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    A TERRA UM N NA SOCIEDADE BRASILEIRA ... TAMBM NASCIDADES1

    Erminia Maricato2

    Dedico este texto a Joo Pedro Stedile, processado a pedido do presidente da repblica Fernando HenriqueCardoso, por ter incentivado a ocupao de imveis urbanos ociosos. (FSP 27/07/97)

    A invaso de terras urbanas no Brasil parte intrnseca do processo de urbanizao. Ela

    gigantesca, como pretendemos mostrar aqui, e no , fundamentalmente, fruto da ao da

    esquerda e nem de movimentos sociais que pretendem confrontar a lei. Ela estrutural e

    institucionalizada pelo mercado imobilirio excludente e pela ausncia de polticas sociais. No

    entanto, a dimenso e os fatos so dissimulados sob notvel ardil ideolgico. Neste texto vamos

    abordar algumas caractersticas do processo de urbanizao brasileiro o notvel crescimento

    de favelas nas duas ltimas dcadas -, avaliar suas conseqncias scio ambientais, entre as

    quais est a exploso da violncia urbana. Em seguida, procuraremos entender porque fatos toevidentes so ignorados pela sociedade, o que possibilita atribuir s lideranas populares do

    campo democrtico a responsabilidade por aquilo que resultado de um processo alimentador

    da desigualdade social e da concentrao de terra, renda e poder.

    Em 20/7/97, o jornalista Elio Gaspari divulgou em sua coluna, no jornal Folhade So Paulo, a notcia de que o Ministrio Pblico do Rio de Janeiro processaria JooPedro Stedeli, liderana do MST Movimento dos Sem Terra, a pedido do presidenteFernando Henrique Cardozo. O motivo estaria na frase que Stedeli pronunciou emmaio: Ocupem os terrenos baldios pois l esto s para especulao imobiliria. Foi

    com a expresso baderna, que o presidente se referiu a incidentes ocorridos no ms demaio de 1997, durante ocupaes de terras urbanas e imveis vazios em So Paulo,associando o fato s aes do MST e frase de Stedeli. Em oposio referidabaderna, o presidente afirmou que era preciso cumprir a lei.

    Faz parte dessa mesma conjuntura o editorial do jornal de maior circulao dopas, que atribui ao MST- Movimento dos Sem Terra, a cultura da ilegalidade. Nofoi a primeira vez que o veculo de imprensa defende a posio (esta no h comodiscordar) de que o convvio social exige normas e regras bsicas. Ou seja, tudo se

    passa como se o Estado e a mdia, so defensores da lei e alguns lderes do MST, bemcomo o prprio movimento, seus transgressores.

    A invaso de terras parte integrante do processo de urbanizao no pas.Gilberto Freire se refere a ela como prtica de 100 anos atrs. A novidade recente, quevem dos anos 80, que as invases comeam a se transformar: de ocupaes gradativas,resultado de aes individuais familiares, para ganhar um sentido massivo e organizado,

    1 Tomamos emprestada a expresso de Jos de Souza Martins, A terra um n na sociedade brasileira. O autor serefere terra rural e nossa anlise se aplica terra urbana.Este texto contm adeses de outro artigo de minha autoria, que foi publicados no livro Metrpole na periferia docapitalismo, citado na bibliografia.2 Profa. Titular da USP, secretria de Habitao e Desenvolvimento Urbano do Municpio de So Paulo (1989 - 1992) eSecretria Executiva do MCidades (2003 - 2005). Participou da criao do MCidades (2003) e coordenou a Poltica

    Nacional de Desenvolvimento Urbano (at 2005).

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    a partir da crise econmica que se inicia em 1979. Vrias cidades brasileirasapresentam, a partir dessa data a ocorrncia de ocupaes coletivas e organizadas deterra, mais raras nas dcadas anteriores. Isto no significa que as ocupaes gradativas eexpontneas deixaram de existir. Ao contrrio, continuaram a se fazer e a constituir amaior causa da origem da formao de favelas, mas o fato que passaram, a partir dessadata, a conviver com a nova prtica citada.

    Vamos partir da condio jurdica totalmente ilegal de propriedade do lote paradefinir o que chamamos aqui de favela. Outras denominaes so utilizadas nasdiversas regies do Brasil: reas de posse em Goinia, vilas em Porto Alegre, paranos determos em apenas duas. Os movimentos sociais que lutam pela moradia rejeitamo termo invaso, que consideram ofensivo e adotam ocupao. Para o que nosinteressa aqui, a caracterizao jurdica de propriedade que conta, na definio, j que,somente ela, assegura o direito de permanncia no local.

    Estamos fazendo ainda uma simplificao em relao aos graus deilegalidade ou de irregularidade decorrentes da legislao urbanstica, naapropriao do solo urbano.Se considerarmos que toda a populao moradora de favelas invadiu terras para

    morar, estaremos nos referindo a mais de 20% da populao de Rio de Janeiro,Belo Horizonte e Porto Alegre (LABHAB, 1999), 28% da populao deFortaleza (LABHAB, 1999) e 33% da populao de Salvador (SOUZA, 1990).

    Nas cidades do Norte e Centro Oeste (Belm, Manaus, Porto Velho, Rio Branco,Cuiab/Vrzea Grande) essa relao pode se revelar mais grave. A cidade doRecife, segundo o prprio IBGE, a populao moradora de favelas chega a 40%.Os dados mostram que a invaso de terras quase mais regra do que exceo nasgrandes cidades.

    Se somarmos os moradores de favelas aos moradores de loteamentosilegais temos quase metade da populao dos municpios do Rio de Janeiro e deSo Paulo. Estudo recm terminado sobre o mercado residencial na cidade deSo Paulo mostrou que nos ltimos 15 anos, a oferta de lotes ilegais suplantou asoma de todas as formas de unidades habitacionais oferecidas pelo mercado

    privado legal.3

    No h nmeros gerais, confiveis, sobre a ocorrncia de favelas em todo oBrasil. Por falhas metodolgicas ou ainda por uma dificuldade obvia de conhecer atitularidade da terra sobre a qual as favelas se instalam, o IBGE apresenta dados

    bastante subdimensionados. A busca de nmeros mais rigorosos nos conduz a algunsmunicpios, teses acadmicas ou organismos estaduais que entretanto fornecem dadoslocalizados.

    O municpio de So Paulo tinha perto de 1% de sua populao vivendo em

    favelas no incio dos anos 70 e tem quase 20% no incio dos anos 90.(SEHAB/PMSP1973- FIPE USP, 1993). Portanto, entre 1973 e 1993, a populao moradora de favelascresceu 17,80% ao ano.

    Segundo dados do IBGE (subdimensionados, como j foi destacado), o Brasiltinha 1,89 da populao vivendo em favelas em 1980 e 3,28% em 1991. A tendncia degrande aumento foi captada, embora os nmeros absolutos no sejam corretos.

    A falta de dados, que mostra o desconhecimento sobre o tema, j , por s,reveladora.

    3 Ver a respeito o trabalhoA legislao, o mercado e o acesso habitao em So Paulo, citado na bibliografia.

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    Esta gigantesca ilegalidade no fruto da ao de lideranas subversivas quequerem afrontar a lei. Ela resultado de um processo de urbanizao que segrega eexclui. Apesar de o processo de urbanizao da populao brasileira ter se dado,

    praticamente, no sculo XX, ele conserva muitas das razes da sociedade patrimonialistae clientelista prprias do Brasil pr-republicano. As resistncias que, durante dcadas,

    buscaram contrariar a abolio do trabalho escravo marcaram o surgimento do trabalho

    livre. A cidade , em grande parte, reproduo da fora de trabalho. Desde sempre, essareproduo, entre ns, no se deu, totalmente pelas vias formais e sim pelos expedientesde subsistncia, que vigem at pleno final do sculo XX.

    Algumas das principais caractersticas desse processo de urbanizao so asseguintes:

    1) Industrializao com baixos salrios o custo de reproduo da fora detrabalho no inclui o custo da mercadoria habitao, fixado pelo mercado privado. Emoutras palavras, o operrio da indstria brasileira, mesmo muitos daqueles regularmenteempregados pela indstria moderna fordista (indstria automobilstica) no ganha osuficiente para pagar o preo da moradia fixado pelo chamado mercado formal.

    No Brasil, onde jamais o salrio foi regulado pelo preo da moradia, mesmo noperodo desenvolvimentista, a favela ou o lote ilegal combinado autoconstruo foramparte integrante do crescimento urbano. O consumo da mercadoria habitao se deu,portanto, em grande parte, fora do mercado marcado pelas relaes capitalistas deproduo.

    A aplicao dos vultosos investimentos do sistema SFH/BNH, ao longo de 22anos, a partir de 1964 at a extino do sistema, no s no permitiram quebrar com adinmica da ocupao ilegal de terras urbanas, mas ao contrrio, aprofundou adualidade entre mercado e excludos, como atestam inmeros estudos.(Maricato, 1995)

    Nos anos 90, o financiamento habitacional oferecido pelo mercado privadolegal, ou seja, pelos bancos, no atingem aqueles que ganham menos de 10 salriosmnimos, de modo geral. Algumas cooperativas associativas como o caso daCooperativa do Sindicato dos Bancrios, em So Paulo, chegam com seus produtos faixa mnima de 8 salrios mnimos (1999). Essa, entretanto no a regra. Para dar umaidia de grandeza, na regio metropolitana de So Paulo, apenas 40% das famlias,aproximadamente, tem renda de dez salrios mnimos para cima. Ou seja, quase 60% da

    populao da metrpole paulistana est excludo do mercado legal privado de moradia.Para essa maioria da populao que se reproduzem as formas de proviso habitacionalcomo os cortios de aluguis, as favelas e os loteamentos ilegais j que a promoo

    pblica no chega a impactar o mercado devido baixa oferta de moradias resultantedas polticas sociais. (CASTRO e SILVA, 1997)

    2) As gestes locais (prefeituras) tem uma tradio de investimentoregressivo. As obras de infra-estrutura urbana alimentam a especulao fundiria e noa democratizao do acesso terra para moradia. Proprietrios de terra e capitalistas darea de promoo imobiliria so um grupo real de poder e de definio das realizaesoramentrias municipais. A valorizao das propriedades fundirias ou imobilirias omotor que move e orienta a localizao dos investimentos pblicos especialmente narea dos transportes. H uma simbiose entre a abertura de grandes vias e a criao deoportunidades para o investimento imobilirio. Trata-se de obras que so maisimobilirias que virias, no dizer do urbanista Candido Malta Campos Filho, j que a

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    lgica do seu traado no est apenas, e s vezes, nem principalmente, na necessidadede melhorar os transportes mas na dinmica do mercado imobilirio de alta renda.

    Mesmo uma anlise superficial permitir identificar essa dinmica presente naconstruo das novas centralidades em cidades como Rio de Janeiro (Barra da Tijuca) eSo Paulo (Av. Berrini Av. guas Espraiadas). Maria Brando mostrou como aextenso do sistema virio de Salvador mudou o mercado fundirio e, com a ajuda do

    Sistema Financeiro da Habitao, nos anos 70, reorientando o crescimento da cidade e aapropriao do ambiente construdo. A nova centralidade de Fortaleza avana nadireo do Beach Park e at mesmo a cidade de So Lus, que apresenta alguns dos

    piores indicadores sociais do pas, ganha destaque o investimento estadual virio /imobilirio, viabilizando a explorao de glebas litorneas.

    A gesto de Paulo Salim Maluf na prefeitura de So Paulo foi exemplar nessesentido. A maior parte das mega-obras destinadas a ampliar o espao de circulao deveculos concentraram-se especialmente na regio sudoeste do municpio de So Paulo.Essa regio forma uma mancha contnua de moradores de alta renda. Fora dela apenasos distritos de Santana e Tatuap apresentam poder aquisitivo relativamente alto. Em 11obras virias a prefeitura gastou (ou formou como dvida) a fantstica quantia de

    aproximadamente R$ 7 bilhes.Mora no municpio de So Paulo aproximadamente 6% da populao do pas e

    perto de 24% de todos os chefes de famlia que ganham mais de 20 s.m. (IBGE). Seconsiderarmos a acentuada concentrao de renda territorial, no ser exagerado dizerque no sudoeste da cidade de So Paulo, mora quase dentre os mais ricos do Brasil.Pois exatamente l que se concentra a maior parte dos investimentos.

    No se trata apenas, simplesmente, de perseguir a melhoria dos bairros demelhor renda, mas, principalmente, de investir segundo a lgica da gerao e captaodas rendas fundiria e imobiliria que tem como uma de suas consequncias o aumentodos preos de terrenos e imveis. A escassez de moradias e a segregao territorial so

    produtos de um mercado que, entre outras coisas, vende o cenrio como signo dedistino.

    Ao invs de priorizar o carter pblico e social dos investimentos municipais emuma cidade com gigantescas carncias, o governo municipal o fez de acordo cominteresses privados, em especial de empreiteiras de construo pesada e agentes domercado imobilirio. O espao privilegiado do mercado imobilirio, para as prxima ou

    para as prximas duas dcadas, na cidade de So Paulo o entorno do rio Pinheiros,onde se concentram pesados investimentos pblicos e privados. A se concentramtambm a sede das grandes multinacionais ou empresas nacionais como o caso damega sede da Rede Globo de Comunicao. A rea apresenta uma das maioresconcentraes de heliportos, do mundo, j que o deficiente trfego virio da cidade de

    So Paulo, aps todas as megaobras feitas, no condiz com a eficincia que se exige danova centralidade, tpica da chamada globalizao.Parte dos projetos habitacionais do, denominado Programa Cingapura, da

    prefeitura de So Paulo, foi localizada no entorno do Rio Pinheiros eliminando aimagem das favelas que desvalorizavam a paisagem ou o preo dos imveis com sua

    presena. Outra parte das favelas, em especial no final da avenida guas Espraiadasforam removidas. (FIX, 1996)

    3)Legislao ambgua ou aplicao arbitrria da lei. A notvel desigualdadeurbanstica, no Brasil, uma construo que tem na aplicao arbitrria da lei, alem daconcentrao da infra-estrutura, sua argamassa fundamental.

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    Como parte das regras do jogo, a ocupao de terras urbanas tem sido tolerada.O Estado no tem exercido, como manda a lei, o poder de polcia. A realidade urbana

    prova insofismvel disso. Impossvel; admitir o contrrio pois se essa gigantescaocupao de terras no fosse tolerada e a populao pobre ficasse sem alternativanenhuma, teramos uma situao de guerra civil, considerando os nmeros envolvidos.Para dar uma ordem de grandeza, estamos nos referindo a aproximadamente dois

    milhes de pessoas que moram em favelas, apenas no municpio de So Paulo.No em qualquer localizao, entretanto, que a invaso de terras urbanas tolerada. Nas reas valorizadas pelo mercado, a lei se aplica. Ao contrrio da opiniocorrente, a zona sul carioca e o sudoeste paulistano, concentraes de moradias de altarenda, apresentam menor ocorrncia de ncleos de favelas como mostram oslevantamentos cartogrficos da prefeitura do Rio de Janeiro para esta cidade e doLABHAB para So Paulo. (LABHAB,1999). No a norma jurdica mas a lei demercado que se impe demostrando que, nas reas desvalorizadas ou inviveis para omercado (beira de crregos, reas de proteo ambiental, por exemplo), a lei pode sertransgredida. O direito invaso at admitido mas no o direito cidade.

    Outro dos abundantes exemplos da aplicao arbitrria da lei ou sua ignorncia,

    est na gesto dos impostos e taxas que poderiam contribuir para deprimir o preo daterra, a partir da captao pelo poder pblico da valorizao imobiliria decorrente deinvestimentos pblicos ou privados (de origem coletiva). Dificilmente esses impostos etaxas, cansativamente discutidos em encontros profissionais e acadmicos, previstos emnumerosas leis urbansticas, so aplicados. O IPTU (Imposto sobre a PropriedadeTerritorial Urbana) progressivo, previsto na Constituio Federal de 1988 (art. 182),instrumento adequado realizao da justia urbana tem sido alvo de derrotas jurdicasdevido sua falta de regulamentao. Esse e outros instrumentos previstos naConstituio de 1988, permanecem sem regulamentao, aps dez anos de suaaprovao. A aplicao do IPTU poderia, dependendo de seu formato, significar umforte impacto no preo e na reteno de terras urbanas. Mas como tradio no Brasil,imposto sobre a propriedade dificilmente aplicado.A relao entre terra e poder semantm estreita.4

    A lei se aplica conforme as circunstncias numa sociedade marcada pelasrelaes de favor e privilgios.

    Nos pases capitalistas centrais, especialmente no perodo fordista, uma forterelao regulou salrio e preo da moradia. Uma reforma urbana submeteu a terra suafuno social e articulou-a ao sistema financeiro. Investimentos significativos foramfeitos na expanso da infra-estrutura urbana criando uma situao de equalizao deoportunidades frente a alguns indicadores de qualidade de vida urbana (transporte,saneamento, equipamentos sociais de sade e educao, etc). A reestruturao produtiva

    que teve incio nos anos 70, acarretou a diminuio dos subsdios, fortalecendo o papeldo mercado, como todos sabemos, mas ela impacta uma base de pleno emprego e deobservncia do direito moradia.

    4 Robert Smith descreve as contendas entre liberais e conservadores na discusso sobre a lei de terras entre 1822 e1851, no Brasil do primeiro imprio. Os latifundirios queriam ver regularizadas, pela nova lei, suas terras mas seopunham ao pagamento de impostos sobre a mesma. Lgia Osorio da Silva mostra toda a dificuldade na aplicao daLei de Terras (1850), criada pela dificuldade de demarcao das mesmas. Diversas comisses e organismos formadoscom essa finalidade, diversos decretos e medidas mostraram-se totalmente incuos, durante as dcadas que se seguiram promulgao da lei. Nesse perodo, o latifndio e o poder dos proprietrios de terra se afirmam definitivamente, contraa proposta da colonizao branca sonhada por Jos Bonifcio. Ver bibliografia.

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    Nos pases perifricos ou semiperifricos, para usar o conceito de Arrigui, areestruturao produtiva impacta uma base scio- econmica historicamenteexcludente.5O mercado restrito e as polticas sociais nunca tiveram alcance extensivo,assim como a estrutura de emprego tambm nunca foi extensiva. interessante notarque o mercado habitacional brasileiro quando mais cresceu, impulsionado pelo sistemaSFH/BNH, esteve longe de constituir um mercado capitalista concorrencial. Ele foi

    marcado por forte participao estatal. Inmeros estudos mostram como o mercadoprivado se apropriou da maior parcela do subsdio pblico habitacional favorecendo asclasses mdias urbanas e, at mesmo, participando de sua consolidao, a qual cumpriu

    papel fundamental como apoio poltico ao regime militar. (MARICATO, 1987).CONSEQUENCIAS DA EXCLUSO TERRITORIAL

    Dentre as consequncias do processo anteriormente descrito, interessa destacarduas delas, que esto entre as principais: a) a predao ambiental que promovida poressa dinmica de excluso habitacional e assentamentos expontneos; b) a escalada daviolncia, que pode ser medida pelo nmero de homicdios, e que se mostra mais

    intensa nas reas marcadas pela pobreza homognea, nas grandes cidades.

    So Paulo apresenta um fenmeno comum em todas as grandes cidadesbrasileiras: a ocupao de reas de proteo ambiental pela moradia pobre ocasionandosua depredao. As APMs- reas de Proteo dos Mananciais, ao sul da regiometropolitana, onde esto localizadas as represas Billings e Guarapiranga, protegidas

    por legislao estadual, municipal (e at federal, em determinadas partes florestadas dasbacias), so as que apresentaram um dos maiores ndices de ocupao durante os anos80. (Maricato, 1997) .

    H uma correspondncia direta entre a rede hdrica e a localizao das favelas noambiente urbano (LABHAB,1999). O confinamento dos crregos devido ocupao desuas margens promove uma sequncia de graves problemas: entupimentos constantesdos crregos com lixo, dificuldade de acesso de mquinas e caminhes para a necessrialimpeza, enchentes decorrentes dos entupimentos e finalmente a disseminao daleptospirose e outras molstias, devido s enchentes que transportam para o interior dasfavelas, material contaminado pela urina dos ratos e esgoto.

    As reas ambientalmente frgeis beira de crregos, rios e reservatrios,encostas ngremes, mangues, reas alagveis, fundos de vale - , que, por essa condio,merecem legislao especfica e no interessam ao mercado legal, so as que sobram

    para a moradia de grande parte da populao. As consequncias so muitas: poluiodos recursos hdricos e dos mananciais, banalizao de mortes por desmoramentos,

    enchentes, epidemias, etc. frequente esse conflito tomar a seguinte forma: os moradores j instaladosnessas reas, morando em pequenas casas onde investiram suas parcas economiasenquanto eram ignorados pelos poderes pblicos, lutam contra um processo judicial

    para retir-los do local. Nesse caso eles so vistos como inimigos da qualidade de vida edo meio ambiente. Mas esta no a situao mais corrente. Na maior parte das vezes aocupao se consolida sem a devida regularizao.

    Essa dinmica cada vez mais insustentvel devido ao nvel decomprometimento ambiental urbano, mas ela cada vez mais acentuada a partir dos

    5 Ver na bibliografia Arrighi., 1998, p.143.

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    anos 50, pelo processo de urbanizao intenso, acompanhado da falta de alternativashabitacionais.

    Alem da predao do ambiente construdo, outra caracterstica dos bairros demoradia pobre so os altos ndices de violncia, medido pelo nmero de homicdios.

    Estes se referem especialmente aos jovens e entre estes, aos pardos e negros.6

    Diferentemente do conceito formado na pinio pblica, no nos bairros de mais altarenda que a violncia mostra sua face mais cruel. Al ganha mais importncia os crimescontra o patrimnio (roubos de carros especialmente). A frequente morte de jovens nasruas pode ser constatada exatamente em bairros que apresentam os mais baixos nveisde renda e escolaridade. No por coincidncia, esses bairros constituem regiesmarcadas pela ilegalidade (na ocupao do solo e na resoluo de conflitos) e pela

    precariedade em relao aos servios pblicos e privados. Em So Paulo podemos citaros seguintes bairros como campees da violncia: Jardim ngela, Paranapanema,Capo Redondo, Jardim So Luiz, Parque Santo Antonio e Graja na Zona Sul; VilaBrasilandia e Cachoeirinha na Zona Norte; Itaim Paulista, So Miguel, Guaianazes, So

    Mateus e Lageado, na Zona Leste. (Maricato, 1996).Diante da dimenso que est assumindo a no cidade, ou a cidade dos

    excludos ou favelados, uma pergunta se impe: porque a sociedade brasileira no temconscincia dessa situao? Quais so os expedientes que permitem o ocultamento deocorrncia to grande e palpvel? Como algo to visvel permanece quase invisvel?Ou, pelo menos, como que as dimenses desses fatos podem ser formalmenteignoradas pelo judicirio, pelo legislativo, pelo executivo, pelos tcnicos urbanistas, porgrande parte das universidades, que insistem numa representao que no corresponde cidade real?

    A tenso existente entre a cidade formal e a cidade ilegal dissimulada.Tradicionalmente os investimentos pblicos, em especial as obras do sistema virio,destinadas circulao de automveis, reivindicadas por empreiteiras e pela classemedia, esto concentradas nas reas de primeiro mundo. A legislao urbanstica a observada (flexibilizada pela pequena corrupo). Os servios de manuteno dasreas pblicas, da pavimentao, da iluminao e do paisagismo, a so eficazes.Embora os equipamentos sociais se concentram nos bairros de baixa renda, suamanuteno sofrvel. A gesto urbana e os investimentos pblicos aprofundam aconcentrao de renda e a desigualdade. Mas a representao da cidade umaardilosa construo ideolgica que torna a condio de cidadania um privilgio e noum direito universal: parte da cidade, toma o lugar do todo. A cidade da elite representa,

    e encobre, a cidade real. Essa representao, entretanto no tem a funo apenas deencobrir privilgios mas tem, principalmente, um papel econmico ligado gerao ecaptao da renda imobiliria.

    A REPRESENTAO DA CIDADE: CONSTRUO DA FICO

    evidente que a publicidade insistente e a mdia, de um modo geral, tm umpapel especial na dissimulao da realidade do ambiente construdo e na construo dasua representao, destacando os espaos de distino. evidente tambm que a6 Ver a respeito as pesquisas realizadas no NEV/USP Ncleo de Estudos da Violncia da USP,1999.

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    representao ideolgica um instrumento de poder - dar aparncia de natural egeral a um ponto de vista parcial, que nas cidades est associado aos expedientes devalorizao imobiliria. A representao da cidade encobre a realidade cientfica.

    Uma intensa campanha publicitria leva uma fico populao: o que se fazem territrio restrito e limitado ganha foros de universal. Os investimentos na periferiano contam para a dinmica do poder poltico, como os prprios excludos no contam

    para o mercado. E o que mais trgico, a priorizao das polticas sociais,frequentemente no contam para os prprios excludos cujas referencias so acentralidade hegemnica.

    Fazendo uma pesquisa na imprensa de So Paulo, Flavio Villaa constatou que70% das notcias se referiam ao quadrante sudoeste da cidade de So Paulo. Quando anotcia se dava fora desa mancha, era acompanhada de um qualificativo: a avenida dazona leste, acidente na zona norte. Ou seja, a regio que concentra a populao de altarenda tomada como a representao da cidade. A parte tomada pelo todo. Amoram os chamados formadores de opinio (VILLAA, 1999).

    A manipulao das informaes, na construo da fico, atribuda genialidade de alguns tcnicos de marketing, que conhecem os valores e anseios

    populares. Ela leva em conta aspectos que esto plantados no imaginrio da populao,ligados a seus paradigmas histricos, sua identidade ou ainda sua vontade demudana de paradigmas existentes.

    As eleies municipais de 1998 constituram episdios que fornecem fartomaterial para essa reflexo. Os acontecimentos que se sucederam em So Paulo e Rio deJaneiro guardam muita semelhana. Os prefeitos Cesar Maia e Paulo Maluf lograrameleger dois sucessores quase desconhecidos.

    Podemos dizer que as eleies combinaram o arcaico com a ps modernidade.Como arcaico podemos citar a contradio entre o discurso e a prtica alem da revisitaao clientelismo e ao populismo, que durante o perodo do regime militar, mostraram-se

    prticas um tanto atenuadas, se comparadas com a histria brasileira anterior a 64. Arepresso direta dispensou, nesse perodo, os salamaleques que fazem parte do processode persuaso. Durante as citadas campanhas eleitorais, o discurso do social encobriu a

    prtica administrativa antisocial. Uma anlise, ainda que sucinta dos oramentosmunicipais durante o perodo 1992/1996 mostra que , nas duas cidades, os oramentos

    priorizaram a cidade oficial.Em So Paulo, caso bem mais radical, a prefeitura investiu em apenas trs tneis

    a quantia de US$ 1,2 bilhes de dlares o que equivalente a 4 anos do oramento totalde um municpio como Belem, por exemplo. As 11 mega obras virias j citadas nolograram diminuir os congestionamentos da cidade que chegaram a bater vrios

    rcordes, ultrapassando a marca dos 144 km de paralizao. Os investimentos sociaispriorizados no discurso de campanha, repetiram trs marcas: Cingapura (habitao),PAS (sade) e Leve Leite (lata de leite distribuda na rede escolar), programas cujadimenso foi diminuta diante dos investimentos nas obras virias, se considerarmos arealizao oramentria dos quatro anos. Apenas o investimento em sade, no ltimosanos de governo, ano da implantao de uma nova estrutura para a rea (PAS), tevedimenso significativa. Na rede escolar, houve evaso no nmero de alunos, nos quatroanos da gesto.

    Tanto em So Paulo como no Rio, os investimentos em obras no obedeceram aum plano urbanstico previamente discutido e formulado. Mas alem de seguiremorientao dominante dos interesses j mencionados, h que se reconhecer que eles

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    atuam em localizaes precisas, para formar um cenrio grvido de smbolos, que potencializado pela publicidade e pela mdia de um modo geral. A cidade oficial acidade mais visvel, apresentou mudanas na imagem de espaos estrategicamentelocalizados.

    So Paulo tem uma tradio urbanstica calcada no urbanismo rodoviarista. Aextrema valorizao do automvel nos investimentos urbanos, construda durante

    dcadas, especialmente por setores da engenharia urbana, se ocuparam, inclusive emdesmoralizar o transporte sobre trilhos (LAGONEGRO, 1996). A histria da cidademostra um notvel crescimento econmico capitaneado por uma elite que plasmou nourbanismo, atravs do sistema virio, a influncia americana que tomou lugar dadecadente dominao inglesa, no incio deste sculo. (LEME, 1990).

    As caractersticas de ps modernidade nas aes empreendidas pelos governosmunicipais de 1993/1996 citados, ficam por conta da desistncia em perseguir um planoholstico, de inspirao modernista (mesmo que, como tradio no Brasil, apenas paraconstar), e assumir uma abordagem fragmentada que tomou, para alguns, adenominao de planejamento estratgico. O eleitor tomado como consumidor. Amercadoria vendida a imagem. O esforo de repetio se destina a fixar marcas

    vinculadas s imagens plasmadas no espao. Como lembra Harvey, num mundo onde avelocidade e a volatilidade so as sensaes predominantes, o espao tem a virtude ou aaparncia de perenidade (HARVEY, 1992). Com lembra sempre Jean Baudrillard,vivemos a era do simulacro.

    O espao urbano no apenas um mero cenrio para as relaes sociais, masuma instncia ativa para a dominao econmica ou ideolgica. As polticas urbanas,ignoradas por praticamente todas as instituies brasileiras, cobram um papelimportante na ampliao da democracia e da cidadania. Para comear, quando se

    pretende desmontar o simulacro para colocar em seu lugar o real, os urbanistasdeveriam reivindicar o desenvolvimento de indicadores sociais e urbansticos, que

    pudessem constituir parmetros/antdotos contra a mentira que perpetua a desigualdade.A disseminao da informao e do conhecimento sobre a cidade real ou sobre a

    realidade urbana, tem a importante funo de desvendar a bruma que encobre arealidade do territrio urbano. Al, como no universo rural, a terra um n.

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