U m a e s q u e r d a a d j e t i v á v e l d e pun i -t i va , cu l t i vadora d a lóg i ca an t i demo-c r á t i c a d a r e p r e s s ã o e do cas t i go , s óf a r á r e p r o d u z i r a dominaç ão e a ex -c l u s ã o c u l t i v a d a s , s e j a n a f o r m a ç ã o
s o c i a l cap i ta l i s ta , s e j a na c o n t r a f a ç ã od o s o c i a l i s m o , q u e s e fe z r ea l .
Na re tomada da u top ia e das l u tasp e l a t rans fo rmaç ão soc ia l , não há l u -ga r para uma ta l esquerda . A rea l i za -ção d o s g e n e r o s o s e s o l i d á r i o s i d e a i si g u a l it á r i o s , q u e a t o d o s a s s e g u r e oa t e n d i m e n t o d a s n e c e s s i d a d e s f u n d a-m e n t a i s p a r a a s o b r e v i v ê n c i a e a sm e s m a s o p o r t u n i d a d e s de a c e s s o à sr i q u e z a s e a o d e s e n v o l v i m e n t o p e s -s o a l , h á q u e s e f a z e r de f o r m a a e s t a -
b e l e c e r a s í n t e s e q u e i n c o r p o r e o si d e a i s l i b e r t á r i o s , a s s e g u r a d o re s d al i v r e e x p r e s s ã o e rea l i zaç ão do s d i r e i -to s da p e r s o n a l i d a d e d e c a d a ind iví-duo . O r o m p i m e n t o c o m a e x c l u d e n -te e e g o í s t i c a l ó g i c a d o l u c r o e d om e r c a d o , h á q u e s e r a c o m p a n h a d od o r o m p i m e n t o c o m q u a l q u e r f o r m ade au to r i t a r i smo, pa ra q u e a b e n s e c o -n ô m i c o s s o c i a l i z a d o s c o r r e s p o n d a a
i nd ispens áve l ga ran t ia d a l i be rdade in -d i v i d u a l e d o direito à d i fe r e n ç a , paraq u e a so l i da r i edade no co n v í v i o s u-p e r e e a f a s t e a c r u e l d a d e d a r e p r e s -s ão e d o cas t i go , pa ra q u e u m e x e r c í -c io d e m o c r a t i z a d o d o p o d e r f aç a d oEs ta d o tã o s o m e n t e u m i n s t r u m e n t oa s s e g u r a d o r d o exerc íc i o d o s d i r e i t o se d a d i g n i d a d e d e cada indivíduo.
CRIMINOLOGIA
A violência contraos oprimidos:
se i s tipos de aná l i seL E O N A R D O BOFF
A v i o l ê n c i a é c r e s c e n t e n o B r a s i l .O s f a t o s c o n h e c i d o s d o s s e q ü e s t r e s ,do e x t e r m í n i o de c r i anç as d e r u a e d ec h a c i n a s p o r p a r t e d e p o l i c i a i s n ã op o d e m s e r e n t e n d i d o s c o m o e p i s ó -d i o s . U m a a n á l i s e m a i s c u i d a d o s am o s t r a u m a c o n e x ã o d e t a i s f a t o sc o m a t o t a l i d a d e s o c i a l . E s t a ém a r c a d a p o r u m m o d e l o a l t a m e n t ep r e d a t ó r i o d e c a p i t a l i s m o l e v a n d o au m a e x t r e m a d e g r a d a ç ã o d a f o r ç a d et r a b a l h o . O n ú m e r o d o s exc lu ídos é
cada ve z maio r . É um l u xo ho j e s e re x p l o r a d o pe lo s i s t e m a d o cap i ta l q u ec o m p r a d e f o r m a av i l tada a f o r ç a d et r a b a l h o , r e m u n e r a n d o - a m i s e r a v e l -m e n t e c o m a p e q u e n a v a n t a g e m , d ep o r lei, o f e r e c e r u m mínimo d es e g u r i d a d e s o c i a l . C e r c a d e 35% d apopu laç ão é exc lu ída . Es tá , q u a n d omuito, n o m e r c a d o i n fo rma l , m a s f o r ad e q u a l q u e r b e n e f í c i o s o c i a l q u e l h e s
t ranqü i l i z e o fu tu ro . T al s i tuaç ão con-f i g u ra , o b j e t i v a m n e t e , u m e s t a d o d ev io lênc ia . Ma i s que a tos de v i o l ên -c ia , t emos a ve r co m a t it u d e s p e r m a -n e n t e s e c o n t i n u a d a s de v io lênc ia . És e u c a r á t e r e s t r u t u r a l . V a m o s a n a l i-sa r - lhe as c a u sa s po r s e i s c a m i n h o s di -f e r e n t e s .
1. C a u s a s h i s t ó r i c a s : u m p e c a d od e o r i g e m , n o s s o p a s s a d o
c o l o n i a l
O B r a s i l t e m n o s e u c o m e ç o u mp e c a d o o r i g i n a l : a v io lênc ia da c o n -q u i s t a e da i n v a s ã o . F o m o s e con t i -n u a m o s a s e r c o l ô n i a s . A co lon i zaç ãoi m p l i c a u m a t o d e e x t r e m a v i o l ê n c i ao r g a n i za d a , s i s t e m á t i c a e c o n t i n u a d a :é co loca r toda uma naç ão , com suap o p u l a ç ã o , c o m s u a c u l t u r a , c o mt u d o o q u e t e m à d e p e d r a ç ã o do ou -
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