Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

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A CONSTRUÇÃO DA PESSOA "ORIENTAL" NO OCIDENTE: UM ESTUDO DE CASO SOBRE O SIDDHA YOGA Maria Macedo Barroso Mestrado em Antropologia Social Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro Orientador: Prof. Dr. Luiz Fernando dias Duarte Rio de Janeiro 1999

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A CONSTRUÇÃO DA PESSOA "ORIENTAL" NO OCIDENTE: UM E STUDO DE CASO SOBRE O SIDDHA YOGA

Maria Macedo Barroso

Mestrado em Antropologia Social Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro

Orientador: Prof. Dr. Luiz Fernando dias Duarte

Rio de Janeiro

1999

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A CONSTRUÇÃO DA PESSOA "ORIENTAL" NO OCIDENTE: UM ESTUDO DE CASO SOBRE O SIDDHA YOGA

Maria Macedo Barroso

Dissertação de Mestrado submetida ao corpo docente do Departamento de Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre.

Aprovada por:

________________________________ - Orientador Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte

__________________________________ Prof. Dr. Gilberto Cardoso Alves Velho __________________________________________ Prof. Dr. Otávio Guilherme Cardoso Alves Velho

Rio de Janeiro

1999

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Barroso, Maria Macedo

A Construção da Pessoa "Oriental" no Ocidente: um Estudo de Caso sobre o Siddha Yoga/ Maria Macedo Barroso. Rio de Janeiro: UFRJ/ PPGAS, 1999.

ix, 209 p. Dissertação - Universidade Federal do Rio de

Janeiro, PPGAS. 1.1. Religiões. Relações. 2. Religião. Aspectos

Psicológicos. 3. Religião. Índia. 4. Yoga. 5. Emoções. I. Título. II. Tese (mestrado - UFRJ/MN/PPGAS)

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À minha irmã,

Branca

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Agradecimentos A meus pais, Sabino e Nininha, grandes acolhedores de diferenças. A Antonio Carlos de Souza Lima, que me propiciou o encontro com a antropologia. A meu orientador, Luiz Fernando Dias Duarte, por ter me dado coragem e meios para buscar meus próprios caminhos. A Leila Amaral, Otávio Velho e Carlos Alberto Afonso, por tudo que me ensinaram sobre a antropologia e a vida. A meus professores no Mestrado em Antropologia Social: Federico Neiburg, Gilberto Velho, José Sergio Leite Lopes, Luiz Rodolfo Vilhena (in memorian), Lygia Sigaud, Marcio Goldman e Moacir Palmeira. Aos colegas Anthony D’Andrea, Clara Jost Mafra, Emerson Giumbelli, Paulo Hilu da Rocha Pinto e Sergio Góes Brissac, com quem pude compartilhar o interesse pelas religiões. Aos colegas de curso, Alcio Braz, Aloir Pacini, Amir Geiger, Ana Lucia Enne, Ana Claudia Cruz e Silva, André Correia Lourenço, Claudio Costa Pinheiro, Cecília Valdez Michael, Gustavo Blasquez, Hernan Gómez, Hortense Marcier, Hyppolite Brice Sogbossi, João Paulo Macedo e Castro, João Felipe Gonçalves, José Gabriel Corrêa, Kátia de Almeida, Pedro Luz, Sílvia Nogueira, Ricardo Cavalcanti, Rodrigo Grunewald e Valéria Torres e Silva agradeço o bom convívio e a troca enriquecedora. Aos funcionários do PPGAS, Adilson Moreira Fontenele, Aurora Fernandes da Silva, Carla Paz de Freitas, Isabel de Souza Mello, Lourdes Cristina Coimbra, Maria Izabel Moreira, Osmar Lopes e Rosa Gonçalves Pereira, pelo profissionalismo e a gentileza. A Afonso Santoro, Eline Decacche Maia, Fatima Regina Nascimento, Lucia Arrais Morales, Tania Ferreira da Silva e Wallace de Deus Barbosa, a amizade e o apoio, de tantas e diferentes maneiras. A Rosa Barroso, a compreensão e o afeto. A Alain Hoffmann, o encontro e o amor. Ao Tomaz, que me encheu a vida de luz.

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RESUMO

BARROSO, Maria Macedo. A Construção da Pessoa “Oriental” no Ocidente: um Estudo de Caso

sobre o Siddha Yoga. Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte. Rio de Janeiro: UFRJ/MN/PPGAS, 1999. Diss.

Este trabalho realiza uma etnografia do Siddha Yoga, grupo de origem hindu que se estabeleceu

no Ocidente no início da década de 1970, procurando investigar as motivações ligadas à vinda

dos mestres hindus para o Ocidente, iniciada no final do século XIX. Entre os tópicos

desenvolvidos, especial atenção é dada à dinâmica da construção das categorias de "Oriente" e

"Ocidente" em suas diversas implicações, sobretudo no que diz respeito à formação de um

discurso contracultural no Ocidente; ao estatuto da experiência e das emoções dentro dos

fenômenos religiosos de tipo místico; e ao modo como as religiosidades de origem hindu,

especialmente as iogas, são vivenciadas por devotos ocidentais. Com este objetivo, são mapeadas

as distintas concepções de pessoa envolvidas no processo de difusão destas religiosidades, e sua

importância como matriz de concepções religiosas em circulação crescente na cena religiosa

ocidental contemporânea, como as da Nova Era.

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ABSTRACT BARROSO, Maria Macedo. A Construção da Pessoa “Oriental” no Ocidente: um Estudo de Caso

sobre o Siddha Yoga. Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte. Rio de Janeiro: UFRJ/MN/PPGAS, 1999. Diss. This is an ethnography of Siddha Yoga, a group of Hindu origins which settled in the West in the

beggining of the 70's. The research concentrates firstly in the trips of Hindu masters to the West,

which beginned in the end of the XIX century. A special attention is then given to the

construction of the categories "West" and "East" in their global implications, especially those

related to the development of a countercultural discourse in the West; to the general status of

experience and emotions in mystical religious phenomena; and to the way Hindu religiosities,

and particularly the yogic ones, are experienced by Western devotees. The different conceptions

of person (or personhood) involved in the spread of these religiosities are analysed, as well as

their importance as a source of religious conceptions now wide spread in the Western religious

scene, such as the New Age group.

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Sumário Introdução..................................................................................................................... p. 1 Capítulo 1 - Encontros Oriente / Ocidente .................................................................. p. 12 1.1- "Não podem representar a si mesmos: devem ser representados"....................... p. 12 1.2 - A "representação de si mesmos"......................................................................... p. 25 1.3 - Novos sentidos para o Oriente ........................................................................... p. 41 1.4 - Uma identidade transformada ............................................................................ p. 59 Capítulo 2 - A Prática das Religiosidades de Origem hindu como Experiência Reflexiva no Ocidente....................................................................................................................... p. 70 2.1 - A busca da experiência religiosa no Ocidente através do Oriente....................... p. 70 2.2 - A retomada do interesse pela experiência mística no campo sociológico........... p. 75 2.3 - A experiência mística e o campo das emoções ................................................... p. 78 2.4 - A experiência mística do Oriente como caminho para a interiorização no Ocidente........................................................................................................................ p. 89 2.5 - Uma comparação entre o sentido das experiências no Siddha Yoga e na Nova Era................................................................................................................................. p.99 Capítulo 3 - Uma Etnografia do Siddha Yoga ............................................................ p.102 3.1 - Histórico do grupo................................................................................................p.102 3.2 - O shivaísmo do Kashmir......................................................................................p.105 3.3 - Concepções hindus e ocidentais do self...............................................................p.109 3.4 - Tipologia dos processos reflexivos entre os adeptos ocidentais do Siddha Yoga..............................................................................................................................p.114 3.5 - A reprodução do carisma: a intermitência da experiência religiosa e a necessidade de sua renovação.................................................................................................................... p.131 3.6 - Tornar-se devoto................................................................................................. p.141 3.7 - A shaktipat: uma iniciação autoreferenciada...................................................... p.150 3.8 - Questões de identidade........................................................................................ p.156 3.9 - As razões dos rompimentos................................................................................. p.161 Conclusão..................................................................................................................... p.165 Bibliografia.................................................................................................................. p.174 Apêndice..................................................................................................................... p.184

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“Words are flying out like endless rain into a paper cup They slither while they pass, they slip away across the universe

Pools of sorrow, waves of joy are drifting through my open mind, possessing and caressing me

Jai Guru Deva Om

(...)

Sounds of laughter, shades of earth are ringing through my open views inciting and inviting me

Limitless undying love which shines around me like a million suns It calls me on and on across the universe

Jai Guru Deva Om”

(Lennon & McCartney)

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Introdução

Ao escrever a introdução deste trabalho, percebi o quanto é difícil explicar a razão

das escolhas que fazemos na vida, de um modo geral, e as acadêmicas, em particular. Se

tivéssemos estas explicações, talvez trabalhos como este nunca chegassem a ser feitos, uma vez

que um dos impulsos para levá-lo adiante foi entender um pouco mais algumas das escolhas que

fiz. Posso começar dizendo que como resultado de várias circunstâncias, umas mais e outras

menos sob o meu controle, umas mais e outras menos aleatórias, adquiri a certa altura da vida

algo que poderia ser identificado como uma “visão mística” da realidade. Minha vinda para o

curso de Antropologia está ligada a este fato.

A descoberta de que a disciplina considerava os fenômenos ditos “místicos” como

dignos de interesse e atenção foi o seu grande ponto de atração para mim. Assim, não busquei

inicialmente a antropologia por uma de suas grandes marcas, o interesse pelo outro, mas fui

atraída justamente pela possibilidade de uma compreensão maior sobre mim, ainda que calcada

em experiências pessoais ao longo de minha vida que me colocaram algumas vezes no lugar do

outro dentro de minha própria cultura e meio social.

Ao dar os primeiros passos dentro do campo, contudo, descobri que esta questão

também fazia parte do acervo da disciplina, na verdade de uma maneira central. Como falar do

outro sem falar de si? As questões presentes no Diary in a Strict Sense, de Malinowski (1967),

que em quase quatrocentas páginas examina exaustivamente as vivências emocionais e

psicológicas do autor à época em que realizava seu trabalho de campo na Melanésia, parecem

indicar de forma clara que não são meramente contingentes as relações entre antropologia e

consciência de si, como se conhecer o outro guardasse uma relação estreita com a capacidade de

conhecer-se a si mesmo.

A publicação deste diário, muitos anos depois da morte do antropólogo, provocou

imensa polêmica no campo acadêmico, servindo de pretexto para uma reavaliação do trabalho de

Malinowski, na maior parte das vezes, depreciativa. Segundo seus críticos, este diário, íntimo,

trazia à tona diversas incoerências do autor em relação ao que ele pregava como o método da

disciplina em seus outros diários, os de campo. Ter a possibilidade de ler seus dois tipos de

diário, me fez pensar, para além das discussões sobre coerência levantadas, no quanto o trabalho

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deste antropólogo era tributário de seu Diary in a Strict Sense, isto é, do árduo processo de

reflexão sobre si mesmo levado a cabo paralelamente à estadia no campo, fato reconhecido pelo

próprio Malinowski.

Com isto, pude perceber que a reflexividade fazia parte da própria história da

disciplina, embora inicialmente houvesse uma “má consciência” por parte dos antropólogos a

respeito dela, expressa pela próprio procedimento de Malinowski de escrever separadamente os

dois tipos de diário, um íntimo e o outro científico, não pretendendo publicar o primeiro. Com o

tempo, assistiríamos a uma mudança de visão dos antropólogos em relação a esta questão,

verificando-se entre alguns uma postura de explicitar o mais possível o papel desempenhado pela

subjetividade na construção do conhecimento, acompanhando o processo de tomada de

consciência dentro da disciplina sobre o fato de que conhecer o outro implica necessariamente

num conhecimento de si.

Alguns antropólogos começaram a falar sobre si mesmos no corpo de seus trabalhos,

e não mais apenas nas introduções, espaço reservado normalmente a comentários mais pessoais.

Neste falar sobre si, explicitavam também suas dúvidas, as idas e vindas do processo de

conhecimento e as dificuldades do encontro de um lugar para a subjetividade durante o trabalho

de campo. O trabalho de Jeanne Favret-Saada, Les mots, la mort et les sorts (1977) ficou sendo

para mim o melhor exemplo desta postura metodológica nova, na qual como que se juntavam em

um único texto os dois diários de Malinowski, o de campo e o stricto sensu, em um

procedimento posteriormente consagrado pelas correntes reflexivistas da disciplina.

Por outro lado, há muito tempo me parecia difícil dissociar meus processos pessoais

de vida de meus projetos acadêmicos e foi com grande alívio que descobri que esta questão

também era contemplada no Diary in a Strict Sense, fazendo parte portanto dos objetos de

reflexão da disciplina.

Na sequência destes comentários, acho que encontro bons elementos para explicar

porque escolhi como tema de dissertação um tipo de religiosidade calcada sobre processos de

auto-conhecimento e crescente expansão de níveis de reflexividade aspectos que parecem

estar na base da apropriação das tradições hindus de meditação pelos adeptos ocidentais que são

objeto deste meu estudo sobre o Siddha Yoga.

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Trabalhar com um grupo em que o observar a si mesmo está no centro de prática

espiritual trazia imenso interesse para mim. Mas acho que só posso dizer isto agora, “after the

fact” (Geertz, 1995), construindo minha própria ilusão biográfica (Bourdieu, 1986). Recuperar

minhas reais motivações e perspectivas no momento mesmo em que escolhi o Siddha Yoga como

objeto de estudo foi muito menos “elaborado” do que isto.

O que eu percebia no momento da escolha é que estava, por um lado, fazendo um

acerto de contas comigo mesma, com algo que se tornou constitutivo em mim, o tal “olhar

místico” sobre as coisas, olhar que parecia “sem lugar”, contudo, em minha vida, já que eu não

me fixara como praticante de nenhuma religião, embora criada dentro da tradição católica e tendo

frequentado o próprio Siddha Yoga em determinado momento de minha vida. O acerto comigo

mesma, nesta caso, era finalmente encontrar este “lugar” em minha vida para lidar com as

inquietações geradas por este olhar, mesmo que ele não fosse o lugar mais tradicional para isto: a

academia.

Neste sentido, contudo, a Antropologia, mais uma vez, pareceu ter espaço para

minhas idiossincrasias; o encontro com colegas portadores do mesmo “olhar místico” dentro do

curso aliviou a sensação de solidão, permitindo-me novos e enriquecedores diálogos. Não foram

muitos estes colegas que ninguém imagine que portadores de olhares místicos preponderem

em um curso de Antropologia Social. Com certeza, não. Mas, eles existiam, e portanto, o “espaço

dos possíveis”, mais uma vez, estava ali, a meu alcance. Vi que os olhares eram os mesmos,

“místicos”, mas, ainda que sob este mesmo rótulo, eram ao mesmo tempo muito diferentes, isto

é, variavam segundo a trajetória individual de cada um de nós. Os “místicos” eram iguais, mas

eram diferentes. Esta percepção conduziu-me para a descoberta de outro ponto central da

disciplina antropológica, o que trata do debate entre as perspectivas essencialistas e

construtivistas, particularmente quando aplicadas ao campo religioso.

Tendo entrado no curso com uma postura que pude identificar depois como

radicalmente essencialista, fui aos poucos sendo confrontada com os limites desta posição e com

as possibilidades oferecidas pelas vertentes construcionistas no campo da religião. De fato, por

mais essencialista que fosse, o próprio encontro no curso com colegas que também se acreditando

“místicos” definiam este místico de forma diferente da minha, obrigou-me a atentar para a

riqueza da contribuição das perspectivas construcionistas, e para algo que, afinal, parece ser um

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dos grandes legados da antropologia: a demonstração exaustiva e variada sobre a historicidade

dos conceitos e das culturas.

A escolha do Siddha Yoga como tema de dissertação não foi uma decisão fácil,

embora agora, “after the fact”, o pareça. Na verdade, decidir-me sobre este grupo foi um

processo difícil, que tomou meses para se firmar. A dificuldade resultava justamente do tema

estar muito próximo de questões pessoais que eu considerava importantes, questões que ainda

estavam “em curso”, que eram críticas para mim. A escolha implicava em uma exposição dupla,

para a academia e para os antigos companheiros do Siddha Yoga, com os quais eu convivera

durante quase dois anos, entre 1981 e 1982. E mexia com algo ligado a minha própria identidade

no momento de realizar o trabalho de campo: afinal, quem é que estava ali? A antropóloga ou a

devota? O grande ponto para mim era não saber qual seria minha reação ao retomar o contato

com o grupo, isto é, se reencontrá-lo me levaria a uma nova adesão. Junto com isto havia todo o

dilema de saber se minha sensibilidade às propostas do grupo me permitiria um grau de

objetividade e distanciamento mínimos para fazer o trabalho etnográfico.

Sem ter respostas para estas perguntas, recomecei a frequentar, passados cerca de 15

anos sem qualquer contato com o grupo, as reuniões do Centro de Siddha Yoga do Rio de

Janeiro, e a fazer meus primeiros registros etnográficos. Ainda com elas, e com a angústia de não

saber respondê-las, fui até Nova York, conhecer o ashram principal do grupo no Ocidente e ver

pessoalmente, pela primeira vez, Gurumayi, sua líder hoje. Na carta em que explicava as razões

de minha solicitação de estadia no ashram procedimento de praxe para qualquer interessado

em visitar o Muktananda Ashram, em South Fallsburg fui obrigada a explicitar minha dupla

condição.

Este fato foi muito marcante para mim, e transformou-se no símbolo do processo

reflexivo que o trabalho com o Siddha Yoga me obrigou a enfrentar. Mais uma vez, a

antropologia confirmava sua vocação de, a cada momento crítico, brindar-me com o estímulo

necessário para seguir adiante, e foi novamente a leitura do Diary in a Strict Sense de

Malinowski que me proporcionou este estímulo. Pude entender através dele que minha única

chance de fazer um bom trabalho era lidar de forma satisfatória com aquela dupla condição,

explicitando a cada passo os dilemas que vivia, ao invés de negar sua existência. E, sobretudo, ter

a paciência de não ter respostas, encarando este fato como constitutivo do processo de

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conhecimento, e não como uma “falha” que pudesse me paralisar. Ter escolhido o “consentâneo

consigo mesmo”, afinal, tinha seu preço. Ele parecia pequeno, contudo, quando comparado aos

duros momentos de minha vida em que fui obrigada a deixá-lo de lado.

Minha graduação em História, nos anos 70, num momento em que ainda não se

instaurara um diálogo mais amplo daquela disciplina com a Antropologia algo que a levaria

mais tarde a ter uma abertura maior para abordagens que privilegiavam aspectos subjetivos da

trajetória dos agentes levara-me a uma imensa frustração, não reparada por minha

profissionalização na área. Trabalhos extremamente áridos para recuperar a história do setor

elétrico brasileiro, em variados arquivos da cidade do Rio de Janeiro, apresentaram-se como

minha principal oportunidade profissional para permanecer na área de pesquisa, a um preço que

depois percebi ser grande demais. Embora tenha adquirido por meio daqueles trabalhos as

ferramentas essenciais para a realização de pesquisas com fontes escritas, primárias e

secundárias, a dedicação de mais de dez anos de minha vida a uma temática que em nada me

interessava, custou-me o preço de um imenso desencanto pelo que fazia. Minha ida para a

antropologia também resultou disso, do desejo de estar mais próxima, no campo profissional, de

meus próprios interesses. Como se vê, encontro mais um argumento para explicar o que fiz e o

que escolhi, e mais uma vez, é claro, “after the fact”.

A valorização de práticas reflexivistas dos sujeitos de conhecimento em relação a

seus objetos de estudo, em oposição à má consciência em relação a isto do tempo de

Malinowski, é um fato consumado hoje, ao menos em algumas correntes das ciências sociais,

como se pode ver claramente pelas questões suscitadas neste texto, escrito por uma socióloga

americana: “Might an acceptance and refinement of our own emotional as well as cognitive

ways of knowing enable us, as scholars, to better comprehend the emotional experiences of those

whom we purport to explain?” (McGuire, 1993, p.136). É a mesma autora que destaca a

importância destes mecanismos, particularmente no campo da sociologia da religião: “Exploring

and, perhaps, embracing the emotional component of ways of knowing may be particularly

important for a sociology of religion, since much religious belief and behaviour appears to be

utterly irrational” (Ibid., p.136). E é ela ainda quem descreve em que tipo de argumentos se

apóiam aqueles que se recusam a aceitá-los:

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“Epistemological assumptions embedded on most methodologies in the sociology of religion are predicated on the dominant modern paradigm of rational science, which views emotions, values, and subjective feelings as inimical to empirical knowledge (...). According to this perspective, researchers must control (or eliminate) their own emotional reactions; the emotions of research subjects must, likewise, be purified i.e., converted in “hard” data, for example items of “opinion” on a Likert scale. Similarly, rational science disavows the body as a source of researchers’ experiences; scientific replicability requires that nothing of the researchers’ self (body or emotions) influence the findings” (Id., p. 134).

Em seguida, aponta para um caminho que parece oferecer ricas possibilidades de

exploração: “Another suggestive line of inquiry asks how bodily and emotional self-expereince

are linked with ways of knowing” (Id., p.136).

Em seu livro sobre a feitiçaria no Bocage, Jeanne Favret-Saada (Op. cit.) utilizou o

seguinte argumento para justificar a maneira como conduziu seu trabalho de campo: segundo ela,

não era possível estudar a feitiçaria no Bocage sem aceitar participar do jogo que ela instituía,

uma vez que qualquer palavra, naquele contexto, era considerada uma palavra interessada, isto é,

tudo que se dizia passava a ser lido, pelos habitantes da região, como fazendo parte do discurso

da feitiçaria, não havendo assim como escapar de ser ator naquele cenário. Por esta razão, Favret-

Saada desiste de lutar por afirmar sua condição de antropóloga na região e passa a não refutar os

papéis que lhe são atribuídos pelos habitantes do lugar dentro do sistema da feitiçaria. No fio

deste raciocínio, em que se associa a metodologia do trabalho de campo às características do

objeto que se estuda, acho que poderia dizer que, no meu caso, refletir sobre minhas próprias

emoções foi algo essencial para estudar um tipo de religiosidade que transforma a reflexão sobre

as emoções despertadas por suas práticas em um componente central.

Em um trabalho que esteve relacionado de forma central à investigação da dicotomia

Oriente/Ocidente, considero importante também explicitar nesta introdução quem foi o “nós”

implícito dentro dele e quem foi o “eles”. Tratei da construção de um certo “nós”, ocidental, que

incluiu extratos médios intelectualizados de países culturalmente situados como “ocidentais”.

Preocupei-me em mapear, a partir de finais do século XVIII, de que forma este “nós” ocidental

foi se construindo, também, por apropriações de “outros”, por uma releitura própria, a partir de

seus próprios códigos, daqueles “outros”. Procurei mostrar ainda que neste processo não há

apenas os passivos de um lado, de quem o conhecimento é apropriado, e os ativos de outro, os

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apropriadores de conhecimento, mas mostrar que há agency (assertividade) dos dois lados, e que

ambos se transformam no contato (capítulo 1).

Na análise das construções da dicotomia Oriente/Ocidente, discuti com Said (1990) e

Campbell (1997) duas leituras possíveis desta temática. Na discussão com Said, procurei matizar-

lhe a tese do orientalismo enquanto projeto de dominação, procurando não só ressaltar o aspecto

contracultural que o orientalismo assumiu no Ocidente em alguns momentos, assim como o papel

do próprio Oriente em sua construção. A apropriação e a vinda das iogas pelo e para o Ocidente

foi o campo que utilizei para trabalhar estes aspectos, algo que procuro apresentar no capítulo 1.

Na discussão com Campbell, procurei discutir as dificuldades de recorrer-se ao termo

“orientalização” para definir fenômenos culturais e religiosos recentes no Ocidente, embora

reconheça, tal como ele, que “há algo de novo no ar”. Este novo estaria associado, entre outros

pontos, segundo ele, a um processo de imanentização da divindade, presente em muitas das

expressões mais recentes do campo religioso ocidental, particularmente visíveis na Nova Era. De

onde vem o novo e mesmo se ele é, de fato, novo, é algo que abre campo para toda uma

discussão, sobre a qual damos algumas indicações e interpretações no capítulo 2.

Campbell se prende a uma visão hegemônica dentro das doutrinas cristãs, que

privilegia a transcendência, para caracterizar a imanência como um traço “oriental”. Contudo,

embora de fato as doutrinas cristãs sobre o sagrado geralmente coloquem o acento na visão

transcendente da divindade, isto não quer dizer que a vivência mística da imanência esteja

ausente entre os cristãos. Assim, esta questão parece ser mais complexa, e tratar dela supõe lidar,

a meu ver, com o papel do corpo, da fisicalidade, nos fenômenos ditos místicos. O misticismo,

sob este enfoque, passaria a ser visto, mais do que como ligado a esta ou àquela religião, como

um tipo de temperamento, que pode se manifestar dentro de enquadramentos religiosos variados,

cristãos, muçulmanos ou hindus. No caso do hinduísmo, em seu viés ióguico, há um fomento,

digamos assim, deste temperamento, por todas as disciplinas corporais (físicas e mentais) que

impõe a seus seguidores. Não é de espantar, neste sentido, que o “Oriente” utilizado por

Campbell seja um “Oriente” basicamente hindu.

Estive longe de esgotar a riqueza do tema da ioga, fio condutor de minha análise

sobre os contatos Oriente/Ocidente, e base religiosa do grupo que estudei. As iogas propiciam,

como já disse, um campo raro e fascinante para a compreensão da articulação das disciplinas do

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corpo e da mente, que abre grandes possibilidades para o questionamento da dicotomia

emoção/razão, tal como intuído recentemente por vários estudiosos, tema que procurei explorar

no capítulo 2. Interessaram-me neste caso, particularmente, as hipóteses ligadas à questão de se

pensar as emoções como “sancionadoras” das estruturas discursivas e culturais criadas, e não

como algo que as “atrapalha”, ou que é mero “resíduo”.

Também procurei compreender que tipos de concepção da pessoa estão envolvidos

com as práticas da ioga na Índia e em como os ocidentais imprimem suas próprias concepções de

pessoa à uma prática que parte de outros supostos neste terreno, objeto principal da etnografia

que realizei sobre o Siddha Yoga, apresentada no capítulo 3. A valorização de elementos

reflexivos, tal como colocada desde o Romantismo, é apresentada como a marca principal da

leitura ocidental que se faz das práticas ióguicas.

Realizei meu trabalho de campo ao longo do ano de 1997, frequentando

semanalmente os satsangs do Centro de Siddha Yoga da cidade do Rio de Janeiro e visitando no

mês de julho daquele ano o ashram do grupo em South Fallsburg, no estado de Nova York. O

formato dos satsangs, recheados de depoimentos pessoais sobre as experiências de devotos do

grupo, fez com que eu optasse por não fazer entrevistas formais com eles, embora também as

tenha realizado, ainda que em pequeno número. Meu trabalho de campo foi um trabalho de

observação e escuta daquilo que era apresentado espontaneamente dentro do grupo. Minha

presença como antropóloga certamente passou desapercebida dentro do grupo no Centro do Rio

de Janeiro. No ashram do Siddha Yoga em Nova York, contudo, conforme já mencionei em

outro momento, minha identidade de antropóloga foi colocada explicitamente.

Minha participação no grupo entre 1981 e 1982, como devota, foi um background

inestimável para este reencontro com ele, desta vez como antropóloga. A este respeito, quero

dizer que, se ter sido nativa, neste caso, auxiliou-me grandemente a ser antropóloga, não estou

entre aqueles que consideram que ser ou ter sido nativo é condição essencial para se fazer boas

etnografias, nem tampouco acho que ter sido ou ser nativo invalida qualquer possibilidade de

objetivar adequadamente o que se viu. Acho que os olhares são diferentes, produzem

conhecimentos diferentes, e que ambos são igualmente válidos, dependendo sempre, como diz o

mestre Otávio Velho, da sensibilidade do pesquisador. Fico com esta opinião. Considero uma

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sorte ter estado na academia em um momento de abertura suficiente para a convivência e

aceitação destas duas posturas, tão diferentes, em que pesem as disputas em torno da questão.

Com relação às fontes utilizadas, não posso deixar de fazer referência ao papel

essencial desempenhado pela Internet em meu trabalho. O recurso a esta mídia abriu-me

possibilidades de pesquisa absolutamente inimagináveis há alguns anos, poucos, atrás. A busca

por meio de palavras-chave em livrarias virtuais estrangeiras, a que fui levada em função da

quase inexistência de livros em português sobre os temas que eu me propunha a trabalhar, levou-

me a uma seleção dentro de um universo de aproximadamente 1200 títulos. A rapidez e a

facilidade de encomendar os livros, outra revolução permitida pelo veículo, sobretudo em um ano

de paridade entre a moeda nacional e o dólar, foi outro ponto que facilitou enormemente este

trabalho. Poderia dizer que, sem a Internet, não teria sido possível fazê-lo, sem sair do Brasil.

Além da pesquisa bibliográfica e do acesso aos títulos mais recentes dentro das diversas áreas

pesquisadas, a Internet também me permitiu ter acesso a jornais da imprensa indiana, que,

embora não utilizados por mim intensivamente, forneceram-me contudo algumas informações de

enorme valia no que diz respeito à construção da identidade indiana hoje. Embora tenha optado

por manter as fontes utilizadas no original no corpo do texto, coloquei em um apêndice sua

tradução. Não gostaria que este trabalho deixasse de ser entendido em meu país pela barreira da

língua, embora talvez tenha havido um certo preciosismo de minha parte a este respeito, dada a

pouca ou nenhuma circulação de dissertações e teses fora dos meios acadêmicos, e mesmo nele.

A leitura dos depoimentos de ex-devotos do grupo na Internet, embora não tenha sido

trabalhada da forma sistemática como eu planejara inicialmente, auxiliou-me também

enormemente na tarefa de construir hipóteses sobre o perfil dos devotos ocidentais do grupo e

sobre as razões de seus rompimentos e adesões a ele, bem como reconstituir diversos pontos da

trajetória do grupo no Ocidente desde sua chegada. Este material, riquíssimo do ponto de vista

sociológico, compõe hoje um dossiê de mais de 1000 páginas na Internet, ao lado de

depoimentos de ex-devotos de diversos outros grupos religiosos, constituindo uma espécie de

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10

Procom espiritual1. Sua análise minuciosa mereceria um trabalho à parte, que infelizmente não

tive tempo de realizar nesta oportunidade.

Em relação ao tema da religião, motivação principal de meu ingresso no Mestrado,

posso dizer que, ao final deste trabalho, faço minhas as palavras de Firth, para quem este domínio

de Deuses se afigura, antes de mais nada, como um domínio dos homens:

“To an anthropologist such as myself, therefore, religion, including ideas of God, is clearly a human construct. (...) religion is a human art. It has produced, like other arts, some of the greatest literary and intelectual constructs, analyses of thought and emotion, and stirring aesthetic experiences of a creative order in painting, poetry and music. (...) the asserted existence of an invisible, transcendent, omniscient, omnipotent being known as God is highly improbable. It is much more probable that such an assertion fits the higghly complex world of human imagining, and serves an array of human purposes not always consciously realized by people themselves. (...) One does not speak of a musical composition as true (unless in a highly technical sense) but as beautiful, powerful, aesthetically and emotionaly satisfying. And so it should be with the imaginative creations of religion” (Firth, 1996, p.10-11).

1 Agradeço a Anthony D’Andrea a indicação sobre a existência deste dossiê na Internet, assim como a caracterização do site em que ele se encontra como um Procom espiritual ( “Procom” é a sigla do serviço de defesa dos consumidores que se sentem lesados no Brasil).

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11

Capítulo 1: Encontros Oriente / Ocidente.

1.1) “Não podem representar a si mesmos: devem ser representados”.

É com esta epígrafe, retirada do 18 Brumário de Karl Marx, que Edward Said inicia

seu livro Orientalismo, buscando resumir o cerne da postura que caracterizou a atitude do

Ocidente em relação ao Oriente a partir do final do século XVIII, quando presume que tenha

surgido o orientalismo moderno. Esta disciplina, intimamente associada ao processo de expansão

imperialista sobre o Oriente, nada mais era, segundo este autor, que “... uma visão política da

realidade cuja estrutura promovia a diferença entre o familiar (Europa, Ocidente, “nós”) e o

estranho (Oriente, Leste, “eles”).” (Said 1990, p.54). A constituição deste “outro”, ainda que

variando ao longo do tempo, supôs frequentemente a criação de uma imagem que homogeneizava

suas características: “....os orientais eram em quase todos os lugares quase os mesmos”. (Id.,

p.48).

Na trilha do argumento principal de Said, gostaria de enfocar neste capítulo um outro

viés da produção de imagens do Oriente pelo Ocidente, que, embora também se aproprie daquele

como um “outro”, o faz com o intuito de estabelecer um diálogo com valores hegemônicos do

próprio Ocidente, e não para apoiar seus projetos de dominação. Este viés, que poderíamos

considerar contracultural, resultou em uma série de movimentos, iniciados com o Romantismo,

cujo interesse para meu trabalho está ligado ao fato de que serão eles os responsáveis pelo

estabelecimento de uma visão “positiva” do Oriente, que responderá em grande parte pela

difusão de suas religiosidades entre nós. Tratar-se-á aqui de mapear sucintamente os principais

momentos destas apropriações do Oriente que prepararam o terreno para a “representação de si

mesmos”, isto é, para a vinda de mestres orientais para o Ocidente, iniciada no final do século

XIX, com o objetivo de divulgar eles mesmos suas próprias tradições entre nós2.

Dentre os contatos entre “Oriente” e “Ocidente”, tomados dentro do discurso

orientalista muito mais como categorias culturais do que geográficas, interessar-nos-ão

2A ênfase dada aos aspectos da “representação de si mesmos” neste capítulo, procura, na linha da advertência feita por Marshall Sahlins, endossando ponto de vista defendido por Terence Turner, não deixar-se levar por um discurso sobre a alteridade que “tende a exagerar o poder que teriam as representações ocidentais de se impor aos ‘outros’,

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12

particularmente os processos ligados ao trajeto dos movimentos sectários hindus para os Estados

Unidos, a partir do final do século XIX, por ser este o trajeto inicial do Siddha Yoga, objeto da

etnografia apresentada neste trabalho. A vinda deste grupo para o Ocidente, ocorrida no início

dos anos 1970, embora marcada pelas injunções da Contracultura, por um lado, e pelas novas

concepções do nacionalismo hindu, pós-independência, por outro, não nos parece contudo

explicável apenas a partir destes marcos. A história dos primeiros movimentos sectários hindus a

se deslocarem para os Estados Unidos parece-nos trazer elementos essenciais para que se

compreenda muitas das questões que estarão em jogo nos deslocamentos de gurus indianos para o

Ocidente que se verificaram posteriormente. Entre elas, as que tratam das razões da adesão a

religiosidades que não foram as culturalmente herdadas e as formas como estas religiosidades são

absorvidas em contextos culturais distintos daqueles em que foram geradas.

A presença das tradições orientais no cenário religioso ocidental, afora todas as

transposições devidas a movimentos migratórios de populações asiáticas, é tributária, sem dúvida

nenhuma, da passagem de “serem representados”, iniciada nos marcos da dominação colonial, à

“representação de si mesmos”, cujo momento fundador pode ser localizado no Parlamento

Mundial das Religiões, realizado em 1893, em Chicago, quando pela primeira vez representantes

orientais puderam apresentar eles mesmos suas tradições diante de um público ocidental. Para

que tal ocorresse, contudo, foi necessário que todo um interesse pelo Oriente já houvesse sido

despertado anteriormente, o que de fato se verificou com as apropriações daquela região

realizadas a partir do movimento Romântico.

No caso que nos cabe analisar mais de perto, o da difusão do hinduísmo, vale

ressaltar que a este interesse presente no Ocidente sobre as religiões orientais vieram somar-se

outras razões, de dentro da própria Índia, articuladas a um conjunto de questões formuladas no

contexto de busca de afirmação de uma identidade hindu. Esta afirmação, que serviria de base ao

projeto de independência frente à dominação britânica, concretizado em meados do século XX,

também se propunha a reverter o quadro de enfraquecimento do hinduísmo frente à expansão das

tradições cristãs e muçulmanas na Índia3.

dissolvendo suas subjetividades e objetivando-os como meras projeções do olhar desejante do ocidente dominador” (Turner, apud Sahlins, 1997, p.123). 3 Um bom histórico e análise dos processos de afirmação da identidade hindu na Índia a partir do século XIX encontra-se em Clementin-Ojha e Gaborieau (1994).

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13

Assim, o que me parece ser digno de ênfase no caso da expansão das tradições hindus

é que sua presença no Ocidente, originalmente, foi tributária de dois tipos de processos: de um

lado aquele que respondeu pelo surgimento de um amplo interesse pelo Oriente entre camadas

letradas da Europa a partir de finais do século XVIII a assim chamada “renascença oriental”

resultante das primeiras traduções de textos orientais em línguas como o sânscrito, o zenda e o

árabe4; e, de outro, aquele que esteve na base da contestação ao domínio colonial britânico na

Índia, responsável pelo surgimento de uma outra “renascença”, a hindu, iniciada no começo do

século XIX pela ação de reformadores do hinduísmo5.

A atuação dos representantes das religiões orientais no Parlamento de Chicago pode

ser considerada como o momento inaugural de uma nova relação entre Ocidente e Oriente, que,

substituindo o modelo textual vigente até então, calcado na apropriação intelectual propiciada

pelas primeiras traduções de textos orientais para o Ocidente, instituiu a prática como modo

principal de conhecimento e aproximação. Os desdobramentos da participação de Swami

Vivekananda, representante do hinduísmo em Chicago, que resultaram na criação de diversas

Sociedades Vedanta nos Estados Unidos já no início do século XX, podem ser vistos como

paradigmáticos, em muitos aspectos, da atuação de mestres e grupos que se instalaram

posteriormente naquele país, com a preocupação específica de introduzir suas tradições entre

adeptos ocidentais, utilizando como instrumental principal para isto a perspectiva de uma prática

das mesmas.

4 No caso específico dos textos sânscritos, destacam-se os trabalhos de tradução pioneiros de Sir William Jones, considerado o “pai” do orientalismo. A partir da criação da Sociedade Asiática, em 1874, na cidade de Calcutá, ele dedicou-se à tarefa de tornar acessíveis para os europeus, em inglês, os textos fundamentais do hinduísmo, tendo traduzido, muitas vezes juntamente com Charles Wilkins e com a colaboração de eruditos hindus, a Bhagavad-Gitã (1875), o Hitopadesa (1787), os Sakuntala (1789), o Gita-Govinda (1792), e as Leis de Manu (1794), entre outros. Na França, o principal precursor dos estudos orientalistas foi Anquetil-Duperron, que traduziu ciquenta e quatro Upanishades entre 1786 e 1802. A primeira cátedra de sânscrito na Europa, por sua vez, foi criada no Collège de France, em 1814 (Varrene, 1990, p. 273). 5 Entre os principais reformadores do hinduísmo podemos citar Ram Mohum Roy, fundador em 1824 da Brahmo Samaj (Sociedade de Deus), organização que condenava os aspectos politeístas contidos nos Vedas e aceitava alguns aspectos do cristianismo; Keshub Chandra Sem, sucessor de Roy na Bhramo Samaj, que estabeleceu como símbolo da sociedade o tridente shivaíta, a meia lua muçulmana e a cruz cristã, simbolizando a abertura a outras religiões proposta pelo grupo; Dayananda Sarasvati, que criou em 1875 o Arya Samaj (Sociedade Arya), que pregava um retorno estrito aos Vedas e o expurgo de todos os traços posteriores incorporados às tradições hindus; e Rabindranath Tagore, que fundou uma universidade pan-índia em 1921, a Vishva Bharati, destinada a revelar e difundir as riquezas da cultura nacional hindu (Varrene, op. cit., p.248-255).

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Apropriações do Oriente durante o Romantismo

A primeira das apropriações do hinduísmo que nos interessa discutir foi a realizada

pelo movimento Romântico, sobretudo na Alemanha. Nesta, não apenas o hinduísmo, mas o

“Oriente” como um todo, parecem ter se prestado a apoiar uma revisão crítica do projeto

iluminista, em que se buscou contrapor à ênfase no indivíduo como valor universal aquilo que

punha em destaque o particular, conferindo-se estatuto privilegiado para as questões da

interioridade, do vivido e ao campo dos sentimentos, numa busca incessante de mecanismos que

contribuissem, de alguma forma, para a afirmação do indivíduo em sua singularidade.

Segundo Simmel “after the individual had been liberated in principle from the

rusty chains of guils, hereditary status, and church, the quest for independance continued

to the point where individuals who had been rendered independent in this way wanted

also to distinguish themselves from one another. What mattered now was no longer that

one was a free individual as such, but that one was a particular and irreplaceable

individual” (Simmel 1971a, p.222)

Este novo tipo de individualismo que penetrou a consciência do século XIX

através do Romantismo, apoiou-se em grande parte no conceito de Bildung, ou construção

de si, que “implicava a ênfase suprema na interioridade e na sensibilidade do coração. E

convidava o homem a buscar a felicidade dentro de si mesmo, ao orientar sua vida

prioritariamente em direção de uma fusão harmoniosa de elevação espiritual, refinamento

emocional e individualizada perfeição moral e mental” (Rosenberg, citado por Goldman,

1988, p.125, apud D’Andrea, 1996, p.14).

Este modelo, que parece ter acompanhado o desenvolvimento da pessoa burguesa,

construída, adquirida e culturalmente renascida, por oposição ao modelo já dado, atribuído, da

pessoa aristocrática (Cf.Duarte, 1995) foi aprimorado, em Simmel, através do conceito de auto-

cultivo, algo que não é meramente “...the development of a being beyond the morphological stage

(...), but development in the direction of an original inner core, a fullfilment of this being

according to the law of its own meaning, its deepest dispositions”(Simmel, 1971b, p.229).

Estas formas novas de conceber o indivíduo tiveram um papel central na

maneira pela qual o Oriente foi apropriado pelo romantismo, verificando-se aqui uma

Page 24: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

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questão que complexifica o ponto já mencionado de que o Oriente construído pelo

Ocidente no período da produção orientalista foi fundamentalmente um “outro”. Mais

uma vez, é Said que nos mostra que, se uma das formas de afirmação da identidade

ocidental se fez pela construção de uma alteridade em que o pólo oposto era o Oriente, ao

mesmo tempo, em muitos momentos, este Oriente será acionado enquanto detentor de

semelhanças com o Ocidente6. É o que ocorreu, a seu ver, em relação à apropriação das

religiões indianas por alguns românticos alemães, que as trataram como uma versão

oriental do panteísmo germano-cristão (Op. cit, 1990, p.77). Assim, podemos verificar

que tanto as semelhanças quanto as diferenças são construídas conforme as necessidades

de afirmação identitária, e sempre a partir da leitura ocidental que se faz do Oriente e

seus povos, e nunca pela versão que é dada por estes sobre si mesmos.

O exemplo fornecido por Said no que se refere à interpretação do Corão pelos

textos orientalistas é bastante esclarecedor neste sentido:

“A invariável tendência a negligenciar o que o Corão queria dizer, ou o que o muçulmano achava que ele queria dizer, ou o que os muçulmanos fizessem ou pensassem em quaisquer circunstâncias dadas, implica (...) que a doutrina corânica (...) era apresentada em uma forma que convencesse os cristãos. (...) Era com grande relutância que aquilo que os muçulmanos diziam que os muçulmanos acreditavam era aceito como aquilo que eles acreditavam. Havia uma imagem cristã cujos detalhes (mesmo sob a pressão dos fatos) eram abandonados o menos possível, e cujas linhas gerais nunca eram abandonadas” (Op. cit., p.70).

No caso da apropriação do hinduísmo pelo Romantismo alemão, parece ter ocorrido

um fenômeno semelhante, conforme se verifica neste trecho em que Schopenhauer7, ao comentar

as relações entre seu próprio pensamento e os Upanishades, não hesita em apontar seu interesse

6 Um bom exemplo deste ponto é a descoberta do indo-europeísmo no campo da filologia, no século XVIII, em que se buscou destacar as raízes comuns do sânscrito, do grego e do latim. A partir daí, puderam ser criados mecanismos identitários que aproximavam a Europa do Oriente “bom”, isto é, da Índia clássica ariana, e que a distinguiam do Oriente “ruim”, semítico. Os “arianos”, neste quadro, ficavam confinados à Europa e a uma parte específica do Oriente antigo. Sobre as evoluções da filologia enquanto ciência comparada e seu papel dentro do Orientalismo, cf. Said (1990, p.87-107). 7 Schopenhauer é considerado o ponto de partida para a construção da imagem de um “Oriente místico” no Ocidente, tendo se aproximado particularmente do hinduísmo e, dentro deste, das concepções do Vedanta. O filósofo alemão considerava a Índia como a pátria da tolerância e da verdadeira metafísica, em contraste com a tradição judaico-cristã, que acusava de fanatismo e de incompletude no sentido metafísico (Said, op. cit., 275-276).

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por aqueles como uma decorrência de sua adequação a suas próprias idéias: “If it does not seem

too vain, I migth express the opinion that each one of the individual and disconnected aphorisms

which make up the Upanishads may be deduced from this thought I am going to impart, though

the converse - that my thougth is to be found in the Upanishads - is by no means the case”

(Versluis, 1993, p.22).

Este tipo de formulação nos serve de ponte para a introdução de um outro conjunto de

questões, ligadas à discussão sobre o que de fato está em jogo nestes encontros e apropriações do

“Oriente” pelo “Ocidente”. O que se busca reconhecer é até que ponto as tradições orientais,

quando acionadas no Ocidente, fornecerão elementos de fato novos para suas culturas, ou apenas

servirão de pretexto, como já apontamos, para o reforço de certos valores, não-hegemônicos em

geral, já presentes dentro delas8.

Sem pretender me estender aqui sobre estas questões, mas tão somente indicar sua

importância, acho que merece registro o fato de que, sem dúvida, as apropriações românticas das

tradições hindus foram marcadas por esta tentativa de encontrar apoio para suas próprias

8 Uma boa introdução a este debate encontra-se em Campbell (1997). Neste artigo, o autor lança a idéia de que o Ocidente encontra-se diante de um processo de orientalização, verificável tanto em termos da expansão de uma teodiceia quanto de uma concepção imanentista da divindade caracteristicamente orientais, a seu ver. No entanto, ao desenvolver o argumento, o autor deixa claro que, embora chame a estes traços de “orientais”, eles já estariam presentes, na verdade, dentro de algumas correntes não hegemônicas do próprio pensamento ocidental, não tendo alcançando, por isto, até então, um bom grau de visibilidade entre nós. Nos termos do próprio Campbell: “ (...) não se está afirmando que alguma dessas crenças [que ele chamou de “orientais”] seja realmente nova. Pois, como a análise de Troeltsch sugere, a crença em uma força divina impessoal tem sida há muito tempo um ingrediente da tradição cristã ocidental - embora se deva dizer que evidência em favor da reencarnação é mais difícil de ser encontrada. O que é novo é o movimento dessas crenças de sua posição há muito tempo estabelecida enquanto característica de grupos cúlticos ou excêntricos para a sua posição atual na vertente principal do credo. (...) Essa é uma mudança significativa; não é tanto a aparição de novas crenças, mas sim a aceitação ampla de crenças que anteriormente eram confinadas a uma minoria” (1997, p.16). Assim, mesmo não sendo dominantes, estas direções culturais é que teriam aberto o caminho para a entrada e a absorção das tradições orientais entre nós, com as diversas adaptações que acompanharam este processo. Robert Bellah, a propósito de um outro aspecto das religiões orientais, parece defender ponto de vista semelhante: “Embora essas crenças [na unidade de todos os seres, apregoada pelas religiões orientais] sejam diametralmente opostas ao individualismo utilitário [marca central para ele da cultura norte-americana] para o qual o indivíduo é a realidade ontológica última , há elementos na tradição cristã aos quais elas não se opõem totalmente. A teologia cristã também se referia à unidade do ser e à necessidade de amar a todos os seres. O Novo Testamento fala da Igreja como um corpo do qual todos nós somos membros. No entanto, o cristianismo tendeu a manter o dualismo último de criador e criação, que as religões orientais suprimiram. Os místicos cristãos faziam às vezes afirmações (consideradas heréticas) que expressavam a unidade última entre Deus e o homem, e, de uma forma mediatizada, a unidade de Deus e o homem através de Cristo é uma crença ortodoxa. Não obstante, o cristianismo americano raramente enfatizou o aspecto da tradição cristã que destacava a unidade mais do que a distinção entre o divino e o humano, de tal modo que os ensinamentos orientais salientaram-se como amplamente divergentes” (1986, p.32).

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formulações. Ao apontar problemas na interpretação de alguns termos religiosos orientais por

Nieztche e Schopenhauer, Versluis comenta que “the ways on which they interpreted Buddhist or

Hindu texts tell us considerably more about Schopenhauer, or Nietzche, than about the texts

themselves” (Ibid., p.23).

Este tipo de questão pode ser situado num debate mais amplo dentro da antropologia,

relacionando-se a uma problemática que atravessa, na verdade, todas as situações de contato

cultural. Falar do eles está sempre relacionado a um aprofundamento do conhecimento que temos

sobre nós mesmos. Se nos distinguimos do outro que estudamos, estudá-lo também é estudar a

quem estuda, o que faz com que, ao menos ao nível epistemológico, a separação entre nós/eles se

torne problematizada.9 Da mesma forma, a apropriação de tradições culturais que não são

originalmente as nossas parece apontar inevitavelmente para algum tipo de articulação com

questões já colocadas por nós.

No caso específico da aproximação do Romantismo com as religiosidades hindus,

parece não haver dúvida de que ocorre um processo deste tipo, sobretudo no que diz respeito à

identificação de um inner core nos indivíduos, conforme descrito no conceito simmeliano de

auto-cultivo. Esta noção parece ter estado na base do diálogo com religiosidades como a do

Siddha Yoga, apoiada em tradições que sustentam, da mesma forma, a idéia de que existe um

self, um centro interior, a ser alcançado. O reconhecimento deste ponto comum, contudo, não

deve induzir ao equívoco de uma identificação mais ampla entre as duas concepções, uma vez

que, em uma delas, o ser é apontado como algo divino, dado e imutável, enquanto que na outra

ele é passível de aperfeiçoamento, é processo, movimento.

O que talvez pudéssemos afirmar, então, e apenas isso, é que a reflexão sobre o

indivíduo trazida pelo Romantismo contribuiu de forma significativa para a possibilidade de

diálogo com as religiosidades hindus em que a idéia da existência de um self distinto do eu e a

busca de meios para atingí-lo são traços característicos10. Além disto, o contraste estabelecido

entre iluminismo/universal e romantismo/particular, à mesma época, parece ter colocado em

9 Esta temática tem sido objeto de atenção especial por parte dos autores ligados à tradição reflexivista na antropologia, estando particularmente bem explicitada em Geertz (1983). 10 A própria concepção de verdade religiosa no Romantismo, não como um dado objetivo mas como algo que existe na subjetividade, conforme apontado por Reardon, sem dúvida conflui para as concepções que apoiam as técnicas de

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18

destaque os dois pólos que fornecem a chave para a compreensão ocidental de um conceito

central em tradições hindus como a do Siddha Yoga, o de tat tvam asi (tu és isso)11, em que o

micro se identifica com o macro, o atman com brahman.

Um outro ponto trazido pelo Romantismo que estará na base de sua “descoberta” das

tradições místicas hindus será a questão da valorização de elementos irracionais em detrimento

da via intelectual de conhecimento privilegiada dentro do iluminismo. A Lebensphilosophie

(filosofia da vida) “fica do lado do sentimento, do instinto, contra o intelecto; do lado dos

românticos e místicos contra os racionalistas; do lado do aristocratismo e dos homens geniais

contra o igualitarismo democrático e o filisteu” (Schmidt, 1945, p.247). Ou, conforme citação

feita por Campbell, o “romantismo é uma maneira de sentir, é um estado de espírito no qual a

sensibilité e a imaginação predominam sobre a razão; ele tende em direção ao novo, ao

individualismo, à revolta, ao escape, à melancolia, à fantasia”, sendo marcado também por uma

“insatisfação com o mundo contemporâneo, ansiedade incontrolável frente à vida, preferência

pelo estranho e curioso, pendor pelo sonho e pela fantasia, inclinação para o misticismo, e

celebração do irracional” (Campbell, 1995, p.181).

Neste sentido, o Oriente funcionou como o espaço ideal para o encontro do exótico e

do distante, e todas as suas tradições místicas como um campo fértil para a busca de mecanismos

outros, que não os da racionalidade, para o desenvolvimento de si: “the German poets had

recognized what later would become even clearer, that the Oriental traditions represented a

potencial alternative to the rationalism and constraints, the empirical blinders of the Enlightment”

(Versluis, op. cit., p.19).

Outras concepções românticas que serão potencializadas no encontro com o Oriente

serão a valorização da experiência, decorrente das concepções sobre a realidade única de cada

acesso à divindade nas tradições místicas hindus a partir da experiência individual (Reardon 1989, p.10, apud Luz, 1998, p.19). 11 Em seu artigo sobre as noções de pessoa e de “eu”, Mauss comenta que a Índia, a mais antiga civilização a ter noção do indivíduo, de sua consciência, do “eu”, criou o conceito de ahamkara, ou “fabricação do eu”, a partir da tradição revelada a seus rishis, os sábios videntes. A samkhya, escola que teria precedido o budismo, sustentou o caráter composto das coisas e dos espíritos, considerando que o “eu” seria a coisa ilusória; o budismo, em sua fase inicial, decretou que o “eu” era apenas um composto, divisível, a ser aniquilado no monge. As grandes escolas do bramanismo dos Upanishads, anteriores à própria samkhya e também baseadas em conhecimentos revelados, é que teriam reproduzido o diálogo de Vishnu mostrando a verdade a Arjuna, no Bhagavad Gita: “tat tvam asi” ou “tu és isso” (o universo) (Mauss, 1973, p.225-226).

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indivíduo e dos elementos que constituem sua história, e a recuperação dos ideais de

comunidade, que examinaremos com maior detalhe em outros momentos deste trabalho.

Apropriações do Oriente durante o Transcedentalismo

Na esteira das apropriações românticas do Oriente de interesse direto para nosso

trabalho, estará o surgimento, ainda na primeira metade do século XIX, do Transcendentalismo,

nos Estados Unidos, movimento literário grandemente influenciado pelos poetas e filósofos

alemães e ingleses daquela tradição. Mantendo-se na mesma linha de uma apropriação textual do

Oriente, seus dois principais representantes e responsáveis pelo surgimento do movimento,

Emerson e Thoreau, beneficiaram-se igualmente das primeiras traduções dos textos sagrados

orientais, que colocaram à disposição do público de língua inglesa, já nos finais do século XVIII,

alguns dos textos centrais da tradição hindu.

O encontro do Oriente dentro do Transcendentalismo representou uma contestação às

ortodoxias no campo religioso, abrindo as portas nos Estados Unidos para um tipo de postura

pluralista inédita até aquele momento12. Pela primeira vez foram reconhecidas como legítimas

naquele país outras fontes de inspiração religiosa, fora da tradição judaico-cristão. Todas as

religiões, dentro desta visão, teriam valor idêntico, refletindo de formas diferentes uma única e

mesma realidade transcendente, algo já colocado pelos idealistas alemães. Na síntese feita por

Versluis:

“...positive Orientalism really is part of the larger American struggle for religious and cultural pluralism in a nation that is often self-identified with Judeo-Chistianity alone. In this movement toward religious and cultural pluralism, Trancendentalism played a significant role, as it appeared just when the Western world, and especially the United States, was learning about traditions other than the Judeo-Chiristian. Transcendentalism, then, represents a transition from the outright rejection of Asian religions to the pluralist acceptance of them in America. The efforts of the Transcendentalists, conditioned as they often were by the tenor of their times, opened the way to

12 O interesse pelo Oriente nos Estados Unidos acompanhou de perto o que se verficou na Europa, onde se formaram diversos scholars americanos, sobretudo na Alemanha. A American Oriental Society foi fundada em 1842. Nas décadas de 1880 e 1890, iniciaram-se os estudos de religião comparada na maioria das universidades americanas. A perspectiva universalista dos Unitarianistas norte-americanos também contribuiu para a divulgação do Oriente naquele país, através da publicação de livros no último quartel do século XIX defendendo a veracidade de todas as religiões (Jackson, 1994, p.9-11).

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20

the publication of Asian writers and to the rooting of Asian traditions in America” (Ibid., p.166).

Que não se suponha, contudo, que esta “descoberta” do Oriente, e, mais

marcadamente, dos textos hindus, que despertaram um interesse mais direto de Emerson e

Thoreau, representou a entrada em um campo de idéias inteiramente novo para o pensamento

americano. Mais uma vez aqui, se faz necessário chamar atenção para o fato de que o Oriente que

se “descobre” é aquele que conflui para todo um tipo de reflexão já estabelecida anteriormente

dentro das próprias tradições ocidentais. Neste sentido, a novidade de Emerson e Thoreau estaria

no fato de que foi com eles que se viu pela primeira vez “a serious attempt at conjoining Asian

philosophical and religious teachings in Hinduism and Buddhism, and Western thougth”,

inaugurando um novo tipo de sincretismo (Id., p.36).

Neste texto de 1852, William Channing descreve da seguinte forma o

Transcendentalismo: “In part it was a reaction against Puritan Ortodhoxy; in part, an effect of

renewed study of (...) Oriental Pantheists, of Plato and the alexandrians, of Plutarch’s morals,

Seneca and Epictetus (...)” (Versluis, op.cit.., p.6). Considera-se assim a descoberta dos textos

orientais, iniciada nos anos 1840, sobretudo em Emerson, coetânea a um interesse pelos textos

platônicos e neo-platônicos que teriam, segundo a avaliação de muitos estudiosos, diversos

pontos de contato com os ensinamentos budistas e do Vedanta (Id., p.7). Mais uma vez aqui,

Oriente e Ocidente parecem ter se aproximado por suas semelhanças, e não por suas diferenças.

O interesse específico de Emerson por duas das três vias para a liberação

apresentadas na Bhagavad Gita - a do trabalho (karma ioga) e a do conhecimento (jnana ioga),

em detrimento da via da devoção (bhakti ioga) - parece confluir para a questão do intelectualismo

que marca estas primeiras aproximações do pensamento ocidental com o Oriente. A via do

trabalho é associada por Emerson à moral, e a da gnosis à iluminação. Conforme apontado por

Versluis, estas duas vias encontrariam um paralelo dentro da tradição mística cristã, sob a forma

da via positiva, ou a do caminho ativo, do trabalho, e a da via negativa, restrita à contemplação.

A via negativa incluiria e transcenderia a positiva, da mesma forma que a jnana ioga incluiria e

transcenderia a karma ioga (Id., p.56).

Este registro é importante por colocar em destaque o fato já apontado de que nestas

apropriações do Oriente o que muitas vezes está em jogo é encontrar apoio em outras tradições

Page 30: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

21

para elementos já presentes em certas correntes do pensamento ocidental, mas que não fazem

parte do mainstream dominante, como no caso das vias místicas dentro do cristianismo, com

muito pouca visibilidade, àquela época, frente às suas correntes mais ascéticas. Neste sentido, os

Transcendentalistas não inovaram, isto é, como todos os europeus que basearam seu orientalismo

apenas em textos, “[they’ve] interpreted Asian religious texts according to their particular bent.

Emerson and Thoreau abstracted, Johnson and Frotingham universalized, and others

Christianized” (Id., p.4).

A informação de que o interesse dos Transcendentalistas pelas religiões asiáticas

esteve relacionado à perspectiva de algumas heresias cristãs em relação ao calvinismo ortodoxo,

esclarece, neste caso específico, que tipo de corrente não hegemônica do pensamento cristão foi

apoiada pela apropriação de tradições orientais. Assim:

“(...) the Transcendentalist interest in Asian religions derived substancially from the Unitarian affirmation of what from the orthodox Calvinist perspective were Socinian, Arian, Pelagian, and Arminian heresies. The Socinian and Arian heresies which held that Christ was not fully divine (...) opened the way for Transcendentalists to affirm that Christ was not the only way to salvation, that Hinduism, Buddhism, and other world religions also were divine revelations. The Arminian and Pelagian heresies wich denied predestination and held that people could improve themselves and work toward salvation allowed the Transcendentalists to become interested in Hinduism, Buddhism, and other world religions that also affirm that we must work out our salvation for ourselves” (Id., p.6).

Embora o contato de Emerson e Thoreau com as religiões orientais tenha ficado

restrito à via textual, vale salientar, contudo, uma diferença importante entre ambos, sobretudo se

levarmos em conta os desenvolvimentos posteriores da apropriação ocidental do Oriente, que

passaria a se pautar por uma valorização da experiência, em todos os níveis. Neste sentido,

enquanto Emerson parece ter tido como meta principal “a conversion to a literary religion that

fuses all the world’s religion scriptures” (Id., p. 76), Thoreau, antecipando o acento na

experiência que se verificaria depois, “tried to live by what he had read and reconized as

perennial truth” (Id., p.79), conforme pode ser verificado através das práticas que descreve em

Walden.

Apropriações do Oriente pelas tradições esotéricas e ocultistas ocidentais

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22

O terceiro movimento na confluência entre Oriente e Ocidente de interesse para este

trabalho reúne as tradições ocultistas e esotéricas ocidentais, e diz respeito, na verdade, a toda

uma série de momentos de contestação às ortodoxias cristãs em que foram buscados caminhos

alternativos de contato com o sobrenatural. Estes movimentos, localizados em sua grande maioria

após a Renascença, oferecem muitas vezes o elo para que se possa entender o espaço que o

Oriente conquistou dentro do pensamento ocidental a partir do século XVIII. Ao explicar as

correspondências encontradas entre o pensamento romântico de Novalis e os Upanishades, René

Gérard formula esta questão de forma clara, fazendo-nos retornar às raízes acima mencionadas:

“L’obscure correspondance entre Novalis et les Oupanichads ne s’éclaire que si l’on cesse de vouloir l’expliquer par l’influence de l’Orient redécouvert à la fin du dix huitième siècle, et si l’on fait appel à cette influence indirecte qui n’a jamais cessé de s’exercer d’Est en Ouest à travers le néoplatonisme, les mystiques et illuminés de la Renaissance, aux ères des grandes négations religieuses. Or, jamais depuis la Renaissance l’occultisme n’a fleuri comme en cette fin du dix-huitième siècle. Affleurant dans le martinisme, le swedenborgisme, le hernhutisme de Zizendorf, le rose-crucisme et une multitude de loges plus ou moins illuminées, grossi par les adeptes du magnétisme animal, de l’hypnotisme, de somnambulisme, de la télépathie et autres phénomènes ‘miraculeux’ tenus pour spirituels, soutenu par tous les mouvements milénaristes qui annonçaient une nouvelle révelation, un nouvel âge d’or, l’occultisme déferle sur le pré-romantisme, touche tous les milieux et dépose dans l’élite (...) une réserve de ferments mystiques que le romantisme sera long à epuiser” (apud Versluis, op. cit., p.21).

Este contato com o Oriente nunca interrompido pela tradição ocultista será

revivificado na segunda metade do século XIX com a criação da SociedadeTeosófica13, em 1875,

por Helena Blavatsky e Henry Olcott, atualizando um interesse pelo Oriente enquanto

propiciador de um contato com o extraordinário e o sobrenatural fora dos quadros da religião

cristã dominante.

13 Pode-se dizer que a teosofia teve origem no Ocidente com Pitágoras, tendo sido elaborada posteriormente por figuras como Platão e Plotino bem como pelo movimento neoplatônico de Alexandria, reconhecendo-se suas afinidades com as tradições gnósticas e cabalísticas e com o sufismo islâmico. Na Europa, ela reapareceu intermitentemente sob diferentes rótulos: nas doutrinas alquímicas e herméticas e em fraternidades como a Franco-Maçonaria e o Movimento Rosacruz. No período moderno como um todo, o termo teosofia é associado a figuras

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23

Segundo Needleman, tanto o ocultismo, em suas diversas variantes, quanto as

religiões orientais, apresentariam maiores recursos de linguagem para introduzir a questão do self

isto é, de uma instância internalizada, por vezes sacralizada, do eu para um público

secularizado. A observação de Needleman nos parece importante por indicar que a temática do

self não é de modo algum estranha à tradição judaico-cristã, dando-nos uma pista para a

compreensão das razões que explicam porque é que este elemento não foi acionado, apesar disto,

a partir daquela tradição. Assim:

“The religious traditions of the West have been of little help in supporting or deepening this quest for self-knowledge initiated by the development of scientific psychology. Although the spirituality of the Western religions contains a profound knowledge of the self, these traditions have on the whole been unable to comunicate this knowledge in a language and under conditions that can be accepted by the contemporary secularized seeker” (1995, p.xxiv).

Assim, sem negar que a tradição cristã conhecesse a questão do self, considera que,

por uma deficiência de linguagem, ela não pode apoiar a reflexividade entendida aqui como a

busca de autoconhecimento. Neste sentido, o que muitas espiritualidades esotéricas parecem ter

propiciado foi “an approach to self-knowledge separable from prior acceptance of a system of

religious belief and moralism” (Ibid., p. xxiv).

O renascimento da tradição ocultista representado pela criação da Sociedade

Teosófica significou também uma capacidade de convivência com o pensamento científico da

época, o que, naquele momento, ainda representava um sério problema para o campo religioso

cristão. Segundo Needleman, os ensinamentos esotéricos, na verdade, “give to the faculties of

knowing, imagination, observation, and speculation places these [esoteric] movements, at least as

regards their overall tone and atmosphere, closer to the modern scientific temperament than to the

religions of faith, trust, and hope that have on the whole defined Western religious culture”. (Ibid,

p.xxiii).

A Sociedade Teosófica, cujos desdobramentos se estenderam à própria Índia, para

onde deslocou sua sede em 1882, inaugurou um fenômeno que ganharia expressão

como Meister Eckart, Giordano Bruno, Emanuel Swedenborg e Jacob Boheme. O Movimento Teosófico a que nos referimos neste capítulo é o criado no final do século XIX por Helena Blavatsky (Sellon , Weber, 1995, p.311- 312).

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24

posteriormente, o da formação de mestres ocidentais nas tradições orientais. Embora os textos

que compuseram o cânone da Sociedade tenham sido produzidos pela própria Helena Blavatsky,

o que foi motivo de polêmicas e acusações contra ela, nas quais foi questionada a forma

“revelada” sob a qual teriam sido transmitidos, seu conteúdo misturou influências de diversas

escolas do pensamento filosófico e religioso hindu14, contribuindo assim para a difusão das

tradições orientais que preparou o terreno para a representação de si mesmos de que trataremos

no próximo ítem.

Ainda dentro da tradição ocultista, Réné Guénon (1896-1951), já na primeira metade

do século XX, foi uma figura importante no que diz respeito à divulgação do hinduísmo, apesar

de ter sofrido, da mesma forma que Helena Blavatsky, acusações que colocavam em dúvida a

confiabilidade de seus conhecimentos15. O interesse de Guénon, contudo, para além deste tipo de

discussão sobre sua obra, nos parece residir na forma como as religiosidades orientais foram

absorvidas por ele, fornecendo-nos, mais uma vez, um exemplo de que a busca do Oriente

empreendida pelo Ocidente nos dá elementos para desvendar sobretudo o imaginário do próprio

Ocidente. Assim, após anos de contato com as tradições taoístas, hinduístas e sufistas16, a

concepção apresentada por Guénon sobre realização espiritual, estará eivada de princípios

14 Em que pesem as polêmicas em torno da autenticidade dos ensinamentos difundidos pela Sociedade Teosófica, sua atuação foi importante não apenas pelo tipo de aproximação positiva com o Oriente que vem sendo objeto de nossa atenção, mas também pelo papel que desempenhou no que diz respeito ao fortalecimento de tradições orientais dentro do próprio Oriente. Neste sentido, destacamos a atuação de Henry Olcott (1832-1907), co-fundador da Sociedade com Blavatsky (1831-1891), na recuperação da tradição budista no Ceilão (atual Sri Lanka) por meio do estabelecimento de escolas e universidades budistas no país a partir de 1880 (Sellon e Weber 1995:316); e as atividades na Índia de Annie Besant (1847-1933), também seguidora da Sociedade, que fundou em 1898 uma de suas mais importantes universidades, a Benares Hindu University, com o intuito de contribuir para a recuperação do hinduísmo clássico, que considerava ideal em matéria de religião. O reconhecimento de Besant nos meios hindus pode ser avaliado pelo fato de que sua militância em favor da independência da Índia levou-a a presidir o Indian National Congress durante algum tempo. (Varrene, op. cit., p.278). 15 Os meios acadêmicos franceses sempre tiveram uma relação tensa com Guénon e sua obra, considerando-a ela própria uma nova forma de ocultismo, sobretudo pela ausência de referências confiáveis em relação às fontes utilizadas. Um bom exemplo disto foi a recusa, em 1921, de seu livro Introduction générale à l’étude des doctrines hindoues para obtenção de grau acadêmico na Sorbonne (Borella, 1995, p.333-335). Apesar disto, seu reconhecimento nestes mesmos meios acabaria por ocorrer de forma indireta, posteriormente, através da influência que seu trabalho iria exercer sobre um dos principais estudiosos do hinduísmo na França, na segunda metade do século XX, o sociólogo Louis Dumont (ver a este respeito Lardinois, 1995). Além do já mencionado Introduction génerale... Guénon também publicou outros dois livros sobre o hinduísmo L’homme et son devenir selon le Vedânta e Études sur l’Hindouisme (Feuga, Michaël, 1998, p.121). 16 A educação de Guénon em sua infância e adolescência na França incluiu estudos sobre estas três tradições. Ao longo de sua vida, contudo, ele faria uma opção definitiva pelo sufismo, ao qual foi iniciado em 1912, o que certamente influenciou sua decisão de tornar-se cidadão egípcio, em 1949 (Rawlinson, 1998, p. 71 e Borella, op. cit.., p. 334).

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25

claramente esboçados durante o romantismo. Para ele, o principal objetivo da evolução espiritual

seria “to lead one to the attainment of one’s true destiny, namely, one’s real unification with

one’s own essence: ‘become what you are’, which assumes that now we are not and that modern

individuals ‘remain outside’ of their essences, which is precisely the meaning of the word

existence (from ex-sistere, ‘remain out of’)” (Borella, 1995, p.346).

Poderíamos então avançar, como marco cronológico tentativo para a retomada de

contatos entre Oriente e Ocidente ocorrido sob a égide da expansão imperialista, um primeiro

momento, situado entre o final do século XVIII e a primeira metade do século XX, em que a

imagem construída do Oriente esteve para além de todas os empreendimentos examinados por

Said, de constituição do Oriente como um outro a ser dominado amplamente referida ao

ideário romântico, no qual a construção do self e todos os temas interconectados a ela, como o da

interioridade, singularidade e perfectibilidade, receberão grande destaque. Estes temas, ao serem

cruzados com os da religiosidade e da espiritualidade, fornecerão pistas importantes para a

compreensão dos novos movimentos religiosos que se afirmarão no Ocidente a partir da segunda

metade do século XX, quando deixarão de ser objeto de interesse apenas de uma elite para

alcançar segmentos quantitativamente muito mais expressivos da população.

1.2) A “representação de si mesmos”

A resposta a estas apropriações do Oriente realizadas pelo Ocidente desde finais do

século XVIII só iria se iniciar em finais do século XIX a partir do Parlamento Mundial das

Religiões, realizado em Chicago, em 189317. Neste, destacaram-se as participações de Swami

Vivekananda e de Soyen Shaku, cujo impacto possibilitou, respectivamente, a instalação das

primeiras Sociedades Vedanta e centros de Zen Budismo nos Estados Unidos, inaugurando-se um

novo momento de contato entre Oriente e Ocidente. Esta nova fase foi marcada pela passagem de

17 O Parlamento Mundial das Religiões, realizado paralelamente à Exposição Universal de 1893, foi uma iniciativa de correntes liberais protestantes dos Estados Unidos, em que se buscou a participação de porta vozes das principais religiões mundiais para falar. O evento, ainda que repudiado pelos grupos religiosos mais ortodoxos tanto da Europa quanto dos Estados Unidos, representou um estímulo importante para o prosseguimento dos estudos de religião comparada nos meios universitários daqueles países e para a continuação da publicação de traduções de textos orientais (Ellwood, 1987, p.20). Recentemente, o Parlamento tem sido avaliado como um marco do fim do triunfalismo protestante na América, e da afirmação da perspectiva religiosa pluralista que ganhou corpo naquele país ao longo do século XX (Cf. Seager, 1995).

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26

uma relação textual18, empreendida por Românticos, Transcendentalistas e Ocultistas, para uma

relação prática, possibilitada pela instalação das primeiras instituições dirigidas por mestres

orientais voltadas para o ensino de suas religiões para devotos e discípulos ocidentais19.

A construção de imagens do Ocidente pelo Oriente

A atuação de representantes do campo religioso teve importância estratégica no

percurso realizado para contrapor às imagens criadas para fortalecer e justificar a dominação do

Oriente pelo Ocidente uma imagem positiva do Oriente. Conforme já apontamos, este esforço

encontrou apoio dentro de algumas vertentes do próprio pensamento ocidental, e mesmo da

produção classificada como orientalista. O que nos interessa destacar agora, contudo, é que esta

“representação de si mesmos”, cujo início estamos localizando no século XIX, trouxe consigo a

construção, desta vez pelo Oriente, de um conjunto de imagens do Ocidente, mostrando que esta

clivagem Oriente/Ocidente não ficou restrita a processos simbólicos apenas do Ocidente.

Neste conjunto, destacava-se a visão sobre o materialismo ocidental em oposição à

espiritualidade do Oriente, em geral, e da Índia, em particular. Vivekananda acreditava que as

lideranças hindus não deveriam titubear em utilizar-se destas diferenças em benefício de ambos

os lados: “You must go out and exchange our spirituality for anything they have to give us; for

the marvels of the region of Spirit we will exchange the marvels of the region of matter” (apud

McKean, 1996, p.282) . A Índia é vista, assim, como tendo a missão de curar a civilização

ocidental dos males do materialismo.

18 Uma exceção notável a esta postura textual que preveleceu nas apropriações do Oriente realizadas ao longo do século XIX, foi Richard Francis Burton (1821-1890). Este inglês, que falava mais de vinte línguas e fez uma das primeiras versões para o inglês das Mil e Uma Noites e do Kama Sutra, teve uma vivência profunda e pessoal do islamismo, convertendo-se ao sufismo. Burton, primeiro ocidental a fazer uma peregrinação à Meca, pode ser visto como um precursor das viagens iniciáticas para o Oriente, vendo a si mesmo como um peregrino, a quem “poucas coisas importavam além do objetivo místico”, incorporando assim em sua própria vida uma das metas centrais do Mantiq ut-tayr, principal épico sufista (Rice, 1990, p.469). 19 No caso do zen japonês, foi a participação de Soyen Sahku no Parlamento Mundial das Religiões que ensejou a ida para os Estados Unidos de seu aluno D. T. Suzuki, figura decisiva para a difusão do zen no Ocidente. Em 1896, Soyen organizou uma conferência que reuniu cristãos e budistas no Japão e foi outro de seus discípulos, Sasaki Shigemitsu, que estabeleceu, em 1930, a primeira Sociedade Budista da América, mais tarde conhecida como o First Zen Institute of New York (Ellwood, op, cit., p.21-22).

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27

Esta dualidade entre os dois hemisférios permaneceu presente nas avaliações de

outros renunciantes hindus que seguiram a trilha aberta por Vivekananda em direção ao

Ocidente, constituindo a Índia como sua antítese :

“Brahman is the only reality in India, matter is the only reality in the West; self-realization is the ultimate goal in India, power and domination are the ultimate goals in the West; Indians pursues happiness through self-restrain, Westeners pursue pleasure through self-indulgence; renunciation brings joy to Indians, possession brings joy to Westeners; nonviolence is the Indian ideal, killing and conquest is the Western ideal” (Swami Sivananda, apud McKean, op. cit., p. 167)20.

Estas avaliações parecem reproduzir o mesmo procedimento essencialista utilizado

pelo discurso orientalista, só que, agora, no caminho inverso. Contudo, no caso do hinduísmo,

veremos que a construção que se fará do outro para afirmar a própria identidade, longe de

simplesmente apresentá-lo como uma negação, implicará também em uma série de negociações

de que farão parte tanto a adoção de valores deste outro quanto a flexibilização de alguns de seus

valores próprios, criando-se assim, na tentativa de recuperar uma identidade anterior ao contato

colonial com o Ocidente, uma identidade na verdade nova, por distinguir-se do outro ao mesmo

tempo em que incorporando alguns de seus valores e procedimentos. A “resposta” do Oriente às

imagens que lhe foram atribuídas pelo Ocidente, no caso hindu que estamos analisando, surgiu,

portanto, eivada de complexidade; não bastou negar o Ocidente para afirmar-se, foi preciso

também incorporar seus traços, apropriar-se de seus procedimentos.

Podemos apresentar como exemplo deste fenômeno as primeiras incorporações de

uma postura missionária dentro do hinduísmo, inspiradas em grande parte nas experiências que

cristãos e muçulmanos estabeleceram na Índia, e que se constituiram como resposta a estas; a

absorção de mecanismos de gestão e de comunicação tipicamante ocidentais por parte de grupos

sectários indianos com atuação dentro e fora da Índia; a atuação destes movimentos sectários na

sociedade através de atividades de assistência social calcadas em modelos tipicamente ocidentais;

e a integração de figuras (santos) cristãs e muçulmanas à tradição hindu, buscando afirmar um

caráter universalista através deste procedimento. Este último elemento parece ter desempenhado

20 Swami Sivananda foi o fundador da Divine Life Society, movimento criado em 1937, em Rishikesh, que se expandiu para o Ocidente no final da década de 1950.

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28

um papel decisivo naquilo que poderíamos considerar como uma das estratégias de expansão de

uma religião que, contudo, formalmente, não admitia praticar o proselitismo21.

A Renascença Hindu e a Missão Ramakrishna

O movimento Ramakrishna, responsável pela inauguração da representação de si

mesmos hindu no Ocidente, teve diversos de seus líderes, a começar por Swami Vivekananda,

ligados ao Brahmo Samaj, associação política com atuação decisiva na assim chamada

“renascença hindu”. A atuação de Vivekananda no Parlamento Mundial da Religiões, inscreveu-

se numa perspectiva de responder e contrapor-se à imagem difundida no Ocidente sobre a Índia,

sobretudo pelos missionários cristãos, fortalecendo uma identidade que estava necessitando ser

restaurada dentro da própria Índia naquele momento. Fazê-lo, contudo, implicou,

paradoxalmente, na necessidade de empreender algumas adaptações, conforme apontamos, na

21 A presença do proselitismo dentro das tradições hindus, em que pese esta auto-imagem de neutralidade religiosa, esteve presente na Índia pelo menos desde o final do séc. XIX, quando a introdução da prática do suddhi, ritual de purificação originariamente destinado aos brâmanes, passou a ser usada como meio de (re) conversão ao hinduísmo de cristãos e muçulmanos. No que diz respeito aos estrangeiros, a questão do proselitismo e da conversão ao hinduísmo, não se colocaria, ao menos teoricamente, por entrar em conflito com a própria concepção do que é ser hindu, algo que remete a um sistema não apenas religioso, mas socio-religioso, estando associado apenas a quem nasce na Índia. Assim, conforme explicação de Hulin e Kapani: ... “ce qu’on appelle l’hindouisme (mot crée par les anglais vers 1830) ne correspond pas à un domaine séparé de la vie sociale, comme c’est le cas pour la religion de nos jours en Occident. L’hindouisme est essentiellement et indissolublement un système socio-religieux. Le mot retenu en sanskrit (...) est dharma ce qui, sans contredire l’idée de religion, signifie plus précisement le fondement cosmique et social, la norme régulatrice de la vie. Il s’agit d’une loi immanente à la nature des choses, inscrite à la fois dans la société au fond de chacun de nous. Poser à un hindoue la question: ‘Quelle est votre réligion?’ revient donc à lui demander: ‘Quel est votre way of life?’Plus complètement, en effet, c’est le mot composé varna-asrama-dharma qui définit le contenu de la religion hindoue, c’est à dire, outre la morale générale (sadharana-dharma), les devoirs particuliers qui incombent à chacun en fonction de son appartenance à telle ou telle classe sociale, en fonction de l’étape ou stade de vie où il se trouve et, bien entendu, de son âge et de son sexe” (1993, p.375). Contudo, no caso dos estrangeiros em busca de iniciação religiosa através das seitas hindus, a questão se coloca de uma outra maneira: “Un étranger, né des parents non hindoues, ne peut évidemment entrer dans ce système socio-religieux. Il ne le demande d’ailleurs pas. Ce qui l’interèsse, c’est l’accès aux ashram, aux guru. C’est de devenir lui-même un renonçant, un sannyasin, un guru. Ici la voie est parfaitement tracée: celle-là même qui suivent ceux des hindoues qui ont renoncé à la vie familiale, avec les droits et devoirs qu’elle comporte, et sont devenus des ‘morts sociaux’, aus sens de Louis Dumont. Cela nous permet de clarifier la question du prosélytisme. A l’intérieur du système, elle ne se pose même pas. En revanche, dans le cadre du renoncement, certains sadhu ou leurs émules occidentaux peuvent avoir une activité missionaire. C’est le cas de la célèbre Ramakrishna Mission, fondée par Vivekananda, de Maharishi Mahesh Yogi et de sa ‘méditation transcedentale’, de Sivananda, Yogananda et de nombres d’autres guru, authentiques ou non, dont on entend parler en Occident” (Id., p.387).

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29

própria identidade. Neste sentido, vale registrar que os indivíduos que levaram a cabo a tarefa de

modificar as bases do diálogo com o Ocidente, possuíam geralmente uma sólida formação nas

principais tradições filosóficas e religiosas ocidentais.

A representação de si mesmos levada a cabo pelos hindus dentro da própria Índia

implicou também na reelaboração de sua identidade em termos que incorporaram elementos

modernizantes em detrimento de tradições mais ortodoxas, como a queimação de viúvas e o

casamento de crianças. Considera-se que estas modificações foram decorrentes da absorção de

críticas ocidentais a estes procedimentos por parte das elites hindus que receberam educação em

escolas cristãs durante a dominação britânica.

Estas modernizações não impediram, contudo, que os grupos sectários que se

deslocaram para o Ocidente assumissem um duplo papel a partir de então, prestando-se,

internamente, à afirmação da tradição religiosa, mesmo que com algumas reformas, enquanto

que, no Ocidente, tornaram-se instrumento da destradicionalização no campo religioso. Foi este o

caso da Missão Ramakrishna.

A Missão Ramakrishna pode ser vista como paradigmática dos movimentos sectários

hindus que tentaram se implantar no Ocidente com o objetivo específico de atingir um público

ocidental. O movimento, liderado por Vivekananda22, foi o primeiro a fazê-lo, conseguindo

manter-se até hoje e firmando um modelo de expansão adotado por diversos dos movimentos que

lhe sucederam. Este modelo incluía a manutenção de centros tanto nos Estados Unidos quanto na

Índia23, a possibilidade de ordenação de monges ocidentais e o partilhamento da gestão dos

centros no Ocidente com devotos ocidentais, ainda que geralmente sob a liderança de monges

hindus24.

22 A Missão Ramakrishna foi criada por Swami Vivekananda (1863-1902) em 1898, dois anos após a morte de Ramakrishna (1837-1896). Com sede estabelecida em Belur Math, mosteiro às margens do Ganges, próximo a Calcutá, a Missão tinha como duplo objetivo a salvação individual e a doação de comida, educação e sabedoria espiritual para o povo. Esta perspectiva humanitária, de reforma social, introduzida por Vivekananda, contrariava a visão de muitos monges do movimento, que viam a auto-realização como único objetivo a ser buscado pelos devotos. (Jackson, 1994, p.31-32). 23 Praticamente todos os grupos que se deslocaram posteriormente para o Ocidente mantiveram sedes na Índia, como o próprio Siddha Yoga, o Movimento Hare Krishna, a Divine Life Society e a Self Realization Fellowship. 24 O Movimento Ramakrishna vivenciou alguns momentos de tensão nos Estados Unidos justamente em torno desta questão, uma vez que as lideranças do movimento na Índia recusaram-se a aceitar a indicação de discípulos ocidentais para a direção das Sociedades Vedanta nos Estados Unidos. O problema explicitou-se claramente por ocasião da substituição de Swami Paramananda, falecido em 1940, quando duas monjas norte-americanas, Gayatri

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30

Ramakrishna desprezava as distinções de casta e considerava sua doutrina, baseada

nos princípios do advaita vedanta25, como igualmente válida para cristãos e muçulmanos, sem

que estes tivessem que passar por nenhum tipo de conversão ao hinduísmo: “No discutáis sobre

las doctrinas y las religiones. No hay más que una. Todos los ríos van al océano... La gran

corriente de agua traza a lo largo de la pendiente, según las razas, las edades y las almas, un lecho

diferente; el agua es siempre la misma...” (apud Varrene, 1993, p.261).

Embora Vivekananda tivesse seguido de perto os ensinamentos de Ramakrishna,

diferenças significativas apresentavam-se entre ambos. Segundo Jackson, Ramakrishna, oriundo

de uma família camponesa da região de Bengala, podia ser considerado um representante da

“velha Índia”, dos valores da sociedade camponesa mística e tradicionalista, voltado para a busca

interior de Deus, ao passo que Vivekananda, pertencente à classe média de Calcutá, advogado,

educado em colégios de missionários cristãos, representaria a “Nova Índia”, os valores da

sociedade urbana e uma perspectiva que associava ao misticismo tradicional a necessidade de

reformas na sociedade hindu, encarando a religião como um meio de atuação também sobre a

realidade externa. (Jackson, 1994, p.22)

Neste sentido, Vivekananda aparece como uma figura central para a mediação entre

estes dois mundos, e, de certa forma, paradigmático de um certo tipo de junção entre Oriente e

Ocidente, por reunir em sua pessoa concepções tidas como típicas dos dois mundos. A explicação

de Jackson sobre o significado do “vedanta prático” pregado por Vivekananda é bastante

esclarecedora neste sentido:

“He sometimes spoke of his message as ‘practical Vedanta’, an apt description in the sense that he advocated both individual enlightment and social reform. A rising number of Indians favored social reform and many more proclaimed themselves Vedantists, but few nineteenth-century Indians championed both social reform and Vedantism. (...) At the very least, his education and years in the West helped clarify and mold his ideas concerning social reform” (Ibid., p.31).

Devi e Sister Daya, foram impedidas de substituí-lo na chefia dos centros de Boston e Los Angeles (Jackson, op. cit., p.64). 25 O advaita vedanta é a principal escola do Vedanta, fundada por Shankara no séc. IX dc. Esta escola, não-dualista, baseou seus ensinamentos na seleção de 14 Upanishades produzidos entre os séculos VIII e VI a.c., de onde foi retirada a célebre frase tat tvam asi (“tu és isso”). Os Upanishades são considerados os últimos Vedas, significado do termo “Vedanta”. Os primeiros hinos védicos remontariam a cerca de 1500 a.c.

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31

A atuação de Swami Vivekananda no Parlamento Mundial das Religiões

No Parlamento Mundial das Religiões, seu discurso, reproduzido na íntegra em

Ellwood (1987, p.51-61), apresentou um conjunto de questões voltadas para o esclarecimento do

que seria o hinduísmo, cujo alvo principal são as interpretações correntes deste realizadas no

Ocidente, sobretudo pelas correntes cristãs. O hinduísmo é difinido em seu discurso como uma

tradição multifacetada, dentro da qual diversos tipos de religiosidade teriam expressão. Ao invés

desta pluralidade ser vista como fraqueza, algo muitas vezes colocado por seus críticos, ela é

apresentada como um sinal de flexibilidade: “From the high spiritual flights of philosophy (...),

from the atheism of Jains to the low ideas of idolatry and the multifarious mythologies, each and

all have a place in the Hindu’s religion” (Ibid., p. 51).

Sua ênfase recai em seguida na explicação sobre as revelações contidas nos Vedas,

particularmente no que diz respeito à doutrina do karma, cuja evidência é afirmada a partir da

possibilidade de acesso a níveis mais profundos de consciência, atingidos por mestres espirituais

(os rishis), nos quais se encontrariam os traços de vidas passadas.

Vivekananda se preocupa também em contrastar os princípios desta doutrina com o

cristianismo, salientando como diferença importante entre ambos a inexistência da noção de

pecado entre os hindus, uma vez que todo ser humano é visto como dotado de uma alma divina,

que constitui o cerne de sua identidade e aquilo que torna a todos “the sharers of immortal bliss,

holy and perfect beings”. Assim, comenta: “Ye divinities on earth sinners? It’s a sin to call a man

so. (...) You are souls immortal, spirits free and blest and eternal; ye are not matter, ye are not

bodies. Matter is your servant, not you the servant of matter” (Id., p.55).

Outro ponto que também se presta a um contraponto com o cristianismo, embora este

não seja mencionado diretamente, é o da convergência das concepções hindus com as posições da

ciência, não havendo nenhum impasse a ser resolvido entre ambos: “Manifestation and not

creation is the word of science of today, and the Hindu is only glad that what he has cherished in

his bosom for ages is going to be taught in more forcible language and with further light by the

latest conclusions of science” (Id., p.58).

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32

A explicação sobre a bhakti (devoção) como um fim em si mesmo, independente das

expectativas de recompensa neste ou em outro mundo, procura recuperar a idéia do amor

incondicional a deus como um ítem indispensável no percurso espiritual.

Em seguida, destaca a questão da experiência como elemento central na tradição

hindu, em oposição à ênfase em aspectos doutrinários: “this is the very center, the very vital

conception of Hinduism. The Hindu does not want to live upon words and theories; if there are

existences beyond the ordinary sensual existence, he wants to come face to face with them” (Id.,

p.56).

Apesar da ressalva inicial em relação à variedade de tradições englobadas pelo termo

hinduísmo, Vivekananda propõe à certa altura uma definição geral sobre o que seria a religião

dos hindus, apresentando-a como “a constant struggle to become perfect, to become divine, to

reach god and see God, and in this reaching God, seeing God, becoming perfect, even as the

Father in heaven is perfect, consists the religion of the hindus” (Id., p.56). Esta noção de

perfectibilidade, que parece aproximar-se da noção de perfectibilidade valorizada no Ocidente a

partir do movimento Romântico, aparece entretanto claramente associada aqui à idéia de chegar a

Deus, contrastando assim com a idéia romântica de que a perfectibilidade é um anseio que faz

parte de um processo que nunca alcança um fim.

O politeísmo na Índia, tantas vezes condenado pelos missionários cristãos é

simplesmente negado: “There is no polytheism in India” (Id., p.58). A tese de Vivekananda a este

respeito é a de que a multiplicidade de deuses acionados pelas tradições populares, estreitamente

associada às práticas de idolatria, nada mais são do que parte de uma estratégia adaptada aos

diferentes estágios de desenvolvimento espiritual de cada um. Para algumas, o uso de imagens

facilitaria a chegada a uma compreensão sobre a realidade última de Deus, não havendo por isto

qualquer problema em relação à sua utilização. Assim, comenta:

“The whole religion of the Hindu is centered in realization. Man is to become divine,

realizing the divine, and, therefore, idol, or temple, or church, or books, are only suports, the

helps, of his spiritual childhood.” E continua: “External worship, material worship, says the

Vedas, is the lowest stage, struggling to rise the high; mental prayer is the next stage, but the

highest stage is when the Lord has been realized”. Assim, continua, “If a man can realize his

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33

divine nature with the help of an image, would it be right to call it a sin? Nor, even when he has

passed that stage, should he call it an error?” (Id., p.59) .

O que é visto como idolatria por parte dos críticos do hinduísmo é analisado por

Vivekananda como parte de processos simbólicos essenciais ao funcionamento do campo

religioso, e, por isto mesmo, presentes em qualquer tradição, inclusive no cristianismo:

“Why does a Christian go to church? Why is the cross holy? Why is the face turned toward the sky in prayer? Why are there so many images in the Catholic church? Why are there so many images in the minds of Protestants when they pray? My brethren, we can no more think about anything without the material image than we can no more live without breathing. And by the law of association the material image call the mental idea up and vice versa. (...) As we find that somehow or other, by the laws of our constitution, we have got to associate our ideas of infinity with the image of a blue sky, or a sea, some cover the idea of holiness with an image of a church, or a mosque, or a cross. The Hindus have associated the ideas of holiness, purity, truth, omnipresence, and all other ideas with different images and forms” ( Id., p.58-59).

Com base neste raciocínio, considera que somente o hinduísmo, entre todas as

religiões, se preocuparia em contemplar os diferentes estágios espirituais das pessoas,

propiciando-lhes uma gama variada de mediações para a compreensão do caráter divino da

natureza humana, ao mesmo tempo em que critica a rigidez das religiões que desconsideram as

particularidades individuais ao apresentarem suas doutrinas:

“Every other religion lays down certain fixed dogmas, and tries to force society to adopt them. They lay down before society one coat which must fit Jack and Job and Henry, all alike. If it does not fit John or Henry, he must go without a coat to cover his body. The Hindus have discovered that the absolute can only be realized or thougth of or stated through the relative, and the images, cross or crescent, are simply so many centers, so many pegs to hang the spiritual ideas on” (Id., p.59).

Esta atenção à idiossincrasia pode ser apontada como um elemento atraente para um

público ocidental que, conforme já apontado, vinha sendo cada vez mais exposto à influência de

correntes de pensamento e atitudes que cada vez mais valorizavam o individualismo em seus

aspectos quantitativos, com pouca atenção para os aspectos singulares da individualidade. A

Page 43: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

34

imagem do hinduísmo apresentada por Vivekananda parece confluir exatamente para o tipo de

proposta singularizante que se contrapôs aquelas correntes do individualismo quantitativo no

campo religioso, distinguindo-se assim das perspectivas mais massificadoras apontadas nas

demais religiões. Ao mesmo tempo, a esta consideração à idiossincrasia corresponde uma visão

hierarquizante dos crentes, em termos de evolução espiritual:

“To the Hindu, man is not travelling from error to truth, but from truth to truth, from lower to higher truth. To him all the religions, from the lowest fetichism to the highest absolutism, mean so many attempt to the hindu soul to grasp and realize the infinite, each determined by the conditions of its birth and association, and each of these mark a stage of progress, and every soul is a young eagle soring higher and higher, gathering more and more srength till it reaches the glorious sun” (Id., p. 59).

É Robert Bellah quem nos chama a atenção, contudo, para o fato de que esta abertura

do hinduísmo e de outras tradições orientais para os aspectos simbólicos de outras religiões, com

a perspectiva pluralista dela decorrente, foi tomada muitas vezes no Ocidente, errôneamente,

como sinônimo de uma ausência de dogmas dentro destes tipos de religiosidade:

“Um outro traço das religiões orientais extremamente influente é sua visão do dogma e do símbolo. Acreditando, como muitas delas acreditam, que a verdade fundamental, a verdade do não-dualismo, é única, elas também admitem muitas crenças e símbolos como apropriados para diferentes grupos ou diferentes níveis de compreensão espiritual. O dogmatismo não esteve, de maneira alguma, ausente das religiões orientais, e foi, tradicionalmente, mais importante do que muitos dos seus seguidores americanos podem supor” (1986, p.33).

Assim, o que seria à primeira vista um motivo de atração, constituir-se-ia, num

segundo momento, em motivo de decepção por parte dos adeptos ocidentais em busca de uma

alternativa à rigidez dogmática atribuída apenas às religiões ocidentais.

Ainda tratando deste aspecto, Bellah prossegue sua análise comentando que um dos

modos como os norte-americanos tenderam a se apropriar desta visão aberta do Oriente em

relação a símbolos e práticas, muitas vezes terminou por contaminá-la com o velho viés do

individualismo utilitário que, juntamente com a religião bíblica, estaria, a seu ver, entre as marcas

culturais principais da sociedade norte-americana no século XX. A prova disto é que a busca das

Page 44: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

35

religiosidades orientais se transforma em busca de auto-realização entre os adeptos americanos,

ao invés de manter a perspectiva de busca da realidade última, conforme a proposta original

daquelas religiosidades:

“ (...)em muitos grupos orientais (...) tem havido disposição para encontrar significado numa ampla gama de símbolos e práticas, sem encará-las de forma literal ou exclusiva. O perigo aqui, como em qualquer outro lugar, é que a religião pós-crítica [surgida a partir da contracultura] pode tornar-se puramente utilitária. Isso pode acontecer quando não se percebe que qualquer símbolo ou prática religiosa, ainda que relativa e parcial, é um esforço para expressar ou atingir a verdade acerca da realidade última. Se esses símbolos e oráticas tornam-se meras técnicas para a ‘auto-realização’, então, mais uma vez presenciamos o renascimento do individualismo utilitário de suas próprias cinzas” (Ibid., p.33).

Novamente, o encontro com o outro se mostra, antes de mais nada, um terreno

propício para o encontro de si mesmo.

Ao responder às críticas sobre hábitos tradicionais populares como a auto-imolação,

Vivekananda aproveita para lembrar a queima de bruxas realizada durante a inquisição cristã e a

ausência de posturas com o mesmo grau de intolerância dentro do hinduísmo, embora reconheça

que tais exemplos não devam ser tomados como expressões das duas tradições: “If the Hindu

fanatic burns himself on the pyre, he never lights the fire of inquisition. And even this cannot be

laid at the door of religion any more than the burning of witches can be laid at the door of

Christianity” (Ellwood, op. cit., p.60).

O final do discurso se encaminha para a afirmação da pluralidade religiosa como um

valor a ser respeitado. A variedade de religiões corresponderia a diferentes tipos de homens e

circunstâncias, mas a mesma verdade estaria subjacente a todas elas:

“To the Hindu, then, the whole world of religion is only a traveling, a coming up, of different men and women, through various conditions and circunstances, to the same goal. (...) The contradictions come from the same truth adapting itself to the different circunstances of different natures. It is the same light coming through different colours. And these little variations are necessary for that adaptation” (Id., p.60).

Page 45: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

36

Deste raciocínio decorre a apresentação do hinduísmo como uma religião da

tolerância, oposta às tradições que privilegiam a salvação apenas de seus próprios devotos:

“Through the whole order of Sanskrit philosophy, I challenge anybody to find any such

expression as that the Hindu only would be saved, not others. Says Vyas, ‘We find perfect men

even beyond the pale of our caste and creed’” (Id., p.60).

E prossegue, definindo o que seria o ideal de religião do ponto de vista do

hinduísmo:

“It will be a religion which will have no place for persecution or intolerance in its polity, which will recognize a divinity in every man or woman, and whose whole scope, whose whole force, will be centered in aiding humanity to realize its divine nature” (Id., p.61). Segundo ele, a principal mensagem a ser transmitida pelo Parlamento Mundial das Religiões seria a de que Deus está igualmente presente em todas elas: “It was reserved for America to proclaim to all quarters of the globe that the Lord is in every religion” (Id., p.61) 26.

Significado e repercussão da atuação de Vivekananda no Parlamento Mundial das

Religiões

A intervenção de Vivekananda no Parlamento Mundial das Religiões poderia ser

interpretada como uma antecipação de algo que, hoje, é considerado como uma das principais

possibilidades de posicionamento dos povos que sofreram o colonialismo frente aos novos

estágios de desenvolvimento da ordem econômica capitalista. Em análise que procura discutir a

situação da antropologia hoje, Marshall Sahlins (1997) destaca o “culturalismo” contemporâneo,

isto é, a defesa e afirmação cultural de povos com passado colonial, como uma das surpresas

inesperadas provenientes do avanço desta nova ordem. Assim, embora as mais diversas previsões

tivessem vaticinado o fim próximo de qualquer possibilidade de diferença cultural, num quadro

em que todos os povos terminariam homogeneizados sob a égide dos atributos ocidentais

modernos, diversas situações contemporâneas parecem apontar para outras direções.

26 Esta postura tolerante do hinduísmo apresentada por Vivekananda contrasta bastante com aquilo que se vê hoje na Índia. As disputas religiosas ali, hoje, parecem decorrer em grande parte da transformação do conceito de secularismo adotado pelo estado indiano após a Independência, quando se procurou fazer coincidir a idéia de secularismo com o próprio hinduísmo. De qualquer modo, não há dúvida de que o hinduísmo possui um discurso que permite às pessoas pensarem uma identidade religiosa plural, ao contrário do que ocorre com outras grandes religiões.

Page 46: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

37

Tomando como exemplo o acompanhamento realizado por Terence Turner junto aos

índios Kayapó, verificou-se que, com o passar dos anos, este grupo foi capaz de reverter a

“aparente incapacidade (...) de tomar consciência de sua cultura isto é, dessa cultura como

produto social dos próprios Kayapó e de usá-la reflexivamente como arma contra as forças e

instituições externas que os oprimiam. Sem conseguir objetivar sua cultura e conferir-lhe um

valor instrumental, os Kayapó tampouco podiam fazer de sua identidade étnica uma afirmação de

autonomia” (Sahlins, op. cit., p.124). Guardadas as devidas proporções, uma vez que os hindus

jamais foram uma minoria étnica ameaçada de extinção dentro de seu próprio país, a renascença

hindu e sobretudo a atuação de figuras como Vivekananda, parecem ter funcionado numa direção

semelhante à descrita acima, isto é, objetivando a cultura hindu diante de outros povos para

conferir-lhe um valor instrumental.

Vivekananda, já no final do século XIX, tinha uma consciência clara sobre a

necessidade de extrair do Ocidente aquilo que ele pudesse dar à Índia. Conforme mostrado alguns

parágrafos acima, não havia nenhuma hesitação ou pudor de sua parte em trocar espiritualidade

por bens materais, ou em adotar posturas assistencialistas aprendidas com os ocidentais. Nesse

sentido, mais uma vez, este renunciante indiano parece antecipar o culturalismo contemporâneo

descrito por Sahlins, em situações, por exemplo, como a da tomada de controle pelos Kayapó da

estrutura institucional em que se assenta sua dependência da sociedade branca, ou a da

comercialização das riquezas contidas em seu território. No caso hindu, a espiritualidade seria a

riqueza a ser capitalizada junto ao Ocidente e a estrutura institucional apropriada a criação de

centros assistencialistas inspirados em modelos trazidos do Ocidente.

Ainda como destaca Sahlins para o caso deste culturalismo do final do século XX,

não se trata, também em Vivekananda, de “uma reação inteiramente conservadora, uma volta a

algum tipo de condição pré-européia primordial. Ao contrário, à volta às origens está acoplada a

um desejo de manter e expandir o acesso às inovações técnicas, médicas e demais ‘benefícios’

materiais do sistema mundial” (Ibid., p.132).

É exatamente isto que, conforme vimos, se verificou com o Movimento Ramakrishna,

e com vários outros que lhe seguiram os passos. O Siddha Yoga, a este respeito, reproduz postura

semelhante, mantendo um projeto de cunho social na Índia, que se sustenta em grande medida

Page 47: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

38

sobre as doações de devotos ocidentais27. Neste caso, tomou-se emprestado àqueles não apenas

uma concepção de atuação social como os meios para implementá-la.

O fato de que alguns dos defensores mais eminentes das culturas tradicionais sejam

sofisticados estudiosos da ordem mundial ocidental, algo apontado por Sahlins ao analisar os

exemplos de lideranças indígenas Zuni dos Estados Unidos e das Terras Altas da Nova Guiné,

também se aplica inteiramente ao que se passou na Índia pré-independência, quando “esses

mestres do local e do global”, assumiram papel chave como mediadores entre as duas instâncias

(Id., p.129). Assim, não apenas Vivekananda, como diversas outra lideranças associadas à

Renascença Hindu possuíam amplo conhecimento das principais tradições do pensamento

ocidental, como a grande maioria dos mestres que se deslocaram para os Estados Unidos, seja

para dirigir as Sociedades Vedanta , seja para implantar outros centros de difusão do hinduísmo

visando um público ocidental, também o tinham. Em muitos casos, o sucesso da atuação destes

mestres dependeu exatamente de seu grau de domínio das tradições ocidentais28.

Uma das consequências deste trânsito entre dois mundos culturais distintos, o

fenômeno de “obtenção de poder local através de objetos e experiências adquiridos em proezas

que transcendem as fronteiras culturais”, descrito por Sahlins (Ibid., p.129), também não foi

estranho ao caso da Índia, como bem pode ser observado nesta descrição de Swami Yogananda

sobre a acolhida recebida na Índia após retornar pela primeira vez a seu país, depois de muitos

anos de ausência:

“Chegando à estação de Howrah [Calcutá], encontramos tão imensa multidão reunida para nos saudar que, por alguns momentos, nos foi impossível descer do trem. O jovem Marajá de Kasimbazar e meu irmão Bishnu encabeçavam a comissão de recepção; eu não me achava preparado para o calor e a magnitude daquela acolhida” (ParamahansaYogananda, 1981, p.347).

A expansão das Sociedades Vedanta nos Estados Unidos não alcançou resultados

espetaculares em termos quantitativos, apesar de sua influência junto a elementos formadores de

27 O Projeto Prasad atua na área de assistência médica e social na região do vale do Tansey, no estado de Maharashtra, prestando atendimento gratuito a uma população estimada atualmente em cerca de 40.000 pessoas. (THE Muktananda, 1994, p.1-2). 28 Parece ter sido este o caso, por exemplo, dos dois monges mais bem sucedidos do Movimento Ramakrishna nos Estados Unidos, ambos com atuação no estado da Califórnia, os swamis Paramananda e Prabhavananda. Este último foi o responsável pela iniciação de Christopher Isherwood e Aldous Huxley, tendo traduzido para o inglês inúmeros textos tradicionais do hinduísmo ( Jackson, op. cit., p.61-64 e 116).

Page 48: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

39

opinião, seja nos meios intelectuais29, seja junto a correntes mais marginais do campo religioso30.

As duas primeiras Sociedades foram instaladas no país ainda na década de 1890, nas cidades de

Nova York e São Francisco, sob a orientação do próprio Vivekananda, que permaneceu nos

Estados Unidos entre 1893 e 189631. A evolução do grupo na primeira metade do século XX

pode ser apreciada no quadro abaixo, retirado do Census of Religious Bodies realizado em 1936

(apud Jackson op. cit., p.108):

1906 1916 1926 1936

Nº de Centros 4 3 3 10

Nº de Membros 340 190 200 628

% Crescimento ____ - 44.1 5.3 214

Paramahansa Yogananda e a Self-Realization Fellowship

O segundo grupo ligado ao hinduísmo com presença significativa nos Estados Unidos

na primeira metade do século32, foi o que se constituiu em torno do já citado Paramahansa

Yogananda (1893-1952), o criador da Self-Realization Fellowship, que se estabeleceu no país em

1920, conseguindo crescer em uma década mais do que o Movimento Ramakrishna conseguira

em quatro. Este sucesso é explicado em alguma medida pelos métodos de publicidade adotados

pelos seguidores norte-americanos de Yogananda, que preparavam intensamente suas

apresentações no país, sempre antecedidas de ampla divulgação na mídia, via anúncios em

29 Entre os intelectuais mais expressivos ligados ao movimento, cujos livros iriam repercutir posteriormente sobre o movimento da contracultura, podemos citar Aldous Huxley, Christopher Isherwood, Gerald Heard e John Yale. 30 Segundo informação contida em Jackson, a maior parte dos grupos que convidavam os monges do Movimento Ramakrishna para fazer palestras na primeira metade do século XX, estavam fora do mainstream das Igrejas Cristãs. Levantamento realizado sobre Swami Paramananda, membro da segunda geração de monges do Movimento a ir para os Eua, e considerado o que melhor se adaptou ao estilo de vida americano, indica que metade dos locais onde ele realizou palestras eram ligados ao New Thought Movement e a outra metade a grupos unitarianistas, teosóficos e rozacruzes. Este padrão seria alterado drasticamente após a 2a Guerra Mundial, quando as Sociedades Vedanta entraram numa fase de estreitamento de relações com muitas igrejas cristãs (Jackson, op. cit., p. 62-63). 31 Swami Vivekanada faleceu em 1902, na Índia, aos 40 anos de idade. 32 O Radhasoami Satsang, fundado por Shiv Dayal (1818-1878), foi outro movimento a estabelecer-se nos Estados Unidos no começo do século, tendo chegado ao país em 1911. Seu crescimento, contudo, só viria a a se tornar significativo na década de sessenta (Ellwood, op. cit., p. 38-39).

Page 49: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

40

jornais e revistas, agendamento de entrevistas no rádio, etc, o que garantia uma enorme afluência

de público a suas palestras. Estes métodos mais “modernos” contrastavam com a política bem

mais “conservadora” dos adeptos do Movimento Ramakrishna neste sentido, que não se valiam

de qualquer tipo de divulgação pública sobre suas atividades (Id., p.65).

A essência dos ensinamentos de Yogananda concentrava-se na idéia de que, embora a

realização de Deus fosse possível aqui e agora no Ocidente, ela não dependia de uma mera

consecução individual, mas ocorreria sempre dentro dos limites protetores de um plano divino

pré-estabelecido, dentro do qual a presença de um guru como iniciador seria imprescindível

(Rawlinson, 1998, p.234). A krya ioga ensinada por ele, como diversas outras tradições da ioga,

apoiava-se sobre práticas de controle da respiração, através das quais se pretendia entrar em

contato com energias sutis do universo, manifestadas no corpo mas não percebidas por nossa

consciência ordinária. Uma vez desencadeado este processo, a evolução espiritual seria

intensamente acelerada. Entre os sinais desta aceleração estaria a aquisição de poderes

miraculosos (os siddhis), tais como telepatia, conhecimento de vidas passadas e de

acontecimentos do futuro, materializações de corpos físicos, etc., assinalando o progresso em

direção ao objetivo final da krya ioga: a realização da alma como centelha divina de Deus (Id.,

p.600).

Em sua autobiografia, Yogananda apresenta-se como membro de uma linhagem de

avatares que teria tido início com Babaji33, a quem atribuiu a missão que recebeu de expandir a

mensagem do krya ioga no Ocidente. Esta explicação de cunho essencialmente espiritual sobre as

razões de sua vinda para o Ocidente permite estabelecer diferenças significativas entre as

perspectivas dos dois principais pioneiros na “representação de si mesmos” no Ocidente,

Yogananda e Vivekananda. Assim, embora certamente não excluísse aspectos espirituais para

explicar sua atuação nos Estados Unidos, Vivekananda sempre se preocupou em situá-la para

além dos motivos propriamente religiosos, enfatizando as dimensões políticas e culturais

envolvidas, nas quais se manifestava claramente uma consciência sobre a necessidade de

“representar-se a si mesmos”, algo que, em Yogananda, aparece de forma bem mais diluída.

33 Babaji também é considerado o guru de dois personagens centrais para a tradição hindu: Shankara (séc.IX), cuja seleção de Upanishades serviria de base doutrinária para diversos grupos, e Kabir (séc. XV), um dos santos mais criativos do hinduísmo, ao qual mesclou diversos elementos do misticismo islâmico (Berry, 1996, p.54).

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41

Por outro lado, este último conseguiu dar passos muito mais efetivos que

Vivekananda em direção à incorporação de discípulos ocidentais na condução do grupo, algo que

sempre despertou tensões dentro do Movimento Ramakrishna, apesar das indicações de que tal

prática era vista com bons olhos por Vivekananda. A expansão da organização criada por

Yogananda parece ter ocorrido nos Estados Unidos em meio a uma passagem efetiva de sua

liderança para membros ocidentais34 (Id., p.599-600), antecipando uma das marcas da segunda

etapa de expansão das religiões orientais no Ocidente a partir da contracultura.

Ao término desta primeira fase da “representação de si mesmos”, que podemos

localizar entre o Parlamento Mundial das Religiões e a eclosão da 2a Guerra Mundial, estarão

dadas todas as condições que serão acionadas no momento seguinte deste contato entre o

Ocidente e as religiosidades orientais, iniciado em meados dos anos quarenta com a retomada do

interesse pelo Oriente entre a Beat Generation. Neste sentido, destacamos, por um lado, os

elementos trazidos pelo desenvolvimento da tradição romântica, sobretudo aqueles ligados a um

interesse pela individualidade e seus inúmeros percursos, aí incluídos os desdobramentos

apontados pela autonomização do campo psicológico35. Por outro lado, já estarão presentes

também os aportes trazidos pela vinda de mestres orientais para o Ocidente, valorizando, ao

contrário da abordagem textual que se verificara até a sua chegada, uma vivência prática das

religiosidades oriental, que estará no centro da retomada que se fará das mesmas a partir dos anos

quarenta.

1.3) Novos sentidos para o Oriente

A Beat Generation e a retomada do interesse pelas relgiões orientais

Podemos localizar em meados dos anos 40 uma retomada do interesse pelas religiões

orientais nos Estados Unidos, através de um grupo que ficou conhecido como a Beat Generation.

34 Após a morte de Yogananda, o comando da Self-Realization Fellowship, com sede em Los Angeles, e da Yogoda Satsanga Society, na Índia, as duas principais organizações criadas por ele, foi assumido, sucessivamente, por dois ocidentais, James Lynn (Rajarsi Janakananda) e Faye Wright (Sri Daya Mata) (Rawlinson, op. cit., p. 233). 35 Embora não tenham sido objeto de atenção até agora, os avanços na autonomização do campo psicológico, sobretudo através da obra de Freud, seriam essenciais, como veremos na parte seguinte, para o diálogo que se

Page 51: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

42

Este grupo iniciou-se como um fenômeno da Costa Leste, na cidade de Nova York, a partir do

encontro, em 1944, dos então ainda estudantes universitários Jack Kerouac e Allen Ginsberg com

William Burroughs, um intelectual que se tornaria uma espécie de mentor do grupo. Contudo,

somente com a junção destes últimos aos poetas da assim chamada Renascença Literária de São

Francisco, entre os quais destacaram-se Gary Snyder, Philip Whalen e Lew Welch, é que o

movimento passaria a ter maior ressonância pública. Assim, para alguns, o marco inicial da Beat

Generation seria o dia 13 de outubro de 1955, quando Allen Ginsberg, a convite dos participantes

da Renascença Literária, leu pela primeira vez em público seu poema “Howl”, em uma galeria de

arte de São Francisco (Tonkinson, 1995).

Os participantes da Beat Generation tiveram como ponto em comum uma postura

profundamente crítica em relação ao establishment36, manifestada através não só de seus escritos,

como também pela adoção de modos de vida alternativos aos oferecidos pela sociedade

americana que ainda vivia, naquele momento, a euforia do pós-guerra. A Beat Generation deu

início à “revolução das mochilas” (rucksack revolution), pregando um modo de vida errante e

desapegado dos bens e valores materiais, do qual o livro de Kerouac, The Dharma Buns, seria a

melhor expressão.

As continuidades entre as propostas da Beat Generation e as propostas dos

Transcendentalistas norte-americanos, de que trataremos a seguir, foram apontadas por diversos

estudiosos, o que não chega a ser surpreendente, se levarmos em conta que Emerson e Thoreau

foram referências diretas para muitos dos autores Beat. Estas continuidades permitem-nos

esclarecer, em grande parte, o significado da apropriação que foi feita do Oriente por esta

segunda geração de literatos norte-americanos a se interessar pelas religiosidades da Ásia. E,

mais do que isto, permitem-nos aprofundar a compreensão sobre as raízes românticas comuns a

ambas.

estabelecerá no Ocidente com as religiosidades orientais e para a forma como estas serão absorvidas a partir da contracultura. 36 A visão que o establishment, por sua vez, tinha sobre eles, pode ser apreciada neste retrato dos Beats traçado pela revista Life: “Life magazine depicted the Beat’s refusal to ‘accentuate the positive’ as an attempt to undermine all that was sacred in postwar America ‘Mom, Dad, Politics, Marriage, the Savings Bank, Organized Religion, Literary Elegance, Law, the Ivy League Suit, and Higher Education, to say nothing of the Automatic Dishwasher, the Cellophane-wrapped Soda Cracker, the Split-Level House and the clean, or peace-provoking H-bomb’ ” (Prothero, 1995, p.8).

Page 52: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

43

Um primeiro ponto de contato a ser destacado é o fato de que os dois movimentos

demoraram para ter seu legado espiritual reconhecido, o que pode ser explicado pelo fato de

terem se manifestado contra as ortodoxias religiosas de seu tempo, sendo acusados, em suas

respectivas épocas, de serem anti-religiosos. Assim, durante muito tempo, as análises sobre eles

limitaram-se a seus atributos literários. Desta forma, assim como “many critics of the

Transcendentalists saw their rejection [to traditional Christianity and Unitarianism] as

incontrovertible evidence that they were uninterested in religion in general, (...) the Beats

suffered a similar reputation as anti-religious enemies of god and country, or, at best, as

dilettantes, fashionable dabblers in the exotic East” (Prothero, 1995, p.6). Este fato parece-nos

indicar o quanto, passado já mais de um século da presença das religiosidades orientais nos

Estados Unidos, a adesão a elas ainda carecia de legitimidade dentro da sociedade americana.

Na verdade, o aspecto espiritual dos dois movimentos tem sido cada vez mais

analisado como um traço central em ambos: “Like the Transcendentalists, the Beats were far

more than literay innovators or social critics; they were also wondering seekers of mystical

visions and transcendence. They went on the road because they could not find God in the

churches and synagogues of postwar America” (Id., p.19) .

Na base da rejeição de ambos os movimentos às correntes religiosas tradicionais da

América, encontraremos uma crítica similar no que diz respeito à “frieza” de suas práticas,

verificando-se que a queixa dos Transcendentalistas contra o “cadáver-frio” do Unitarianismo

reproduziu-se posteriormente entre os Beat no protesto contra a insensibilidade da fé católico-

judaico-protestante do período Eisenhower.

Contudo, não se pode esquecer em que pesem estas semelhanças naquilo que

seria, de certa forma, uma busca pelo carisma no campo religioso de uma diferença marcante

entre os dois movimentos, que estabelece um verdadeiro divisor de águas entre eles. Se, para os

Transcendentalistas, a relação com o Oriente se deu em bases essencialmente textuais, na Beat

Generation este approach é transformado em uma relação que privilegia a prática das

religiosidades orientais. Assim, não foi incomum na trajetória das lideranças da geração Beat a

conversão à vida monástica dentro de alguma das tradições religiosas orientais, como nos casos

de Philip Whalen e Gary Snyder, que chegaram a se tornar monges zen. Afora isto, as viagens ao

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44

Oriente e a permanência em ashrams e mosteiros se tornaria uma das metas mais caras à geração

da Contracultura e uma de suas marcas principais37.

Além da busca de carisma, poder-se-ia apontar também nos dois movimentos a

tentativa de alcançar, através da espiritualidade, uma “consciência nova” sobre a vida, o que,

segundo alguns autores, foi o traço principal da unidade dos participantes da Beat Generation,

mais do que suas propostas políticas ou um estilo literário comum. Esta “nova consciência”

ancorava-se em uma visão de mundo através da qual “they saw human beings as enmeshed in a

vast network of connections with other human beings, with animals, and with life itself” (Id.,

p.19). Tais aspectos permitiriam, mais uma vez, aproximá-los dos fundadores do

Transcendentalismo: “Like Emerson, the Beats aimed to make contact with the sacred in

moments of indescribable intuition and then to transmit at least some of what they had

experienced into words. Like Thoreau, they insisted upon the sanctity of everyday life, the

sainthood of the nonconformist, and the awesome sacredness of nature” (Id., p.19).

No desbravamento de caminhos religiosos novos, a Ásia foi a fonte das principais

descobertas dos dois movimentos. Em Emerson e Thoreau, um encontro mais difuso, que

percorreu as escrituras hindus, budistas, confucionistas e persas, foi substituído na Beat

Generation por uma exploração mais sistemática do budismo, embora outras influências não

estivessem ausentes desta última. Segundo Robert Bellah, “o budismo Mahayana, sobretudo sob

a forma Zen, forneceu a influência religiosa mais penetrante à Contracultura, mas elementos do

taoísmo, do hinduísmo e do sufismo também se fizeram sentir” (Op. cit., p.26). Entre os

principais difusores do Zen nos Estados Unidos, ao lado de D. T. Suzuki, podemos mencionar

Alan Watts, um inglês que se tornou professor da Escola de Estudos Asiáticos, em São Francisco,

ao qual se atribui o esforço “mais resoluto para traduzir os princípios do Zen (...) na linguagem

da ciência e da psicologia ocidentais” (Roszak, 1972, p.138).

37 Antes da Contracultura, um número pouco expressivo de ocidentais havia empreendido este tipo de viagem, de caráter iniciático, ao Oriente. Entre eles, à parte o grupo ligado à Sociedade Teosófica, podemos mencionar alguns discípulos norte-americanos e ingleses de Vivekananda e Yogananda; a ida da francesa Mira Richard para a Índia, aonde se tornaria líder da comunidade de Auroville, em Pondicherry, ao lado de Sri Aurobindo, sob o nome de A Mãe; o inglês Paul Brunton, discípulo de Ramana Maharishi, que escreveu vários livros sobre suas buscas espirituais e experiências de meditação na Índia; e o escritor alemão Herman Hesse, que, embora sem passar por um processo de conversão semelhante ao dos demais, também escreveu sobre sua viagem à Índia e inspirou vários de seus romances nas religiosidades orientais, contribuindo de forma marcante para a difusão do interesse sobre elas no Ocidente. O francês Romain Rolland, através de seus livros analisando as trajetórias de Ramakrishna e Vivekananda, foi outro escritor cuja obra atuou numa direção similar a de Hesse.

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45

O paralelo entre a Beat Generation e os Transcendentalistas parece conduzir-nos,

finalmente, aquilo que seria sua raiz romântica comum. Nos termos de Prothero, esta se traduziu

como “their romantic longings for lives led apart from the unnatural rhythms of life, their

certainty of the correspondances between the natural and the supernatural, their sense of the

prophetic role of the poet, and their disdain for ‘foolish consistencies’ ” (Prothero, op. cit., p.7).

Explicar este novo surto romântico, em pleno século XX, nos leva de certa forma a

pensar, segundo Colin Campbell, sobre as razões da adesão de uma parcela expressiva de jovens

ocidentais ao mágico, ao mistério e às religiões exóticas durante a Contracultura, algo que

parecia contrariar as previsões de alguns clássicos da sociologia, sobretudo Weber, que imaginara

uma progressão constante da sociedade moderna em direção à racionalidade, ao materialismo e

ao secularismo (1995, p.3)38. Para Campbell, dar conta de algo tão inesperado estaria relacionado

à percepção das relações entre a Contracultura e os pressupostos românticos:

“I became convinced (...) that similar cultural revolutions [as the counterculture] had ocurred before, and that the world-view espoused by the counterculturalist could only adequately be described by the adjective ‘romantic’. I was not alone in this opinion, and a comparison with the Romantic Movement was occasionally made by both advocates and critics of this latest outburst of ‘romantic fever’” (Ibid., p.3).

Em Robert Bellah, a explicação sobre as razões que teriam atraído a geração da

Contracultura para as religiosidades asiáticas também aponta para um viés romântico, o da

valorização da experiência individual associada à construção da interioridade: “De diversas

formas, a espiritualidade asiática ofereceu um contraste mais completo ao rejeitado

individualismo utilitário do que a religião bíblica. À realização externa, ela contrapunha a

experiência interior, à organização impessoal, uma intensa relação com o guru” (Op. cit., p.26).

Em Frank Musgrove a associação entre a Contracultura e o romantismo é formulada

da seguinte forma: “Nineteenth-century Romanticism was strikingly like the contemporary

38 Aldous Huxley foi um dos autores que melhor formulou em sua obra esta transformação das expectativas secularizantes sobre o que seria uma era pós-cristã no Ocidente. Segundo Roszak, é exatamente esta transformação que está em jogo em dois de seus livros, O Admirável Mundo Novo e A Ilha. No primeiro, ainda da década de trinta, deparamo-nos com a descrição de um futuro dominado por “uma cultura inteiramente secularizada, (...) materialista, sinistra e sombria em sua obsessão por cultura tecnológica” (1972, p.144). No segundo, já da década de cinquenta,

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46

counterculture in its explicity attack on technology, work, pollution, boundaries, authority, the

unauthentic, rationality and the family. It had the same interest in altered states of mind, in drugs,

in sensuousness and sensuality” (1974, p.65).

O sentido destas experiências na Contracultura é assim explicado por Bellah:

“O que as experiências com drogas (...) e as experiências com a meditação (...) mostravam era a ilusão do empenho pela obtenção das coisas mundanas. O carreirismo e a busca de status, o sacrifício do prazer presente por alguma meta futura nunca alcançada, não pareciam mais valer a pena. Houve um afastamento não apenas do individualismo utilitário, mas de todo o aparato da sociedade industrial. O novo ethos preferia o artesanato e a vida no campo aos negócios e à indústria, e as pequenas comunidades, onde os contatos podiam ser pessoais, à burocracia impessoal e à família nuclear isolada” (Op. cit., p.26-27).

Este trecho de Bellah nos fornece uma pista importante para a compreensão de uma

outra maneira pela qual as religiosidades orientais serão apropriadas pela Contracultura, além do

já mencionado aspecto da busca por uma uma “nova consciência”. Aqui estaríamos diante de

uma visão do Oriente em que este aparece como símbolo da contestação ao establishment e aos

principais valores e instituições do Ocidente a igreja, a família e o estado. Esta visão, na

verdade, não se desvia de outros tipos de apropriação feitos anteriormente do Oriente como o

outro do Ocidente, a um modo contracultural, isto é, afirmando valores não hegemônicos dentro

da própria cultura Ocidental.

Desta forma, as apropriações que serão feitas do Oriente durante a Contracultura, da

mesma forma que todas as demais até então, estarão sujeitas ao mesmo núcleo de

questionamento: até que ponto traduzem realmente o Oriente de que se fala, ou até que ponto

evidenciam apenas traços do próprio Ocidente que se quer afirmar recorrendo à imagem de um

outro? É Roszak quem levanta esta discussão a propósito da Beat Generation e de seus

seguidores, propondo uma resposta que reforça a idéia do recurso ao outro como estratégia para a

elaboração das próprias questões:

“É inquestionável (...) que os beats de São Francisco, e grande parte da geração mais

jovem que os seguiu, pensaram ter encontrado no Zen alguma coisa de que necessitavam, e logo

foi como se “de súbito ele visse brotar a nova possibilidade: o que jazia além da era cristã e da ‘terra árida’ que a sucederia talvez fosse uma nova revivescência religiosa de caráter eclético” (Id., 144).

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47

passaram a utilizar o que compreendiam dessa tradição exótica como justificativa para satisfazer

a necessidade” (Op. cit., p.140). Neste sentido, segundo o mesmo autor, os beats teriam repetido,

tão somente, o mesmo mecanismo verificado entre os românticos: “A situação talvez seja

semelhante à tentativa de Schopenhauer de transformar seu limitado conhecimento dos

Upanishads em uma filosofia que fosse primordialmente expressão do Weltschmerz romântico de

sua geração” (Ibid, p.140).

Este desejo de contestação ao establishment presente na Beat Generation tomaria

uma forma mais nítida na década seguinte, quando suas propostas, mais voltadas para

transformações no estilo de vida e no comportamento individual, iriam se juntar a um certo tipo

de ativismo político mais tradicional, representado pela Nova Esquerda nos Estados Unidos.

Dessa junção resultou uma forma de fazer política inteiramente nova, em cujas origens se pode

detectar um tipo específico de apropriação do Oriente, pela primeira vez acionado para apoiar

estilos de expressão política. Allen Ginsberg foi um dos que melhor corporificou este novo tipo

de recurso ao Oriente, como se pode apreciar neste trecho em que Roszak descreve sua proposta

de atuação política durante uma passeata contra a Guerra do Vietnã:

“Ginsberg invoca o princípio Zen de apanhar o adversário desprevenido, de não oferecer nenhum alvo resistente contra o qual ele possa revidar. A causa do desfile é claramente anti-bélica (...) mas é proclamada sem indignação presunçosa ou argumentação densa. Em lugar disso, visa a criar um clima cativante de concórdia, generosidade e mansidão que possa derreter a rigidez dos adversários e arrastá-los para si, apesar de suas objeções conscientes” (Ibid., p.156).

Apesar da absorção deste estilo nas manifestações políticas que marcaram a cena

americana nos anos sessenta, o convívio entre a Nova Esquerda e a ala mais alternativa da

Contracultura não se desenvolveu sem tensões. Conforme aponta Roszak, a Beat Generation não

esteve preocupada apenas com o estilo de fazer política: na verdade, a própria política não se

dissociava dentro dela de um encontro com a religiosidade, com o oculto e com a magia, o que a

levou a colocar em cena um tipo de sensibilidade que ... “nunca se ajustaria bem ao padrão

teimosamente secular da Nova Esquerda” (Ibid., p.132). Esta seria a marca principal da diferença

do ativismo político da década de sessenta em relação ao da década de trinta. Neste último, ele

expressou-se em uma poesia eivada de conotações sociais, em contraposição à produção poética

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48

de Allen Ginsberg, por exemplo, cujo protesto, segundo Roszak, “não emana de Marx [mas] flui,

ao contrário, para o radicalismo extático de Blake” (Id., p.133) .

As características desta poética místico/política da Beat Generation indicam mais um

ponto de contato entre esta e o ethos construído a partir do Romantismo. Neste caso, a

convergência se dá muito mais pela escolha do método como ela é produzida do que

propriamente por seu conteúdo. Tratar-se-á aqui da valorização de um estilo improvisatório em

que se busca uma forma de arte que não tenha o intelecto como mediador. Esta, tal como as

produções românticas descritas por Zengotita, “sacrifices all frozen postures to irruptions of

genius and immanent spirit; to it belong the radiant moment, the noumenal touch” (1989, p.75).

Por este motivo, entre outros, a Contracultura é percebida como representando um

“extraordinário abandono da arraigada tradição de intelectualidade secular, cética, que constituiu

durante trezentos anos o principal instrumento de trabalho científico e técnico do Ocidente”

(Roszak, op. cit., p.147), algo que, sem dúvida, já se delineara no Romantismo.

No terreno da sexualidade, assim como no do estilo de fazer política, a Contracultura

também se apropriará do Oriente de uma forma nova em relação ao que se verificara até então.

Assim, se o vedantismo dos anos vinte e trinta sempre fora severamente contemplativo no sentido

mais ascético do termo e as novelas de Herman Hesse reproduziram esse ethos de etéreo

assexualismo, nada chamaria tanto a atenção no novo orientalismo que seu sabor fortemente

sexuado apoiado sobretudo nos textos da tradição tântrica (Cf. Roszak, ibid., p.141). Esta questão

é explicada por Roszak a partir de uma tentativa de caracterização do misticismo da Beat

Generation como um misticismo que não seria nem escapista nem ascético, mas “bastante

mundano: um êxtase do corpo e da terra que de algum modo abranja e transforme a mortalidade”

(Id., p.136).

O início dos anos sessenta, considerados como o marco final da Beat Generation, irão

assistir à eclosão de um momento novo de apropriação do Oriente, pautado não mais apenas por

um viés sócio-político, de contestação ao establishment39, mas, sobretudo, por um sentido

39 Segundo Allen Ginsberg, a herança da Beat Generation poderia ser resumida nos seguintes pontos: “Spiritual liberation; sexual revolution of liberation, i.e. gay liberation, catalyzing black liberation, women’s liberation, gray panther liberation; liberation of the Word from censorship; demystification and/or decriminalization of some laws against marijuana and other drugs; spread of ecological conciousness emphasized early by Snyder and McClure; opposition to the military-industrial machine civilization; return to appreciation of idiosyncrasy as against state regimentation; respect for land and indigenous peoples; less rich conspicuous consumption; Eastern thought (and

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49

psicológico, em que a construção da individualidade estará no centro das atenções. Mais uma

vez, o Oriente se associa à emergência de uma temática Romântica no Ocidente, acompanhando,

desta vez, o processo de difusão dos saberes psicológicos no Ocidente, enormemente acentuado a

partir dos anos sessenta. Este fenômeno novo, da psicologização, segundo análise de Jane Russo,

“longe de se constituir em puro modismo, representa uma nova forma do sujeito de se relacionar

consigo mesmo e com o mundo à sua volta. Diz respeito ao modo como formas tradicionais de se

lidar com diferentes esferas da vida já dadas de antemão para o sujeito são paulatinamente

substituídas por formas idiossincráticas, teoricamente construídas a partir do próprio sujeito, de

seus desejos e características pessoais” (1993, p.16).

A fusão dos saberes psicológicos do Ocidente com as religiosidades orientais na

década de sessenta

Nos Estados Unidos, um espaço privilegiado para acompanhar este processo de fusão

das religiosidades orientais com os saberes psicológicos do Ocidente foi o Esalem Institute,

criado em 1962 a partir da experiência da comunidade “bohemia y orientalista” de Esalem40,

fundada na na década de 1950 por Michael Murphy, um graduado de Stanford interessado em

religiões orientais (Carozzi, 1998, p.4)41.

O fenômeno da psicologização recebeu um impulso importante em Esalem por meio

do trabalho de Abraham Maslow, que introduziu a Psicologia Humanista na comunidade, em

1962. Contudo, não foi apenas Maslow o responsável pelo aprofundamento da psicologização em

Esalem, que será transformado em uma espécie de laboratório de novas idéias e práticas na área

psicológica, fora do âmbito da ortodoxia psicanalítica derivada de Freud. Assim, encontraremos

representados em suas oficinas e workshops abertos ao público os difusores da Gestalt Therapy,

meditation); non-theism, no cosmic fascism, or thus, cosmic antifascism; candor/frankness: end of secrecy and paranoia fear from CIA, KGB, nuclear secrecy, through to sexual secrecy, on a continuum” (Ginsberg, 1982, p.50 apud Watson, 1995, p.304). 40 Segundo Carozzi, Esalem constituiu uma experiência comunitária centrada em uma “combinación de prácticas en que la autonomia individual se ve asociada a la atención al presente, la espiritualidad oriental, el éxtasis y las experiencias pico, la ampliación de la consciencia, el desarollo de la sensibilidad, el movimiento no dirigido, la atención a las sensaciones, y el contato corporal, la actualización de potencialidades, la armonia com la naturaleza y la creencia en la energia universal” (1998, p.5-6).

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50

de Fritz Perls; da Bioenergética, inspirada nos ensinamentos de Reich; e da Psicologia

Transpessoal, criada por Stanislav Grof, entre outros métodos (Luz, 1998, p.16).

Um desdobramento importante do processo de psicologização, ligado a este núcleo

experimental que se constituiu durante a Contracultura, será o surgimento das terapias corporais.

Nestas, poderemos identificar diversos pontos do ideário alternativo original estabelecido a partir

dos anos 50/60. Assim, por exemplo, podemos mencionar a idéia de que o indivíduo existe em

oposição à sociedade ‘repressora’ e ‘limitadora’ e de que as terapias corporais fornecem a

possibilidade de libertação através do próprio corpo. Através de exercícios, de práticas

expressivas, o sujeito constrói um outro corpo para si mesmo. Um corpo que perderá as marcas,

não só de sua origem de classe, como de pertencimento a qualquer grupo social, na medida em

que o corpo natural é reencontrado (Cf. Russo, op. cit., p.193) Aqui parecem se juntar dois dos

ideais autonômicos identificados por Carozzi como integrantes da Contracultura, isto é, o de uma

libertação das instituições sociais tradicionais, por um lado, ao qual se segue um ideal de

libertação individual dos condicionamentos sociais, neste caso, através do corpo (Carozzi, op.

cit.).

Com a abertura de Esalem ao grande público, ainda no início dos anos 60, e com o

surgimento de novas comunidades alternativas, criou-se um circuito que permitia aos

interessados circular livremente por diferentes grupos, não participando fixamente em qualquer

deles. Esta postura experimentalista será a marca principal do Movimento do Potencial Humano,

idealizado em Esalem, através do qual se buscava a ampliação da consciência e a atualização do

próprio potencial mediante a participação em ... “una multitud de disciplinas, grupos y talleres de

entrenamiento que incluyen grupos de encuentro, entrenamiento de la conciencia gestáltica,

análisis transaccional, socio-percepción, terapia primal, bionergética, masajes, psicosíntesis,

psicología humanística, est, entrenamiento Arica, meditación trancedental, biofeedback, control

mental y yoga” (Carozzi, op. cit., p.6).

O surgimento do movimento hippie, herdeiro direto de muitas das idéias da Beat

Generation, alimentou em grande parte este circuito, que tinha entre suas marcas principais a

busca da experiência, seja de novos modos sociais de vida, seja de outros patamares de

41 Aldous Huxley e Gregory Bateson foram alguns dos mentores, juntamente com Murphy, do Esalem Institute (Carozzi, op. cit., p.5).

Page 60: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

51

consciência individual. Uma das formas de atingi-los, além da utilização de drogas, foi através do

recurso às variadas técnicas de meditação retiradas das religiosidades orientais e da vida em

comunidades alternativas. A presença das religiosidades orientais nos Estados Unidos sofrera um

impulso decisivo com a aprovação da nova lei de imigração do país, em 1965, que equiparou

europeus e asiáticos no direito de acesso à cidadania norte-americana. A utilização destas

religiosidades, sobretudo as de origem hindu, esteve intimamente associada ao crescimento do

movimento hippie, alcançando uma disseminação inédita até então, por sair de espaços

intelectualizados e cult para servir de base a um movimento que mobilizou milhares de jovens na

América.

Enquanto os Estados Unidos atravessavam esta década de profundas contestações ao

american way of life consagrado no pós-guerra, decorrentes da frustração de parte significativa

da população em não ver cumpridas as promessas sociais enunciadas àquela época (Bellah, op.

cit., p.21)42, o Reino Unido, por um outro caminho, também assistia ao surgimento e expansão de

movimentos alternativos. Dentre estes, destacavam-se os “grupos de luz”, criados com o

objetivo de discutir os escritos proféticos e teosóficos sobre a chegada de uma Nova Era, dos

quais um dos mais atuantes foi a comunidade de Findhorn, na Escócia (Luz, op. cit., p. 22).

As religiosidades orientais e a Nova Era

A fusão do complexo alternativo surgido nos Estados Unidos com o ideário dos

“grupos de luz” escoceses e ingleses é que teria dado origem ao movimento Nova Era, cujo

marco inaugural é localizado por muitos autores em 1971, ano em que o movimento reconheceu-

se enquanto tal pela primeira vez, e em que começou, efetivamente, a constituir-se uma rede que

extrapolou limites nacionais. Desta, participaram em um primeiro momento “los usuarios,

maestros y prestadores de las disciplinas del Movimiento del Potencial Humano con centros

herederos de la teosofía, como Findhorn (...) y con canalizadores y practicantes de diversas

42 Ampliando este raciocínio, Danièle Hervieu-Léger comenta que uma corrente da sociologia sobre os Novos Movimentos Religiosos inscreveu-se nesta mesma linha de reflexão, associando os assim chamados “surtos emocionais contemporâneos”, que os caracterizariam, a um processo mais amplo de “dessecularização”, cuja origem seria em parte detectável na inaptidão da modernidade para realizar suas promessas de progresso ilimitado (1997, p.40-41).

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52

disciplinas esotéricas y de parapsicología en esse país [Inglaterra], Estados Unidos y Australia”

(Carozzi, op. cit., p. 7-8).

A herança teosófica do movimento poderia ser identificada, segundo Carozzi, a idéias

tais como ... “la de que el ser humano posee una chispa divina en su interior, la de que todas las

tradiciones místicas y religiosas conducen a una misma verdad única, aunque expresada de

distintas maneras acorde com las distintas épocas y culturas en que se originan, y la de que la

creciente conciencia de la chispa divina interior del hombre conducirá a una Nueva Era para la

Humanidad” (Ibid, p.8).

Esta herança teosófica dentro do Movimento Nova Era, não deve, contudo, esmaecer

diferenças importantes entre este e as tradições ocultistas e esotéricas constituídas ao longo do

século XIX. Segundo Françoise Champion (1998, p.758-759), pelo menos cinco aspectos

marcariam distinções significativas entre ambos. A primeira seria a questão do segredo, uma vez

que, para muitos dos adeptos da Nova Era hoje, “esoterismo” não significa mais algo secreto, e

sim o domínio de saberes e práticas “não-oficiais”. Não é mais necessário pertencer a uma seita

iniciática para ter acesso a eles.

A mesma autora destaca também a importância da dimensão da experiência nas

novas religiosidades místico-religiosas que constituem a Nova Era43, nas quais se substituiu o

estudo e a aquisição de “saberes” das tradições ocultistas, isto é, seu viés textual, por um

“trabalho” psíquico-corporal visando a interioridade do sujeito. Este outro viés, constituído por

um número imensamente variado de técnicas, privilegia assim uma dimensão prática dos saberes

incorporados, compondo, juntamente com aquilo que Leila Amaral Luz irá denominar de

spiritual crafts “bens culturais” diversos voltados para o aprimoramento espiritual (Op. cit.,

p.229) o arsenal disponível na Nova Era para o trabalho com a interioridade.

A organização em rede, destacada por todos os autores que estudam a Nova Era como

uma de suas principais características, por oposição aos grupos com fronteiras rigidamente

delimitadas das tradições ocultistas, seria outro marco distintivo entre ambas. Segundo Carozzi,

este traço na Nova Era estaria ligado a uma nova expressão do viés autonômico constituído a

43 Françoise Champion não utiliza o termo Nova Era, preferindo a este o conceito de “novas religiosidades místico-esotéricas”.

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53

partir da Contracultura, desta vez calcado na rejeição de qualquer tipo de organização hierárquica

(Op. cit., p.8).

Outro ponto contrastivo com as tradições ocultistas estaria na articulação entre a

espiritualidade e o campo da psicologia, algo marcante na Nova Era, e que, conforme apontamos,

teve origem nas experiências propostas pelo complexo alternativo que se constituiu nos Estados

Unidos durante a década de 60. Assim, “la centralité de tous les emprunts que la nouvelle

religiosité mystique-ésotérique fait à la psychologie” (Champion, op. cit., p.758) parece ser, de

fato, a grande novidade dos anos sessenta consolidada pela Nova Era nas décadas seguintes,

juntamente com a ampliação do interesse pelas tradições religiosas orientais constituindo um

campo que poderíamos denominar de psicológico-espiritual. O interesse pelas religiões orientais,

aliás, é outro dos pontos destacados por Champion para diferenciar a Nova Era das tradições

esotéricas ocidentais: uma influência muito mais profunda, naquela, das religiosidades orientais,

responsável pela caracterização da Índia como a “pátria” do movimento Nova Era (Heelas, 1996,

p.29).

Esta questão levanta um ponto de grande interesse para este trabalho. Não há dúvida

alguma de que as iogas, principal tradição proveniente do hinduísmo absorvida pelo público

ocidental a partir da Contracultura, oferecem um campo privilegiado de articulação com o terreno

da psicologia, por basear suas doutrinas e técnicas na observação de fenômenos da consciência.

Mais do que isso, as iogas também parecem se afinar com uma evolução que se verificou dentro

do próprio campo da psicologia ocidental, em que se passou da observação de fenômenos

circunscritos ao campo do mental, segundo o modelo clássico proposto por Freud, apoiado na

distinção entre consciente e inconsciente, para modelos em que cada vez mais se procurará

trabalhar o corpo, como bem o demonstram as correntes que desenvolveram as terapias corporais

(Russo, op. cit.). As iogas, como técnicas que conjugam disciplinas físicas e mentais, parecem

então antecipar um dos pontos de articulação que estará no cerne de um dos sub-campos em que

a psicologia se desenvolveu, e que ganhou vulto exatamente a partir de experiências realizadas

durante a Contracultura. Por outro lado, ao conferir um caráter sagrado aos processos físicos e

mentais desencadeados em seus praticantes estas três instâncias (física, psíquica e espiritual)

não são concebidas separadamente nos sistemas ióguicos há uma aproximação das iogas com

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54

um traço central da Nova Era, denominado por Carozzi como um processo de

transcendentalização da autonomia44, descrito da seguinte forma:

“La ampliación de la conciencia ya no pretende sólo la superación de los condicionamientos sociales en busca de la auto-realización y el desarrollo de potencialidades individuales, sino el descubrimiento de una chispa divina en el interior del hombre que lo une energéticamente a un todo divino que lo incluye y supera. La conciencia individual ampliada se torna conciencia planetaria y cósmica, otorgando a la autonomía un nuevo significado. Ser socialmente autónomo es ahora ser divino y estar ligado a una totalidad divina. La incorporación también supone la adición de un propósito milenarista a la ampliación de conciencia : la instauración de una nueva era para la humanidad” (Op. cit., p.11-12, grifos meus).

Esta transcendentalização da autonomia, que na verdade implicará em um processo

de imanentização da divindade, conforme se depreende de sua descrição, não será de forma

alguma estranha aos postulados da ioga. No cenário da Nova Era, e sobretudo nas concepções de

seus nativos, todo o vocabulário acionado pelas iogas será, por isto mesmo, extremamente

familiar. Não importa que em um dos casos se busque a iluminação e no outro o

autoconhecimento. Neste subproduto romântico do campo religioso que é a Nova Era, qualquer

vocabulário que fale do self, da interioridade e de processos de transformação ligados a estas

dimensões, será absorvido sem maiores dificuldades, embora, como veremos, dando margem a

um bom número de mal-entendidos (vide Capítulo 2).

Sentidos das apropriações das religiosidades orientais no Pós-Guerra

44 Carozzi considera que a análise da evolução das concepções sobre autonomia fornece uma chave importante para acompanhar os movimentos culturais que se estenderam da Contracultura até a Nova Era. Ao longo deste período, teria ocorrido uma transformação destas concepções que estariam associadas, em um primeiro momento, a uma autonomia dos sujeitos em relação às instituições tradicionais do Ocidente; em seguida a uma autonomia individual entendida em um nível mais psicológico, em que se busca a autorealização dos sujeitos; e, finalmente, a transcendentalização da autonomia, que se associa à Nova Era (op. cit.). Embora não me pareça que estes três tipos de concepção da autonomia constituam necessariamente etapas sucessivas, uma vez que, muitas vezes, eles estarão presentes simultaneamente, embora com graus de intensidade diferentes, a tipologia das concepções de autonomia proposta por Carozzi é bastante útil para a compreensão das propostas dos movimentos sociais (religiosos ou não) que se articulam a partir da experiência da Contracultura.

Page 64: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

55

Um ponto interessante a destacar aqui, já mencionado em outros momentos deste

trabalho, está relacionado ao fato de que, embora as tradições ocidentais cristãs já possuíssem,

em suas vias místicas todo um trajeto voltado para a construção da interioridade45, não será a elas

que se recorre, nesta segunda metade do século XX, para colocar em cena este tipo de questão.

Será preciso acionar o Oriente para tal, talvez pelo sentido de novidade a ele associado46. Para

utilizar uma expressão cara ao antropólogo Carlos Alberto Afonso, parece que o cristianismo não

foi capaz, à certa altura, de apresentar a não ser “metáforas cansadas” para o que se queria

novamente repensar - o eu em sua dimensão interior e de sacralidade. Sem dúvida, está implicada

aqui uma questão de linguagem, conforme já apontado em outro momento deste trabalho, através

de uma referência de Needleman (cf. p.13). O Oriente parece comunicar melhor, a uma certa

altura, algo que, embora já presente no Ocidente, não estava podendo ser ouvido pela forma

antiga com que estava sendo dito.

Curiosamente, Karl Jung, um dos primeiros psicólogos ocidentais a refletir sobre o

Oriente, apostava exatamente no contrário, isto é, na impossibilidade de vivência das tradições

orientais pelo Ocidente, considerando que a busca pela interioridade no Ocidente deveria se fazer

pela via do esoterismo cristão. É Gehard Wehr quem comenta esta questão:

“A incorporação e desenvolvimento de aspectos reflexivos associados ao devocionalismo47 parece explicar em parte o sucesso da incorporação destas tradições orientais no Ocidente, algo que até bem recentemente não parecia ser possível, como demonstra a avaliação feita pelo psicólogo C. G. Jung, um dos principais responsáveis pela difusão de textos orientais no Ocidente no século XX, e ele mesmo profundamente interessado nas proposições das religiões orientais. Para Jung, os ocidentais (identificados basicamente aos europeus) deveriam buscar o autoconhecimento através das sabedorias européias e não da sabedoria oriental, acreditando ser impossível para aqueles assimilarem

45 Em artigo sobre as concepções cristã e moderna da pessoa, Duarte e Giumbelli analisam os componentes cristãos que irão compor a trajetória em direção à construção da interioridade no Ocidente (1995). 46 Segundo a análise proposta por Ernst Troeltsch, um modelo de religiosidade de tipo místico, organizado nos interstícios das instituições religiosas cristãs sob a forma de rede, constituindo uma espécie de “igreja invisível”, teria se firmado progressivamente a partir do século XVI no Ocidente, pautando-se justamente em aspectos que seriam valorizados a partir da Contracultura através da apropriação das religiosidades orientais. Assim, entre suas características principais, teríamos o apelo a um certo tipo de individualismo que aciona não a vontade, como nas religiosidades de seita, mas uma experiência afetiva íntima. Este tipo místico insistiria, portanto, sobre o valor da experiência religiosa direta, considerada não apenas como algo que acompanha e sustenta as crenças, mas como o próprio princípio de acesso ao divino. Ele se oporia, assim, à objetivação da experiência em atos regrados, em ritos que valem por si mesmos, em mitos ou em dogmas obrigatórios (Champion, 1993, p.760). 47 Examinarei em detalhes estes aspectos reflexivos associados ao devocionalismo, no caso da prática do siddha ioga por adeptos ocidentais, no capítulo 3.

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56

religiosidades como a ioga, por exemplo, em razão da dicotomia estabelecida no Ocidente entre fé e conhecimento, e entre revelação religiosa e conhecimento obtido através do pensamento” (1995, p.390, tradução minha).

Assim:

“A divisão no espírito do Ocidente [entre fé e conhecimento] torna assim impossível desde o princípio que as intenções da ioga sejam compreendidas de maneira adequada... O indiano não apenas conhece sua natureza, como sabe também o quanto ele próprio é natureza. O europeu, por outro lado, que possui a ciência da natureza, conhece surpreendentemente pouco sua própria natureza, a natureza dentro de si” (Jung apud Wehr 1995:390, tradução minha).

Este conhecimento sobre a natureza interior do homem no Ocidente, ao contrário do

que Jung poderia supor, iria se constituir em grande parte através da apropriação das

religiosidades orientais, o que não apenas o exemplo do Siddha Yoga demonstra, como também

as inúmeras práticas, muitas de inspiração oriental, utilizadas dentro da Nova Era, considerada

hoje como a principal corrente contemporânea das assim chamadas “religiosidades do Eu”

(Heelas, op. cit.).

Para Jung, como as “disposições da alma” eram muito diferentes nos homens e

mulheres orientais e ocidentais, os ocidentais teriam que produzir sua própria ioga, o que a seu

ver se daria a partir do esoterismo cristão, considerado por ele como mais adequado aos

pressupostos psicológicos ocidentais ( Wehr, op. cit., p.391-392).

Jung atribuía um papel central à experiência no campo religioso, mas nem por isso

concluía que o Ocidente deveria buscá-la no Oriente, aonde sua valorização era tão generalizada.

Sua crítica às posições teológicas dentro do cristianismo que obstaculizam o acesso à experiência

aparece claramente no seguinte trecho:

“Eu tive certeza de que nenhum dos teólogos que conheci jamais viu ‘a luz que brilha na escuridão’ com seus próprios olhos, porque se o tivessem feito não teriam sido capazes de ensinar uma ‘religião teológica’, que sempre pareceu bastante inadequada para mim, desde que não deixa outra esperança a não ser acreditar nela. (...) O grande pecado da fé, a meu ver, foi ter frustrado a experiência” (Jung apud Wehr, ibid., p.394).

Page 66: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

57

Assim, sua postura será no sentido de valorizar, junto aos teólogos cristãos, com

quem manteve intensa correspondência, a recuperação da busca pela interioridade pela via do

cristianismo primitivo. Segundo Wehr, seu principal mérito como psicólogo, independente da

questão de como ele compreendia o conceito cristão de fé, foi indicar para a teologia de sua

época um caminho para entender o cristianismo não apenas como uma doutrina teológica ou

como norma ética, e sim como uma possibilidade única de vivenciar pessoalmente um processo

de mudança e de busca de um caminho interior. Assim parecia-lhe que: “(...) a principal tarefa

daqueles que preparam almas atualmente é mostrar às pessoas o caminho para obter a experiência

primal que Paulo, por exemplo, encontrou mais claramente na estrada de Damasco. Em minha

experiência, este caminho só se abre no processo de desenvolvimento da alma individual” (Id.,

p.394).

O cristão esotérico, categoria na qual Wehr situa Jung, tornar-se-ia então o

inaugurador de uma “teologia profunda”, isto é, de uma teologia que participa desta extensão da

consciência que não se limita à base racional do trabalho exegético-teológico e que não se esgota

nas atividades políticas e sociais caritativas, mas que está aberta à dimensão de uma

espiritualidade profunda, ao Cristianismo esotérico. Para ele, somente com uma transformação da

consciência seria possível mudar as relações externas, isto é, as relações interpessoais. A

mudança, assim, começaria de dentro (Id., p.394-395).

A apropriação das religiosidades orientais que é feita no Ocidente do pós-guerra

parece ter como marca distintiva em relação aos momentos anteriores a associação com os

saberes psicológicos ocidentais, inclusive os desenvolvidos por Jung48. O exemplo emblemático

desta apropriação talvez pudesse ser colocado na Psicologia Transpessoal, criada em 1969, a

partir da junção, conforme descrito por Luz, de “métodos orientais e ocidentais para trabalhar a

consciência, tais como: análise de sonhos, imaginação, meditação, ioga, behavioral medicine e

trabalho de corpo, através de estados alterados de consciência, para alcançar estados superiores

de consciência” (Op. cit., p.16). Estamos assim diante da perspectiva espiritual-psicológica que

constitui a base da Nova Era, um espiritual que combina as tradições esotéricas ocidentais e as

religiosidades orientais, e uma psicologia que se desdobra em inúmeras correntes a partir do

trabalho pioneiro de Freud.

48 Neste sentido, é significativa a presença de psicólogos de formação junguiana dentro do Siddha Yoga.

Page 67: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

58

No caso específico das religiosidades orientais, poderíamos vê-las, da Contracultura

à Nova Era, sendo acionadas para apoiar aquilo que vem sendo identificado como um processo

de imanentização da divindade, apontado por Campbell como uma das marcas centrais da cena

religiosa ocidental contemporânea (1997). Neste sentido, o outro oriental virá mais uma vez

reforçar tendências que, embora detectáveis dentro do próprio campo ocidental, só muito

recentemente, e justamente através do recurso a este outro, puderam ganhar visibilidade. Além

disto, o outro religioso oriental também se afirma como o dessemelhante, ao ser utilizado na

bricolagem de tradições realizadas pela Nova Era como um elemento a mais naquilo que, se

pretende ser uma religiosidade sem fronteiras, por um lado, não pode, por outro, prescindir de

demarcá-las para provar-se enquanto tal.

No campo da psicologia, as religiosidades orientais serão apropriadas com um

sentido marcadamente experimental, ao serem associadas às novas correntes que se criam dentro

dele a partir dos anos sessenta. Aqui também o recurso ao outro, agora como instrumento de

investigação dos fenômenos psíquicos, só se configura como uma possibilidade a partir do

momento em que o Ocidente já conseguira, ele mesmo, instituir o campo psicológico como

terreno de investigação.

Em relação aos ideais de vida comunitária valorizados durante a Contracultura, é

bastante elucidativa a análise de Nisbet, na qual se aponta que “em contraposição às relações de

competição, conflito, utilidade, consentimento contratual e individualismo despersonalizado nas

cidades, a redescoberta romântica do simbolismo de comunidade oferecia formas alternativas de

relacionamento, tendendo a conceber comunidade como comunhão de objetivos, como ‘fusão do

sentimento e do pensamento’, da tradição e da ligação intencional, da participação e da volição”

(Nisbet 1973:47 apud Luz, op. cit., p.20). Neste sentido, a experiência comunitária de vida nos

ashrams parecia oferecer, ao lado de todas as suas propostas espirituais, um local perfeito para a

vivência deste tipo alternativo de vida em relação aos padrões vigentes.

As apropriações do Oriente como elemento de constestação ao establishment

realizadas durante a Contracultura foram sofrendo, pouco a pouco, um esvaziamento que parece

ter acompanhado o próprio refluxo dos movimentos de protesto que se seguiu aos anos sessenta.

Esta questão nos leva à discussão sobre os limites de considerar a Nova Era como um movimento

contestatário, apesar de suas ligações com a Contracultura. Assim, embora um componente

Page 68: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

59

destradicionalizante certamente faça parte de suas propostas, no sentido de oferecer uma opção

alternativa às grandes religiões do Ocidente, a Nova Era também parece trazer a marca da

cooptação pelo sistema, incorporando como um de seus traços centrais o “espírito do

consumo”49, condição essencial, segundo a análise realizada por Campbell, da expansão do

capitalismo moderno o outro lado da moeda da revolução da produção por ele empreendida

(1995).

De qualquer forma, não há dúvida de que o Oriente vem desempenhando desde o

século XIX um papel central no drama através do qual o Ocidente vem construindo seus próprios

movimentos culturais, e através deles, suas identidades. Ora como um outro acionado pelas

semelhanças, ora pelas diferenças, mas sempre a serviço de algo que Heelas coloca como estando

no centro da história das culturas: “Cultural history is surely the history of the interplay of

processes of detraditionalization and traditionalization, in turn interplaying in various ways with

processes to do with dedifferentiation and differentiation” (1998, p.9).

1.4) Uma identidade transformada

A vinda do Siddha Yoga para o Ocidente, no início dos anos 70, assim como a vinda

de diversos outros grupos e gurus de origem indiana para o Ocidente no pós-guerra50, estará

informada por todo o fenômeno da Contracultura analisado no ítem anterior. Esta vinda teve

como pano de fundo profundas transformações na própria Índia, que havia obtido sua

independência em 1947. Registramos este fato na tentativa de chamar atenção para a diferença

que se coloca, neste sentido, entre as motivações dos primeiros renunciantes indianos a se

49 Segundo a análise da Nova Era desenvolvida por Leila Amaral Luz, o “espírito do consumo”, tal como entendido por Campbell, isto é, a busca sempre renovada da satisfação de desejos que se torna um fim em si mesma, seria um dos traços constitutivos da Nova Era, respondendo pela realização infindável de experiências em tradições religiosas diversas que constitui uma das marcas centrais das trajetórias de seus adeptos (1998). 50 Podemos mencionar entre os mais importantes afora o próprio Swami Muktananda, introdutor do Siddha Yoga no Ocidente em 1970, cuja trajetória será examinada detalhadamente posteriormente Swami Chidananda, que iniciou em 1959 a divulgação no Ocidente da Divine Life Society, fundada em 1936 por Swami Sivananda Saraswati; Maharishi Mahesh Yogi, que criou a Meditação Transcendental em 1956, e começou sua divulgação a partir de 1958 na Inglaterra e de 1961 nos Estados Unidos; Swami Prabhupada, que chegou aos Estados Unidos em 1965, aonde fundou, no ano seguinte, a Society for Krishna Consciousness (ISKCON); Balyogeshwar, que estabeleceu a Divine Light Mission nos Estados Unidos em 1970, dez anos após a criação do grupo na Índia por seu pai, Shri Hans Ji Maharj; e Acharya Rajneesh, que iniciou o Movimento Rajneesh em 1974, em Puna, e fundou a

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60

deslocarem para o Ocidente, no final do século XIX, marcados pelas questões formuladas no

âmbito da Renascença Hindu, em que se buscava afirmar uma identidade hindu dentro e fora da

Índia, para este segundo momento de deslocamento para o Ocidente, já no pós-guerra, em que a

Independência do país colocava em cena um tipo inteiramente diverso de questões.

As relações entre religião e política na Índia: as novas concepções de secularismo

A esta altura, o hinduísmo já não precisava mais de afirmar uma identidade. A

evolução dos acontecimentos na Índia o levara a ocupar o papel de religião de estado, sob uma

concepção de secularismo bastante peculiar. Diferentemente das propostas iniciais de um estado

secular formulados por Nehru imediatamente após a independência, em que não se pretendia

assumir qualquer das religiões existentes no país como uma religião de estado, o que se viu,

posteriormente, foi uma tendência à releitura deste secularismo, transformado em sinônimo de

hinduísmo, a partir do argumento de ser ele próprio uma religião secular, já que não impedia a

manifestação de outras.

Segundo a análise de Lise McKean, esta tendência já se consolidara inteiramente na

cena indiana na década de 1980, quando

“the term ‘secularism’, as used in the Indian press and in political practice, no longer referred to a political system that attempts to distance itself from religious affairs. With the increasing prominence of Hindu nationalist ideology, secularism came to be widely interpreted as the state’s obligation to support all religions, with the greatest support going to Hinduism, the religion of a purported majority of Indians. Such a shift in meaning relates to the success of the Hindu nationalist movement’s relentless propaganda campaigns and activism. These campaigns malign Nehru’s interpretation of secularism and accuse the Congress of being ‘pseudo-secular’. (...) Hindu nationalists argued that the Indian state discriminates against the Hindu majority by pandering to non-Hindu groups. Presenting themselves as defenders of democracy, they mantained that the state’s discrimination against Hindus threatens democracy. They linked democracy with the stability of Indian society, a stability founded on the spirituality taught by Hindu sages. According to Hindu nationalists, because Hinduism emanates from spiritual values, it is uniquely tolerant of

Comunidade de Rajneesh Puram, no Oregon, nos Estados Unidos, em 1981 (Hummel, 1983; Mangalwadi, 1992; Rawlinson, op. cit.).

Page 70: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

61

other religions and is the sole basis of an authentically Indian secularism. Such an indigenous secularism, which advocates state support of all religion, is presented as superior to Nehruvian pseudo-secularism, imported from the West, which advocates stricit separation of state and religion. Following from these propositions regarding secularism, spirituality, and Hinduism, Hindu nationalists conclude that a Hindu state is necessarily the best guardian of an indigenous Indian secular democracy” (1996, p.5-6).

Neste sentido, a evolução das relações entre religião e política na Índia terão

conseqüências diretas sobre o papel que os movimentos sectários hindus passarão a desempenhar

no cenário político indiano:

“The interrelations between Hindu religious organizations and the political economy of India are complex and historically variable. The ideological and material profits to be gained from supporting gurus and Hindu religious organizations are today greater than they had been in the first four decades after independance. Formerly, through its interpretation of secularism, India’s ruling classes sougth to legitimate their power in non-religious terms and with minimal reliance on the patronage of religious institutions. Nehru’s antipathy to Hindu religious leaders and institutions was for many years part of the official Congress platform. However, being neither ignorant of nor indifferent to the political uses of religious ideologues with loyal followings, there were and there are now even more politicians, bureaucrats, and business and professional groups eager to cultivate working relationships with organizations headed by swamis and gurus” (Id., p.5).

Desta forma, a vinda de gurus indianos para o Ocidente no pós-guerra, nada tem a ver

com o gesto quase que simbólico representado pela vinda de gurus no final do século passado e

na primeira metade deste, constituindo-se, assim, efetivamente, uma ruptura em relação às

motivações e ao significado de sua vinda. Nesta segunda metade do século, não apenas o

hinduísmo tornou-se a religião de estado na Índia, como as organizações religiosas estão

imbricadas de uma forma muita mais explícita na vida política nacional, conforme aponta o texto

de McKean citado acima, possuindo, neste sentido, uma retaguarda muita mais estruturada do

que algo como a Missão Ramakrishna, por exemplo. A análise desta autora sobre a Divine Life

Society, uma das seitas indianas que maior expansão obteve no Ocidente no pós-guerra, é

bastante esclarecedora a este respeito, por rastrear as relações entre este grupo e a organização

nacionalista hindu Vishva Hindu Parishad.

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62

Estratégias de expansão do hinduísmo no Ocidente

Esta mudança no quadro político e institucional da Índia do pós-guerra reflete-se

também em uma consciência diferente do hinduísmo em relação à sua auto-imagem e a suas

formas de propagação em decorrência desta. Assim, questiona-se hoje uma das principais

estratégias de expansão do hinduísmo no Ocidente, calcada em sua apresentação não como uma

religião, mas como uma filosofia ou como um modo de vida51. Em que pese o fato de que,

efetivamente, o hinduísmo não pode ser entendido apenas como uma religião, strictu sensu, por

ser, mais do que isto, um sistema sócio-religioso, seu conteúdo propriamente religioso, contudo,

não pode ser minimizado. Esta questão é apresentada em Kak da seguinte forma:

“The first issue that confronts the modern Hindu is that of self image. Due to an infortunate posturing Hindus often claim that theirs is not a religion but rather a way of life and that Hindus do not believe in conversion. Both these premises are false and indefensible, Hinduism is a religion based on the illuminations of the Vedic rishis, as expressed in the Vedas, the Upanishads, the Bhagavad Gita and the Shaivic agamas. With its emphasis on self-knowledge the Hindu tradition celebrates diversity, but the unity underlying this diversity is apparent to each Hindu and any objective outsider” (1990, s/n).

Em seguida, o autor critica aquilo que considera ser uma imagem criada pela

“ortodoxia da fraturada sociedade hindu do século XIX”, a de que o hinduísmo não visa a

conversão:

“The claim about not wishing to convert others betrays insincerity if not irrationality (...). This claim is not validated by the history of Hinduism otherwise how would it have spread from Palestine (remember the Mitannnis in the second millenium B.C.) to East and Southeast Asia? This false interpretation was fostered by the ortodoxy of the fractured Hindu society of the nineteenth century and it has led to an aloofness and self-absorption that is

51 Este tipo de estratégia foi particularmente visível em anos recentes no Movimento Hare Krishna, no Rio de Janeiro. A venda de livros e incensos produzidos pelo grupo em ônibus de grande circulação na cidade tornou-se uma das formas principais de propaganda e obtenção de recursos do grupo, sendo sempre precedida por um discurso em que os devotos se apresentavam como “estudantes de filosofia” em busca de recursos para seus estudos. Embora, a rigor, isto não fosse uma mentira, certamente não deixava de ser também uma maneira de encobrir os aspectos religiosos do grupo em benefício de uma imagem que talvez lhes parecesse mais palatável para o público urbano em geral. Neste sentido, também parece significativo o fato de que os devotos, nestas ocasiões, não se apresentavam trajando as tradicionais túnicas cor-de-laranja do grupo, mas roupas absolutamente seculares, blue jeans, camisetas e bonés que ocultavam as cabeças raspadas, marca também típica dos devotos do movimento Hare Krishna.

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63

morally and ethically wrong besides being against its own tradition. Hinduism has had a rich history of conversion through persuasion, debate, and shastrartha.” E conclui: “The way of Hinduism is different from that of Christianity and Islam, and not to acknowledge this is not being truthfull” (Ibid., s/n).

Neste sentido, a inclusão de figuras santas de outras tradições no hinduísmo, a

exemplo da apresentação de Jesus Cristo como um avatar, é criticada também, sobretudo por

parecer incorporar algo da estratégia de expansão do próprio cristianismo na Índia:

“It’s also common nowadays for certain Hindu gurus to take inclusiveness beyond the realm of reason and claim Jesus to be an avatara. How anybody can make this claim without personal knowledge or without regard to history is beyond reason. If the idea is to get Christians to become Hindus by deceit that should be roundly condemned It smacks of the way many Christians missionaries are masquerading as sannyasis in ashramas in India” (Id.).

Apesar desta análise não poder ser tomada como representativa do conjunto das

visões sobre a expansão do hinduísmo dentro da sociedade indiana hoje, ela me parece

significativa, entretanto, por indicar aquilo que poderia ser tomado como um segundo viés no que

diz respeito à “representação de si mesmos” iniciada no final do século XIX . Se, naquele

momento, as necessidades de afirmação da identidade hindu parecem ter levado a um certo tipo

de “concessão” no que diz respeito à flexibilidade na incorporação de outras tradições, sobretudo

quando se tratava de uma busca de adesão fora da Índia algo que se verifica tanto na Missão

Ramakrishna quanto na Self-Realization Fellowship em um segundo momento, pós-

independência, estas flexibilizações não teriam mais razão de ser. Os conflitos vivenciados por

visitantes cristãos do ashram da Divine Life Society na Índia, descritos por McKean, parecem

apontar nesta direção (Op. cit.).

Na verdade, mais do que uma sucessão no tempo, que implicaria no desaparecimento

de uma posição em detrimento da outra, o que parece estar em jogo, do final do século XIX para

cá, é uma convivência destas duas posições dentro do hinduísmo, uma mais voltada para os

ditames do nacionalismo hindu, tal como postulado por organizações como o Vishva Hindu

Parishad, e outra que enfatiza mais o universalismo das práticas religiosas hindus (Id., p.164).

As seitas hindus que se deslocaram para o Ocidente estariam, em sua maior parte,

enquadradas neste segundo caso. Assim, se sua permeabilidade a figuras centrais da doutrina

Page 73: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

64

cristã pode ser tomada como parte de uma estratégia de expansão, cujo modelo, gestado no final

do século XIX, ainda serviria de guia para grupos como o Siddha Yoga, isto não significa, por

outro lado, que se deva deixar de reconhecer o conteúdo , de fato, mais permeável das

concepções religiosas hindus a outros credos52, e, a partir daí, o surgimento efetivo de uma

possibilidade mais ampla de diálogo com outras tradições religiosas.

Apesar de reconhecer as duas posições acima mencionadas dentro do hinduísmo, uma

mais nacionalista e outra mais universalista, parece-me que a análise de McKean não contempla

aspectos importantes relativos às condições e contextos de produção das mesmas, o que a leva a

adotar explicações em que a lógica do presente parece se impor sobre o passado. Assim, ao

analisar uma figura como a de Vivekananda, ela o faz à luz dos parâmetros do nacionalismo

hindu tal como colocado hoje, como se o sentido do discurso de Vivekananda no início do século

tivesse as mesmas implicações do discurso nacionalista hindu atual. Ao fazer isto, ela parece

justamente assumir a versão que os nacionalistas hindus de hoje produziram sobre Vivekananda:

a de que ele teria sido um “pai” do movimento, e matriz de suas principais idéias. Sem perder de

vista possíveis continuidades do discurso nacionalista hindu na Índia do período da Renascença

Hindu até os dias de hoje, me parece que ignorar seus respectivos contextos históricos apaga

diferenças importantes. Neste sentido, por exemplo, creio que fica obscurecido o sentido

progressista da atuação de Vivekananda, num momento em que estava em jogo a discussão das

consequências da dominação britânica na Índia e o papel do cristianismo missionário dentro dela,

ou, para usar os termos de que me servi para nortear as discussões deste capítulo, quando estava

em jogo a passagem decisiva de “ precisarem ser representados” para a “representação de si

mesmos”. Tal fato reveste o sentido do nacionalismo hindu proposto por Vivekananda de um

caráter inteiramente distinto, obviamente, daquele que se coloca hoje.

Discussões sobre o sentido da vinda dos gurus para o Ocidente

Um outro ponto da análise de McKean que me parece questionável diz respeito à

redução do fenômeno da vinda de gurus para o Ocidente, ou a ida de ocidentais para o Oriente

52 De fato, poder-se-ia dizer que a própria concepção do divino nas tradições hindus enseja um tipo de proselitismo menos agressivo do que o de outras religiões. Sobretudo no caso de suas vias místicas, em que há o reconhecimento

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65

em busca de seus ensinamentos, a um tipo de leitura “secularizada”, que ainda parece prevalecer

nos meios acadêmicos, por meio da qual fenômenos do campo religioso deixam de ser

considerados dentro de seus próprios termos. Longe de desconhecer o imbricamento destes com

diversas outras instâncias da vida social, como demonstra brilhantemente a própria Mckean, ao

analisar o papel central desempenhado hoje pelas organizações religiosas sectárias hindus na rede

de relações clientelísticas que domina a cena política na Índia moderna, creio que ignorar o que

se passa dentro destas seitas sob o prisma das experiências religiosas vividas por seus adeptos

parece empobrecer imensamente as implicações que se pode retirar de seu estudo. Assim, tendo a

concordar com o comentário de Kripal sobre o trabalho de McKean, no sentido de parecer

improvável que a relação guru-discípulo “nada mais seja” que troca econômica assimétrica,

exploração social e nacionalismo político (1997, p.209).

Reduzi-la a estes termos é ignorar o quê, afinal de contas, faz com que a religião,

apesar de todas as previsões em contrário, não pareça algo que possa ser descartado da agenda

dos homens. Assim, se tomarmos como verdadeira a afirmação de Luckmann, de que “a religião

como parte da vida humana nunca enfraqueceu substancialmente e, de fato, permaneceu nas

vidas das pessoas comuns, mesmo nas sociedades industriais modernas” (Luckmann 1991, p.169,

apud D’Andrea, op. cit., p.133) , parece que não nos aproximamos muito de explicar as razões

desta permanência se nos detivermos apenas nos aspectos que procuram subsumir as religiões a

outras lógicas. Raciocinar desta maneira, conduz-nos a subestimar, de certa forma, a capacidade

dos sujeitos e a tomá-los, no caso da adesão às religiões, como vítimas de armadilhas

engendradas por sistemas de dominação calculadamente montados com o fim de enganar os que

deles se aproximam. Esta lógica da vitimização dos sujeitos, ignora sistematicamente as escolhas

implicadas nos caminhos por eles percorridos e obscurece assim o outro lado da moeda deste

percurso em que, na hipótese de ter havido vítimas, foram necessárias opções que conduziram os

sujeitos, em determinados momentos e sob certas circunstâncias de suas vidas, a estar na posição

de poderem se tornar vítimas (sobretudo nos casos da adesão de devotos ocidentais a estes

grupos). Talvez fosse mais frutífero desvendar as razões que serviram de base para as opções

mencionadas, ao invés de rotulá-las apriorísticamente como ligadas a uma falsa consciência dos

atores, e, por isto mesmo, pouco dignas de exame.

de que experimentar a realidade divina é mais importante do que a variedade de formulações sobre ela.

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66

O cerne da crítica de McKean, no caso da Divine Life Society, poderia ser estendido

a todos os tipos de organizações sectárias hindus modernas, entre as quais o Siddha Yoga (que,

como aquela, mantém-se funcionando na Índia e no Ocidente ao mesmo tempo). Para essa autora,

a ênfase dos gurus em uma espiritualidade transcendente se prestaria a eximir sua clientela de

classe média de encarar o papel que suas atividades econômicas e crenças socio-religiosas

desempenham na criação dos horrores sociais e econômicos que a cercam. Além disto,

contribuiria também para desviar a atenção das “transações econômicas oportunísticas” que os

gurus utilizam para atrair riqueza para si mesmos. E, finalmente, serviria para apoiar um

nacionalismo hindu chauvinista que se orgulha de ser “tolerante” enquanto trabalha ativamente

para minar os interesses das em numerosas minorias marginalizadas da nação indiana. Ainda que

todos estes fatores estejam presentes e os dados reunidos por McKean sobre a Divine Life

Society são bastante sugestivos nesta direção apontá-los sem levar em consideração o que é

oferecido aos devotos em termos de experiência religiosa e como eles a recebem e reelaboram

para si, só leva a obscurecer pontos essenciais implicados no fenômeno.

A absorção de elementos culturais do Ocidente pelas seitas de origem hindu

Uma discussão importante em relação à qual o texto de McKean nos aporta pistas

valiosas, por outro lado, está ligada à questão dos tipos e graus de “ocidentalização”

experimentados por estes grupos a partir de seu deslocamento para o Ocidente. Neste sentido, a

questão do “comércio da espiritualidade”, um dos pontos mais polêmicos em relação a estas

organizações no Ocidente, é abordada por McKean de uma forma que nos permite relativizar a

idéia de que este seria decorrente da “ocidentalização” daquelas pelos valores da sociedade de

consumo capitalista, consolidada no século XX, e cujo apogeu teria se dado no pós-guerra. A este

respeito, a autora nos faz remontar a raízes mais antigas, comentando que as relações comerciais

entre os líderes ascéticos de organizações religiosas na Índia e a sociedade envolvente já eram um

fato desde o final do século XVIII e ao longo do XIX, em decorrência do contato com a

sociedade colonial britânica, que teria, digamos assim, como que “contaminado” a sociedade

indiana com alguns de seus valores (op. cit., p.18-19). Com isto, não se pode dizer que apenas os

gurus que vieram para o Ocidente teriam um perfil “mercantilizado”, uma vez que este ethos já

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67

teria sido construído antes de seu deslocamento, dentro da própria Índia e entre os próprios

devotos hindus.

Apesar disto, parece não restar dúvida de que a vinda de gurus para o Ocidente a

partir da Contracultura fez com que este ethos passasse por uma significativa acentuação, em que

pese o caráter inicialmente crítico dos movimentos alternativos à sociedade de consumo. Prova

disso são as numerosas lojas dentro dos centros de meditação do Siddha Yoga hoje, que

respondem por um comércio expressivo de artigos religiosos e pára-religiosos, bem como as

queixas de ex-devotos sobre a quantidade de “quinquilharias” que acabam comprando em

momentos depois considerados como de “descontrole”.

Um outro aspecto em se que evidenciaria esta via de mão dupla, em que os grupos

sectários que se deslocam para o Ocidente parecem absorver aspectos da cultura em que se

instalam, diz respeito à adoção de técnicas emprestadas à psicologia. Assim, se uma das marcas

principais da apropriação das religiosidades orientais no pós-Guerra, da Contracultura à Nova

Era, foi sua combinação a elementos da psicologia desenvolvida no Ocidente, este processo teve

como contrapartida a adoção de diversas técnicas da psicologia no interior de muitos dos grupos

sectários hindus53 que se estabeleceram no Ocidente. No Siddha Yoga esta questão é

particularmente visível, podendo ser observada tanto em procedimentos utilizados durante as

cerimônias do grupo, como no seu preparo e nos cursos regularmente oferecidos54.

Outros campos em que se poderia distinguir uma “ocidentalização” dos grupos

orientais que saem da Índia, são os aspectos gerenciais e de mídia, bem como os de tecnologias

de comunicação adotados. No caso do Siddha Yoga, tem sido cada vez mais frequente, por

exemplo, a realização de cursos intensivos satelitizados, que ocorrem simultaneamente em todos

os centros do grupo no mundo a partir da transmissão por satélite de cerimônias realizadas em

South Fallsburg. Este método permite que haja uma interatividade entre os diferentes centros

durante as transmissões, com perguntas feitas de quaisquer dos locais conectados sendo

53 Um grupo em que este aspecto se desenvolveu de forma particularmente significativa foi o de Rajneesh. Para maiores informações a seu respeito, ver o trabalho de Heelas e Thompson (1986). 54 Um exemplo disto é um mecanismo recorrente utilizado nas cerimônias, de agrupar os devotos em pequenos grupos para trocarem entre si experiências de contemplação e em seguida apresentá-las ao conjunto dos presentes. Estes exercícios, que lembram técnicas de dinâmica de grupo bastante utilizadas na psicologia, são realizados em cima de temas propostos pelo condutor da cerimônia, como por exemplo, pensar-se sobre uma situação em que se viveu uma experiência de amor incondicional, e em seguida discuti-la dentro do grupo. Ao final, sempre se retira uma conclusão geral, que reforça aspectos doutrinários.

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68

respondidas diretamente e ao vivo pelos condutores das cerimônias nos Estados Unidos. No

campo gerencial, o Siddha Yoga é administrado através de modernos procedimentos cujas

diretrizes são estipuladas em South Fallsburg e incluem a complexa organização e contabilidade

dos centros de meditação implantados nos diversos países em que o grupo atua, bem como a

organização de viagens dos monges e do guru pelos diversos centros. Como se percebe, parecem

já ter sido deixados para trás, há muito tempo, os ideais contraculturais que se opunham aos

valores da sociedade industrial de massas que marcaram a primeira fase de apropriação das

religiosidades orientais no pós-Guerra.

Neste sentido, constatamos uma convergência com a análise de Bellah, no que diz

respeito a uma espécie de “domesticação” dos movimentos que se seguiram à Contracultura e ao

papel das religiões orientais na adaptação de jovens ao modelo social originalmente contestado

por ela. Segundo ele, os movimentos dos anos 70, “especialmente os explicitamente religiosos,

foram, em um sentido bastante literal, unidades de sobrevivência. Forneceram um conjunto social

estável e um conjunto coerente de símbolos para jovens desorientados pela cultura da droga ou

desiludidos com a política radical. O que Synanon reivindica ter feito pelos viciados em drogas

pesadas, os grupos religiosos dos zen budistas aos Jesus people fizeram pelos ex-hippies.

(....) Gregory Johnson chama atenção, em relação a esta função, explicitamente para a Krishna

Consciousness Society, que se desenvolveu em meio à desintegração de Haight-Ashbury como

uma utopia hippie. O aspecto de missão-resgate dos movimentos posteriores alcançou resultados

tangíveis. Em muitos casos, a reconciliação com os pais foi facilitada pelo estilo de vida mais

estável e pela ideologia religiosa que propunha a aceitação e não o confronto. Desenvolveu-se

uma orientação nova e mais positiva para com os papéis ocupacionais.” (Op. cit., p.28, grifos

meus).

O Siddha Yoga, como diversos grupos de origem oriental, nada mais tem de

“contracultural” neste sentido, direcionando-se muito mais hoje em dia para uma perspectiva de

adequação à sociedade, conforme apontado por Bellah, do que para sua contestação. Meditar não

é apresentado como algo que retire ninguém do mundo, mas, pelo contrário, como algo que torna

os indivíduos melhor inseridos dentro dele. O que, de certa forma, parece mais próximo ao

sentido do hinduísmo tal como colocado no lugar aonde teve origem: um sistema sócio-religioso

muito mais voltado para uma atitude de amoldamento ao mundo do que de intervenção dentro

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69

dele55. Este “Oriente” com que os adeptos ocidentais do Siddha Yoga se relacionam hoje, nada

mais tem a ver com um “Oriente” associado à idéia de transformação do mundo. Nem mesmo de

sua reforma. Esta mudança não deixa de ser significativa se levarmos em conta que Swami

Muktananda, responsável pelo deslocamento do grupo para os Estados Unidos em 1970, foi uma

presença constante no circuito alternativo da época, dando palestras nos mesmos locais por onde

passaram figuras como Baba Ram Dass, Timothy Leary e o próprio Allen Ginsberg. Se nesta fase

inicial, as primeiras adesões ao grupo estiveram marcadas pelos ideais e valores alternativos da

Contracultura, o que se verifica hoje é uma adesão de pessoas completamente integradas ao

sistema ao grupo, e que não vêem nisto nenhum ponto de tensão. Das técnicas de comunicação ao

vestuário recomendado aos frequentadores, que sugere trajes comportados como tailleur e blazer,

caso não se queira utilizar roupas indianas, nada parece lembrar os padrões alternativos

consagrados nos anos sessenta.

Assim, da mesma forma como a Nova Era ao dar continuidade a certos ideais

produzidos durante a Contracultura parece tê-los esvaziado de seus conteúdos mais críticos em

relação ao sistema, algo semelhante parece ter ocorrido na trajetória dos grupos orientais que se

instalaram no Ocidente. No caso do Siddha Yoga, o que se busca hoje é fornecer meios aos

adeptos para atuar da melhor forma neste mundo, tal como ele é. Neste sentido, nada exprime

melhor o novo ethos do que a explicação da doutrina da shaktipat dentro do grupo. Este processo

em que, segundo as tradições tântricas, se verifica uma transmissão instantânea da graça do guru

para o discípulo, capaz de produzir o despertar da kudalini e dar início ao caminho espiritual do

devoto, é descrito hoje, nas cerimônias do grupo, como um presente de Swami Muktananda para

o Ocidente, preocupado com a economia de tempo representada por este processo para a vida

agitada e cheia de obrigações dos adeptos ocidentais. Com a shaktipat, estariam sendo poupados

a estes adeptos anos de práticas ascéticas. Assim, nada mais se torna um obstáculo para a adesão:

sem alterar seus hábitos ou seu estilo de vida, os devotos ocidentais têm a seu alcance a chave

para a entrada no mundo espiritual.

55 Para uma apresentação detalhada sobre esta visão weberiana das religiosidades orientais como marcadas por um ethos de amoldamento dos indivíduos ao mundo, em contraposição a um ethos de atuação e superação dos indivíduos em relação à sua condição de vida neste mundo, presente sobretudo na versão puritana do cristianismo, ver Goldman (1988).

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70

Capítulo 2: A prática das religiosidades de origem hindu como experiência

reflexiva no Ocidente.

2.1) A busca da experiência religiosa no Ocidente através do Oriente.

Como apontei no capítulo anterior, a representação de si mesmos trouxe como marco

a incorporação da prática das religiosidades orientais no Ocidente, adicionando assim um

elemento novo à apropriação essencialmente intelectualista que fora feita daquelas religiosidades

até então. Tendo se prestado basicamente ao apoio de uma visão filosófica sobre o homem que

contestava a visão iluminista em prol dos ideais românticos, tratar-se-á agora de algo que, mais

do que uma concepção, introduz uma prática que se instaura na vida quotidiana dos adeptos,

conferindo à experiência religiosa um estatuto que ela vinha perdendo com a hegemonia de um

certo viés das tradições de caráter ascético e racional no Ocidente cristão, em que as

determinações éticas se sobrepunham às expressões fenomenológicas da experiência religiosa. O

Oriente parece ter sido um campo fértil para a canalização, no lado ocidental, da insatisfação com

os rumos destas religiosidades hegemônicas. Como aponta Bellah:

“As Igrejas [norte-americanas] estavam totalmente despreparadas para lidar com a nova espiritualidade dos anos 60. A demanda por uma imediata, poderosa e profunda experiência religiosa, que fazia parte do deslocamento de um instrumentalismo orientado para o futuro para um significado e uma satisfação presentes, não pôde ser atendida, em seu conjunto, pelas corporações religiosas” (Bellah, op. cit., p.26).

Neste sentido, as religiosidades que se afirmaram a partir da contracultura parecem

ter sido aquelas que se prestaram a propiciar vivências religiosas, algo a ser experimentado, para

seus adeptos:

“Já levamos em consideração alguns dos temas comuns da contracultura dos anos 60. Podemos enfocar agora como eles sobreviveram e como foram elaborados nos movimentos que a sucederam. A experiência imediata, mais do que a crença doutrinária, continua a ser o elemento central em todos os

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71

movimentos religiosos incluindo os movimentos de Jesus, e também no movimento pelo potencial humano” (Id., p.31, grifos meus).56

Vale registrar que a valorização da experiência no campo religioso nunca esteve

ausente das tradições cristãs, católicas e protestantes57. Assim, o que se vê atualmente dentro do

catolicismo, através de suas correntes carismáticas, bem como em alguns variantes do

protestantismo, como o neo-pentecostalismo, parece ser a manifestação desta busca por uma

vivência do sagrado pelos adeptos, ainda que este seja considerado e expresso de maneiras

distintas.

Definição das religiosidades ascéticas e místicas em Max Weber

Nos termos do esquema proposto por Weber, poderíamos sugerir que o que está em

jogo nas novas formas de expressão religiosa no Ocidente é a busca daquilo que ele definiu como

religiosidades de tipo místico, a seu ver uma segunda via de acesso, ao lado das religiosidades

ascéticas, para os processos de interiorização.

56 Danièle Hervieu-Léger, tentando definir as características destes novos movimentos religiosos que vem se afirmando na cena ocidental contemporânea a partir dos anos 60, afirma que “eles rejeitam o caráter mumificado das formas de expressão autorizadas que as instituições religiosas oferecem aos fiéis. Eles se opõem também à abstração das formulações dogmáticas e dos quadros rituais no interior dos quais as instituições pretendem encerrar, para melhor controlá-lo, o dinamismo imprevisível da experiência religiosa individual e coletiva. Esta crítica explícita ou implícita da ‘frieza’ das instituições religiosas e da pouca atenção que elas dedicam às necessidades emocionais dos fiéis questiona, mais amplamente, a dependência frente ao primado moderno da razão na qual as Igrejas progressivamente se colocaram. Todos os movimentos religiosos emocionais contemporâneos fazem da perda da substância emocional da vida comunitária a conseqüência do ajuste das instituições religiosas à regra do jogo de um campo religioso separado e especializado. Eles contestam, explícita ou implicitamente, este amoldamento passivo à modernidade que, longe de assegurar às igrejas a audiência social procurada, produziu, segundo eles, o recalque massivo da própria experiência religiosa” (Op. cit., p.40). 57 A este respeito parece significativo o depoimento de uma ex-devota do Siddha Yoga que, criada no catolicismo, retornou a ele depois de anos de dedicação à ioga para tornar-se monja beneditina: “Hoje, olhando para trás, percebo que busquei (...) na ioga verdades contidas no catolicismo de uma forma mais integral e completa, porém desconhecida para mim” (Sodré, 1998, p.6). Este desconhecimento me parece revelar a falta de visibilidade das correntes mais místicas do cristianismo para a maioria de seus fiéis. Tanto o desprestígio destas, como a tentativa de não enfatizar elementos mágicos de suas doutrinas, é explicado por alguns autores como parte do esforço das igrejas tradicionais cristãs para não entrar em conflito com o prestígio crescente das explicações científicas associadas à racionalidade moderna. Este raciocínio, presente no texto acima citado de Hervieu-Léger (op. cit.), também se encontra em Frigério (1998).

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72

É no contexto de sua discussão sobre a salvação que podemos depreender a distinção

formulada por Weber entre as religiosidades ascéticas e místicas, relacionando as primeiras a um

determinado tipo de ação, ligada a uma ética, e as segundas a um estado de ânimo. Assim: “Pode

também ser que o bem de salvação (...) não constitua uma qualidade ativa do fazer, não sendo,

portanto, a consciência da execução da vontade divina, mas sim um estado de ânimo de natureza

específica. ” (Weber, 1994, p.366, grifos meus). O sentido da salvação nos dois casos é

formulado em seguida da seguinte forma:

“Para o asceta, a certeza da salvação comprova-se na ação racional unívoca em sentido, meios e fins, de acordo com princípios e regras. Para o místico, que está realmente de posse do bem de salvação, concebido como uma condição, a conseqüência desta condição pode ser, ao contrário, o anomismo: o sentimento — não manifestado no agir e na natureza desse agir mas numa condição sentida e na qualidade desta — de não estar mais vinculado a nenhuma regra de ação, porém de conservar a certeza absoluta da salvação, faça o que fizer” (Id., p. 369, grifos meus).

A distinção estabelecida por Weber entre estes dois tipos de racionalização religiosa

foi acompanhada de uma análise que situou a racionalização de tipo ético como mais tipicamente

ocidental, e a de tipo místico como mais tipicamente oriental, conforme se vê neste comentário

de Geertz:

“Weber viu duas maneiras através das quais isto pode ser feito [estabelecer uma relação mais geral e compreensiva com o divino, típica das religiões racionalizadas]. Uma é através da construção de um código legal-moral, formal, conscientemente sistematizado, consistindo de comandos éticos concebidos como tendo sido dados ao homem pelo divino, através de profetas, escrituras sagradas, indicações miraculosas, e etc. O outro é através do contato experimental individual, direto, com o divino, através do misticismo, insight, intuição estética, etc., geralmente com o apoio de vários tipos de disciplinas intelectuais e espirituais altamente organizadas, como a ioga. O primeiro approach é, claro, tipicamente, embora não exclusivamente, do Oriente Médio [mid-Eastern no original, e o que estou chamando de via ocidental]; o segundo tipicamente, embora também não exclusivamente, do Oriente [East Asian no original, que estou chamando de via oriental]” (1973, p.173, tradução e grifos meus).

O crescimento do interesse pela via mística no Ocidente como sintoma de

“orientalização”

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73

O que nos interessa contribuir para desvendar neste capítulo seriam então as razões

do crescimento do interesse no Ocidente por esta via que Weber definiu como mais tipicamente

oriental, ou, para usar os termos de Campbell, para pensarmos naquilo que poderia ser

qualificado como um processo de orientalização do Ocidente (1997). Contudo, vale registrar que,

se em Campbell, esta orientalização é definida sobretudo em termos de um processo de

imanentização da divindade, gostaríamos de propor aqui, acompanhando a linha de raciocínio de

Weber, que a valorização da dimensão da experiência direta com o divino seria talvez um ponto

ainda mais importante a enfatizar, se quiséssemos utilizar a expressão “orientalização do

Ocidente”. Ao menos, é isto o que pude perceber em relação ao que atraiu os participantes da

contracultura e seus seguidores para as religiões orientais: a possibilidade de experimentar a

relação com o divino, fosse este concebido como o vazio do tao ou o brahman dos hindus. Nestes

casos, pouco importava a forma, desde que estivesse assegurada uma dimensão da experiência no

sentido de uma prática e não de um approach intelectual. A rejeição do “caráter mumificado das

formas de expressão autorizadas pelas instituições religiosas” (Hervieu-Léger, op. cit., p.40),

presente já nas vozes dos Transcendentalistas norte-americanos do século XIX (ver capítulo 1),

correspondeu a uma busca da experiência direta, de preferência sem mediação institucional.

De qualquer forma, sempre vale fazer a ressalva de que nem a imanentização nem a

experiência do contato direto com o divino pela via mística estiveram ausentes das tradições

cristãs. Contudo, sua valorização e difusão no Ocidente neste século, atingindo um número sem

precedentes de devotos58, parece ter acompanhado o crescimento do interesse pelas religiões

orientais tal como colocado a partir da contracultura, isto é, quando se intensificou a

implementação da busca pela dimensão prática, vivida, daquelas religiões.

O Oriente como “outro” para afirmação da via mística no Ocidente

Como a maior parte dos adeptos ocidentais do Siddha Yoga são provenientes das

tradições cristãs, poderíamos ser tentados, ao analisar suas trajetórias, a arriscar interpretações

58 Embora não disponhamos de estatísticas precisas aqui, a própria disseminação atual do movimento Nova Era parece constituir um indicador substantivo nesta direção.

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74

que os apontassem quer como exemplos de um processo de “orientalização” do Ocidente, quer

como exemplos de “cristianização do Oriente”. Tomando como eixo dessa discussão a temática

da imanentização, colocada por Campbell no centro da argumentação em favor da existência de

um processo de “orientalização” em curso no Ocidente (1996), parece-nos não ser muito simples

corroborá-la, justamente porque, conforme apontamos acima, processos de imanentização

estiveram presentes nas duas tradições, muitas vezes lado a lado com visões transcendentes da

divindade 59.

Assim, retomando de certa forma a argumentação desenvolvida no Capítulo 1, creio

que estaríamos neste caso, mais uma vez, diante da ambigüidade presente na busca do “outro”,

em que o que parece muitas vezes estar em jogo é uma busca de algo que já estava presente em si

mesmo, sob outras linguagens. Tratar-se-ia portanto, aqui, de corroborar algo já existente a

presença de perspectivas imanentistas no Ocidente através do recurso à imagem do “outro”.

Considero, contudo, significativo, em favor da linha de argumentação de Campbell, o

fato de que, no depoimento desta ex-devota do Sidhha Yoga que retornou ao catolicismo, está

presente uma percepção de que a tradição cristã faz uma demarcação mais nítida entre o sagrado

e o profano do que a tradição das iogas:

“Essa comunhão [com Cristo] e conhecimento de Deus não é vista (...) nem como substancial (segundo a visão panteísta) nem como hipostática (ou seja, específica da hipóstases ou Pessoa Divina e pela qual, exclusivamente em Cristo a união de duas naturezas distintas, a divina e a humana, subsistem na Segunda Pessoa da Trindade, o Verbo de Deus). O homem não participa da essência divina (pois nesse caso seria Deus), nem se limita apenas a uma simples comunhão com a graça criada. Ao receber o Espírito Santo, no batismo, o cristão se torna templo do Espírito Santo e pala inhabitação do Verbo Divino em seu coração passa a ser iluminado de dentro pela graça incriada, num processo de transfiguração que faz dele uma nova criatura. (...) sem ultrapassar o abismo ontológico entre Deus e criatura, ele a preenche com a sua presença” (Sodré, 1998, p.12).

Buscando avançar um pouco na direção proposta por Campbell, gostaria de chamar

atenção para a importância de não se perder de vista o fato de que a adoção de perspectivas

imanentistas no Ocidente, mesmo quando apoiadas diretamente na absorção de religiosidades

59 Conforme se depreende da história das heresias cristãs, o que muitas vezes provocou sua marginalização pelo

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75

orientais, como é o caso das iogas, estará sempre informada pelos diversos processo culturais do

Ocidente. Este é um dos pontos que pretendemos desenvolver neste capítulo, mostrando o quanto

este traço “oriental” será apropriado segundo um viés específico de construção da pessoa, o do

Ocidente, marcado pela interiorização como um atributo central. Esta interiorização, como

veremos, trará consigo um componente de reflexividade que implicará na produção de um

sentido novo para a imanentização tal como colocada no contexto do hinduísmo. Tratar-se-á aqui

de um processo em que o caráter de sacralidade produzido pela visão imanentista das tradições

ióguicas irá apoiar de uma maneira inesperada o velho “culto do eu”, tal como colocado no

Ocidente desde a tradição romântica. Assim serão as singularidades da experiência pessoal de

cada devoto no mundo a matéria prima principal para a construção da perspectiva imanentista.

2.2) A retomada do interesse pela experiência mística no campo sociológico

Retomando a questão do aumento do interesse no Ocidente pela experiência direta

com o divino ou pela via mística, nos termos de Weber vale esclarecer que estamos nos

referindo não a experiências que envolvam uma relação intelectual (no sentido do senso comum

deste termo) com a divindade, ou mesmo de fé, mas como algo que aciona basicamente

elementos emocionais, envolvendo tanto fenômenos do corpo quanto da mente. Para usar os

termos de Weber, estaríamos pensando aqui na mística que incorporaria o desejo primitivo de um

gozo imediato, afetivo e direto, um “habitus emocional puro” (Weber, apud Hervieu-Léger, op.

cit., p.38). Neste sentido, vale a pena apontar o interesse pioneiro de Mauss pelos fenômenos

corporais e sua percepção sobre a centralidade destes na produção de determinados fenômenos do

campo religioso, conforme se verifica neste trecho, em que ele comenta as iogas:

“Não sei se prestaram atenção ao que nosso amigo Granet já indicou acerca de suas importantes pesquisas sobre as técnicas do taoísmo, as técnicas corporais, da respiração em particular. Fiz muitos estudos nos textos sânscritos da ioga para saber que os mesmos fatos se encontram na Índia. Acredito que, precisamente, há, mesmo no fundo de todos os nossos estados místicos, técnicas corporais que não estudamos e que foram perfeitamente estudadas pela China e pela Índia desde épocas muito antigas. Este estudo socio-

corpo constituído das igrejas foi exatamente a tentativa de afirmação de conteúdos místicos de forte viés imanentista.

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76

psicobiológico da mística deve ser feito. Penso que há necessariamente meios biológicos de entrar em ‘comunicação com Deus’. Enfim, embora a técnica da respiração, etc. seja o ponto de vista fundamental apenas na Índia e na China, acredito que esteja espalhada de uma forma muito mais geral. Em todo caso, temos acerca desse ponto meios para compreender um grande número de fatos que não compreendemos até agora. Acredito até que todas as descobertas recentes em reflexo-terapia mereçam atenção de nós, sociólogos, depois da dos biólogos e dos psicólogos... muito mais competentes do que nós” (1974, p.233).

Confinamento dos fenômenos místicos ao campo da psicologia: o misticismo como

patologia

A atenção para a mística desponta assim como um campo privilegiado para o estudo

da articulação do socio-psicobiológico, para utilizar a terminologia de Mauss. Em que pese o

reconhecimento da importância deste campo que, como se vê, já está presente nos momentos

fundacionais da disciplina sociológica, as resistências para tratá-lo têm sido inúmeras, fazendo

com que, até bem recentemente, seus estudos tenham ficado relegados a um papel secundário, em

função de seu confinamento ao campo psicológico, e mais, especificamente, à sua redução a

fenômenos patológicos. Neste sentido, é bastante sugestivo o comentário de Greelay e McReady,

em texto de 1974, no qual comentam as resistências, àquela altura, de considerar as experiências

místicas como dignas da atenção dos sociólogos:

“American sociologists (...) can scarcely be expected to take mysticism seriously. Such things don’t happen anymore in enlightened urban industrial society. (...) While the drug-induced ecstasies of the counterculture may have some interest as a form of social deviance, American social researchers simply dismiss as unthinkable the possibility that ecstatic experiences take place in “square” society. What’s the point of studying something that doen’t exist?” (1974, p.304)

E continuam comentando a posição dos psiquatras sobre o fenômeno místico:

“Some psychiatrists have been concerned with the phenomenon. Prince and Savage suggest that the mystical experience is “like’ regression. Kenneth Wapnick observes that mysticism is “like” schizofrenia; and R. D. Laing seems to say that transcendental experience is a form of schizophrenic or a regressed neurotic” (Id., p. 304).

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77

A este respeito vale registrar, no sentido da especificidade dos fenômenos místicos

em relação aos fenômenos patológicos, o comentário de uma psicóloga, ex-devota do Siddha

Yoga, assinalando a diferença entre ambos, no sentido de que na experiência mística ao menos

a vivida durante a meditação ióguica a vivência de disjunção da personalidade é algo

agradável, ao contrário do aspecto angustiante e terrível da vivência psicótica da disjunção:

“No estado de transe da ioga, tive a experiência da ampliação dos limites do meu eu: embora percebendo meu corpo físico usual, era como se eu tivesse em mim um ‘corpo de vapor’ (...) que podia ficar do tamanho da sala; outras vezes, foi a noção do tempo relativo que desapareceu e eu tive a vivência de um tempo ou de um momento estático, imóvel, infinito; também me ocorre ver meu corpo ser movido e realizar gestos totalmente desconhecidos e inesperados (...) ou ainda perceber a realidade externa como energia em vibração na forma de espirais, lembrando a realidade pintada nos quadros de Van Gogh. Todas esta experiências foram vividas num estado de indescritível felicidade, harmonia e lucidez que contrasta com a ansiedade, mal-estar, inconsciência de si mesmo e da realidade externa vividas nos relatos de experiências de conflito e divisão psíquica usualmente conhecidos pela patologia” (Sodré, 1988, p.10).

A visão tradicional dos cientistas sociais sobre os fenômenos místicos no início dos

anos setenta, contudo, ainda tendia a confiná-los, como apontam Greelay e McCready, ao campo

dos distúrbios psicológicos:

“The conditioned reflex of many social scientists when someone raises the subject of mystical ecstasy or confronts them with a person who has had such an experience is to fall back on psychoanalytic interpretations. The ecstatic is some sort of disturbed person who is working out a personality problem acquired in childhood. That settles the issue in most instances. They ‘know’ that the ecstatic episode is in fact some sort of psychotic interlude. With that as a basic premise, it is easy to prove that a given interlude was indeed psychotic because all mystical experiences are. Why then investigate such behavior phenomena as anything more or less than psychotic?” (Op. cit., p.304).

Esta “psicologização” dos fenômenos místicos parece ter constituído uma afirmação

da posição inaugurada por William James no início do século quando, pela primeira vez, buscou-

se uma articulação dos fenômenos religiosos à psicologia, particularmente no que diz respeito aos

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78

estados místicos, associando-se a possibilidade de sua experimentação a certos tipos específicos

de temperamentos (1958).

Poderíamos comentar aqui que, distúrbio ou não, esta característica não deveria servir

para eliminar o fenômeno místico do campo de reflexão da antropologia ou da sociologia; em

primeiro lugar, porque sempre haverá algo de culturalmente construído nestes fenômenos; e,

além disto, porque sempre haverá a elucidar e analisar como cada cultura vai lidar com o

misticismo. E, sobretudo, porque o crescente interesse pelo misticismo e pelas experiências

emocionais no campo religioso ocidental, hoje, é um fato, requerendo por isto novos olhares.

Esta renovação parece implicar em um ultrapassamento das perspectivas, até bem recentemente

hegemônicas no Ocidente, que tenderam a encarar as emoções como um resíduo, ou como algo

anti-racional. Neste sentido, segundo Reddy, “emotions cannot be regarded as they have been

in the West as a residual, somatic, antiracional domain of conscious life whose turbulence is a

constant threat to the formulation of clear intentions” (1997, p.331).

A falta de atenção para com os fenômenos místicos dentro da sociologia americana

parece ser explicável também por um outro aspecto, desta vez levantado por McGuire,

relacionado ao fato de que, até os anos 60, os estudos de religião nos EUA focalizaram quase que

exclusivamente as religiões oficiais e suas organizações:

“Another characteristic of U.S. Sociology of religion (...) was its nearly exclusive focus, until very recently, upon oficial religion and its organizational expressions. Until the 1960’s, most studies assumed “religion” to be identified by its Christian denominational forms. (...) One of the foremost changes in U. S. sociology of religion in the last two decades has been a great and potentially creative diversity” (McGuire, 1993, p.128).

2.3) A experiência mística e o campo das emoções

Como os fenômenos místicos, conforme apontado não apenas pelos estudiosos como

também por aqueles que os vivenciam, estão relacionados a estados de sentimento60, creio ser útil

destacar alguns aspectos das abordagens das ciências sociais sobre o campo das emoções.

60 De William James a Weber, passando pelas descrições sobre o “sentimento oceânico”, registrado por Freud, ou sobre o “totalmente outro” de Otto, ou pelos depoimentos dos místicos de todas as tradições, parece haver um

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79

Os anos oitenta irão trazer uma recuperação do interesse pela observação sociológica

das emoções e dos sentimentos, motivados pelos mais diversos interesses teóricos sobre a

compreensão da cena contemporânea, e não apenas sobre o campo religioso. É McGuire,

novamente, quem nos oferece um comentário importante sobre esta questão, expressando uma

visão crítica em relação ao abandono do campo das emoções pela sociologia da religião à área

psicológica, e às perdas implicadas nesta postura:

“When the sociology of religion has attended to the minds of believers, it has emphasized the cognitive functions of the mind, relegating study of emotions to psychologists. As a result, our discipline has grave difficulties comprehending and interpreting individuals’ self-experience, intersubjective experience, and fundamental religious experience” (Ibid., p.134).

A retomada do interesse pelas emoções no campo sociológico

Leila Amaral Luz aponta para esta questão da revalorização das emoções no campo

sociológico associando-a a uma busca de olhares alternativos à maneira “moderna” de apreender

os fenômenos, que estaria de alguma forma associada ao viés romântico, tal como o definimos no

capítulo 1. Assim, identificar-se-ia atualmente

“uma atitude em correspondência (...) a um tipo de moralidade que, como Bauman observa, vem restituindo, no mundo contemporâneo, em confronto com a ‘moralidade moderna’, uma dignidade às emoções, uma legitimidade ao inexplicável, ao irracional, ao ingênuo, às simpatias e lealdades que não podem ser explicadas em termos de seu propósito e utilidade (Bauman 1993:33). Confrontando-se com a ‘ilusão moderna’ para a qual a bagunça do mundo humano é temporária e será substituída pela regra da razão ordenada e sistemática, vem se constituindo, no mundo contemporâneo, à maneira de uma ‘contra-modernidade’, uma outra moralidade, cuja máxima seria o respeito pela ambigüidade da realidade humana, pelo arbitrário e pelo contigente. Em decorrência dessa atitude moral, segue-se a aceitação do mistério do mundo, incluindo o apreço pelas emoções e ações humanas, sem propósitos ou prêmios calculados, e a confiança na intuição moral da pessoa humana” (Luz, op. cit., p. 228-229).

consenso no sentido de que a experiência mística está relacionada a um tipo de impacto sobre os sentimentos observável apenas por aqueles que a experimentam.

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Ainda para outros autores, a valorização da questão da emoções faz parte de um

conjunto mais amplo de preocupações ligadas à emergência dos próprios processos de

individualização no Ocidente, discutidos no contexto da pós-modernidade. Nos termos de

Longman, tratar-se-ia das perspectivas e temas

“that have become valid fields of social scientific inquiry in the post-modern context. Sexuality, identity, the conception of the self, and finally emotionalitty have thus become problematized because of a process of individualization in Western culture, to the point that they can only be socially ‘captured’, thus losing all ground for possible social theory building” (1997, p.344).

Em Elias, a recuperação da observação do campo da experiência e das emoções estará

inscrita nos marcos de sua teoria sobre o Processo Civilizatório, segundo a qual a expressão

controlada do descontrole seria um dos aspectos mais marcantes da cena contemporânea,

constituindo uma das saídas encontradas modernamente para lidar-se com os processos de

recalque das emoções e dos instintos implicados no desenvolvimento das atitudes civilizadas61.

Para Elias, nas sociedades industriais avançadas, as atividades de lazer constituem um enclave

para o desencadear, aprovado no quadro social, do comportamento moderadamente excitado em

público, que cumpriria esta função de liberar o recalcamento dos instintos imposto pela sociedade

moderna. Assim,

“uma variedade de exemplos demonstra que, no decurso de um avanço de civilização, os movimentos tendem a ser refreados, por vezes, refinados. Em sociedades que se encontram num estádio anterior de um processo de civilização, o discurso dos movimentos tende a associar-se de forma mais profunda aos movimentos dos membros ou de outras partes do corpo de uma pessoa. Num estádio posterior de um processo de civilização, gestos efusivos e que chamam a atenção são, de uma maneira geral, condenados” (Elias, 1992, p.82).

61 William Reddy faz um interessante contraponto a esta posição, chamando atenção, com base em algumas obras do final do século XVIII de Germaine de Stäel, que a linha de argumento sustentada por Elias, Weber, Freud e Foucault, segundo a qual a história da civilização européia esteve relacionada a um aumento constante da repressão, do controle dos apetites e impulsos e da disciplina sobre si, também esteve ligada, por outro lado, a um refinamento e diferenciação no campo da expressão das emoções, que teria acompanhado a própria diferenciação no campo institucional que marcou aquela história. Para Reddy, a complexificação da vida emocional apontada por Madame de Stäel é coetânea de um aumento da autoconsciência dos indivíduos e apoiou sua busca por um preenchimento emocional do tipo disseminado pela tradição sentimentalista (Op. cit., p.339).

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Desta forma,

“enquanto nestas sociedades [mais diferenciadas] as rotinas públicas ou privadas da vida exigem que as pessoas mantenham um perfeito domínio sobre seus estados de espírito e sobre os seus impulsos, afetos e emoções, as ocupações de lazer e de algumas formas reminiscentes da sua realidade exterior autorizam-nas, de um modo geral, a fluir mais livremente num quadro imaginário especialmente criado por estas atividades (...). Muitas ocupações de lazer fornecem um quadro imaginário que se destina a autorizar o excitamento, ao representar, de alguma forma, o que tem origem em muitas situações da vida real, embora sem os seus perigos ou riscos” (Id., p.70).

Por conta desta direção de pesquisa, Elias chegará a um tipo de formulação muito

semelhante a de Mauss, propugnando um modelo de investigação que cruze as variáveis da área

psicológica com as da área social:

“Os psicólogos investigam, com freqüência, as emoções dos indivíduos da sua própria sociedade, como se elas tivessem apenas um caráter fisiológico, como se não fossem muito afetadas pelos contra-impulsos incrustados sob a forma de controles sociais aprendidos. Em qualquer caso, na sua forma primária, as emoções estão profundamente ligadas aos movimentos. (...) Duvido que seja possível uma adequada teoria das emoções enquanto psicólogos procederem como se a sua disciplina fosse uma ciência natural. Sem uma teoria do desenvolvimento social geral, e em particular de processos de civilização, não se pode explorar de modo adequado semelhantes aspectos dos seres humanos” (Id., p.83).

Para ele, esta questão ultrapassa as fronteiras de diversas ciências:

“É controverso saber se lhe poderemos chamar um problema interdisciplinar porque não surge como tal, quando se prossegue uma pesquisa estritamente dentro das fronteiras tradicionais de qualquer uma das ciências humanas. O problema possui os seus aspectos fisiológico, psicológico e sociológico. Mas embora estas distinções sejam suficientemente reais em termos dos limites disciplinares atuais, elas andam, com freqüência, associadas à ilusão de que o objeto de cada uma destas disciplinas possui uma existência separada. Em termos da realidade que definimos com a finalidade de a explorar [a busca da excitação através das atividades de lazer], as áreas com as quais estas três especialidades estão envolvidas, ainda que distintas, são inseparáveis e

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82

interdependentes. Todas estão relacionadas com seres humanos e estes não são constituídos por compartimentos estanques e independentes. O que foi separado, para efeitos de estudo, deve ser reunido de novo para o mesmo fim” (Dunning, Elias, 1992b:117-118).

Em seguida, referindo-se aos trabalhos de Aristóteles sobre a catarse, nos quais o

prazer é encarado como um elemento curativo, Elias volta a explicitar sua preocupação em

relação à moderna fragmentação dos domínios científicos, que, no caso de algumas temáticas,

como a do lazer, e esta será a nossa hipótese também para a religião (ver capítulo 3) parece

contribuir mais para seu obscurecimento do que para sua compreensão:

“Seria importante considerar outros aspectos da teoria de Aristóteles sobre os efeitos do lazer nas pessoas. Aquilo que se disse pode ser suficiente para mostrar que neste estádio ainda se podia analisar com bastante clareza um problema que é muito mais difícil de observar no estádio de desenvolvimento onde o estudo dos seres humanos se encontra nitidamente dividido entre numerosas especialidades diferentes, cuja relação entre si é incerta e onde falta qualquer esquema redentor de integração” (Id., p.122-123).

Perspectivas teóricas para a abordagem das emoções no campo sociológico

Tentando sistematizar a abordagem de Elias sobre a função das atividades de lazer na

sociedade contemporânea, Dunning comenta que ele

“atribui nítida prioridade à síntese em relação à análise, e esforça-se por evitar a compartimentalização das pessoas e das sociedades humanas segundo categorias como ‘econômico’, ‘político’ e ‘social’ como se o ‘econômico’ e o ‘político’ não fizessem parte, de algum modo, da ‘sociedade’, ou ‘biológico’, ‘psicológico’ e ‘sociológico’ como se as pessoas pudessem existir sem corpos, como se os seus ‘espíritos’ fossem de alguma maneira fenômenos não físicos ou biológicos, ou como se ‘as sociedades’ pudessem existir, de certa forma, independentemente e separadas do homem e da mulher individuais que as constituem” (1992, p.21).

Numa direção similar a de Elias, a partir de uma análise das questões do campo

religioso hoje, McGuire vai mencionar a mesma preocupação sintética nele encontrada:

“Our discipline needs to reconceptualize mind, body, and society, not merely as connected, but rather as deeply interpenetrating, meshed as a near-unitary phenomenon (see McGuire, 1990). Let us assume that the human body is both a

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83

biological and cultural product, physical and symbolic, always framed in a specific social and environmental context in which the body-mind is both active agent and yet influenced by each social moment and its cultural history. Scheper-Hughes and Lock have referred to this unified conceptualization as the ‘mindful body” (...). (...) An understanding of the “mindful body” is an important starting point for a sociology of religion, because we need a theoretical grasp on how spiritual experience is possible. How is that a spiritual experience can be shared? How does a religious group generate shared emotions? How are concrete human bodies part of religious experience and expression? How is one’s subjectivity linked with one’s agency and authority (...)? How does religion speak to a person’s very being (not just to one’s cognitive meaning system)?” (McGuire, op. cit., p.135).

E finaliza:

“Berger and Luckmann’s (Berger, Peter e Luckman, Thomas.1966. The Social constructon of Reality: a Treatise in the Sociology of Knowledge, Garden City, NY: Dooubleday) phenomenological approach has been one of the most important contributions to such understanding, but their theories remain predominantly idealistic. Throughout their work, materiality is mediated by symblos - language, ritual symbols, expressed ideas. Implicitly, such theories disconfirm or subordinate the fundamental material reality of the human body emotions” (Id., p.135).

Victor Turner, em trabalho realizado nos anos oitenta a partir da conceituação

proposta por Dilthey sobre a categoria experiência (1986), é outro autor que expressa uma

preocupação com a renovação das abordagens sobre os fenômenos emocionais62, buscando um

enfoque que dê conta dos processos cognitivos que acompanham o desencadear das emoções.

62 Esta mesma preocupação já fora expressa em outros momentos do trabalho de Turner, conforme se vê neste trecho em que ele trata das questões levantadas por Lévi-Strauss a respeito da pensée sauvage. Segundo Turner, Lévi-Strauss afirma que a pensée sauvage “tem propriedades tais como homologias, oposições, correlações e transformações, as quais são também características do pensamento requintado” e que “embora Lévi-Strauss dedique alguma atenção ao papel dos símbolos místicos como instigadores de sentimento e desejo, não desenvolve esta linha de pensamento de maneira tão completa como o faz em seu trabalho sobre os símbolos como fatores no conhecimento” (Turner, 1974, p.59-60, grifos meus). Turner conferia, aliás, uma importância tão central à experimentação, que utilizou muitas vezes como instrumento de reprodução de situações etnográficas a encenação a posteriori de situações que havia vivido no campo (ver a este respeito Turner, 1982).

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84

Neste sentido, tratar-se-ia de rever as análises que se estruturam em torno da oposição entre

emoção e razão partindo do suposto de que o que existe é uma interação contínua entre elas.

McGuire formula a questão de maneira semelhante no seguinte trecho: “our society

has been mistrustful of no-cognitive apprehension and non-linear, rational ways of knowing.

Rather than seeing emotion and reason as mutually exclusive, we could view them as mutually

constitutive aspects of mind” (op. cit., p.136). Na verdade, conforme apontado por Reddy, esta

posição vem encontrando apoio nas duas últimas décadas dentro de algumas correntes do próprio

campo psicológico, segundo as quais as emoções devem ser apreendidas seja como aspectos do

pensamento ou da cognição, ou como uma forma de juízo que não pode ser separada, de maneira

imediata, do pensamento ou da racionalidade (Op. cit., p.331). No campo antropológico, esta

postura se expressaria na crítica a um certo tipo de atitude acadêmica do Ocidente em relação às

emoções, que tendeu a abordá-las como um domínio residual, somático, ou anti-racional da vida

consciente, expressa pelo próprio Reddy (Ibid.) e apoiada por Howell (1997) e Lutz (1997). Na

verdade, o que estaria em jogo aqui seria o reconhecimento de que as distinções ocidentais

ordinárias entre emoção e razão e entre consciente e inconsciente são muito mais expressões

culturais do que constructos universais (Lutz apud Reddy, op. cit., p.346).

A antropologia da experiência, proposta por Turner, estaria preocupada em desvendar

como os indivíduos experimentam suas culturas, isto é, como os eventos são recebidos pela

consciência, considerando-se, na perspectiva de Dilthey, que esta experiência está ligada não

apenas a ações e sentimentos, mas também a reflexões sobre eles (Turner, op. cit., p.5).

Perspectivas para a análise das emoções no campo religioso

O que parece estar sendo apontado aqui é o fato de que as emoções costumam trazer a

necessidade de encontrar seu sentido. No campo religioso, as emoções experimentadas são

geralmente revestidas de um significado que corresponde ao das diferentes cosmologias e

doutrinas acionadas por cada tradição. Neste sentido, a perspectiva de Dilthey parece

particularmente fértil para abordar um grupo religioso que, como o Siddha Yoga, coloca na base

de sua proposta religiosa a vivência de uma série de práticas que despertam em seus adeptos

emoções variadas e poderosas, que são explicadas, como veremos em outro ponto deste trabalho,

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85

não apenas pelo recurso à cosmologia shivaíta utilizada pelo grupo, mas também pelo

acionamento de uma série de procedimentos reflexivos que, combinados àquela, serão os

responsáveis pela domesticação das emoções experimentadas pelos adeptos.

Danièle Hervieu-Léger é outra autora que, reconhecendo a importância daquilo que

denomina de “surtos emocionais” na cena contemporânea, seja no seio das igrejas tradicionais,

seja no dos assim chamados Novos Movimentos Religiosos, aponta, da mesma forma que os

autores anteriormente mencionados, para a necessidade de uma atenção que consiga articular os

fenômenos psíquicos e físicos nas análise realizadas, ou, dizendo de outro modo, que consiga

trazer o campo da experiência, entendida em seus aspectos emocionais, para a órbita das análises

empreendidas.

Retomando a categoria de Weber sobre a religião de comunidades emocionais,

caracterizada pela reunião de discípulos em torno de um portador de carisma, Hervieu-Léger

propõe sua ampliação para todas as formas de comunidade religiosa em que a expressão

individual e coletiva dos afetos é central e constitutiva do grupo. Neste caso, a expressão repetida

e personalizada da adesão de cada um dos membros tenderia a se tornar a finalidade principal do

agrupamento comunitário.

As comunidades emocionais confeririam um peso particular ao engajamento do corpo

na oração, à manifestação física da proximidade comunitária e à intensidade afetiva da relações

entre os membros. Outro aspecto deste reconhecimento da importância do corpo e dos sentidos

na vida religiosa individual e coletiva seria uma desconfiança, explícita ou implícita, em relação

à formalização doutrinal e teológica das convicções compartilhadas no grupo. Esta repulsa de

uma “religião intelectual” não traduziria somente a desconfiança de qualquer grupo auto-

regulado para com os especialistas, mas corresponderia à convicção de que a intelectualização

das crenças é inútil, contrariando mesmo a finalidade da comunidade, por poder quebrar a

singularidade dos percursos individuais expressos dentro dela (Op. cit., p.33).

Num breve retrospecto sobre os autores que teriam se preocupado em estabelecer

relações entre experiência emocional e religião, Léger aponta o trabalho pioneiro de William

James, que estabeleceu uma distinção entre “religião de primeira mão”, relativa à experiência

interior do homem em contato com a ordem invisível onde os enigmas da ordem natural

encontrariam sua solução, e a “religião de segunda mão” que englobaria todas as manifestações

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86

da religião institucional: o culto e o sacrifício, as receitas par influenciar as disposições da

divindade, a teologia, o cerimonial e a organização eclesiástica.

Na trilha desta fenomenologia religiosa proposta por James, outros autores teriam

proposto distinções similares, como Joachim Wach, entre “experiências” e “expressões

religiosas”, Roger Bastide, entre “religiões vividas” e “religiões enlatadas” e Henri Bergson entre

“religião dinâmica” (“aberta”) e “religião estática” (“fechada”). Este conjunto de oposições

tenderia a transpor para o terreno sociológico, segundo Hervieu-Léger, a dinâmica psicológica da

experiência religiosa, reproduzindo, de certa maneira, a visão durkheimiana postulada por

Hubert, de que todas as crenças e práticas instituídas não passam de formas “administradas” de

uma experiência fundadora, anterior a qualquer formalização filosófica ou teológica, e que

desencadeia os sentimentos e a afetividade daqueles que passam por ela. Esta experiência

fundadora, vivida ao mesmo tempo no plano individual e coletivo, constituiria a fonte de toda

religiosidade autêntica, nunca redutível às doutrinas e às liturgias, que seriam tão somente sua

expressão socialmente aceita. (Id., p.34).

O fenômeno da “psicologização” no Ocidente e o crescimento do interesse pelo

estudo das emoções

A retomada do interesse sociológico geral pelos fenômenos emocionais ligados a

experiências físicas e psíquicas, nos anos 80, é acompanhada, no campo psicológico, por um

interesse equivalente pela articulação do físico e do psíquico, expresso no advento das teorias

corporais desenvolvidas a partir da retomada da proposta reichiana, conforme assinalado no

trabalho de Jane Russo (Op. cit.).

Este tipo específico de expressão do fenômeno da “psicologização”, por sua vez que,

em síntese realizada por D’Andrea, corresponderia à passagem da tradição para a idiossincrasia ,

nos termos de Robert Castel, e apresentaria fortes pontos de contato com o advento dos assim

chamados “projetos reflexivos do self’”, nos termos de Anthony Giddens. Ambos se

relacionariam ao advento da “decisão”, da “autonomia individual” e da “responsabilização”,

destradicionalizando a institucionalidade moderna e liberando os ambientes de ação de

condicionamentos anacrônicos e não-teleológicos (Cf. D’Andrea, op. cit., p.115).

Page 96: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

87

Segundo Giddens,

“quando grandes áreas da vida de uma pessoa não são mais compostas por padrões e hábitos preexistentes [tradicionais, portanto], o indivíduo é continuamente obrigado a negociar opções de estilo de vida. Além disso - e isto é crucial -, tais escolhas não são apenas aspectos ‘externos’ ou marginais das atitudes do indivíduo, mas definem quem o indivíduo ‘é’. Em outras palavras, as escolhas de estilo de vida constituem a narrativa reflexiva do self” (Giddens, 1992, p.87 apud D’Andrea, op. cit., p.116).

Na mesma direção, Reddy destaca a necessidade de perceber-se o quanto esta

autonomia representou tanto uma “liberação”, no sentido das variadas oportunidades de

escolha tornadas disponíveis, quanto uma “opressão”, pela obrigação que se impôs de

avaliar-se continuamente situações. Este quadro teria tido implicações notáveis no terreno

das emoções, seja pela necessidade de um acuramento maior na detecção de desejos, seja

pela necessidade de envolver-se emocionalmente com as diversas coisas que somos

obrigados a “escolher” (Reddy, op. cit., p.340).

Nos termos de Russo, o fenômeno da psicologização

“(...) representa uma nova forma do sujeito se relacionar consigo mesmo e com o mundo à sua volta. Diz respeito ao modo como formas tradicionais de se lidar com as esferas da vida (...) são paulatinamente substituídas por formas idiossincráticas, teoricamente construídas a partir do próprio sujeito - de seus desejos e características pessoais. Investigar a psicologização é (...) tentar dar conta do grande paradoxo da modernidade: a produção social da idiossincrasia e da individualidade como pilares básicos do mundo social” (Op. cit., p.16).

A busca de religiosidades que acionam vivências, faria parte, assim, dos dispositivos

ao alcance deste indivíduo cada vez mais autonomizado para apoiar os processos de escolha e

decisão com que estaria sendo cada vez mais continuamente confrontado. O advento das técnicas

corporais no espaço psi dos anos 70, por sua vez, estaria dando continuidade a esta mesma busca

pela experiência, uma busca em que, da mesma forma que nas religiosidades de tipo oriental, se

tentará fazer uma ponte entre o psíquico e o físico - na verdade, a própria chave das iogas,

conforme se vê no texto do Mauss mencionado em outra parte deste capítulo.

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88

Segundo Russo: “A adoção do corpo como instrumento básico de mudança e de

‘auto-construção’ significa também uma oposição à palavra. Palavra que é o instrumento por

excelência da racionalidade” (Ibid., p.193)

Assim, confirmando o que eu disse acima, ela mesma comenta:

“O boom das terapias corporais é um fenômeno que não se restringe ao campo ‘psi’, fazendo parte, na verdade, de um boom mais amplo de técnicas, práticas e crenças diversas, que constituem uma espécie de ‘complexo alternativo’” (Id., p.111), no qual a dimensão do experimentado, eu acrescentaria, é um dado central.

E prossegue: “A segunda característica que o adjetivo ‘corporal encobre, reside no

fato de se estar lidando com terapias psicológicas, isto é, terapias que fazem parte do campo ‘psi’

e que constituem o que Castel denomina a ‘pós-psicanálise’”(Id., p.115). Ou seja, aqui aparece

bem a visão articuladora de fenômenos físicos e psíquicos no campo psicológico, como

confirmado no trecho que se segue:

... “ [estamos] lidando com terapias psicológicas que se denominam corporais. Esta denominação indica que as fronteiras tradicionais (tanto para a medicina quanto para a psicologia ‘oficiais’) entre corpo e mente deixam de nortear o trabalho terapêutico. Ao mesmo tempo, a primazia do corpo é inegável, e explícita a crítica ao ’racionalismo’ e ao ‘mentalismo’ dos saberes ditos científicos, característica básica das práticas alternativas” (Id., p.115-116).

De fato, os trabalhos de Wilhelm Reich, principal fonte de inspiração destes setores

do campo psi que passaram a colocar o corpo no centro de sua atenção, tiveram esta preocupação

de olhar integradamente a dinâmica do corpo e os mecanismos psicológicos, em procedimento

que, embora utilizando-se de técnicas inteiramente diversas das iogas, irá, da mesma forma que

estas, buscar através de dispositivos corporais, meios que permitam introduzir alterações em

estados mentais e/ou psicológicos. Neste sentido, ambos os caminhos apontam, na dimensão do

vivido, para uma integração considerada essencial por Mauss no campo epistemológico.

O interesse pela articulação entre físico e psíquico, atravessará, conforme vimos,

diversos níveis. No primeiro deles, poderíamos situar preocupações epistemológicas gerais da

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89

disciplina sociológica, conforme verificado na percepção de Mauss em relação à sobreposição

dos campos da sociologia e da psicologia em relação a alguns temas (1985c), percepção que é

retomada e aprofundada em Elias alguns anos depois (1992). Além disso, poderíamos pensar

ainda em preocupações epistemológicas específicas da sociologia da religião decorrentes da

emergência dos assim chamados “surtos emocionais”, para usar a terminologia de Hervieu-Léger,

na cena religiosa ocidental contemporânea (Op. cit.). O campo psicológico também esteve

envolvido com os dilemas envolvidos na delimitação das fronteiras entre corpo/mente, tal como

se viu nas pesquisas mais recentes no terreno da psicologia cognitivista, que vêm se inclinando

para uma visão integrada das manifestações de emoção e razão, e nas correntes que

desenvolveram as terapias corporais com o objetivo de explorar as articulações entre corpo e

mente. Finalmente, um tipo de prática religiosa extremamente valorizada hoje, apoia-se

exatamente na oferta de uma experiência aos adeptos que envolva manifestações emocionais e/ou

físicas que possam ser apropriadas como manifestações do sagrado.

2.4) A experiência mística do Oriente como caminho para a interiorização no

Ocidente

Sentido das iogas nas análises de Weber e Dumont sobre o individualismo

Weber foi um dos autores que chamou atenção para o papel da ioga enquanto

caminho para a observação dos sentimentos ao mesmo tempo em que associado à construção de

um conceito de “eu”:

“(...) the rationalization of apathetic ecstasy into meditation and contemplation, as the yoga technique of self-concentration, once carried out consistently awakened special and unsurpassed capacities among virtuoso-like, consciously intellectualistic Indians, for various psychic processes of the self, particularly feeling states. The habituation of one’s self to an interest in the events and processes of one’s psychic life at the same time that the self is turned into a disinterested observer was achieved through Yoga technique. This must have quite naturally led to conceptions of the ‘I’ as an entity also standing outside all ‘spiritual’ process of consciousness, and, indeed outside the organic depository of consciousness and its ‘narrowness’.” (1967, p.171).

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90

Weber também define a ioga por seu ascetismo irracional e pelo caráter emocional

pessoal de seus estados sagrados. Com relação a este último ponto, ele destaca o individualismo

como característico de qualquer busca mística, pois elas se apoiam na idéia de que apenas o

indivíduo pode ajudar a si mesmo. Este tipo de individualismo seria associado sempre à idéia do

virtuoso, do renunciante, não podendo ser encarado como algo acessível às massas. Neste

sentido, não podemos deixar de fazer uma associação entre esta temática do virtuosismo com um

dos dilemas estruturais do ideal da Bildung, que, embora pensada como uma possibilidade geral

para a humanidade, enfrenta-se sempre com as limitações concretas reais para sua difusão,

constituindo-se, na prática, em algo acessível apenas aos “happy few”.

A análise de Weber sobre as características do individualismo tal como propiciado

por esta vertente do hinduísmo permitiu a diferenciação essencial, de resto particularmente bem

explorada por Louis Dumont, entre um ascetismo extra-mundano, em que a alma individual

trabalha por seu destino fora deste mundo, e o ascetismo tal como formulado nos termos da

tradição protestante, um ascetismo intra-mundano, marcado pela doutrina da predestinação, na

qual se busca as marcas da salvação neste mundo. Ou seja, o que está em jogo aqui é um tipo de

caminho para a salvação ligado ao indivíduo, mas não como concebido pela forma ocidental,

protestante. O recurso às técnicas da ioga seriam utilizados para produzir um tipo de afastamento

do mundo que geraria um esquecimento de si, daquilo que associa o indivíduo ao mundo.

A prática das iogas que, em si mesma, é articuladora de disciplinas físicas e

psíquicas, parece ter ensejado, em sua apropriação no Ocidente, um cruzamento original do

individualismo místico hindu com o individualismo ocidental, calcado em procedimentos de

distanciamento, reflexividade e interiorização, mas orientados por um ideal de perfectibilidade a

ser exercido neste mundo e não fora dele.

Sentido das práticas de ioga nos processos de interiorização no Ocidente

Neste sentido, aquilo que inicialmente se coloca nas tradições ióguicas do hinduísmo

como um caminho para a salvação63 ligado ao indivíduo mas orientado para um afastamento do

63 Poderíamos identificar no capítulo de Weber sobre o hinduísmo ortodoxo, em seu livro Religions of India, a referência a três caminhos de salvação: o do hinduísmo ortodoxo brahmânico, em que a salvação se verifica pela via

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91

mundo, conforme observado por Weber, é “reinterpretado” no Ocidente como um caminho para a

autorealização, para a descoberta de si, como um recurso entre outros para a ampliação daquilo

que esteve no centro dos ideais românticos a descoberta e o cultivo da interioridade.

Neste sentido, a análise do grupo que me propus estudar, o dos devotos ocidentais do

Siddha Yoga, parece confirmar toda uma linha de estudos sobre a construção da pessoa ocidental,

na qual são destacados como processos centrais em sua formação a interiorização, a

reflexividade (entendida sobretudo como uma reflexividade sobre si), o distanciamento e a

psicologização, vista como um subproduto deste fenômeno mais amplo da interiorização. Assim,

são estas características do perfil ocidental dos devotos que parecem explicar a transformação do

ideal de iluminação hindu em ideal de perfectibilidade entre eles. Além disto, também podemos

depreender deste perfil as dificuldades de relacionar a sacralização da interioridade, parte da

proposta imanentista das tradições ióguicas, com a divinização da figura do guru. Se para o

devoto ocidental é fácil aceitar a primeira parte deste enunciado, justamente por todo o processo

de interiorização acima referido, o segundo, contudo, muitas vezes se transforma em obstáculo

para a permanência do devoto no grupo. Dizendo de outra forma, se o critério de verdade referido

ao self, a um núcleo interior sacralizado, não encontra problemas de aceitação, o mesmo não se

dá quando se tenta a transferência deste critério para a figura do guru. Neste sentido, a origem

cristã da maior parte dos devotos ocidentais coloca em cena um tipo de moralidade que não se

coaduna com eventuais “falhas” humanas percebidas na figura do guru. Estas, absorvidas sem

maiores dificuldades pelos devotos orientais, transformam-se em obstáculo intransponível para a

possibilidade do guru ser visto como divino pelos devotos ocidentais . Assim, me parece

significativo que na Autobiografia de um Yogue, Paramahansa Yogananda não se espante em

nenhum momento com as atitudes arbitrárias de seu guru ou com aquilo que parecem injustiças

cometidas por ele aos olhos dos devotos (Op. cit.). Para a cultura indiana, a experiência mística

não se confunde com a ética, o que para a tradição religiosa no Ocidente parece ser difícil

dissociar.

da adaptação ao mundo; o do protestantismo, que coloca a salvação pela via da conquista do mundo, pois esta conquista é vista como um sinal da predestinação; e uma terceira via, a ióguica, em que a salvação se dá por um afastamento do mundo (1967, p.163-191)

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92

Em que pesem estas diferenças, não é de espantar, contudo, o fato de que, dentre as

diversas tradições do hinduísmo, sejam as tradições ióguicas, exercidas no quadro das

experiências sectárias, que permitam o maior ponto de contato com o Ocidente, o que pode ser

explicado, em grande medida, pelo fato apontado por Dumont de que são elas que ensejam a

maior possibilidade de exercício da criatividade, em contraste com a tradição ortodoxa

brahmânica. (1992). A tradição devocional das seitas e suas concepções sobre o self se

encaixarão, sem dúvida, na busca de singularidade ocidental, tão bem analisada por Simmel

(1971a) . Não parece ser por acaso, inclusive, que serão representantes destas tradições sectárias

os primeiros a se deslocar para o Ocidente (ver capítulo 1).

As tradições sectárias hindus colocam a experiência no centro do fenômeno religioso,

é sobre elas que o discurso religioso se constrói. A experiência é transformada em essência do

religioso, e, mais do que isso, ela se auto-valida, apresentando uma das características apontadas

por William James para definir a experiência mística: a sensação de autenticidade (Op. cit..,

p.293-294).

Assim, as religiosidades hindus que se expandem no Ocidente (seja a das Sociedades

Vedanta, vividas no início do século, ou as do Movimento Hare Krishna, já na segunda metade)

se constróem em cima da sacralização de experiências despertadas a partir da utilização de

técnicas corporais que provocam alterações dos estados normais de consciência, bem como de

diversas manifestações ligadas aos órgãos dos sentidos, tais como a produção de visões,

audições, cheiros, movimentos e sensações táteis. Estou chamando de sacralização aos processos

em que tais experiências são relacionadas à esfera do sagrado através de sua interpretação e

explicação por corpus doutrinários específicos, no caso, aqueles produzidos pela tradição hindu.

A “tradição” hindu por sua vez, é construída sobre a combinação de um número

expressivo de textos considerados sagrados, produzidos ao longo de vários séculos. Neste

sentido, trata-se de uma “tradição” extremamente propícia a “reinvenções”, uma vez que se

permite um número ilimitado de combinações e leituras, de onde se origina sua pujante produção

sectária.

A origem das tradições sectárias pode ser localizada entre os séculos IV e VII d.c.,

quando se verificou uma mudança no tom da religiosidade, passando-se de um hinduísmo

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93

legalista, intelectual e ritualista, dominado pela tradição brahmânica derivada da cultura ariana,

para um hinduísmo altamente religioso, teísta e devocional, na qual a imediaticidade da

experiência religiosa passou a desempenhar um papel central. Este “novo hinduísmo”,

aparentemente oriundo da revalorização de antigos elementos da tradição não-ariana, trouxe

consigo o surgimento das duas principais seitas hindus, o vishnuísmo e o shivaísmo, dedicados

respectivamente à adoração de Vishnu e Shiva. A nova atitude devocional levou à adoração de

imagens e exigiu a produção de um novo corpo de escrituras: os Puranas, Agamas, Tantras e

Hinos. Este movimento devocional, a bhakti, iniciado nos primeiros séculos do cristianismo,

permaneceu como a principal característica do hinduísmo até hoje (Berry, op. cit.)64.

Novas perspectivas teóricas para o tratamento das emoções no campo sociológico

Esta característica devocional dos movimentos sectários hindus, nos parece

extremamente rica para pensarmos toda a discussão anteriormente referida sobre o estatuto das

emoções no campo campo sociológico e antropológico. Sem a pretensão de esgotá-la aqui, mas

apenas de apontar alguns aspectos que me chamaram atenção, acho que vale a pena registrar, em

primeiro lugar, o fato de que o cruzamento desta tradição devocional com o ethos ocidental

parece confluir para as análises que procuraram ultrapassar a disjunção entre emoção e razão, e

assim apoiar as teorias cognitivas mais recentes que apontaram para a necessidade de sermos

mais “attentive to the interdependance of thought and feeling as well as to the socially situated

nature of cognition” (Garro, 1997, p.341)65.

64 Pode-se dizer que o “novo hinduísmo” não rompeu com o passado, mas adicionou-lhe elementos novos; a principal novidade trazida pelos Puranas foi identificar Brahman, a realidade última descrita nos Upanishades, como uma entidade possuidora de uma personalidade. Naqueles, Brahman era apresentado como imanente e transcendente ao mesmo tempo, com ênfase na imanência e identidade, mais do que na transcendência e diferença. Os escritos teológicos das escolas Vedanta continuaram a tratar Brahman como um princípio impessoal, seguindo os ensinamentos dos Upanishades. A tradição geral do hinduísmo, porém, a partir de então, passou a dar mais atenção ao caráter pessoal desta realidade última. As duas posições ficaram a partir de então contidas no hinduísmo - Brahman como princípio pessoal ou impessoal (Berry, Op. cit.).

65Este aspecto nos fornece um elemento interessante para dialogar com a famosa caracterização de William James sobre os parâmetros que definem a experiência mística: inefabilidade (incomunicabilidade); sensação de autenticidade; qualidade noética (de ou tendo que ver com a mente ou com o intelecto); transiência (transitoriedade); quebra do sentido ordinário do tempo; passividade (pela idéia de que se é tomado por algo que é exterior ao sujeito, e de que a experiência é provocada por este algo) e marca definitiva na vida de quem experimenta (1958, p.293-294). Em primeiro lugar, poderíamos dizer que os elementos contidos na caracterização de

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94

Assim, se cada vez mais tem sido destacado o fato de que as emoções são

inseparáveis da linguagem, as análises antropológicas tem tendido a inferir deste ponto a

necessidade de encarar as emoções como um idioma cultural ligado à tentativa de lidar com os

problemas persistentes de relacionamento social (Lutz, White, 1986, p.406). A categoria de

emotives proposta por Reddy, que considera que os depoimentos sobre as emoções não são nem

constativos nem performativos, mas auto-transformativos, pelo fato de que o mero ato de

expressar emoções muda-lhes o sentido, parece apontar nesta direção. Para ele, estes

depoimentos estão sempre conectados à intersubjetividade, recompondo sentidos de

acontecimentos vividos na medida das necessidades presentes dos sujeitos. Os emotives seriam

também a evidência de que as emoções não seriam meramente construídas, como querem as

perspectivas construcionistas mais radicais da disciplina, mas tem a ver antes com formas de

controlar, modelar e canalizar a expressão emocional, dependendo das exigências formuladas

pelas diversas situações de interação.

Reddy não descarta, como se vê pela formulação de seu conceito de estilos culturais

de administração das emoções, o papel marcante desempenhado pela cultura na imposição de

determinadas maneiras de funcionamento emocional dos indivíduos, mas chama atenção para o

fato de que existe sempre um espaço de negociação entre o culturalmente determinado e a reação

individual a ele. Na verdade, este lhe parece ser um mecanismo central para a compreensão das

mudanças na vida social. As emoções deveriam ser olhadas, assim, como “the very location of

the capacity to embrace, revise or reject cultural or discoursive strutuctures of whatever kind”

(Op. cit., p.330), e, neste sentido, “the variation of individual responses (some fitting

James parecem apontar para o fato de que tratar da experiência religiosa mística é estar disposto a discutir as fronteiras entre sentimento e razão. Neste sentido, é bastante significativa sua caracterização do elemento noético desta experiência, mostrando que, embora os estados místicos sejam muito semelhantes a estados de sentimento, aqueles que os experimentam têm a impressão de estarem lidando também com estados de conhecimento, em que se tem acesso a patamares de verdade encobertos pelo intelecto discursivo. Além disto, seus critérios de definição da experiência mística, sobretudo no caso da inefabilidade, parecem requerer uma redefinição no que diz respeito à forma como esta é vivida modernamente pelos herdeiros da tradição reflexiva ocidental. A inefabilidade é algo que se desfaz diante do esforço contínuo de nomear e identificar a atuação do “guru principal”, no caso do Siddha Yoga, isto é, aqueles momentos em que as experiências de sincronicidade passam a ser percebidas na vida do devoto; passa-se do inefável para a busca da definição do “totalmente outro”, ou pelo menos, para uma espécie de rastreamento de sua atuação.

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95

expectations well, some going all the way to complete deviance) provides an initial reservoir of

possibilities for change)” (Id., p.334).66

Em que pese a riqueza desta análise, bem como de todas as que buscam compreender

a dimensão intersubjetiva e/ou social das emoções, me parece importante destacar que um ponto

central deixa de ser contemplado por ela: aquele ligado ao papel desempenhado pelas emoções na

criação de um espaço da interioridade e na compreensão de si mesmo. A observação do modo

como as práticas de meditação são vivenciadas pelos adeptos ocidentais do Siddha Yoga

conduziu a examinar esta direção. Assim, sem negar o fato de que as experiências emocionais

dependem muitas vezes de processos intersubjetivos, não há contudo razão para desconsiderar o

fato de que elas são muitas vezes um locus privilegiado para o diálogo consigo mesmo ou com a

dividindade, se quisermos tomar o campo religioso como exemplo.

Estando de acordo com a formulação de que a compreensão do locus e da gênese das

experiências emocionais varia consideravelmente em cada cultura (Brenneis, 1997, p.341),

parece que, se quisermos desvendar a maneira de funcionamento da cultura ocidental em relação

a elas, teremos que nos deter nos aspectos em que a especificidade ocidental neste terreno parece

se manifestar. E é na associação das emoções com a construção de uma interioridade, que me

parece estar o ponto central desta especificidade.

Reflexividade e distanciamento na construção da experiência ióguica entre os

devotos ocidentais

É preciso que nos detenhamos então na questão da linguagem da emoção enquanto

veículo para a construção de si. No caso dos adeptos ocidentais do Siddha Yoga, poderíamos

dizer que há um trabalho sobre a compreensão de si mesmos visando a relação não com os

outros, mas com o sagrado. As reações psíquicas e corporais provocadas pela prática da

meditação, aí compreendido o despertar de emoções, são canalizadas, como no conceito de

emotives de Reddy, para a construção de um diálogo do devoto com o sagrado e consigo mesmo.

66 Este papel das emoções enquanto locus de articulação entre o individual e o cultural e, por isto mesmo, como um locus de mudança, nos parece muito próximo do papel dos fenômenos místicos não por acaso ligados fortemente às emoções dentro do campo religioso, em que são muitas vezes utilizados como elementos de contestação do status quo, invocando a intervenção do espírito contra a palavra.

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96

Não se trata de construir algo a partir do nada, mas de canalizar algo que já existe em uma certa

direção, neste caso, a da construção de si e/ou da relação do indivíduo com a divindade.

Poderíamos identificar dois tipos de vivência na prática das iogas: as “involuntárias”,

que seriam aquelas ligadas a dimensões corporais, como ver luzes, ouvir sons, etc., e as

“voluntárias”, em que os acontecimentos da vida pessoal dos devotos são rearticulados e

ressignificados à luz da concepção da atuação do guru em suas vidas. Embora nos dois casos se

verifique a canalização das experiências para o quadro cosmológico em que o grupo se situa,

guardando-se assim uma semelhança com o conceito de emotives proposto por Reddy, é no caso

dos processos voluntários que a semelhança fica mais nítida, já que eles implicam num

modelamento dos acontecimentos a uma perspectiva específica, aquela que atribui às

coincidências na vida dos devotos um caráter sagrado (ver descrição destes processos no capítulo

3).

Assim, quando Lutz e White destacam o fato de que a linguagem emocional e a

negociação de significados emocionais ocorre não apenas entre os membros dos grupos

observados pelos antropólogos, mas também entre os informantes e os próprios antropólogos, eu

gostaria de chamar atenção para a dimensão de negociação que se dá dentro de cada um, de si

para consigo mesmo. A prática de meditação entre os devotos ocidentais aponta para esta

internalização da negociação que subjaz ao mecanismo de atribuir sentidos às emoções e aos

acontecimentos, o que é permitido pela diferenciação que se estabelece entre o “eu que observa”,

ou self, que é testemunha dos atos, e o ego, identificado ao patamar corriqueiro do pensamento e

da ação. Neste sentido, a própria descrição de emotives como um esforço daquele que fala para

interpretar algo que só é observável por si mesmo e por mais ninguém (Reddy, op. cit., p.331)

parece nos dar uma indicação importante sobre o quanto práticas reflexivas, isto é, de observação

de si e de nomeação do que se observa em si mesmo, estão implicadas nas maneiras disponíveis

para se lidar com as emoções.

Nas tradições da ioga, o eu é fragmentado em níveis com capacidades diferenciadas

de percepção da realidade. Assim, meditar é, em primeiro lugar, aprender a discernir estes

diferentes níveis67, para, em seguida, conseguir orquestrar um diálogo entre eles. Na verdade, é

67 Este trecho de Rawlinson nos permite entender de forma mais clara de que forma a ioga se relaciona à concepção de que existem diferentes patamares de funcionamento da consciência e de que é possível adquirir-se um

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97

este o ponto que parece estar na base da facilidade com que, a princípio, o indivíduo ocidental

interiorizado, seja ele o homme divisé de Mauss (1985c), a sick soul de James (Op. cit.), ou o

homem dotado de ego, super ego e id de Freud, absorve a prática das iogas.

Por outro lado, esta fragmentação do eu presente na concepção das iogas conduzirá a

algo que também fará parte da estrutura deste indivíduo auto-consciente, que se pensa a si

mesmo, e que poderíamos alocar sob a rubrica do distanciamento. O eu que observa da ioga

responderá por uma relativização dos papéis sociais do indivíduo, contribuindo para a

intensificação de um processo que se verifica normalmente, mas do qual nem sempre se tem

muita consciência, isto é, o fato de que nossa auto-imagem não é fixa. Lidamos o tempo todo,

para usar a feliz terminologia de Reddy, com “múltiplos rascunhos do self”, que estão

permanentemente sendo rearrumados e renegociados, naquilo que Bourdieu definiu como a

“ilusão biográfica” (1986).

O distanciamento do olhar sobre si mesmo propiciado pela meditação parece ser um

dos elementos principais de seu fascínio para os devotos ocidentais, criando neles um alívio

ligado à percepção de que somos menos atrelados a papéis do que supomos. Cria-se com isto um

sentimento de liberdade maior em relação a si mesmo, havendo uma espécie de encorajamento a

ousar, a construir outros percursos, a partir de novas imagens de si. Meditar no Ocidente associa-

se assim a uma esperança de transformação, de renovação de si mesmos, por ensejar a

possibilidade de nos vermos e aos acontecimentos sob um novo ângulo.

Neste sentido, poderíamos pensar em uma afinidade significativa entre esta prática

religiosa e as dimensões das atividades de jogo e lazer tal como analisadas por Gusdorf e

Huizinga. Na tradição huizinguiana dos estudos sobre jogos “reconhecer o jogo é, forçosamente,

reconhecer o espírito, pois o jogo, seja qual for sua essência, não é material” (Huizinga, 1996,

p.6). Olhar diferente do olhar quotidiano e sério, o olhar que se estabelece nos jogos é um olhar

que nos afasta da rotina e do peso da realidade, abrindo-nos a possibilidade de desfrutar de um

conhecimento sobre isto: “I am using the term yoga in a fairly broad sense to cover all those traditions which hold that our experience is primarily conditioned by lack of clear awareness of the way in which consciousness operates. That is to say, if we pay close attention to the process by which we become aware, we will discover in the very act of paying attention that we are not normally aware at all. My shorthand for this is: localization of experience is also transformation of it” (1981:247).

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98

espaço de liberdade, inacessível quando nos encontramos em nossos papéis sociais habituais,

exatamente por permitir-nos repousar destes papéis.

Nos termos de Gusdorf, o distanciamento poderia ser descrito assim:

“Le garçon de café joue à être garçon de café; l’évêque joue à être évêque. Par là, la personne prend ses distances par rapport au personnage qu’elle incarnait; elle accède à une secrète et exaltante conscience de soi. Désormais, en s’offrant, elle se cache; elle se dégage en s’engageant. Et ce jeu de soi est une expérience d’une liberté.” (Gusdorf, 1967, p.1158).

Embora estejamos sempre em alguma medida sendo obrigados a reconstruir nossa

auto-imagem, pela própria passagem do tempo, pelas mudanças das circunstâncias sociais que

nos acompanham (ser jovem, ser velho, ser solteiro, ser casado, ser estudante ou ser profissional,

etc.), pelos diferentes papéis sociais que exercemos usualmente ao mesmo tempo (ser pai, ser

amigo, ser empregado, etc.) com a meditação é produzida uma consciência mais profunda

sobre o fato de que as auto-imagens são uma construção, e, por isto, parece ser mais fácil libertar-

se delas, relativizá-las. É este efeito relativizador que se assemelha ao alívio provocado pelos

jogos, nos quais é possível descansar de nossos papéis habituais normais.

Um outro ponto do fascínio exercido pelas práticas da meditação é o maravilhamento

provocado pela descoberta de capacidades do corpo desconhecidas pela maioria das pessoas, isto

é, ver luzes, ouvir sons ou ser tomado por movimentos involuntários, que retiram os devotos da

esfera do ordinário. Estas descobertas sempre parecem, em um primeiro momento, anunciadoras

de que novas maravilhas estão por vir, e constituir-se em uma prova de que o potencial humano é

maior do que o suposto usualmente, o que leva à uma ampliação concomitante da capacidade de

almejar coisas jamais imaginadas até então.

Assim, se tivéssemos que definir que tipo de experiência parece estar principalmente

em questão para os devotos ocidentais do Siddha Yoga, poderíamos arriscar a hipótese de que é a

experiência de ampliar para patamares inesperados as possibilidades de construção da auto-

imagem adquirindo através deste processo um sentimento de poder maior em relação ao que cada

um pode ser. Os projetos reflexivos desencadeados quando “o desenvolvimento capitalista, com

sua ênfase na escolha e na diferenciação, entra em interação sinergética com a política da

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99

liberação individual” (Hunt, 1997, p. 343), parecem receber, assim, um aliado inesperado do

Oriente.

2.5) Uma comparação entre o sentido das experiências no Siddha Yoga e na Nova

Era

Como um dos esforços empreendidos neste capítulo esteve ligado a uma preocupação

com a delimitação das fronteiras entre Oriente e Ocidente no campo da experiência religiosa,

acreditamos ser útil encerrá-lo com uma comparação que nos permita, senão delimitá-las

claramente pois, como vimos, a apropriação das tradições ióguicas no Ocidente está eivada de

diversos conteúdos formulados no âmbito de seus próprios processos de construção da pessoa

pelo menos estabelecer alguns marcos definidores das especificidades da formulação destes

conjuntos culturais neste terreno. A Nova Era me parece prestar-se bem a este objetivo, por ser,

dentre os novos movimentos religiosos surgidos na cena ocidental contemporânea, um dos que

mais valoriza a experiência, no sentido de experimentação.

Segundo Leila Amaral Luz, a questão da experimentação se coloca como a idéia

matriz da cultura da Nova Era em contraposição aos modelos morais e religiosos

contemporâneos, apontando para um elemento crítico que penetra os espaços rituais daquela (Op.

cit., p.372). No Siddha Yoga, a experimentação existe, mas o elemento crítico é contido pela

forma em que se estabelece a relação guru-discípulo; a entrega total requerida por esta funciona

como um elemento que tende a anular os conteúdos críticos.

Neste sentido, embora a um primeiro contato com o Siddha Yoga se possa confundir

a pluralidade de experiências individuais propiciadas pela meditação com aquilo que Luz destaca

para definir o que ocorre dentro da Nova Era “o papel secundário das idéias, a ênfase na

experiência, a ausência de um consenso relativo ao conceito de Deus68, responsável, por sua vez,

pela ausência de proselitismo agressivo, tornando desnecessária a conversão ou a afirmação de

crenças particulares para a participação nas diferentes experiências” (ibid, p.8) esta impressão

se desfaz à medida em que se aprofunda um pouco mais a permanência no grupo. Este me parece

68 Aqui vale registrar que no Siddha Yoga existe um consenso relativo ao conceito de Deus, sendo que neste aspecto ele não se confundiria com a Nova Era.

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100

ser um dos principais “mal-entendidos culturais” enfrentados por um certo tipo de adepto do

Siddha Yoga que chega ao grupo impregnado por esta cultura da Nova Era.

Assim, apesar de todo o discurso contrário à valorização da mente e de seus “ruídos”,

no Siddha Yoga, isto não significa que as práticas do grupo não estejam referidas a um corpo

doutrinário sistematizado e específico, que será acionado à medida em que as experiências se

aprofundam e se freqüenta o grupo de forma sistemática. Da mesma forma, o processo de

imanentização acionado recorrerá a toda uma dinâmica reflexiva, intelectualmente, para a

identificação da atuação do “guru principal”, isto é, daquela dimensão que encarna a presença da

divindade em cada um (ver a descrição dos mecanismos de atuação do guru principal no Capítulo

3). O discurso que prega a abertura do grupo para adeptos de qualquer fé religiosa, inteiramente

de acordo com a postura universalista do hinduísmo como um todo (ver a este respeito o discurso

de Vivekananda no Parlamento Mundial das Religiões, analisado no capítulo 1), embora de fato

permita uma flexibilidade em relação às identidades religiosas particulares, não pode ser

mantido, contudo, se o adepto buscar um aprofundamento dentro das práticas do grupo; como

qualquer seita religiosa de origem hindu, o Siddha Yoga tem seus cânones, Mesmo com toda a

imensa possibilidade combinatória que as tradições hindus propiciam, isto não significa que cada

seita não tenha uma forma única e específica de combiná-las, sendo este o elemento, ao lado da

figura que encarna o guru em cada seita, que confere a cada grupo uma identidade particular.

A ausência de proselitismo, por sua vez, intimamente ligada a esta postura

universalista e teoricamente tolerante do hinduísmo, também não se sustenta com o correr do

tempo. Ainda que se reconheça o valor das demais tradições, e a citação de figuras santas do

cristianismo ou do islã seja freqüente nas cerimônias, não se pode negar o fato de que se espera

da adesão dos adeptos uma adesão também aos ritos, crenças e ao panteão específico de deuses

do hinduísmo com que cada seita irá se identificar.

Na Nova Era a experimentação parece conduzir a uma devoção pela própria busca de

um sentido que não se substancializa nunca (Luz, op. cit., p.4). Neste aspecto, ela reproduziria

um mecanismo identificado por Campbell como estando na base do consumismo moderno, o de

um certo tipo de hedonismo, no qual o ato imaginativo de ansiar por alguma coisa é mais

apreciado do que a própria realização do consumo (Id., p.5), sendo este o responsável pelo ciclo

infindável do consumo. No Siddha Yoga a experimentação é de um outro tipo; trata-se de

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101

experimentar as vivências decorrentes de um tipo especifico de disciplina ióguica, que, embora

propicie um amplo leque de variações individuais, de modo algum se confunde com o eterno

buscar de experiências novas por meio de tradições variadas identificado por Luz dentro da Nova

Era. Trata-se de um caminho específico e muito bem delimitado aquele que é proposto ao adepto

de uma seita hindu. O que não quer dizer que este caminho esteja sempre sob controle, seja do

devoto, seja do guru.

Assim, os relatos sobre experiências de transtornos psíquicos sérios não são

incomuns dentro destes grupos, sobretudo quando transplantados para o Ocidente, onde a

presença de uma cultura psicologizada que estimula a busca generalizada de atividades ligadas ao

desenvolvimento de si acaba muitas vezes levando à participação de pessoas nestes grupos com

poucas condições emocionais para lidar com as experiências que são vivenciadas69. Assim, uma

das idéias centrais desta cultura psicologizada, a de que “tudo vale a pena, ao menos como

experiência”, se não provoca maiores danos para a maioria, pode causar entretanto sérios

prejuízos para alguns.

Além disso, um novo mal-entendido cultural parece ocorrer aí mais uma vez. O fato

de que estes grupos se apresentem como essencialmente ligados ao desenvolvimento espiritual,

faz com que, em um primeiro momento, muitas pessoas não se dêem conta do quão fortemente as

atividades que eles propõem se associam à dimensão que o senso comum no Ocidente chamaria

de psicológica. Com isto, uma série de riscos são incorretamente avaliados. Neste caso, é como

se o espiritual excluísse por si mesmo qualquer possibilidade de dano em outras dimensões.

69 Feuga e Michaël chamam atenção para este aspecto no seguinte trecho: “si l’on ne possède pas les qualifications requises (à commencer par un courage inébranlable) et si l’on n’est pas guidé par un maître compétent (dans ce domaine ils n’abondent pas), mieux vaut s’abstenir totalement de ces méthodes qui, mal appliquées, risquent de provoquer chez ‘l’apprenti de sorcier’ des dégats physiques et psychiques irréversibles. Ce que l’on pourrait appeler la “pathologie kundalinienne”, non seulement en Inde mais désormais dans d’autres pays où l’on ne dispose pas des mêmes garde-fous, leur donne hélas raison: névroses, psychoses, phénomènes dépressifs ou hystériques, accidents cardiaques, voire suicides et morts subites composent quelques aspects de ce tableau, bien différent dans sa réalité des prescriptions fleuries du New Age” (Op. cit., p.103).

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Capítulo 3: Uma Etnografia do Siddha Yoga

3.1) Histórico do Grupo70

O Siddha71 Yoga constituiu-se como grupo organizado no Ocidente a partir de uma

viagem realizada por Swami Muktananda aos Estados Unidos em 1970. Os primeiros contatos de

devotos ocidentais com este mestre remontam, contudo, ao ano de 1958, quando Albert Rudolph,

americano de Nova York, então com 30 anos, realizou sua primeira viagem à Índia. Nesta

viagem, conheceu Swami Muktananda (1908-1982) e seu mestre, Bhagawan Nityananda (?-

1961), aprofundando assim um caminho espiritual iniciado desde a infância, época em que relata

ter tido suas primeiras experiências neste campo, através de visões e outros tipos de

manifestações psíquicas extraordinárias.

Muktananda encontrou seu mestre72, que vivia em Ganeshpuri, nas cercanias de

Bombaim, aos 39 anos, depois de ter perambulado desde os quinze por toda a Índia, buscando

contatos com homens santos. Nityananda considerou que seu discípulo havia completado sua

jornada interior em 1956, atingindo a iluminação dois anos antes da chegada de Albert Rudolph à

Índia. Em 1961, com o falecimento de Nityananda, Muktananda assumiu a liderança do grupo,

embora nem todos os discípulos do mestre tenham-no aceitado como seu substituto.

Regressando aos Estados Unidos, Rudolph continuou viajando regularmente à Índia,

recebendo de Muktananda os votos de monge, em 1965, e, no ano seguinte, o nome espiritual de

Swami Rudrananda, de onde lhe veio o apelido de Rudi, sob o qual se tornaria conhecido nos

meios da Contracultura norte-americana. Rudi foi uma figura chave na organização da primeira

viagem de Muktananda aos Estados Unidos, em 197073, quando, apresentado por Baba Ram

Dass74 ao grande público, tornou-se figura assídua do circuito contracultural da época, atraindo

70 Os dados para a composição deste histórico foram retirados de Rawlinson (1998), Rodarmor (1983), Harris (1994) e SYDA Foundation (1994). 71 Siddha quer dizer literalmente um “ser realizado”; no hinduísmo, é um mestre da kundalini ioga; no budismo, alguém que alcançou o domínio sobre o corpo e a mente (Rawlinson, 1998, p.626). 72 Nityananda era considerado um avadhut, pessoa completamente independente, sem laços com ninguém, nem mesmo com alguma ordem de sannyasis. 73 Neste mesmo ano foi criada a organização Siddha Yoga Dham of America (SYDA), responsável pela gestão do grupo a partir de então. 74 Ram Dass (nascido Richard Alpert), ex-professor de Harvard, escreveu um dos maiores best-sellers da Contracultura, o livro Be Here Now, relatando suas experiências com o misticismo oriental, o hinduísmo e a ioga,

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um número considerável de seguidores famosos, que incluía desde cantores de rock como James

Taylor, Carly Simon e John Denver, ao astronauta Edgar Mitchell e à líder dos pantera negras

Erika Huggins. Em 1971 Rudi rompeu com Muktananda, fundando seu próprio ashram no estado

de Nova York e conseguindo criar outros nove em sete estados americanos até o ano de sua

morte, num acidente de avião, em 1973.

Entre os seguidores de Rudi, que se dispersaram em sua maioria após a sua morte,

estava Michael Shoemaker, que se tornou monge em 1978 pelas mãos de Muktananda, sob o

nome de Swami Chetanananda, embora se considerasse discípulo de Rudi, e tenha ele próprio

rompido também com Muktananda posteriormente. Chetanananda criou uma editora (a Rudi

Press) que publicou, entre outros textos, as única fontes disponíveis deixadas por Nityananda, os

Nitya Sutras que, colhidos ao longo da década de trinta durante estados de transe daquele mestre,

são textos que se enquadram nos princípios da escola Trika do Shivaísmo do Kashmir75.

De 1970 até 1982, ano de seu falecimento, Muktananda expandiu imensamente as

atividades do grupo fora da Índia, que chegou a ter, até aquela data, 31 centros de meditação em

diversos países. Alguns meses antes de sua morte, o mestre indicou como seus sucessores um

casal de irmãos, Malti Shetty e Subash Shetty, filhos de um comerciante de Bombaim, que havia

conhecido Muktananda em 1941. Subash Shetty havia se tornado monge em 1980, aos 17 anos,

sob o nome de Swami Nityananda Saraswati, e sua irmã, Malti Shetty, recebeu seus votos em

1982, aos 27 anos, sob o nome de Swami Chidvilasananda. Malti, que havia acompanhado todas

propiciadas por seu encontro com Neem Karoli Baba, que conheceu em uma viagem à Índia, em 1967. Dass foi um dos principais mentores da Contracultura, ao lado de figuras como Timothy Leary, Jerry Garcia e Allen Ginsberg, entre outros.

75 O Shivaísmo do Kashmir possui quatro escolas: a escola Spanda ou Trika, cujo surgimento é localizado no início do século IX d.C., e que se apóia nos Shiva Sutras 77 versos sânscritos considerados revelações diretas do próprio deus Shiva e na Spanda-karika (doutrina da vibração); a escola Kula ou Kaula, originária de Assam, em torno do século V d.C., que se expandiu inicialmente no sul da Índia e se propagou pelo Kashmir do século IX ao X d.C., tendo por objetivo a reunião de Shiva e Shakti no ser humano; a escola Krama (“progressão”, alusão a seu método gradualista, menos direto que o da escola Kaula), também chamada de Maharthadarshana (“doutrina do sentido absoluto”) ou Kalinaya (por causa de sua devoção à deusa Kali), que teria se constituído no Kashmir no final do século VII d.C., e que, embora utilizando-se de métodos inspirados na hatha ioga, coloca o acento na espontaneidade, na verdade natural de cada indivíduo e na perfeição inata, passível de ser restaurada a partir do posicionamento em uma corrente vibratória propícia, orientação também utilizada pelo budismo tântrico (Vajrayana); e, finalmente, a escola Pratyabhijna (“reconhecimento”), fundada no final do século IX d.C., que prescreve um modo espontaneísta e direto de acesso ao “sem acesso”, isto é, uma tomada de consciência intuitiva, imediata, pelo coração, da presença de Shiva dentro de cada um e dentro do universo (Feuga e Michaël, op. cit., p.88-94).

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104

as viagens de Muktananda ao Ocidente como sua principal tradutora para o inglês, receberia

posteriormente o título honorífico de Gurumayi, literalmente, “aquele que está absorvido no

guru”.

Entre 1982 e 1985 a liderança do grupo ficou nas mãos dos dois irmãos, até a

renúncia de Swami Nityananda, provocada pelo rompimento de seus votos de celibato. A partir

de então, Gurumayi assumiu sozinha o papel de guru do Siddha Yoga, posição que ocupa até

hoje, quando estimativas do grupo conferem-lhe cerca de 40.000 adeptos, espalhados em 90

países, entre os quais o Brasil. Os primeiros cursos de Siddha Yoga no Brasil foram ministrados

no Rio de Janeiro, no final da década de setenta. Atualmente, o grupo possui centros de

meditação ou grupos de canto, além do Rio de Janeiro, nos estados de São Paulo, Rio Grande do

Sul, Santa Catarina, Pernambuco e Minas Gerais76.

Muktananda e Gurumayi publicaram diversos livros77 traduzidos em várias línguas,

inclusive o português78. A vinculação de Swami Muktananda ao Shivaísmo do Kashmir fica bem

esclarecida em seu livro An Introduction to Kashmir Shaivism, publicado em 1975, que incluiu

uma tradução para o inglês dos Shiva Sutras, o texto revelado mais importante do sistema Trika

daquela tradição.

Os dois principais ashrams do grupo, hoje, estão localizados em Ganeshpuri, no vale

do rio Tansa, próximo a Bombaim, e nas cercanias da cidade de South Fallsburg, nas montanhas

de Catskills, no estado de Nova York, nos Estados Unidos. O ashram de Ganeshpuri (Gurudev

Siddha Peeth)79, foi criado em 1956 por Swami Muktananda, em um pequeno terreno que lhe foi

dado por Nityananda e possui hoje o certificado de autenticidade fornecido pelo governo indiano.

76 Estes dados foram colhidos em 1997 durante as cerimônias do grupo no Rio de Janeiro. 77 O catálogo de vendas do grupo disponível no ashram de South Fallsburg em 1997 listava 18 títulos de Swami Muktananda e quatro de Gurumayi Chidvilasanda. 78 Entre estes destaca-se Kundalini, o Segredo da Vida, de Swami Muktananda, recomendado pelo centro de meditação do Rio de Janeiro como leitura preparatória para aqueles que vão fazer os cursos intensivos do grupo. 79 Este ashram é descrito por devotos brasileiros que já o visitaram como um verdadeiro oásis em meio a uma região extremamente quente. Repleto de árvores frutíferas, o local é conhecido pela qualidade da comida e das acomodações que oferece aos visitantes, atraindo por isto turistas em viagem pela Índia sem qualquer preocupação espiritual. Este fato provocou um política mais rigorosa ultimamente na aceitação de hóspedes, de forma a não sobrecarregar os que lá estão com propósitos espirituais com o trabalho necessário ao atendimento dos simples turistas. A presença do ashram provocou o surgimento de um florescente comércio em suas cercanias, sustentado pela venda de produtos indianos a seus hóspedes.

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O ashram de South Fallsburg80 (Shree Muktananda Ashram) foi construído em 1979 por Swami

Multananda e funciona como sede da SYDA Foundation. Ambos são considerados gurukulas,

isto é, “escolas de gurus”, possuindo estrutura para receber pessoas do mundo todo para cursos e

retiros espirituais o ano inteiro.

3.2) O Shivaísmo do Kashmir

O Shivaísmo do Kashmir, sistema filosófico-religioso que serve de base ao Siddha

Yoga, tomou forma entre os séculos VII e XII d.C. no norte da Índia, adotando a tradição da

kundalini ioga presente nos agamas e tantras, corpo de escrituras criado entre os séculos IV e VII

d.C., que serviu de base, juntamente com os puranas e os hinos, para a constituição do “novo

hinduísmo” (século IV a XIII d.C.), de caráter devocional, que substituiu o intelectualismo

característico do hinduísmo bramânico, do período anterior (séc. VI a .C. a IV d.C.).

Em 1850, por iniciativa de um marajá do Kashmir, foi criado o Kashmir Research

Department, que começou a funcionar, efetivamente, em 1902, quando J. C. Chaterjji assumiu

sua direção, iniciando-se em 1904 a publicação dos primeiros textos desta tradição.

O Shivaísmo do Kashmir é considerado uma tradição revelada, com um sistema

próprio e coerente de ensinamentos, embora tenha absorvido influências do advaita vedanta e do

budismo, por ter surgido em uma época de intensos contatos entre escolas filosóficas e religiosas

no norte da Índia. O sistema afirma que este mundo de mudanças incessantes é empiricamente

real, baseando esta realidade em uma consciência transcendente que é simultaneamente estática e

dinâmica, que está acima destas categorias e que é ao mesmo tempo aquilo que as fundamenta,

Parama Shiva.

80 O ashram de South Fallsburg localiza-se em uma propriedade rural, que possui três grupos principais de edificações para abrigar uma quantidade de hóspedes que pode chegar a 3.000 pessoas. Suas instalações são extremamente agradáveis e práticas, todas conectadas por ônibus de circulação interna, gratuitos. Além das acomodações para os hóspedes, que incluem não apenas os quartos e a infra-estrutura para a alimentação, o ashram possui ainda lojas onde pode ser comprada uma imensa variedade de produtos indianos, de incensos a roupas e acessórios de meditação, bem como livros, não apenas do Siddha Yoga, como das principais correntes hindus e das tradições místicas e esotéricas cristãs. Além disto, o ashram é dotado de diversos recintos para a meditação e a realização de cursos, bem como de templos entre os quais se destaca o dedicado a Nityananda, com uma estátua de cerca de três metros de altura do mestre, cercada por grandes quartzos de diversos tons, em uma construção elegante em meio a um jardim. Grande parte do trabalho de manutenção do ashram é realizado pelos devotos sob a forma de seva, de acordo com a tradição hindu, embora algumas pessoas recebam salários pelos trabalhos que fazem.

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106

Embora possa ser estudado de um ponto de vista meramente filosófico, como um

corpo objetivo de conhecimentos de caráter soteriológico, considera-se que a principal forma de

transmissão do Shivaísmo do Kashmir advém de suas práticas de ioga, transmitidas no quadro

das relações guru-discípulo. Todos os grandes mestres desta tradição passaram por esta relação,

obtendo seu conhecimento através da participação ativa nas experiências desencadeadas em si

mesmos por um mestre realizado. Neste sentido, vale ressaltar as qualidades eminentemente

práticas, mundanas, desta filosofia, que propõe uma espécie de misticismo do senso comum.

Assim, os conceitos mais abstratos ensinados pelo Shivaísmo do Kashmir são baseados não

apenas na perfeição lógica e em percepções místicas, mas também no estudo do microcosmo e da

experiência ordinária. Segundo Barnard, o Shivaísmo do Kashmir ensina a identidade essencial

entre o self, Deus e o mundo. Sua ioga permite que tudo na vida se transforme em ponto de

contato com a Divindade, em trampolim para a experiência da transcendência. Andar a cavalo,

ouvir música, ou simplesmente ir dormir à noite podem se tornar a base do encontro com a

divindade, desde que estes atos sejam vistos com a compreensão correta (1986, p.ix).

O Shivaísmo do Kashmir aceita a realidade do mundo tal como ele se apresenta, seus

aspectos contraditórios de dor e alegria, de beleza e feiúra, etc. O mundo não é visto como uma

ilusão, mas como a manifestação criativa de Parama Shiva. O mundo é a alegre expressão da

shakti o poder ou a consciência de Parama Shiva. Se compreendido corretamente, cada

momento da vida pode ser transformado em ocasião de entrar em contato com o artista da

criação, com a fonte de alegria e êxtase que sublinha o universo inteiro.

Considera-se que esta percepção permite aos adeptos penetrar a superfície de

camadas de significado até então desapercebidas e a alterar radicalmente sua forma de interação

com outros seres humanos. A partir desta visão transformada, eles passariam a sentir as

interconexões que ligam tudo no mundo, e poderiam experimentar diretamente o fato de que cada

ação que executam ressoa através do universo inteiro.

O Shivaísmo do Kashmir separa a atividade criativa de Deus em duas categorias

distintas, uma de evolução e outra de involução. Na de involução ocorreria uma contração da

shakti, que oculta sua verdadeira natureza no ato de criação; na evolução ocorreria o processo

através do qual a shakti, reduzida à limitada consciência humana, reconhece que o mundo não se

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107

separa dela e começa novamente a desfrutar sua verdadeira natureza como consciência livre e

plena de felicidade.

Nos processos cosmológicos de involução e evolução, cada um dos tattvas, ou níveis

de manifestação da Consciência, pode ser descrito, mesmo em suas etapas mais abstratas, a partir

de exemplos retirados da vida diária, para mostrar como cada pessoa experimenta continuamente

cada um destes níveis. Os tattvas81 são tanto etapas de descida, descrições do processo por meio

do qual a consciência se torna o mundo e a alma humana, quanto etapas de subida, um diagrama

dos diferentes níveis de consciência mística. Os filósofos místicos do Shivaísmo do Kashmir

descrevem os tattvas não apenas como categorias cosmológicas, mas também como pontos de

referência que a pessoa envolvida no caminho espiritual pode experimentar diretamente, em uma

espécie de supraconsciência dos estados de consciência.

Segundo este sistema, o movimento de evolução espiritual do ser humano inicia-se

com o anugraha, também chamado de shaktipat, a concessão da graça divina. A Consciência

Suprema, contraída sob a forma da consciência humana, torna-se tão limitada no mundo, tão

alienada de sua verdadeira glória, que precisa ser despertada de seu sono de ignorância auto-

imposta e relembrar sua verdadeira natureza de Consciência Suprema. Este momento de

despertar, de reconhecimento da auto-divindade, é o anugraha, o momento em que o divino

concede paradoxalmente sua graça a si mesmo. Esta auto-concessão da graça é possível apenas

porque a Consciência sempre permanece transcendente, mesmo quando imersa no mundo de

separação e mudança.

É a shaktipat, ou a iniciação (diksha), que habilita o ser humano a começar a busca de

auto-conhecimento82 que culmina com a reunião completa e perfeita com Parama Shiva.

Segundo o Shivaísmo do Kashmir, a concessão da graça raramente provém diretamente do

Senhor (Shiva), ocorrendo geralmente através de um mestre espiritual completamente desperto

para sua própria divindade. O mestre espiritual é visto assim como indispensável para o processo

de evolução. Ele, ou ela, não apenas ensina e guia os discípulos, como também atua como o

gatilho inicial que desperta o potencial latente do discípulo.

81 Os tattvas também estão presentes na filosofia do samkhya, que complementa a ioga. Os 25 tattvas mais baixos dos 36 tattvas do sistema trika do Shivaísmo do Kashmir representam todo o universo do ponto de vista do samkhya. Neste, Purusha e Prakriti são reconhecidas como as realidades últimas, enquanto que no trika elas são apenas derivativos, reconhecendo-se ainda onze tattvas adicionais acima de Purusha.

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108

Embora o Shivaísmo do Kashmir pregue a igualdade de todos os seres humanos, isto

não siginifica que todos estejam envolvidos no processo de evolução espiritual, e mesmo entre os

que estão, haveria grandes diferenças de temperamento e receptividade espiritual. Assim, embora

todos sejam considerados como manifestações da mesma consciência divina, este sistema

eminentemente prático reconhece, ao mesmo tempo, que cada pessoa é única, e se aproximará da

tarefa de obtenção de auto-conhecimento de diferentes maneiras. Para adequar-se aos indivíduos

particulares, o Shivaísmo do Kashmir contém dentro de si quatro diferentes níveis de prática

espiritual chamados upayas, ou meios, muitas vezes permeáveis uns aos outros.

O Anava upaya relaciona-se às práticas realizadas por pessoas que se sentem

separadas de Deus e que buscam executar ações com seu corpo e seus sentidos para purificar-se.

As técnicas espirituais típicas deste upaya são o canto, as posturas de hatha ioga, as práticas

respiratórias, o japa (a repetição mecânica de um mantra83) ou a meditação sobre uma imagem de

Deus.

A Shakta upaya é voltada para as manifestações ou atividades da shakti (poder

divino), e constitui um caminho de realização através do conhecimento. Este upaya é indicado

para aqueles que possuem uma compreensão intelectual dos ensinamentos do Shivaísmo do

Kashmir, ainda que incapazes de manter esta consciência e atualizá-la em suas vidas diárias. O

Shakta upaya possui uma série de técnicas destinadas a reorientar a pessoa em direção à

divindade, ajudando-a a ultrapassar uma tendência inata a sentir-se pequena, fraca e apartada

tanto do Senhor quanto das outras pessoas. Uma de suas técnicas principais é a investigação do

mantra, ao invés de sua repetição mecânica. Nesta prática, a pessoa repete o mantra tendo

consciência de que a divindade a que ele se refere e seu próprio ser são idênticos, que todos são

formas de uma mesma Consciência.

A pessoa também pode meditar sobre a verdadeira natureza da mente, tornando-se

consciente de que seus pensamentos nada mais são que diferentes formas de Consciência. Com

esta percepção, pode-se então simplesmente observar os pensamentos à medida em que eles

passam, buscando traçar sutilmente o caminho até sua fonte, captando aquele instante de calma

entre eles, o unmesha, o reservatório da potência divina. Pode-se chegar ao unmehsa por

82 O auto-conhecimento é entendido aqui como o reconhecimento da própria divindade.

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109

diferentes caminhos, mas eles sempre estarão comprometidos com o mundo do estar entre, como

nos momentos entre o sono e a vigília, no espaço entre as respirações ou entre distintos

momentos de percepção.

Na verdade, o Shakta upaya não seria tanto uma série de técnicas, mas uma

reorientação da vida como um todo, um modo particular de entender e relacionar-se consigo

mesmo e com o mundo. Ele seria um tipo de reprogramação mental auto-dirigida em que a

pessoa contrabalança os conceitos limitados e negativos que tem sobre si mesmo e sobre o

mundo a partir de novos padrões de compreensão. No Shakta upaya há uma reflexão consciente

sobre os ensinamentos do Shivaísmo do Kashmir, através da qual eles são colocados em prática

por meio de uma contemplação criativa. Por exemplo, uma pessoa poderia dizer a si mesma “Eu

sou Shiva, eu sou o Senhor, eu permeio tudo, este universo nada mais é do que o reflexo de

minha própria glória”, e, eventualmente, uma vez que estas afirmações representam verdades

ontológicas, poderiam provocar uma ressonância particular dentro do devoto. O que teria sido até

então apenas uma formulação mental abstrata atingiria níveis mais profundos, mais experienciais,

e o discípulo começaria a misturar-se com o estado interior particular da Consciência.

Este estado não-mental, mais profundo, da prática, é a chave para o terceiro upaya, o

Shambava upaya, o caminho da identificação com shambava, ou Shiva. Tendo saturado o seu

próprio ser com a repetição de pensamentos sobre o divino, a pessoa agora apenas se deixa levar

e descansar na consciência do self essencial, com um simples esforço da vontade. O Shambava

upaya, em seu grau mais alto de maturação culmina no último upaya, o Anupaya, que significa

“pequeno ou nenhum esforço”. O Anupaya é simples, direto, um reconhecimento completo, ou

Pratyabhijna. Com uma palavra apenas ou um simples olhar do mestre, a pessoa compreende sua

verdadeira natureza de forma instantânea e total84.

3.3) Concepções hindus e ocidentais do self

O Shivaísmo do Kashmir enquadra-se inteiramente dentro de uma percepção que

permeia toda a tradição hindu, na qual o self é visto como uma instância distinta da pessoa que o

83 O mantra utilizado pelo Syddha Yoga é o Om Namah Shivaya, que poderia ser traduzido como “Eu reverencio o deus (Shiva) que há em mim”.

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110

carrega. Segundo formulação proposta pelo antropólogo McKim Marriot, o hinduísmo teria

assim uma perspectiva que nos levaria a falar não de indivíduos, no sentido de seres não-

divididos, mas de divíduos, isto é, de seres que têm duas instâncias absolutamente distintas: uma

que seria o “self empírico”, tal como se apresenta socialmente, identificado ao ego e ao corpo

físico, em interação com outros egos, em constante mutação, e que poderíamos associar a uma

dimensão profana; e um “self metafísico”, o atman, considerado o “verdadeiro self”, eterno,

imutável, que não tem visibilidade externa, e que está associado a uma dimensão sagrada:

“Persons single actors, are not thougth in South Asia to be ‘individual’, that is, indivisible, bounded units, as they are in much of western social and psychological theory as well as in common sense. Instead, it appears that persons are generally thought by South Asian to be ‘dividual’ or divisible. To exist, dividual persons absorb heterogeneous material influences. They must also give out from themselves particles of their own coded substances essences, residues, or other active influences that may then reproduce in others something of the nature of the persons in whom they have originated” (Marriot 1976, p.111 apud Bharati 1985, p. 220).

Não se trata, conforme a maneira ocidental de pensar a pessoa, de perceber unidades

(mesmo que unidades-compostas, que contêm, por exemplo, um consciente e um subconsciente),

mas sempre dualidades. Quando se refere ao self, ao “eu”, o hindu está apontando para este

centro divino, que transcende a pessoa, para um eu metafísico e não para um eu empírico, como

poderíamos qualificar o “eu” ocidental. Segundo a análise de Marriot, a pessoa hindu, em sua

visão êmica, é transacional e transformacional. O eu-no-mundo hindu nada tem a ver com a

entidade homogênea, firme, com o substrato concebido pelas tradições judaico-cristãs. O self (eu-

no-mundo) hindu está sujeito a constantes expansões e contrações ligadas à complexa variedade

de transações ritualísticas de que é objeto85. O mais importante a ser registrado aqui, como

diferença entre as duas concepções, é que todos os esforços dos hindus, ao contrário dos

ocidentais, são voltados para o desenvolvimento deste eu divino, e não para o do eu empírico86.

84 Estas informações sobre o Shivaísmo do Kashmir foram retiradas de Barnard (1986). 85 Por exemplo, até os brahmins condutores rituais considerados pela sociedade indiana como os mais puros dos hindus estariam sujeitos a expansões e contrações do self, como quando, no momento ritual, identificam-se a Shiva, ou quando, no pólo oposto, são poluídos pelo consumo da comida oferecida por castas mais baixas . 86 Segundo Bharati, nenhum dos mestres da tradição hindu se preocupou com o self empírico, tal como ocorre no Ocidente através dos trabalhos de psicólogos, antropólogos, sociólogos e mesmo nas referências dos poetas. Todas

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111

As qualidades eminentemente práticas do Shivaísmo do Kashmir, seu “misticismo do

senso comum”, contudo, tendem a provocar no devoto ocidental uma série de mecanismos

reflexivos que, como veremos, estarão muito mais próximos de questões deste eu empírico, do

que de questões deste eu divino, deste “outro” eu, que habita em todos.

A organização de uma tipologia dos diferentes tipos de reflexividade conceito que

estou empregando aqui com o sentido de reflexão sobre si mesmos que pude observar entre os

devotos ocidentais do Siddha Yoga parece esclarecer, de alguma forma, esta leitura mais

“ocidental” das práticas realizadas. Não se quer com isto dizer que as questões do eu divino não

estejam presentes entre os adeptos ocidentais elas o estão, como se verá pela descrição do tipo

de reflexividade que considerei como ligada ao terreno mais propriamente espiritual. O que se

quer indicar, contudo, é o quanto questões do eu empírico estarão presentes também neste

processo mais amplo de imanentização da divindade uma das marcas centrais das

religiosidades das tradições ióguicas hindus como no caso dos tipos que considerei como

reflexividades éticas e reflexividades psicológicas (ver esta tipologia no ítem 3.4 deste capítulo).

Nestes dois últimos casos, estaríamos muitos mais próximos do auto-conhecimento

associado ao indivíduo, tal como conceituado pela literatura antropológica que analisa o

individualismo no Ocidente. Nesta, a categoria indivíduo é definida como o locus da expressão

da subjetividade e da interiorização em oposição à pessoa, associada ao pólo do social e a todos

os constrangimentos decorrentes deste aspecto relacional, que poderíamos também chamar de

cultural. Não se trataria, portanto, do auto-conhecimento proposto pelo Shivaísmo do Kashmir, e

por todas as tradições do hinduísmo em geral, em que se quer chegar à compreensão ou à

experimentação do caráter divino do eu.

Esta distinção entre indivíduo e pessoa proposta pelos antropólogos que se dedicaram

ao estudo do individualismo ocidental (ver a este respeito Velho, G., 1998) não faria nenhum

as tradições hindus que falam do self empírico o fazem para recusar seu status ontológico (seja no advaita vedanta, seja no budismo) ou para assimilá-lo a algum tipo de construção metafísica, que seria o Self, com S maiúsculo. Quando quaisquer das tradições hindus se refere àquilo que poderia ser o indivíduo (o self empírico), não o faz para analisá-lo, mas para denegri-lo. Assim, o termo hindu que mais se aproximaria do termo indivíduo jiva (geralmente traduzido no Ocidente, de forma infeliz, segundo Bharati, como alma) é um termo que se associa a qualidades tais como ambição, cobiça, avareza, obsessão, e a toda uma imensa lista de atributos “indesejáveis”; jiva não “possui” estas qualidades, ele “é” estas qualidades. O self como base de importantes realizações humanas tais como trabalhos eruditos, habilidades artísticas, invenções tecnológicas, etc., é totalmente ignorado nos textos filosóficos indianos.

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112

sentido, conforme se depreende da análise de Bharati (Op. cit.), quando aplicada ao caso hindu.

O self empírico, para os hindus, associa-se a um tipo de comportamento estereotipado, que varia

dentro de um continuum que vai do comportamento valoroso, heróico, apaixonado, e que termina

em qualidades como a preguiça, o logro e a baixeza. Não há nada que possa ser tomado como um

modelo real (empírico) de self que sirva de base para processos de tomada de decisão, ou que

aponte para a possibilidade de integridade pessoal. O efêmero self hindu, psico-físico-sensorial,

não pode gerar nenhum tipo de criticismo complexo, como no Ocidente. Uma locução da

Bhagavad Ghita, frequentemente citada, ilustra bem este ponto: “faça o trabalho para o qual você

nasceu”. Segundo Bharati, mais do que ter se prestado a uma legitimação do sistema de castas

hindu, a importância desta locução está ligada ao fato de que ela legitima, reflete e reforça um

modo estereotipado de ser do self empírico na Índia, em lugar de apoiar ações e decisões

baseadas em processos autônomos de individuação que poderiam resultar na aceitação do self

empírico como soberano e infinitamente matizado, como no Ocidente (Ibid., p.218-219).

Neste sentido, veremos que grande parte dos processos reflexivos instaurados entre os

praticantes ocidentais do Siddha Yoga, e por eles associados ao terreno do sagrado, nada tem a

ver com os objetivos das práticas religiosas hindus voltadas para o encontro do atman (e não para

o aprimoramento do self empírico). É Alex Comfort (apud Bharati, op. cit., p.223-224) quem

chama atenção para o fato de que a concepção hindu do self, do self verdadeiro, distinto do self

empírico, está associada àquilo que no Ocidente ficou restrito a certo tipo de experiência

marginal, ligada aos estados alterados de consciência que produzem o sentimento oceânico, de

unidade entre o sujeito e a realidade que o circunda aos estados místicos, em resumo. Neste

sentido, as experiências de unidade, longe de serem relegadas ao terreno das heresias ou da

insanidade, como frequentemente se verificou no Ocidente, são colocadas no centro dos objetivos

do virtuosos religioso, e, mais do que isso, tornaram-se normativas na formulação do self divino

como a linha principal de pensamento e ação hindus87.

87 Um bom exemplo destas concepções está presente em um caso relatado por Bharati sobre a surpresa de um missionário jesuíta na Índia com as reações do povo a suas pregações sobre a pobreza e a falta de acontecimentos positivos em suas vidas. Ao final dos encontros, as pessoas sempre comentavam “Não se importe com estas coisas, Deus é eterno”, deixando o missionário intrigado sobre qual a relação entre a pobreza do povo e o fato de Deus ser eterno. Segundo Bharati, o jesuíta não percebia que estava subentendido nesta linguagem o axioma monístico assumido pela maioria dos hindus modernos, conferindo à frase o sentido de que “Deus é eterno e todos somos Deus, então, todas estas contingências arbitrárias da vida material não são atribulações, de fato, nossas”. Em outro exemplo, Bharati comenta por que é que as ideologias políticas dos hindus não são tomadas de forma alguma como

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113

Bharati assinala que a concepção de adaptação racional de um ser auto-orientado,

associada no Ocidente a questões de poder, desvio, justiça, egoísmo, altruísmo, estratificação,

eficiência, estratégias, táticas e moralidade, traduz-se, no hinduísmo, pela idéia de que a única

decisão racional a ser tomada é buscar intuir o self (divino) como o único ser existente e rejeitar

todo o resto, incluindo poder, desvio, justiça, táticas, etc. A marca de autenticidade do sábio, nas

palavras de Shamkara, o sintetizador do advaita vedanta88, seria nityanita-vastu-vivekah, isto é, o

discernimento entre o eterno (o self mais alto, divino) e o não-eterno (o não-self, o self comum).

Se há campo de ação para adaptações empíricas auto-orientadas nesta visão de mundo, elas

pertencem a uma categoria inferior, embora sempre presente, de reflexões sobre o self empírico e

suas ações. Assim, tudo que se relaciona a ele, ao contrário do que se verifica no Ocidente, é de

pouca importância no sistema filosófico-religioso hindu. O self empírico, a entidade que denota o

indivíduo agindo no mundo, e que está subentendida quando um hindu utiliza termos que

traduziríamos por “eu”, por “mente” ou por “coração”, é introjetado como inferior ao “self” da

tradição religiosa. O fato de que tenha sido este self inferior que conquistou a Índia é, neste

sentido, extremamente desconfortável para os hindus, e algo que os obrigou a, de algum modo,

emular com ele. O Ocidente é visto como o mestre deste self empírico e como o mestre em obter

sucesso na vida mundana. Como uma sequela deste domínio sobre o self empírico e de sua

supervalorização da realidade empírica, o ocidental é visto como pobre em espírito, não tendo

conseguido, ou desejado, realizar-se, por não ser capaz de perceber o significado de sua

verdadeira natureza, o self não-empírico. Para os hindus, o verdadeiro self pode e deveria ser

realizado, enquanto o self empírico deveria ser negado, sendo para este processo que deveriam se

incoerentes com suas opções religiosas, como no caso do Ocidente, em que se vê uma incompatibilidade, por exemplo, entre ser cristão e ser comunista. Ser comunista, fascista ou liberal-democrata, tudo isto é visto como contingente, como sobreposições do self empírico ao verdadeiro self que não é de modo algum afetado por elas (Op. cit., p.198-199). 88 Shamkara é considerado como tendo desempenhado em relação ao hinduísmo o mesmo papel que São Tomás de Aquino em relação ao cristianismo. Para o hindu urbano moderno, o termo “self” se identifica quase sempre a uma versão simplificada do conceito de “self”, tal como colocado no advaita vedanta, sintetizado por Shamkara . Nesta filosofia, parte-se do princípio que existe apenas um ser na existência, o absoluto (brahman), que não tem forma. A multiplicidade de outros seres, almas, deuses, demônios, bestas, estrelas, planetas, etc, seriam superimposições errôneas sobre brahman. A tarefa do sábio seria romper esta ilusão de multiplicidade e perceber a identidade destas diversas manifestações com o absoluto. Considera-se esta doutrina como a mais prestigiada entre as diversas doutrinas do hinduísmo, hoje, sobretudo como resultado de sua difusão no Ocidente no início do século por Vivekananda, em uma versão considerada bastante resumida, que teria depois grande influência e aceitação dentro da própria Índia (sobre Vivekananda, ver Capítulo 1) (Bharati, op. cit., p.186-188).

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114

voltar todos os esforços humanos. A realização do self divino é o que confere o carisma mais

importante para a sociedade hindu, o do sadhu, o do homem sagrado.

3.4) Tipologia dos processos reflexivos desencadeados entre os adeptos ocidentais do

Siddha Yoga

Segundo Anthony Giddens,

“a secularização é sem dúvida uma questão complexa e não parece resultar no desaparecimento completo do pensamento e atividade religiosos (...). No entanto, a maior parte das situações da vida social moderna é manifestamente incompatível com a religião como uma influência penetrante sobre a vida cotidiana. A cosmologia religiosa é suplantada pelo conhecimento reflexivamente organizado, governado pela observação empírica e pelo pensamento lógico (...). Religião e tradição sempre tiveram uma vinculação íntima, e esta última é ainda mais solapada do que a primeira pela reflexividade da vida social moderna, que se coloca em oposição direta à ela” (Giddens, 1991, p.111).

Este tipo de avaliação, que tende a considerar religião e reflexividade entendida

aqui como pensamento crítico como mutuamente excludentes, parece pouco consistente

quando confrontada com práticas como a dos adeptos ocidentais do Siddha Yoga, em que a

reflexividade o pensamento crítico sobre instâncias de suas próprias vidas se apresenta

como via de acesso privilegiada para a espiritualidade. Assim, ao contrário do que Giddens

afirma, verifica-se que uma das principais propostas trabalhadas pelo grupo é a de conciliar a

vida social dos adeptos a uma perspectiva religiosa, o que se faz justamente através de um tipo de

conhecimento reflexivamente organizado, apoiado na observação empírica e no pensamento

lógico para construí-la. Estes recursos reflexivos serão acionados para a observação de si

mesmos, fazendo com que o fato religioso seja instaurado, em grande medida, pela construção de

sentidos sobre si mesmos.

O foco de minha atenção serão exatamente os mecanismos reflexivos acionados

dentro do Siddha Yoga, cuja utilização continuada me parece constituir a principal via de

produção da experiência de imanência entre os devotos ocidentais, e algo característico, ao

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115

mesmo tempo, da apropriação que eles fazem destas práticas. Com isto, como já apontei neste

capítulo, não quero dizer que, para muitos devotos, as sensações de unidade entre tudo

alcançadas de forma intermitente durante a meditação também não contribuam de forma central

para a construção da experiência de imanência. Contudo, esta não será a única nem a principal

via para a produção desta perspectiva entre eles. Processos reflexivos, à primeira vista

inteiramente estranhos às religiosidades de tipo místico, serão essenciais para constituir e

legitimar a experiência mística proposta pelo grupo. Serão eles também que irão conferir um

aspecto bastante radical à experiência de imanência que se constrói.

A radicalidade desta experiência de imanência está associada em grande medida ao

fato de que ela não fica restrita aos espaços rituais ou aos momentos específicos em que se

medita, com todo o imenso espectro de sensações físicas e psíquicas então produzidos, mas vai

abarcar a totalidade da vida dos devotos, impondo-se como evidência em momentos do

quotidiano tradicionalmente associados ao profano. Para tal, este quotidiano é transformado em

espaço de produção de significados associados ao sagrado, responsáveis pela transformação de

acontecimentos ordinários em acontecimentos extraordinários. A vivência da presença de Deus

em si mesmos e em tudo será dada pela imersão do devoto num processo de sacralização

contínua do quotidiano, que tenderá a diluir as fronteiras entre sagrado e profano, obrigando-nos

a repensar alguns dos marcos mais tradicionais da literatura sobre ritual. Em primeiro lugar,

porque os espaços rituais perdem o privilégio de se constituir em momentos únicos e exclusivos

de conexão com o sagrado, não podendo mais ser definidos somente por esta via (Gluckman,

Gluckman, 1977); em segundo lugar, porque o momento ritual fica destituído também de outra

das características que lhe é freqüentemente atribuída, a de ser o lugar por excelência para a

produção e transmissão de significados (Leach, 1972). Neste sentido, poder-se-ia dizer que o

praticante de siddha ioga tenderia a ritualizar a vida como um todo, não só por perceber-se como

continuamente conectado a Deus, mas também por estar o tempo todo produzindo significados

novos para as experiências que vivencia. Essa ressignificação de acontecimentos quotidianos, que

servirá de prova da presença e da atuação do divino dentro de si, será uma prática central dos

devotos, freqüentemente relatada nos momentos de partilhamento de experiências dentro do

grupo.

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116

A ressignificação do quotidiano será feita por meio da construção de homologias,

metáforas e da observação de coincidências que conectam acontecimentos e ações aparentemente

díspares e sem relação uns com os outros na vida das pessoas, criando a percepção de uma

unidade subjacente a tudo, que é o que instaura a sensação da presença do sagrado para o devoto

a partir de si mesmo. A experiência da imanência advém assim, em primeiro lugar, do fato de que

são os próprios mecanismos mentais do devoto os responsáveis pela construção das homologias e

pela identificação de coincidências significativas entre os acontecimentos; além disso, são os

acontecimentos de sua própria vida, e não outros, os utilizados neste processo.

Desta forma, a busca de identificação com a Consciência Pura ou self, que é a busca

central das tradições da ioga, será mediada, nesta via reflexiva, por todo um processo que

colocará em cena, nos termos de Simmel, a uniqueness de cada indivíduo, criando-se com isto

uma tensão permanente entre singular e universal. Serão as histórias individuais, ressignificadas

continuamente, que propiciarão para o devoto a percepção de que Deus age dentro de si, criando-

se assim uma dialética entre singular as experiências individuais e universal a

Consciência Pura ou self que funcionará como o motor do processo de imanentização

instaurado.

Esta reflexividade desencadeada entre os adeptos ocidentais do Siddha Yoga através

da ressignificação de vivências pessoais demonstra que a articulação entre espiritualidade e

reflexividade, ao invés de se constituir em obstáculo para a afirmação da religiosidade no cenário

ocidental contemporâneo, como frequentemente apontado, pode, ao contrário, constituir-se no

caminho por excelência para o seu desenvolvimento.

As observações de campo que pude realizar sobre o Siddha Yoga permitiram-me

identificar três tipos de processos reflexivos baseados em um pensamento homológico, que

consistiria basicamente na ressignificação de determinados acontecimentos à luz de outros. Vale

registrar que as características dos tipos que localizei encontram-se algumas vezes misturadas na

prática.

3.4.1) O primeiro destes processos homológicos seria o que classifiquei como de tipo

ético-reflexivo. Neste, considera-se que a observação de conexões entre fatos internos e externos,

que poderíamos associar à definição de sincronicidade de Jung, fornece aos adeptos indicadores

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117

para a ação, isto é, a percepção da presença do sagrado sob a forma destas coincidências não se

esgota em si mesma, mas se transforma num guia para a orientação das ações, apontando para

aquilo que se denominou de “ética expressiva” a atuação de acordo com o que se encontra no

interior como sendo a única fonte de legitimação ética, em detrimento das condutas ditadas por

doutrinas, dogmas e moralidades codificadas pelas religiões tradicionais. (Heelas, 1996, p.24).

Esta prática do Siddha Yoga parece funcionar, assim, como um instrumento

para a contínua reelaboração das histórias individuais que irão compor aquilo que

Giddens chamou de projeto reflexivo do self. Se a expansão da reflexividade na

modernidade desestabiliza a identidade do sujeito, instituindo-a como um projeto aberto e

passível de contínuas reelaborações (D’Andrea, op.cit., p.115) religiosidades como a do

Siddha Yoga parecem ser uma das escolhas possíveis para enfrentar esta questão.

Como exemplo deste tipo de processo homológico ético-reflexivo poderíamos

citar um caso relatado por uma ex-devota do Siddha Yoga, psicóloga de formação

junguiana, no qual ter sido presenteada com um livro é visto como uma indicação para

uma escolha que faria sobre os rumos de sua vida espiritual89:

“A invencível esperança de Christian de Chergé [livro sobre a vida deste teólogo, prior do Mosteiro de Thibhirine, na Argélia], que traduz de modo tão delicado a convicção profunda do meu coração a respeito do sentido extremamente atual da vida monástica foi me dado recentemente, em Paris, pelas mãos generosas de Janine Chanteur, minha ex-analista e grande amiga, querendo partilhar comigo seu próprio exemplar e a emoção diante da vida e da obra desse mártir (...). Ela que tanto contribuiu para que minha terapia, pelo caminho da psicologia profunda de Jung, pudesse ser um espaço de encontro com Deus dentro de mim, aparecia, novamente, em sintonia com a voz externa da Sabedoria interior, abrindo uma nova porta para que eu fosse instruída e orientada a respeito do significado da vida monástica para a minha participação pessoal nesse momento presente da história da salvação” (Sodré, 1998, p.15).

Ou seja, esta sensação de que um fato exterior o recebimento de um livro sobre a

vida monástica sob a forma de um presente de sua antiga analista está conectado com uma

vivência interior todo o seu processo de busca espiritual é uma sensação aprendida,

89 Embora este episódio tenha se passado depois de ter deixado o Siddha Yoga não creio que isto invalide o valor do testemunho e exemplifique um a forma típica de raciocinar dos adeptos do grupo.

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118

digamos assim, pois ela resulta de todo um treinamento para dar atenção e conferir significado às

coincidências, mecanismo central dentre os processos reflexivos instaurados dentro do Siddha

Yoga. Estas coincidências são coincidências no tempo, isto é, são coincidências entre demandas

internas e fatos externos que ocorrem simultaneamente, daí o termo sincronicidade empregado

por Jung para se referir a elas. As sincronicidades passam a ser vistas pelos praticantes do Siddha

Yoga como sinais da atuação divina.

A continuação do depoimento de Sodré esclarece a natureza destes processos

reflexivos sobre coincidências e de que forma eles são associados ao plano do sagrado:

“A impressão que tenho é que Deus nos instrui tanto dentro como fora de nossos corações, assinalando nosso caminho com pistas a seguir. Costumo seguir justamente esses sinais que aparecem tanto dentro como fora, usando os segundos como uma confirmação ou não da voz interior do próprio coração. Quando se trata apenas dos meus próprios sentimentos e vontades individuais, em oposição às propostas de Deus, logo aparece uma divergência entre os sinais internos e externos, enquanto que a confluência dos sinais indica que estou caminhando na direção que me conduz para Deus. O diálogo com Deus faz, portanto, parte integrante dos acontecimentos da minha vida, sendo sua escuta uma fonte de grande aprendizagem e divertimento” (Id., p.16) .

Outra devota contou um episódio semelhante, ocorrido em sua vida quotidiana, que

ela encarou da mesma forma, isto é, como algo que lhe estava fornecendo pistas sobre como

deveria agir. Esta moça conhecera um homem que lhe interessara afetivamente e soubera, ao

conviverem mais proximamente, que ele acabara de se separar de sua mulher. Em pouco tempo,

sentindo que se criava um clima romântico entre ambos, aceitou um convite dele para jantar.

Neste dia, ao sair de casa, logo após o telefonema em que fizera esta combinação, viu uma cena

na rua que lhe produziu um insight imediato sobre a situação que estava vivendo. Diante de seu

prédio, um grupo de pessoas observava um filhote de gavião ferido, encontrado em um parque

florestal próximo. Naquele momento, “sentiu” que o fato de presenciar aquela cena, tão inusual

no cenário urbano, não era algo gratuito, mas algo que estava ali para lhe “mostrar” alguma coisa.

O que lhe veio à cabeça em seguida a esta sensação foi a idéia de que estava recebendo naquele

momento uma indicação sobre o tipo de homem com quem ia sair: identificou-o àquele gavião,

pássaro utilizado muitas vezes como metáfora em nossa cultura para falar de homens

conquistadores, sem intenções sérias em seus relacionamentos afetivos. O fato do gavião estar

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119

ferido pareceu-lhe uma confirmação maior ainda da intuição que estava tendo, sendo interpretado

como uma referência à separação recente do possível pretendente, que deveria estar ainda

magoado ou ressentido pelo fato. Este episódio definiu a atitude que tomou: ela cancelou o jantar

e não deu continuidade à relação, comentando que o recado recebido havia sido claro demais,

aquele homem não poderia lhe trazer nenhum bem, já que não alimentava, provavelmente,

nenhuma intenção de iniciar uma relação duradoura, como a que ela desejava ter naquele

momento de sua vida. Aquele era o tipo de situação que lhe parecia comprovar a atuação do guru

em sua vida.: “Foi Gurumayi que me mandou aquela visão”. Mas, sobretudo, a simultaneidade no

tempo entre os dois episódios - fazer a combinação pelo telefone e ver o gavião ferido em

seguida lhe pareciam uma manifestação típica da atuação de seu guru principal (o princípio

divino presente em cada um), isto é, daquele que parece fazer de forma milagrosa a conexão entre

acontecimentos internos e externos. Neste caso, a divergência entre os sinais internos o desejo

de um relacionamento e externos a imagem de um gavião, símbolo por excelência de um

temperamento masculino pouco disposto a relacionamentos estáveis lhe pareceu mais do que

suficiente para orientar-lhe a ação. Com o correr do tempo, considerou correta a avaliação que

fez, pois o pretendente, em pouco tempo, apareceu publicamente com outras moças.

Neste tipo de exemplo, o valor moral dos atos guarda uma relação com a percepção

sobre a sincronicidade de determinados acontecimentos, algo que difere bastante daquilo que se

define como valor moral dentro da tradição cristã, associado à intenção dos atos, conforme se vê

neste trecho em que Durkheim analisa as características do individualismo ocidental:

“Mais ignore-t-on que l’originalité du christianisme a justement consisté dans un remarquable dévelopment de l’esprit individualiste? Alors que la religion de la cité était tout entière faite de pratiques matérielles d’où l’esprit était absent, le christianisme a montré dans la foi intérieure, dans la conviction personnelle de l’individu la condition essentielle de la piété. Le premier, il a enseigné que la valeur morale des actes doit se mesurer d’après l’intention, chose intime par excellence, qui se dérobe par nature à tous les jugements extérieures et que l’agent seul peut apprécier avec compétence . Le centre même de la vie morale a été ainsi transporté du dehors au dedans et l’individu érigé en juge souverain de sa propre conduite, sans avoir d’autres comptes à rendre qu’à lui même et à son Dieu” (Durkheim 1970, p.272-273, apud Duarte e Giumbelli 1995, p.85, grifos meus).

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120

A concepção de self difundida entre os adeptos ocidentais do Siddha Yoga levará a

algo muito próximo disto, uma vez que se considera que agir de acordo com os seus ditames (ou

“ouvir a voz do guru principal e segui-la”) também implicará numa interiorização do sujeito em

busca de inspiração para suas ações. Estas, por sua vez, só poderão ser avaliadas pelo próprio

sujeito. A diferença é que no Siddha Yoga Deus é o próprio self, e, neste sentido, é o próprio

Deus que, desde que saibamos ouvi-lo, ditará nossas ações. No cristianismo Deus é algo que está

fora e, como mostra Durkheim, será a convicção pessoal do sujeito que orientará suas ações, e a

partir daí, sim, estas serão avaliadas por Deus.

No Siddha Yoga a convicção pessoal já é parte do divino, como se vê pelas

descrições da atuação do guru principal como uma voz clara, inconfundível, que fala dentro de

cada um de nós orientando nossas ações. Embora também seja concebida uma escuta da voz de

Deus dentro das tradições cristãs, ela não se apresenta como um aconselhamento para as ações,

mas muito mais como um chamado de Deus, conforme os depoimentos dos convertidos de

diversas correntes cristãs, que relatam ter ouvido a voz de Jesus dentro de si, geralmente

conclamando-as a aceitá-lo dentro de seus corações, o que pode ser feito seguindo este ou aquele

grupo cristão.

Esta diferença é bem delineada em Duarte e Giumbelli, quando se explica o

significado do dogma da Encarnação no cristianismo, em que se coloca a idéia de uma ...

“conjunção completa, numa pessoa [Jesus Cristo], do humano e do divino, sem que haja confusão

entre as duas naturezas. O que se afirma aqui é menos a distinção entre essas duas naturezas do

que a própria possibilidade de existência de pontos privilegiados de mediação sejam eles os

corpos continentes dos dirigentes clericais ou os corpos intocados das virgens” (op. cit., p.90).

Assim, enquanto no cristianismo apenas Cristo reúne o humano e o divino na mesma

pessoa, na concepção hindu da pessoa todos são possuidores da divindade dentro de si, embora

seja necessária uma iniciação e uma prática espirituais para poder percebê-la e manifestá-la. E

apenas algumas pessoas teriam a capacidade de tornar-se divinas isto é, romper o véu da

ignorância e perceber a própria divindade os mestres realizados, os avatares, em permanente

estado de samadhi (iluminação).

Contudo, este ponto no Siddha Yoga é de certa forma paradoxal, uma vez que se o

self é concebido como a própria divindade que habita em todos, e que pode ser ouvida para

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121

orientar nossas ações, ele também é apresentado como aquilo que não se confunde com a

consciência ordinária, e que apenas testemunha nossos pensamentos e ações, sendo esta uma das

contribuições mais originais das tradições orientais, como comenta Eliade: “It’s impossible to

disregard one of India’s greatest discoveries: that of consciouness as witness, of consciousness

freed from it’s psychophysiological structures and their temporal conditioning, the consciousness

of the ‘liberated’ man, of him, that is, who has suceeded in emancipating himself from

temporality and therefore knows the true. Inexpressible freedom” (Eliade, 1990, p.xx).

Um outro ponto de contraste entre as tradições cristãs e hindus é o fato de que a

construção da interioridade da pessoa cristã é associada à questão do pecado, algo inteiramente

estranho às concepções hindus, em que a interioridade é vista como locus privilegiado do

sagrado. A idéia do guru principal, ou do guru interior, é exatamente a de que Deus habita dentro

de nós, a imanentização se faz a partir daí. Segundo Duarte e Giumbelli, a associação da

interiorização ao pecado implica em um caráter paradoxal na constituição da pessoa cristã: “um

‘território’ dotado de uma interioridade delimitada exatamente pelo que tem de mais condenável,

a rebeldia contra Deus, e constituída na medida mesmo da sua exteriorização, da confissão a

outrem. Um modo pelo qual isso se expressa é no reconhecimento do indivíduo como ser

‘desejante’ a partir de sua própria arrogância. Nesse sentido, a principal novidade do cristianismo

está em ter elevado o desejo interior a critério, a mesmo tempo reconhecível, primordial e

universal, capaz de definir a verdade de cada indivíduo em sua singularidade o ‘abismo’ de

sua própria consciência e em sua totalidade seu corpo e sua alma” (Op. cit., p.99).

3.4.2) O segundo tipo de processo homológico identificado seriam os que

denominei de psicologizados, querendo referir-me a um tipo de homologia que trabalha

com aspectos psicológicos, da personalidade dos adeptos. Estas homologias ocorrem

geralmente entre pontos considerados problemáticos da individualidade dos sujeitos e

situações ocorridas dentro do grupo, geralmente durante o seva, o trabalho gratuito

realizado pelos adeptos como ato de devoção ao guru. Estas situações parecem fornecer

uma lição para os devotos sobre aspectos particulares de suas vidas em “mini-situações”

que propiciam a emergência de problemas semelhantes aos enfrentados em suas vidas

diárias.

Page 131: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

122

Uma moça encarregada da lavagem de louça no ashram de South Fallsburg relatou

que, ao lavar uma pilha de bandejas, defrontou-se com uma particularmente suja, com muita

gordura grudada, o que a fez ter a idéia de deixá-la de molho, para ser mais fácil e mais rápido

lavá-la depois. Ao fazer isto, veio-lhe à cabeça a lembrança de uma situação muito problemática

em sua vida, que “sentiu” imediatamente que também deveria ser deixada de molho, por mais que

ela tivesse a tentação de resolvê-la imediatamente. Exatamente como fizera com aquela bandeja

mais suja e mais difícil, apercebeu-se de que se conseguisse deixar a situação de lado, de molho,

conseguiria resolvê-la de forma mais fácil e mais rápida depois. Ao ter este insight, foi tomada

pela sensação de que estava recebendo uma lição durante o seva sobre como lidar com seus

problemas e com sua ansiedade de resolvê-los.

Outro exemplo ocorrido durante um seva foi relatado por uma devota designada para

trabalhar no setor de costura durante sua estadia de dois meses no ashram de South Fallsburg. O

setor de costura encarrega-se da produção de todo o vestuário ritual utilizado dentro do grupo,

desde as roupas dos monges até as peças de pano que recobrem estátuas e altares. Ser indicada

para trabalhar neste setor causou grande surpresa a L., uma vez que, por ser fumante, não se

achava suficientemente “limpa” para manusear os tecidos. Devido a este fato, foi aumentando

gradualmente dentro de si a sensação de que não merecia estar ali, de que houvera algum erro em

sua designação para aquela tarefa tão honrosa. A acolhida calorosa com que era brindada

diariamente pela coordenadora dos trabalhos, ao invés de anular esta sensação, deixava-a com um

sentimento ainda maior de desconforto. A culminância da impressão de desmerecimento ocorreu

no dia em que viu Gurumayi pessoalmente pela primeira vez, e esta dirigiu-lhe a palavra

diretamente, em meio às dezenas de pessoas que a cercavam, durante uma visita ao restaurante

principal do ashram. Sem dominar o inglês, precisou que uma companheira traduzisse a fala, e

mais uma vez foi surpreendida pelo fato de que, ao invés de ter recebido uma crítica, fora

perguntada gentilmente sobre seus progressos espirituais durante a estadia no ashram. Neste

momento, realizou que seu grande trabalho ali estava sendo aprender a superar o sentimento de

desmerecimento que a acompanhara por toda a vida, desde a infância. A seqüência de eventos em

que, sempre esperando menos recebia mais, em termos de afeto, de atenção e de demonstrações

de confiança dentro do ashram, obrigaram-na a reavaliar a sensação de que não merecia ganhar

nada, por jamais se acreditar suficientemente à altura das situações para merecer o que quer que

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123

fosse. Este insigth transformou sua atitude dentro do seva, fazendo-a comportar-se de modo

muito mais espontâneo e seguro, e ela acreditava que o mesmo se daria em sua vida normal dali

para a frente.

Durante a viagem que fiz entre a cidade de Nova York e o ashram do Siddha Yoga

em South Fallsburg, eu própria fui tomada por um raciocínio homológico do tipo acima descrito.

No ônibus em que viajei, um dos passageiros era um rapaz deficiente mental, deixado aos

cuidados do motorista pelo pai para ser levado até Monticello, aonde seria esperado por uma

pessoa conhecida. Ao perceber que fora deixado sozinho, o rapaz começou a gritar, implorando

para descer e recusando-se a sentar, perguntando desesperado para onde estava sendo levado, e

provocando assim enorme mal estar entre os passageiros, pois colocou-se em pé na fila entre as

cadeiras, obstruindo com isto a passagem dos que entravam.

O motorista, que talvez já o conhecesse, não demonstrava nenhuma preocupação

particular com o fato. A pessoa mais tensa com a situação talvez fosse eu, pois, sentada próxima

aonde o rapaz estava em pé, pensei em meu desconforto se ele resolvesse sentar ao meu lado,

forçando-me a conversar com meu inglês provavelmente pouco claro para ele. Felizmente, tal

não aconteceu; ele sentou-se ao lado de um rapaz que não pareceu aflito com seus brados, e, para

surpresa minha, assim que o ônibus começou a andar e as televisões suspensas sobre as cadeiras

começaram a transmitir o filme “Batman”, sua angústia desapareceu milagrosamente e ele

concentrou-se silenciosamente em assistir a televisão. Quando chegamos a Monticello e o ônibus

parou, ouvi sua voz gritando cheia de alegria “Eu conheço esse lugar!”. Imediatamente levantou-

se, desceu, e vi que encontrou sem qualquer dificuldade a pessoa que o esperava na estação.

Bem, este episódio desencadeou uma série de pensamentos em minha cabeça, e

concluí que a angústia do rapaz estava associada especialmente a dois elementos: ao fato de estar

sozinho e ao fato de não saber para onde estava indo. Ao mesmo tempo, o que fora capaz de

tranquilizá-lo foi o reconhecimento de coisas familiares para ele, primeiro a televisão, depois a

paisagem da rodoviária de Monticello. Na mesma hora, este raciocínio levou-me a pensar sobre

minha própria situação e nos medos que eu mesma estava tendo naquele momento: exatamente o

de estar viajando sozinha, sem nenhuma referência afetiva, e o de estar indo para um lugar

desconhecido. Tive a sensação então de que fora posta diante da situação de desespero do rapaz

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124

para ter a oportunidade de fazer uma reflexão sobre mim mesma, e com isto, melhorar meu

estado de tensão durante a viagem.

G., uma de minhas companheiras de quarto no ashram, relatou uma experiência que

considerou destinada a fazê-la enfrentar melhor a dificuldade de lidar com situações de rejeição

amorosa, sobretudo depois do fracasso de seu casamento. Durante um dos cursos oferecidos em

South Fallsburg, sentou-se ao lado de um rapaz com o qual criou uma empatia tão forte que na

aula de encerramento uma das instrutoras perguntou-lhes há quanto tempo estavam casados.

Embora não tivesse ocorrido nenhuma comunicação explícita entre ambos em relação a uma

aproximação maior fora do curso, G. criou a expectativa de que algo ocorreria entre eles durante

a continuidade da estadia no ashram. Os dias foram passando, entretanto, sem que nada evoluísse

naquela direção, mantendo-se apenas um clima cordial entre ambos em encontros casuais em

outras atividades. No último dia que passaria em South Fallsburg, estava programado um saptá

(dança em homenagem a Shiva) a ser realizado ao ar livre, em torno de duas grandes fogueiras.

Ao chegar, G. cruzou com F., a pessoa que lhe interessara durante o curso, e de um modo que lhe

pareceu espontâneo, resolveram treinar juntos os passos do saptá antes de se juntarem aos

dançarinos. No momento exato em que iam iniciar o treino, dois acontecimentos aconteceram

simultaneamente: duas pessoas diferentes chamaram-nos, cada uma de uma direção. G. tinha sido

chamada por sua melhor amiga no ashram, e F. por alguém que G. percebeu instantaneamente

gozar de imensa intimidade com ele, sendo provavelmente sua namorada ou alguém que estava

prestes a sê-lo. A simultaneidade impressionante dos chamados proporcionou-lhe o insight de

que estava recebendo uma lição naquele momento à qual pode atribuir um sentido mais tarde: a

de que um aspecto central no amor é o desprendimento, e que o amor se manifesta de diversas

maneiras, não devendo ser canalizado para uma única pessoa; o amor é algo que estaria dentro de

nós, que não dependeria do outro. G. tomou o fato de ter sido acolhida pelo abraço amoroso da

amiga no exato momento em que se dava conta de que o amigo desejo desejava outra pessoa,

como uma lição recebida de seu guru sobre o desprendimento e sobre o fato de que o amor é algo

inesgotável, que se manifesta em nossas vidas o tempo todo, por diversos canais, cabendo às

pessoas descobrir como deixá-lo fluir. Naquele caso, estando aberta para apreciar a atitude

amorosa da amiga e não se lamentar por não poder dar continuidade à atração que sentira pelo

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125

colega de curso. O episódio pareceu-lhe uma lição sobre a maneira como poderia lidar com o

desamparo que sentia pelo abandono que sofrera do marido.

Ao conduzir uma das cerimônias (satsangs) do grupo no Rio de Janeiro, P. relatou

que após vários anos de prática de meditação no Siddha Yoga, sentiu-se à certa altura

profundamente vazia, sem o menor traço do entusiasmo que havia caracterizado até então sua

participação no grupo. Procurando descobrir as razões deste vazio, concentrou-se durante um

intensivo na figura do guru, pedindo-lhe alguma direção em relação ao problema. Naquele

momento veio-lhe à cabeça uma frase “Aprenda a ver o Deus que há nos outros” muitas

vezes repetida nas cerimônias do grupo e que sempre a impressionara profundamente. P.

descreveu-se em seguida como uma pessoa que sempre esteve disponível para sua família e seus

amigos, dando-se conta, ao pedir o auxílio do guru para lidar com sua sensação de vazio, de que

sempre se esquecia de que entre aqueles “outros” nos quais deveria ver Deus, estava ela própria.

Percebeu naquele momento, então, a necessidade de cuidar de si mesma, de criar um espaço de

acolhimento para si.

Muitos outros exemplos poderiam ser dados sobre a construção de homologias

quando se está realizando alguma atividade, sobretudo de seva, dentro do grupo. Assim, são

inúmeras as histórias em que pessoas que são encarregadas de lavar coisas, se sentem lavando

aspectos de suas vidas, ou que ao tirarem a poeira de objetos se sentem desempoeirando antigos

acontecimentos, ou que ao fazerem serviços de jardinagem percebem-se plantando sementes de

futuros acontecimentos em suas vidas, etc.

Vale registrar que para muitos devotos estes raciocínios homológicos que chamei de

psicologizados fazem parte de um processo contínuo de aprimoramento da personalidade,

desencadeado a partir da participação no Siddha Yoga. Assim, quando um “nó” específico da

personalidade do devoto é resolvido, passar-se-ia automaticamente a trabalhar um outro. Esta

idéia reproduz de forma surpreendente o ideal de perfectibilidade romântica, do cultivo de si, do

Bildung, tanto em um patamar mundano quanto em um patamar espiritual, pois, ao lado da noção

de que se está aprimorando aspectos da própria personalidade, também existe a idéia de que se

está, ao mesmo tempo, evoluindo espiritualmente.

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126

3.4.3) O terceiro tipo de processo homológico que pude identificar, foi o que

denominei de espiritualizado, por estar relacionado às diversas percepções da ligação entre o

guru e o discípulo, ou, dizendo de outro modo, à construção da perspectiva imanentista entre os

devotos, em que se produz a experiência da unidade entre todas as coisas. Os exemplos que se

seguem procuram ilustrar este terceiro tipo.

Uma senhora italiana, pela primeira vez no ashram de South Fallsburg, relatou em

um dos cursos sua experiência ao ser designada para cortar cebolas durante um seva no setor de

corte de legumes e verduras. Enquanto realizava esta tarefa, recitando mentalmente o mantra

(japa), deu-se conta de que era o elo de ligação entre as cebolas e as pessoas que iriam comê-las;

em seguida, foi tomada por uma sucessão de imagens em que identificou diversos outros “elos”

na vida: viu a chuva como aquilo que liga o céu à terra; o tradutor como aquele que liga uma

língua à outra; o cordão umbilical como aquilo que liga a mãe ao filho, e assim sucessivamente

até que entendeu que Gurumayi era o elo entre ela e Deus, imagem que coincidiu com o corte da

última cebola.

J., designado para o setor de fabricação de pães no ashram de Ganeshpuri, relatou sua

decepção no dia em que todos os que ali trabalhavam foram chamados para um encontro ao ar

livre com Gurumayi que, em homenagem ao Dia dos Namorados, resolvera distribuir pequenas

jóias em forma de coração para as pessoas que faziam seva na cozinha. Ao perceber que a

distribuição acabara e que não ganhara nada, voltou para a cozinha num estado lamentável, em

que se misturavam o sentimento de haver sido desprezado e a inveja em relação aos que haviam

ganho alguma das jóias. Sua tarefa neste dia consistia em colocar a massa de pão dentro de

formas no formato de corações, que seriam distribuídos mais tarde aos visitantes do ashram. Em

meio a seu estado de espírito acabrunhado, deparou-se com uma foto de Gurumayi pregada na

parede em frente, num momento em que casualmente levantou o olhar do que estava fazendo.

Exatamente aí, segundo sua descrição, foi sendo tomado por uma sensação de felicidade

indescritível, localizada sobre seu coração, uma sensação tão forte que o fez começar a chorar

sem conseguir refrear as lágrimas até que terminou de formatar o último pão. Pareceu-lhe então

que o que recebia era incomparavelmente mais valioso do que qualquer das jóias distribuídas, e

que os corações em forma de jóia não podiam ser comparados ao alívio dos sentimentos

Page 136: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

127

desagradáveis que sentia em seu próprio coração. O episódio fê-lo compreender de que maneira o

guru se relaciona com o discípulo, demonstrando seu amor por caminhos inesperados.

Um outro exemplo de como é identificada a atuação do guru na vida do devoto, foi

relatado por um rapaz encarregado de lavar o chão do restaurante do ashram de South Fallsburg.

Ao término da tarefa, segundos antes da porta do restaurante ser aberta para a entrada de dezenas

de pessoas que aguardavam do lado de fora para almoçar, um companheiro deixou um balde cair

no chão e C. “sentiu” naquele momento que deveria olhar na direção em que o balde apontava.

Ao fazê-lo, deparou-se com a cena de um outro companheiro escorregando no chão alguns

metros adiante e derramando um imenso tonel de água suja, suficiente para estragar todo o

trabalho realizado e impedir a entrada das pessoas no restaurante. Num gesto realizado

praticamente sem pensar, correu até o local e jogou sobre a água os panos de chão que carregava,

de tal forma que no instante preciso em que teminou a secagem, a porta do restaurante abriu-se e

as pessoas entraram. M. considerou que o episódio, qualificado como “singelo”, fê-lo sentir-se

parte do “plano de Deus”, cumprindo com seu papel naquele lugar e naquele momento

garantir um ambiente limpo para as pessoas que iam almoçar. Este caso foi contado para dar um

exemplo de como se pode diferenciar a voz do “ser interior”, ou do self, da voz do ego, do

mental. Segundo ele, a voz do ego muitas vezes nos provoca um retraimento, uma contração, ao

passo que a voz do self seria aquela que nos provoca uma sensação agradável, por nos colocar em

harmonia com o plano de Deus. Ouvir o self é ouvir o guru, é ouvir Deus.

A presença de processos homológicos em um contexto moderno, como o do siddha

ioga praticado hoje por devotos ocidentais, produz a impressão de que o que está em jogo é uma

espécie de reaprendizado sobre um tipo de processo mental que foi sendo relegado ao longo do

processo civilizatório em benefício de outras lógicas. Digo isto pensando no fato de que trabalhar

com metáforas é algo que parece central na lógica dos povos de sociedades menos diferenciadas

para lidar com o sagrado. Victor Turner descreve muito bem esta questão ao tratar dos rituais

n’dembu de cura, por exemplo, em que se toma o chá de uma árvore forte para ficar forte, o de

uma árvore pujante para adquirir fertilidade, etc. (1974).

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128

Por outro lado, e em uma direção inteiramente oposta a deste raciocínio, também

poderíamos tomá-los como uma das formas encontradas pelo “sujeito da razão”90 moderno para

lidar com um tipo de religiosidade que aciona elementos considerados mágicos, como é o caso

das tradições da ioga, exatamente na medida em que este mágico passa a ser revestido de

aspectos altamente envolvidos com a reflexividade e a racionalidade dos sujeitos. Neste sentido,

a prática do siddha ioga pelo adeptos ocidentais hoje, parece muito próxima da predição feita por

Durkheim sobre os únicos tipos de religião que, a seu ver, teriam chances de florescer no futuro:

“as que concedam ao direito de livre-exame e à iniciativa individual mais lugar ainda que as

seitas mais liberais do protestantismo” (Durkheim, apud Duarte, 1983a, p.27)91.

Outro dos sujeitos que ganhariam autonomia com a Modernidade, o “sujeito

psicológico” (Duarte, ibid, p.15), é, também, um elemento central neste cenário de encontro entre

Oriente e Ocidente através do campo religioso. Neste sentido, aspectos simbólicos popularizados

pela difusão da psicanálise no Ocidente propiciarão um tipo de olhar que facilitará enormemente

a adoção de certos procedimentos utilizados pelos praticantes das religiões orientais entre nós.

Estamos pensando aqui especialmente naquilo que Sérvulo Figueira, em citação reproduzida por

Jane Russo, explicita como o eidos da cultura psicanalítica: “(...) eidos (ou lógica para o

pensamento) é um psicologismo individualizante que insiste em procurar sob determinados

aparentes uma ‘outra coisa’ que, inscrita no domínio pessoal, possa dar a impressão de explicar,

dissolvendo ou relegando a segundo plano, o aparente, impondo-se assim como verdade” (Russo,

op. cit., p.21).

Ora, este hábito de procurar perceber o que está “por detrás”, instituído com a

popularização da psicanálise, parece ser incorporado integralmente às práticas do Siddha Yoga e

explicar a facilidade com que seus adeptos incorporam a atitude reflexiva proposta como base da

percepção imanentista do sagrado que se instaura dentro do grupo. A atuação do guru principal,

mecanismo privilegiado para a construção da perspectiva imanentista, estará muitas vezes

associada, como vimos, a um procedimento em que se descobre, por detrás de fatos externos,

significados que extrapolam aquilo que se poderia depreender à primeira vista. Assim, ver um

90 O “Sujeito da Razão”, ao lado do “Sujeito Moral” e do “Sujeito Político”, constituiria uma das novidades apontadas pelos autores que tentaram definir o indivíduo concebido na Modernidade. Um estudo detalhado sobre o processo de estruturação do indivíduo moderno, à luz destas categorias, encontra-se em Duarte, 1983a.

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129

gavião na rua, por exemplo, é transformado em símbolo de uma situação que está sendo vivida

pelo devoto, e a verdade última descoberta através destes processos contínuos de ressignificação

de acontecimentos será a da presença infalível do guru em sua vida. Por outro lado, como sempre

estarão em questão nestes episódios acontecimentos da vida pessoal de cada um, a vivência deste

tipo de religiosidade será percebida, do ponto de vista do sujeito, “como um poderoso

instrumento de autodescoberta e autoconhecimento”, desempenhando, neste sentido, um dos

papéis da psicanálise considerados fundamentais por Russo (Ibid, p.24).

Da mesma forma, o ethos desta cultura psicanalítica que se populariza, também

contribuiria para a facilidade de identificação de um certo tipo de público com as práticas de

meditação. Mais uma vez segundo Figueira, citado por Russo, este .... “ethos (ou código de

emoções) é um individualismo psicologizante que privilegia a expressão da ‘emoção’,

confundindo o pessoal antes inconfessável com o recalcado ou reprimido, dando assim a esta

expressão da ‘emoção’ um sabor de inconfundível sensação de bem estar” (Id., p.21). As

emoções desencadeadas durante as práticas de meditação, algumas violentíssimas, são vistas

assim, por este público “psicologizado”, como mais um elemento de atração, algo que lhes

permite trabalhar os recalques.

As afinidades entre o siddha ioga, tal como vivido por seus praticantes ocidentais, e a

psicanálise podem ser estendidos também ao tipos de dilema provocados por suas formulações.

Assim, por exemplo, o paradoxo apresentado pela perspectiva universalista da psicanálise, à qual

se contrapõe uma prática clínica que exacerba os processos de individualização, ou, utilizando os

termos de Figueira, a presença de uma teoria que desfaz o indivíduo e de uma técnica que o

reencontra (apud Russo ibid, p.26) encontraria um paralelo na ioga através de uma cosmologia

que desfaz o indivíduo (atmam é brahman) e de uma prática (a meditação) calcada na observação

de suas idiossincrasias, ainda que seja para alcançar, ao final, uma confirmação da cosmologia.

Do mesmo modo, o fato de que a “psicanálise só se transmite através da experiência

singular da análise” (Russo, id., p.27), permite que o paralelismo prossiga, fazendo lembrar,

nesse sentido, a ênfase na experiência que está na base das iogas. Assim, “qui prétendrait

‘étudier’ le yoga à la façon d’une science objective, le ‘comprendre’ sans le vivre, aboutirait-il

91 Como veremos adiante, o “livre-exame, e a livre iniciativa” que tanto fascínio exercem sobre os adeptos ocidentais do Syddha Yoga, encontrará barreiras claras, colocadas pela própria natureza da relação guru-discípulo.

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130

rapidement à une impasse: selon l’expression indienne, on ne peut connaître un fruit à moins de

le manger” (Feuga e Michaël, 1998, p.119).

Esta reflexividade que se transforma em guia para as ações, que se presta a trabalhar

aspectos da personalidade dos devotos, ou que instaura uma perspectiva imanentista da

divindade, criará, pela apropriação contínua que se faz das vivências pessoais dos devotos, dentro

ou fora dos espaços rituais, algo que poderia ser visto, parafraseando Mauss, como um fato

espiritual total. Nada escapa à ressignificação, todos os acontecimentos são transformados em

manifestações do sagrado; tudo é o “jogo da consciência divina”92.

O depoimento que se segue de um ex-devoto do Siddha Yoga, que de certa forma

pode ser visto como paradigmático dos devotos ocidentais, no sentido da associação estreita que

estabelece entre espiritualidade e desenvolvimento de si, é bastante esclarecedor em relação ao

que está em jogo em todos os processos homológicos analisados, mostrando como o espiritual é

relacionado ao treinamento de um certo tipo de percepção neste caso, aquela que identifica

sincronicidades considerando que ter “olho” para elas é o que nos dá “energia, ânimo, alma,

entusiasmo”:

“Observar as sincronicidades é o pão nosso de cada dia, algo que nos dá uma energia, que nos anima, nos dá alma, entusiasmo. Depois de todas as práticas espirituais de que participei, creio que o que restou de mais importante foi o processo de treinamento da percepção, ter aprendido a escutar o discurso sutil da interioridade, aceitando assim este caminho que para muitos não tem mapa, garantia, nem certificado de participação, mas que é uma maneira de atravessar a vida, de seguir um caminho espiritual” (Gambini, 1998, s/n).

Espiritualidade se associa assim, neste viés junguiano de alguns devotos ocidentais

do Siddha Yoga, a uma experiência cognitiva em última instância, que nada tem de inefável. A

sensação de que “tudo é um” é experimentada em pequenas doses quotidianas, o sentimento

oceânico é vivenciado homeopaticamente, exigindo assim um reforço contínuo que garanta a

renovação destas experiências. É novamente Gambini que nos mostra como a espiritualidade

vivida pelos adeptos ocidentais do Siddha Yoga relaciona-se, assim, a uma descoberta do sagrado

dentro do profano, conforme já assinalamos em outra parte deste capítulo: “O que retirei de meu

92 “Felicidade do Jogo da Consciência Divina” é o significado do nome atual da mestre espiritual do Siddha Yoga, Swami Chidvilasananda.

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131

processo de busca foi a descoberta de que o espiritual pode se manifestar o tempo todo, em

qualquer lugar, você tem é que ter olhos para vê-lo, descobrir o sagrado dentro do profano, juntar

o aqui e agora com o transcendente” (Id.).

Estas formulações fazem lembrar as definições de cultura subjetiva e cultura objetiva

em Simmel (1971c), utilizadas por ele para conceituar o processo de auto-cultivo (Bildung) como

algo que requer a existência de objetos externos, pois a identidade só se constrói e aperfeiçoa

através de um mecanismo de espelhamento com a alteridade. Assim, não pode haver cultura

subjetiva sem cultura objetiva. Da mesma forma, esta religiosidade associada à reflexão sobre si

necessita o tempo todo de estar confrontada com realidades e situações externas para poder se

constituir.

3.5) A reprodução do carisma: a intermitência da experiência religiosa e a

necessidade de sua renovação.

As experiências religiosas, sejam quais forem os conteúdos associados a elas, são

experiências limitadas em termos de duração, isto é, não se prolongam indefinidamente. Vivência

de emoções, agradáveis ou desagradáveis, de sensações físicas, insights, intuições, toda a gama

de possibilidades, enfim, culturalmente apropriadas como sendo da esfera do sagrado, possuem a

característica de ocorrerem em determinados momentos e desaparecerem depois. Este fato coloca

um desafio a ser enfrentado pelos grupos religiosos, uma vez que a continuidade de boa parte

deles dependerá de sua capacidade de criar mecanismos que propiciem a renovação destas

experiências. Esta questão, trabalhada por Weber em suas discussões sobre o conceito de carisma

será objeto da atenção das congregações religiosas de todas as tradições e tarefa central dos

profissionais da religião.

Em Herman Hesse, esta característica intermitente da experiência religiosa apontada

acima é muito bem descrita neste trecho em que comenta seu encontro com um jovem recém

convertido ao Tao:

“(...) presumivelmente pela primeira vez, [ele] tivera uma vivência que me ocorrera em diversas ocasiões na vida, achava-se no estado espiritual que eu aprendera a reconhecer em mim e nos outros, o de alerteza, de intuição e

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132

conhecimento, de graça espiritual. Nesse estado a pessoa sabe tudo, a vida nos encara como uma revelação, as intuições das etapas anteriores, as teorias, os ensinamentos e artigos de fé, tudo foi levado como espuma, as tábuas da lei e as autoridades se desfizeram. É estado maravilhoso, que a maioria das pessoas, nem mesmo os que fazem procura espiritual, vivencia. Também caíra a meu fado, eu também fora tocado pela ventania milagrosa, também eu, sem baixar as pálpebras, me atrevera a encarar a verdade nos olhos. A esse altamente favorecido rapaz, como percebi após duas perguntas exploratórias, o milagre surgira sob a forma de Lao-Tse, para ele a graça trazia o nome de Tao, e se ainda houvesse algo como uma lei ou moralidade para ele, era a ordem: ‘Fica aberto a todas as coisas, não desprezes nada, não condenes nada, deixa todos os rios da vida fluírem por teu coração’. Pois todo aquele que alcançar, ainda mais pela primeira vez, tal estado de espírito, [acreditará que ele] tem o caráter de finalidade absoluta e se acha intimamente relacionado a uma convenção religiosa. Todas as perguntas parecem respondidas, todos os problemas solúveis, toda a dúvida banida para sempre. Essa finalidade, todavia, esse vitorioso ‘para sempre’ é ilusão. As dúvidas, os problemas, a batalha continuarão, a vida inquestionavelmente tornou-se muito mais rica, porém nem um pouco menos difícil. Era nesse ponto que o discípulo de Lao-Tse parecia encontrar-se: ainda no ar e inteiramente transformado e renovado por sua vivência de liberdade e graça, era evidente que já se via perseguido pelas sombras e estava a ponto de mergulhar de cabeça, da exaltação abençoada para o mundo de conflito, e eu era cúmplice desta queda vertical” (1976, p.207).

As tradições da ioga têm como uma de suas marcas o fato de que seus mestres

costumam ser reconhecidos exatamente pela capacidade de estarem continuamente mergulhados

neste estado de graça, que passa a se constituir em objetivo da busca de muitos devotos:

alcançarem esta mesma continuidade, atingirem o samadhi. De modo geral, contudo, o que se

verifica com a maioria das pessoas é uma entrada apenas provisória nestes estados

extraordinários, e a necessidade de sua renovação.

No caso do Siddha Yoga, embora as descrições de vivências religiosas fortes

predominem quando são feitos os partilhamentos de experiências individuais dentro do grupo,

encontramos relatos também sobre o ponto levantado por Hesse, isto é, sobre momentos em que

os devotos têm a impressão de que perderam a capacidade de se conectar ao sagrado. Geralmente

estes relatos são seguidos de informações sobre como a pessoa conseguiu ultrapassar estes

períodos e voltar a ter experiências, explicitando-se desta forma, claramente, aquilo que estou

Page 142: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

133

chamando de necessidade de renovação do carisma. Não basta ter uma ou outra experiência, é

preciso encontrar um modo de reproduzi-las.93

Esta questão, percebida de forma mais ou menos consciente pelos devotos, é

freqüentemente referida em depoimentos que enfatizam a necessidade da participação nas

cerimônias do grupo como o melhor meio para a renovação da experiência, embora a meditação

seja uma prática que pode perfeitamente ser realizada em casa, individualmente. Assim, M. relata

o fato de que, após ter tido as primeiras experiências religiosas no Siddha Yoga durante o canto

de um mantra numa festa realizada pelo grupo, passou a freqüentar suas cerimônias regulares e

daí em diante não deixou mais de fazê-lo por sentir que nestes momentos “renovava a pilha” de

sua própria energia com a energia desencadeada dentro do grupo. S., por sua vez, usou a

expressão “viciada em shakti [energia]” para expressar a necessidade de realimentação constante

da experiência religiosa através da participação no grupo: “O que sinto é tão forte, e, geralmente,

tão bom, que sempre quero mais, quanto mais shakti receber, melhor, o que consigo freqüentando

as cerimônias, ou participando do seva. Acho que posso dizer que sou uma viciada em shakti”.

A construção da experiência religiosa dentro do Siddha Yoga

Esta percepção sobre a presença da shakti, isto é, sobre a energia consciente

considerada como o aspecto criativo complementar da divindade (como Shiva e Vishnu, por

exemplo) e que seria transmitida aos discípulos pela graça do guru, vai sendo desenvolvida entre

os devotos nos processos de socialização a que são submetidos dentro do grupo, tanto formais

quanto informais.

Quando cheguei a South Fallsburg, tive oportunidade de presenciar em diversos

momentos depoimentos sobre a presença da shakti, descrita geralmente como algo sutil, mas que

uma espécie de “aguçamento” do olhar e da sensibilidade tornava evidente. Assim, por exemplo,

quando entrei pela primeira vez no “Caminho do Silêncio”, uma trilha na floresta com cerca de

93 A decepção tão bem descrita por Hesse, ligada ao fato de que o contato com o totalmente outro, embora parecendo mágico e reencantador do mundo, não torna a vida mais fácil parece se enquadrar em um outro tipo de momento da trajetória dos devotos, que pode levá-los até mesmo a romper com o grupo, por instituir um ceticismo não quanto à realidade do totalmente outro, mas quanto ao resultado advindo do contato com ele. A questão que se coloca é: “Para quê?” Nestes momentos, a experiência com o totalmente outro parece deslizar do campo religioso para o campo da estética, limitando-se ao registro da fruição prazeirosa que representa.

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134

1,5 km, que ligava o Anugraha e o Atma Nidhi, dois dos alojamentos principais do ashram, uma

de minhas companheiras de quarto, que assumira espontaneamente o papel de guia para mim ali

dentro, comentou: “É impressionante a energia deste caminho, não é? A primeira vez em que

estive no ashram, não fui capaz de percebê-la; hoje, toda vez que entro aqui, sou capaz quase que

de enxergar a energia presente. É muito forte”.

Minha companheira era uma pessoa tranqüila, americana de Massachussets, com

cerca de 50 anos, nível superior, divorciada, com um filho na faixa dos 20 anos. O encontro com

ela e com minhas outras companheiras de quarto éramos seis, cada uma de uma nacionalidade

diferente acabou se transformando numa experiência extremamente rica, pelo fato de ter se

instaurado entre nós um tipo de empatia quase que imediata, que nos levou a, espontanemente,

nos reunirmos no quarto ao final do dia, cada uma vinda de uma atividade diferente no ashram, e

trocarmos impressões.

Entre todas, eu era a única que estava ali pela primeira vez, embora tivesse iniciado

meu contato com o grupo muitos anos antes do que a maioria delas. Sem saber exatamente como

lidar com minha condição de antropóloga no ashram, e tendo recebido a recomendação, ao

chegar, de não importunar os devotos com entrevistas, sentia-me indecisa sobre revelar ou não a

natureza de meu trabalho. Resolvi alimentar o clima cordial que se estabelecera entre nós, gerado

em grande parte por uma postura comunicativa de minha parte, contando abertamente minhas

próprias experiências com a meditação, fazendo perguntas e, finalmente, comentando com cada

uma, nos casos em que julguei oportuno, o fato de estar fazendo um trabalho de antropologia com

o grupo.

Minha comunicabilidade com as companheiras de quarto foi possibilitada pelo fato

de que minha fluência razoável em três línguas, afora o português, permitiu-me fazer uma espécie

de “costura” entre elas, transformando-me em tradutora para aquelas que até então ainda não

haviam podido conversar com as outras pela barreira da língua. O ashram de South Fallsburg

dispõe de um sistema extremamente eficaz de tradução simultânea para os visitantes, que facilita

enormemente a estadia de pessoas que não falam inglês. Assim, por um sistema em que basta

comunicar-se a necessidade de tradução, obtém-se headphones para acompanhar na própria

língua natal os cursos e as palestras oferecidas. Este sistema, contudo, não abrange as conversas

informais entre companheiras de quarto, obviamente.

Page 144: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

135

Nossas reuniões noturnas transformaram-se em fontes de intensa aprendizagem para

mim sobre como se dão os processos informais de socialização dentro do grupo e de grande

visibilidade sobre os mecanismos acionados para a construção daquilo que se considera como a

experiência religiosa dentro dele.

A questão de aprender a correlacionar fatos que ocorrem em terrenos distintos da vida

das pessoas foi uma das que mais pude trabalhar nestes momentos. Por exemplo, dei-me conta ali

de que a intensa utilização de programas de conversação em tempo real na Internet, que

consumira horas e horas de minha vida nos seis meses que antecederam minha viagem aos

Estados Unidos, podia ser considerada como um preparo para a experiência cosmopolita que eu

iria ter no ashram, uma vez que treinara intensivamente na Internet a conversa simultânea em

línguas diferentes, com diversas pessoas. Essa prática servira também para eliminar

completamente minhas inibições quanto a falar ou escrever cometendo erros, pois convenci-me

que o conteúdo do que é dito é bem mais importante do que a forma para a maioria das pessoas, e

compensa largamente quaisquer possíveis críticas que se possa sofrer neste sentido. Assim, com

grande naturalidade, peguei-me traduzindo as experiências espirituais de minhas companheiras

de quarto e contando as minhas próprias para elas, num processo que nos enchia de alegria e

entusiasmo, apesar das dificuldades e mal entendidos que vez por outra se produziam.

Como já disse, a espiritualidade do Siddha Yoga, tal como apropriada pelos devotos

ocidentais, incorpora aspectos reflexivos que incluem este aprendizado sobre correlacionar fatos.

Se não tivesse aprendido a construir estas correlações, a partir de uma visão de que “nada

acontece por acaso”, jamais faria esta associação entre minha experiência na Internet e minha

experiência no ashram, considerando a primeira como uma espécie de preparação para a

segunda. E, no entanto, teria passado, da mesma forma, pelas duas. Esta percepção sobre a

existência de conexões entre o que se vive, como que desvendando significados ocultos a um

primeiro olhar, pode ser considerada um dos processos reflexivos principais desencadeados

dentro do grupo, e um dos mecanismos que contribuem de forma marcante para a inserção de

elementos da esfera do profano na esfera do sagrado.

Esta passagem se dá porque construir correlações entre acontecimentos

aparentemente sem ligação torna-se parte de um processo em que o segundo passo é atribuir estas

conexões à atuação do guru, isto é, à esfera do divino. Assim, por exemplo, ter praticado línguas

Page 145: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

136

informalmente na Internet antes de ir para o ashram seria visto como um elemento que

comprovava a atuação do guru em minha vida, ajudando-me a realizar da melhor maneira uma

tarefa que eu teria inevitavelmente que cumprir. Este olhar que procura sentidos, e que consegue

enxergá-los, como que “traduzindo” a cada passo da trajetória dos agentes uma espécie de plano

divino individual para cada um, é extremamente reconfortante e muitas vezes divertido para os

devotos.

Por outro lado, não é apenas a descoberta de significados ocultos para os

acontecimentos que parece estar na base da sensação de reconforto produzida, mas também o fato

de que os sentidos descobertos parecem contribuir para uma atualização, hoje, entre os adeptos

ocidentais do Siddha Yoga, da famosa “teologia do otimismo”, segundo a qual, conforme a

formulação de Leibinz, tudo que nos acontece, por pior que pareça, é o melhor que poderia nos

acontecer (Campbell, 1989, p.106-107, 113-114).

Embora de modo algum o Siddha Yoga se apoie numa tradição que negue a

existência do mal, sendo, pelo contrário, por sua filiação shivaíta, extremamente familiar à

manifestação de aspectos difíceis94, considerados destrutivos e mesmo aterrorizantes da

divindade, é possível identificar em grande parte dos adeptos ocidentais a presença desta teologia

94 A manifestação de aspectos difíceis é algo que pega de surpresa os devotos habituados a experiências de meditação agradáveis. Durante um dos cursos que fiz, em South Fallsburg, uma adolescente indiana, que ao longo de todas as aulas relatava vivências extremamente profundas, em que via espíritos, sobrevoava lugares e ouvia vozes de pessoas desconhecidas, viveu no penúltimo dia do curso um tipo de experiência durante a meditação que a fez soltar o grito de terror mais terrível que já presenciei em minha vida, incluindo os que ouvi no cinema. O fato da sala estar na penumbra e todos os participantes em profundo silêncio contribuiu para tornar o momento ainda mais dramático. Fiquei sem saber como reagir e profundamente ansiosa em relação à atitude que os instrutores teriam naquele caso e que tipo de auxílio poderia ser prestado à menina. O clima profundamente agradável e cordial do curso pareceu-me irremediavelmente comprometido naquele momento. Apesar da obscuridade da sala, pude ver que os instrutores se levantaram e dirigiram-se até a jovem. Não pude ouvir se disseram-lhe alguma coisa. Ao término da sessão de meditação, a instrutora principal do dia comentou que aquele tipo de experiência fazia parte dos processos de limpeza realizados pela shakti, e que deveríamos ter consciência de que aquela energia, sendo inteligente, sabia o que fazia com cada pessoa. Saí do curso aquele dia com um verdadeiro peso no coração, profundamente impressionada com a situação da menina. Fiquei na dúvida se teria coragem de ir ao curso no dia seguinte, de tal forma a ocorrência me perturbara. À noite, no restaurante principal do ashram, pude ver que a jovem jantava, com expressão serena, junto à sua família. Comentando o episódio com minhas companheiras de quarto, elas não se mostraram surpresas, relatando já ter presenciado coisas semelhantes (como ver pessoas que reproduzem gritos de certos animais, algo descrito como particularmente aterrorizante). Insistindo sobre minha dificuldade de permanecer no curso, fui aconselhada a encarar o fato como uma oportunidade para trabalhar os meus próprios medos. Ao contrário de minha expectativa, o episódio não se repetiu no último dia. A propósito deste tipo de experiência, vale registrar o comentário de Rudi que, em seu livro Spiritual Cannibalism, considera que o papel do guru é o de absorver o karma dos devotos, isto é, seus aspectos negativos, daí o título do livro. Os ashrams, desta perspectiva, seriam então lugares com uma energia extremamente pesada, pelo fato de que as pessoas estariam trabalhando ali, por intermédio do guru, seus aspectos mais difíceis (Rawlinson, 1998, p.498).

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137

do otimismo, que parece estar na base também de um certo ethos do grupo que valoriza a

expressão da espirituosidade e de sentimentos positivos, como a alegria, a cordialidade, a

fraternidade e a solidariedade entre as pessoas.

Exemplo deste fato é encontrado no relato de uma devota sobre o roubo de seu carro:

“Imagine que, dentro dele, estava meu tapete de meditação, carregado do meu karma, que,

assim, foi levado pelo ladrão. Apesar do prejuízo, ri muito com o roubo, com o fato do ladrão não

poder imaginar o que é que estava levando involuntariamente, certamente muito mais pesado do

que ele gostaria. Bem, e para mim, além de me livrar de todo aquele karma, estava mesmo

precisando de um carro novo.”

Nossas conversas noturnas no quarto ensinaram-me diversas outras coisas sobre a

maneira ocidental de vivenciar o Siddha Yoga. A questão da adoração de imagens, considerada

por alguns como inaceitável para a racionalidade ocidental moderna, e um dos aspectos mais

criticados da religiosidade indiana quando dos primeiros contatos dos agentes coloniais

britânicos com a Índia, é praticada com grande naturalidade, sem qualquer conflito aparente ou

tentativa de explicação racional. Duas de minhas companheiras européias de quarto contaram-me

sua crença sobre o fato de que a estátua de Nityananda, no templo a ele dedicado no ashram, era

uma estátua viva, que precisava, de fato, ser alimentada e vestida todos os dias. Uma delas já vira

sua boca se mexendo e a outra o vira chorando. Ambas, talvez não por acaso, haviam tido

experiências de meditação fortíssimas com Nityananda, considerando-se devotas dele.

Outra questão amplamente admitida era a da presença do guru na vida dos adeptos,

ainda que muitas vezes de forma sutil, isto é, fora de visões explícitas do mesmo em sonhos ou

durante meditações. Assim, por exemplo, fui informada sobre o fato de que, quando viajamos

sozinhos, sobretudo quando o objetivo da viagem é espiritual, viajamos sempre na companhia do

guru. A prova disso seriam as seqüências de acontecimentos e coincidências favoráveis que se

verificam neste tipo de viagem. Refletindo posteriormente sobre este comentário aparentemente

absurdo, fui tomada pela surpresa de constatar o quanto minha própria viagem fora cercada por

este tipo de acontecimento. Sem jamais ter ido aos Estados Unidos, e passando pela tensão de

viajar sozinha para o exterior após mais de dez anos sem fazê-lo, fui levada ao aeroporto por duas

amigas, que, justamente para tornar o embarque mais tranqüilo, propuseram-me tomar um chopp

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138

antes de ir para o aeroporto, num bar próximo à minha casa. A conversa foi tão agradável que o

tempo voou, e, quando olhamos a hora, estávamos terrivelmente atrasadas.

Ao chegar no aeroporto, uma fila de cerca de duzentas pessoas para o embarque no

vôo seguinte ao meu deixou-me apavorada com a perspectiva de perder o avião, mas o que

ocorreu, ao invés disto, foi que, ao comunicar qual era o meu vôo, fui dispensada da fila, e

embarquei diretamente, sem nenhuma espera. Ao entrar no avião lotado e chegar a meu lugar,

escutei uma voz dizer meu nome, de maneira afetuosa e surpresa ao mesmo tempo. Na cadeira

ao lado da minha, estava uma amiga de colégio, que eu não via há cerca de 15 anos. Minha

tensão como que desapareceu com este encontro, e fiz uma viagem encantadora, relaxada, pois

sabia que poderia contar com sua ajuda para qualquer dificuldade que pudesse ter ao

desembarcar. Quando chegamos ao aeroporto de Nova York, mais uma surpresa: eu ia fazer uma

conexão para Montreal, pois pretendia passar uns dias naquela cidade visitando amigos antes de

ir para o ashram e minha amiga seguiria para Cleveland, aonde morava. Em mais uma incrível

coincidência, nossos vôos estavam marcados com apenas dez minutos de diferença para o mesmo

portão de embarque, num dos maiores aeroportos do mundo, com dezenas de terminais.

Se parece demais ao leitor uma descrição tão minuciosa destes fatos, recordo meu

compromisso, na apresentação deste trabalho, de não me furtar a explicitar minha dupla

condição, de antropóloga e de pessoa sensível à proposta do Siddha Yoga. Descrever minhas

próprias experiências tem como objetivo esclarecer um pouco mais sobre os mecanismos de

construção deste tipo de religiosidade entre os devotos ocidentais. Quero mostrar o quanto muito

do que passa a ser visto como uma manifestação do sagrado entre os adeptos depende de todo um

processo de reconstituição de fatos de suas vidas sob perspectivas que se aprende a instaurar. E

uma das maneiras de aprender é esta, informal, através de conversas, prescrevendo fatos, mais do

que descrevendo-os95, pois estes já são apresentados revestidos de sentidos previamente

determinados basicamente, o de que o sagrado está presente o tempo todo entre nós.

Assim, continuo a descrição do que, mais tarde, pude reconstruir da história de

minha viagem à luz do comentário sobre a companhia do guru nestes momentos, concretizada

sob a forma de ajudas e facilidades recebidas.

95 Esta distinção entre descrição e prescrição formulada por Bourdieu parece ser muito útil para elucidar alguns dos processos de construção da experiência religiosa no Siddha Yoga.

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139

A viagem da cidade de Nova York até o ashram de South Fallsburg exige que se

faça uma baldeação em Monticello. Ao me dirigir à bilheteria da rodoviária desta cidade para

perguntar sobre a conexão para South Fallsburg, encontrei com duas moças, uma americana e

outra mexicana, que estavam indo para o ashram e que fizeram todo o percurso comigo, desde

esta baldeação até a escolha de um táxi para ir de South Fallsburg até a entrada do Shree

Muktananda Ashram.

O fecho de ouro de minha viagem de ida, sozinha, mas, como diria minha

companheira de quarto, na companhia do guru, ocorreria logo a seguir. Por total inexperiência

sobre o tipo de viagem que faria, eu comprara em Nova York uma imensa mala de rodinhas, de

forma a poder concentrar minha bagagem em um único volume e com isto evitar extravios,

possíveis em tantas conexões que eu faria pelo caminho. As rodinhas, infelizmente, não

compensavam o fato de que a mala se tornara pesadíssima, e de que era extremamente penoso

para mim transportá-la em locais não planos, com escadas, etc. Ao chegar ao Shree Muktananda

Ashram, descobri que meu alojamento requeria que eu tomasse o ônibus de circulação interna

existente no ashram para ir até lá. Olhando para a minha mala, amaldiçoei meu excesso de

previdência, mas meu desespero não durou mais do que alguns minutos, porque ao perguntar para

a primeira pessoa com quem cruzei aonde era o ponto de ônibus, ela me informou que ia para o

mesmo lugar que eu. E mais, depois de me ajudar a descer e a subir do ônibus, ao ver que eu

ficara alojada no segundo andar de uma casinha sem elevador, esta mesma pessoa, sempre

sorridente e solícita, tranqüilamente pegou a mala junto comigo levando-me até a porta do

quarto.

Ao voltar para Nova York, peguei um ônibus na conexão em Monticello, em que

havia apenas um lugar vazio96. Sentei-me e abri um livro para ler no caminho. Quase chegando

ao fim da viagem, a pessoa sentada ao meu lado, um americano pouco mais velho que eu, vestido

como um executivo, mas com longos cabelos que o colocavam um pouco fora dos padrões

yuppies deste tipo de profissional97, perguntou-me se eu estava vindo do ashram do Siddha Yoga,

96 Os ônibus interestaduais em Nova York não têm lugar marcado. As pessoas vão entrando e entrando à medida que chegam. 97 Soube depois que ele tinha 52 anos e era um criador de programas de televisão para crianças, que vivia entre São Francisco e Nova York, aproveitando os fins de semana que estava em Nova York para ficar no ashram de South Fallsburg. Sua participação no grupo era relativamente recente, de cerca de um ano de mais ou menos. S. poderia ser

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140

talvez pelo tipo de livro que eu estava lendo. Ao responder que sim, ele comentou que também

estivera lá, e ao saber que eu voltaria naquele mesmo dia ao Brasil, perguntou o que é que eu

pretendia fazer na cidade durante as dez horas de espera até a saída de meu vôo. Comentei que de

fato não havia parado para pensar nisso, mas que gostaria de visitar ainda o bairro chinês. Ele

disse então que poderia ir comigo de metrô até um hotel no Soho, aonde eu poderia guardar

minha bagagem, e em seguida me acompanharia a pé até o Chinatown, pois tinha um

compromisso bem próximo dali. Ao ver minha imensa mala de rodinhas, pensei que fosse desistir

da proposta, mas, ao invés disso, sugeriu que trocássemos o metrô por um taxi, e chegamos ao

Soho sem qualquer dificuldade. Eu guardei minha bagagem e ele recomendou-me aos

empregados do hotel um belo edifício art-deco segundo ele freqüentado por pessoas do meio

artístico de passagem por Nova York explicando que eu voltaria mais tarde e seguiria direto

para o aeroporto. Depois de providenciar-me um mapa, aonde assinalou o percurso que faríamos

a pé, assegurando-se de que eu saberia voltar sozinha ao hotel, seguimos para o Chinatown,

conversando sobre o Siddha Yoga e sobre música, pois ele, de uma geração próxima à minha,

tinha um gosto musical parecido, conhecendo além do mais uma quantidade razoável de músicas

brasileiras. Quando chegou o momento de nos separarmos, demo-nos um abraço longo e

apertado, inesquecível para os dois: apesar de sabermos que nunca mais nos veríamos, tínhamos a

mesma sensação inexplicável de uma identidade profunda e de um encontro magicamente

programado. Ao darmos dois passos, voltamos atrás e tivemos que dar um segundo abraço, em

que tudo aquilo apenas pareceu mais forte. Saí então andando pelo Chinatown, por Tribecca, pelo

Soho, olhando vitrines e pessoas, os grandes e belos arranha-céus da cidade. As lojas de cartão

postal, onde encontrei uma coleção inteira sobre a Beat Generation. Um grande armazém de

roupas chamado Anthropology, em que entrei apenas pela coincidência do nome. Andava sem

pressa e sem aflição. Ninguém me esperava para nada. Não achava mais que iria perder o avião.

Um dia de profunda alegria e leveza terminava a viagem, eu voltava ao Brasil... na companhia

do guru.

considerado um remanescente típico da geração herdeira da Contracultura dos anos sessenta. Explicou sua participação no Siddha Yoga pelos benefícios anti-estresse que a meditação lhe proporcionava.

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141

3.6) Tornar-se devoto

As razões da adesão de devotos ocidentais a religiões orientais são extremamente

variadas. O fato de que, nestes casos, se está sempre diante de uma escolha e não de uma tradição

cultural e/ou familiarmente herdada, coloca em destaque a necessidade de se buscar elementos

que expliquem a adesão específica a estas religiões, e não a outras, o que de certa forma já foi

mapeado ao longo do capítulo 1 deste trabalho, no qual procuramos mostrar os diversos sentidos

da apropriação das religiosidades orientais no Ocidente a partir do Romantismo. Tentaremos,

então, neste ítem, como que aproximar um pouco mais o foco da lente, registrando, em um nível

mais micro, o que parecem ter sido as motivações pessoais, do ponto de vista dos agentes, para a

adesão às religiosidades orientais, e, mais especificamente, às tradições do hinduísmo. Ao mesmo

tempo, em um outro tipo de aproximação, apresentaremos esta mesma questão referida

especificamente aos devotos do Siddha Yoga, voltando-nos particularmente para a clientela que

pude observar no centro de meditação do Rio de Janeiro, aonde realizei a maior parte de meu

trabalho de campo.

Como comentário geral, gostaria de frisar o fato de que esta possibilidade de escolher

uma religião, irá nos dizer muito mais sobre a maneira ocidental contemporânea de se colocar em

relação ao campo religioso do que sobre a religião adotada. Assim, aprofundando uma tendência

que se afirmou durante a Contracultura, estaremos diante de um comportamento de indivíduos

que se sentem inteiramente livres para experimentar no campo religioso, para abandonar sua fés

religiosas de origem e para mudar de fé a qualquer momento em caso de insatisfação. A

expressão máxima desta ausência de compromissos definitivos é a encontrada hoje na Nova Era,

em que a errância religiosa se afirma não como um problema, mas como um ideal. Assim, a

opção por uma religiosidade como a do Siddha Yoga não se coloca mais como uma opção

exótica, mas como parte integrante de um processo de afirmação do individualismo no Ocidente

que, ao atingir o campo religioso transformou, também a ele, em uma questão de gosto pessoal,

de adequação ao estilo dos atores.

Por outro lado, a escolha de um tipo de religiosidade de certa forma exótica, por mais

que este exotismo já esteja muito relativizado atualmente, parece enquadrável nos termos da

busca da singularidade, colocada por Simmel no centro do individualismo moderno. Adotar uma

Page 151: Maria macedobarroso etnografia_siddha yoga

142

religião oriental é algo que singulariza o indivíduo ocidental em relação à sua família, a seu

círculo de amigos, apontando assim, também, para os mecanismos de distinção analisados por

Bourdieu. A relação com um tipo de religiosidade à qual não se tem acesso facilmente, constitui,

sem dúvida, um certo tipo de capital cultural a ser manipulado por seus possuidores.

A possibilidade de promover uma reconciliação entre os terrenos religioso e

científico parece ter atraído, desde os primeiros contatos, um número expressivo de devotos

ocidentais que viam nos postulados filosóficos das religiões orientais pontos de apoio

insuspeitados para posturas científicas modernas, algo que, conforme apontado por Needleman,

esteve presente desde o final do século XIX:

“(...) when Oriental religions began to attract Westerners in the late nineteenth and early twentieth centuries, it was partly because neither Hinduism nor Buddhism as it was known in the West demanded rejection of science and the standards of intellectual, philosophical rigor, nor did they emphasize the division between the realm of the spirit and the realm of the profane. The idea of ‘All is Brahman’ or the Allness of the Buddhist Void enabled Western people to include aspects of human life that Christianity had separated itself from or condemned in one mode or another. In short, the Oriental religions brought spirituality without moralism. They brought not a rejection of science and the mind but alternate metaphysical explanations that in principle met science head-on, without retreating from the need to think and ponder and understand for oneself the world one lived in” (Op. cit., p. xxvi-xxvii).

O Oriente abria, assim, a possibilidade de ressacralizar-se a realidade por uma via

que não excluía a ciência, refundindo os domínios do sagrado e do profano que o cristianismo

havia separado. Ao mesmo tempo, difundia-se a idéia de que as religiões orientais não obrigavam

o homem a desistir de pensar sobre o mundo por seus próprios meios, como o cristianismo havia

feito: o dogma religioso, naquele caso, excluíra o pensamento científico. No caso específico do

Vedanta, fica bastante claro o fato de que a aceitação das religiosidades orientais guardará

relação com a valorização de um tipo de racionalidade que não entra em conflito com a ciência,

conforme se vê neste comentário de Jackson, citando o depoimento de um adepto ocidental do

Vedanta, colhido nos anos cinqüenta:

“Significantly, most of the articles in the ‘What Vedanta Means to me’ series98 emphazise rational appeals. John Yale perhaps expressed the attitude best:

98 Título de uma coluna publicada na década de cinqüenta na revista americana Vedanta and the West.

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143

‘What I have been saying is that Vedanta appealed to me because it is attractive rationally. It allows one to be cosmopolitan, permissive, broad... Its tenets square with reason and with the discoveries of modern science” (Op. cit., p.101-102).

Mais recentemente, diversas correntes científicas e psicológicas no Ocidente parecem

ter aprofundado este investimento no cruzamento com as religiosidades orientais que destaca

afinidades, conforme se vê por este texto, já do final dos anos oitenta, destacando os movimentos

que se propuseram a fazer isto:

“Tanto a teoria geral de sistemas como a psicologia transpessoal partem deste paradigma holográfico, na qual o ‘hólon’ é um ‘subtodo’ (...) integrado num todo maior, ou macrocosmo. É o caso por exemplo de F. Capra (...), de D. Bohm (...) e da teoria holográfica do cérebro de K. Pribram (...). A tendência transpessoal se refere diretamente à filosofia oriental, na qual encontrou um referencial explicativo mais apropriado para exprimir esta nova linguagem científica (...) A psicologia transpessoal se voltou para o estudo dos estados de consciência pesquisados pelos místicos de diferentes culturas e tradições. O resultado destes estudos pôs em evidência um acordo entre o testemunho dos grandes místicos da humanidade e as descrições dos cientistas atuais, em particular na área da física moderna, sobre a natureza do universo e da consciência” (Sodré, 1988, p.4-5).

Um outro aspecto do comentário de Needleman, sobre o fato das religiões orientais

serem vista de forma positiva por aquilo que é interpretado como uma ausência de moralismo,

também é um elemento que pude registrar em muitos adeptos do Siddha Yoga, que mostravam-se

aliviados por finalmente se verem livres das noções de pecado que lhes foram inflingidas pela

educação cristã.

Em muitos devotos de origem cristã a busca das religiosidades orientais esteve

associada à busca do carisma, isto é, de vivências do sagrado, vistas como ausentes na maior

parte das práticas cristãs tradicionais. Com isto não se pretende afirmar que o carisma esteja

ausente das tradições cristãs, mas que ele tendeu a ficar confinado às suas correntes místicas, com

muito pouca visibilidade para a maioria dos crentes.

O depoimento que se segue, de uma ex-devota do Siddha Yoga, que após um

rompimento com o catolicismo na adolescência retornou a esta fé pela via de suas correntes

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144

contemplativas e místicas, com o objetivo de se tornar monja beneditina, é bastante esclarecedor

sobre esta pequena visibilidade das correntes místicas da tradição cristã99:

“Enquanto minha educação religiosa se manteve ao nível mais externo e puramente intelectual não pude ver o Cristo Ressuscitado (...). Foi a interiorização contemplativa do Cristo, que entra no coração e permanece conosco, que me permitiu ver o Senhor nos sacramentos antes esvaziados por uma prática meramente externa e uma leitura intelectual dos ensinamentos” (Sodré, 1998, p.6).

E acrescenta:

“A ausência da prática contemplativa e do diálogo interior com Deus parecem ter esvaziado não apenas a minha prática religiosa de adolescente, mas também a religiosidade atual de muitos católicos, tornando muitas vezes nossos templos túmulos vazios, nos quais a maioria multiplica suas devoções externas e nos quais mesmo os que buscam mais diretamente a Cristo não o vêem presente, pois se o vissem não se comportariam, seguramente, diante Dele com a distração, o alheamento, o pensamento ocupado com os afazeres e toda sorte de conversas, relatos mundanos e até maledicências” (Ibid, p.6).

Continua afirmando o desejo de que “nossas igrejas [católicas] sejam verdadeiros

templos do Espírito Santo (...), espaço sagrado para estar na presença real do Santo dos Santos e

que possamos ter ali, ao menos, a mesma reverência e devoção ao sagrado que pude ver nos

templos indianos” (Id., p.6). E prossegue lamentando “o quanto a tradição contemplativa da

Igreja Católica, seu valor e contribuição para os católicos e para o mundo é pouco conhecida e

até ausente da vida e da prática religiosa dos próprios cristãos”(Id., p.7)100.

99 O movimento carismático cristão parece situar-se exatamente neste perspectiva de valorização da experiência mística, trazendo-a para o primeiro plano da prática religiosa dos crentes. 100 Neste sentido, vale registar que a aceitação da filosofia do Vedanta (no caso da Missão Ramakrishna nos EUA) contribuiu, surpreendentemente, para uma maior aceitação do cristianismo entre pessoas de origem cristã que haviam se decepcionado em algum momento de suas vidas com esta fé, conforme se vê neste comentário de Jackson: “Curiously enough, acceptance of Vedanta seems to have frequently contributed toward reconciliation with Christianity or at least to a more sympathetic view of Christian ideals. A surprising number of ‘What Vedanta Means to Me’ contributors confessed that, after years of rejection and alienation, contact with Hinduism had renewed their respect for Christianity. Playwright John van Druten remarked that, following his embrace of Vedanta, he could ‘turn back’ to Christianity, now finding ‘much more’ than he had previously suspected. Ruth Folling discovered that accepting Vedanta did not mean ‘turning away’ from Christianity but rather an ‘exciting discovery of its virtues’. She confessed that ‘reading the teachings of the Bible in the context of Vedanta’ had made the biblical account more meaningful. Suffering from a general ‘semantic block’ against words associated with his Christian upbringing (God, savior, comforter, soul, heaven, redemption, love, salvation, etc. etc.’) Christopher Isherwood also

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145

Os comentários de Sodré fazem lembrar as análises de Weber, para quem o

entusiasmo era decisivo na emergência do carisma. E mais ainda, põem em relevo a atualidade da

análise de K. Holl, uma das fontes inspiradoras de Weber sobre o tema do carisma, segundo a

qual a ação dos monges nunca teve por objetivo simplesmente a elevação moral, mas também

contribuía para o despertar da efervescência (enthusiasmus) na Igreja. Para Weber, a ausência de

laços com as normas mundanas invocada por R. Sohm, outro dos autores que utiliza para definir

o carisma, explicariam seu potencial revolucionário, ao passo que, para Holl, tratar-se-ia da

marca da oposição ente o carisma do monge e a função da Igreja. Sohm destacará ainda o fato de

que a efervescência sempre foi reprimida no cristianismo primitivo, colocando-se a obediência à

palavra como o fato mais importante para o cristão.

Sohm também chamou atenção para a questão da exemplaridade associada ao

possuidor do carisma (Ouedraogo, 1993, p.143-144), o que conflui para a visão que Sodré

apresenta sobre a função do monge católico hoje servir de exemplo da manifestação de Deus:

“Ao se voltar completamente para Deus, renunciando ao mundo, o monge se torna um sinal forte da Presença do Reino de Deus entre nós, sobretudo quando ele tem a ocasião de revelar o Amor de Deus como presença viva aberta a todos” (Sodré, 1998, p.9).

E ainda:

“O que me atraiu, na vida monástica, [foi] justamente o fato do monge estar voltado completamente para Deus e por sua própria escolha de renúncia [isto é, por seu exemplo] questionar a redução da realidade à pura materialidade dos sentidos ou às representações e idéias de uma visão puramente subjetiva de Deus” (Id., p.7).

Finalmente:

arrived at a new understanding as a result of his study of Vedanta. He noted that Sanskrit had supplied a ‘brand new’ vocabulary that allowed him to approach mysticism sympathetically and to recognize that his earlier hostility to Christianity was irrational. Since he was an author, it seems fitting that the very words used in speaking of God proved crucial in Isherwood’s return to religious belief” (Op. cit., p.101).

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146

“(...) num mundo no qual as palavras se esvaziaram e perderam o sentido e no qual a sombra crescente do mal se projeta exteriormente pela separação interior com Deus, só o testemunho do santo é eloqüente, pois introduz a Presença da própria Luz e de uma Sabedoria que escandaliza, rompendo com a massa amorfa e com o discurso vazio dos modismos. Pela sua própria escolha de vida, os monges introduzem este testemunho que rompe com o conformismo (até dentro da própria Igreja), considerando, porém, Paul Evdokimov [teólogo russo] que todo o crente pode pela fé tornar-se um ‘monge interiorizado’, que nas diferentes circunstâncias de sua vida testemunha sua entrega radical a Cristo, tornando presente o Reino de Deus entre os homens” (Id., p.12).

Em Sodré parece haver uma busca inicial do carisma no Siddha Yoga, através de seus

mestres espirituais, e, depois, uma busca do carisma em si mesma, tornando-se ela própria monja

para ser exemplo da atuação do Espírito Santo.

A visão de Sodré sobre o papel desempenhado hoje pelas comunidades monásticas

apontaria, assim, para a valorização do carisma, identificada por Weber como um dos pontos

centrais da mensagem de Jesus, que considerava como um “pecado contra o espírito” a postura

dos que desprezavam o carisma e seus portadores, algo típico dos escribas e intelectuais de sua

época, em oposição à postura dos pobres de espírito que o reconheceriam como legítimo (Weber,

1994, p.417)101.

Na perspectiva de Weber, a dominação carismática constitui um fenômeno social

transitório, que ele designa pelo conceito de “comunidade emocional”, quer ela se transforme em

instituição, quer desapareça pura e simplesmente como realidade social em razão do fracasso

daquele que pretende a dominação carismática. À oposição extraordinário/quotidiano

corresponderia esta outra oposição, comunidade emocional/instituição (Ouedraogo, op. cit.,

p.143-144).

A busca do devocionalismo presente na relação guru-discípulo esteve entre os

elementos chave para explicar a opção de inúmeros adeptos do Vedanta nos Estados Unidos, e

esteve estreitamente determinada pelo carisma dos mestres hindus, como se vê neste comentário

de Jackson: “In fact, a number of nonintelectual factors, and particularly the personality of the

101 Vale registrar aqui que a busca do carisma por meio das vias místicas e contemplativas da Igreja católica presente em Sodré não deve ser confundida com outras formas desta mesma busca atualmente oferecidas pela Igreja. Assim, por exemplo, há que se discernir entre as vivências propostas pelos carismáticos católicos, ligadas a uma experiência de efervescência coletiva, de exteriorização ruidosa de sentimentos, desta outra via, contemplativa e solitária, bem mais próxima do tipo de vivência proposto pelas práticas de meditação indianas.

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147

swami, also seem to have played a significant role in the attraction to Hinduism” (Op. cit.,

p.102). Assim, por exemplo, Christopher Isherwood confessa que “I know that, as far as I am

concerned, the guru-disciple relationship is at the center of everything that religion means to me”

e, segundo Jackson, “interviews with a variety of devotees underscore the validity of Isherwood’s

statements. Devotion to a particular swami is the central fact in many followers’ life” (Ibid,

p.102).

A busca de experiência religiosa, examinada em diversos momentos deste trabalho,

também esteve na base da adesão de inúmeros devotos ocidentais às religiões orientais, e pode

ser descrita tanto como uma busca de carisma, como uma busca de possibilidades de

reconstrução da auto-imagem, associada à possibilidade de reelaboração de novos projetos de

vida, de transformação da vida pessoal, em resumo.

Muitos devotos chegaram às religiosidades orientais, por outro lado, pela busca de

religiosidades que pudessem incorporar a perspectiva psicológica, cada vez mais valorizada no

Ocidente. Neste sentido, é expressivo o exemplo dos primeiros adeptos das Sociedades Vedanta

nos EUA, para os quais este sistema filosófico-religioso indiano parecia dotado de uma

perspectiva terapêutica ideal, similar à da psicanálise, prestando-se à remoção de tensões, à

resolução de conflitos e à reintegração da personalidade. Diversos testemunhos comentam ter

observado mudanças mais profundas de personalidade através da prática da meditação ióguica do

que através da psicanálise. Assim, segundo este depoimento prestado no final dos anos cinquenta

por uma adepta do Vedanta: “I have seen far more drastic and desirable personality changes

effected through the practice of yogic meditation than I have through psychoanalisis”. Jackson

observa que este depoimento possui um grau bastante acentuado de autoridade, uma vez que esta

pessoa havia se submetido a tratamento psiquiátrico durante longo tempo. Segundo ele, “such

testimonies are not unique to Vedanta, of course; they do suggest that acceptance of Hinduism

led some followers to an abiding sense of personal security and hapiness” (Id., p. 101).

O Siddha Yoga sem dúvida alguma apresenta-se como uma via intensamente ligada a

vivências psicológicas para seus adeptos, sendo visto, da mesma forma que para os adeptos do

Vedanta, como portador de uma função terapêutica, sendo bastante significativo a este respeito o

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148

grande número de psicólogos entre seus membros assim como a presença de cursos dentro do

grupo especialmente dirigidos a eles102.

Ainda em relação a este ponto, é Bharati quem chama atenção para a importância da

atuação de profissionais ligados à área psicológica e à área das religiões comparadas no Ocidente,

na construção da ponte com as tradições religiosas hindus, incorporando, de alguma forma,

maneiras indianas de pensar em seus trabalhos. Este autor localiza neste caso, no que diz respeito

aos psicólogos, toda a corrente junguiana, o grupo de Ascona, na Suíça, diversos terapeutas da

costa oeste dos Estados Unidos, representantes da anti-psiquiatria, como R.D. Laing, e alguns

“renegados” da psicologia acadêmica, como Timothy Leary e Baba Ram Dass. No caso dos

historiadores das religiões, menciona Mircea Eliade, Charles Long e Kitagawa (Bharati, op. cit.,

p.204-205).

Entre as razões da adesão de devotos ocidentais a religiosidades orientais podemos

citar ainda a busca de uma perspectiva religiosa ecumênica, em que todas as religiões são

consideradas válidas. Se ao longo do século XIX esta perspectiva era, digamos, totalmente

contracultural no ocidente cristão, conforme mostramos no capítulo 1, hoje ela é amplamente

difundida, podendo mesmo ser considerada como um elemento central do discurso e da prática

dos participantes da Nova Era..

No que diz respeito ao hinduísmo, particularmente, já analisamos em outros

momentos deste trabalho a presença de um viés fortemente universalista dentro dos grupos que

saíram da Índia, em contraste com uma perspectiva mais nacionalista, de grande visibilidade e

influência na Índia atualmente. O Siddha Yoga, sem nenhuma dúvida, adota esta perspectiva

mais universalista, perceptível não apenas na citação recorrente de outras tradições, sobretudo

cristã e islâmica, nas cerimônias do grupo, como também no tipo de literatura vendido em seus

ashrams, que percorre não somente aquelas tradições como boa parte da literatura considerada

como da Nova Era. Além disso, inúmeras vezes é mencionada a abertura do grupo à participação

de pessoas de outras fés religiosas, descrevendo-se a prática da meditação como uma forma de

obter uma vivência mais rica e completa das fés originais dos adeptos, que não são instados a

abandoná-las. Isto não quer dizer, contudo, conforme já apontamos em outros momentos, que

102 Um outro dado indicativo da presença significativa deste viés psicológico no Siddha Yoga é a própria história do grupo no Brasil, originada das iniciativas de um médico homeopata e de duas psicólogas, sendo uma delas de

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149

este universalismo não tenha limites bastante nítidos, reconhecíveis à medida em que se

aprofunda a inserção no grupo.

A busca de religiosidades orientais pelos devotos ocidentais parece estar ligada

também à maior aceitação de elementos mágicos por camadas intelectualizadas ou

“racionalizadas” do Ocidente, como se verifica não apenas no caso das lideranças da

Contracultura, como no tipo médio dos adeptos do Siddha Yoga, em sua maior parte de nível

universitário. Neste sentido, a associação, clássica na antropologia, entre o “mágico” e o

“primitivo” fica bastante problematizada.

Sem ter realizado uma pesquisa quantitativa sobre os adeptos ocidentais do Siddha

Yoga, vale registrar que, no caso do centro de meditação do Rio de Janeiro, poderíamos situá-los,

grosso modo, dentro de um perfil de classe média média a classe média alta, com educação de

nível superior, havendo uma quantidade expressiva de pessoas ligadas ao meio artístico, à área de

medicinas alternativas e a práticas consideradas esotéricas, de um lado, e profissionais liberais

em geral, socialites e empresários de diversos setores, por outro. No que diz respeito às

motivações de participação destes adeptos, poderíamos definir alguns tipos básicos.

Em primeiro lugar, podemos destacar um número significativo de pessoas que nunca

haviam experimentado sensações consideradas “espirituais” dentro de suas próprias tradições

religiosas, e que o fizeram pela primeira vez no Siddha Yoga, a maior parte das quais oriunda do

catolicismo. Poderíamos dizer que na base da adesão deste tipo estaria um movimento que

corresponderia, então, à busca de carisma.

Identificamos também pessoas com experiências anteriores de vivência do sagrado

em outras tradições, como é o caso daquelas que já tiveram a experiência da comunicação com

espíritos, provenientes sobretudo dos cultos afro-brasileiros, que encontram no Sidha Yoga uma

possibilidade de dar continuidade a estas vivências sob outros enquadramentos. É notória ainda a

participação de adeptos da New Age que encaram o Siddha Yoga como uma entre outras

possibilidades de aquisição de um certo tipo de “capital espiritual”. Ainda com relação a adesões

relacionadas a vivências religiosas anteriores, registra-se a presença de pessoas que tiveram

participação em outros grupos com perfil semelhante ao do Siddha Yoga, como ex-praticantes da

Meditação Transcendental, do movimento Rajneesh, adeptos de Sai Baba ou praticantes da hatha

formação junguiana.

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150

ioga em grupos diversos, que justificam à adesão ao Siddha Yoga como relacionada a um grau

mais profundo ou satisfatório de um tipo de experiência já vivenciada anteriormente.

Conforme já apontado, é grande a presença de pessoas com uma cultura

psicologizada, que valorizam os mecanismos reflexivos associados às práticas de meditação do

Siddha Yoga, provenientes geralmente de grupos de classe média que tiveram acesso à

psicanálise e a outros tipos de terapias psicológicas. Entre os membros do meio artístico, parece

haver uma valorização do desenvolvimento e acuramento da sensibilidade e das emoções

propiciados pela prática de meditação e pela possibilidade de trabalhá-las nos quadros do próprio

grupo, que realiza suas cerimônias muitas vezes de forma performática, abrindo espaço para a

encenação de pequenas histórias, para o canto de músicas e para depoimentos pessoais com

grande conteúdo expressivo.

Registra-se ainda a presença de simpatizantes de um tipo de cultura alternativa que

vêem nas religiões orientais uma possibilidade de contestação da tradição cristã dominante e que

valorizam o tipo de proposta de vida comunitária presente nos grupos sectários hindus, bem

como a possibilidade de ter acesso a experiências de alteração de estados de consciência,

mantendo atualizado um tipo de motivação que esteve presente de forma muito marcante entre os

participantes da Contracultura que se aproximaram das religiosidades orientais.

3.7) A shaktipat: uma iniciação autoreferenciada.

O Siddha Yoga, como todos os grupos situados dentro da tradição do tantrismo,

pretende trabalhar com a energia kundalini, que jaz adormecida dentro do primeiro chakra,

denominado muladhara, localizado na base da coluna vertebral. O objetivo do trabalho é fazer

com que esta energia percorra o canal denominado sushumna, ao longo da coluna, até atingir o

sahasara chakra, no alto da cabeça, quando então a iluminação seria alcançada103.

A função central do guru seria o despertar da kundalini através da concessão de

shaktipat, isto é, da transmissão de sua graça para os discípulos, dando início à jornada espiritual

103Os chakras, que poderiam ser pensados como vórtices de energia situados ao longo da coluna vertebral, são em número de sete, segundo a tradição yóguica,compreendendo, além do muladhara e do sahasrara, já citados, o

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151

de cada um deles. Considera-se que a shaktipat pode ser transmitida pelo olhar, pela palavra, pelo

toque ou por sankalpa, isto é, pela vontade do guru. Todas estas formas podem ser realizadas

com ou sem a presença física do guru, isto é, é possível receber shaktipat assistindo a uma

palestra, participando do canto de um mantra, assistindo a um vídeo, lendo um livro, fazendo um

curso, etc, sem que o guru esteja presente, o que não significa, contudo, que ela não tenha sido

dada por seu intermédio.

Considera-se que apenas o guru pode dar segurança ao discípulo para continuar a

trilhar o caminho espiritual iniciado. Inúmeros devotos comentam os perigos envolvidos com a

experiência do despertar da kundalini “caso ela não seja orientada por um guru”. O risco de

enlouquecimento é razoavelmente reconhecido. Considera-se também que apenas o guru tem a

capacidade de transmitir os caitanya, isto é, os mantras vivos, plenos de consciência, que se

diferenciariam dos jud, ou mantras inertes, fornecidos pelos mestres comuns, que não atingiram a

iluminação. Neste sentido, destaca-se que mais importante que o conteúdo do mantra, é quem nos

deu o mantra. Os caitanya confundiriam-se com o próprio guru, sendo vistos como a

manifestação de deus sob a forma de som.

Os processos de recebimento de shaktipat podem ser mais ou menos dramáticos,

sendo reconhecidos por uma série de sinais que os devotos vão se habituando a identificar. A

kundalini, considerada uma energia inteligente, trabalharia cada pessoa de acordo com suas

necessidades, provocando assim uma enorme diversidade de vivências em cada um. Contudo,

estas vivências poderiam ser descritas dentro de algumas rubricas principais.

A atuação da kundalini pode provocar sensações auditivas, em que são escutados os

nadas, sons interiores associados aos diversos chackras, ou vozes humanas; pode produzir

visões, como luzes azuis ou douradas, percebidas na região entre os olhos, bem como visões de

situações, pessoas ou lugares; pode provocar movimentos físicos, os kryas, que vão desde um

balançar suave do corpo até movimentos giratórios violentos da cabeça, o agitar de braços ou

tremores que atingem o corpo todo; pode produzir sensações de frio ou calor, bem como de

aumento ou diminuição de alguma parte do corpo; pode provocar sensações de desligamento do

svadhistana, na altura do osso púbico, o manipura, próximo ao umbigo, o anahata, no centro do peito, o vishuddha,

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152

corpo físico; dar lugar ao surgimento de emoções, verificando-se tanto o surgimento de emoções

positivas, como amor, alegria ou felicidade, quanto vivências de raiva, ódio, angústia, medo ou

tristeza; finalmente, são comuns o surgimento de insights, isto é, o aparecimento súbito de

soluções para problemas que estão sendo vividos naquele momento pela pessoa, bem como

premonições sobre acontecimentos futuros.

Swami Muktananda decreve da seguinte forma os sintomas bem como o processo de

despertar espiritual propiciado pela shaktipat:

“Do not do anything. Do not use methods or techniques. Just sit and meditate. How does the guru’s grace reach one? Well, gurudev’s shakti catches them [the devotees] like a strong infection. [He] either touches them on the face or eyes, or gives a mantra or raises his glasses and scrutinizes them, making them feel uncomfortable, or just tell them, ‘Go inside and meditate’, and it happens. They begin to float, transported into another world of divine ligths of different colours; they see the Blue Pearl of dazzling blue light or begin to see a mental movie or different scenes of past and future events, or hear celestial melodies, have vision of divine beings. Sometimes the body starts to do strong movements automatically” (Mangalwadi, 1992, p.127).

Nos cursos de Siddha Yoga um dos elementos mais destacados como sinalizando a

atuação da kundalini no devoto são as transformações verificadas na vida quotidiana das pessoas,

ligadas geralmente a uma maneira nova de encarar situações e à adoção de atitudes e posturas

inteiramente distintas daquelas verificadas antes da prática da meditação. A obtenção de maior

calma, tranquilidade, alegria, capacidade de concentração, disciplina e organização nas atividades

quotidianas também se inserem entre os sinais do trabalho da shakti (energia) nos devotos.

O reconhecimento de que a shaktipat foi recebida, contudo, dependerá,

essencialmente, da avaliação do próprio adepto, a partir de um acervo de sintomas reconhecidos

pelo grupo como indicadores da presença do fenômeno. Estes sintomas, conforme vimos, podem

ser mais ou menos violentos, expressivos ou sutis. O que importa ressaltar aqui, contudo, é que

esta questão coloca em cena todo um processo que poderíamos chamar de “elaboração dos mitos

de conversão”, em que as experiências individuais dos devotos precisam ser dotadas de um

situado na garganta e o ajna, entre as sobrancelhas (BIZERRIL, 1995a , p.3 e YOGA, 1964, p.892)

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153

significado que têm que dar conta do momento em que a shaktipat foi recebida, e eliminar as

dúvidas, não apenas pessoais, mas dos outros participantes do grupo, em relação ao fato de que

ela realmente ocorreu. É bastante significativo, neste sentido, o número de vezes em que, nos

cursos oferecidos pelo grupo, as perguntas se destinem à obter dos professores a certeza de que se

recebeu a iniciação.

A diferença entre esta forma de iniciação, que depende em última instância de uma

auto-referenciação, e outras formas de iniciação religiosa, em que a legitimidade vem de uma

autoridade externa, que reconhece ou não o indivíduo como portador das marcas do grupo, faz

com que o Siddha Yoga, mais uma vez, se transforme em um terreno fértil, no caso de seus

adeptos ocidentais, para o surgimento de uma série de procedimentos de auto-exame que parecem

guardar maior relação com maneiras ocidentais de ser do que com características originalmente

“orientais”.

Uma vez recebida a shaktipat, o discípulo teria toda uma sadhana, isto é, uma prática

espiritual, a cumprir. As quatro principais práticas dentro do Siddha Yoga seriam a meditação, o

japa, o seva, e o canto. A meditação é realizada em uma postura na qual, mantendo-se a coluna

ereta, fecha-se os olhos e pronuncia-se mentalmente o mantra recebido do guru acompanhando os

movimentos de inspiração e expiração; o japa é a repetição mental deste mesmo mantra em

qualquer situação fora da postura de meditação; o seva é o oferecimento de trabalho

desinteressado ao guru; e o canto é o canto de mantras e de hinos sagrados, destacando-se entre

estes a Guru Gita, com 183 estrofes, cantada diariamente pelos devotos, e o canto do Om Namah

Shivaya, principal mantra de meditação do grupo.

Apesar da descrição espontaneísta apresentada acima por Swami Muktananada, em

que se tem a impressaão de que tudo no processo se desencadeia como que milagrosamente,

apenas pela transmissão da shaktipat, a realização da sadhana é algo que depende de duas forças:

de um lado, o esforço próprio do devoto; e de outro, a graça recebida do guru. Para entender a

relação guru-discípulo, cabe esclarecer que o guru é concebido em três níveis distintos: haveria

um guru superior, que seria Deus em si mesmo; considera-se, contudo, que o guru também vive

na consciência e no coração dos homens, enquanto guru interior; e, finalmente, haveria ainda o

guru exterior, cuja função consistiria em despertar o guru interior e indicar o caminho em direção

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ao guru superior (Hummel, 1984, p.106). Que não se pense, todavia, que esta distinção em três

níveis aponta para um sentido disjuntivo. Na verdade, todo o objetivo deste tipo de religiosidade

é mostrar exatamente que tudo é um, que Deus é absoluto e imanente em oposição a tudo aquilo

que é transitório, fragmentado, transcendente. Assim, espera-se que o discípulo experimente a

unidade com Deus e com o guru à medida em que avance nas práticas propostas.

As vivências associadas à presença do guru interior, ou guru principal, para

empregar os termos utilizados dentro do Siddha Yoga, estariam no centro da experiência

produzida pelas práticas de meditação e são descritas nos cursos para iniciantes oferecidos em

South Fallsburg de uma maneira bem simples, que aponta para os tipos de processos

homológicos que identificamos no ítem 3.4 deste capítulo.

Segundo as informações fornecidas nestes cursos, o guru principal seria aquele que

garante que na hora exata em que você precisa de uma coisa, esta coisa aconteça; que minutos

depois de você pensar numa pessoa que não vê há muito tempo, esta pessoa apareça; que ao

tomar uma decisão há muito tempo postergada, tudo pareça conspirar para que o fato decidido se

realize; etc. Para dizer de maneira simples, tudo que parece uma verdadeira “mágica” na vida, ou

uma incrível coincidência, é identificado à atuação do guru principal, fornecendo a prova de que

se está conectado com esta força divina que existiria dentro de cada um, fazendo com que os

acontecimentos interiores pareçam milagrosamente identificados com o que se passa

exteriormente. Para o praticante, a ocorrência destas coincidências é o sinal inequívoco de que se

está trilhando o caminho certo, sob as bênçãos do guru.

O guru principal existiria em todos. Aqueles que tiveram uma iniciação espiritual,

contudo, e sobretudo aqueles que receberam shaktipat, ficariam dotados de uma habilidade toda

especial para reconhecê-lo, para perceber sua atuação. Acredita-se que seria possível inclusive

dialogar com ele, receber avisos, conselhos, respostas a indagações e a dilemas que estão sendo

vividos. Como distinguir, contudo, a voz deste guru da voz do ego, da mente? Considera-se que

esta habilidade iria se aperfeiçoando ao longo da sadhana. Segundo aqueles que supõem ter

alcançado um grau de acuidade suficiente para discernir esta voz, parece não existir nenhuma

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155

dúvida quanto a sua manifestação: os comentários são simples, claros, curtos e plenos de

sabedoria, não guardando nenhuma relação com o “barulho” da mente.

A mente e seus movimentos, ou “barulhos”, para empregar os termos utilizados pelos

devotos, recebem particular atenção nos ensinamentos do Siddha Yoga. A mente é descrita pelos

devotos como aquilo que, em geral, atrapalha a meditação, por distrair-nos, impedir-nos de focar

o mantra, brindar-nos com pensamentos negativos, enfim, com uma série de intervenções que nos

impedem de progredir em direção aos objetivos desejados. De fato, calar a mente, seria o ideal

na meditação. Por isto, várias maneiras de lidar com seu “barulho” são propostas aos praticantes.

Tornar-se testemunha do que se passa na mente é um dos caminhos indicados para lidar com ela:

os pensamentos que surgem devem ser observados, como se assistíssemos a um filme, sem nos

identificarmos com ele. Não somos a nossa mente. Mergulhando em um nível mais profundo,

descobrimos que o que somos verdadeiramente é este self, capaz de observar os movimentos da

mente por estar situado para além dela.

A relação que estabelecemos com a mente é apontada como algo que desempenha um

papel decisivo para a melhoria da qualidade da meditação. A mente e seus movimentos, segundo

este raciocínio, devem ser bem acolhidos, “tanto como o faríamos com uma visita querida que

chega em nossa casa” segundo um dos professores dos cursos oferecidos no ashram de South

Fallburg. Ainda segundo ele, embora os pensamentos não devem ser rejeitados, é necessário

manter uma margem de negociação com eles, intercalando-os com pensamentos puros, isto é,

com máximas da tradição religiosa hindu, ou com a prática do japa.

O japa, que teria a capacidade de acalmar a mente, é a repetição mental mecânica do

mantra, recomendada em qualquer situação quotidiana que não requeira uma atenção especial em

outras coisas por exemplo, ao andar de ônibus, ao esperar alguém, ao fazer um trabalho

manual mecânico, etc. sendo apresentada como um excelente meio de fortificar a mente, de

limpá-la de pensamentos inúteis e de abrir espaço para as revelações do self. A prática de japa

durante o seva também é recomendada.

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156

3.8) Questões de identidade

O pertencimento a um grupo como o Siddha Yoga comporta graus diferenciados, que

vão desde uma participação eventual nas cerimônias do grupo até um envolvimento regular, que

implica necessariamente assumir-se uma tarefa dentro de sua estrutura de funcionamento,

passando a praticar algum tipo de seva, o trabalho gratuito realizado como ato de devoção ao

guru. Poderíamos localizar no compremetimento com este tipo de tarefa o marco do

pertencimento efetivo ao grupo. Ainda que, contrariamente ao que se verifica nas tradições

religiosas judaico-cristãs e islâmicas, não hajam regras rígidas em relação a uma obrigatoriedade

de participação em determinados rituais do grupo (como, por exemplo, o compromisso de ir à

missa aos domingos assumido pelos católicos), esta flexibilidade não se traduz em uma ausência

de compromisso, uma vez que, assumida a participação em alguma tarefa dentro do grupo por

meio do seva, passará a existir uma expectativa por parte da comunidade em relação ao

cumprimento dos deveres assumidos por aquele devoto.

Num centro como o do Rio de Janeiro, as atividades de seva concentram-se

basicamente na estrutura que permite a realização dos satsangs semanais. O preparo destas

cerimônias envolve a arrumação das salas em que estas são realizadas, desde a ornamentação até

a colocação de equipamentos audiovisuais, preparo e venda do lanche fornecido no intervalo,

montagem da livraria do Centro e recepção dos participantes.104 O funcionamento de um ashram

como o de South Fallsburg, por sua vez, envolve uma estrutura bem mais complexa. Além dos

cursos, fornecidos continuamente, o ashram hospeda visitantes e tem residentes fixos, abrigando,

em períodos de maior procura, cerca de 3.000 pessoas.

Contudo, mais do que este aspecto exterior, a importância do seva é relacionada ao

aspecto de cultivo interior do devoto. O seva é apontado como uma das principais oportunidades

de crescimento espiritual dentro não apenas do Siddha Yoga mas da tradição ióguica em geral.

Oferecer desinteressadamente seu trabalho ao guru seria um verdadeiro potencializador dos

104 O Centro do Rio de Janeiro oferece também alguns cursos, inclusive intensivos, principal meio de iniciação de devotos, e realiza diversas outras atividades fora dos satsangs, contando, por exemplo, com um setor editorial

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efeitos da meditação. Os relatos sobre os insights recebidos durante estas práticas multiplicam-se

nas sessões em que se compartilham vivências, havendo um consenso generalizado entre os

devotos sobre os benefícios espitituais recebidos. Além desta função mística, o seva também é

percebido pelos devotos como algo que desempenha um papel mais mundano, de criador de laços

de solidariedade entre as pessoas, conferindo-lhes a sensação de pertencimento ao grupo.

A estruturura de funcionamento dos sevas só pode ser compreendida à luz da

experiência da bhakti, da devoção, algo dificilmente traduzível para os que não pertencem à

comunidade. No caso do Siddha Yoga, especificamente, a participação nos sevas associa-se a um

ethos profundamente lúdico do grupo, expresso em um estilo espirituoso e galhofeiro de lidar

com certas questões, que explica em grande parte o clima de riso e por vezes mesmo as

gargalhadas que pontuam o desenrolar dos satsangs.

O seva é, mais do que um trabalho, no sentido profano, conforme já apontamos, uma

prática espiritual, entendida e vivida como um momento privilegiado de contato entre o guru e o

discípulo, em que os laços entre eles se reforçam e em que o guru pode transmitir melhor sua

energia, a shakti, para o devoto. Dezenas de relatos dentro do grupo dão o testemunho de tarefas

pesadíssimas, que, se realizadas fora de um contexto de seva, tenderiam a deixar as pessoas

inteiramente esgotadas, tanto física quanto mentalmente. No entanto, os depoimentos sempre

ressaltam o fato de que, ao término delas, as pessoas saem com uma energia muito maior do que

a que tinham ao iniciar o trabalho, além de fazerem-nos em tempo recorde e com um nível de

qualidade sempre surpreendentemente bom.

A visão dos que estão fora do grupo, e, portanto, de uma das correntes responsáveis

pela formação das identidades que se criam sobre ele, é inteiramente distinta desta, contudo. O

trabalho gratuito oferecido ao guru é visto como uma prova contundente da exploração exercida

por este sobre os devotos105. Vale registrar aqui que muitas vezes o seva, de fato, não consegue

bastante estruturado. Ao longo de 1997, as cerimônias do grupo aos sábados eram realizadas no Edifício n.1 da Av. Rio Banco, um dos centros empresarias mais modernos e sofisticados da cidade. 105 Um episódio significativo a este respeito ocorreu comigo quando relatei a um colega antropólogo a rotina vivida pelos hóspedes do ashram de South Fallsburg, que consiste em levantar-se às 3:30 da manhã, participar de uma série de cantos, meditar, tomar café da manhã, dirigir-se a um seva ou a algum curso, almoçar, novamente dirigir-se a um seva ou a um curso, jantar e participar de outros cantos e meditações, completando um conjunto de atividades que termina por volta das 22:00 horas. Ao comentar com ele os preços extremamente baratos da hospedagem e da comida no ashram, ele me olhou divertido e comentou: “Bem, no Albergue da Juventude você encontraria tudo isto pelo mesmo preço sem ser obrigado a trabalhar de graça”. Este comentário pode ser colocado como o exemplo típico da maneira como um certo tipo de público “secularizado” no Ocidente encara os grupos hindus estruturados em

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alcançar esta dimensão espiritualizada, assumindo, da mesma forma que os trabalhos profanos

das pessoas, um caráter de tarefa, de algo chato e desagradável a ser cumprido. Poderíamos dizer

aqui que estes são os casos em que o seva não “funcionou”, isto é, em que não foi capaz de

proporcionar a sensação de aumento de energia, de capacidade física e mental tantas vezes

relatada, de provocar intensas sensações de amor pelo guru, ou de transformar-se em instrumento

de ressignificação de sentidos da realidade para o devoto, conforme os exemplos que reuni no

ítem 3.3 deste capítulo.

Se o seva é o definidor mais efetivo do pertencimento ao grupo, e, neste sentido, o

principal estruturador da identidade de seus participantes, ao mesmo tempo ele é também o

grande responsável pela desestruturação da identidade social habitual destes. Neste sentido, é

bastante significativa a surpresa relatada por muitos adeptos em relação aos resultados

inesperados que a participação em sevas inteiramente distintos de suas funções sociais habituais

provoca (como por exemplo, um arquiteto que se transforma em cozinheiro no ashram),

permitindo-lhes ao mesmo tempo um descanso de suas identidades ordinárias e perceberem-se

capazes de assumir uma quantidade muito maior de papéis.

A experiência comunitária do ashram, estruturada em grande parte em cima do

engajamento dos hóspedes neste tipo de trabalho devocional, que exerce uma tripla função

espiritual, socializadora e de manutenção concreta da estrutura de funcionamento do grupo

permite, por sua vez, uma redefinição identitária bem mais ampla de seus participantes, que

poderíamos aproximar daquilo que Roland Robertson definiu como uma espécie de

“relativização da sociedade”. Segundo Robertson, cujo pensamento a este respeito está resumido

em Luz (Op. cit., p.376), estaríamos testemunhando atualmente a emergência de uma condição

humana nova, marcada por uma visibilidade muito maior em relação à presença de uma ordem

mundial organizadora e subjacente às diversas realidades locais; uma consciência de ordem não

pertencente, assim, exclusivamente, à sociedade nacional, fazendo com que os indivíduos

percebam a si mesmos como algo mais que membros sociais, representantes de uma categoria,

classe, religião, sexo ou profissão ou uma parte isolada do universo submetida à observação.

torno da relação guru-discípulo. A visão preponderante é a de que os devotos são vítimas de um olhar ingênuo que os impede de perceber a exploração de que são vítimas.

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Estaríamos diante de um aguçamento da consciência sobre a existência de uma ordem mundial

que apontaria para algo que estaria além da sociedade, relativizando-a .

Ora, este tipo de percepção descrita por Robertson adequa-se enormemente à

experiência cosmopolita propiciada aos freqüentadores do ashram do Siddha Yoga em South

Fallsburg, na qual a multiplicidade de nacionalidades e idades dos participantes, engajados em

experiências essencialmente comunitárias, em que pese o caráter extremamente introspectivo da

experiência religiosa proposta, provoca exatamente esta sensação de pertencimento a algo mais

amplo, que extrapola as identidades habituais dos devotos. A experiência de ser cidadão do

ashram, corresponde, neste sentido, inteiramente, à experiência de ser cidadão do mundo106.

A possibilidade da experimentação desta vivência cosmopolita está relacionada, sem

dúvida alguma, à maneira como o hinduísmo se expressa no Ocidente através de seus grupos

sectários. A diversidade interna do hinduísmo lhe permite assumir um discurso que propicia às

pessoas se pensarem em termos de uma identidade religiosa plural. Assim, ainda que

diferentemente do movimento Hare Krishna, o Siddha Yoga não encubra em nenhum momento

suas características de movimento religioso, o discurso pluralista neste campo é frequentemente

acionado dentro dele parecendo fazer parte também de uma estratégia de expansão. Por ocasião

de um satsang no Rio de Janeiro em que se discutia por telefone, ao vivo, com monges do grupo

nos Estados Unidos a realização de um intensivo satelitizado, as perguntas dos presentes sobre

como proceder para conseguir levar ao evento amigos de outras confissões religiosas foram

sistematicamente respondidas com a afirmação de que o Siddha Yoga tinha a capacidade de

desenvolver melhor os potenciais religiosos de cada pessoa; assim, por exemplo, um judeu

vivenciaria melhor o judaísmo praticando o siddha ioga, um católico o catolicismo, etc. Tratava-

se de uma expressão extremada do discurso universalista, integrado, sem dúvida, na perspectiva

de secularismo tal como entendido e praticado hoje na Índia: um secularismo apoiado no

hinduísmo, apresentado como a única religião que tem abertura para a prática de outras religiões.

Evidentemente, os limites deste universalismo aparecem em vários momentos. McKean descreve

esta questão no ashram da Divine Life Society em Rishikesh, o Vaticano Hindu, ao relatar as

106 Esta perspectiva globalizante é além do mais extremamente reforçada dentro do grupo, que promove hoje em dia uma série de atividades realizadas simultaneamente em todos os seus centros no mundo, interconectadas por satélite, além de possuir uma concepção de funcionamento em rede, nos moldes dos grupos de luz, da década de sessenta, em que se objetiva a realização de trabalhos espirituais em benefício do planeta.

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experiências de uma católica que conclui ao final de uma série de problemas enfrentados na

estadia que “there is no correspondence between the ideal of hindu tolerance and its practice”

(Op. cit., p.202). Segundo McKean, a postura que subjaz às manifestações contrárias ao

cristianismo percebidas no discurso de algumas lideranças daquele grupo, estaria relacionada a

um tipo de nacionalismo hindu em que a cultura da Índia é vista como sinônimo de hinduísmo e,

assim, “a true Indian worships gods who are Hindu and who were born on Indian soil” (Ibid,

p.195)

No Siddha Yoga, o próprio aprofundamento das práticas conduz o devoto a perceber

os limites desta posição universalista, pois ainda que o discurso contemple a existência de

espaços para todos os credos e as práticas rituais incorporem símbolos de outras tradições, como

a presença de um presépio ao lado do retrato do guru à época do Natal, bem como o relato de

mitos e parábolas de outras tradições, particularmente as do sufismo107, durante as cerimônias,

com o tempo, torna-se claro para o participante que, por mais ecumênicos que o discurso e a

prática pareçam, há um caminho propriamente “hindu”, com certas características e

peculiaridades que se impõe trilhar para que sejam alcançados os objetivos propostos pelo grupo.

Aliás, os próprios objetivos alcançar a iluminação remetem a uma tradição religiosa

específica, e não a todas as outras a que eventualmente se faz menção, embora, conforme visto

em outros momentos deste trabalho, os devotos ocidentais não se sintam necessariamente

comprometidos com este ideal. Isto não impede, contudo, no caso da Divine Life Society, que

seus mestres apresentem-na como baseada na “quintessence of the teachings of all religions and

of all saints and prophets of the world” e como possibilitando a seus seguidores “to take easily to

the Divine Life even while living in the world and following the teachings of some particular cult

or religion” (McKean, op. cit., p.174), numa postura idêntica, neste aspecto, a do Siddha Yoga,

que também pretende ser uma forma de espiritualidade que não retira seus praticantes do mundo

nem os obriga à renúncia de fés anteriores.

Este discurso de certas correntes do hinduísmo, que permite às pessoas se pensarem

enquanto identidades religiosas plurais, se encaixa de forma magnífica com algo que é praticado,

107 No caso das lendas sufis, freqüentemente relatadas nas cerimônias, vale lembrar que o Siddha Yoga é tributário de uma tradição, o Shivaísmo do Kashmir, originária de uma região que sofreu forte influência muçulmana. O santo Kabir (1440-1518), frequentemente citado, além de ter sido o primeiro a expressar a experiência de amor da bhakti

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de fato, no Brasil, onde a religiosidade das pessoas é muito plural, não havendo “problema” em

identificar-se como católico e praticar, eventualmente, a umbanda, por exemplo, ou mudar de

religião com certa facilidade. Este discurso hindu interage bem também com a religiosidade da

Nova Era que considera, como ele, todas as tradições religiosas “válidas”. Contudo, se a Nova

Era mantém-se numa postura igualmente distanciada de todas elas, o hinduísmo, por mais que

acione outras tradições, acaba por impor seus próprios ritos, crenças e técnicas aos devotos 108.

3.9) As razões dos rompimentos

Assim como podemos identificar graus diferenciados de pertencimento ao grupo, os

rompimentos também obedecem a diversos matizes. Da mesma forma, embora haja afastamentos

definitivos e rompimentos traumáticos, também é frequente ocorrer afastamentos temporários, ou

períodos de dedicação menor ao grupo em determinadas fases da vida da pessoa, ou ainda casos

em que o afastamente não implica em uma rejeição das doutrinas e práticas do grupo.

Um dos motivos principais de rompimento dos devotos ocidentais está associado à

uma dificuldade de aceitação da divindade do guru, seja em nome de algum princípio mais

genérico, em que há uma recusa em admitir-se que pessoas humanas possam atingir uma

condição divina, seja por conta da adoção de outras fés religiosas, em que o princípio da

divinização de seres humanos não é reconhecido.

Segundo o depoimento desta ex-devota, posteriormente convertida ao catolicismo:

“[O] reconhecimento da universalidade do Amor de Deus e de sua ação em outros caminhos espirituais não anula as diferenças nem nos leva a colocar os demais mestres espirituais em igualdade de condições com Jesus Cristo, encarnação do Filho Unigênito de Deus. Apesar de não considerar meus mestres de siddha ioga como divinos (como são considerados pela tradição espiritual indiana), reconheço neles um grau de grande perfeição das potencialidades humanas e da espiritualidade nos quadros de uma outra tradição religiosa. Trata-se muitas vezes do extraordinário aperfeiçoamento de capacidades humanas, particularmente mentais (normalmente inexploradas pela maioria das pessoas). Não são eles, porém, comparáveis nem ao Cristo nem aos

em língua hindi, foi um dos que mais incorporou traços importantes do misticismo islâmico em suas pregações (Berry, op. cit., p.54-55). 108 As razões desta “errância” religiosa, no caso das classes populares no Brasil, é interpretada em Duarte (1983b). E, no caso dos segmentos ligados à Nova Era, em Luz (op. cit.).

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santos católicos, que refletem de um modo ou de outro a face divina de Cristo. Existem, sem dúvida, seres humanos que levaram à plenitude o caminho de santidade proposto pela ioga (como devem existir, também, nos outros caminhos com os quais estou menos familiarizada). Qualquer tentativa de unidade que desconhecesse as diferenças entre as propostas e os processos, em curso e, sobretudo, que não percebesse a diferença essencial entre o plano divino e o humano [rompimento com o grupo passará pelo questionamento ao processo de imanentização proposto, que é mediado pela atribuição de divindade ao guru], entre o Cristo e os outros seres humanos, seria, contudo, enganadora e redutora do próprio projeto de Deus. É maravilhosa a capacidade do ser humano de poder captar interiormente os ecos das mensagens de Deus e de poder representá-lo no colorido e variedade de suas culturas, mas não podem ser igualadas à Palavra do próprio Deus através da história da revelação e à sua Presença real entre nós, Jesus Cristo” (Sodré 1998, p.12, grifos meus).

O depoimento de Rudi, primeiro devoto do Siddha Yoga no Ocidente, que também

rompeu com o grupo, também aponta para a não aceitação da divindade do guru:

“A teacher in no way is a replacement for God and I found that the person with whom I had studied [Swami Muktananda] was so obssessed with his being God, or more than God, that I could not respect and sustain the relationship. Anybody who teaches by tension is an insecure human being. A teacher should give love and free people from tension so that they can open to God” (Rawlinson, 1998, p.498).

O depoimento de Rudi expressa uma postura bastante corrente entre os devotos

ocidentais de origem cristã que tendem a associar o divino com o ético, considerando a presença

de “falhas humanas” nos gurus como uma prova contrária à possibilidade de sua divindade.

Em muitos casos, pessoas de outras fés religiosas chegam a um questionamento sobre

o fato de que as experiências extraordinárias atribuídas aos gurus e seus discípulos possam ser

tão somente distúrbios psicológicos ou manifestações demoníacas, conforme se vê por esta

avaliação de um católico sobre os poderes dos gurus, neste caso, especificamente de Swami

Muktananda: “How can we determine wheter the mystic experiences of Muktananda and his

disciples are divine or purely psychological or demonic?” E prossegue: “Could his experiences

actually have been demonic, inspired by the evil spirits whom he saw during his experiences? Or

were they just abnormal mental experiences brought about by excessive meditation, austerities,

fastings, and wishful thinking” (Mangalwadi, op. cit., p.128).

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Um outro motivo de rompimento está relacionado a uma decepção provocada pelo

descoberta de que o “outro” neste caso uma religiosidade oriental diferente das religiosidades

de origem dos devotos não é tão “outro” quanto se desejaria. O depoimento de Gambini (Op.

cit.), ex-devoto do Siddha Yoga, é bastante esclarecedor neste sentido, quando comenta ter-se

dado conta, a certa altura, de que a sacralização de objetos tocados pelo guru no Siddha Yoga

nada parecia trazer de novo em relação a tudo o que ele vira sendo praticado por sua avó em

relação aos santinhos e outros objetos bentos católicos.

Neste caso, a busca ocidental de singularidade, da uniqueness, formulada por

Simmel, a ser encontrada através da adesão a uma religião distinta da religiosidade de origem,

parece perder o apelo quando se percebe que o “outro” não irá conferir tanta singularidade quanto

se gostaria, ou tanta distinção, para usar o conceito de Bourdieu.

Outra questão apontada para explicar os rompimentos tem origem na falta de sentido

atribuída às experiências vividas, por mais espetaculares que elas tenham sido. Assim, vivências

consideradas extremamente fascinantes a princípio, associadas a descoberta de potencialidades

inesperadas do corpo humano, como ver luzes, mover-se involuntariamente, ouvir sons, etc.,

passam a não ter razão de ser fora de si mesmas. É como se o devoto se perguntasse à certa altura

“para quê?”, algo que faz lembrar o depoimento de Herman Hesse citado neste capítulo, no qual

ele analisa o fato de que, contrariamente à expectativa inicial que se tem, a vivência dos assim

chamados estados místicos não é capaz de resolver os problemas quotidianos da vida, que

continuam ali, onde sempre estiveram, apesar delas.

A decepção com aspectos “materialistas” identificados no grupo, que deveria limitar-

se a objetivos espirituais segundo a concepção de muitos devotos, também é frequentemente

evocada para explicar rompimentos. As pessoas mencionam nestes casos não apenas os preços

dos cursos e dos materiais vendidos pelo grupo, considerados altos, como também mostram-se

surpreendidas com o enriquecimento pessoal do guru.

Uma variante deste tipo de crítica é o que acusa uma decepção com o fato de que

organizações que lidam com a espiritualidade sejam “mundos sociais como quaisquer outros”,

isto é, aonde estejam presentes intrigas, disputas de poder, manipulações, etc., que alguns devotos

“descobrem” não pertencerem estritamente à esfera profana, como supunham.

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Outro problema criticado relaciona-se à construção de “marcas de distinção” dentro

das organizações sectárias, que acabam levando ao surgimento de “egos inflados” em relação às

conquistas espirituais obtidas, exatamente em grupos que se propõem a trabalhar a superação do

ego. Na mesma linha, menciona-se também a decepção com o fato de que organizações que

pregam a libertação dos indivíduos de suas mentes, acabe por submetê-los aos ditames e regras

de um grupo. A perda da própria personalidade em benefício da seita é assinalada, assim, como

um ponto negativo. O estímulo à experimentação e à expressão de si, tomados como um aspecto

central da proposta do grupo, terminam por ser anulados pela rigidez de comportamentos

impostos por sua estrutura sectária. O depoimento de Gambini, neste sentido, exprime com

clareza o paradoxo que parece se colocar para a pessoa ocidental moderna que inicia uma

participação nestes grupos: “Se você não se entrega, não vive a experiência; se se entrega, é

obrigado a abrir mão do lado crítico” (Id.). A experiência de seita indiana para o ocidental

esbarraria assim nos limites que impõe à reflexividade, embora a estimule intensamente, em

diversos sentidos.

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Conclusão

Espero ter deixado claros neste trabalho meus pontos principais de argumentação.

Entre eles, o fato de que a diversidade e o “outro” têm que ser “tomados a sério”, para usar uma

expressão do Professor Otávio Velho. Neste caso, penso especialmente no livro de Edward Said,

que me foi tão útil e despertou tantas reflexões, mas que, por outro lado, me pareceu reforçar algo

que certamente não desejou: a idéia de que o Ocidente impõe suas visões sobre os “outros” como

se estes não lhe dessem uma resposta, e essa não interferisse, de alguma forma, nas formulações

originais. Se o discurso é tão poderoso, como Said nos demonstra exaustiva e minuciosamente

em seu livro, é preciso estar atento ao próprio discurso sobre a hegemonia do discurso do

Ocidente, para não torná-la, cada vez mais, um fato consumado. O Orientalismo não é apenas

uma visão do colonizador sobre o colonizado, mas também, muitas vezes, um contra-discurso às

visões hegemônicas do próprio Ocidente. E, quer se queira, quer não, o Orientalismo não se

constrói sobre um vazio, não é apenas um discurso, existe toda uma materialidade e uma ação

que lhe servem de base, cuja existência é concreta e extrapola o discurso. O Orientalismo não é

apenas a voz unilateral de um “Ocidente” falando sobre um “Oriente”, mas é também um

“Ocidente” falando de si mesmo, e o próprio “Oriente” ganhando voz como tomar de outra

forma a tradução dos grandes clássicos religiosos do Oriente iniciada pelos orientalistas? Como

não vê-las como o Oriente apresentando-se a si mesmo?

Fico me perguntando, a esta altura, sobre os aspectos que eu própria terei reforçado,

sem ter querido, neste trabalho. Digo isto porque, para afirmar um argumento, para corrigir uma

visão que consideramos errônea, parcial ou simplificadora, ou para apresentarmos uma versão

diferente de algo até então visto sob ângulos diversos, somos nós próprios obrigados a sermos

parciais e simplificadores em algum outro nível. Em outras palavras, para curar o doente,

incorremos no risco de provocar-lhe alguns “efeitos colaterais” adversos. Se, do ângulo que eu

olhei, os “efeitos colaterais” do argumento de Said denunciando o caráter ideológico da produção

denominada de orientalista ficaram claros, talvez o mesmo tenha ocorrido comigo, ao tentar

salvar da “grande denúncia” o que me pareceu ser a voz do “outro” (o “oriental”), e “outras”

vozes, não hegemônicas, do próprio Ocidente. Como seria de esperar, contudo, não fui capaz de

perceber eu mesma os efeitos colaterais que provoquei. Tomara que outros queiram ter o

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166

trabalho de apontá-los afinal, creio que não há outra forma do conhecimento se fazer. Neste

sentido, não há como fugir às partial truths (Clifford, 1986).

Acho que se, por um lado, olhamos nosso objeto de estudo a partir de algumas lentes

prévias aquelas que adquirimos ao longo de nossa formação na disciplina o objeto, por

outro lado, como que nos impõe, por sua vez, determinadas lentes. Foi assim com a ioga, que,

sem que eu pudesse saber previamente, obrigou-me a olhar para o encontro Oriente/Ocidente,

para as dicotomias emoção/razão, para o cruzamento da religião com a psicologia e para o que

está em jogo tanto na separação destes campos como em sua unificação, atualmente, por certos

agentes e grupos religiosos. Também pude descobrir que meu objeto não era “um”, mas sim o

ponto de partida para a investigação de vários objetos, tanto estes, a que acabo de me referir,

como diversos outros a que não pude me dedicar por falta de tempo ou de fôlego. Assim, se

iniciamos o estudo de um objeto cheios de idéias sobre como olhar para o quê, somos obrigados a

perceber, durante o curso da investigação, que olhar para determinada coisa, em si mesmo, nos

impõe ver uma série de outras, independentemente de nossos propósitos iniciais. Este lado

imprevisível da pesquisa foi para mim seu grande fascínio, mesmo com a angústia advinda da

vertigem de perceber aquilo que supuséramos ser nosso objeto se partindo em tantos outros,

insuspeitados.

Não sei se deixei transparecer e se não o fiz, faço-o agora minha profunda

empatia com as experiências religiosas em geral e com o grupo que estudei neste trabalho. Não

sei se consegui transmitir a riqueza de ambos. Tratar das religiões, estas construções essenciais

dos homens e particularmente do Siddha Yoga foi motivo de profundo encantamento e

motivação para mim. Neste último caso, por um motivo simples: foi este grupo que me fez

canalizar, tal como os emotives de Reddy, um tipo de sentimento até então muito difuso, embora

presente, em mim. Aos que têm sede de encontrar uma fonte para reencantar o mundo, há ali, sem

dúvida, muita água para ser sorvida.

Em relação às tentativas mais recentes de lidar com a questão das emoções no campo

antropológico, o misticismo mostrou-se um terreno fértil para considerações. Penso aqui

sobretudo na possibilidade de se explorar a correlação entre o papel do misticismo ao longo da

história das religiões, sobretudo no Ocidente, com o conceito de emotives, proposto por Reddy

(1997) (ver capítulo 2). O fato de que o misticismo, uma manifestação essencialmente emocional,

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167

tenha funcionado como um dos grandes parteiros de mudanças no campo religioso ao longo da

história, parece apontar na mesma direção da análise de Reddy, na qual os emotives são

associados a mudanças no campo social, isto é, a algo que sanciona ou não as estruturas que vão

se criando ao longo das transformações históricas. Se Reddy atribui às reações emocionais dos

homens o papel de referendar ou não as estruturas sociais que se criam, poderíamos dizer que o

misticismo sempre põe à prova, com sua irrupção criativa, as estruturas religiosas vigentes. O

esforço de retirar as emoções do quarto dos fundos das explicações sobre as mudanças sociais e

trazê-las para a luz do dia é algo cuja urgência é compreendida por todos aqueles que se

debruçam sobre a cena religiosa ocidental contemporânea, na qual trabalhos dos mais diversos

tipos com as emoções vêm conquistando milhões de adeptos.

Outra correlação a ser feita diz respeito ao fato de que o eu que testemunha das iogas

parece ser um dos pontos principais de confluência entre esta tradição e um certo tipo de

reflexividade que se desenvolveu no Ocidente, no qual as pessoas começam a se observar como

observadoras e, a partir deste posicionamento, a agir por cálculo social. Este mecanismo, bastante

analisado em Elias (1987), estaria no centro da constituição da pessoa ocidental moderna e seria

uma de suas marcas distintivas: não revelar o que se pensa ou o que se sente, controlando-se

suficientemente para poder observar as condições do ambiente e agir calculadamente, em favor

de suas próprias conveniências. Curiosamente, o métier do antropólogo também supõe um

distanciamento equivalente, um saber obervar-se como observador em benefício de uma

objetivação mais profunda daquilo que vê o que, a meu ver, significa reconhecer-se como

parte do objeto que se constrói.

Outro ponto a ser destacado é a questão da dimensão prática poder ser vista como a

principal herança deixada pelo contato do Ocidente com as religiosidades orientais, e como o

principal aspecto daquelas apropriado pela Nova Era. A idéia de experimentar a si mesmo parece

ter sido um legado central daquele contato, iniciado em um momento o final do século XIX

em que a experiência com as coisas já se firmara como procedimento básico no campo científico.

As religiosidades orientais irão acompanhar o mesmo movimento no campo científico em relação

às pessoas, concretizado com o surgimento e afirmação dos saberes psicológicos. As

religiosidades que se afirmam no Ocidente como resultado do contato com o Oriente,

particularmente a Nova Era, se colocarão como ponto privilegiado para a experimentação de si, e

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168

não mais como campo determinador de condutas e regras. Poder-se-ia dizer, assim, que as

religiosidades orientais irão confluir, no Ocidente, para todo o vasto campo da experimentação e

da observação de si que se abrirá com a Psicologia.

Algo importante a assinalar, e como que o corolário do que acabamos de dizer,

relaciona-se à constituição de um campo psicológico-espiritual no Ocidente, do qual a maior

expressão é a Nova Era. Neste sentido, parece ter se constituído, a certa altura, uma consciência

maior dos agentes sobre o fato de que muitos dos fenômenos atribuídos ao campo “espiritual”,

como os místicos, guardavam uma relação estreita com o psicológico. A grande novidade

contemporânea a este respeito estaria nesta apropriação, pelo senso comum, de uma noção até

então restrita aos meios científicos (a de que os fenômenos religiosos guardavam uma relação

com os fenômenos psicológico), algo que viria a ter grande influência sobre os praticantes das

religiões. Neste sentido, é como se eles tivessem acedido a uma auto-consciência mais profunda,

inexistente até então, sobre os fenômenos psicológicos que estão em jogo em muitas das

experiências ditas “espirituais”. Explorá-las passa a ser então uma meta para muitos, com

objetivos, neste sentido, muito mais seculares do que realmente “espirituais”. A falta de lealdades

estabelecidas em relação a grupos religiosos específicos teria a ver com este aumento da

consciência sobre os fatores psicológicos envolvidos em certos tipos de experiência espiritual, e

na idéia de que explorá-los não implica em adesão definitiva, já que qualquer tipo de experiência

é igualmente válida. Neste sentido, o argumento universalista no campo religioso, tal como

proposto por algumas correntes do hinduísmo, passa a ser absorvido com um sentido secularizado

qualquer religião é válida porque qualquer religião permite uma experiência pessoal que leva

ao conhecimento de si.

Ainda com relação a esta temática, mas vista sob um outro ângulo, poderíamos

propor ainda a idéia de que parece haver hoje em dia uma necessidade de juntar domínios

modernamente separados, neste caso, associando-se o psicológico ao espiritual. Neste sentido, é

como se, em um primeiro momento, a separação epistemológica de diversos campos de

conhecimento tivesse sido apropriada pelo linguajar quotidiano das pessoas. Contudo, em um

segundo momento, é como se fosse adquirida uma consciência sobre o fato de que tais domínios,

na prática, não funcionam separadamente. Neste caso específico, consciência de que o

psicológico e o espiritual formam um domínio único. A ioga apresentar-se-ia, assim, como um

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169

terreno dos mais férteis para investigar-se uma das maneiras pelas quais pode ser restaurada uma

das fragmentações criadas pelo saber moderno, aquela que separa os campos psicológico e

religioso.

Um outro viés fomentado pela presença das iogas no Ocidente e também ligado à

psicologia, diz respeito à difusão dos assim chamados “estados alterados de consciência”, que já

despertavam o interesse das elites européias letradas desde o Romantismo. A Contracultura, mais

de um século depois, teria sido responsável por uma maior popularização e aceitação no

Ocidente destes “estados alterados” seja os obtidos pelo uso de drogas, seja pela prática de

disciplinas religiosas como parte integrante do quotidiano, algo que na Índia jamais chegou a

ser problema. No caso do Brasil, não apenas a prática de religiões como o Siddha Yoga, mas

também a recente ampliação do consumo urbano de substâncias psico-ativas utilizadas em um

contexto religioso (particularmente no caso da ayahuasca, consumida pelo Santo Daime e pela

União do Vegetal, grupos religiosos que ganham cada vez mais espaço na cena urbana brasileira)

parece apontar na mesma direção. É interessante destacar também como a via religiosa vem,

neste sentido, se afirmando como um locus privilegiado para o desenvolvimento de uma postura

mais tolerante socialmente em relação a estes estados “fora do ordinário”, conforme indicado na

análise de MacRae (1998) sobre o uso da ayahuasca, em que se mostra que a argumentação

utilizada para a não-criminalização de seu uso foi toda construída sobre o fato de ele inserir-se

em um contexto ritual.

A inclusão dos grupos de origem hindu que se deslocaram para o Ocidente dentro do

fenômeno da Nova Era é um ponto que julgo importante problematizar. Se muitos destes grupos

promovem uma junção de técnicas espirituais hindus com técnicas da psicologia ocidental

como o faz o próprio Siddha Yoga isto não me parece ser suficiente, contudo, para

caracterizá-los como "Nova Era”, até porque, segundo os estudiosos deste fenômeno, este se

define muito mais por uma postura dos sujeitos do que por um corpo específico de doutrinas. A

Nova Era não seria, neste sentido, uma religião, mas muito mais uma atitude em relação às

religiões aquela que valoriza recorrer a todas elas, construindo suas próprias hibridações de

acordo com o gosto e as necessidades particulares de cada um. As religiões de armar109, segundo

109 Esta expressão foi usada como título da mesa redonda que debateu a Nova Era nas VIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina, realizadas em 1998, em São Paulo.

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alguns, em que cada um, dentro do estoque de religiosidades disponíveis, arma, como em um

jogo, o conjunto que mais lhe convém, sempre provisório e sujeito a rearranjos, como a expressão

bem o indica.

Os devotos dos grupos de origem hindu no Ocidente não têm a marca da errância

religiosa que caracteriza os adeptos da Nova Era. Bem ao contrário, a dedicação ao guru e a

fidelidade ao grupo são elementos centrais da participação nestes grupos. Um devoto do Siddha

Yoga, que frequenta seus satsangs, que faz seva, que contribui com dinheiro para manutenção do

grupo, não pode ser considerado um new ager. Sua participação no grupo não é eventual, nem é

“experimental”. O que não significa dizer que muitos new agers não possam, eventualmente,

frequentar estes grupos, algo que, de fato, ocorre, conforme pude verificar em meu trabalho de

campo. Definí-los (aos grupos) como parte do fenômeno da Nova Era por mais que o

background da Nova Era seja proveniente do hinduísmo pode servir de pretexto, mais uma

vez, para calar a voz do “outro”, não reconhecendo sua especificidade. Tratar-se-ia aqui de

sobrepor ao “outro” uma identidade construída no Ocidente, ainda que ela se utilize intensamente

de outras religiosidades para se afirmar, inclusive, como já dissemos, do próprio hinduísmo.

A intuição de Vivekananda sobre o papel dos símbolos na mediação dos sentimentos

religiosos e no diálogo com o sagrado parece esclarecedora a respeito desta discussão.

Vivekananda tinha uma percepção aguda sobre o fato de que a religião é um sistema simbólico

que permite aos homens representar idéais altamente abstratas, como a de sagrado, a de verdade e

a de pureza, por meio de imagens e formas. Daí é este o cerne do argumento universalista

hindu todas as religiões e todas as formas de adoração serem válidas. Poder-se-ia dizer: os

homens só podem entender aquilo que seu background cultural permite ou o seu background

espiritual, seguindo o raciocínio de Vivekananda. Assim, embora haja espaço dentro deste viés

ióguico das tradições hindus para o pluralismo religioso, ele de forma alguma se confunde com o

ecletismo assumido pela Nova Era.

Ao tentar diagnosticar os elementos que permitiram que se instaurasse o diálogo do

Ocidente com as religiosidades orientais, pareceu-me que a reflexividade desencadeada entre os

adeptos ocidentais do Siddha Yoga através da ressignificação de vivências pessoais por seus

atores incorpora os elementos da reflexividade presente na experiência da cultura ocidental

moderna, que poderíamos remontar às fases iniciais do cristianismo, quando se consolida a noção

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171

de alma indivisível já presente na tradição greco-romana e a questão do conhecimento de si,

através da confissão. Somando-se a isto, poderíamos mencionar ainda a idéia de que existe algo

como um centro interior, ou um self a ser encontrado, tão cara à reflexão sobre o indivíduo

proposta pelo Romantismo. Seriam estes elementos, que possibilitaram o diálogo das tradições

ocidentais com as orientais, os responsáveis pela maneira como aquelas viriam a ser traduzidas e

apropriadas entre nós.

* * *

O antropólogo Otávio Velho (1998), discutindo recentemente os rumos da disciplina,

defendeu a idéia de que a postura do antropólogo deveria ser algo na confluência entre tornar-se

nativo e empreender o esforço da objetivação. O campo das iogas parece particularmente afinado

com este tipo de proposta pela maneira como sugere que seus adeptos devam posicionar-se diante

do que vivem: tornando-se nativos, isto é, vivendo as experiências do mundo tal como se

apresentam à nossa consciência ordinária, mas sabendo ao mesmo tempo distanciar-se delas para,

a partir de outros patamares de consciência, atribuir-lhes significados outros, isto é, objetivações.

Assim, as iogas parecem reproduzir o mesmo tipo de clivagem que estrutura a

antropologia, apontando para tipos de consciência diferentes sobre a mesma situação: um do

antropólogo e outro do nativo (ou do quase antropólogo e do quase nativo, pensando no fio de

raciocínio de Velho), no lado da antropologia; um a partir do self e outro a partir do ego, no caso

das iogas. O iogue seria aquele capaz, como o antropólogo, ou como o cientista, de perceber

significados não acessíveis ao senso comum. É claro que, por causa disto, subjaz às distinções

colocadas um conteúdo valorativo: o antropólogo, o self e o guru, porque têm conhecimentos

mais profundos, estariam acima de seus antípodas, o nativo, o ego e o discípulo.

O que a meditação instaura no praticante a observação de si mesmos de um ponto

de vista distanciado, o tornar-se testemunha dos próprios atos é o que o antropólogo faz em

relação ao nativo tornar-se a testemunha que observa e/ou participa e que percebe outros

sentidos por trás da realidade aparente. E foi este o principal impacto do grupo sobre minha visão

de antropóloga: perceber que algo considerado central por ele é central também para a prática do

trabalho de campo conseguir ser testemunha daquilo em que estamos participando; estar de

dentro e ao mesmo tempo ter a capacidade de distanciar-se, de observar a si mesmo e aos outros.

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172

Seguindo a pista da observação de Velho, o que se deveria tentar e sem dúvida

foi esta a direção do meu esforço neste trabalho seria fazer o antropólogo ser capaz de ser

nativo sem perder o seu poder de objetivação.

Na meditação, para o praticante exercitar o tornar-se testemunha, é preciso haver algo

a ser testemunhado suas próprias experiências tal como vividas em um nível de consciência

ordinário. Na antropologia, para o antropólogo testemunhar, existem duas possibilidades: ou

testemunhar distanciadamente os nativos, ou testemunhar a sua própria experiência sendo nativo.

Acho que os dois caminhos conduzem a “outros níveis de consciência”, isto é, produzem

objetivações, que nada mais são do que a correlação das experiências coletadas (vividas ou

observadas) com um corpo teórico pré-existente. Estes “outros níveis de consciência” são

diferentes da consciência usual, primária, digamos assim, dos nativos. Bem entendido, dos

nativos que não se tornam antropólogos, pois, como bem chamou atenção Carlos Alberto Afonso,

há os que se tornam antropólogos, isto é, que produzem um conhecimento sobre o que vivem

distinto do que vivem em primeira instância. O que não deve ser confundido com os

“especialistas” da tribo, que sabem explicar o sentido das cosmologias, e não apenas praticar os

rituais sem compreender seu significado mais profundo como no caso do famoso informante

de Victor Turner sobre os n’dembu. O nativo distanciado, que produz um conhecimento crítico

sobre o que vive, é diferente do nativo erudito, digamos assim, que tem um conhecimento mais

profundo sobre as cosmologias; erudição não seria sinônimo de distanciamento.

Definindo o processo de conhecimento colocado em jogo pelas iogas, Rawlinson faz

o seguinte comentário:

“The common-sense asumption is that I receive the same input as anyone else and that it is my reactions to that input which are the cause of the distortion [of the situation I observe]. In other words, there is a common, neutral underlay of perceptions (a person’s face, the colour of his hair, his tone of voice, etc) which is evaluated differently by different people. Its [from yoga] basic presuposition is as follows: it is incorrect to think that there is a fixed or boundary at which input is received and then classified or evaluated according to certain principles. Rather, the very process of being aware of “x” defines the nature of “x” (Rawlinson 1981, p.253).

O que nos faz pensar, por sua vez, nos termos da relação de conhecimento tal como

colocada em Marx (1972), na qual sujeito e objeto de conhecimento transformam-se mutuamente

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173

ao entrarem em contato. Com isto, retornamos a uma das temáticas centrais deste trabalho: aquela

de que o “outro”, sempre construído, seja como objeto de estudo, seja como aquele que permite,

por negação ou espelhamento, que construamos nossa própria identidade, terá sempre, quer se

queira, quer não, muito de “nós”.

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APÊNDICE

TRADUÇÃO DAS CITAÇÕES EM LÍNGUA ESTRANGEIRA NO CORPO DO TEXTO E NAS NOTAS DE RODAPÉ Capítulo 1: p.15- Segundo Simmel “depois que o indivíduo se libertou (...) das cadeias da guilda, do status hereditário e da igreja, a busca pela independência continuou até o ponto em que os indivíduos tornados independentes neste sentido também queriam se distinguir um do outro. O que importava mais agora não era que os indivíduos fossem livres, mas que se fosse um indivíduo particular e insubstituível” (Simmel, 1971a, p.222) p.16- (...) algo que não é meramente “o desenvolvimento de um ser além do estágio morfológico (…), mas desenvolvimento em direção a um centro interior original e o preenchimento deste ser de acordo com suas próprias leis, com suas disposições mais profundas” (Simmel, 1971c, p. 229). p.17- Se não parecer por demais vão, eu gostaria de expressar a opinião de que cada um dos aforismas desconexos e individuais que compõem os Upanishades poderiam ser deduzidos do pensamento que vou lhes apresentar, embora o inverso – que meu pensamento possa ser encontrado nos Upanishades - não seja de forma alguma o caso. (Versluis, 1993, p. 22). p.18- “as maneiras pelas quais eles interpretaram os textos hindus e budistas dizem-nos consideravelmente mais sobre Schopenhauer, ou Nietzche, do que sobre os próprios textos” (Versluis, 1993, p. 23). p.20- os poetas alemães reconheceram algo que se tornaria cada vez mais claro posteriormente: o fato de que as tradições orientais representavam uma alternativa potencial ao racionalismo e seus constrangimentos, aos antolhos empíricos do Iluminismo” (Versluis, 1993, p.19). p.21- “o Orientalismo positivo faz parte, na verdade, de uma luta mais ampla na América pelo pluralismo cultural e religioso em uma nação auto-identificada, na maior parte das vezes, apenas com a tradição judaico-cristã. Neste movimento em direção ao pluralismo cultural e religioso, o Transcendentalismo desempenhou um papel significativo, possível somente quando o mundo ocidental, e especialmente a América, começaram a ter notícia de outras tradições, além das judaico-cristãs. O Transcendentalismo representa, portanto, a passagem de uma completa rejeição das religiões asiáticas à sua aceitação dentro de uma perspectiva pluralista na América. Os esforços dos Transcendentalistas, condicionados como o foram pelo espírito de seu tempo, abriram caminho para a publicação de escritores asiáticos e para o enraizamento das tradições asiáticas naquele país” (Versluis, 1993, p.166). p.21- “uma séria tentativa de conjugar os ensinamentos filosóficos e religiosos presentes no hinduísmo e no budismo com o pensamento ocidental” (Versluis, 1993, p.36). p.22-“Em parte ele foi uma reação à ortodoxia puritana; em parte, um efeito do estudo renovado dos (…) panteístas orientais, de Platão e dos alexandrinos, da moral de Plutarco, Sêneca e Epitetus” (Versluis, 1993, p.6). p.22- “[eles] interpretaram os textos religiosos asiáticos de acordo com suas inclinações particulares. Emerson e Thoreau tornaram-nos abstratos, Johnson e Frotinghan universalizaram-nos, outros cristianizaram-nos “(Versluis, 1993, p.4). p.23- “o interesse dos Transcendentalistas pelas religiões asiáticas derivou essencialmente daquilo que os Unitarianistas apontaram nelas como sendo uma perspectiva herética sociniana, ariana, arminiana ou pelágia, de acordo com a ortodoxia calvinista. As heresias socinianas e arianas que sustentavam que Cristo não era completamente divino abriram caminho para os Transcendentalistas afirmarem que Cristo não era o único caminho para a salvação, e que o hinduísmo, o budismo e outras religiões mundiais também eram divinamente reveladas. As heresias arminianas e pelágias que negavam a predestinação e consideravam que as pessoas podiam melhorar a si mesmas e lutar por sua salvação permitiram aos Transcendentalistas tornarem-se interessados no

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hinduísmo, no budismo e em outras religiões mundiais que também afirmavam ser possível trabalhar pela própria salvação” (Versluis, 1993, p.6). p.23- “a conversão a uma religiäo literária que funde todas as escrituras religiosas mundiais”(Versluis, 1993, p.76), Thoreau, antecipando o acento na experiência que se verificaria depois, “tentou viver de acordo com o que tinha lido e reconhecido como a verdade perene” (Versluis, 1993, p.79), conforme pode ser verificado através das práticas que descreve em Walden. p.24- “A obscura correspondência entre Novalis e os Upanishades só pode ser esclarecida se deixamos de querer explicá-la pela influência do Oriente redescoberto no final do século XVIII e recorremos a esta influência indireta que nunca deixou de se exercer do Leste em direção ao Oeste através do neoplatonismo, dos místicos e dos iluminados da Renascença, nas eras das grandes negações religiosas. Ora, jamais, desde a Renascença, o ocultismo floresceu tanto quanto naquele final do século XVIII. Aflorando no martinismo, no swedenborguismo, no hernhutismo de Zizendorf, no rosacrucianismo e em uma multiplicidade de lojas mais ou menos iluminadas, engrossado pelos adeptos do magnetismo animal, do hipnotismo, do sonambulismo, da telapatia e de outros fenômenos ‘milagrosos’ tidos por espirituais, sustentado por todos os movimentos milenaristas que anunciavam uma nova revelação, uma nova idade do ouro, o ocultismo espraiou-se sobre o Pré-romantismo, atingiu todas as camadas sociais e depositou sobre a elite (…) uma reserva de fermentos místicos que o Romantismo levaria tempo para esgotar” (apud Versluis, 1993, p.21). p.25- “As tradições religiosas do Ocidente foram de pouco auxílio para apoiar esta busca de auto-conhecimento iniciada com o desenvolvimento da psicologia científica. Embora a espiritualidade das religiões ocidentais contivesse um profundo conhecimento sobre o self, estas tradições, em seu conjunto, foram inaptas para comunicar este conhecimento em uma linguagem e sob condições que pudessem ser aceitas pelo buscador secularizado contemporâneo” (Needleman, 1995, p.xxiv). p.25- Neste sentido, o que muitas espiritualidades esotéricas parecem ter propiciado foi “um acesso ao auto-conhecimento separado de uma aceitação a priori de sistemas religiosos de crença e de aspectos moralistas” (Needleman,1995, p.xxiv). p.25- Segundo Needleman, os ensinamentos esotéricos, na verdade, “dadas as suas faculdades de conhecimento, imaginação, observação e especulação colocam estes movimentos [esotéricos], pelo menos no que diz respeito a seu tom e atmosfera gerais, mais próximos do temperamento científico moderno do que das religiões de fé, confiança e esperança que definiram em seu conjunto a cultura religiosa ocidental”. (Needleman, 1995, p.xxiii). p.27- Para ele, o principal objetivo da evolução espiritual seria “conduzir o fiel a alcançar seu verdadeiro destino, isto é, a unidade com sua própria essência: ’torne-se o que você é’, o que supõe que ainda não o somos e que os indivíduos modernos permanecem fora de suas essências, o que é precisamente o sentido da palavra existência (de ex-sistere, ’permanecer fora’)” (Borella, 1995, p.346). p.28-29- “É preciso sair e trocar nossa espiritualidade por qualquer coisa que eles tenham a nos oferecer; vamos trocar as maravilhas do reino do Espírito pelas maravilhas do reino da matéria” (Swami Sivananda apud McKean, 1996, p.282). p.29- “Brahman é a única realidade na Índia, a matéria é a única realidade no Ocidente; a auto-realização é o objetivo final na Índia, o poder e a dominação são os objetivos finais no Ocidente; os indianos perseguem a felicidade através da auto-contenção, os ocidentais perseguem o prazer através da auto-indulgência; a renúncia traz alegria aos indianos, as posses trazem alegria aos ocidentais; a não-violência é o ideal indiano, matar e conquistar é o ideal ocidental” (Swami Sivananda, apud McKean , 1996, p.167). p.32- “Não discutais sobre as doutrinas e religiões. Há apenas uma. Todos os rios correm para o oceano… A grande corrente de água traça ao largo do percurso, segundo as raças, as idades e as almas, um leito diferente; a água é sempre a mesma” (apud Varrene, 1993, p.261).

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p.33- “Ele referiu-se algumas vezes a sua mensagem como um “Vedanta Prático”, uma descrição apropriada no sentido de que ele advogava tanto a iluminação individual quanto a reforma social. Um número crescente de indianos tornara-se favorável à reforma social e muitos proclamavam-se vedantistas, mas poucos indianos no século XIX defendiam ao mesmo tempo a reforma social e o vedantismo. (…) Sua educação e os anos passados no Ocidente ajudaram-no, no mínimo, a clarificar e a moldar suas idéias concernentes à reforma social” (Jackson, 1994, p.31). p.33- “Dos vôos espirituais mais altos da filosofia (…), do ateísmo jainista às mais baixas idéias de idolatria e variadas mitologias, tudo encontra um lugar na religião hindu” (Ellwood,1987, p.51). p.34- (...) que constitui o cerne de sua identidade e aquilo que torna a todos “participantes da felicidade imortal, seres perfeitos e sagrados”. Assim, comenta: “Vós, divindades sobre a terra, pecadores? Pecado é considerar os homens como tal (…) Vós sois almas imortais, espíritos livres, abençoados e eternos. Vós não sois matéria, nem corpos. A matéria é vossa serva, e não vós os servos da matéria ” (Ellwood, 1987, p.55). p.34- “Manifestação e não criação é a palavra da ciência de hoje, e o hindu se alegra com o fato de que aquilo que ele acalentou em seu peito ao longo dos tempos estará sendo ensinado em linguagem mais contundente e sob luzes mais amplas através das últimas conclusões da ciência” (Ellwood, 1987, p.58). p.34- “este é o próprio cerne, a concepção vital do hinduísmo. O hindu não quer viver de palavras e teorias; se há existências além da existência ordinária dos sentidos, ele quer estar face à face com elas” (Ellwood, 1987, p.56). p.34- Vivekananda propõe à certa altura uma definição geral sobre o que seria a religião dos hindus, apresentando-a como “uma luta constante para tornar-se perfeito, para tornar-se divino, para alcançar Deus e ver Deus, e, neste encontro com Deus, nesta visão de Deus, tornar-se perfeito, como o Pai no céu é perfeito. Nisto consiste a religião dos hindus” (Ellwood, 1987, p.56). p.35- “Não há politeísmo na Índia” (Ellwood, 198, p.58). p.35- “Toda a religião dos hindus é centrada na realização. O homem deve tornar-se divino, realizar o divino, e, assim, ídolos, templos, igrejas ou livros são apenas apoios, auxílios em sua infância espiritual.” E continua: “Adoração exterior, adoração material, dizem os Vedas, são o estágio mais baixo, em luta para alcançar o mais alto; oração mental é o estágio seguinte, mas o estágio mais alto é quando o Senhor foi realizado”. Assim, continua, “Se um homem pode compreender sua natureza divina com a ajuda de uma imagem, seria certo chamar a isto pecado? E, mesmo quando tivesse ultrapassado aquele estágio, deveria ele ser considerado um erro?” (Ellwood, 1987, p.59) . p. 35-36- “Por quê um cristão vai à igreja? Por quê a cruz é sagrada? Por quê a face se volta para o céu em oração? Por quê há tantas imagens na Igreja católica? Por quê há tantas imagens na mente dos protestantes quando eles rezam? Meus irmãos, não podemos pensar em nada sem uma imagem material assim como não podemos viver sem respirar. E pela lei de associação a imagem material chama a idéia mental e vice versa (...) Como percebemos que, de uma maneira ou de outra, pelas leis de nossa constituição, temos que associar nossas idéias de infinito com a imagem de um céu azul, ou com o mar, alguns evocam a idéia do sagrado com a imagem de uma igreja, ou de uma mesquita, ou de uma cruz. Os hindus associaram as idéias de sagrado, pureza, verdade, omnipresença e todas as outras idéias com diferentes imagens e formas” (Ellwood, 1987, p.58-59). p.36- “Todas as outras religiões estipulam certos dogmas fixos e tentam forcar a sociedade a adotá-los. Estipulam para toda a sociedade um mesmo casaco que deve ajustar-se tanto a Jack, quanto a Job quanto a Henry. Se ele não se ajustar a John ou a Henry, eles ficarão sem casaco para abrigar seu corpo. Os hindus descobriram que o absoluto só pode ser realizado ou pensado ou descrito através do relativo e as imagens, da cruz ou do crescente, são simplesmente centros variados, pregadores para pendurar as idéias espirituais.” (Ellwood, 1987, p.59). p.36-37- “Para o hindu, o homem não está viajando do erro para a verdade, mas da verdade para a verdade, da verdade mais baixa para a verdade mais alta. Para ele todas as religiões, do mais baixo fetichismo ao mais alto absolutismo, significam várias tentativas para a alma hindu captar e realizar o infinito, cada uma determinada por

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suas condições de nascimento e associação, e cada uma marcando estágios diferentes de progresso. Cada alma é uma jovem águia voando mais e mais alto, ganhando mais força até alcançar o glorioso sol” (Ellwood, 1987, p.59). p.38- “Se o fanático hindu imola-se na pira, ele jamais acende o fogo da inquisição. E isto não pode ser colocado à porta da religião, da mesma forma a queima de bruxas não pode ser colocada à porta do cristianismo” (Ellwood, 1987, p.60). p.38- “Para o hindu, então, todo o mundo da religião é apenas uma viagem, uma elevação, de diferentes homens e mulheres, através de várias condições e circunstâncias, para o mesmo objetivo. (…) As contradições provêm da mesma verdade adaptando-se a diferentes circunstâncias e naturezas. É a mesma luz projetando-se através de diferentes cores. E estas pequenas variações são necessárias para aquela adaptação.” (Ellwood, 1987, p.60). p.38- “Ao longo de toda a ordem da filosofia sânscrita, desafio qualquer um a encontrar expressões de que apenas os hindus se salvam e os outros não. Vyas afirma ‘Encontramos homens perfeitos mesmo além do limite de nossa casta e credo’” (Ellwood, 1987, p.60). p.39- E prossegue, definindo o que seria o ideal de religião do ponto de vista do hinduísmo: “Haverá uma religião sem lugar para perseguições ou intolerância em sua política, em que se reconheça a divindade em cada homem e mulher, e cujo escopo total, cuja força, estará centrada em ajudar a humanidade a realizar sua natureza divina” (Ellwood 1987:61). Segundo ele, a principal mensagem a ser transmitida pelo Parlamento Mundial das Religiões seria a de que Deus está igualmente presente em todas elas: “Foi reservado à América proclamar aos quatro cantos do mundo que o Senhor está em todas as religiões.” (Ellwood, 1987, p.61). p.46- “muitos críticos dos Transcendentalistas viam sua rejeição [ao cristianismo tradicional e ao unitarianismo] como uma evidência inquestionável de que eles não se interessavam pela religião em geral (…). Os Beats ganharam uma reputação similar de inimigos anti-religiosos de deus e do país, ou, na melhor das hipóteses, de diletantes, de apreciadores fúteis do modismo do Oriente exótico” (Prothero, 1995, p.6). p.46- “Como os Transcendentalistas, os Beats foram bem mais do que inovadores literários ou críticos sociais; eles também foram ávidos buscadores de visões místicas e de transcendência. Eles foram para a estrada porque não conseguiram encontrar Deus nas igrejas e sinagogas da América do pós-guerra.” (Prothero, 1995, p.19). p.47- Esta “nova consciência” ancorava-se em uma visão de mundo através da qual “eles viam os seres humanos como mergulhados em uma vasta rede de conexões com outros seres humanos, com os animais e com a própria vida” (Prothero, 1995, p.19). Tais aspectos permitiriam, mais uma vez, aproximá-los dos fundadores do Transcendentalismo: “como Emerson, os Beats almejavam entrar em contato com o sagrado em momentos de intuição indescritíveis e então transmitir em palavras ao menos algo do que haviam experimentado. Como Thoreau, insistiam sobre a santidade da vida quotidiana, a santidade do não-conformismo, e a assombrosa sacralidade da natureza” (Prothero, 1995, p.19). p.48- Nos termos de Prothero, esta se traduziu como “seus anseios românticos por vidas apartadas dos ritmos artificiais da vida, sua certeza sobre a correspondência entre o natural e o sobrenatural, sua percepção sobre o papel profético dos poetas, e seu desprezo por ‘consistências vãs’” (Prothero, 1995, p.7). p.49- “Convenci-me (…) de que revoluções culturais similares [à da Contracultura] ocorreram antes, e de que a visão de mundo adotada pelos contraculturalistas só poderia ser adequadamente descrita pelo adjetivo ‘romântica’. Não fui o único a sustentar esta opinião. A comparação com o movimento Romântico foi feita eventualmente tanto pelos advogados quanto pelos críticos desta derradeira explosão da ‘febre romântica’” (Prothero, 1995, p.3). p.49- Em Frank Musgrove a associação entre a Contracultura e o romantismo é formulada da seguinte forma: “O Romantismo do século XIX assemelhou-se surpreendentemente à Contracultura contemporânea em seu ataque explícito à tecnologia, ao trabalho, à poluição, às fronteiras, à autoridade, ao inautêntico, à racionalidade e à família.

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Ele teve o mesmo interesse pelos estados alterados de consciência, pelas drogas, pelas sensações e pela sensualidade” (Musgrove, 1974, p.65). p.51- Esta, tal como as produções românticas descritas por Zengotita, “sacrifica todas as posturas enrigecidas às irrupcões do gênio e ao espírito imanente; a ela pertencem o momento radiante, o toque numinoso” (Zengotita, 1989, p. 75). p.53- “boêmia e orientalista” de Esalem, fundada na na década de 1950 por Michael Murphy, um graduado de Stanford interessado em religiões orientais (Carozzi, 1998, p.4). p.54- (...) a participação em “uma multiplicidade de disciplinas, grupos e oficinas de treinamento que incluem grupos de encontro, treinamento da consciência gestáltica, análise transacional, sócio-percepção, terapia primal, bioenergética, massagens, psicossíntese, psicologia humanística, est, treinamento Arica, meditação trascendental, biofeedback, controle mental e ioga” (Carozzi, 1998, p.6). p.55 - “os usuários, mestres e prestadores das disciplinas do Movimento do Potencial Humano com centros herdeiros da teosofia, como Findhorn (…) e com canalizadores e praticantes de diversas teorias esotéricas e da parapsicologia neste país [Inglaterra], Estados Unidos e Austrália” (Carozzi, 1998, p.7-8). p.55-56- (...) tais como “a de que o ser humano possui uma chispa divina em seu interior, a de que todas as tradições místicas e religiosas conduzem a uma mesma verdade única, ainda que expressa de diferentes maneiras de acordo com as distintas épocas e culturas em que se originam, e a de que a crescente consciência da chispa divina interior do homem conduzirá a uma Nova Era para a humanidade” (Carozzi, 1998, p.8) p.57- “a centralidade de todos os usos que a nova religiosidade místico-esotérica faz da psicologia” (Champion, 1993, p.758) p.58- “A ampliação da consciência já não pretende apenas a superação dos condicionamentos sociais em busca da auto-realização e o desenvolvimento de potencialidades individuais, mas a descoberta de uma chispa divina no interior do homem que o une energeticamente a um todo divino que o inclui e supera. A consciência individual ampliada se torna consciência planetária e cósmica, outorgando à autonomia um novo significado. Ser socialmente autônomo agora é ser divino e estar ligado a uma totalidade divina. A incorporação também supõe a adição de um propósito milenarista à ampliação da consciência: a instauração de uma nova era para a humanidade” (Carozzi, 1998, p.11-12, grifos meus). p.63- “A história cultural é certamente a história da interação de processos de destradicionalização e tradicionalização, interagindo por outro lado, de várias maneiras, com processos relativos à desdiferenciação e à diferenciação” (Carozzi, 1998, p.9). p.65- “o termo secularismo, tal como usado na imprensa indiana e na prática política, não mais se refere a um sistema político que tenta distanciar-se dos negócios religiosos. Com o aumento da preeminência da ideologia nacionalista hindu, o secularismo passou a ser amplamente interpretado como a obrigação do estado de apoiar todas as religiões, com o apoio principal direcionando-se para o hinduísmo, religião de uma significativa maioria de indianos. Tal mudança de sentido relaciona-se ao sucesso do ativismo e às incansáveis campanhas de propaganda do movimento nacionalista hindu. Essas campanhas deturpam a interpretação do secularismo de Nehru e acusam o Congresso de ser ‘pseudo-secular’. (…) Os nacionalistas hindus argumentam que o estado indiano discrimina a maioria hindu ao mostrar-se indulgente com os grupos não hindus. Apresentado-se a si mesmos como defensores da democracia, eles sustentam que a discriminação do estado contra os hindus ameaça a democracia. Eles associam a democracia com a estabilidade da sociedade indiana, uma estabilidade fundada na espiritualidade ensinada pelos sábios hindus. Segundo os nacionalistas hindus, como o hinduísmo emana de valores espirituais, ele possui uma forma única de ser tolerante com outras religiões e é a única base possível de um secularismo autenticamente indiano. Tal secularismo nativo, que advoga o apoio do estado a todas as religiões, é apresentado como superior ao pseudo-secularismo nehruviano, importado do Ocidente, que advoga a estrita separação entre estado e religião. Em decorrência destas proposições relativas ao secularismo, à espiritualidade e ao hinduísmo, os nacionalistas hindus

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concluem que o estado hindu é necessariamente o melhor guardião de uma democracia secular indiana nativa” (McKean, 1996, p.5-6). p.65-66- “A interrelação entre as organizações religiosas hindus e a economia política da Índia são complexas e historicamente variáveis. Os benefícios ideológicos e materiais a serem ganhos através do apoio aos gurus e às organizações religiosas são maiores hoje do que o foram nas quatro primeiras décadas após a Independência. Inicialmente, através da interpretação que deram ao secularismo, as classes governantes indianas visaram legitimar seu poder em termos não-religiosos e com um mínimo de confiança no patrocínio das instituições religiosas. A antipatia de Nehru em relação às instituições e aos líderes religiosos fez parte por muitos anos da plataforma oficial do Partido do Congresso. Entretanto, não sendo nem ignorantes nem indiferentes à utilização política dos ideólogos religiosos com seguidores leais, houve e há agora cada vez mais políticos, burocratas e grupos profissionais e de negócios ansiosos para cultivar relações de trabalho com organizações lideradas por swamis e gurus” (McKean, 1996, p.5). p.67- “A primeira questão que se coloca para o hindu moderno é a de sua auto-imagem. Devido a uma postura infeliz, os hindus geralmente afirmam que a sua não é uma religião, mas antes um modo de vida e que os hindus não acreditam em conversão. Ambas estas premissas são falsas e indefensáveis. O hinduísmo é uma religião baseada nas iluminações dos rishis védicos, tal como expressas nos Vedas, nos Upanishades, na Bhagavad Gita e nos agamas shivaítas. Com sua ênfase no auto-conhecimento, a tradição hindu celebra a diversidade, mas a unidade subjacente a esta diversidade é visível para qualquer hindu ou forasteiro objetivo” (Kak, 1990, s/n). p.67- “A afirmação de que não desejam converter outros trai falta de sinceridade, senão irracionalidade (...) Esta colocação não é confirmada pela história do hinduísmo. De outro modo, como teria ele se espraiado da Palestina (lembrar dos mitanis do segundo milênio a.C.) ao Oriente e ao Sudeste da Ásia? Esta falsa interpretação foi respaldada pela ortodoxia da fraturada sociedade hindu do século XIX e levou a um distanciamento e a uma auto-absorção moral e eticamente erradas, além de ir contra sua própria tradição. O hinduísmo teve uma rica história de conversão através da persuasão, do debate e da shastrartha. O caminho do hinduísmo é diferente do caminho do cristianismo e do islã; não reconhecer isto é não ser confiável ” (Kak,1990, s/n). p. 67- “Também é comum hoje em dia para certos gurus hindus levar a inclusividade para além do domínio da razão e reivindicar que Jesus é um avatar. Como é possível reivindicar isto sem um conhecimento pessoal ou sem levar em conta a história é algo que ultrapassa a razão. Se a idéia é levar cristãos a se tornarem hindus por equívoco, isto deveria ser amplamente condenado. É apenas uma reprodução da maneira como muitos missionários cristãos se disfarçam de sannyasis nos ashrams da Índia.” (Kak 1996:s/n). Notas: Nota 20, p.30- A presença do proselitismo dentro das tradições hindus, em que pese esta auto-imagem de neutralidade religiosa, esteve presente na Índia pelo menos desde o final do séc. XIX, quando a introdução da prática do suddhi, ritual de purificação originariamente destinado aos brâmanes, passou a ser usada como meio de (re) conversão ao hinduísmo de cristãos e muçulmanos. No que diz respeito aos estrangeiros, a questão do proselitismo e da conversão ao hinduísmo, não se colocaria, ao menos teoricamente, por entrar em conflito com a própria concepção do que é ser hindu, algo que remete a um sistema não apenas religioso, mas socio-religioso, estando associado apenas a quem nasce na Índia. Assim, conforme explicação de Hulan e Kapani: “o que chamamos de hinduísmo (termo criado pelos ingleses por volta de 1830) não corresponde a um domínio separado da vida social, como é o caso da religião hoje no Ocidente. O hinduísmo é essencialmente e indissoluvelmente um sistema socio-religioso. O termo mantido do sânscrito (…) é dharma o qual, sem contradizer a idéia de religião, significa mais precisamente o fundamento cósmico e social, a norma reguladora da vida. Trata-se de uma lei inerente à natureza das coisas, inscrita ao mesmo tempo na sociedade, no fundo de cada um de nós. Colocar para um hindu a questão: “Qual é a sua religião?” significa portanto perguntar-lhe: ‘Qual é o seu way of life ?’ Mais exatamente, na verdade, é o termo composto varna-asrama-dharma que define o conteúdo da religião hindu, quer dizer, além da moral geral (sadharana-dharma), os deveres particulares que cabem a cada um em função

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de seu pertencimento a esta ou aquela classe social, em função da etapa ou estágio de vida em que se encontra e, bem entendido, de sua idade e seu sexo” (Hulan e Kapani, 1993, p.375). Contudo, no caso dos estrangeiros em busca de iniciação religiosa através das seitas hindus, a questão se coloca de uma outra maneira: “Um estrangeiro, nascido de pais hindus, não pode evidentemente entrar neste sistema sócio-religioso. Ele não pede isto, aliás. O que lhe interessa é o acesso aos ashrams, aos gurus. É ele próprio tornar-se um renunciante, um sannyasin, um guru. Aqui, o caminho está perfeitamente traçado: é o mesmo que seguem os hindus que renunciaram à vida familiar, com os direitos e deveres que ela implica, e tornaram-se ‘mortos sociais’, no sentido de Louis Dumont. Isto nos permite esclarecer a questão do proselitismo. No interior do sistema, ela nem chega a se colocar. Por outro lado, no quadro da renúncia, certos sadhus ou seus correspondentes ocidentais podem ter uma atividade missionária. É o caso da célebre Missão Ramakrishna, fundada por Vivekananda, de Maharishi Mahesh Yogi e de sua ‘meditacão transcendental’, de Sivananda, Yogananda e de vários outros gurus, autênticos ou não, de que se ouve falar no Ocidente” (Hulan, Kapani, 1993, p.387). Nota 35, p. 45- A visão que o establishment, por sua vez, tinha sobre eles, pode ser apreciada neste retrato dos Beats traçado pela revista Life: “A revista Life descreveu a recusa dos Beats em ’acentuar o positivo’ como uma tentativa de minar tudo o que havia de sagrado na América do Pós-Guerra – ’a mãe, o pai, a política, o casamento, a poupança, a religião organizada, a elegância literária, a lei, (…), a educação universitária, para não falar das lavadoras de louça automáticas (…) e da bomba atômica garantidora da paz” (Prothero, 1995, p.8). Nota 38, p.52- Segundo Allen Ginsberg, a herança da Beat Generation poderia ser resumida nos seguintes pontos: “Liberação espiritual; revolução sexual de liberação, isto é, liberação gay, catalizando a liberação negra, a liberação da mulher, a liberação dos pantera negras; liberação da Palavra da censura; desmistificação e/ou descriminalização de algumas leis contra a marijuana e outras drogas; expansão da consciência ecológica tal como enfatizada por Snider e McClure; oposição à máquina civilizatória militar-industrial; retorno à valorização da idiossincrasia contra a arregimentação de estado; respeito às terras e aos povos indígenas; consumo menos conspícuo; pensamento oriental (e meditação); não teísmo, (…) antifacismo cósmico; sinceridade/franqueza; fim do segredo e do medo paranóico da CIA, da KGB, dos segredos nucleares, por meio do segredo sexual, como em um continuum” (Ginsberg, 1982, p.50 apud Watson, 1995, p.304). Nota 39, p.53- Segundo Carozzi, Esalem constituiu uma experiência comunitária centrada em uma “combinação de práticas em que a autonomia individual se vê associada à atenção ao presente, à espiritualidade oriental, ao êxtase e às experiências limite, à ampliação da consciência, ao desenvolvimento da sensibilidade, ao movimento não dirigido, à atenção às sensações, ao contato corporal, à atualização de potencialidades, à harmonia com a natureza e à crença na energia universal” (1998, p.5-6). Capítulo 2: p. 83- “Dificilmente se poderia esperar que os sociólogos americanos levassem o misticismo a sério. Tais coisas já não existiam mais na esclarecida sociedade industrial moderna. (…) Se os estados de êxtase induzidos por drogas da Contracultura podem ter tido algum interesse como forma de desvio social, os pesquisadores sociais americanos simplesmente descartaram como impensável a possibilidade de que as experiências extáticas tivessem lugar na sociedade “careta” [“square” society no original]. Qual o interesse, portanto, de estudar algo que não existia?” (Greelay e McReady, 1974, p.304) p.83- E continuam comentando a posição dos psiquatras sobre o fenômeno místico: “Alguns psiquiatras se preocuparam com o fenômeno. Prince e Savage sugeriram que a experiência mística seria ’similar’ a uma regressão. Keneth Wapnick observou que o misticismo seria ’semelhante’ à esquizofrenia; e R. D. Laing parece ter acreditado que a experiência transcendental seria uma forma de esquizofrenia ou regressão neurótica” (Greelay e McReady, 1974, p. 304).

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p. 84- “O reflexo condicionado de muitos cientistas sociais quando alguém toca no assunto dos êxtases místicos ou os confronta com alguém que teve tal experiência é cair em interpretacões psicanalíticas. O extático é um tipo de pessoa perturbada que está desenvolvendo um problema de personalidade adquirido na infância. Isto resume a questão na maioria das vezes. Eles ‘sabem’ que o episódio extático é, de fato, algum tipo de interlúdio psicótico. Com esta premissa básica, é fácil provar que um dado interlúdio foi realmente psicótico já que todas as experiências místicas o são. Por quê então investigar tal fenômeno de comportamento como algo mais do que psicótico?” (Greelay e McReady, 1974, p.304).

p. 84-85- Segundo Reddy, “as emoções não podem ser vistas – como o têm sido no Ocidente – como um resíduo, como um domínio somático, anti-racional da vida consciente, cuja turbulência é uma ameaça constante à explicitação de intenções claras” (Reddy, 1997, p.331). p.85- “Outra característica da sociologia norte-americana da religião (…) foi seu enfoque quase exlusivo, até bem recentemente, sobre a religião oficial e suas expressões organizacionais. Até a década de 1960, a maioria dos estudos colocavam a ’religião’ como identificada às formas denominacionais cristãs. (…) Uma das principais mudanças da sociologia dos Estados Unidos nas duas últimas décadas foi uma grande e potencialmente criativa diversidade” (McGuire, 1993, p.128). p.85-86- “Quando a sociologia da religião atentou para a mente dos crentes ela enfatizou suas funções cognitivas, relegando o estudo das emoções aos psicólogos. Como resultado, nossa disciplina têm graves dificuldades para compreender e interpretar a auto-experiência dos indivíduos, a experiência intersubjetiva e a experiência religiosa fundamental” (McGuire, 1993, p.134). p.86-87- “que se tornaram campos válidos da pesquisa social científica no contexto pós-moderno. Sexualidade, identidade, concepção da pessoa e, finalmente, emotividade, tornaram-se assim problematizadas por causa do processo de individualização da cultura Ocidental, a um ponto em que elas só podem ser ‘capturadas’ socialmente, perdendo desta forma todo o fundamento para uma possível construção da teoria social ” (Longman, 1997, p.344). p.89-90- “Nossa disciplina precisa reconceituar a mente, o corpo e a sociedade, não como meramente conectados, mas como interpenetrando-se profundamente, misturados como um fenômeno quase unitário (ver McGuire, 1990). Vamos assumir que o corpo humano é um produto tanto biológico como cultural, físico e simbólico, sempre enquadrado por um determinado contexto social e ambiental no qual a mente-corpo é tanto um agente ativo quanto algo influenciado por cada momento social e por sua história cultural. Scheper-Hughes e Lock referiram-se a esta conceituação unificada como o ‘corpo consciente’ [mindful body no original] (…) (...) Uma compreensão sobre o ‘corpo consciente’ é um importante ponto de partida para a sociologia da religião, porque precisamos de um enfoque teórico sobre como a experiência espiritual é possível. Como esta experiência espiritual pode ser partilhada? Como um grupo religioso é capaz de gerar emoções compartilhadas? Como os corpos humanos concretos fazem parte da expressão e da experiência religiosa? Como a subjetividade de cada um se liga à sua atividade e autoridade (…)? Como a religião fala ao próprio ser da pessoa (e não apenas a seu sistema cognitivo)?” (McGuire, 1993, p. 135). p.90- E finaliza: “A abordagem fenomenológica de Berger e Luckmann (Berger, Peter e Luckman, Thomas.1966. The Social constructon of Reality: a Treatise in the Sociology of Knowledge, Garden City, NY: Dooubleday) foi uma das contribuições mais importantes para tal compreensão, mas suas teorias permaneceram predominantemente idealistas. Ao longo de seu trabalho, a materialidade é mediada por símbolos – linguagem símbolos rituais, idéias expressas. Implicitamente, tais teorias negam ou subordinam a materialidade fundamental da realidade das emoções do corpo humano” (McGuire, 1993, p. 135). p. 91- “nossa sociedade têm desconfiado dos meios de conhecimento racional não lineares, das formas de apreensão não cognitivas da realidade. Ao invés de olhar emoção e razão como mutuamente excludentes, deveríamos vê-las como aspectos mutuamente constitutivos da mente ” (McGuire, 1993, p.136).

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p.97- “a racionalização do êxtase apatético através da meditação e da contemplação, como na técnica ióguica da auto-concentração, uma vez desencadeada, desperta capacidades especiais e insuperáveis no tipo virtuoso, nos indianos conscienciosamente intelectualistas, por vários processos psíquicos do self, particularmente os estados de sentimento [feeling states no original]. O hábito de interessar as pessoas pelos processos e acontecimentos de suas vidas psíquicas, ao mesmo tempo em que o eu é transformado em observador desinteressado, é algo que se alcança pela técnica da ioga. Isto deve ter levado naturalmente a concepções do ’Eu’ como uma entidade que permanece exterior a todo processo espiritual de consciência, e, mesmo, exterior a todo repositório orgânico da consciência e à sua ‘estreiteza’” (Weber, 1967, p.171). p.101- e assim apoiar as teorias cognitivas mais recentes que apontaram para a necessidade de ficarmos mais “atentos à interdependência entre pensamento e sentimento assim como à natureza socialmente localizada da cognição” (Garro, 1997, p.341). p.102- As emoções deveriam ser olhadas, assim, como “o próprio locus da capacidade de absorver, rever ou rejeitar estruturas discursivas e culturais de todos os tipos” (Reddy, 1997, p.330), e, neste sentido, “a variação das repostas individuais (algumas adequando-se bem às expectativas, outras desviando-se completamente delas) provê um reservatório de possibilidades de mudança” (Reddy, 1997, p.334). p.106- “O garçom de bar representa o papel de garçom de bar; o bispo representa o papel de bispo. Através deste expediente, a pessoa toma distância em relação ao personagem que encarna; ela acede, assim, a uma secreta e exaltante consciência de si. Daí para a frente, ao exibir-se, ela se esconde; ao envolver-se, distancia-se. Esta representação de si é uma experiência de liberdade” (Gusdorf, 1967, p. 1158). Notas: Nota 12, p.104-105- Este trecho de Rawlinson nos permite entender de forma mais clara de que forma a ioga se relaciona à concepção de que existem diferentes patamares de funcionamento da consciência e de que é possível adquirir-se um conhecimento sobre isto: “Estou usando o termo ioga em um sentido amplo, que cobre todas aquelas tradições que sustentam que nossa experiência é primariamente condicionada pela falta de uma compreensão clara sobre a maneira pela qual a consciência opera. Isto significa que, se prestarmos atenção ao processo pelo qual nos tornamos conscientes, vamos descobrir, no próprio ato de prestar atenção, que não somos de todo normalmente conscientes. Minha tradução para isto é: localização da experiência é também sua transformação” (1981, p.247). Nota 14, p.109-110- Feuga e Michaël chamam atenção para este aspecto no seguinte trecho: “se não se possui as qualificações requeridas (a começar por uma coragem inquebrantável) e se não se é guiado por um mestre competente (e eles não abundam neste campo), mais vale abster-se destes métodos que, se mal aplicados, podem provocar no ’aprendiz de feiticeiro’ danos físicos e psíquicos irreversíveis. O que poderíamos denominar de ’patologia kundaliniana’, não apenas na Índia mas também nos países onde não se dispõe de mestres neste campo, nos dá razões de sobra para falar desta forma: neuroses, psicoses, fenômenos depressivos e histéricos, acidentes cardíacos, suicídios e mortes súbitas compõem alguns dos aspectos deste quadro, bem diferente em sua realidade das prescrições floridas da Nova Era” (1998:103). Capítulo 3: p.119-120- “Pessoas atores isolados, não são pensados no sul da Ásia como sendo ‘individuais’, isto é, unidades limitadas, indivisíveis, tal como ocorre nas teorias psicológicas e sociais do Ocidente, assim como no senso comum. Ao invés disso, parece que as pessoas são pensadas geralmente no Sul da Ásia como ‘dividuais’ ou divisíveis. Para existir, as pessoas dividuais absorvem influências materiais heterogêneas. Elas também precisam descartar de si estas mesmas partículas de suas substâncias codificadas essências, resíduos ou outras influências ativas que passarão então a poder reproduzir nos outros algo da natureza das pessoas nas quais haviam se originado” (Marriot, 1976, p.111 apud Bharati, 1985, p. 220).

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p.130- “Mas ignora-se que a originalidade do cristianismo consistiu justamente em um notável desenvolvimento do espírito individualista? Enquanto a religião da cidade se compunha inteiramente de práticas materiais das quais o espírito estava ausente, o cristianismo mostrou na fé interior, na convicção pessoal do indivíduo, a condição essencial da piedade. Em primeiro lugar, ele ensinou que o valor moral dos atos deve ser medido a partir de sua intenção, coisa íntima por excelência, que se subtrai por natureza a todos os julgamentos externos e que apenas a própria pessoa pode apreciar com competência. O próprio centro da vida moral foi transportado assim de fora para dentro e o indivíduo erigido em juiz soberano de sua própria conduta, sem ter outras contas a prestar a não ser a si mesmo e a seu Deus” (Durkheim, 1970, p.272-3, apud Duarte e Giumbelli, 1995, p.85, grifos meus). p.131- “É impossível desconsiderar uma das maiores descobertas da Índia: a da consciência como testemunha, a da consciência livre de suas estruturas psicológicas e de seus condicionamentos temporais, a consciência do homem ‘liberado’ de si, isto é, que conseguiu emancipar a si mesmo da temporalidade e assim conhecer a verdade. Inexprimível liberdade.” (Eliade, 1990, p.xx). p.141- Assim, “quem pretendesse ‘estudar’ a ioga como uma ciência objetiva, ‘compreendê-la’ sem vivê-la, chegaria rapidamente a um impasse: segundo a expressão indiana, só se pode conhecer um fruto ao comê-lo” (Feuga e Michaël, 1998, p.119). p.154- “(…) quando as religiões orientais começaram a atrair os ocidentais no final do século XIX e início do século XX, isto se deu em parte porque nem o hinduísmo nem o budismo, tal como eram conhecidos no Ocidente, exigiam a rejeição da ciência e dos padrões de rigor filosófico e intelectual, nem enfatizavam a divisão entre o domínio do espírito e o domínio do profano. A idéia de que ‘Tudo é Brahman’ ou o Todo do vazio budista habilitavam as pessoas do Ocidente a incluir aspectos da vida humana que o cristianismo havia separado ou condenado de um modo ou de outro. Em resumo, as religiões orientais aportavam uma espiritualidade sem moralismo. Elas propunham não uma rejeição da ciência ou do intelecto mas explicações metafísicas alternativas que conjugavam-se em princípio com a ciência, sem dispensar a necessidade de pensar, avaliar e compreender por si mesmos o mundo em que se vivia” (Needleman, 1995, p. xxvi-xxvii). p. 155- “Significativamente, a maioria dos artigos da série ‘What Vedanta Means to me’ enfatizavam apelos racionais John Yale foi talvez quem melhor expressou esta atitude: ’O que venho dizendo é que o Vedanta interessou-me por ser racionalmente atraente. Ele permite às pessoas serem cosmopolitas, permissivas, amplas… Seus princípios adequam-se à razão e às descobertas da ciência moderna” (Jackson, 1994, p.101-102). p.159- “Na verdade, vários fatores não intelectuais, particularmente a personalidade do swami, também parecem ter desempenhado um papel significativo na atração exercida pelo hinduísmo” (Jackson, 1994, p.102). Assim, por exemplo, Christopher Isherwood confessa que “no que me diz respeito, a relação guru-discípulo está no centro de tudo que a religião significa para mim” e, segundo Jackson, “entrevistas com inúmeros devotos confirmam a validade do depoimento de Isherwood. A devoção a um determinado swami é o fato central na vida de muitos seguidores” (Jackson, 1994, p.102). p.160- “Presenciei mudanças de personalidade mais drásticas e positivas através da prática da meditação ióguica do que através da psicanálise”. Jackson observa que este depoimento possui um grau bastante acentuado de autoridade, uma vez que esta pessoa havia se submetido a tratamento psiquiátrico durante longo tempo. Segundo ele, “tais testemunhos não são relativos apenas ao Vedanta, logicamente; eles sugerem que a aceitação do hinduísmo leva alguns seguidores a um permanente sentido de segurança pessoal e felicidade” (Jackson,, 1994, p. 101). p.165- “Não faça nada. Não use métodos ou técnicas. Apenas sente-se e medite. Como a ser atingido pela graça do guru? Bem, a graça do guru atinge os devotos como uma forte infecção. Ou ele os toca em suas faces e olhos, ou lhes dá um mantra, ou alcança seus óculos e os perscruta, fazendo-os sentirem-se incomodados, ou apenas diz-lhes ‘Vá para dentro e medite’, e isto se dá. Eles começam a flutuar, transportados para um outro mundo, de luzes divinas de diferentes cores; eles vêem a Pérola Azul, com sua deslumbrante luz azul, ou começam a ver um filme mental ou diferentes cenas de acontecimentos passados e futuros, ou a ouvir melodias celestiais, ou a ter a visões de seres divinos. Algumas vezes o corpo começa a fazer fortes movimentos automaticamente” (Mangalwadi, 1992, p.127).

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p.176- “Um professor, de forma alguma, é uma substituição de Deus. Descobri que a pessoa com quem estudei [Swami Muktananda] era tão obcecada com a idéia de ser Deus, ou mesmo mais do que Deus, que eu não poderia respeitar nem sustentar nossa relação. Todo aquele que recorre à tensão para ensinar é um ser humano inseguro. Um professor deveria dar amor e libertar as pessoas da tensão para que elas pudessem se abrir para Deus” (Rawlinson, 1998, p.498). p.176- “Como podemos determinar se as experiências místicas de Muktananda e seus discípulos são divinas ou puramente psicológicas ou demoníacas?” E prossegue: “Seriam suas experiências realmente demoníacas, inspiradas pelos espíritos do mal que ele via durante suas experiências? Ou elas eram apenas experiências mentais anormais, que afloravam pelo excesso de meditação, austeridades, contenções e desejos ilusórios?” (Mangalwadi, 1992, p.128). Notas: Nota 31, p.157- Neste sentido, vale registar que a aceitação da filosofia do Vedanta (no caso da Missão Ramakrishna nos EUA) contribuiu, surpreendentemente, para uma maior aceitação do cristianismo entre pessoas de origem cristã que haviam se decepcionado em algum momento de suas vidas com esta fé, conforme se vê neste comentário de Jackson: “Curiosamente, a aceitação do Vedanta parece ter contribuído frequentemente para uma reconciliação com o Cristianismo ou, pelo menos, para uma visão mais simpática aos ideais cristãos. Um número surpreendente de contribuintes do ‘What Vedanta Means to Me’ confessaram que, após anos de rejeição e alienação, o contato com o hinduísmo havia renovado seu respeito pelo cristianismo. O dramaturgo John van Druten notou que, após sua adoção do Vedanta, ele pode ‘retornar’ ao cristianismo, descobrindo então ‘muito mais’ do que havia suspeitado até então. Ruth Folling percebeu que aceitar o Vedanta não significava ‘dar as costas’ ao cristianismo mas realizar uma ‘excitante descoberta de suas virtudes’. Ela confessou que ‘ler os ensinamentos da Bíblia no contexto do Vedanta’ tornou-os mais significativos. Sofrendo de um ‘bloqueio semântico’ contra as palavras associadas à sua educacão cristã (‘Deus, salvador, alma, céu, redenção, amor, salvação, etc. etc.’), Christopher Isherwood também alcançou uma nova compreensão como resultado de seu estudo do Vedanta. Ele comentou que o sânscrito forneceu-lhe um vocabulário ‘novo em folha’ que permitiu-lhe uma aproximação simpática ao misticismo e o reconhecimento de que sua hostilidade em relação ao cristianismo era irracional. Tratando-se de um escritor, parece siginificativo que exatamente as palavras utilizadas para falar de Deus tenham desempenhado um papel crucial em seu retorno à crença religiosa” (Jackson, 1994, p.101).