Maria Luísa Portocarrero Silva - Razão e Memória em H-G Gadamer

13
Revista Portuguesa de Filosofia Razão e Memória em H.-G. Gadamer Author(s): Maria Luísa Portocarrero Silva Reviewed work(s): Source: Revista Portuguesa de Filosofia, T. 56, Fasc. 3/4, A Idade Hermenêutica da Filosofia (The Age of Hermeneutics): Hans-Georg Gadamer (Jul. - Dec., 2000), pp. 333-344 Published by: Revista Portuguesa de Filosofia Stable URL: http://www.jstor.org/stable/40337580 . Accessed: 27/04/2012 11:22 Your use of the JSTOR archive indicates your acceptance of the Terms & Conditions of Use, available at . http://www.jstor.org/page/info/about/policies/terms.jsp JSTOR is a not-for-profit service that helps scholars, researchers, and students discover, use, and build upon a wide range of content in a trusted digital archive. We use information technology and tools to increase productivity and facilitate new forms of scholarship. For more information about JSTOR, please contact [email protected]. Revista Portuguesa de Filosofia is collaborating with JSTOR to digitize, preserve and extend access to Revista Portuguesa de Filosofia. http://www.jstor.org

Transcript of Maria Luísa Portocarrero Silva - Razão e Memória em H-G Gadamer

Page 1: Maria Luísa Portocarrero Silva - Razão e Memória em H-G Gadamer

Revista Portuguesa de Filosofia

Razão e Memória em H.-G. GadamerAuthor(s): Maria Luísa Portocarrero SilvaReviewed work(s):Source: Revista Portuguesa de Filosofia, T. 56, Fasc. 3/4, A Idade Hermenêutica da Filosofia(The Age of Hermeneutics): Hans-Georg Gadamer (Jul. - Dec., 2000), pp. 333-344Published by: Revista Portuguesa de FilosofiaStable URL: http://www.jstor.org/stable/40337580 .Accessed: 27/04/2012 11:22

Your use of the JSTOR archive indicates your acceptance of the Terms & Conditions of Use, available at .http://www.jstor.org/page/info/about/policies/terms.jsp

JSTOR is a not-for-profit service that helps scholars, researchers, and students discover, use, and build upon a wide range ofcontent in a trusted digital archive. We use information technology and tools to increase productivity and facilitate new formsof scholarship. For more information about JSTOR, please contact [email protected].

Revista Portuguesa de Filosofia is collaborating with JSTOR to digitize, preserve and extend access to RevistaPortuguesa de Filosofia.

http://www.jstor.org

Page 2: Maria Luísa Portocarrero Silva - Razão e Memória em H-G Gadamer

Razao eMemoria em H.-G. Gadamer Maria LuisA Portocarrero Silva*

RESUMO: Este artigo reflecte sobre o significado critico dos conceitos de tradicao e pre- conceito, nogoes fundament ias dafdosofia hermeneutica de Hans-Georg Gadamer. Visa de forma particular a contestacao que o autor faz da moderna reducao do senti- do dafdosofia. Filosofia ou teoria da ciencia, eis os termos de uma questao que atra- vessa o pensamento de Gadamer, desde Verdade e Metodo, ate aos ultimos textos. Para ofdosofo, na raiz origindria do sentido estd um modo ontico de ser, caracteri- zado pela memoria, pelo efeito historico da tradicao e pela necessidade deformacao. A razao, que se sabe hoje historica efinita, parte sempre de pressupostos, que mar- cam a sua basilar insercao na comunidade da palavra jd sempre partilhada e nos lembram como e ilusorio o sonho iluminista de uma transparencia total

PALAVRAS-CHAVE: Ciencia. Filosofia. Formacao. Gadamer. Hermeneutica. Memo- ria. Preconceito. Razao. Sentido. Tradicao.

ABSTRACT: This article is a reflexion about the critical meaning of the concept of tradi- tion and prejudice in the hermeneutical philosopphy of H.-G. Gadamer. It focuses on Gadamer 's protest against the modern reduction of the meaning of philosophy. Phi- losophy or theory of science are the terms of the question that crosses all of Gadamer *s thought, from Wahrheit und Methode until the later works. At the root of meaning is for Gadamer an ontological way of being characterized by memory, the historic effect of tradition and the need of formation. Reason, which we now know as historical and finite, is grounded on presuposed ideas which mark its fundamental in- sertion in the comunity of the world, already shared, and remind us of how deceptive the iluminist dream of a total transparency actually is.

Key Words: Formation. Gadamer. Hermeneutics. Meaning. Memory. Philosophy. Pre- judice. Reason.

de Heidegger, com quern reconhece ter aprendido o essencial,1 Hans-Georg Gadamer, representante da corrente hermeneutica do pen- samento contemporaneo, fez cem anos em Fevereiro passado. Tornado

celebre, com a publica9ao de Verdade e Metodo: Fundamentos de uma Teoria Hermeneutica1 e autor de uma gigantesca obra, reunida nos dez volumes das obras

* Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (Coimbra, Portugal) 1 GADAMER, Hans-Georg - Gesammelte Werke: Hermeneutik II: Wahrheit und Me- thode, 2: Ergdnzungen, Register. Tubingen: Mohr, 1986, 485: "Das Wichtigste aber lernte ich von Heidegger". 2 GADAMER, Hans-Georg - Wahrheit und Methode: Grundzuge einer philosophi- schen Hermeneutik. Tubingen: Mohr, 1960.

© Revista Porwguesa de Fiwsoi'iA, 56 (2000), 333-344

Page 3: Maria Luísa Portocarrero Silva - Razão e Memória em H-G Gadamer

334 Maria LuisA Poiuxkarrero Suva

completas, este filosofo e particularmente conhecido pela posi9ao critica que as- sume perante o tratamento puramente metodico da questao filosofica da verdade.

E, de facto, a rela9ao privilegiada que a problematica da verdade contraiu, no Ocidente, com o modelo da adequa9ao e posteriormente com a moderna tematica do metodo cientifico que o autor frontalmente contesta. Mas nao e a ciencia em si que Gadamer rejeita, pelo contrario, o seu intuito e libertar a Filosofia do seu enfeudamento a um conceito puramente metodico ou operatorio de ciencia, como se nao existisse toda uma tradi9ao a recordar-nos que a palavra filosofia exprimiu durante muito tempo o sentido meditativo do pensar humano, o conceito indaga- dor e universal do saber no sentido geral de teoriaJ. Por outras palavras, Gadamer insurge-se claramente contra o empobrecimento contemporaneo do sentido do filosofar. Lembra-nos, neste contexto, que a medita9ao de ordem filosofica sem- pre excedeu o ambito fechado da doutrina4 ou da teoria da ciencia, correspon- dendo, pelo contrario, a natural disposi9ao do homem para a teoria pura que, no seu sentido originario, designava a possibilidade da contempla9ao e a entrega do cidadao livre ao saber do verdadeiro.

Tal era, de facto, o nome real da filosofia,5 - a essencia de toda a paixao teo- rica - que reflectia, assim, o modo como o homem habita o mundo, isto e, como se eleva acima do seu aqui e agora, formulando "perguntas sobre a verdade e sobre o bem de uma maneira que nao exprima nem o beneficio proprio nem o proveito publico"6. Porque na sua maxima concretude, o homem e um ser aberto ao infinito, ele habita o mundo de uma forma propria e peculiar, quer isto dizer, renuncia a rapida satisfa9ao instintiva, olha para alem de si mesmo... "deseja saber", diz-nos Gadamer, citando a primeira frase da Metafisica de Aristoteles. Assim sendo, se o saber tambem se satisfaz na Matematica, que se relaciona com o imutavel, designa, ja desde a Antiguidade, de "direito e em primeiro lugar a Filosofia, que pensa a essencia permanente das coisas, desde as suas origens, isto e, aquilo a que chamamos principio"7. A maior felicidade do homem era conside-

3 Cf. GADAMER, Hans-Georg - Gesammelte Werke. Hermeneutik 1: Wahrheit und Methode, 1: Erganzungen. Register. Tubingen: Mohr, 1986, 12-13: "Philosophic bedeutet theorethische Interesse verfolgen. meint ein Leben das die Fragen nach der Wahrheit und nach dem Guten so stellt, dass dabei weder auf den eigenen Gewinn noch auf den offent- lichen Nutzen reflektiert wird".

4 Cf. GADAMER. Hans-Georg - Lob der Theorie: Reden und Aufsatze I. AutI Frankfurt am Main: Suhrkamp. 1983. 34. 5 Ibidem, 26.

6 Cf. GADAMER, Hans-Georg - Gesammelte Werke. Hermeneutik 1: Wahrheit und Methode, 1: Erganzungen. Register. Tubingen: Mohr, 1986, 12-13: %iPhilosophie bedeutet theorethische Interesse verfolgen, meint ein Leben das die Fragen nach der Wahrheit und nach dem Guten so stellt, dass dabei weder auf den eigenen Gewinn noch auf den offentli- chen Nutzen reflektiert vvird".

7 Ibidem. 30: "Wissen erfullt sich in der Mathematik, die es mit Unveranderlichen zu tun hat. und erst recht in der Philosophic, die das bleibende Wesen der Dinge aus ihre Ur- sprungen,dem was wir Prinzip nennen, denkt."

REVISTA PO/i/UGUESA I)E FILOSOFIA, 56 (2000), 333-344

Page 4: Maria Luísa Portocarrero Silva - Razão e Memória em H-G Gadamer

Razao e Memoria em H.-G. Gadamer 335

rada, na tradi9ao classica, a teoria pura e isto significava apenas o seguinte: nao estar sujeito a automatismos vitais basicos, como acontece com o animal, poder estar desperto, formular perguntas ultimas e, por meio delas, ver e contemplar o seu proprio estar aqui8.

Gadamer partilha esta posi9ao segundo a qual deve hoje ser recuperada a na- tural disposi9ao do homem para a cultura e para a teoria, o seu permanente afa de saber e de verdade, enquanto atitude basica que subjaz ao filosofar. Mas para isso, ha que mostrar, na base de exemplos da propria historia, como o modo humano de ser sempre foi pensado como a unica essencia, que possui o logos, isto e, a possibilidade de nomear, de escutar o outro, de comunicar, de criar, de pensar e contemplar. Por outras palavras, e preciso nao esquecer que, porque o homem sempre foi caracterizado como urn ser livre (liberto da pressao instintiva das necessidades primarias), pode sempre determinar-se pela escolha do bem, pela abertura ao belo e pelo conhecimento do verdadeiro. O ser humano e inclu- sivamente o unico animal que pode rir, dada a sua capacidade de distanciamento do imediato. "E, no sentido mais profundo, uma essencia teorica"9. Ora e na sua natureza eminentemente relacional que radica a natural disposi9§o que detem para a Filosofia, que configura o ambito das perguntas ultimas. Isto significa que e urgente sustentar, contra o estreitamento contemporaneo do sentido do filo- sofar, o enraizamento deste, enquanto "conjunto do saber e de aquilo que e digno de ser sabido",10 nesta forma estranha de vida, caracterizada pela indaga9ao do comum, pela capacidade de questionamento e de espanto.

A filosofia, enquanto configura9ao singular da vida humana, e testemunho de urn modo de ser liberto do ambito restrito do cumprimento de necessidades ou automatismos11. E expressao de uma forma de vida, que se faz simboliza9ao, nova ordem - humanidade - uma vez que nao e apenas for9a e impulsividade mas for9a, que se significa e interroga, numa constante procura (historica) de identidade.

A tradi9ao grega da theoria, expressao real da vida ou dado antropologico originario,12 deve pois ser repensada, em ordem a uma recupera9ao do enraiza- mento originario da filosofia na paideia propria da vida humana, desde sempre preocupada com a compreensao do colectivo e do comum L>. Nao seria alias difi- cil, lembra-nos Gadamer, mostrar como a propria ciencia moderna pressupSe este mesmo conceito de teoria,14 que para os gregos, corresponde a auto-eleva9ao da vida humana, acima dos interesses e paixoes singulares. Parece, no entanto, que a racionalidade da ciencia contemporanea e a sua metodologia especializada

8/6/Wem.30-31. 9 Ibidem,!]. 10 ID. - Das Erbe Europas: Beitrage. 1. Aufl. Frankfurt am Main: Suhramp, 1989, 13. 11 ID. - Verminft im Zeitalter der Wissenschaft: Aufsatze 1. Aufl. Frankfurt am Main:

Suhrkamp, 1980. 112. 12 ID. - Lob der Theorie, 84. 13 Ibidem. 49-50. 14 Ibidem.

REV1STA I'ORWGUESA DE 1'ILOSOIIA, 56 (2000), 333-344

Page 5: Maria Luísa Portocarrero Silva - Razão e Memória em H-G Gadamer

336 Maria Luisa Portocarrhro Sii.va

nada tern a ver com o ambito originario e envolvente da sabedoria, que procura o sentido do comum e, assim, permite fundar as decisoes adequadas. A nova cien- cia distingue-se claramente do antigo conceito de saber. Representa uma forma pragmatica de conhecimento orientada para o dominio seguro da natureza e para a absoluta eficacia do poder-fazer humano.

Tecnocracia, burocracia15 sao expressoes com que hoje caracterizamos a no- va ordem da vida governada pelo imperio de uma tecnociencia que perdeu o sen- tido vital da perguntabilidade humana e, mais grave ainda a abertura ao todo caracteristica da racionalidade humana. Aceitamos, no entanto, o sistema em que vivemos! Nem sequer podemos ja voltar atras. E como nos diz Gadamer, nao cabe a filosofia dos dias de hoje o papel de profeta ou moralista da ciencia16. Cabe-lhe, pelo contrario, lembrar ao poder-fazer dos homens que a esquema- tiza9ao puramente gnosiologica do seu espa9O de experiencia e, enquanto unica leitura do real, derivada e unilateral. Pertence-lhe nomeadamente a defesa da di- mensao antropologica da teoria, logo uma chamada de aten9ao para os perigos de toda a redu9ao desta abertura ao modelo puramente tecnologico e instrumental.

Num mundo como o nosso, cada vez mais dominado pela importancia pu- blica do conceito operatorio de saber e sua lei fundamental, a da especializa9ao, a filosofia perdeu todo o seu significado originario. Adquiriu mesmo na nossa consciencia publica, o sentido de algo suspeito, urn cariz negativo, semelhante aquele que se atribui a metafisica, tendo entao algum valor apenas para os eru- ditos, suscitando o interesse e a considera9ao nos casos em que revela a sua im- portancia e utilidade para a ciencia17.

Tal tern sido, de facto, no Ocidente, nomeadamente, a partir "da decadencia e fim da sintese hegeliana"18, a for9a e o efeito da redu9ao moderna do sentido classico, mais meditativo e universal de filosofia. Perdeu-se, de urn modo quase definitivo, o sentido originario do antigo conceito de ciencia, intimamente ligado a filosofia como theoria que permite iluminar a praxis, isto e, como uma forma de saber suscitada pelas questoes classicas da vida e nunca definitivamente resol- vidas. A grande tradi9ao da filosofia pratica (e politica) da Antiguidade com o seu horizonte etico e normativo fundamental, acabou tambem por desaparecer do horizonte da nova racionalidade que transferiu, nao sem levantar grandes proble- mas, as suas qualidades operatorias para o ambito da praxis humana19. Uma per- gunta se impoe entao: sera esta uma vitoria definitiva da razao? Que sentido de razao e este afinal? Participarao, de facto, os filosofos deste ideal?20

15 Ibidem, 63. 16 Gesammelte Werke: Hermeneutik: II. 448. 17 GADAMER, Hans-Georg - "La philosophie dans la societe moderne". In: Archives de Philosophie, 31. 1968, 7. 18 Das Erbe Europas, 96. 19 Lob der Theorie, 56-57. 20 Ibidem, 58.

RlMSTA PORTUGUISA DlU'lLOSOIlA, 56 (2000), 333-344

Page 6: Maria Luísa Portocarrero Silva - Razão e Memória em H-G Gadamer

RazAo e Mfmoria em H.-G. Gammer 337

E com este tipo de questSes que o autor, rasga os contornos de uma nova ra- cionalidade (hermeneutica), critica o empobrecimento moderno e contemporaneo do sentido do filosofar, perguntando mesmo, em torn provocador, pela razSo do facto de, na epoca da ciencia em que vivemos - a epoca da racionalidade frag- mentada dos peritos21 -, a teoria da ciencia ser o unico sentido legftimo e aceita- vel da actividade filosofica.22 Nao foi esta a razao pela qual o sec. XIX tratou a tematica das humanidades de uma forma puramente gnosiologica, sem nelas reconhecer a praxis racional da vida humana, na sua busca hermeneutica e sem- pre insatisfeita de formacao?

Com este tipo de questoes, Gadamer avisa-nos: e preciso, antes de mais nada, perceber a origem da relacao problematica entre ciencia e filosofia, que domina os nossos dias. Enquanto nao a percebermos, nao conseguiremos entender, nem defender a natural disposi^o da vida humana para o filosofar23. E necessario, pois, desmontar o postulado positivista e iluminista que regula o conceito con- temporaneo, puramente pragmatico e operatorio de ciencia e isso obriga-nos a re- montar a Modernidade, as origens do seu modelo de saber, isto e, ao conceito de metodo como o de urn caminho que, no processo da meditacao humana, permita "assegurar a via do conhecimento atraves do superior ideal da certeza"24.

Foi, na verdade, a introducao moderna deste ideal de certeza que permitiu a fundamentacao de urn novo modelo da unidade do saber, modelo poderoso que separa, desde logo, a investigacao do ethos proprio da habitacao humana do mundo, dado que este saber ja n5o se pretende questionante, contemplativo ou ligado a tradicoes mas pelo contrario, profundamente operatorio, eficaz e provo- cador25. O novo rosto da ciencia, surgido na Modernidade, esta baseado no audaz empreendimento de descri^o e analise puramente matematica dos fenomenos e fiindamentou, pela primeira vez, o conceito estrito do filosofar que, desde entao, vinculamos a palavra filosofia".26 Todos sabemos, alias, como a propria filosofia

21 Ibidem, 136 ss. 22 Vernunft im Zeitalter der Wissenschaft, 125. 23 Cf. Ibidem, HOss. 24 Ibidem, 131-132. 25 Cf. GADAMER, Hans-Georg - Ober die Verborgenheit der Gesundheit: Aufsdtze

und Vortrage 1. Aufl. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1993, 135-136: "Durch die moderne Wissenschaft wird die Natur mit Hilfe des Experiments zu Antworten gezwungen. Die Natur wird gleichsam gefoldert. Das entstammt dem grossen Auftrieb des 17. Jahr- hunderts, sich von uberlebten Vorurteilen zu befreien und sich nach alien Richtungen zu neuen Erfahrungen aufzumachen".

26 Vernunft im Zeitalter der Wissenschaft, 131-132: "Die Erforschung der Naturge-

setzse auf der Basis matematischer Abstraktion und ihre Verifikation mit den Mitteln des Messens, Zahlens und Wagens steht an der Wiege der neuzeitlichen Naturwissenschaften. (...) Es war insbesondere die Idee der Methode, d.h. der Sicherung des Erkenntntisweges durch das leitende Ideal der Gewissheit, das einen neuen Einheitssinn von Wissen und Erkenntnis zur geltung brachte, der mit der Tradition unserer alteren Welterkenntnis nicht mehr in selbstversta*ndlichem Zusammenhang stand.(...). Diese neue Konzeption von Wis-

Revista Porwguesa de Filosofia, 56 (2000), 333-344

Page 7: Maria Luísa Portocarrero Silva - Razão e Memória em H-G Gadamer

338 Maria LuIsa Portocarrero Suva

segue, desde esta epoca, o ideal das ciencias da natureza, procurando acima de tudo, reflectir sobre questoes gnosiologicas estritas conciliando a nossa imagem natural do mundo com a autoridade anonima e intangivel representada pela cien- cia, que definivamente se converte em modelo unico do saber.

No entanto, lembra-nos Gadamer, nunca o homem consegue viver apenas do saber operatorio! O homem manipulado e sempre urn homem insatisfeito e e sintomatico, alude o autor a este respeito, que apesar da for9a das ciencias ser o tra90 dominante da nossa epoca, colocando uma especie de ponto final na fun9ao classica da filosofia, ela nao tenha conseguido impedir, ja desde o sec. XIX, o aparecimento de autenticas formas modificadas do filosofar27: "se repararmos, o seculo XIX foi o sec. das concep96es de mundo, palavra que ate no conteudo do seu significado originario renova a promessa de uma interpreta9ao do todo, in- terpreta9ao essa que a nova ciencia ja nao podia satisfazer. (...). E ao lado do pensamento das concep9oes de mundo apareceu a arte. Com o fim da metafisica reacendeu-se novamente a polemica antiga entre filosofia e poesia (...). Isto cor- responde, ainda, ao desenvolvimento e a fiin9ao desempenhada pelas chamadas ciencias do espirito que, por sua vez, continuam a heran9a da metafisica"28.

Nao deixa de ser significativo, alias, que na mesma epoca em que se radica- liza a fe na ciencia positiva, surja o interesse pelo homem criador de cultura, pelo fenomeno estetico e pelo fenomeno hermeneutico da transmissao historica da cultura humana»29. O sec. XIX romantico e historicista e, com efeito, o seculo da chamada consciencia historica, do interesse pelo passado, pelo outro e pelos seus testemunhos literarios. Dilthey, nomeadamente, marca a segunda metade do sec. com o projecto de uma critica da razao historica, que servisse de complemento a Critica da Razao Pura de Kant, elevando, assim, a problematica da compreensao historica a problema filosofico central. Move-o, contudo, a questao da objectivi- dade do conhecimento historico, isto e, a procura de urn modelo epistemologico adequado as ciencias da cultura e nao tanto uma reflexao sobre a natureza onto- logica profunda (tempo) das humanidades. Dilthey insere-se assim na tradi9ao moderna da ciencia objectiva, concebendo a investiga9ao do passado como "de- ciframento e nao como experiencia historica"30. Dai o conjunto de aporias que caracterizam o seu projecto e a redu9ao da interpreta9ao historica ao princfpio da reconstru9ao das circunstancias historicas originarias.

Contra esta leitura da tradi9ao se insurge Gadamer que considera que a ideia de uma justifica9§o metodologica das ciencias da cultura transforma a verdadeira essencia filosofica e rememorante das humanidades. Estas tern na sua raiz o pro- cesso de humaniza9ao do homem, uma forma de vida que, dada a sua deficiencia

senschaft begrundete erstmals den engeren Begriff von Philosophic den wir seither mit dem Wort Philosophic verbinden". 27 Ibidem, 118. 28 Ibidem, 118-119. 29 Ibidem, 119. 30 Gesammelte Werke. HermeneutikI: Wahrheit und Methode I, 245.

Revista Portuguksa de Filosofia, 56 (2000), 333-344

Page 8: Maria Luísa Portocarrero Silva - Razão e Memória em H-G Gadamer

Razao e Memoria em H.-G. Gadamer 339

em instintos, se faz necessariamente memoria, transmissao de cultura e forma- 9&0, por meio da palavra, da fabula e da comunica9ao. E preciso pois voltar -

apesar do imperio da nova ciencia e em virtude dos proprios conflitos suscitados, nos dias de hoje, pela aplica9ao da racionalidade instrumental ao mundo sempre afectivo e intersubjectivo da praxis humana - ao mundo da vida e saber que, nos dias de hoje, nomeadamente depois de HusserP1 e da "hermeneutica da facti- cidade" de M. Heidegger32, a Filosofia deve deixar de reflectir o real a partir do modelo estritamente metodico e inspectivo do saber. Nao compreendemos para poder, prever e dominar mas, pelo contrario, para ser. Somos, com efeito, o lini- co animal que precisa de representa9oes simbolicas para viver.

Compreender nao e originariamente agarrar algo, "certificar-se de (...)'\ mas estar a ser e poder-serJJ. E orientar-se e entender-se a si mesmo na propria re- Ia9ao que se estabelece com qualquer coisa. Tal foi a grande noticia da obra hei- deggeriana Ser e Tempo e ela significou, antes de mais, uma reviravolta funda- mental no modo tradicional de conceber o real. Com efeito, segundo Heidegger, existir humanamente e ser tempo,34 apreender e ser interpelado. Isto significa que a compreensao nao refere originariamente "um dos comportamentos humanos que se possa disciplinar metodologicamente e configurar num metodo cientifico, mas constitui o movimento basico da existencia humana"j5. Que movimento e este? Aquele em que o Dasein atesta temporalmente o modo de ser que e: nao um subjectum, um ente, a partida, pronto, pleno e acabado mas, pelo contrario, um sendo inacabado, inquieto e inconformado, que nunca coincide consigo mesmo. Logo, um ente, cujo nucleo verdadeiro e a historia de um verdadeiro contraste, o de finitude inultapassavel e abertura incondicionada, que precisa de se testemunhar, explicitando-se num movimento temporal e hermeneutico de co- tinua eleva9ao acima do instante ou do puramente dado"*6.

Com Heidegger, surge, pela primeira vez, uma clara tomada de consciencia da rela9ao originaria entre a capacidade humana de compreensao e a historia^7, isto e, da experiencia do tempo como real motivo de toda a theoria ou compre- ensao. De facto, o "Dasein" enquanto verdadeiro topos de todo o compreender excede o sujeito da ciencia moderna, e tempo e no tempo pergunta pelo sentido, constituindo esta sua pergunta, e o que realmente a motiva, a verdadeira condi- 9S0 de toda a objectividade. Isto significa que o proprio conceito de objectivi-

31 Ibidem, 251-252. 32 Cf., nomeadamente, Ibidem, 258 ss. 33 Ibidem, 264. "ibidem, 261. 35 Gesammelte Werke. Hermeneutik II Wahrheit und Methode 2, 103: "Verstehen

meint nicht mehr ein Verhalten des menschlichen Denkens unter anderen, das sich metho- disch disziplinieren und zu einem wissenschaftlichen Verfahren ausbilden ISsst, sondern macht die Grundbewegtheit des menschlichen Daseins aus".

36 Cf. Gesammelte Werke: Hermeneutik, I: Wahrheit und Methode I 264. 37 Ibidem, 266.

Rev/sta Portuguesa deI'ilosofia, 56 (2000), 333-344

Page 9: Maria Luísa Portocarrero Silva - Razão e Memória em H-G Gadamer

340 Maria LuisA Portckarrhro Suva

dade da ciencia moderna deve agora ser compreendido ontologicamente, como urn modo (derivado) do perguntar historico-vital da existencia humana finita. Foi este o grande ensinamento de Heidegger: a explica9ao e urn modo derivado da compreensao que o Dasein e ja ao nivel da preocupa9ao ou da forma primeira como vive a sua rela9ao com o mundo.

E preciso entSo enraizar a ciencia no modo temporal de ser do existir. Tal e a tese com a qual Gadamer assume a heran9a heideggeriana. Para o autor, se a moderna concep9ao de ciencia conseguiu, com todo o seu construtivismo meto- dico, impor-se a partir da Modernidade como modelo filosofico do pensar, ela fe-lo na base de uma fundamental ilusao que M. Heidegger denuncia. O esque- cimento do ser foi, de facto, o esquecimento da experiencia-limite que constitui a finitude humana, a experiencia do tempo, e o da sua natureza essencialmente contrastiva ou questionante como verdadeiro motivo de todo o pensar e saber.

E, com efeito, a experiencia exclusivamente humana do tempo ou dos limites do existir que move, segundo Gadamer, o pensar e faz pensar na presen9a trans- historica ou transcendente que habita o homem, distinguindo-o enquanto tal das coisas puramente disponiveis. Todo o questionamento mesmo aquele que se pre- tende objectivo parte, entao, da situa9ao hermeneutica da vida humana (misto de ser e nada ), isto e, de uma necessidade vital ou existencial de afirma93o e con- figura9ao de si. E necessario, pois, redefinir, apos Heidegger, a uriidade e univer- salidade do filosofar, pensando antes de mais a fundamental experiencia que a suporta. Ora, esta e hoje a da irredutivel finitude do existir logo, a da unilatera- lidade de uma esquematiza9ao puramente gnosiologica do processo humano de realiza9ao de sentido.

Urge, ent2o, explicitar o que permite a identidade da experiencia humana de- pois da crise do sujeito transcendental e das suas categorias atemporais. A esta tarefa se dedica Gadamer, propondo-nos toda uma nova concep9ao do sentido e do filosofar, baseada numa hermeneutica da memoria humana. Ser finito e ter memoria, ser afectado pelo outro e e este poder ser afectado o novo sentido do transcendental. Logo, levar a serio a finitude do existir humano significa, para o autor, redefinir as condi9oes da experiencia humana do sentido, come9ando exactamente por perguntar pelas consequencias que derivam para o filosofar do facto de Heidegger ter derivado a estrutura de antecipa9ao do existir da tempora- lidade basica do seu modo de ser*8. Estas consequencias sao hermeneuticas, isto e, partem do existir como um ser que nunca coincide com o principio ou o todo, a que continuamente aspira, porque ja sempre Ian9ado no seio de uma relasao historica que perspectiva o seu perguntar.

Hermeneutica, palavra ainda demasiado estranha nos anos sessenta,39 altura da publica9ao da obra Verdade e Metodo, nao tern, pois, em Gadamer nem o sen- tido pre-romantico de uma perceptiva da compreensao nem, tao pouco o signi-

38 Ibidem, 352. 39 Cf. Gesammelte Werke. Hermeneutik II: Wahrheit und Methode 2, 493.

Rkvista Pomvguksa dk FiwsoiiA, 56 (2000), 333-344

Page 10: Maria Luísa Portocarrero Silva - Razão e Memória em H-G Gadamer

RAZAO li MllMOMA KM H. -G. GADAMER 34 1

ficado historicista de metodologia das ciencias do espirito. Com este termo, o autor procura distinguir o verdadeiro nucleo da compreensao, a humanidade rela- cional, rememorante e antecipativa (historica e linguistica) do homem destacan- do-se claramente da fiindamenta^o hermeneutico-epistemologica das ciencias do espirito e de toda a tematiza9ao romantica da hermeneutica moderna. Por outras palavras, a hermeneutica de Gadamer retoma os fundamentos do sentido classico e universal do filosofar - o homem capax universi - reinterpretando-os a partir de uma exegese do estar ja sempre no meio de uma historia, ser linguagem ou ser perten9a a urn acontecer de sentido, ha muito ja come9ado (memoria).

Dai que o autor nos lembre: "a estrutura geral da compreensao alcana a sua concretude na compreensao historica, na medida em que na propria compreensao actuam os vinculos concretos do costume, da tradi9ao e as correspondentes pos- sibilidades de futuro"40. Com efeito, o ser-ai que se projecta em direc9ao ao seu poder ser e sempre urn ser ja acontecido, e isto quer dizer, ja de algum modo relacionado e afectado por aquilo que justamente quer compreender.

Tal e o significado originario da historicidade do existir: uma rela9§o ao mundo sempre mediada pelo efeito historico do tempo, isto e, uma constante ultrapassagem do momento presente por meio de uma memoria fiindamental- mente referida ao passado como tradi9&o e ao futuro enquanto antecipa9ao.

E preciso perceber como, na raiz de toda a atitude filosofica e cientifica esta uma hermeneutica originaria do mundo, uma experiencia de sentido marcada por urn modo ontico de ser a que podemos chamar memoria, forma9ao ou tradi9ao. Porque somos seres finitos, encontramo-nos ja sempre Ian9ados no jogo historico do sentido e da verdade.41

Come9amos por receber urn mundo simbolicamente estruturado, por meio de valores, usos, costumes e tradi9oes, que constituem a condi9ao basica da nossa habita9ao. Logo, perguntamos sempre a partir de uma inser9ao no seio de urn acontecer de sentido ja sempre come9ado e transmitido. E este o significado profiindo da famosa estrutura de antecipa9§o do "Dasein" heideggeriano: a com- preensao nao e uma ac9§o da subjectividade humana mas, pelo contrario, urn acontecer, urn estar situado no acontecer da tradi9ao, no qual passado e presente se encontram em constante media9ao42. Entao, a principal tarefa de uma herme- neutica da finitude deve ser a seguinte: repensar a experiencia humana do prin- cipio fora dos quadros da subjectividade transcendental, por outras palavras, medita-la no seio do acontecer do processo de transmissao de sentido, a que

40 Gesammelte Werke. Hermeneutik I: Wahrheit und Methode I, 268: ''Die allgemeine Struktur des Verstehens erreicht im historischen Verstehen ihre Konkretion, indem kon- krete Bindungen von Sitte und Oberlieferung und ihnen entsprechende Moglichkeiten der eigenen Zukunft im Verstehen selber wirksam werderf .

41 Cf. Ibidem, 494. 4- Ibidem, 295: "Das Verstehen ist selber nicht so sehr als eine Handlung der Sub- jektivitat zu denken, sondern als ein Einrticken in ein Oberlieferungsgeschehen, in dem sich Vergangenheit und Gegenwart bestandig sich vermitteln".

REV1STA PORTUGUESA DK 1'IWSOIIA, 56 (2000), 333-344

Page 11: Maria Luísa Portocarrero Silva - Razão e Memória em H-G Gadamer

342 Maria LuisA Portocarrkrq Silva

chamamos tradi9ao. O que exige que contrariamente a atitude da suspeita, em que se baseou a Iimita9ao moderna do significado da compreensao, se chame a aten9§io para o facto da razao humana ter raizes, uma memoria linguistica,4j que marca a dimensao da sua receptividade originaria e se traduz justamente no pri- mado da pre-compreensao.

Compreender, ser capaz de theoria, e para a racionalidade, que se sabe hoje finita, partir de uma linguagem onde tudo ja foi dito, de alguma maneira44 refi- gurar, de forma sempre situada e questionante, o processo de trasmissao espiri- tual de sentido que constitui a humanidade do homem.

Razao e tradi9ao devem, entao, reconsiderar, contra a Modern idade, os termos da sua mutua filia9ao45, uma vez que a ideia de uma razao plenamente transparente e, por isso, despida de pressupostos ou de todas as balizas lingufsticas e relacionais da memoria nao faz ja qualquer sentido. Partimos sempre e irremediavelmente da nossa memoria historica, de uma perten9a a tradi9oes46, dado que o nosso poder reflexivo nao tern qualquer semelhan9a com o de um ego desencarnado e solitario. E, pelo contrario, uma actividade profundamente simbolica e comunicacional. Logo, se quisermos fazer justi9a ao caracter historico-finito do ser humano preci- samos de efectuar uma reabilita9ao do conceito de pre-conceito e reconhecer, ao contrario da modernidade iluminista, que existem pre-juizos legitimos47. A su- pera9ao de todo o preconceito, essa exigencia global da Aufklarung - que marcou no Ocidente uma determinada concep9ao de ciencia - deve revelar-se no contexto de uma medita9ao sobre a historicidade como um preconceito cuja revisao tornara possivel uma adequada compreensao da finitude que constitui o nosso ser e a nossa consciencia historica48.

A tematica do preconceito (ou o primado do recebido) constitui assim o nucleo da hermeneutica da finitude de Gadamer.49 Com ela o autor reinterpreta o optimis- mo ingenuo da Modernidade, segundo o qual ser autonomo significa nada receber, chamando a nossa aten9ao para o seguinte: porque somos finitos, a nossa rela9ao a verdade nao pode ser concebida em termos de transparencia e poder. Corresponde, pelo contrario, a antecipa9ao fundamental de todo o existir. E uma pressuposi9ao

43 Cf., Ibidem, 461 ; Gesammelte Werke. Hermeneutik II Wahrheit und Methode 2. 147 ss. 44 Cf., neste mesmo sentido, RICOEUR, Paul - Le conflit des interpretations: Essais

d'hermeneutique. Paris: Editions du Seuil, 1969, 283. 45 Gesammelte Werke: Hermeneutik I: Wahrheit und Methode I. 286. 46 Ibidem. 47 Ibidem, 281. 48

Ibidem, 280: "Die Uberwindung aller Vorurteile, diese Pauschalforderung der Aufklarung, wird sich selber all ein Vorurteil erweisen, dessen Revision erst den Weg fur ein angemessenes Verstandnis der Endlichkeit freimacht, die nicht nur unser Menschsein, sondern ebenso unser geschichitliches Bewusstsein beherrscht." 49 Sobre esta tematica pode ver-se SILVA, Maria Lufsa Portocarrero - O preconceito em H.-G. Gadamer: Sentido de uma reabilitacao. Lisboa: Fundacao Calouste Gulbenkian; Junta Nacional de Investiga9ao Cientffica e Tecnologica, 1995.

REVISTA PORTIJGUESA DE /'JLOSOIIA, 56 (2000), 333-344

Page 12: Maria Luísa Portocarrero Silva - Razão e Memória em H-G Gadamer

RAZAO I: MEMORIA EM H. -G. GADAMER 343

de sentido sempre situada, isto e, entretecida pela fundamental mistura de familia- ridade e estranheza, que transforma toda a compreensao numa perspectiva ou con- jectura a validar50. De outro modo: o sentido para o qual tendemos (enquanto seres marcados pela perguntabilidade ou theoria) nao podera nunca definir-se como total. Ou significamos com outros ou nao fazemos mais sentido. Por isso "os pre- conceitos de urn individuo exprimem, muito mais do que os seus juizos, a realidade historica do seu ser"51. Nao sao juizos necessariamente errados, mas categorias dialecticas que so no dialogo fazem sentido. Pertence pois ao seu conceito a possi- bilidade de virem a ser apreciados positiva ou negativamente.52

Uma hermeneutica da memoria deve, entao, rebater a deprecia9ao iluminista de todos os pressupostos da racionalidade humana, mostrando como para o ho- mem finito e historico tudo o que realmente existe, existe apenas na e pela rela- 9&0 ao outro homem. Sem uma efectiva inser9ao na comunidade da palavra ja parti lhada a nossa razao nada pode.

Nao e de estranhar que a reabilita9ao gadameriana do acontecer da tradi9ao, enquanto pano de fundo verdadeiro de qualquer exercicio de uma sS raciona- lidade, se fa9a a partir de uma critica ao moderno Iluminismo e ao modelo nao relacional de razao por ele veiculado. Contra a deprecia9ao iluminista dos pres- supostos - tra9os do fundamental enraizamento da compreensao humana em tra-

di9oes que, por sua vez, expressam o efeito historico do passado ou o efeito da

vincula9ao a alteridade para que nos remete a memoria - ha que sustentar que a ideia de uma fundamenta9ao absoluta nao e, de modo nenhum, uma possibili- dade da existencia finita. Por isso so os preconceitos, desvalorizados pelo Ilumi- nismo, permitem hoje esquecer o sonho moderno de uma razao plenamente transparente e pensar o acesso sempre finito, linguistico, multiplo ou implicado do homem ao ser. E preciso compreender entao como o verdadeiro fio condutor de toda a critica dos pressupostos e urn projecto ontologico hoje indefensavel. Isto e, e urn preconceito fundamental contra o modo como se configura a huma- nidade relacional do homem: a partir de uma fundamental interpela9ao e abertura a alteridade e autoridade do outro.

Gadamer aceita alias a vincula9ao iluminista do preconceito as ideias de au- toridade e tradi9ao. Discorda, no entanto, do sentido puramente negativo que o Iluminismo atribuiu aos conceitos de autoridade e tradi9ao. Para o Iluminismo o eu pensante em soliloquio (cogito) e a verdadeira fonte de toda a autoridade5^. Dai a rejei9ao da tradi9ao e o ideal de uma supera9ao de todos os pressupostos.

50 Cf. Gesammelte Werke. Hermeneutik I Wahrheit und Methode L 272. 51 Ibidem. 281 : "Darum sind die Vorurteile des einzelnen weit mehr als seine Urteile

die geschichitliche Wirklichkeit seines Seins ". Ibidem, 275: "An sich heisst Vorurteil, ein Urteil, das vor der endgultigen Prufung

aller sachlich bestimmenden Momente gefallt wird (...). Vorurteil heisst also durchaus nicht notvvendig falsches Urteil. In seinem Begriff liegt dass es positiv und negativ gewer- tet werden kanrr.

53 Ibidem, 276-277.

Revista 1'om/GUESA Dt: Filosofia, 56 (2000), 333-344

Page 13: Maria Luísa Portocarrero Silva - Razão e Memória em H-G Gadamer

344 Maria LuIsa Poimx :arrhro Sil va

Ora, este ideal parte de um modelo de razao considerado, hoje, unilateral. Sem tempo, sem corpo e sem historia o sujeito pensante da Modernidade afirmava a sua autonomia por meio de recusa de toda memoria ou interdependencia. Nao podia, pois, fazer justisa ao modo como o homem se faz consciencia historica, sofrendo o efeito historico e subterraneo do trabalho imemorial da historia.54

Logo, so numa hermeneutica da memoria os conceitos de preconceito, tradi- 9S0 e autoridade permitem uma reinterpreta9ao da theoria como tra9O distintivo da racionalidade humana. Ajudam-nos a perceber que se a ciencia e a filosofia partem da exigencia de total iza9ao como forma fundamental da razao humana, essa exigencia deve hoje ser reinterpretada a partir de uma hermeneutica da irre- dutivel finitude humana. O efeito historico do sentido, por outros ja conflgurado - em textos, documentos, simbolos, mitos e obras de arte - faz-nos entender como e hoje ilusoria a ideia de uma justifica9ao humana das condi9oes do pensa- vel. Logo, como para 0 homem encarnado todo o sentido deve antes pensar-se a partir de uma implica9ao ou pressuposi9ao fundamental, que apenas no confronto ou fusao de horizontes alcana a sua verdadeira consistencia relacional. A razao com memoria sabe que a exigencia mais elevada que se propoe ao ser humano reside no ouvir 0 que nos diz o outro e no deixar que isso seja dito55. So na linguagem e seu poder dialogico as coisas podem alcan9ar a sua verdadeira objectividade, a dimensao do comum e do universal, a que nos induz 0 conceito de razao.

54 Cf. GRONDIN, Jean - Introduction a Hans-Geore Gadamer. Paris: Cerf. 1 999. 1 36-1 50. 55 Das Erbe Europas, 173: "Auf alles zu horen, was uns etwas sagt. und es uns gesagt sein zu lassen, darin liegt der hohe Anspruch, der an jeden Menschen gestellt ist. Sich fur sich selbst daran erinnern ist es eines jeden eigenste Sache. Es fur alle und fur alle uber- zeugend zu tun ist die Aufgabe der Philosophies

Revista Portuguesa de Filosofia, 56 (2000), 333-344