Maricota Apinajé: uma mulher-patrimônio em zonas de ... Castelo...de confluências geográficas e...

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1 Maricota Apinajé: uma mulher-patrimônio em zonas de conflitos e confluências Lilian Castelo Branco de Lima 1 Resumo Maricota, é indígena Apinajé 2 , considerada pelo seu povo como um patrimônio, pelo acervo de saberes que vivencia e transmite para os seus e para aquele que vão à sua procura com intenção de mergulhar e compreender o universo indígena. A etnia, da qual faz parte, se localiza no norte do estado do Tocantins, na microrregião do “Bico do Papagaio”, área historicamente conhecida pelas confluências geográficas e culturais e pelos diversos conflitos sociais e econômicos. Filha de Carlota Apinajé e de Sarafim, pai de quem só sabe o nome e que era negro, traz no corpo as marcas da sua genealogia. Por isso, não se considera uma “índia pura”, no entanto não abre mão de se reconhecer como uma “Apinajé de verdade”. Nesse contexto, de contato interétnico e de hibridizações culturais, este trabalho assume a intenção de refletir sobre a representação de Maricota com relação a ser negra e ser indígena, identidades em confluências em seus fazeres e saberes. Discuto nesse texto acerca dessas representações sociais a partir do que ressoa na voz de Maricota, apreendido através das muitas conversas em seu terreiro, nas quais aprendi com Maricota muito sobre a humanidade, em momentos diversos de convivência para a construção da etnografia que desenvolvo para a pesquisa de doutorado em Antropologia em andamento. Lanço mão de um olhar antropológico para tal discussão, estreitando fronteiras com o pensamento da Decolonização, busco amparo teórico nos Estudos Culturais britânico e Latino-americano. Palavras-chave: Apinajé. Identidade. Afroindígena. Estudos Culturais. Patrimônio. 1 Doutoranda em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará, Mestre em Letras pela Universidade Federal do Piauí. Professora do Departamento de Letras da Universidade Estadual do Maranhão e do Curso de Enfermagem e Serviço Social do Instituto de Ensino Superior do Sul do Maranhão (IESMA/UNISULMA). Email: [email protected] 2 A grafia do nome desse povo passou por modificações desde os primeiros relatos escritos sobre esses indígenas. Encontram-se na literatura: Apinayé (NIMUENDAJU, 1939; DA MATTA, 1976; GONÇALVES, 1981; ALBUQUERQUE, 2007; ZAPAROLI, 2010); Apinaje (GIRALDIN, 2000); Apinajé (ROCHA, 2001, 2010). Em meus escritos sobre essa etnia também adoto a mesma opção de grafia de Rocha (2001, 2010), pelo fato de ser essa a forma com que os Apinajé alfabetizados escrevem o nome de seu povo, isso observado em cinco anos de contato (2010-2015). Entendo que essa é uma escolha influenciada pelas aulas de gramática normativa da Língua Portuguesa ministradas na escola da aldeia, o que pode ser percebido quando eles me dizem que o “e” é acentuado por ser oxítona.

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Maricota Apinajé: uma mulher-patrimônio em zonas de conflitos e confluências

Lilian Castelo Branco de Lima1

Resumo

Maricota, é indígena Apinajé2, considerada pelo seu povo como um patrimônio, pelo

acervo de saberes que vivencia e transmite para os seus e para aquele que vão à sua

procura com intenção de mergulhar e compreender o universo indígena. A etnia, da qual

faz parte, se localiza no norte do estado do Tocantins, na microrregião do “Bico do

Papagaio”, área historicamente conhecida pelas confluências geográficas e culturais e

pelos diversos conflitos sociais e econômicos. Filha de Carlota Apinajé e de Sarafim,

pai de quem só sabe o nome e que era negro, traz no corpo as marcas da sua genealogia.

Por isso, não se considera uma “índia pura”, no entanto não abre mão de se reconhecer

como uma “Apinajé de verdade”. Nesse contexto, de contato interétnico e de

hibridizações culturais, este trabalho assume a intenção de refletir sobre a representação

de Maricota com relação a ser negra e ser indígena, identidades em confluências em

seus fazeres e saberes. Discuto nesse texto acerca dessas representações sociais a partir

do que ressoa na voz de Maricota, apreendido através das muitas conversas em seu

terreiro, nas quais aprendi com Maricota muito sobre a humanidade, em momentos

diversos de convivência para a construção da etnografia que desenvolvo para a pesquisa

de doutorado em Antropologia em andamento. Lanço mão de um olhar antropológico

para tal discussão, estreitando fronteiras com o pensamento da Decolonização, busco

amparo teórico nos Estudos Culturais britânico e Latino-americano.

Palavras-chave: Apinajé. Identidade. Afroindígena. Estudos Culturais. Patrimônio.

1 Doutoranda em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade

Federal do Pará, Mestre em Letras pela Universidade Federal do Piauí. Professora do Departamento de

Letras da Universidade Estadual do Maranhão e do Curso de Enfermagem e Serviço Social do Instituto de

Ensino Superior do Sul do Maranhão (IESMA/UNISULMA). Email: [email protected]

2 A grafia do nome desse povo passou por modificações desde os primeiros relatos escritos sobre esses

indígenas. Encontram-se na literatura: Apinayé (NIMUENDAJU, 1939; DA MATTA, 1976;

GONÇALVES, 1981; ALBUQUERQUE, 2007; ZAPAROLI, 2010); Apinaje (GIRALDIN, 2000);

Apinajé (ROCHA, 2001, 2010). Em meus escritos sobre essa etnia também adoto a mesma opção de

grafia de Rocha (2001, 2010), pelo fato de ser essa a forma com que os Apinajé alfabetizados escrevem o

nome de seu povo, isso observado em cinco anos de contato (2010-2015). Entendo que essa é uma

escolha influenciada pelas aulas de gramática normativa da Língua Portuguesa ministradas na escola da

aldeia, o que pode ser percebido quando eles me dizem que o “e” é acentuado por ser oxítona.

2

Para começo de conversa...

“Pra tu conhecer alguém, ou tu vive com ela a vida toda ou

tu vai e escuta as história dela, é assim...”

(Maricota Apinajé)

Maria Fernandes Apinage3, é Maricota (Como ela

se apresenta) e também é Ireti (Seu nome Apinajé). Ela faz

parte de um povo que habita o Norte do estado do

Tocantins, na microrregião do “Bico do Papagaio”, espaço

de confluências geográficas e étnicas e de conflitos de

muitas ordens, entre eles culturais e econômicos. Moradora

da aldeia São José, é um patrimônio imaterial reconhecido

por sua gente. Título que a torna uma riqueza para os

Apinajé.

Maricota vivencia saberes que também são

transmitidos pela sensibilidade de uma mulher que

interpreta como a principal função “daqueles que são velho

como eu [ela] e que também aprendeu com os velho é

ensinar” (Maricota Apinajé). Nesse contexto, este artigo,

que é parte de uma pesquisa em andamento4, busca discutir

acerca das representações sociais (DURKHEIM, [1963]

2007) de Maricota sobre sua identidade étnica, pensada a

partir de sua genealogia, pois é filha de uma indígena com

um negro.

Valho-me das representações sociais, porque se

reconhecer negra, indígena ou afroindígena (PACHECO,

2009) “[...] são fenômenos complexos sempre ativados e em ação na vida social”

3 Essa é a forma da grafia que aparece no registro geral de Maricota, expedido em 04 de setembro de

1992. Segundo informações do cartório de Tocantinópolis, assim que surgiu a possibilidade desses

indígenas se aposentarem, eles procuraram o cartório para fazer seus registros e os funcionários da época

grafaram de acordo com a pronuncia, pois não havia uma definição legal sobre a nomenclatura dessa

etnia.

4 Essa pesquisa é vinculada ao curso de Doutorado em Antropologia do Programa de Pós-graduação em

Antropologia da Universidade Federal do Pará.

Figura 1: Maricota Apinajé

ouvindo suas histórias pela

voz do gravador.

Fonte: Pesquisa de campo

(Setembro de 2014).

3

(JODELET, 2001, p. 21). Isso porque, de acordo com Codol citado por Moscovi (2001,

p. 62): “O que permite qualificar como sociais as representações são menos seus

suportes individuais ou grupais do que o fato de que sejam elaboradas no curso do

processo de trocas e interações”. Assim, parto do que Maricota pensa e representa sobre

essa construção contínua que é a identidade (HALL, 2002), notoriamente influenciada

pelas confluências de trocas e interações com os grupos indígenas e não-indígenas com

os quais mantém contato e com a etno-história do povo Apinajé.

Minha convivência com essa indígena é anterior à referida pesquisa, aqui

interpreto conviver como a arte de viver com aqueles que nos rodeiam e absorver

sabedoria, que para Hissa (2013, p. 18) carece de tempo, “[um] tempo lento do bordar

compreensões, no tempo de quem espera e, simultaneamente, na rotina de quem fabrica

a utopia da presença do mundo em nós e de nós em cada um. É arte de cultivar o ser”.

Desde 2010, já são cinco anos de construções e de bordados, tecidos por intermédio de

Witembergue Zaparoli no momento da construção de sua dissertação de mestrado5,

período em que tenho aprendido a ouvir dizeres e silêncios. Daí então, nesse cartografar

de sensibilidades e saberes, Maricota foi percebida como “um caleidoscópio pelo qual

se visualiza a cultura Apinajé” (LIMA; PACHECO, 2014, p. 224), pois as pessoas na

construção do “eu” estão amarradas em uma teia de significados (GEERTZ, 1989) que

tecem em conjunto e dão sentidos aos seus saberes e fazeres (GEERTZ, 2007).

5 ZAPAROLI, Witemberg G. Memórias educativas: narrativas contam os Apinayé. Dissertação

(Mestrado em Educação), CCSE/UEPA, Belém, 2010.

Figura 2: Maricota enfeitando Lilian Castelo Branco no ritual em

que ganhou nome indígena (Nhàgru).

Fotografia: Isabel Babaçu (Setembro, 2013).

4

Assim, fui lendo Maricota como “[...] um livro

que se lê pelos gestos e sons de um corpo que transcende

um espaço e um tempo” (LIMA; PACHECO, 2014, p.

224) e auscultando6 suas memórias reveladas em sua

performance (ZUMTHOR, 1997), em um ritual

estilizado (SCHECHNER, 2012) que a faz ímpar na

forma com que envolve e ensina, demarca território e

identidade. Nesse sentido, observei que como propõe

Pollack (1992, p. 5): “a memória é um elemento

constituinte do sentimento de identidade, tanto individual

como coletiva [...]”, em um cenário de disputa e conflitos

entre valores culturais.

Nesse cenário, norteado pela História Oral, esse

texto assume o desafio de pensar a memória não apenas

como aquela que preserva informações, mas também, e

principalmente, como instrumento de luta que resiste às

epistemologias hegemonizantes e opressoras dos saberes

que destoam do que é moldado e padronizado pelo

eurocentrado poder da escrita. (PORTELLI, 2000). Dessa

forma, sigo aqui a interpretação de Portelli (2000) de

que “memória é como história” e do seu principal

recurso: o discurso humano, revelador de histórias e

memórias, fui articulando ideias e estreitando fronteiras

de saberes que se cruzam no mundo das humanidades:

Antropologia, Geografia, História e Sociologia. Nesse

percurso de articulações, este estudo antropológico abre

as janelas de sua casa e conversa com os vizinhos,

entendendo que as disciplinas são construções

políticas/intelectuais e que ao lançarmos mão dos fazeres

disciplinares, também podemos nos posicionar diante dessas construções, no sentido de

perpetuar epistemologias ou (re)elaborar novas/velhas (re)articulações. (CLIFFORD,

2005). Com esse intuito de articulação também dialogo com os Estudos Culturais.

6 Utilizo o termo auscultar no sentido de ouvir palavras e sensibilidades.

Figura 3: Maricota Apinajé

em um dos momentos de

silenciamento.

Fonte: Pesquisa de campo

(Setembo,2014).

5

Começando a incursão pelo mundo Apinajé

Começo essa incursão pelo mundo Apinajé pelo o que nos conta as vozes do

Tocantins. Rio que banha os estados do Goiás, Tocantins, Maranhão e Pará. Cantado em

verso e prosa, para viajantes o majestoso e magnífico, para poetas o imperador. Fato é

que esse rio assume sua realeza e grandiosidade em aspectos sociais, geográficos,

históricos e econômicos, não só para a região do seu curso, como para o processo

histórico do Brasil como o todo, no que se relaciona com grandes projetos brasileiros,

desde o período da colonização até a atualidade com a construção de usinas hidrelétricas

e hidrovias.

O Tocantins nasce no coração do Brasil, no planalto do Goiás, a cerca de 250

quilômetros de Brasília e deságua no Golfo Amazônico, na Baía de Marajó no Pará,

com uma extensão de 2.400 quilômetros, desses 712 são navegáveis. Com o seu

afluente mais importante, o Araguaia, forma a bacia Araguaia-Tocantins, uma das

prioridades para a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos da

Agência Nacional de Águas, pelo fato de se inserir em uma complexa problemática que

envolve a gestão de recursos hídricos e suas consequências para a população local, com

ênfase para os povos tradicionais, entre eles as comunidades indígenas. (BRASIL, 2006;

BRASIL, 2013; CABRAL, 2013).

A relação desse rio com a população indígena é direta e antiga. De acordo com

a historiografia, o próprio nome Tocantins, possivelmente, seria uma alusão a uma das

Figuras 4 e 5: Rio Tocantins, no trecho em que opera a balsa que

faz a travessia entre Porto Franco(MA) e Tocantinópolis (TO), em

dia de chuva e águas revoltosas.

Fonte: Pesquisa de campo (Janeiro, 2015).

6

etnias com a qual os viajantes do período colonial tiveram contato (CABRAL, 2013), o

que pode ser observado no mapa a seguir:

Na indicação do mapa de João Teixeira de Albernaz, datado de 1666, havia nas

margens desse rio uma comunidade indígena denominada como Tucantins, da qual

herdaria o nome. Se a origem do nome é lendária, a relação do rio com povos

tradicionais, suas cosmologias e a dinâmica da vida em seu entorno é muito real e

antiga. E desde o século XX com a implantação dos grandes projetos para geração de

energia que eles sofrem com impactos cada vez mais irreversíveis.

No entanto, essas comunidades não se calam frente a esse processo, falam,

reivindicam, contudo o que tem como respostas são vergonhosas propostas de

compensação ambiental. Nesse contexto, o povo Apinajé, diretamente afetado pelo

projeto de Serra Quebrada se pronunciou em uma carta aberta.

Figura 6: “Demonstração do Pará athe o rio Turi”, mapa elaborado por João

Teixeira Albernaz que consta do volume factício Mappas do Reino de Portugal e

suas conquistas, colegiados por Diogo Barbosa Machado, [1666]. Fundação

Biblioteca Nacional – Brasil.

Fonte: Cabral (2013, p. 19).

7

Tocantinópolis, 02 de setembro de 2001

Nós caciques e lideranças indígenas do Povo Apinagé das

aldeias: Botica, Bonito, Mariazinha, São José, Patizal,

Cocalinho e Buriti Comprido, estivemos reunidos na cidade de

Tocantinópolis, nos dias 01 e 02 de setembro de 2001, para

discutirmos sobre a barragem de Serra Quebrada. Conhecendo

melhor o projeto dessa barragem que atingirá diretamente o

Povo Apinagé, trazendo vários problemas, pois com a formação

do lago, irá alagar mais de mil alqueires das melhores terras

dentro de nossa reserva, inclusive inundando duas aldeias

(Riachinho e Mariazinha), provocando a redução das caças, das

frutas, do babaçu e das matas onde são feitas as roças, sendo

estes recursos naturais fundamentais para sobrevivência física e

cultural do nosso povo. Queremos dizer que a terra para nós é

Mãe e Pai “a terra é que cria nós e não o governo”, pois é dela

que tiramos a nossa caça, nossa pesca, os remédios, coletamos

os frutos e principalmente o babaçu, que é muito importante

para a nossa sobrevivência, onde tiramos a palha para construir

nossas casas, nossos utensílios como o cofo (para transportar

objetos e alimentos), o jirau, a esteira e outros, é do fruto que

tiramos o óleo, a farinha e o carvão. Nós queremos um

desenvolvimento para todos, respeitando sobretudo a vida e não

um desenvolvimento de destruição e morte que beneficia uma

parcela pequena de nossa sociedade.

Nós não aceitamos a barragem e estamos unidos para defender a

vida de nosso povo Apinagé, por isso exigimos que nossos

direitos sejam respeitados, pois a Constituição Brasileira de

1988, no artigo 231, reza que: As terras tradicionalmente

ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente,

cabendo-hes o usufruto exclusivo do solo, dos rios e dos lagos

nelas existentes.

Povo Apinagé (ALMEIDA; RÉGIS, 2003)

Uma década depois dessa carta, mais precisamente em abril de 2011, começo

minhas andanças pelas suas terras, nesse momento com um olhar mais voltado para o

estudo das questões culturais e sociais, em parceria com Witembergue Zaparoli em

visitas técnicas com alunos da Unidade de Ensino Superior do Sul do Maranhão, uma

instituição de ensino superior, que como proposta da disciplina de Fundamentos

Antropológicos buscava desmitificar discursos etnocêntricos sobre os saberes indígenas.

E entre nós e eles, um rio, uma travessia em exercício de alteridade.

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Remetendo-nos às cosmologias e aos saberes tradicionais, depara-se com

um mundo das águas carregado de energias que conduzem vidas, propiciam

encontros, chegadas, partidas, conquistas, dominações, insurreições e

calmarias. Assim no Tocantins, nascente e afluente ao mesmo tempo, as

histórias dessa pesquisa e a dos Apinayé são contornadas por suas águas.

(LIMA; PACHECO, 2014, p. 225)

Desse encontro, contornado pelas águas do Tocantins,

nasceram questões que clamavam por respostas e muitas

propostas de pesquisas se impuseram, tanto no aspecto dos

impactos ambientais, entre elas, como os grandes projetos da

bacia Tocantins-Araguaia afetam esse povo indígena, pois

entre os alunos que levávamos em visita técnica, estavam os do

curso de Ciências Biológicas, quanto nos aspectos sociais e

culturais, entre elas o que/quem são os patrimônios desse

povo?

Delimitando meus estudos com os Apinajé, optei por

centrar minhas vivências entre os moradores da aldeia São

José, por ser a maior e com um número considerável de

habitantes. Entre eles, várias vozes ressoaram nomes como

Romão, Camilo, Joanita, Peti e Maricota como testemunhas

autorizadas (POLLACK, 1989) das heranças culturais de seu

povo. Confirmei em campo o que Sant’anna (2009, p. 52)

defende sobre uma concepção mais ampla de patrimônio: “De

acordo com essa concepção, as pessoas que detêm o

conhecimento preservam e transmitem as tradições, tornando-

se mais importantes do que as coisas que as corporificam”.

Dessa forma, sem menosprezar os saberes dos demais,

ressaltamos Maricota, pelo arsenal de saberes e fazeres com

que resiste nas lutas identitárias e nos embates culturais: o “[...]

saber fazer arte, saber contar as histórias do povo, saber cantar,

saber conduzir as crianças à vida, saber das crenças espirituais,

saber cuidar do outro” (LIMA; PACHECO, 2014, p. 229).

E como o objetivo desse texto é discutir as

representações da identidade étnica de Maricota, a partir de

agora, me deterei a discutir sobre as origens dessa matriarca, que pariu um menino

Figura 7: Maricota

Apinajé

Fonte: Pesquisa de

campo (Janeiro de

2015).

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apenas, mas é mãe de pegação de uma aldeia inteira. Também será importante para essa

discussão analisarmos as diásporas de sua família, pois elas nos ajudam a entender essa

identidade afroindígena, que é percebida, mas não assumida por Maricota.

As origens e as diásporas de uma matriarca

“Diz que de primero, aí os Apinajé nem era daqui, né, do Tocantins, diz que

parece que viero foi lá do Maranhão e que trevessou o rii, esse rii aí que tu trevessa pa

vim aqui e me vê. Diz que meus bisavô dos meu bisavô diz que era tudo de lá7”

(Maricota, janeiro de 2013).

Essa narrativa de Maricota converge com a interpretação de Nimuendaju

([1946] 1971), seguida por Azanha (1984), de que em uma época anterior ao século

XVIII, os Apinajé pertencentes à nação Timbira, que se situava no sul do Maranhão, em

uma área que compreendia o vasto cerrado maranhense e as florestas da Amazônia,

devido à expansão pastoril nessa área, possivelmente, teriam deixado suas terras no sul

maranhense e atravessado o rio Tocantins em direção ao norte do Goiás em busca de

terras e de paz, pois enfrentariam conflitos tanto com não-indígenas como com outras

etnias pertencentes aos Timbira.

Nesse sentido, o norte do Goiás, em terras que desde 1988 pertencem ao mais

novo estado da federação: o Tocantins, foi um refúgio tanto para indígenas como para

negros africanos e afro-brasileiros fugitivos da sofrida vida na escravidão. Essa escolha

para a fuga era devido às densas matas da floresta amazônica que propiciava condições

favoráveis que se escondessem, as terras férteis do cerrado e o acesso aos recursos

hídricos que contribuíam para o sustento dessas pessoas.

De acordo com Lopes Oliveira (2009, p. 112):

Dentre os primeiros arraiais no norte goiano, está o atual município de

Arraias, que teve suas primeiras minas descobertas, provavelmente, no ano

de 1739. Segundo a tradição popular em Arraias, antes de ser povoada pelos

mineradores brancos, essa chapada era núcleo de negros aquilombados. Esses

negros eram escravos fugidos de áreas mineradoras de outros arraiais e por

esse motivo ela ficou conhecida como Chapada de Negros.

7 Opto pelo itálico para marcar as falas de Maricota no texto, assim como quero esclarecer que a

transcrição de suas falas foi feita na íntegra e não fiz correções de ordem gramatical, pois é intuito da

pesquisa de doutorado que o material que disponibilizo possa ser utilizado posteriormente por outros/as

pesquisadores/as e acredito que as marcas linguísticas podem falar muito na interpretação dos dados.

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Maricota também fala sobre a formação de quilombos nas matas do Tocantins

e das muitas conversas que ouvia sobre indígenas ajudarem negros em suas fugas: “Faz

tempo, diz que era de bem de antes que os preto ia e fugia e andava, andava, andava,

pelo mato muuuito, né, e aí que chegava e tinha índio, aí o índio ajudava” (Janeiro de

2013). Em outra alusão em sua digressão sobre sua origem, Maricota menciona a

possibilidade do pai ser um remanescente quilombola.

[Pergunto se lembra de sua mãe] Eu me lembro, eu já tava desse tamanho.

Eu tava grande... [Faz um gesto com a mão indicando aproximadamente um

metro] E ela era índia bonita e tinha o cabelo lisim, assim que nem tu.

Depois que foi que minha mãe morreu e foi com o meu tii, aí de irmão de pai

e da mãe eu num tem ninguém, só fui eu mermo, que meu pai aí me fez e foi

bora, também diz que ele era de quilombo, desse de que foge, mas nem num

tava fugindo não, era kupe [não-indígena] que nem vocês, só que ele nem

quis mia mãe, ele foi bora, ninguém nunca mais nem sabe de nada dele.

Observa-se na narrativa acima a comparação do pai que era negro comigo, que

ela considera “branca”, somos ambos kupẽ [como os Apinajé denominam aqueles que

não são indígenas], pertencemos, portanto, à mesma categoria, em um exercício de

análise de sinais diacríticos (BARTH, [1969] 2000) que enumera quando pergunto por

que eu e o seu pai somos kupẽ. “Tu num vê que os branco e os preto usa espingarda,

mora de casa de como é o nome na tua língua? Que num é de barro, nem de palha?

[Pergunto se é tijolo, ela responde] É desse tijolo mermo aí. E anda vestido” (Maricota,

janeiro de 2013).

Para Melatti (2007, p. 39) “A inclusão dos negros na mesma categoria dos

brancos, quando esta é contrastada à dos índios, também se manifesta no pensamento

indígena[...]” no exemplo que cita do mito de Aukê em uma versão Krahô, no qual é

narrado uma divisão de armas cujo os indígenas ficaram com o arco e o negro ao qual

Aukê entregou a espingarda, depois de experimentá-la aceita ficar com ela. Assim, “[...]

quem escolhe o arco fica também com a cuia, enquanto quem deu preferência à

espingarda recebe o prato” (MELATTI, 2007, p. 39).

Fica nítido que os sinais diacríticos descritos por Maricota como marcadores de

uma identidade étnica, portanto social (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976) são

analisados por ela em um processo histórico. “Isso aí era de antes, porque agora tem

também é muito índio que tem espingarda pa caçar, né, de primero que num tinha, e

também tu num vê que índio se veste agora, té eu tô vestida agora [ela ri muito], mas

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também faz tempo que mora todo mundo perto, né, aí fica

assim fazeno as coisa dos ôto”.

Essas convergências nas práticas sociais que

marcam as identidades étnicas são também enfatizadas na

fala de Maricota como inerentes das vivências nas “zonas

de contatos”, sendo que nesses “[...] espaços sociais onde

culturas díspares se encontram, se chocam, se entrelaçam

uma com a outra, frequentemente em relações

extremamente assimétricas de dominação e subordinação

[...]” (PRATT, 1999, p. 27) pode-se perceber a

hibridização cultural (BHABHA, 1998), que vai

tracejando identidades perpassadas umas pelas outras,

através dos sinais diacríticos, como se percebe na fala de

Maricota a seguir.

Mas também tem um monte de coisa de

nêgo que é igual de índio, tem pajé só

que tem ôto nome, nem sei [Digo que é

pai de santo] Mas tem mulher também,

aí cuma é o nome? [Mãe de santo] Aqui

num tem pajé mulher não, mas também

diz que vê esse negóço de feitiço e

também diz que tem os que sabe dos

remédio do mato que nem índio.

Só que eu nem quero ir pa lá não, uma

vez nós foi no reunião, nem sei onde que

foi, já me esqueci, que tinha esse povo

todo junto, nós panhi e os do quilombo,

era pa vê esse negóço de cultura, de

dinheiro pos povo que mora nas mata,

que diz que nós somo que nem eles de

povo, cuma é Hilário [Hilário não a

ajudou lembrar, então perguntei se era

“Tradicional”?] Isso esse tal de povo do

tradicional, né, foi nesse reunião que

também eu vi que eles gosta de tudo,

tudo, enfeitado de colar que nem nós e

até de miçanga. Tinha uma véia que nem

eu com os colar bonito de miçanga e era

de azul e de branco, eu gosto mais é do

vermelho, mas que era bonito.

Ao contrastar o pajé com a mãe de santo e suas

práticas de cura, ela também observa os “rastros/resíduos”

(GLISSANT, 2005) do que ela entende como cultura negra

Figura 8: Maricota Apinajé

Fotografia: Isabel Babaçu

(Setembro de 2013).

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e as aproximações com a cultura indígena. Tanto que se coloca politicamente dentro de

uma mesma identidade social “os povos tradicionais”, nos quais ela inclui “os povo que

mora nas mata”, como ela que é indígena e os remanescentes quilombolas, que

esteticamente para ela se aproximam “vi que eles gosta de tudo, tudo, enfeitado de colar

que nem nós e até de miçanga”.

Nesse sentido, pode-se dizer que as marcas identitárias não estão na coisa em

si: na espingarda, no colar, no remédio do mato, mas na sua experienciação, na forma

como esses sinais são praticados. Dessa forma, em uma perspectiva antropológica-

social, “entende-se por identidade a fonte de significado e experiência de um povo”

(CASTELLS, 1999, p. 22).

Quando Maricota aproxima, mas ao mesmo tempo diferencia a cultura de

negros e indígenas, demonstra que percebe que as culturas de grupos étnicos em

diáspora e em situação de contato, mesmo quando se fundem cada uma apresenta as

suas particularidades, posto que a cultura é “algo constantemente reinventado,

recomposto, investido de novos significados” (CARNEIRO DA CUNHA, 1986, p.101).

Desse modo, de acordo com as interseções dos sinais diacríticos e com sua

genealogia poderíamos afirmar que, se Maricota se identificasse no que concerne à sua

identidade étnica, ela poderia ser considerada tanto afroindígena como indígena, porque

uma identidade não anula a outra, sendo que como assinala Pacheco (2011a, p. 40):

As relações de trocas, empréstimos e sociabilidades estabelecidas entre

nações indígenas e africanas desde seus primeiros contatos no período

colonial, sem negar a maneira como poderes locais cooptaram muitos destes

sujeitos históricos para defender interesses de seus projetos administrativos,

legaram para as culturas locais do presente tradições, cosmologias, saberes,

fazeres e agires, os quais permitem interpretá-los como afroindígenas.

No entanto, apesar dos empréstimos e sociabilidades que ela vivencia e

corporifica, a marcação da identidade indígena é fortemente reforçada por Maricota, que

diz que não é “pura”, mas que é Apinajé “de verdade”, identidade que a deixa

confortável para operar no seu modus vivendi, em uma relação de pertencimento e

reconhecimento (CARNEIRO DA CUNHA, 2009), isso porque de “[...] um ponto de

vista subjetivo, a identidade é descoberta dentro da própria pessoa, e implica identidade

com outros. O eu interior descobre seu lugar no mundo ao participar da identidade de

uma coletividade.” (KUPER, 2002, p. 298).

13

Mas eu num tem raiva de meu pai não, num tô aqui mermo com o

meu povo, né, tô aqui vivim, e também eu nem sou kupẽ que nem

ele, sou é Apinajé, então que eu tinha que viver era aqui, que foi

aqui que me criei e que fiz coisa de aprender, aí foi parteira, aí

fico assim com os peito de fora [Ela ri muito]. Se fosse kupẽ,

mermo que fosse do quilombo que é dento das mata tem que passar

calor, humm [ela balança a cabeça de forma negativa] quero é

nada! [Rimos muito].

Percebo que a primeira distinção que Maricota

faz do que seja “índia pura” parte dos aspectos físicos de

seu corpo, quando pergunto porque ela não é uma

indígena “pura” responde chamando atenção para a cor

de sua pele, pedindo para que eu pegue em seu cabelo,

assim como justifica tais aspectos pela sua genealogia,

descrevendo fisicamente os pais, sendo a mãe uma bela

mulher indígena de cabelos lisos e o pai negro e de

cabelo “ruim, duro”, que ela não sabe dizer sobre a

aparência, porque não o conheceu.

O nome da minha mãe era Carlota Apinajé, pinajé própria! E o

nome na cultura é o teu: Nhàgru. Agora tu que é meu fii tem é o

nome de minha mãe. [Pergunto também sobre seu pai] Do meu é...

Eu nem vi meu pai, mas o nome dele era Xarafim [O nome dele é

Serafim, porém os Apinajé na maioria de suas falas pronunciam o

[s] como [x] ]. Xarafim no sei de quê. No era índio não! Eu no sei a

situação do meu pai. Nem conheci nem nada. Nada! Ele era igual

um camaleão, ovô e sumiu. Diz que ele era preto, do cabelo duro.

O relacionamento, de pouca duração, de

Carlota e Sarafim aconteceu em um contexto de contato

nas matas do cerrado do Brasil central, pois Maricota

que hoje mora na aldeia São José nasceu na aldeia

Cocalinho, que se localizava próximo ao rio Araguaia,

também no norte do atual Tocantins, e é uma região de

muitos remanescentes quilombolas. Logo, ela assim

como descendentes de negros e indígenas também

vivencia a mistura de “corpos, almas, sentimentos e

culturas, forjando uma nova identidade cambiente em

territórios da diferença colonial” (PACHECO, 2011b, p.

Figura 9: Maricota

Apinajé

Fonte: Pesquisa de campo

(Janeiro de 2015).

14

1).

Ela fala dessa mistura de corpos e demarca a identidade que escolhe assumir:

“Pois é isso, aí eu só tenho essa cor de kupẽ, de preto e esse cabelo, porque assim de

cultura eu sô mermo é panhi[indígena], Apinajé! Num sou de Apinajé própria, mas eu

sou panhi”. Logo, se é pelo corpo que Maricota se identifica como descente de negro e

em sua interpretação isso faz com que ela não seja uma Apinajé própria, pois o seu

corpo está preso no espelho social (LE BRETON, 2012), mas são as amarras culturais

que a prendem à sua identidade indígena, no seu entendimento a cultura se sobrepõe ao

biológico.

Nesse sentido, ao analisar os indígenas nos censos nacionais, Oliveira Filho

(1999, p. 134) assinala que “[...] dentro de cada sociedade indígena, e mesmo de cada

aldeia, a variabilidade registrada nos indivíduos quanto a componentes raciais é muito

grande. Em definitivo a condição de “índio” nada tem a ver com pressupostos quanto à

unidade racial ou de cor” e Maricota marca bem essa condição de “índio” na sua

representação identitária, mesmo cor que a classificaria como negra.

Leio a maneira com que Maricota interpreta sua identidade étnica como

resultado de sua interação com as formas depreciativa de ver o povo negro, tão

difundida no Brasil, pois “[n]enhum ser humano olha o mundo com olhos puros, mas o

vê modificado por um determinado conjunto de costumes, instituições e maneiras de

pensar” (BENEDICT, [1934] 2013, p. 13). E em nosso país como analisa Munanga

(1986) não foi só a força física que foi utilizada como elemento de coação ao/à negro/a,

contra ele/ela também se usou o estereótipo como uma força poderosa nas lutas

identitárias no contexto de dominação, e a partir dele desmoralizou o/a dominado/a,

fazendo-o/a sentir inferior.

E assim, sabendo que “O corpo é um dos locais envolvidos no estabelecimento

das fronteiras que definem quem somos servindo de fundamento para a identidade”

(WOODWARD, 2000, p.15) o corpo foi/é usado para a construção negativa da

identidade negra pelos grupos dominantes para conseguir vantagens em cima do

inferiorizado (BHABHA, 1998).

À medida que Maricota classifica o cabelo do pai como “duro, ruim” o

fenótipo está sendo tomado por suportes simbólicos da identidade negra no Brasil

(GOMES, 2006), um país que reforça hegemonicamente a beleza do cabelo liso

(RAMOS, 1995). Como não conheceu o pai, ela o compara a sua mãe pelo cabelo,

15

sendo a mãe uma indígena “linda” do cabelo liso e o pai aquele que apresenta

características ruins, dessa forma o cabelo é o elemento de comparação da beleza

(FRENETTE, 1999).

De acordo com Sabino (2007, p. 116)

Sendo um dos símbolos mais poderosos de identidade individual e social o

cabelo consolida o significado do seu poder, primeiro porque é físico e

extremamente pessoal; segundo porque apesar de pessoal é também público,

muito mais do que privado.

Nesse contexto, de acordo com Gomes (2006, p. 260) “É na cultura que o

homem e a mulher aprendem a classificar e a hierarquizar o corpo. [...] O corpo é uma

linguagem”. E nessa linguagem Maricota se vê negra, mas não se reconhece negra.

E eu vou ser preta como? Se diz que preto vivia tudo preso, e diz que índio

que corria livre, nem eu ia consegui! Mas isso era de primero agora é tudo

solto que nem nós, preso só pelo bucho, porque diz que preto passa

necessidade que nem nós. E eu num sei que tenho o cabelo duro igual do meu

pai e que sou é preta também, mas né isso que vai me fazer deixar de ser

panhi e virar kupẽ, não, né, tu num acha? Porque é aqui que eu vivo, e é aqui

que é meu povo(Janeiro de 2013).

Seguindo as proposições de

Cuche (2002) nas quais ele afirma que

essa construção da identidade se dá em

contextos sociais, concordo com ele no

que se refere à escolha de Maricota em se

assumir indígena, pois é sua posição como

agente dentro da cultura a qual pertence

que orienta a sua representação sobre a

identidade étnica, assim os critérios

biológicos são secundários e não

representam para ela motivos que a façam se assumir negra ou afroindígena.

Figuras 10: Pés de Maricota

Fonte: Pesquisa de campo (Janeiro,

2014).

16

Trançados finais

Assim que comecei a

delinear a pesquisa de Doutorado,

Maricota me disse: “Pra tu

conhecer alguém, ou tu vive com

ela a vida toda ou tu vai e escuta

as história dela, é assim...” e foi

isso que fiz, em cinco anos de

convivência, em período

intercalados, escutei e auscutei suas

histórias e sensibilidades, sentadas

em seu terreiro ou caminhando pela

aldeia.

Dessa forma, a partir de suas memórias, pude compreender, mesmo que de

forma pontual, a dinâmica da vida para os Apinajé pela lógica das suas cosmologias e

nesse texto específico que tratei da representação da identidade étnica para Maricota,

percebi que a escolha pela identidade indígena foi construída de forma simbólica

(ORTIZ, 1985) a partir da identificação com um povo que ela denomina como “seu”.

Para Gilroy (2001, p. 208): “A história de hibridação e mesclagem desaponta o

desejo de pureza racial acalentado pelo afrocentrismo e pelo eurocentrismo” e ao se

assumir como mestiça, Maricota também reforça esse desapontamento, porque mesmo

filha de negro, ela não abandona sua identidade indígena. Filha de negro e indígena,

Maricota que poderia se assumir afroindígena, indígena ou negra, não toma para si o

entre-lugar (BHABHA, 1998).

O lugar da sua identidade pertence ao mundo indígena, mesmo que seu

estereótipo seja de mestiça, são os saberes que pratica, os valores que segue ou contesta,

as cosmologias que regem sua vida, que apontam: “eu sou panhi [indígena]!”. Maricota

portanto, mesmo em muitas zonas de contato do mundo moderno, não tem sua

identidade étnica fragmentada pela modernidade. Ela é panhi!

Figuras 11: Mãos de Maricota trançando

uma esteira

Fonte: Pesquisa de campo (Setembro,

2014).

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