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1 O INTERTEXTO BÍBLICO COMO EXPRESSÃO DE UM ETHOS EM CRÔNICAS DE LYA LUFT MÁRIO ACRISIO ALVES JUNIOR Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa). Orientadora: Professora Doutora Lúcia Helena Martins Gouvêa. Rio de Janeiro Maio de 2015

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O INTERTEXTO BÍBLICO COMO EXPRESSÃO DE UM ETHOS

EM CRÔNICAS DE LYA LUFT

MÁRIO ACRISIO ALVES JUNIOR

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).

Orientadora: Professora Doutora Lúcia Helena Martins Gouvêa.

Rio de Janeiro

Maio de 2015

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O INTERTEXTO BÍBLICO COMO EXPRESSÃO DE UM ETHOS

EM CRÔNICAS DE LYA LUFT

Mário Acrisio Alves Junior

Orientadora: Professora Doutora Lúcia Helena Martins Gouvêa

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).

Aprovada por:

__________________________________________________________

Presidente, Professora Doutora Lúcia Helena Martins Gouvêa – UFRJ

_______________________________________________________________

Professora Doutora Janayna Bertollo Cozer Casotti– UFES

_______________________________________________________________

Professora Doutora Luciana Paiva de Vilhena Leite - UNIRIO

_______________________________________________________________

Professora Doutora Maria Aparecida Lino Pauliukonis – UFRJ

_______________________________________________________________

Professora Doutora Patrícia Ferreira Neves Ribeiro – UFF

_______________________________________________________________

Professora Doutora Beatriz dos Santos Feres – UFF (Suplente)

_______________________________________________________________

Professora Doutora Márcia dos Santos Machado Vieira – UFRJ (Suplente)

Rio de Janeiro

Maio de 2015

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Alves Junior, Mário Acrisio. O intertexto bíblico como expressão de um ethos em crônicas de Lya Luft/ Mário Acrisio Alves Junior. – Rio de Janeiro: UFRJ/ Faculdade de Letras, 2015. xi, 123f.: il.; 31 cm. Orientadora: Professora Doutora Lúcia Helena Martins Gouvêa Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, 2015. Referências Bibliográficas: f. 130-134. 1. Ethos discursivo. 2. Semiolinguística do Discurso. 3. Intertextualidade. 4. Lya Luft. I. Gouvêa, Lúcia Helena Martins. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas. III. O intertexto bíblico como expressão de um ethos em crônicas de Lya Luft.

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Janelas do meu quarto,

Do meu quarto de um dos milhões do mundo.

que ninguém sabe quem é

(E se soubessem quem é, o que saberiam?),

Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,

Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,

Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,

Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres (...)

Álvaro de Campos

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“De boas palavras transborda o meu coração;

ao Rei consagro o que compus”

(Salmo 45:1)

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Agradecimentos

A Deus, o meu amado Criador e Pai, que merece o mérito por tudo o que

conquistei, desde a seleção até o final do doutorado, pois sem Ele eu nada

teria e nada seria.

À minha amada esposa, Michelle, pelo incentivo e por compreender todas as

vezes que tive que dispensar maior atenção a este trabalho do que a ela; por

suas orações e pelo exemplo de garra e competência que é para mim.

À professora Lúcia Helena Martins Gouvêa, minha orientadora, por me aceitar,

pelo interesse sempre sincero em me orientar e por tudo o que pude

apreender, em termos de solidariedade e altruísmo, com essa fantástica

pessoa.

Às professoras Maria Aparecida Lino Pauliukonis e Patrícia Ferreira Neves

Ribeiro, pelas preciosas sugestões oferecidas na ocasião da qualificação.

À professora Regina Gomes, sempre generosa e pronta a prestar auxílio.

À minha mãe, pelas constantes orações, por mostrar-se sempre feliz por

minhas conquistas e por ter sido a primeira orientadora em minha vida, me

mostrando, com seu jeito simples, a não complicar as coisas.

Ao meu pai, pelo modelo de ser humano que é para mim; pelo apoio nos

estudos e pela amizade que temos um com o outro.

Aos amigos Marcelo, Meyre, Marianna, Maria Alice e Melissa, família que fez

de sua casa a minha, e sem a qual eu certamente não teria conseguido

enfrentar minha jornada de estudos.

À colega Natália Rocha Oliveira Tomaz, pela solicitude prestada a mim em uma

importante etapa da pesquisa.

À Capes, pelo apoio financeiro.

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RESUMO

O INTERTEXTO BÍBLICO COMO EXPRESSÃO DE UM ETHOS

EM CRÔNICAS DE LYA LUFT

Mário Acrisio Alves Junior

Orientadora: Professora Doutora Lúcia Helena Martins Gouvêa

Resumo da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro,

como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em

Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).

Esta pesquisa tem o objetivo de estudar a construção de um ethos

religioso cristão em crônicas de Lya Luft, expresso por meio de diferentes

tipologias e configurações intertextuais que remetem ao texto bíblico. O corpus

é composto por 53 crônicas selecionadas entre os anos de 2005 e 2013 e

extraídas da revista Veja, em que os textos de Lya Luft são publicados

quinzenalmente. O recorte teórico adotado é fruto de uma articulação entre

conceitos advindos das teorias da Enunciação e da Análise do Discurso em

sua vertente semiolinguística. Os dados revelam três tipologias do fenômeno

intertextual: intertextualidade com valor de captação, intertextualidade com

valor de subversão e intertextualidade por alusão. As análises, de natureza

qualitativa e quantitativa, destacam, entre outros aspectos: a afinidade da

cronista com o discurso bíblico; a destreza com a qual emprega fragmentos

bíblicos na composição de seus textos; o número extremamente expressivo de

casos de alusão ao texto bíblico, os quais, ancorados na memória discursiva,

por serem menos explícitos se comparados aos outros dois tipos, transcendem

os limites do cotexto, situando-se no nível mais profundo de uma escala de

implicitude; e, enfim, uma quantidade menor, porém considerável, de casos de

subversão, estes particularmente analisados sob o prisma da Teoria Polifônica

da Enunciação. As análises confirmam, então, que o intertexto bíblico expressa

um ethos cristão nas crônicas de Lya Luft.

Rio de Janeiro

Maio de 2015

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ABSTRACT

O INTERTEXTO BÍBLICO COMO EXPRESSÃO DE UM ETHOS

EM CRÔNICAS DE LYA LUFT

Mário Acrisio Alves Junior

Orientadora: Professora Doutora Lúcia Helena Martins Gouvêa

Abstract da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro,

como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em

Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).

This search studies the construction of a Christian religious ethos in Lya

Luft‟s chronicles, express by diffrents intertextual types and configurations that

make reference to the biblical discourse. Corpus consists of 53 chronicles,

selected between 2005 and 2013, extracted the magazine Veja, where Lya Luft

publishes her texts fortnightly. The theoretical approache used comes from the

theories of Enunciation and Semiolinguistics Discourse Analysis. Data presents

three types of intertextual phenomenon: intertextual relations of capturing,

intertextual relations of subversion and intertextuality by allusion. Analysis,

which are qualitative and quantitative character, stand out, inter alia: the writer

affinity with the biblical discourse; the skill with which she uses the biblical text

fragments in the composition of her chronicles; the very significant number of

cases of intertextuality by allusion to the biblical discourse, which, anchored in

the discoursive memory – because they are less explicit –, transcend the limits

of the linguistic context and reaches the deepest level of an implicitness scale;

and finally, a smaller but significant amount of cases of intertextual relations of

subversion, which are particularly analyzed through the point of view of

Polyphonic Theory of Enunciation. Thus, the analyses confirm that biblical

intertext express a Christian ethos in the Lya Luft‟s chronicles.

Rio de Janeiro

Maio de 2015

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RÉSUMÉ

O INTERTEXTO BÍBLICO COMO EXPRESSÃO DE UM ETHOS

EM CRÔNICAS DE LYA LUFT

Mário Acrisio Alves Junior

Orientadora: Professora Doutora Lúcia Helena Martins Gouvêa

Résumé da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro,

como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em

Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).

Cette recherche a l‟objectif d‟étudier la construction d‟un ethos religieuse

chrétien en chroniques de Lya Luft, exprimée par différents typologies et

configurations intertextuelles qui font référence au texte biblique. Le corpus se

compose de 53 chroniques sélectionnée entre l‟ans de 2005 et 2013, publiées

chaque quinze jours par l‟écrivain dans le magazine Veja. Le cadre théorique

adopté naît d‟une articulation entre les concepts des théories de l‟enonciation et

de la branche semiolinguistics de l‟analyse du discours. Le données indiquent

trois typologies du phénomène intertextuel: intertextualité avec valeur de

captation, intertextualité avec valeur de subversion et intertextualité par

allusion. L‟analyses, qui sont qualitative et quantitative, soulignent, entre autres

aspects: l‟affinité de l‟écrivain avec le discours biblique; la dextérité avec

laquelle utilize les fragments bibliques dans la composition de ses textes; le

quantité trop expressive d‟affaires d‟allusion au texte biblique, qui, ancré dans la

mémoire discoursive – parce que c‟est moins explicites que l‟autres deux types

–, transcende le nivèl d‟une intertextuelle restreinte au contexte linguistique,

étant située au niveau le plus profonde de l‟implicite; et, finalement, une

quantitée inférieure, pourtant considerable, de cas de subversion,

particulièrement analysés du point de vue de la Théorie Polyphonique de

l‟Enonciation. L‟analyses confirment que l‟intertexte biblique expresse un ethos

chrétien à las chroniques de Lya Luft.

Rio de Janeiro

Maio de 2015

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .......................................................................................11

2. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS ..............................................................17

2.1 A Enunciação .......................................................................................17

2.2 Análise Semiolinguística do Discurso...............................................23

2.3 A Crônica Jornalística: um Gênero, um Contrato ............................30

2.4 A Intertextualidade...............................................................................37

2.5 O Conceito de Ethos ...........................................................................50

2.5.1 Ethos aristotélico ................................................................................51

2.5.2 Ethos discursivo .................................................................................52

2.5.3 Ethé e procedimentos enunciativos ....................................................55

3. METODOLOGIA ....................................................................................60

4. ANÁLISE DO CORPUS..........................................................................65

4.1 O corpus sob uma perspectiva qualitativa .......................................65

4.1.1 “Meu país é uma fênix” .......................................................................66

4.1.2 “A matança dos bebês” ......................................................................77

4.1.3 “A praga moderna” .............................................................................84

4.1.4 “Voz no deserto” .................................................................................92

4.1.5 Microanálises das ocorrências............................................................98

4.2 O corpus sob uma perspectiva quantitativa ...................................122

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................126

REFERÊNCIAS .........................................................................................129

ANEXOS ....................................................................................................134

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1. INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo investigar a construção de um ethos

discursivo, operada por meio de estratégias de intertextualidade, em crônicas

da escritora Lya Luft publicadas quinzenalmente na Revista Veja.

O percurso teórico-analítico que doravante se intenta percorrer nasce da

inquietação por responder certos questionamentos, tais como: I) de que forma

o sujeito falante emprega, particularmente o intertexto bíblico, como discurso

constituinte da crônica jornalística, resultando na projeção de uma

representação de si? II) Que classificação se pode atribuir ao ethos que é

expresso por meio dos índices de intertexto bíblico? III) Que sujeito se revela,

nos textos, por meio da construção desse ethos?

Uma determinada área dos estudos da linguagem, que se ocupa da

investigação em torno das problemáticas enunciativas envolvidas nos discursos

em geral, vem defendendo, nas últimas décadas, a ideia de que qualquer

manifestação verbal é passível de apresentar marcas, de natureza linguístico-

discursiva, que podem denunciar traços de subjetividade daquele que enuncia.

Embora tais marcas variem de sujeito para sujeito, todas comungam do fato de

que apontam para uma determinada atitude e para uma imagem de si que o

sujeito, intencionalmente ou não, acaba por projetar em sua fala.

Quando, a título de exemplo, Deus pronuncia seu primeiro enunciado

conhecido – “Haja luz” –, a imagem de Supremo se sobressai, pois a partir de

um imperativo, Ele se mostra no controle de toda a natureza criada. Assim

sendo, não se trata exatamente do estilo, da forma ou da maneira de dizer,

embora estes sejam alguns vestígios essenciais. Diz respeito a uma identidade

assumida, percebida e atribuída a esse sujeito. Essa identidade resulta em um

modo de se projetar “Supremo”, sem que seja necessário que o falante enuncie

claramente: “Eu sou Supremo; portanto, que haja luz!”.

À atitude do sujeito falante que resulta na construção de uma imagem de

si no discurso, dá-se o nome de ethos, conceito explorado desde a antiguidade,

com os retóricos, e que foi incorporado aos estudos sobre o discurso, sendo,

por isso, retomado sob o rótulo de ethos discursivo.

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Em síntese, esta pesquisa visa a examinar a construção de um ethos

religioso cristão expresso por meio de elementos intertextuais que remetem ao

texto bíblico, empregados em crônicas da escritora Lya Luft.

É importante antecipar que a forma como se definiu nomear o referido

fenômeno – ethos religioso cristão – não deve servir para identificar a opção

religiosa do indivíduo real que escreve as crônicas, a pessoa Lya Luft, já que

se trata de instâncias enunciativas inscritas para além da “superfície” do texto

escrito. Embora não seja improvável que a imagem de si no discurso de um

sujeito possa coincidir com alguns de seus traços reais, acredita-se, com

Charaudeau (2011), que o ethos não é uma propriedade exclusiva daquele que

fala, já que é construído também por meio dos “dados trazidos pelo próprio ato

de linguagem” (op.cit., p.115).

A própria escritora, em uma de suas crônicas acerca do Natal, publicada

em 2008, faz a seguinte afirmação, relembrando os tempos de sua infância:

“Não éramos particularmente religiosos, mas uma de minhas avós, luterana

convicta, na manhã seguinte [à ceia de Natal] me levava à igrejinha, onde eu

gostava de cantar”.1 E, em texto de 2013, outro comentário confirma que ela se

mantém relativamente neutra em relação à religião cristã, até os dias de hoje:

“Eu, que não sou muito praticante, mas acho religião, religiosidade, alguma

espiritualidade fundamentais, estou encantada com esse [papa] Francisco”.2

Mesmo sem se dizer adepta à religião cristã, a maneira como Lya Luft se

apropria do discurso bíblico, recorrendo, com isso, a diferentes formas de

intertextualidade em suas crônicas, é suficiente para instigar um estudo de

caráter descritivo acerca da construção de um ethos cristão nos textos desta

autora.

A partir de um quadro teórico definido pelas teorias da enunciação e pela

análise do discurso, o trabalho focaliza o fenômeno da intertextualidade, que

ocorre por meio de alusões e outros modos de referência à Bíblia Sagrada,

presente nas crônicas de Lya Luft. Partindo-se da hipótese de que os referidos

índices intertextuais encontrados nesses textos participam da encenação de

1 Acreditar no Natal, Veja, 24-12-2008. 2 Temos papa, temos pai, Veja, 27-03-2013.

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um ethos da cronista, procede-se aqui a uma análise de corpus de caráter

qualitativo e quantitativo.

A pesquisa implica uma variedade temática aparentemente complexa,

embora todos os tópicos envolvidos sejam oriundos dos mesmos fundamentos

teóricos. O modelo de análise do discurso que subsidiará esta pesquisa é o da

Teoria Semiolinguística, construída ao longo dos trabalhos de Charaudeau

(1983; 1992; 1996; 2001; 2007; 2008). O referencial teórico a que se recorre

contempla, ainda, necessariamente autores como Bakhtin (2002; 2003), com

seu princípio dialógico, que inspira a problemática da enunciação na

linguagem; Benveniste (1989; 2014), linguista que atribuiu um caráter mais

consistente ao estudo da enunciação, consagrando, assim, a Teoria da

Enunciação; além de outros autores desta linhagem, tais como Ducrot (1987),

que definiu o fenômeno da polifonia como um princípio do ato de linguagem, e

Maingueneau (1997; 2005), com sua proposta sobre interdiscursividade. No

que se refere à questão do ethos discursivo, serão revisitados, sobretudo, os

estudos de Maingueneau (1997, 2005b, 2008a); de Amossy (2005) e de

Charaudeau (2011). Também, ainda acerca do ethos, considerar-se-á o

trabalho de Ribeiro (2007) como referência de análise.

Os pressupostos teórico-metodológicos giram em torno da noção de

enunciação, a qual implica uma abordagem em que se assume a figura do

sujeito como elemento central. Postura semelhante determinou uma mudança

de orientação nos estudos sobre a linguagem, pois, se em um dado momento

postulou-se uma certa autonomia da língua nos processos de significação, hoje

é quase um consenso que o sujeito é o ponto de convergência desses

processos, tendo em vista que não é possível construir sentidos

independentemente da (inter)ação subjetiva.

Tendo em vista que o modelo semiolinguístico se inscreve em um

quadro sociocomunicacional bastante peculiar em relação às outras análises

do discurso, julga-se pertinente delimitar a finalidade desta teoria do discurso.

Na visão de Charaudeau, aliás, discurso está relacionado ao fenômeno de

encenação do ato de linguagem, o qual, por hora, pode ser considerado como

sinônimo de texto, não considerado somente como a materialidade linguística,

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mas como o conjunto de contextos (linguístico, situacional, cultural) de

produção de um enunciado.

Sabendo-se, pois, de antemão, que a teoria semiolinguistica reconhece

o desdobramento (não-unicidade) do sujeito falante, estando envolvidos, então,

mais do que apenas um locutor empírico, Charaudeau sugere que, para

analisar um ato de linguagem, “a tradicional questão feita a um texto sob a

forma: „Quem fala?‟ seja substituída por outra: „Quem o texto faz falar?‟, ou

„quais sujeitos o texto faz falar?‟” (CHARAUDEAU, 2008, p.63).

Estas são questões que devem, a priori, conduzir o sujeito analisante, o

qual se encontra “em uma posição de coletor de pontos de vista

interpretativos”, e que “deve dar conta dos possíveis interpretativos que surgem

(ou se cristalizam) no ponto de encontro dos dois processos de produção e

interpretação” (op. cit.).

Vale antecipar, ainda, que um dos conceitos centrais na abordagem

semiolinguística é o de contrato comunicacional, o qual prevê tanto o

desdobramento dos sujeitos envolvidos no ato de linguagem – EU e TU –

quanto as possibilidades e restrições de uma situação de troca. Considera-se

que essa noção é fundamental na busca pela definição de algum gênero

discursivo, tendo em vista que o contrato comunicacional é determinante para

instruir uma situação de comunicação específica.

Os procedimentos de análise e o quadro teórico definidos acima serão

os instrumentos de pesquisa utilizados para o exame das seguintes hipóteses:

1. uma hipótese inicial, segundo a qual a ocorrência do intertexto bíblico

nas crônicas de Lya Luft expressaria um ethos religioso cristão. A

confirmação desta hipótese mais genérica se dará em consequência da

ratificação das demais hipóteses, de teor mais específico;

2. uma segunda hipótese, de acordo com a qual a manifestação do

intertexto bíblico revelaria um conhecimento especificamente

aprofundado da Bíblia por parte da cronista, visto que as frases,

expressões e palavras referentes ao texto bíblico são extraídas de

partes muito diversas, do Antigo e do Novo Testamento;

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3. uma terceira hipótese, segundo a qual os casos de intertextualidade por

subversão – em que ocorre a alteração ou adulteração do texto-fonte –

seriam indícios de uma forte intimidade com o discurso bíblico,

permitindo à cronista o engendramento de novas significações em seu

discurso. Esta hipótese seria uma consequência da anterior, ou seja, o

conhecimento aprofundado do texto bíblico marcaria a natureza intimista

de Lya Luft com as expressões bíblicas que ela emprega em seu

discurso, a ponto de jogar deliberadamente com as palavras. Para a

ratificação desta hipótese, deverá ser considerada, sobretudo, a

habilidade com a qual a escritora retextualiza as expressões originais;

4. uma quarta hipótese, pela qual se revelaria que o intertexto bíblico

participa da orientação argumentativa que a cronista busca imprimir em

seus textos;

5. uma quinta hipótese, pela qual se atestaria o recurso ao intertexto

bíblico como um fenômeno recorrente nas crônicas de Lya Luft;

6. uma sexta hipótese, segundo a qual a construção do referido ethos

cristão se dá preferencialmente por meio de formas intertextuais de

natureza mais implícitas, considerando-se uma escala de implicitude;

7. uma sétima e última hipótese, que prevê que o ethos religioso cristão se

expressa também – mas não somente – na dinâmica polifônica, numa

relação entre o dito e o já-dito, entre as vozes das instâncias

enunciativas identificadas em um determinado percentual das

ocorrências registradas.

Note-se que, enquanto a hipótese (1) será confirmada no quadro geral

das análises, as hipóteses (2), (3) e (4) serão ratificadas pela análise

qualitativa, ao passo que as hipóteses (5), (6) e (7) deverão ser sustentadas,

sobretudo, pela análise quantitativa.

A confirmação dessas hipóteses, ao final da pesquisa, deverá avalizar a

tese a ser defendida, a saber: diferentes estratégias de intertextualidade

concorrem para a construção de um ethos religioso cristão em crônicas de Lya

Luft publicadas na revista Veja.

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A fim de alcançar os objetivos apresentados e de comprovar as

hipóteses delineadas, o trabalho segue dividido em mais quatro capítulos.

O capítulo 2, após esta breve introdução, deverá apresentar o quadro

teórico elencado para a pesquisa, retomando temas como a teoria da

enunciação; a teoria semiolinguística; aspectos quanto à intertextualidade,

polifonia e interdiscursividade; a definição de ethos discursivo; além de uma

seção dedicada a algumas problemáticas para a definição do gênero crônica

jornalística.

No capítulo 3, capítulo que trata da metodologia com a qual se

procederá às análises, será explicado qual deverá ser o tratamento dado ao

corpus e aos dados encontrados, isto é, que elementos apresentados no

capítulo 2 – Pressupostos Teóricos – serão de utilidade para o exame das

crônicas.

No capítulo 4, operam-se as análises qualitativa e quantitativa do

corpus, apresentam-se os resultados obtidos, confirmam-se hipóteses e

colocam-se algumas considerações parciais sobre a pesquisa.

No capítulo 5, tecem-se as “Considerações Finais” acerca da articulação

entre o percurso teórico proposto, a metodologia adotada e as análises

operadas. Além disso, este capítulo deverá argumentar em favor das

contribuições desta pesquisa para os estudos do discurso e, em caráter

específico, para aqueles que se interessam pelo fenômeno do ethos discursivo

aqui focalizado.

Após a apresentação das referências, estão disponíveis, na seção

“Anexos”, as crônicas constantes do corpus, com exceção daquelas que já

serão previamente mostradas, em sua íntegra, no capítulo de análises.

Por meio deste itinerário, acredita-se que este trabalho deverá se

destacar não somente pela relevância dos temas envolvidos para os estudos

sobre o discurso, mas, sobretudo, por trazer à tona uma investigação que

revela de que forma o discurso bíblico, mesmo fragmentado ou até implícito, se

imiscui no discurso jornalístico como expressão de um ethos cristão.

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2. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

2.1 A Enunciação

Ao se considerar o percurso teórico das principais tendências

linguísticas do século XX, é fundamental conhecer alguns momentos

definidores. O primeiro deles remonta ao estruturalismo, cuja paternidade, no

âmbito dos estudos da linguagem, se atribui a Saussure. Ao estabelecer sua

dicotomia básica, langue/parole, sua intenção foi, sem dúvida, lançar o olhar

em direção àquilo que, naquele momento histórico, era essencial para o seu

fazer científico: a língua enquanto sistema abstrato. Uma célebre afirmação

confirma sua postura epistemológica diante da linguagem: “bem longe de dizer

que o objeto precede o ponto de vista, diríamos que é o ponto de vista que cria

o objeto” (SAUSSURE, 2006, p. 15).

Emergia a linguística da língua (langue), que sistematizou uma

importante fatia da linguagem com todo o rigor científico requerido para esse

fim. Ao focalizar a langue, de caráter social e estático, Saussure não

necessariamente julgou ser a parole, com sua natureza dinâmica e privada, um

fenômeno sem relevância para o fazer científico. Na verdade, foi o método que

o levou a fixar-se em um ponto no imenso universo da linguagem e, assim, a

declarar:

Se estudarmos a linguagem sob vários aspectos ao mesmo tempo, o objeto da Linguística nos aparecerá como um aglomerado confuso de coisas heteróclitas, sem liame entre si. [...] De fato, entre tantas dualidades, somente a língua parece suscetível duma definição autônoma e fornece um ponto de apoio satisfatório para o espírito (SAUSSURE, op. cit., pp.16-17).

Sem ir muito longe em uma noção geral de signo – semiologia –,

Saussure fundamenta uma teoria do signo linguístico – a linguística, e é o

método de estabelecimento de dicotomias que o levou a focalizar a linguística

da langue. Ainda que o empreendimento saussuriano tenha tido o mérito de

consagrar a linguística enquanto ciência, alguns teóricos se posicionam em

reação a tal modelo, seja em clara oposição a ele, como é o caso de Mikhail

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Bakhtin, seja para recondicioná-lo em um quadro que comporta o elemento

discursivo, como o faz Émile Benveniste.

Bakhtin (1992; 19973), em seus estudos voltados para o universo

literário, usou o termo “enunciação” para denominar a unidade mínima da

comunicação discursiva e um elo entre vários enunciados4, destacando já aí a

natureza dialógica e social da linguagem e o caráter de responsividade de cada

enunciação. Sua concepção de linguagem é fruto de uma postura crítica diante

de outras concepções, sobretudo diante do estruturalismo saussuriano. Para

justificar seu desconforto diante dessas tendências,

Bakhtin [Volochinov] propõe a observação da dinamicidade da linguagem e da natureza social da enunciação. Para tanto, desenvolve uma concepção de enunciação em que a língua é considerada em situações concretas, cujos interlocutores, espaço, tempo e projeto discursivo são fundamentais. Desse modo, o que importa não é o aspecto reiterável da forma linguística, mas sim seu caráter de novidade, o evento, aquilo que permite a circulação de posições avaliativas de sujeitos do discurso e a permanente renovação de sentidos (FLORES et al., 2009, p.99).

De fato, Bakhtin, desde seus primeiros trabalhos, inova ao questionar a

abordagem estruturalista, apontando para a inserção da subjetividade na

linguagem e para um conceito de enunciação como evento único, no qual os

sentidos são renovados pela ação do sujeito que necessariamente interage

com um “outro”, o qual garante sua existência. Ainda que, anteriormente, Bréal

(1897) já houvesse destacado a intervenção do sujeito na construção do texto

por meio de escolhas linguísticas por ele operadas, a proposta de Bakhtin

ganha relevo por tratar-se de um posicionamento reacionário à concepção

estruturalista.

Em Benveniste, contudo, é possível contemplar bases conceituais

sólidas para o estabelecimento de uma linguística do discurso, já que sua

proposta é baseada na ideia de que a língua comporta um ingrediente

semântico. A propósito da concepção de língua priorizada nos estudos de

Saussure, Benveniste aponta para a necessidade de se considerar, além do

sistema das formas – aquele privilegiado pelo paradigma estruturalista, o

3 O texto original é de 1929. 4 O Dicionário de Linguística da Enunciação (FLORES et al., 2009) registra que se equivalem, na obra bakhtiniana, os tratamentos dados ao enunciado e à enunciação.

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sistema do sentido produzido pela enunciação. Em uma de suas últimas

palestras, no Collège de France, ele reitera seu posicionamento acerca da

coexistência desses dois sistemas na língua, um dos seus pressupostos de

base:

Classificando a língua nos sistemas, articulando-a pelo signo, Saussure – paradoxalmente – a classificou entre os sistemas não significantes, aqueles cujos elementos nada significam sozinhos (sons, cores, sinais) e somente existem em oposições, entidades opositivas, o que é o caso dos fonemas, essencialmente não significantes. A esse sistema se opõe a língua um outro sistema (seria mesmo um sistema?), este do querer-dizer que está ligado à produção e à enunciação das frases, o semântico. [...] A doutrina saussuriana cobre apenas, sob as espécies da língua, a parte semiotizável da língua, seu inventário material. Ela não se aplica à língua como produção (BENVENISTE, 2014, p.191-192).5

As contribuições desse exímio estudioso foram fundamentais para os

estudos sobre a subjetividade na língua. Ao postular a existência de um

“aparelho formal da enunciação”, o linguista sugere que o emprego da língua,

em oposição ao emprego das formas da língua, necessariamente deixa marcas

da ação de um sujeito ao mobilizá-la num dado momento, e “a enunciação é

este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização”

(BENVENISTE, 1989, p.82).6 Cada vez que um sujeito locutor se designa como

“eu”, provocando, em consequência, a emergência de um “tu”, a quem se

dirige, a língua é discursivizada, e se manifesta aí a enunciação.

Assim, em Benveniste, a enunciação é o meio pelo qual se dá a

conversão da língua em discurso pela intervenção da subjetividade. As

reflexões do linguista atravessam, pois, dois eixos teóricos:

O sujeito é constituído nas práticas sociais de linguagem, uma vez que

sua existência é condicionada por uma intersubjetividade: “É um homem

falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro

homem, e a linguagem ensina a própria definição de homem”

(BENVENISTE, op. cit., p.285).

5 A edição original é de 2012, tendo sido elaborada a partir de registros do último curso ministrado por Benveniste, nos anos 1968 e 1969. 6 O texto original é de 1966.

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A subjetividade na língua é observada nas situações concretas de

emprego das formas da língua. Com relação ao uso dos pronomes,

Benveniste define: “Eu não emprego eu a não ser dirigindo-me a

alguém, que será na minha alocução um tu” (BENVENISTE, op. cit.,

p.286).

A partir desses fundamentos, Benveniste instaura a Teoria da

Enunciação que direciona, até os dias de hoje, os estudos sobre enunciação, e

é o ponto de partida para muitos pesquisadores que tomam o discurso e o

sentido como objetos de investigação. De filiação estruturalista, o autor inova

ao sugerir a articulação entre sujeito e estrutura. Nas palavras de Flores e

Teixeira (2005, p.30),

(...) se de um lado Benveniste mantém-se fiel ao pensamento de Saussure – na justa medida em que conserva concepções caras ao saussurianismo, tais como estrutura, relação, signo –, por outro apresenta meios de tratar da enunciação ou, como ele mesmo diria, do homem na língua.

Oswald Ducrot está no rol dos linguistas influenciados por Benveniste.

Autor de um programa teórico muito peculiar, sua proposta é a de uma

pragmática integrada à língua, e se baseia, para tanto, no quadro estruturalista

de Saussure, na Teoria da Enunciação de Benveniste e na pragmática anglo-

saxã.

Além da enunciação, outros dois temas se destacam nas investigações

de Ducrot: são os conceitos de polifonia e de argumentação. Visto, porém, que

ambos serão especificamente abordados nas próximas páginas, interessa

agora rever a noção de enunciação postulada por Anscombre e Ducrot (1983,

p.18) que a definem como “a atividade linguística exercida por aquele que fala

no momento em que fala”.

Vale dizer que, em Ducrot, o sujeito – “aquele que fala” – é uma

representação, e o “evento enunciação” pode ser atribuído a uma ou mais

instâncias discursivas, dentre as quais o locutor e o enunciador, cada qual com

seus desmembramentos. Tendo em vista essa complexidade na caracterização

da subjetividade no empreendimento de Ducrot, é possível compreender

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porque o linguista opta, na obra de 1987 – “O dizer e o dito” –, por uma

definição de enunciação sem comprometimento com o sujeito: “a enunciação é

o acontecimento constituído pelo aparecimento do enunciado” (DUCROT,

1987, p.168). À semelhança da afirmação basilar de toda a sua teoria, segundo

a qual “a argumentação está na língua”, é possível apreender também que a

enunciação está no enunciado.

Não se entenda, com isso, que Ducrot descarta o sujeito de sua

proposta. Sua opção em omitir o sujeito de sua definição de enunciação é

simplesmente fruto de um posicionamento científico. Na verdade, esse linguista

se coloca contra o pressuposto “da unicidade do sujeito falante”, o que fica

evidente em sua teoria polifônica (DUCROT, op. cit.), em que defende a

existência de diferentes representações do sujeito da enunciação no sentido do

enunciado.

Os estudos em torno da enunciação introduzidos, na linguística, por

Benveniste, foram determinantes para o desenvolvimento das teorias do

discurso, sobretudo ao colocar um sujeito ativo em evidência nas análises

textual-discursivas. De fato, ela – a enunciação – é hoje o ponto de partida para

as reflexões em torno da relação entre a língua em uso e a intervenção dos

sujeitos-enunciadores para a produção de sentido. Dessa forma, cabe aqui

uma outra definição em que a noção de sujeito parece estar pressuposta no

termo “enunciação”. Conforme Charaudeau e Maingueneau (2004, p.228):

(...) a enunciação constitui o pivô da relação entre a língua e o mundo: por um lado ela permite representar fatos no enunciado, mas por outro ela própria constitui um fato, um acontecimento único definido no tempo e no espaço.

Como se vê, embora os conceitos de enunciação apresentados possam

se diferenciar um pouco de um autor para outro, o certo é que, “com a Teoria

da Enunciação, a presença dos responsáveis pelo ato de linguagem, suas

identidades, seus estatutos e seus papéis são levados em consideração”

(CHARAUDEAU, 2008, p.19), e esse posicionamento subsidiará toda esta

pesquisa.

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Entre as tendências que sofreram influência direta do quadro teórico

aqui delineado, encontra-se a Análise do Discurso de linha francesa (AD), que,

ao longo de seu desenvolvimento enquanto metodologia de leitura, acabou por

acatar a ideia da existência de uma subjetividade na linguagem, não podendo

excluí-la das circunstâncias de produção discursiva.

Ainda que nos primórdios de sua existência, a AD defendesse que o

sujeito do discurso fosse plenamente determinado ou assujeitado pela posição

socioideológica que ocupa no universo dos discursos, viu-se, no

desdobramento de outras linhas de análise do discurso, que esse sujeito não

se configura como mera “travessia”.

Ao propor um modelo de análise capaz de integrar as múltiplas

dimensões envolvidas no ato de linguagem, articulando os planos linguístico e

situacional, Charaudeau é um dos que se colocam contra a ideia de um sujeito

inteiramente sobredeterminado pela língua ou por uma formação

socioideológica, afirmando que “nem tudo é jogado no pré-ato de enunciação, e

o sujeito falante não é simplesmente o porta-palavra de uma posição de poder”

(CHARAUDEAU, 1996, p.30).

Influenciado pela Teoria da Enunciação e pela Pragmática, ambas com

foco no sujeito – seja esse um sujeito do discurso seja um sujeito falante –,

Charaudeau lança um olhar inovador sobre a análise discursiva, colocando o

sujeito como ser da enunciação em um quadro teórico bastante particular.

Para concluir esta seção de forma a garantir a coerência da presente

pesquisa, julga-se necessário formular, em síntese, o tratamento que será

adotado quanto às noções de enunciação e de sujeito.

À primeira, será concebido que se expressa na relação entre a língua e

a realidade extralinguística no momento em que um enunciado é produzido. E

o sujeito, estando no centro da enunciação, pode ser visto como o ponto de

convergência da língua em discurso. A propósito dessa concepção de sujeito

que se adota, vale destacar ainda que as problemáticas a serem levantadas e

discutidas neste trabalho apontam para o desdobramento do sujeito, em

oposição à sua unicidade. Dessa forma, a postura que se assume é aquela

postulada por Ducrot (1987), para quem todo enunciado comporta mais de uma

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voz, cada qual correspondente a uma entidade enunciativa. Essa perspectiva

será revisada com mais pormenores, mais à frente, quando será abordada a

Teoria Polifônica da Enunciação, esboçada por Ducrot (op. cit.).

No momento, vale mencionar que um posicionamento bastante

semelhante ao de Ducrot é admitido por Charaudeau, em sua Teoria

Semiolinguística, que oferece uma abordagem mais atenta aos papéis

discursivos e sociais do(s) sujeito(s). Tal postura será mais bem explicitada na

próxima seção, ao lado de outros tópicos fulcrais dessa corrente teórica cujo

próprio fundador chama de “nova” análise do discurso.

2.2 A Análise Semiolinguística do Discurso

A Teoria Semiolinguística do Discurso (TSD) é uma corrente de estudos

desenvolvida pelo linguista francês, Patrick Charaudeau, no interior da Análise

do Discurso. A construção de seu quadro teórico-metodológico – sua “nova”

análise do discurso – tem origem na constatação de que a linguagem é

multidimensional, ainda que cada uma das dimensões que ela comporta seja

normalmente estudada de forma isolada, dependendo da perspectiva teórica

que se adota. Assim sendo, Charaudeau busca situar certos domínios num

projeto global de análise, com o intuito de “relacionar entre si determinados

questionamentos que tratam do fenômeno da linguagem – sendo uns mais

externos (lógica das ações e influência social), outros mais internos

(construção do sentido e construção do texto)” (CHARAUDEAU, 2007, p.13).

Esse posicionamento está diretamente relacionado com o termo

“semiolinguística”, proposto para definir sua corrente de estudos. O autor

destrincha essa terminologia explicando que o morfema semio-, de “semiosis”,

ressalta a relação forma-sentido que fundamenta a construção e a

configuração do sentido, ao passo que o morfema -linguística destaca que a

significação opera com a matéria verbal.

Analisar um discurso por uma abordagem semiolinguística implica

conceber a significação discursiva como o produto da articulação entre dois

componentes: o linguístico e o situacional. Ao primeiro relacionam-se as

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características internas do discurso – categorias de língua e configuração

estrutural da matéria linguística. O segundo refere-se à dimensão social, a toda

a realidade extralinguística, incluindo-se aí também os sujeitos envolvidos na

“encenação” do ato de linguagem.

Charaudeau (1996) avalia que, embora esses dois componentes sejam

autônomos em sua origem, estabelece-se entre eles uma relação de

interdependência para a construção da significação discursiva. Logo, ele evita

meticulosamente uma abordagem unilateral, seja a que privilegie o plano

social, seja a que contemple apenas o plano linguístico, “para o qual tudo o que

é „dizível‟ é expresso pela língua e, portanto, inscrito em marcas formais”

(CHARAUDEAU, op. cit., p.06). Sem uma articulação equilibrada não é

possível apreender a totalidade da significação discursiva de um ato de

linguagem.

Com essa postura, Charaudeau elabora uma teoria que concebe a

linguagem como “jogo de comunicação”, considerando, nesse “jogo” a

coexistência de um espaço externo e um espaço interno, relacionados,

respectivamente, às dimensões situacional e linguística. Nessa articulação

externo/interno e situacional/linguístico abrem-se dois espaços de atuação para

os sujeitos: o fazer e o dizer, assim definidos por Charaudeau (2001, p.28):

O fazer é o lugar da instância situacional que se auto-define pelo espaço que ocupam os responsáveis deste ato [...] O dizer é o lugar da instância discursiva que se auto-define como uma encenação da qual participam seres da palavra [...] Esta dupla realidade do dizer e do fazer nos leva a considerar que o ato de linguagem é uma totalidade que se compõe de um circuito externo (fazer) e de um circuito interno (dizer), indissociáveis um do outro.

Como se vê, uma das inovações da proposta teórica de Charaudeau

sugere um desdobramento dos sujeitos envolvidos no ato de comunicação, em

resposta ao modelo clássico sustentado por teóricos como Roman Jakobson,

que sugere um emissor e um receptor numa relação simétrica – este

paradigma está fundado em uma concepção de língua que supõe sujeitos

passivos e que privilegia apenas o conhecimento do código linguístico para fins

de comunicação. Charaudeau rejeita este modelo, que reduz a comunicação a

um mero fenômeno de transmissão de informação.

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A teoria semiolinguística é também determinada por um “postulado de

intencionalidade”, e o conceito norteador desse postulado é o de contrato de

comunicação, termo diretamente relacionado às condições situacionais de

produção discursiva. Esse contrato é estabelecido entre os parceiros da

comunicação – seres do Fazer – entre os quais se estabelece uma relação

necessária a sua própria existência, conforme explica Charaudeau (2001,

p.30):

(...) Na interação linguageira, vemos dois parceiros: o sujeito comunicante (EUc) e o sujeito interpretante (TUi), implicados no jogo que lhes é proposto por uma relação contratual.7 Essa relação contratual não se baseia nos estatutos sociais dos parceiros, do lado de fora da situação linguageira. Ela depende do “desafio” construído no e pelo ato de linguagem, desafio este que contém uma expectativa (o ato de linguagem vai ser bem sucedido ou não?). Isso faz com que os parceiros só existam na medida em que eles se reconheçam (e se “construam”) uns aos outros com os estatutos que eles imaginam.

Para que haja esse reconhecimento recíproco, é necessário que os

parceiros conheçam e se submetam às “normas” do contrato de comunicação.

A partir desse conceito, é possível pensar que cada situação de comunicação

pressupõe necessariamente alguns critérios que devem ser respeitados para

que o ato de linguagem seja válido. Quando se associa algum gênero

discursivo à essa relação contratual, fica evidente, por exemplo, que, se um

sujeito-poeta não atende a condição predeterminada de registrar seus poemas

em versos, está descumprindo uma “cláusula” desse acordo tácito entre ele e o

sujeito-interpretante. Da mesma forma ocorre, caso um juiz em um tribunal não

declare aberta a sessão, não seguindo, assim, o protocolo de abertura.

Dentro do contrato de comunicação, essas condições mínimas a serem

atendidas, que tornam legítimo o ato de linguagem e garantem a

intercompreensão em uma troca comunicativa, são o que Charaudeau

denomina de espaço de restrições. Uma vez, porém, que o sujeito comunicante

é dotado de uma intencionalidade que determina seu projeto de fala, é

previsível que, dentro desse espaço de restrições, ele recorra a certas

manobras que lhe são lícitas e que supõem, então, um espaço de estratégias,

7 Grifo em itálico do autor.

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“que corresponde às escolhas possíveis à disposição dos sujeitos na mise-en-

scène do ato de linguagem” (CHARAUDEAU, 2007, p.18).

Na teoria semiolinguística, é o contrato de comunicação que prevê a

inclusão dos sujeitos situados no circuito interno do ato de linguagem. Assim,

tem-se que, no circuito externo, encontram-se os seres do Fazer – o sujeito

emissor-produtor de um ato de linguagem (o sujeito comunicante - EUc) e o

sujeito receptor (o sujeito interpretante - TUi) desse ato de linguagem. No

circuito interno, por seu turno, encontram-se os protagonistas, seres do Dizer –

o sujeito enunciador (EUe) e o sujeito destinatário (TUd).

Como seres de fala da mise-en-scène (encenação), os protagonistas

EUe e TUd assumem diferentes facetas de acordo com os papéis que lhes são

atribuídos pelos parceiros EUc e TUi. Numa perspectiva “teatralizante” do ato

de linguagem, é possível pensar nos parceiros como “produtores”, e nos

protagonistas como os “atores” 8 desse ato.

Para Charaudeau, comunicar, mais do que transmitir uma informação, é

proceder a essa encenação, e tanto os seres de fala quanto os seres de ação

se correlacionam na produção dos efeitos de sentido. Nessa dinâmica, o EUc

coloca em cena um enunciador (EUe) dirigindo-se a um co-enunciador (TUd),

ambos idealizados. O EUe corresponde, pois, a uma projeção de EUc, o qual

tem a intenção de transmitir uma imagem de si (um ethos) no ato de

comunicação, imagem essa que pode coincidir ou não com a do ser que a

projetou.

Da autoridade de que é revestido o contrato de comunicação, como

regulador das práticas sociolinguageiras, emerge também o princípio do direito

à fala. Trata-se de uma condição, já mencionada, de reconhecimento recíproco

(porém não simétrico) entre o EU e o TU, ou, no dizer de Charaudeau (1996,

p.25), da necessidade “de que cada parceiro do ato de comunicação seja

reconhecido pelo outro como digno de ser escutado, em outras palavras como

tendo direito à palavra”. Esse reconhecimento está fundado em dois critérios:

8 Charaudeau prefere evitar a terminologia “ator”, da sociologia, temendo alguma confusão que ela acarretaria se empregada em uma teoria do discurso.

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I. a legitimidade, a fim de que um reconheça no outro uma autoridade

procedente de um Saber, relativo ao universo de discurso, ao saber

partilhado entre as partes, e de um Poder, posição que confere ao sujeito

comunicante uma identidade socioinstitucional;

II. a credibilidade, que representa a capacidade de saber fazer do sujeito, e

que permite julgá-lo competente em sua ação de sujeito comunicante.

É por atender a esses critérios que o sujeito se constitui como tal e é

apto a transformar um “mundo a significar” em “mundo significado”. Para

proceder a esse processo de transformação, o sujeito é autorizado a mobilizar

uma série de recursos linguísticos, o que inclui, num plano mais geral, os

modos de organização do discurso e as categorias de língua. O processo de

transformação é dependente de um processo de transação precedente entre

um sujeito falante e um sujeito falante destinatário, conforme consta no

esquema a seguir:9

Mundo Sujeito Mundo Sujeito a significar falante significado falante

destinatário

Processo de transformação

Processo de transação

Como se pode observar, para que o processo de transformação ocorra é

necessária a mobilização das instâncias envolvidas no processo de transação.

Isso ilustra uma concepção de linguagem segundo a qual a língua não possui

autonomia para construir significados, pois é essencialmente na relação

intersubjetiva que essa construção se opera.

A propósito dos modos de organização do discurso, Charaudeau (2008)

explica que correspondem aos princípios de organização da matéria linguística,

9 Cf. Charaudeau (2007, p.17).

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os quais são determinados pela finalidade comunicativa do sujeito falante –

enunciar, descrever, narrar, argumentar. Cada um desses modos é

caracterizado por uma função de base.

O modo de organização descritivo tem como função de base identificar

(nomear e situar) e qualificar seres, de forma objetiva ou não. O modo narrativo

é marcado pela construção de uma sucessão de ações de uma história com a

finalidade de produzir um relato. O modo argumentativo serve para descrever

as lógicas que se decompõem elas próprias em “explicativas” de fenômenos,

ante verdades preestabelecidas, e em “demonstrativas”, quando se trata de

estabelecer a verdade e sustentá-la. O modo enunciativo, conforme postula

Charaudeau (op. cit., p.74), é um caso particular:

(...) Por um lado, sua vocação essencial é a de dar conta da posição do locutor com relação ao interlocutor, a si mesmo e aos outros – o que resulta na construção de um aparelho enunciativo; por outro lado, e em nome dessa mesma vocação, esse Modo intervém na encenação de cada um dos três outros Modos de organização. É por isso que se pode dizer que este Modo comanda os demais [...].10

O modo enunciativo participa da encenação dos outros três modos, e

isso é decorrente do fato de que, em qualquer enunciação, essa categoria atua

no nível da conversão da língua em discurso. Isso significa que ele consiste na

organização das categorias da língua ao serem mobilizadas, a fim de dar conta

da posição assumida pelo sujeito falante – da sua atitude enunciativa –, a qual

pode revelar três funções do modo enunciativo:

estabelecer uma relação de influência do locutor sobre o interlocutor,

indicando um comportamento alocutivo;

expressar o ponto de vista do locutor, indicando um comportamento

elocutivo;

revelar a relação do locutor com um terceiro, indicando um

comportamento delocutivo.

10 Grifos em itálico do autor.

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As categorias modais, bem como as especificações enunciativas de

cada um dos comportamentos mencionados acima, estão relacionadas no

quadro a seguir, transcrito de Charaudeau (op. cit., p.85)

COMPORTAMENTOS

ENUNCIATIVOS

ESPECIFICAÇÕES

ENUNCIATIVAS

CATEGORIAS DE

LÍNGUA

RELAÇÃO DE INFLUÊNCIA

(relação do locutor

ao interlocutor)

ALOCUTIVO

Relação de força

(locutor/interlocutor) + -

Interpelação

Injunção Autorização

Aviso Julgamento Sugestão Proposta

Relação de pedido (locutor/interlocutor)

- +

Interrogação Petição

PONTO DE VISTA SOBRE O MUNDO

(relação do locutor consigo mesmo)

ELOCUTIVO

Modo de saber

Constatação Saber/ignorância

Avaliação Opinião Apreciação

Motivação

Obrigação Possibilidade

Querer Engajamento Promessa

Aceitação/recusa Acordo/desacordo

Declaração Decisão Proclamação

APAGAMENTO DO PONTO DE VISTA

(relação do locutor com um terceiro) DELOCUTIVO

como o mundo se impõe

Asserção

como outro fala

Discurso relatado

No primeiro caso – comportamento alocutivo –, vê-se configurada, por

meio de categorias de língua específicas, a ação do sujeito falante sobre seu

interlocutor (alocutário), na busca por incitá-lo a um dado comportamento. No

segundo caso – comportamento elocutivo –, o sujeito falante enuncia seu ponto

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de vista sem que o interlocutor esteja implicado, uma vez que é orientado por

um propósito referencial, estabelecendo-se uma relação entre aquele que

enuncia e o mundo. Neste caso, o efeito da enunciação produzida se dá por

meio de modalizações subjetivas, que expressem o ponto de vista interno do

sujeito falante. No terceiro caso – comportamento delocutivo – verifica-se o

apagamento do sujeito falante, pela ausência de marcas de primeira pessoa, e

a não implicação do interlocutor, o que resulta em uma enunciação

aparentemente objetiva.

As categorias modais (ou categorias de língua) classificam o conjunto de

procedimentos e expressões linguísticas que o locutor, em sua enunciação,

utiliza para modalizar subjetivamente os enunciados. São essas marcas

linguísticas, bem como o modo de organização do discurso, que irão indicar o

comportamento e, mais especificamente, a atitude do enunciador em relação a

sua enunciação.

É nesses índices linguísticos que o presente estudo se concentra e,

portanto, o modo enunciativo voltará a ser evocado nas próximas seções, a fim

de que possa ser um dos conceitos norteadores para a elucidação dos

resultados abstraídos pela análise do corpus.

De momento, é preciso discutir, de maneira particular, sobre o gênero

privilegiado nesta pesquisa: a crônica jornalística.

2.3 A Crônica Jornalística: um Gênero, um Contrato

No Dicionário de Gêneros Textuais (COSTA, 2009), a acepção de

crônica ocupa um número de linhas e de páginas bem maior se comparada a

tantos outros verbetes constantes da obra. Não é de surpreender, já que se

trata de um gênero textual de definição complexa, entre outros – o editorial, por

exemplo – que, como a crônica, possuem um acentuado teor opinativo, e cujas

marcas de subjetividade enunciativa são, consequentemente, mais explícitas.

Tal subjetividade é caracterizada por uma suposta liberdade...

A fim de se introduzir alguma definição, mesmo sem total precisão, deste

gênero textual, o referido Dicionário (op. cit.) fornece algumas caracterizações

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bastante pertinentes, sobretudo considerando-se particularmente a categoria

de crônicas que compõem o corpus desta pesquisa. Costa (op. cit., pp.79-81)

define, pois, que:

[...] Contemporaneamente, no jornalismo, em coluna de periódicos, assinada, pode vir em forma de notícias, comentários, algumas vezes críticos e polêmicos, abordando temas ligados a atividades culturais (...), políticas, econômicas, de divulgação científica, desportivas, etc. (...) Conforme a esfera social que retrata, recebe o nome de crônica literária, policial, esportiva, política, jornalística, etc. (...) Além do tipo narrativo, pode ser do tipo argumentativo ou expositivo, como textos de opinião sobre temas diversos de diversas áreas. A crônica é o único gênero literário produzido essencialmente para ser vinculado na imprensa, seja nas páginas de uma revista, seja nas de um jornal. Quer dizer, ela é feita com uma finalidade utilitária e predeterminada: agradar aos leitores dentro de um espaço sempre igual e com a mesma localização, criando-se assim, no transcurso dos dias ou das semanas, uma familiaridade entre o escritor e aqueles que o leem. (...) é leve e rápida, (...), numa cenografia de conversa amena, diferentemente, por exemplo, do editorial, que recupera os fatos midiáticos de maneira mais densa e formal. Sem regras preestabelecidas, (...), a crônica jornalística consolida o simulacro de relato informal de um “causo”. Essa liberdade discursiva privilegia o efeito de aproximação do enunciador em relação ao leitor [...]

Algumas das características acima mencionadas devem ser

consideradas. Primeiramente, fala-se em esfera social como um dos fatores

distintivos das várias espécies de crônica. Assume-se, pois, que as crônicas de

Lya Luft publicadas na revista semanal Veja estão inseridas na categoria de

crônica jornalística, já que a variedade temática com a qual a autora se

expressa impede a classificação de seus textos como pertencentes, por

exemplo, ao domínio político, embora “política” seja um tema frequente em

seus textos. Nesse sentido, é válido também um questionamento da afirmação

de Costa, segundo a qual a crônica seria “um gênero literário produzido

essencialmente para ser vinculado na imprensa”: se a crônica é produzida para

ser veiculada pela imprensa, não deveria ser qualificada primordialmente como

“jornalística”?

Além da noção de esfera social que, neste estudo, equivale ao

conhecido conceito de domínio discursivo ou domínio de prática (cf.

CHARAUDEAU, 2010b), a citação acima menciona uma “finalidade utilitária e

predeterminada”. Tais conceitos, no entanto, serão retomados mais adiante,

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uma vez que, antes de situá-los em uma proposta de pesquisa, cabe um

esclarecimento.

Partindo-se do pressuposto de que a problemática dos gêneros deve ser

considerada, aqui, por uma perspectiva sócio-comunicacional, faz-se pertinente

recorrer-se ao modelo de análise da teoria semiolinguística – por estar ela

inserida em um quadro comunicacional –, empregando-se, assim, as

terminologias e posicionamentos concernentes à questão dos gêneros

textuais/discursivos. Em outras palavras, é a teoria semiolinguística do

discurso, diluída na obra de Charaudeau, que irá fornecer o aparato teórico na

busca de situar a crônica jornalística no interior deste modelo comunicacional

de análise.

Nas palavras do autor, um estudo ponderado sobre os gêneros deve

estar apoiado em uma “teoria do fato linguageiro, dito de outra maneira, em

uma teoria do discurso na qual possamos conhecer os princípios gerais sobre

os quais ela se funda e os mecanismos que os colocam em funcionamento”

(CHARAUDEAU, 2010b, online). Acerca dos aspectos mais pertinentes para

tratar dos gêneros, ele registra a importância de dois pressupostos essenciais:

a) O primeiro desses pressupostos é o de que todo ato de linguagem se

realiza em uma dada situação de comunicação, a qual é definida

como o conjunto de dados situacionais não enunciados que

determinam parcialmente o sentido do ato de linguagem e que fariam

deste um objeto de troca, constituindo o contrato de comunicação

(CHARAUDEAU, op. cit.).

b) O segundo pressuposto é o de que o contrato comunicacional irá

fornecer instruções discursivas ao sujeito falante para tornar efetivo

seu projeto de fala, devendo, se deseja ser compreendido por seu

interlocutor, respeitar tais instruções (CHARAUDEAU, op. cit.).

A situação de comunicação

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Cada situação de comunicação é situada no interior de um domínio de

prática ou domínio de comunicação, cada qual resultante de um recorte do

espaço social – midiático, político, religioso, jurídico etc. Nesse modelo de

análise, o domínio de comunicação seria o nível mais abrangente, o que o

torna muito impreciso para caracterizar especificamente algum gênero

discursivo. O nível da situação de comunicação é, pois, aquele em que as

particularidades de cada situação de linguagem são tipificadas.

Toda situação de comunicação é estruturada, entre outros fatores, de

acordo com uma finalidade – visada – do ato de fala. Essa finalidade, por sua

vez, “corresponde a uma intencionalidade psico-sócio-discursiva que determina

a expectativa do ato de linguagem do sujeito falante e por conseguinte da

própria troca linguageira” (CHARARAUDEAU, op. cit., online).

Dado que toda situação de comunicação instrui uma ou mais visadas,

dentre as quais, uma (ou até duas, às vezes) é dominante, Charaudeau (2004,

p.25) registra que o domínio midiático seleciona

(...) uma visada dominante dupla: de informação, para responder à exigência democrática que quer que a opinião pública seja esclarecida sobre os acontecimentos que se produzem no espaço público; de incitação, para responder à exigência de concorrência comercial que quer que esse discurso se enderece ao maior número e, desse modo, procure captá-lo.

Observe-se que no nível situacional ainda não há possibilidade de se

caracterizar um gênero específico, visto que a dupla finalidade de

informar/incitar abrange toda a esfera midiática. Charaudeau (op. cit., p.26)

alerta que tentar distinguir uma categoria apenas por via de restrições

situacionais “não permite, por exemplo, distinguir, no interior da classe dos

textos jornalísticos, as diferenças que existem entre os diferentes tipos de

crônicas ou artigos”.

Sabe-se, por hora, que o corpus focalizado nesta pesquisa é composto

por crônicas pertencentes ao domínio de comunicação midiático e que, por

isso, são exemplares da esfera jornalística, assumindo, assim, o rótulo de

crônicas jornalísticas.

As instruções discursivas

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Charaudeau (2006), ao tratar especificamente de aspectos concernentes

ao domínio de comunicação midiático, propõe a existência de três modos

discursivos do tratamento da informação: acontecimento relatado,

acontecimento comentado e acontecimento provocado. A crônica jornalística se

situa no plano do acontecimento comentado e, aliás, está na zona superior do

eixo de [+ engajamento] entre os gêneros de comentário. Assim sendo, é o

cronista sujeito que goza de um espaço privilegiado de argumentação, em que

seus pontos de vista e avaliações podem suplantar a visada (finalidade)

midiática de informar.

Reside aí o problema do posicionamento do comentarista, uma vez que,

via de regra, o discurso comentado “é, em princípio, marcado por uma

argumentação de ponderação”, a qual consiste em:

(...) uma dosagem equilibrada entre julgamento pró e julgamento contra, entre apreciação favorável e apreciação desfavorável, entre exposição de uma determinada opinião ou de uma outra (muitas vezes contrária). Disso decorre uma argumentação em forma de gangorra, que corresponde de fato, a uma recusa em escolher entre os termos de uma alternativa, entre uma opinião e seu contrário (CHARAUDEAU, 2006, p.183).

Ora, situando a crônica no topo dos gêneros jornalísticos mais

opinativos, com alto grau de engajamento, Charaudeau (op. cit.) observa que

uma atitude de ponderação diante do acontecimento impõe restrições ao

campo de ação que o sujeito deve assumir como seu espaço de estratégias.

Se assim fosse, a crônica jornalística certamente deveria ser rebaixada a uma

categoria de gêneros de engajamento moderado, pois

Que tipo de engajamento pode ter o sujeito que procura comentar fatos, sabendo que não pode tomar partido, mas querendo, ao mesmo tempo, interpelar a consciência cidadã? E como interpelar sem tomar partido? Toda interpelação em nome de uma moral ou de uma causa, qualquer que seja sua extensão humana, implica tomar partido. Isso deveria ser levado em consideração pelos atores das mídias modernas que têm uma tendência cada vez mais marcada de fazer o jogo da interpelação (CHARAUDEAU, op. cit., p.184).

Vê-se que a crônica jornalística, como gênero dos mais emblemáticos do

acontecimento comentado, se configura como uma espécie de gênero

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transgressor ao mesmo tempo em que se assume como gênero em que se é

permitido transgredir.

Ao abordar a crônica jornalística da perspectiva das relações

contratuais, o que salta aos olhos é que o sujeito comunicante (EUc), instituído

cronista, dispõe de um amplo espaço de manobras para interagir com seu

interlocutor (TUi). Partindo desse mesmo entendimento, Mendes (2004, p.125)

explica que

(...) no domínio midiático, o hipergênero representado pelo jornal [ou revista] escrito apresenta, de um lado, gêneros que parecem exigir um registro estilístico mais normatizado, a exemplo do “editorial” e da “matéria” jornalística, e de outro lado, gêneros que oferecem mais liberdade para a emergência da criatividade e de uma construção estilística singular, mais característica do sujeito do que do próprio gênero, a exemplo do “artigo de opinião” e da “crônica”, que apresenta inclusive uma forte interface com o domínio literário.

Como o material de análise desta pesquisa é composto por crônicas de

uma autora em particular, nota-se inevitável que a definição deste gênero na

cena midiática passe pelo crivo da natureza estilística que caracteriza sua

individualidade.

Tendo em vista a complexidade de enquadramento desse gênero, por

conta de sua flexibilidade temática e estilística, parece ser coerente concordar

com o parecer de Mendes (op. cit., p.125), para quem “o estilo, associado a um

determinado gênero, enquanto regularidade formal, pode ser concebido como

característica típica desse gênero”. O autor adverte, no entanto, que o fato de o

estilo ser um traço em evidência na crônica não quer dizer que seja exclusivo.

Não se trata, portanto, de uma característica distintiva deste gênero midiático.

Uma forma coerente de se caracterizar a crônica, a fim de se definir uma

identidade mais concreta para este gênero consiste na busca por uma

definição para o sujeito cronista – o sujeito colocado em cena no momento de

produção/publicação de uma crônica. Recorrendo à literatura específica sobre

o tema, verifica-se que o cronista é visto como aquele

(...) que sabe atuar como consciência poética da atualidade (...) aquele que mantém vivo o interesse do seu público e converte a crônica em algo desejado pelos leitores. Atua como mediador literário entre os fatos que estão acontecendo e a psicologia coletiva (MELO, 1985, p.116).

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Embora haja o consenso de que a crônica é ornada de traços literários,

Melo (op. cit., p.116) assevera que “a crônica moderna configura-se como um

gênero eminentemente jornalístico”. Esse autor observa que além do “ar de

conversa fiada” e de “apreciação irônica dos acontecimentos”, assumido pela

crônica, ela é dotada de duas características fundamentais:

1) Fidelidade ao cotidiano, pela vinculação temática e analítica que

mantém em relação ao que está ocorrendo, aqui e agora; pela captação

dos estados emergentes da psicologia coletiva.

2) Crítica social, que corresponde a entrar fundo no significado dos atos e

sentimentos do homem.

A função de mediação entre os acontecimentos recentes e a psicologia

coletiva remete, necessariamente, ao contrato comunicacional firmado entre os

parceiros do circuito interno do ato de linguagem. É possível, assim, sem

pretensão de esgotar o assunto, definir a crônica pela relação contratual que se

impõe entre o sujeito enunciador e seu destinatário (leitor ideal/psicologia

coletiva), a qual deve levar em conta que o cronista está legitimado a significar

o mundo do acontecimento cotidiano primando pela fidelidade aos fatos, sem

deixar de dotar seu discurso de uma linguagem descontraída e pessoal.

Ao contrastar o sujeito enunciador da crônica com o do editorial,

Charaudeau (2006) constata que, embora ambos se caracterizem por um

engajamento relativamente livre da instância midiática, o editorialista tem sua

liberdade discursiva limitada pelo conjunto de temas de que dispõe –

essencialmente relacionados à política – e “porque seu ponto de vista implica o

engajamento de toda a redação do jornal” (p.235). O cronista, por sua vez,

além de dispor de um arsenal temático diversificado, pode “dar livre curso aos

seus próprios sentimentos, sua própria emoção, seus próprios julgamentos,

sem que isso constitua uma falta, pois nesse modo de enunciação a regra é a

subjetividade” (pp.235-236).

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Como se vê, no caso de um gênero do discurso com um apelo subjetivo

extremamente marcado, como é o caso da crônica jornalística, não é possível

abstrair dela traços distintivos, senão pela relação que se estabelece: entre o

sujeito falante e seu dizer – uma relação de ampla liberdade para se expressar;

e entre os sujeitos que participam da mise en scène do ato de linguagem –

uma relação de familiaridade e de cumplicidade entre enunciador e co-

enunciador.

2.4 A Intertextualidade

Atualmente, há um consenso ao se admitir que todo texto mantém uma

relação de diálogo com outros textos. Assim, é fato a inexistência de um texto

autônomo, isolado e, portanto, livre de aspectos intertextuais. Essa perspectiva

está alinhada com uma noção de sujeito como ser que se desdobra em muitos,

assumindo diferentes posições e vozes no discurso. Tal concepção, que se

opõe à ideia de unicidade do sujeito, está ancorada no conceito de polifonia de

Bakhtin, para quem toda produção discursiva é fruto da relação dialógica entre

um enunciado efetivamente produzido e discursos outros.

A noção de intertextualidade situa-se na intersecção das teorias do texto

e do discurso, ligando-se a elas por semelhanças conceituais. Devem-se

ressaltar, nesse sentido, as contribuições de Ducrot e seus seguidores, com a

teoria polifônica da enunciação, bem como as análises de Authier-Revuz sobre

a heterogeneidade constitutiva. É possível afirmar ainda que o conceito de

interdiscurso, defendido pela Análise do Discurso de linha francesa, iniciada

por Pêucheux, também tem influência nessa lista de terminologias. O certo é

que, no fundo, todas essas distintas perspectivas teóricas, por vezes

concebidas como um mesmo fenômeno, buscam um “fora do texto” ou um “já

dito” que explique o fenômeno das relações entre diferentes enunciados.

É válido esclarecer, porém, que embora haja alguma relação entre essas

noções, todas elas são definidas a partir de quadros teóricos e de métodos de

análise distintos.

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Postulada por Bakhtin, em seus estudos dedicados à análise da obra de

Dostoiévski, a polifonia é por ele definida como um “carnaval” ou “multiplicidade

de vozes” em interação no romance; vozes que, grosso modo, correspondem

aos próprios personagens, instituídos como sujeitos do discurso (cf. BAKHTIN,

2002).

A partir do postulado bakhtiniano, Ducrot (1987) elabora sua teoria

polifônica. Ele próprio afirma que se trata de “uma extensão (bastante livre) à

linguística dos trabalhos de Bakhtin sobre a literatura” (op. cit., p.163). Ducrot

propõe que todo enunciado comporta mais de um enunciador, cada qual

representando uma perspectiva ou ponto de vista diferente, sendo um deles

sempre correspondente à voz do locutor.

Assim, para Ducrot, um enunciado seria constituído de, pelo menos, um

enunciador E1 e um enunciador E2, sendo este portador da voz do locutor L.

No enunciado “Jorge não escreve bem”, dito por L, da perspectiva de E2, está

pressuposto um enunciador E1 que diz: “Jorge escreve bem”.

A propósito do conceito de heterogeneidade enunciativa, amplamente

recorrente nas pesquisas de Authier-Revuz (1982; 1990), vale mencionar seu

estudo sobre as formas de manifestação da heterogeneidade mostrada. Nele,

são descritas as formas linguísticas, marcadas e não marcadas, “de

representação de diferentes modos de negociação do sujeito falante com a

heterogeneidade constitutiva do seu discurso” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p.26).

Com esse procedimento, a autora se debruça sobre os elementos da

língua que indicam a inscrição do outro nos discursos. Necessariamente, sua

pesquisa contempla a análise e a descrição do discurso direto, indireto, das

aspas, das glosas, do discurso indireto livre, e de outros mecanismos da

linguagem. Também inspirada no modelo bakhtiniano, Authier-Revuz (1990,

p.27) assevera: “nenhuma palavra é „neutra‟, mas inevitavelmente „carregada‟,

„ocupada‟, „habitada‟, „atravessada‟ pelos discursos nos quais viveu sua

existência socialmente sustentada”.

A noção de intertextualidade foi introduzida na década de 60, no interior

da Crítica Literária, por Julia Kristeva (1974; 1974a). A partir do princípio

dialógico de Bakhtin, essa estudiosa propõe que cada evento discursivo se

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constitui como intertexto uma vez que resulta de uma atitude responsiva –

resultado, resposta ou eco – a textos anteriores e, ao mesmo tempo, supõe-se

como parte da cadeia discursiva que motivará a existência de textos

posteriormente escritos.

No âmbito dos estudos textuais, a intertextualidade é elencada como um

critério de textualidade, tendo em vista, segundo Koch (2008, p.60),

parafraseando Beaugrand & Dressler, que esse fenômeno “diz respeito aos

modos como a produção e recepção de um texto dependem do conhecimento

que se tenha de outros textos com os quais ele, de alguma forma, se

relaciona”. Em seu Dicionário de Análise do Discurso, Charaudeau e

Maingueneau (2004, p.288) afirmam ser a intertextualidade uma “propriedade

constitutiva de qualquer texto e o conjunto das relações explícitas ou implícitas

que um texto ou um grupo de textos determinado mantém com outros textos”.

Tais afirmações evidenciam que a presença de um “outro” no discurso do “eu”

é uma das razões de existência de qualquer texto, o que legitima a natureza

dialógica da linguagem.

Ao abordar o tema da intertextualidade em um trabalho de corpus e

objeto bem definidos, é necessário esclarecer a que formas de

intertextualidade se reporta o fenômeno analisado. Para tanto, é necessário

recorrer à literatura sobre o tema para se conhecer as categorias e os modos

de manifestação da intertextualidade.

Koch (2004) e Koch et al. (2008) distinguem intertextualidade em sentido

amplo e em sentido restrito. Explicam essas autoras que a intertextualidade em

sentido amplo é uma condição de existência do próprio discurso, e se aproxima

muito do que a Análise do Discurso concebe como interdiscursividade ou do

conceito de heterogeneidade constitutiva, postulado por Authier-Revuz, ou

ainda, mais remotamente, do conhecido dialogismo bakhtiniano.

A intertextualidade em sentido restrito refere-se, acompanhando Koch et

al. (op. cit.), à relação de um texto com outros textos previamente existentes,

isto é, efetivamente produzidos. Neste caso, as marcas dessa relação são

reveladas linguisticamente. Entre as modalidades do fenômeno intertextual em

sentido restrito – stricto sensu –, as autoras mencionam a distinção entre

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intertextualidade explícita e implícita. Atribuem à primeira os casos em que

ocorre citação da fonte do intertexto, tal como ocorre no discurso relatado. Já a

intertextualidade implícita acontece “sem citação expressa da fonte, cabendo

ao interlocutor recuperá-la na memória para construir o sentido do texto” (op.

cit., p.63). As formas explícitas e implícitas de intertextualidade

corresponderiam, no conhecido modelo de Authier-Revuz, às configurações

marcadas e não-marcadas de heterogeneidade mostrada.

Nesta pesquisa, os casos de intertextualidade focalizados são da ordem

do implícito, uma vez que são caracterizados pela inexistência de marcas de

heterogeneidade expressas graficamente ou mesmo menção de autoria. É

como ilustram os fragmentos a seguir, extraídos do corpus, cujos grifos em

negrito aparecem apenas nas transcrições:

1. “[...] Cresce a economia, encolhe a respeitabilidade; pisca uma

luzinha de esperança, mas a seriedade extraviou-se. Poucos andam à

sua procura. Aumenta o isolamento dos homens e mulheres públicos

respeitáveis, que mais parecem dinossauros sobreviventes de um tempo

em que seria totalmente impensável o que hoje é pão nosso de cada

dia [...]” (Não vou pra Pasárgada – 04-07-2007).

2. “[...] Menina de cidade do interior, só conheci a maravilhosa cultura

oriental muitos anos depois.

Adulta, descobri que a vida tem outros poços, nem todos divertidos. Um

deles agora se afunda como se não tivesse chão: o poço dos

escândalos nossos de cada dia, o poço da nossa desolação e dos

nossos enganos. Percebo que, a pior das situações, raras pessoas

ainda se dão ao trabalho de se preocupar de verdade [...]” (O instinto

animal – 18-07-2012).

3. “[...] por que algumas figuras até agora respeitadas no cenário público

parecem não ter vontade de ver desvendado logo esse segredo,

certamente velho conhecido de alguns iniciados?

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Mais do que intrigante, é um pouco assustador ver que alguns dos

acusados, talvez culpados, de qualquer forma os mais atingidos, em

lugar de abrir o cofre da verdade para mostrar sua inocência, tudo fazem

para que as chaves sejam jogadas no mar do ignorado. Ainda por

cima, erguem a marola das contra-acusações e das jogadas nem

sempre leais, para perturbar o bom andamento das coisas [...]” (Quem,

por quê? – 16-11-2005)

4. “[...] tudo é uma construção: a vida pessoal, a profissão, os ganhos,

as relações de amor e amizade, a família, a velhice (naturalmente tudo

isso sujeito a fatalidades como doença e outras, que ninguém controla).

Mas, mesmo em tempos de fatalidade, ter um pouco de economia, ter

uma casinha, ter um diploma, ter objetivos certamente ajuda a enfrentar

seja o que for. Podemos ser derrotados, mas não estaremos jogados na

cova dos leões do destino, totalmente desarmados. [...]” (Degraus da

ilusão – 06-06-2012).

Estabelecida a primeira distinção, entre intertextualidade explícita e

implícita, vale registrar uma segunda classificação, segundo a qual o fenômeno

intertextual pode ocorrer:

i) pelas semelhanças do enunciado-fonte com o enunciado produzido,

caracterizando o que Grésillon e Maingueneau (1984) chamam de captação; ou

ii) por meio de paródias e outros recursos de retextualização do enunciado-

fonte, resultando, na terminologia de Grésillon e Maingueneau (op. cit.), em

uma intertextualidade com valor de subversão.

Essas duas tipologias serão adotadas na análise do corpus em apreço

nesta pesquisa, sob as terminologias captação e subversão, por julgar-se que

traduzem, em certos termos, parte dos casos de intertextualidade identificados

nas crônicas constantes do corpus.

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Pode-se, porém, em outros casos, não coincidir exatamente com o que

os teóricos mencionados classificam como sendo uma ocorrência de captação

ou de subversão, sobretudo porque a classificação adotada por Koch et al.

(2008), de empréstimo de Grésillon e Maingueneau (1984), foi pensada por

conta da função argumentativa que o recurso à intertextualidade pode

desempenhar.

Os dados desta pesquisa, porém, revelam outros propósitos

comunicativos, especificamente determinados por meio do recurso ao intertexto

bíblico nas crônicas de Lya Luft. Saliente-se que o que se focaliza aqui é a

construção de um ethos cristão expresso por intermédio dos referidos índices

de intertextualidade que remetem ao discurso bíblico.

Nos fragmentos (1), (2) e (3), anteriormente transcritos, é possível

observar o comportamento do fenômeno intertextual, conforme ocorram com

valor de captação ou de subversão, sendo que:

o exemplo (1) apresenta uma ocorrência de intertextualidade com valor

de captação, uma vez que menciona fielmente uma famosa expressão

do texto bíblico, pão nosso de cada dia, um dos versos da bem

conhecida oração do Pai Nosso, a qual Jesus Cristo ensina em seu

Sermão do Monte, conforme registram o capítulo 6 do evangelho de

Mateus (cf. Bíblia de estudo NVI, op. cit., pp.1626-1627) e o capítulo 11

do evangelho de Lucas (p.1750).

Os exemplos (2) e (3), por sua vez, ilustram casos de intertextualidade

com valor de subversão. Pela análise de cada um, observa-se que:

no exemplo (2), o texto original (outrora reproduzido pela cronista,

conforme ilustra o exemplo 1), extraído da oração do Pai Nosso, “o pão

nosso de cada dia”, dá origem, na referida enunciação, à expressão os

escândalos nossos de cada dia, a qual,aliás, sugere uma conotação

negativa, em oposição ao sentido de esperança e fé que o verso bíblico

(original) produz;

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no exemplo (3), o texto original é extraído da passagem bíblica

encontrada no Livro de Miquéias, capítulo 7, versículo 19, em que o

profeta, dirigindo-se a Deus, assevera: “[...] pisarás as nossas maldades

e atirarás todos os nossos pecados nas profundezas do mar” (Bíblia de

estudo NVI, 2003, p.1547). Em uma versão mais tradicional da Bíblia

Sagrada, no idioma inglês, o trecho nas profundezas do mar traduz-se

por into the sea of forgetfulness, o que, em português, resultaria

literalmente em no mar do esquecimento. Essa transposição explica o

intertexto por subversão: “para que as chaves sejam jogadas no mar

do ignorado”, na crônica de Lya Luft.

Em seu trabalho, Koch et al. (2008) retomam, entre outros, os estudos

de Gérard Genette, contemplados em sua obra Palimpsestes (GENETTE,

1982), na qual propõe certas tipologias de uma intertextualidade restrita; e os

de Piègay-Gros, autora que redimensiona a proposta de Genette a fim de

aplicá-la ao estudo dos gêneros literários.

Com o olhar sobre a obra de Genette, Koch et al. (op. cit.) observam que

o autor estabelece, em princípio, que sua “intertextualidade restrita”

compreende as relações de co-presença efetiva entre textos, e sugere a

distinção estabelecida pelas autoras, entre intertextualidade explícita e

implícita, porém com uma subdivisão particular. Os casos de explicitude

abarcam a tipologia da citação marcada com alguma indicação tipográfica,

como o uso de aspas. Este é, pois, o tipo de intertextualidade concebida por

Genette como sendo de natureza explícita.

No plano da intertextualidade implícita, as autoras mencionam que

Genette a subdivide em: citação sem indicação de autoria ou marcas

tipográficas, alusão e plágio.

Destaque-se que a tipologia da alusão é particularmente essencial para

a presente pesquisa, tendo em vista que ela será a terceira categoria

intertextual elencada para a classificação das ocorrências verificadas no corpus

em análise, juntamente com as categorias de captação e subversão ora

mencionadas.

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Por isso, é conveniente concentrar-se, acompanhando Koch et al. (op.

cit.), no que propõe Genette, para quem, no dizer das autoras, a alusão ocorre

“quando um enunciado supõe a percepção de uma relação entre ele e um outro

ao qual remete tal ou tal de suas inflexões, que só são reconhecíveis para

quem tem conhecimento do texto-fonte” (KOCH et al., op. cit., p.123).

Na sequência, as autoras destacam que, na rediscussão proposta por

Piègay-Gros, esta autora se apoia no modelo de Genette e acrescenta, entre

os casos de intertextualidade explícita, o que chama de referência, e explicam

que “para Piègay-Gros, a referência (assim como a citação) remete o leitor a

um outro texto, embora não o cite literalmente” (KOCH et al., op. cit., p.125).

Entendendo que esta tipologia da referência mostra-se um tanto

imprecisa na definição de Piègay-Gros, Koch et al. (op. cit.), argumentam:

Mas perguntamos, se „não cita literalmente‟, não se poderia perfeitamente classificá-la como um caso de alusão, que se caracteriza naturalmente pela implicitude de sua referência? Se assim o for, a distinção entre a alusão (que é implícita) e referência (que é explícita) pode cair por terra. Por isso, sugerimos que, para manter a referência como um tipo de intertextualidade explícita de co-presença, é mais coerente considerá-la como uma remissão direta ou ao próprio texto como um todo (KOCH et al., op. cit., p.125).

A fim de estabelecer uma distinção funcional entre a citação, a

referência e a alusão, as autoras supracitadas estabelecem uma espécie de

escalonamento, em que situam a citação “no ponto mais alto de uma escala de

explicitude”, pois “por meio de códigos tipográficos, ela torna visível a inserção

de um texto em outro”, configurando-se como o tipo mais emblemático de

intertextualidade. A referência, por sua vez, se encontra em um nível

intermediário de explicitude, por não se realizar por meio de índices

tipográficos, requerendo “do co-enunciador um conhecimento prévio do texto a

que pertence”.

A modalidade da alusão se localiza no nível mais inferior da escala,

configurando-se, no dizer das autoras, como uma tentativa de implicitude. Elas

explicam que

(...) na alusão, não se convocam literalmente as palavras nem as entidades de um texto, porque se cogita que o co-enunciador possa compreender nas

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entrelinhas o que o enunciador deseja sugerir-lhe sem expressar diretamente” (KOCH et al., op. cit., p.127).

Registra-se, ainda, que o que se consideram como eventos alusivos são

ocasiões em que “um co-enunciador não domina inteiramente as informações

requeridas para se reconhecerem os sinais intertextuais”, conforme explicam

Koch et al. (2008). As autoras complementam, destacando que a falta desse

domínio ao co-enunciador não descaracteriza o fenômeno intertextual:

Embora admitamos, com Sant‟Anna (1988), que os casos de intertextualidade exijam uma memória cultural e que só um leitor mais informado os percebe, diremos que a compreensão depende, obviamente, do co-enunciador, mas não o processo intertextual em si, que não se aborta por isso, pois ganha autonomia ao vir ao mundo” (KOCH et al., op. cit., p.128).

A despeito de entender-se que Koch et al. (op. cit.) buscam um

consenso entre as várias definições de tipologias intertextuais abordadas em

sua obra, elas apontam para as incertezas existentes no campo da

intertextualidade em sentido restrito. Alertam para uma certa imprecisão na

distinção entre intertextualidade implícita e explícita operada por Genette e

acreditam que Piègay-Gros, ao adotar tal distinção, “incorre no mesmo

equívoco que Authier-Revuz comete ao dividir a heterogeneidade mostrada

em marcada e não-marcada” (p.130).

Diante desse quadro um tanto fluido, as autoras propõem um ponto de

vista que consideram ser mais equilibrado: “seria mais adequado considerar

variados graus de explicitude, evitando, assim, atribuir a marcação de

explicitude apenas àquelas classicamente reconhecidas” (KOCH et al., op. cit.,

p.130).

O exemplo (4) foi propositalmente deixado por último para que se ilustre

uma terceira tipologia, no que tange às categorias intertextuais. Além das

formas com valor de captação e de subversão, serão considerados exemplares

de intertextualidade por alusão, sequências textuais, pequenas construções

nominais ou vocábulos isolados, que, sem estabelecerem um paralelismo

formal exato com alguma passagem da Bíblia Sagrada, constituem elementos

intertextuais ainda menos explícitos. É o que ocorre em (4), uma vez que:

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a expressão cova dos leões marca uma alusão ao capítulo 6 do livro do

profeta Daniel (Bíblia de estudo NVI, 2003, pp.1465-1466), quando o

mesmo profeta, por não deixar de orar ao Senhor Deus, mesmo quando

isso lhe fora proibido por um decreto, foi atirado junto aos leões, por

ordem do rei Dario;

De acordo com o critério da escala de explicitude, sugerido por Koch et

al. (2008), serão adotadas aqui três terminologias para classificar os tipos de

intertextualidade identificados no corpus, procedimento que visa a tornar as

análises mais operacionais. Assim, retomando os exemplos dados, considerar-

se-á que, no interior de uma intertextualidade implícita, pensando-se, portanto,

em termos de graus de implicitude, e não de explicitude, como sugerem Koch

et al. (op. cit.):

os casos de intertextualidade com valor de captação situam-se em

um nível menos elevado (pouco profundo) de implicitude, por

corresponderem a menções (quase) fiéis do texto-origem, conforme

ilustra o exemplo (1);

os casos de intertextualidade com valor de subversão situam-se em

um nível intermediário de implicitude, pois requerem um esforço

maior para serem recuperados na memória discursiva do co-

enunciador, como ocorre nos exemplos (2) e (3);

os casos de intertextualidade por alusão situam-se no nível mais

elevado (mais profundo) da escala de implicitude, por serem, muitas

vezes, (quase) impossíveis de serem recuperados na memória do

co-enunciador, de acordo como ilustrado em (4).

Saliente-se, então, que no capítulo destinado às análises, serão estas as

três tipologias aplicadas para a classificação das ocorrências de intertexto

bíblico identificadas nas crônicas em apreço.

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Uma particularidade das ocorrências de intertexto bíblico reside na

autoridade indiscutível da voz de um hiperenunciador, que garante a “validade”

do enunciado e “sua adequação aos valores, aos fundamentos de uma

coletividade” (MAINGUENEAU, 2005a, p.78). O hiperenunciador manifesta-se,

então, com uma voz de autoridade, como o argumento irrefutável de uma

enunciação. Nos sermões religiosos de linhagem cristã, a presença do

hiperenunciador é, por excelência, bastante evidente, já que sua voz se faz

ouvir pela leitura da Palavra (a Bíblia), que fundamenta toda a comunicação do

pregador.

É certo, porém, que Lya Luft, ao recorrer ao intertexto bíblico, não tenha

a preocupação de evocar esse hiperenunciador para dar razão ao seu

discurso. É, contudo, inevitável não admitir sua presença nos exemplos dados,

mesmo quando nas ocorrências de subversão, pois aplicando a teoria

polifônica de Ducrot (1987) nesses casos, observa-se, paralelamente ao

enunciado reformulado E2, a presença de um enunciador E1, que

corresponderá sempre ao hiperenunciador.

Quanto ao co-enunciador, por serem os desvios do texto original

intencionalmente produzidos, é certo que a cronista conta com sua

competência de leitura para reconhecer essa fonte e para compreender seu

novo uso ao ser adaptado. Isso leva a crer que o “público invisível e

desconhecido” a quem o enunciador se dirige é visível ao menos para ele, não

no sentido da materialidade corpórea do auditório, obviamente, mas por ele

supor e crer que um mínimo de conhecimentos é partilhado entre ele e esse

“auditório”. Dessa forma, pode-se dizer que o enunciador prevê o co-

enunciador, também co-produtor do texto.

Outra observação relevante é que as escolhas operadas pela cronista,

ao retextualizar os fragmentos bíblicos, reconstruindo-os, nunca são aleatórias.

Trata-se, na verdade, de estratégias semântico-discursivas coerentes, que

propiciam o fluir do texto de acordo com o estilo da autora, com seus

propósitos comunicativos e com o universo de saberes partilhados.

Para compreender essa constatação, é preciso não apenas supor a

comunhão de conhecimentos entre enunciador e co-enunciador, mas também

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recorrer ao contexto linguístico (cotexto). Somente assim é legítimo, por

exemplo, interpretar o segmento “tudo fazem para que as chaves sejam

jogadas no mar do ignorado” como uma reiteração, de natureza metafórica, de

“parecem não ter vontade de ver desvendado logo esse segredo”, no parágrafo

anterior, em (3).

Enfim, dadas as perspectivas revisadas nesta seção, é possível formular

aquela que será levada em conta como método analítico nesta pesquisa. Na

verdade, o que se apresenta é uma tomada de posição construída a partir de

alguns conceitos que foram revisitados:

os casos de intertexto bíblico em foco na análise das crônicas de Lya Luft

serão distribuídos em três modalidades, conforme o grau de implicitude

verificado em cada um. São elas: intertextualidade com valor de captação,

intertextualidade com valor de subversão e intertextualidade por alusão;

as ocorrências do fenômeno intertextual serão também discutidas nos

termos da teoria polifônica (DUCROT, 1987), sendo que particularmente

os casos de intertextualidade por subversão serão submetidos à análise

de distribuição das vozes dos sujeitos – instâncias enunciativas –

envolvidos;

Além desses critérios, serão ainda identificadas certas operações de

retextualização, examinadas por Frasson (1991), rediscutidas por Koch et al.

(2008), e que, como se verá, são aplicáveis também aos dados apreciados

nesta pesquisa. A seguir, observe-se as quatro modalidades de retextualização

que as autoras registram juntamente com alguns de seus exemplos transcritos:

1) substituição

a) de fonemas:

E1: “Penso, logo existo”

E2: “Penso, logo hesito.” (Luiz Fernando Veríssimo, no conto

“Mínimas”)

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b) de palavras:

E1: “Quem espera sempre alcança.”

E2: “Quem espera nunca alcança.” (Chico Buarque, na composição

“Bom Conselho”)

2) Acréscimo

a) de formulação adversativa:

E1: “O amor é cego.”

E2: “O amor é cego. Mas tem o olfato superdesenvolvido.”

(Publicidade da Acqua de Fiori)

b) outros tipos de acréscimo:

E1: “A preguiça é a mãe de todos os males.”

E2: “A preguiça é a mãe de todos os males que não requerem muito

esforço” (L. F. Veríssimo, “Todo o Mal”, Veja, 22/07/1987)

c) por inversão da polaridade afirmação/negação:

E1: “Devagar se vai ao longe.”

E2: “Devagar é que não se vai ao longe” (C. Buarque, na composição

“Bom Conselho”)

3) Supressão

E1: “O que os olhos não veem, o coração não sente.”

E2: “O que os olhos veem o coração sente” (Veja, suplemento

publicitário de Brinquedos Estrela)

4) Transposição

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E1: “Pense duas vezes antes de agir.”

E2: “Aja duas vezes antes de pensar” (C. Buarque, na composição

“Bom Conselho”) (C. Buarque, na composição “Bom Conselho”)

Os exemplos não apenas ilustram as operações de retextualização

mencionadas, mas também constituem demonstrações de como a teoria

polifônica da enunciação se aplica a certos casos de subversão de um texto-

fonte.

Esse modelo de análise será adotado também aqui nesta pesquisa, uma

vez que é perfeitamente aplicável aos casos de subversão identificados no

corpus. O tratamento oferecido aos dados encontrados será mais bem

detalhado no capítulo 3, que trata da metodologia a ser empregada nas

análises.

Na próxima seção, a noção de ethos é revisitada a fim de se

compreender de que maneira o fenômeno intertextual focalizado se configura

linguisticamente como projeção de uma imagem de si no discurso das crônicas.

No caso específico desta pesquisa, acredita-se que o discurso bíblico avaliza a

construção de um ethos cristão nas crônicas de Lya Luft, hipótese que introduz

a investigação.

2.5 O Conceito de Ethos

Diversos são os estudiosos que, desde tempos remotos, se interessam

pelos fenômenos relacionados à representação do “eu” no discurso, tais como

as emoções e a argumentação. Esses estudos se estendem desde Aristóteles

até um setor específico das ciências humanas contemporâneas, que é aquele

que tem como objeto a língua e as problemáticas discursivas envolvidas no seu

funcionamento.

Assim, antes de se proceder a uma revisão do conceito de ethos

discursivo, é válido antecipar uma “distinção” entre a concepção aristotélica e a

concepção adotada pela análise do discurso. Essa distinção, porém, não é

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caracterizada por força de oposição, mas pelo alargamento teórico-

metodológico de uma em relação à outra.

2.5.1 Ethos aristotélico

Dentre as definições mais primitivas sobre ethos, a que repercute com

maior solidez nos estudos atuais sobre a atividade discursiva pode ser

identificada na Retórica, de Aristóteles. Nela, o ethos aparece junto ao logos e

ao pathos, formando a tríade dos elementos de prova que se pode conceber

pelo discurso. O logos se refere à própria argumentação, constituída por

argumentos verdadeiros ou prováveis; o pathos reúne os meios de persuasão

derivados das emoções (paixões) despertadas nos ouvintes (auditório) pelo

orador; e o ethos estaria ligado a aspectos morais ou éticos que o enunciador

confere a si por meio de seu modo de se expressar.

No dizer de Eggs (2005, p.29), Aristóteles, por julgar o ethos como a

mais importante das três provas engendradas pelo discurso, distancia-se “dos

retóricos de sua época, que entendiam que o ethos não contribui para a

persuasão”. Para estes, o ethos seria algo preexistente ao discurso, uma vez

que para aparentar virtuosidades, deve-se, inevitavelmente, ser virtuoso.

Para Aristóteles, bem como para seus adeptos, o ethos é construído

quando o orador busca projetar em seu discurso um caráter digno da obtenção

de adesão de um auditório. Conforme o pensador explica,

Persuade-se pelo caráter quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de fé. Pois acreditamos mais e bem mais depressa em pessoas honestas, em todas as coisas em geral, mas sobretudo nas de que não há conhecimento exato e que deixam margem para dúvida. É, porém, necessário que esta confiança seja resultado do discurso e não de uma opinião prévia sobre o caráter do orador [...] (ARISTÓTELES, 2012, 1356a p.13).

Nessa visão, pois, não é importante, para um auditório, que um orador

esteja sendo sincero em seu discurso. Não importa se a imagem de si

projetada pelo dizer de um orador corresponda à realidade de seu caráter.

Logra-se êxito quando esse sujeito imprime as virtudes de seu caráter no

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discurso, e, neste caso, o que conta não é a verdade em si, mas a aparência

de verdade – verossimilhança – construída no discurso.

É importante registrar que a definição de ethos desenhada por

Aristóteles fundamenta-se nas modalidades de discurso oral, de teor,

necessariamente, argumentativo, no âmbito, por exemplo, das esferas

filosófica, política e religiosa. Conforme se verá nos parágrafos a seguir, a

análise do discurso contemporânea reafirma o conceito aristotélico de ethos

partindo de, pelo menos, dois pressupostos gerais: 1) o de que o ethos é um

construto comum a todo o ato de linguagem, seja na modalidade oral, seja na

escrita; e 2) o de que, no rastro teórico deixado por Aristóteles, o ethos é um

fenômeno indissociável do ato de enunciação.

2.5.2 Ethos discursivo

Nas últimas décadas, um grupo de estudiosos em análise do discurso

vem desenvolvendo uma abordagem sobre o ethos iniciada por Aristóteles e,

agora, ampliada em alguns pontos. As contribuições mais relevantes podem

ser encontradas nos trabalhos de Maingueneau (1997; 2005b; 2008a) e Ducrot

(1987), além da obra organizada por Amossy (2005) e de um rico capítulo

sobre ethos constante do trabalho de Charaudeau (2011).

Embora esse conceito tenha raízes na tradição retórica, a sua difusão

nas ciências da linguagem, nas últimas décadas, é fruto da constatação de que

o ethos é um aspecto indissociável da enunciação. A esse respeito,

Maingueneau (2008a, p.11) afirma que “o reaparecimento dessa noção não se

deu, de saída, dentro do quadro da retórica, mas, sobretudo, por meio das

problemáticas relativas aos discursos”.11

De fato, enquanto a tradição aristotélica define ethos como uma projeção

intencional das qualificações morais do locutor através de seu discurso, com

11 Isso não significa, no entanto, que o posicionamento da retórica e o da análise discursivo-enunciativa sejam opostos entre si. Trata-se, em verdade, de um alargamento, uma extensão do emprego do conceito de ethos às análises discursivas de forma geral, e não apenas aos discursos tradicionalmente argumentativos. A própria noção de “credibilidade” do sujeito, cara à concepção aristotélica, é conceito basilar no programa teórico de Charaudeau e de outros estudiosos. Por essas razões, o ethos pode ser definido, de forma simplificada e genérica, como a imagem de si construída no (e pelo) discurso.

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evidência em sua capacidade de transmitir credibilidade pela persuasão do

alocutário, os estudos discursivos atuais partem do pressuposto relativamente

consensual de que

(...) toda fala implica a construção de uma imagem de si. Para tanto, não é necessário que o locutor faça seu retrato, detalhe suas qualidades nem mesmo que fale explicitamente de si próprio. Seu estilo, suas competência de linguagem e enciclopédicas, suas crenças implícitas bastam para dar uma representação de sua pessoa. Deliberadamente ou não, o locutor efetua assim no seu discurso uma apresentação de si (AMOSSY, 2005, p.09).

Um importante aspecto da apreensão discursiva do ethos é que, embora

as teorias mais atuais concebam um sujeito intencional, no que concerne ao

seu projeto de fala, a imagem que o locutor apresenta de si nem sempre é

deliberada, podendo, na maioria dos casos, ser inconsciente. Isso porque essa

imagem de si não é produzida pela fala de um sujeito efetivo, mas pelo

discurso de um sujeito enunciador que mostra e não necessariamente diz, o

que leva Maingueneau (2008a, p.13) a considerar que “a eficácia do ethos

reside no fato de ele se imiscuir em qualquer enunciação sem ser

explicitamente enunciado”.

O interesse das ciências da linguagem pela noção de ethos é observado

primeiramente em Ducrot (1987), em sua teoria polifônica da enunciação,

proposta no quadro mais amplo de uma pragmática linguística. Ao postular que

uma multiplicidade de vozes emerge de um único enunciado, Ducrot avalia que

a figura do locutor se desmembra em duas instâncias distintas, que são o

locutor enquanto ser do discurso (L) e o locutor enquanto ser do mundo (λ). Em

pragmática, essas instâncias correspondem respectivamente aos registros do

mostrado e do dito, e para corroborar a ideia acerca da primazia do primeiro

sobre o segundo, no que se refere ao ethos, é válido atentar-se à seguinte

passagem de Ducrot (op. cit., p.189):

Na minha terminologia, direi que o ethos está ligado a L, o locutor enquanto tal: é enquanto fonte de enunciação que ele se vê dotado de certos caracteres que, por contraponto, tornam essa enunciação aceitável ou desagradável. O que o orador poderia dizer de si, enquanto objeto da enunciação, diz, em contrapartida, respeito a λ, o ser do mundo, e não é este que está em questão na parte da retórica de que falo (...).

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Maingueneau (2005b) chama a atenção para a natureza do enunciador –

ser do discurso –, o qual ele considera como uma “instância subjetiva

encarnada que exerce o papel de fiador” (p.72). A subjetividade, vale dizer, não

corresponde ao ethos; porém, as marcas de subjetividade, ou seja, as escolhas

formais e o estilo que denunciam a intervenção do enunciador, é que se

configuram como a matéria de construção do ethos. Por essas escolhas, o

enunciador, intencionalmente ou não, se mostra em seu discurso.

É preciso ressaltar a relevância do papel do interlocutor na construção

do ethos. No caso dos textos escritos, a participação do leitor nessa construção

requer um forçoso trabalho de elaboração mental, que é operada a partir dos

índices linguísticos de subjetividade. Esse interlocutor, no entanto, pensado

como público (auditório), nem sempre depende da matéria textual para levantar

hipóteses sobre o ethos do enunciador. Ele pode fazê-lo antes mesmo que o

enunciador se manifeste pela palavra.

Essa representação antecipada do locutor é garantida, segundo

Maingueneau (op. cit.), por um caráter, que corresponde a um conjunto de

traços psicológicos; e, sobretudo, por uma corporalidade relativa “a uma forma

de vestir-se e de mover-se no espaço social”. A exposição social supõe, como

consequência, a construção de um ethos “prévio” ou “pré-discursivo”, dada a

inevitável inclinação dos meios sociais para a criação de estereótipos. O ethos

pré-discursivo se baseia exatamente na estereotipagem, que, como define

Amossy (2005, pp.125-126),

(...) é a operação que consiste em pensar o real por meio de uma representação cultural preexistente, um esquema coletivo cristalizado. Assim, a comunidade avalia e percebe o indivíduo segundo um modelo pré-construído da categoria por ela difundida e no interior da qual ela o classifica. Se se tratar de uma personalidade conhecida, ele será percebido por meio da imagem pública forjada pelas mídias.

Neste caso, o que estaria em jogo seria o ethos de um locutor enquanto

ser do mundo enquanto sujeito social. Entende-se, porém, que assumir um

posicionamento que concebe o ethos apenas como algo preexistente ao

discurso resulta em priorizar, em uma análise ou leitura, os estereótipos

culturais em detrimento do que concerne à enunciação. Acompanhando a

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postura assumida por Charaudeau (2011), acredita-se, aqui, que os dois

aspectos devem ser considerados, conforme explica o autor:

De fato, o ethos, enquanto imagem que se liga àquele que fala, não é uma propriedade exclusiva dele; ele é antes de tudo a imagem de que se transveste o interlocutor a partir daquilo que diz. O ethos relaciona-se ao cruzamento de olhares: olhar do outro sobre aquele que fala, olhar daquele que fala sobre a maneira como ele pensa que o outro o vê. Ora, para construir a imagem do sujeito que fala, esse outro se apoia ao mesmo tempo nos dados preexistentes ao discurso – o que ele sabe a priori do locutor – e nos dados trazidos pelo próprio ato de linguagem (CHARAUDEAU, op. cit., p.115).

Charaudeau justifica sua postura trazendo à baila um dos pressupostos

fulcrais de sua teoria segundo a qual o sujeito falante é dotado de uma dupla

identidade – uma social e outra discursiva – e, por isso, se desdobra em duas

instâncias:

um locutor, responsável pelo fazer comunicacional, representado por

EUc, cuja identidade social “lhe dá direito à palavra” e “funda sua

legitimidade de ser comunicante em função do estatuto e do papel que

lhe são atribuídos pela situação de comunicação” (op. cit.); e

um enunciador, instituído ser do dizer (discurso), representado por EUe,

cuja identidade discursiva corresponde a uma construção, operada pelo

sujeito, de “uma figura daquele que enuncia” (op. cit.), fruto das

restrições impostas pela situação de comunicação e das estratégias

possíveis ao sujeito falante.

Para Charaudeau, o ethos é o resultado da fusão da dupla identidade do

sujeito falante – uma identidade social de locutor e uma identidade discursiva

de enunciador – em apenas uma. Por esse motivo, afirma o autor, “o sentido

veiculado por nossas palavras depende ao mesmo tempo daquilo que somos e

daquilo que dizemos” (CHARAUDEAU, op. cit., p.115).

2.5.3 Ethé e procedimentos enunciativos

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Na seção 2.3, em que foi apresentada, em linhas gerais, a teoria

semiolinguística do discurso, ficou esclarecido que, entre os quatro modos de

organização do discurso – enunciativo, descritivo, narrativo e argumentativo –,

o modo enunciativo exerce uma função particular. Acerca dessa categoria,

Charaudeau (2008, p.74) registra:

(...) Por um lado, sua vocação essencial é a de dar conta da posição do locutor com relação ao interlocutor, a si mesmo e aos outros – o que resulta na construção de um aparelho enunciativo; por outro lado, e em nome dessa mesma vocação, esse Modo intervém na encenação de cada um dos três outros Modos de organização. É por isso que se pode dizer que este Modo comanda os demais [...].

A depender da atitude enunciativa assumida pelo sujeito falante, o modo

enunciativo poderá exercer as funções de: estabelecer uma relação de

influência do locutor sobre o interlocutor, indicando um comportamento

alocutivo; expressar o ponto de vista do locutor, indicando um comportamento

elocutivo; revelar a relação do locutor com um terceiro, indicando um

comportamento delocutivo. Neste último caso, ressalta-se que o sujeito falante,

além de se apagar, numa aparente atitude de neutralidade, também não

implica seu interlocutor.

Serão retomadas, a seguir, as especificações enunciativas e as

categorias de língua que caracterizam cada uma das três funções do modo

enunciativo (cf. tabela – p. 25). O objetivo, aqui, é buscar associar a construção

do ethos a cada uma dessas funções.

A enunciação elocutiva

De acordo com Charaudeau (2011, p.68), a enunciação elocutiva

É expressa com a ajuda de pronomes pessoais de primeira pessoa acompanhados de verbos modais, de advérbios e de qualificativos que revelam a implicação do orador e descrevem seu ponto de vista pessoal: “eu contesto”, “eu estou certo de que juntos venceremos”, “nós somos capazes de modernizar nosso país”, “Eu decidi ser candidato”, “Eu confesso a vocês que [...]”, “Ao menos é a minha opinião”.

12

12 Grifos do autor.

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A propósito do modo elocutivo, pode-se observar, por exemplo, que

enunciações marcadas pelo emprego do pronome “nós”/”a gente” podem estar

associadas à construção de um ethos de solidariedade do locutor, uma vez que

se mostra mais próximo de seu interlocutor.

A modalidade da confissão pode ser indício de um ethos de humildade e

de sinceridade, já que, neste caso, o locutor reconhece sua culpa ao revelar,

ao interlocutor, “um saber que o colocaria em causa” (CHARAUDEAU, 2008,

p.98).

As modalidades do saber e da convicção, por sua vez, podem auxiliar na

construção de um ethos de credibilidade. A depender do “tom” da afirmação e

da articulação de seu modo de falar, ao locutor pode ser atribuída uma imagem

daquele que é digno de crédito. Obviamente, isso também dependerá da

identidade social do sujeito falante, de uma imagem preexistente à enunciação.

A enunciação alocutiva

No caso do comportamento alocutivo, “o sujeito falante enuncia sua

posição em relação ao interlocutor no momento em que, com seu dizer, o

implica e lhe impõe um comportamento. Assim, o locutor age sobre o

interlocutor” (CHARAUDEAU, op. cit, p.82).

Nesse tipo de enunciação, o sujeito falante pode atribuir dois tipos

distintos de papéis linguageiros a si e ao seu interlocutor, indicando a posição

de cada um em uma situação de troca:

– O sujeito falante se enuncia em posição de superioridade em relação ao interlocutor, atribuindo a si papéis que impõem ao interlocutor a execução de uma ação (“fazer fazer” / “fazer dizer”). Essa imposição do locutor sobre o interlocutor estabelece entre ambos uma relação de força. É o caso das modalidades de “Injunção”, “Interpelação”, etc. – O sujeito falante se enuncia em posição de inferioridade em relação ao interlocutor e assume papéis nos quais necessita do “saber” e do “poder fazer” do interlocutor. Produz-se uma “solicitação” do locutor ao interlocutor, o que estabelece entre ambos uma relação de petição. É o caso das modalidades de “Interrogação” e de “Petição” (CHARAUDEAU, op. cit., p.82).13

13 Grifos do autor.

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No primeiro caso, em que o locutor assume posição de superioridade, é

possível evocar, pela modalidade de injunção um ethos de autoridade, uma vez

que esse locutor: enuncia “uma ação a realizar („a dizer‟ ou „a fazer‟)”; “impõe

essa ação ao interlocutor de maneira cominatória”, mandando, ordenando,

intimando; e “atribui a si um estatuto de poder”. Esse mesmo ethos pode ser

reconhecido quando do emprego da categoria de autorização. Neste caso, o

locutor, entre outros papéis, “julga que o interlocutor está apto a executar a

ação e que as circunstâncias são adequadas” (CHARAUDEAU, op. cit., p.82).

Já no segundo caso, em que o locutor se encontra em posição de

inferioridade, pode-se, por meio da modalidade de petição, evocar um ethos de

carência ou de humildade. Ocorre que o locutor, julgando-se “impotente para

melhorar a situação por si mesmo”, necessita da intervenção (ação) do

interlocutor para melhorar sua situação. Alguns exemplos de petições

sugeridos por Charaudeau (op. cit.) são: “Peço que você apóie minha

candidatura”; “Solicito providências urgentes”; “Imploro o perdão de Sua

Majestade”; “Você pode me ajudar”. As formas em negrito integram uma

espécie de “aparato modal” para os casos de petição.

A enunciação delocutiva

A enunciação delocutiva é caracterizada pelo apagamento do locutor e

pela não implicação do interlocutor, numa espécie de neutralização de qualquer

traço de subjetividade. Ocorre por meio do emprego de asserções ou quando

se recorre ao discurso relatado.

Neste último caso, pode-se pensar na construção de um ethos de

objetividade, o que irá depender do distanciamento do locutor nas hipóteses,

por exemplo: de um discurso citado, como em: “Ele disse: „meu carro está

quebrado‟”; ou de um discurso evocado, como é o caso das citações de

máximas e de provérbios, do tipo: “É como se diz: „quem ama o feio, bonito lhe

parece‟”.

Em linhas gerais, o que se viu nesta seção são alguns dos pressupostos

sobre o conceito de ethos discursivo. Para esta pesquisa, compreende-se que

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o ethos é inscrito no próprio ato de enunciação ou, como afirma Charaudeau

(2011, p.114), “no próprio dizer do sujeito que fala”. Sabe-se, no entanto, que a

imagem de si construída por esse sujeito pode estar ligada, ao mesmo tempo,

à sua identidade social, isto é, a uma imagem de si construída previamente à

produção do ato de linguagem.

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3 METODOLOGIA

O material de análise que constitui o corpus desta pesquisa é composto

por 53 crônicas da escritora Lya Luft, que tem seus textos publicados

quinzenalmente na revista Veja, um dos grandes periódicos semanais que

circulam no Brasil. Os textos foram selecionados dentre um total de 228

crônicas que foram publicadas entre os anos de 2005 e 2013. Em outras

palavras, desse montante de 228, 53 crônicas apresentaram índices de

intertexto bíblico.

As análises, conforme se antecipou na introdução, serão de caráter

qualitativo e quantitativo, visando a um melhor aproveitamento dos dados e a

garantir, de forma mais precisa, a confirmação das hipóteses levantadas.

A análise qualitativa atenderá a expectativa de se verificar o quão

relevantes são os dados, a saber, as marcas verbais de intertexto bíblico nas

crônicas. Nesta etapa das análises serão observadas e descritas:

a classificação mais pertinente a cada umas ocorrências, de acordo com

o critério da escala de implicitude. Assim, serão classificados: casos de

intertextualidade com valor de captação aqueles em que se observar

menor implicitude (aproximando-se da explicitude); casos de

intertextualidade com valor de subversão aqueles em que, por se

caracterizarem pela alteração proposital do texto-fonte, não gozam do

mesmo estatuto da captação, situando-se em um nível intermediário na

escala de implicitude; e casos de intertextualidade por alusão aqueles

com potencial para se camuflarem de tal modo no texto, que seja pouco

provável que o co-enunciador possa recuperá-los em sua memória

discursiva, situando-se, logo, no nível de maior implicitude.

a dinâmica polifônica – vozes de L, E1, E2 etc. – presente nas

sequências, expressões e/ou vocábulos intertextuais em foco, nos casos

de subversão, a fim de que se verifiquem as instâncias enunciativas

envolvidas. O enunciador E2 será aquele que altera/retextualiza o texto-

fonte, e com o qual o locutor (L) se identifica ao proceder à subversão,

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ao passo que E1 corresponde à instância do hiperenunciador, a voz do

enunciado original – texto bíblico –, a partir do qual se operam as

retextualizações;

as operações de retextualização, estrategicamente empregadas, nos

casos de subversão, para se alterar a estrutura do enunciado original –

extraídos da Bíblia Sagrada –, resultando em uma nova forma e, como

consequência, em um novo sentido;

a participação das sequências, expressões e/ou vocábulos intertextuais

em foco na orientação argumentativa a que o texto pode direcionar o

leitor;

as estratégias de construção de sentido sugerida pelo emprego de cada

um dos referidos elementos, considerando-se que a atividade

interpretativa se fundamenta em possíveis interpretativos, os quais,

atrelados a determinadas crenças socioculturalmente partilhadas,

“constituem as representações linguageiras das experiências dos

indivíduos (...), enquanto sujeitos individuais e coletivos”

(CHARAUDEAU, 2008, p.63).

Ao final da seção que contempla a análise qualitativa, será apresentada

uma tabela contendo micro-análises de cada uma das ocorrências do

fenômeno intertextual, registradas nas 53 crônicas que constituem o corpus.

A análise quantitativa consistirá em examinar a proporção de

ocorrências de cada uma das categorias intertextuais verificadas, o que

permitirá identificar de modo mais pontual o ethos em estudo.

Na tabela a seguir, estão registradas as 53 crônicas que serão alvos das

análises:

Título Publicação

Notas sobre cinema 09-03-2005

Uma Páscoa particular 04-04-2005

Faxina nos mitos II 04-05-2005

O feio vício da inveja 1º-06-2005

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Quero a pena de morte 15-06-2005

A revolução da decência 13-07-2005

Meu país é uma fênix 24-08-2005

Quem, por quê? 16-11-2005

Quanto nós merecemos 14-12-2005

Para onde estamos indo? 22-03-2006

Mulheres & poder 15-11-2006

Não vou pra Pasárgada 04-07-2007

Um grande lamento 1º-08-2007

Sobre o papel do pai 15-08-2007

Paisagem com problemas 07-11-2007

Sem retoque ou com retoque? 21-11-2007

Honrar pai e mãe 11-06-2008

A matança dos bebês 23-07-2008

As bolsas e as vidas 29-10-2008

Caipirinha chapa-branca 12-11-2008

Do horror brota a grandeza 10-12-2008

Acreditar no Natal 24-12-2008

As mortes poderiam ser evitadas 14-01-2009

Como administramos crises? 11-02-2009

No paraíso da transgressão 11-03-2009

Esse poço tem fundo? 06-05-2009

A sordidez humana 20-05-2009

É o fim do mundo 03-06-2009

Trilha de contradições 1º-07-2009

Educação e autoridade 23-09-2009

Contraponto: deixar desabrochar 07-10-2009

A gente decide 21-10-2009

A praga moderna 02-12-2009

Trabalhar e sofrer 20-01-2010

Alegres e ignorantes 03-03-2010

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Mordaças e palmadas 04-08-2010

Plataforma contra as fomes 18-08-2010

Os dias depois 13-10-2010

A lei e a Justiça 19-01-2010

O inverno do nosso desalento 20-07-2011

A dor do mundo 03-08-2011

Drogas: o labirinto 28-09-2011

Baile de máscaras 07-12-2011

Pós-modernos de tacape 21-12-2011

Voz no deserto 28-03-2012

Degraus de ilusão 06-07-2012

O instinto animal 18-07-2012

Querendo que dê certo 29-08-2012

A formação de um povo 10-04-2013

Eu ia falar de flores 17-07-2013

O jeito brasileiro 31-07-2013

Eu pensava ter visto tudo 11-09-2013

Tomie Ohtake e a esperança 04-12-2014

Especificamente para a análise qualitativa, foram selecionadas as

crônicas:

Meu país é uma fênix

A matança dos bebês

A praga moderna

Voz no deserto

Os critérios para a seleção desses quatro textos foram: a possibilidade

de análises ricas em dados e em explicações; e a variedade do conjunto de

dados distribuídos nos quatro textos, o que possibilitou a observação dos

diferentes tipos de intertextualidade e de operações de retextualização (no

caso da intertextualidade com valor de subversão).

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Conclui-se, assim, o percurso teórico-metodológico e abre-se, a seguir, o

capítulo destinado às análises das crônicas.

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4. ANÁLISE DO CORPUS

4.1 O corpus sob uma perspectiva qualitativa

A partir das análises de quatro crônicas selecionadas, serão observados

e descritos os movimentos enunciativos que dão corpo ao fenômeno

intertextual. Pela teoria polifônica, será observado o jogo de vozes que envolve

a fusão da enunciação de E1 com o ponto de vista de E2, resultando na

enunciação do locutor (L). Paralelamente, as análises ainda deverão

contemplar as diferentes operações de retextualização empregadas pela

cronista. A orientação argumentativa (quando se fizer necessário) e as

estratégias de construção de sentido também são aspectos a serem avaliados.

Todos esses critérios deverão dar conta de relacionar o fenômeno

intertextual, enquanto estratégia textual-discursiva, à construção de uma

imagem de si, a fim de que se confirme a hipótese inicial desta pesquisa,

segundo a qual a ocorrência do intertexto bíblico nas crônicas de Lya Luft

expressa um ethos religioso cristão.

Em síntese, as análises deverão demonstrar que o ethos que esta

pesquisa se ocupa a investigar se constrói em torno do emprego de estratégias

de intertextualidade que atuam em vários níveis de implicitude, conforme

possam ocorrer com valor de captação, de subversão ou por alusão.

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4.1.1 “Meu país é uma fênix”

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A propósito do ethos religioso cristão, cuja construção será efetivamente

atestada pelas análises quantitativa e qualitativa, três ocorrências no texto o

ilustram pela evocação de três diferentes passagens bíblicas, todas registradas

no novo testamento.

A primeira ocorrência, um caso de intertextualidade com valor de

subversão, aparece no 5º parágrafo da crônica, numa clara remissão ao texto

situado na carta do apóstolo Paulo aos Romanos, capítulo 8, versículos 22 e

23. Assim, tem-se:

Na Bíblia Sagrada: “Sabemos que toda a natureza criada geme até

agora, como em dores de parto. E não só isso, mas nós mesmos, que

temos os primeiros frutos do Espírito, gememos interiormente,

esperando ansiosamente nossa adoção como filhos, a redenção do

nosso corpo” (Romanos 8:22,23; Bíblia de estudo NVI, 2003, p.1934).

Na crônica: “O Brasil geme nas dores do parto de (esperemos) uma

democracia menos infestada pela corrupção” (5º parágrafo).

No texto-fonte, o emprego metafórico da imagem de uma mulher em

dores de parto se justifica na expectativa ansiosa pela passagem de um

estágio de dor a um estágio de redenção. Ao operar a retextualização,14 a

cronista não chega a contradizer o texto fonte, mas se apropria da metáfora

para dar significado à expectativa do Brasil (ou do povo brasileiro), que sofre

com uma democracia corrupta e anseia “por uma democracia menos infestada

pela corrupção”.

Recorrendo aos conceitos esboçados na teoria polifônica da enunciação

(DUCROT, 1987), tem-se que o fenômeno intertextual emerge da fusão do

enunciado bíblico original (texto-fonte), expresso na voz do enunciador E1, com

o ponto de vista implícito do enunciador E2. O resultado é a enunciação

explicitada no texto, expressa na voz do locutor L. Aplicando, ainda, neste

exemplo, as operações de retextualização propostas por Frasson (1991) e

14 Os termos “retextualização” e “reenunciação” serão empregados invariavelmente nas análises, embora se saiba que, em situações específicas, como discussões teóricas, esse expediente pode não ser o mais adequado.

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revisitadas por Koch, Bentes e Cavalcante (2008), verifica-se um misto de

ocorrências:

Operação: Substituição de palavras

E1 = (...) toda a natureza criada geme até agora, como em dores de parto.

E2 = O Brasil anseia por uma democracia com menos corrupção.

L = O Brasil geme nas dores do parto de (esperemos) uma democracia menos

infestada pela corrupção.

Operação: Acréscimo

E1 = (...) toda a natureza criada geme até agora, como em dores de parto.

E2 = O Brasil anseia por uma democracia com menos corrupção.

L = O Brasil geme nas dores do parto de (esperemos) uma democracia menos

infestada pela corrupção.

Operação: Supressão

E1 = (...) toda a natureza criada geme até agora, como em dores de parto.

E2 = O Brasil anseia por uma democracia com menos corrupção.

L = O Brasil geme Ø nas dores do parto de (esperemos) uma democracia

menos infestada pela corrupção.

No processo de reenunciação, o termo “toda a natureza criada” é

substituído por “O Brasil” para dar sequência à proposta de sentido pretendida

pela cronista, caracterizando a operação de substituição. A operação de

acréscimo se configura pela adição de um complemento – inexistente no texto

bíblico – ao substantivo “parto”, resultando em “parto de (esperemos) uma

democracia menos infestada pela corrupção”. Pela operação de supressão,

omite-se, na crônica, a locução adverbial “até agora”, que, na Bíblia, reforça a

ideia de ansiedade por redenção.

A propósito da orientação argumentativa, acredita-se que o recurso a

este intertexto introduz uma sequência com a qual a cronista busca

fundamentar a tese enunciada no quarto parágrafo da crônica. O enunciado em

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foco atua, pois, como argumento favorável a esta tese, formando uma

sequência argumentativa:

Tese: “O pano de fundo de minhas frases acabaria sendo a teia de malfeitos

que de momento constrangem o meu país”.

Argumento: “O Brasil geme nas dores do parto de (esperemos) uma

democracia menos infestada pela corrupção”.

A articulação tese-argumento propõe que o povo brasileiro anseia por

uma diminuição – ou pelo fim – da corrupção, a qual é representada na tese

pela sequência “a teia de malfeitos que de momento constrangem meu país”.

Parte dessa “teia de malfeitos” é sugerida no quarto parágrafo, cuja transcrição

segue abaixo:

“O Brasil geme das dores do parto de (esperemos) uma democracia

menos infestada pela corrupção. A turma dos panos quentes acorre

solícita. Porém, band-aid não resolve doença tão grave e espalhada.

Quando a ferida explodiu eram tantos os tumores e tantos os atingidos

que quase não conseguimos respirar – nós que vivemos do suor do

nosso trabalho, nós que pagamos as contas com dificuldade e as contas

com indignação, nós que estamos quase paralisados com juros

absurdos e estímulo pífio, nós que acreditamos neste país mas somos

forçados a desacreditar de boa parte dos que o comandam. Nós,

desmoralizados pelas mentiras do bando que assinava sem ler, fazia

reuniões sem ver, viajava sem saber, negociava a vida de seu país

como se fosse um objeto qualquer, prevaricava sem se dar conta, e

agora experimenta todas as máscaras disponíveis enquanto aponta

o dedo para os outros: „Ele também fez xixi na calça, ele é pior do

que eu!‟”. (Veja, 24 de agosto de 2005, p.22)

A leitura deste parágrafo permite destacar as sequências em negrito

como parte da “teia de malfeitos” que, no momento da enunciação, à época

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precisa da produção da crônica, “constrangiam o país”, no dizer da escritora.

Constata-se, assim, que o enunciado representativo do intertexto bíblico

participa da orientação argumentativa proposta no texto.

A segunda ocorrência, classificada também como um caso de

intertextualidade com valor de subversão, que marca o intertexto bíblico,

que aparece no 6º parágrafo da crônica, remete ao texto do Evangelho de

Mateus, capítulo 6, versículo 34. Veja-se:

Na Bíblia Sagrada: “Portanto, não se preocupem com o amanhã, pois o

amanhã trará as suas próprias preocupações. Basta a cada dia o seu

próprio mal” (Evangelho de Mateus 6:34; Bíblia de estudo NVI, 2003,

p.1628).

Na Crônica: “Que surpresa malévola nos aguarda a cada dia?” (6º

parágrafo).

No que tange à fusão das instâncias E1 e E2, tem-se:

E1 = Basta a cada dia o seu próprio mal.

E2 = Todos os dias o Brasil é vítima de uma surpresa malévola.

L = Que surpresa malévola nos aguarda a cada dia?

Neste caso, a retextualização é operada pela apropriação da parte final

do texto-fonte – “Basta a cada dia o seu próprio mal”. A fusão deste enunciado

com a perspectiva de E2, resulta na expressão de L: “Que surpresa malévola

nos aguarda a cada dia?”. A subversão do texto fonte consiste no processo de

substituição, pelo qual a expressão “o seu próprio mal” se converte em

“surpresa malévola”, e a forma verbal “basta” – verbo “bastar” – é substituída

pela forma “aguarda” – verbo “aguardar”. Além disso, a categoria de língua (cf.

terminologia de CHARAUDEAU, 2008) observada no texto bíblico – Declaração

– não é a mesma do enunciado retextualizado, onde o que se tem é uma

Interrogação. Trata-se, pois, da operação de retextualização de transposição

(de uma categoria de língua para outra).

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A interrogativa dá sequência à cadeia de enunciados que dão suporte à

orientação argumentativa do texto. Ao perguntar “Que surpresa malévola nos

aguarda a cada dia?”, o enunciador busca levar o leitor a refletir sobre as

incertezas da massa brasileira, que vive à mercê de um sistema político que se

eleva a um nível de descontrole excessivo e incapaz de inspirar qualquer

confiança.

Em um nível de análise mais pragmático, isto é, voltando-se para o

significado e para os efeitos de sentido produzidos pelo uso da interrogativa

expressa pelo locutor L, pelo menos três ângulos de leitura são pertinentes de

se mencionar. Em primeiro lugar, é válido observar que o cotexto (ou contexto

linguístico) em que o enunciado “Que surpresa malévola nos aguarda a cada

dia?” se insere, inclui uma sucessão de outros questionamentos anteriores no

mesmo parágrafo. No entanto, somente o enunciado em análise tem foco no

depois, conforme se pode observar na transcrição:

“Nas coxias procura-se (ou procura-se ainda ocultar) o responsável:

quem esteve por trás de tudo isso? Que pessoa, grupo, entidade,

manejava os cordéis, enganava e intimidava todo mundo e, covarde

criminoso, não mostra o rosto? Quem assassinou tão meticulosamente a

nossa confiança? Que surpresa malévola nos aguarda a cada dia?”

Em contraste, aliás, com a versão original do enunciado, que se

encontra na Bíblia Sagrada, as duas se distinguem não somente pela categoria

de língua – interrogação e declaração – pela qual são apresentadas. É

importante atentar que, enquanto o texto-fonte – “Basta a cada dia o seu

próprio mal” –, pela voz do hiperenunciador do discurso bíblico, se concentra

no presente, no hoje, o enunciado retextualizado focaliza, pela voz da cronista,

o devir, o futuro, a dúvida.

Ainda pela análise do cotexto, nos parágrafos posteriores, nota-se que a

cronista, em tom pessimista, mostra-se em busca de algumas respostas à sua

interrogativa, tais como:

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“[...] se não aproveitarmos a ocasião para graves mudanças, seremos o

subpovo de um subpaís, digno de piedade. [...]”

“[...] receio uma caça às bruxas, que joga na fogueira inocentes junto

com os culpados; de outro, temo uma varredura generalizada para

debaixo dos tapetes, com o sacrifício de alguns bodes expiatórios para

nos fazer crer que tudo está resolvido. [...]”

Imediatamente após esta última manifestação de desespero, observa-se

uma mudança de tom no discurso do enunciador, onde se lê:

“[...] Apesar da ameaça de descrença que me ronda, preciso esperar

que ao fim e ao cabo a vergonha não tenha passado de moda

inteiramente. [...]”

Neste trecho, que já aponta para a conclusão da crônica, vê-se uma

transição de um ethos pessimista para um ethos levemente otimista, marcada

pelo operador argumentativo concessivo apesar de. O emprego desse

elemento marca, então, a oposição entre uma perspectiva negativa e uma

perspectiva positiva dos fatos apontados pela autora, que, na segunda parte do

enunciado – “preciso esperar que ao fim e ao cabo a vergonha não tenha

passado de moda inteiramente” – expressa uma esperança de “novos ares,

sem palavrório falso nem idealismo oco” (10º parágrafo).

Outro ângulo de observação do emprego da interrogativa diz respeito

particularmente à pressuposição que se pode abstrair da expressão “surpresa

malévola”. Embora esteja dentro de uma pergunta – o que indica dúvida,

incerteza –, a expressão sugere uma certeza: alguma surpresa malévola

certamente nos aguarda, só não se sabe qual. Essa evidência realça ainda

mais o tom pessimista empregado pela cronista nessa passagem do texto.

Por fim – o que não necessariamente esgota a análise –, apoiando-se

em um quadro teórico que tem como fim a investigação dos mecanismos de

referenciação, observa-se a função anafórica/catafórica operada pela

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expressão “surpresa malévola”. Embora não seja possível delimitar com

precisão os limites do referente encapsulado por essa expressão, o fato é que

esse referente é categorizado por meio de uma construção nominal pela qual a

cronista: (a) mostra seu ponto de vista em relação ao referente encapsulado,

num movimento anafórico (retrospectivo); (b) aponta para algumas

possibilidades, diante da pergunta “Que surpresa malévola nos aguarda a cada

dia?”, num movimento catafórico (prospectivo). O uso do modificador

“malévola” contribui de forma particular para a manifestação da visão de mundo

da cronista, uma vez que especifica que tipo de “surpresa” se pode esperar.

Ainda, uma terceira ocorrência do fenômeno intertextual – desta vez de

intertextualidade por alusão –, que concorre para a construção do ethos

cristão em foco, está registrado no 9º parágrafo. Trata-se da sequência: “o

sacrifício de alguns bodes expiatórios para nos fazer crer que tudo está

resolvido”.

São inúmeras as passagens bíblicas em que se pode ler sobre

sacrifícios de animais, com o propósito de adorar a Deus ou de apresentar a

Ele uma oferta de expiação pelos pecados do povo ou de um líder. O livro de

Levítico, no Antigo Testamento da Bíblia Sagrada, é onde se encontram

registros de sacrifícios de bodes, bem como suas finalidades:

“Arão sacrificará o novilho como oferta pelo seu próprio pecado, para

fazer propiciação por si mesmo e por sua família. Depois pegará os dois

bodes e os apresentará ao Senhor, à entrada da tenda do Encontro. E

lançará sortes quanto aos dois bodes: uma para o Senhor e outra para

Azazel. Arão trará o bode cuja sorte caiu para o Senhor e o sacrificará

como oferta pelo pecado. Mas o bode sobre o qual caiu a sorte para

Azazel será apresentado vivo ao Senhor para fazer propiciação, e será

enviado para Azazel no deserto” (Levítico 16:6-10; Bíblia de estudo NVI,

2003, p.182)

Uma interpretação tipológica da finalidade desses sacrifícios aponta para

o sacrifício de Jesus Cristo ao dar a sua vida na cruz em favor de toda a

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humanidade, tal qual um “cordeiro” sacrificado. Observem-se algumas ocasiões

em que, na Bíblia, Jesus é nomeado como “Cordeiro”:

“Livrem-se do fermento velho, para que sejam massa nova e sem

fermento, como realmente são. Pois Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi

sacrificado” (I Coríntios 5:7; Bíblia de estudo NVI, 2003, p.1959)

“Ele foi oprimido e afligido; e, contudo, não abriu a sua boca; como um

cordeiro foi levado para o matadouro, e como uma ovelha que diante de

seus tosquiadores fica calada, ele não abriu a sua boca” (Isaías 53:7;

Bíblia de estudo NVI, 2003, p.1224)

“No dia seguinte, João viu Jesus aproximando-se e disse: „Vejam! É o

Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo‟” (Evangelho de João

1:29; Bíblia de estudo NVI, 2003, p.1787-1788)

“Então olhei e ouvi a voz de muitos anjos, milhares de milhares e

milhões de milhões. Eles rodeavam o trono, bem como os seres viventes

e os anciãos, e cantavam em alta voz: „Digno é o Cordeiro que foi morto

de receber poder, riqueza, sabedoria, força, honra, glória e louvor!‟”

(Apocalipse 5:11,12; Bíblia de estudo NVI, 2003, p.2176)

A propósito dos bodes apresentados como oferta pelos pecados,

conforme registrado no livro de Levítico, e sua analogia com o sacrifício do

Cordeiro de Deus, Jesus Cristo, a Bíblia de estudo NVI (2003) esclarece, em

nota textual, que

“nenhuma oferta individual podia tipificar plenamente a expiação feita por Cristo. Um dos bodes era sacrificado, seu sangue era aspergido no Lugar Santíssimo e seu cadáver era queimado fora do arraial, simbolizando o preço da expiação por Cristo. O outro bode, mandado embora com vida e carregando sobre si os pecados da nação, simbolizava a remoção do pecado e da sua culpa” (Bíblia de estudo NVI, 2003, p.182.)

Observando-se mais atentamente o parágrafo da crônica em que se

insere a sequência textual em análise, e levando-se em conta também o

contexto mais amplo em que o parágrafo está inserido, é possível abstrair

algumas considerações mais precisas em relação ao significado – em um nível

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mais pragmático – das escolhas operadas pela cronista. Veja-se, pois, todo o

referido parágrafo:

“[...] De um lado, receio uma caça às bruxas, que joga na fogueira

inocentes junto com os culpados; de outro, temo uma varredura

generalizada para debaixo dos tapetes, com o sacrifício de alguns bodes

expiatórios para nos fazer crer que tudo está resolvido. Apesar da

ameaça da descrença que me ronda, preciso esperar que ao fim e ao

cabo a vergonha não tenha passado de moda inteiramente. [...]”

Mesmo que, nesta crônica, seja possível notar que a autora não vai

direto ao ponto – já que o contrato comunicacional que regula este gênero

permite isso –, algumas associações plausíveis e certos elementos do léxico

devem levar a uma leitura mais objetiva deste trecho. A começar pelo título

“Meu País é uma Fênix”, é razoável prever, sem muito esforço para quem

domina um mínimo de conhecimento sobre mitologia grega, que a cronista

compara o Brasil (seu país) a um ser que, segundo a lenda, pode renascer das

cinzas após ser queimada no fogo do Hades (ou inferno). O título reflete o já

comentado tom de esperança que Lya Luft costuma imprimir no discurso do

conjunto de suas crônicas. Mas de que inferno o Brasil renasce?

Embora o conteúdo de grande parte da crônica seja bastante subjetivo

para se obter uma resposta precisa, o enunciador deixa alguns rastros que nos

conduzem a possibilidades plausíveis de interpretação. A expressão “exercício

do poder” e a palavra “ética” (1º parágrafo), bem como a sequência “uma

democracia menos infestada pela corrupção” (5º parágrafo) permitem inferir

que a indignação da cronista, mostrada desde o início do texto, se deve à

maneira corrupta com a qual se tem praticado política no país; política que,

aliás, é um tema bastante recorrente nas crônicas de Lya Luft.

Com essas especulações, não é difícil interpretar a expressão “bodes

expiatórios” como, por exemplo, uma referência a certos indivíduos que,

apontados como responsáveis – sendo isso verdade ou não – pelas atitudes

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corruptas que destroem o país, acabam por assumir a culpa em lugar dos

verdadeiros responsáveis, provavelmente daqueles que detém “o poder”.

Trata-se, aqui, de um caso de intertextualidade por alusão, em que não

se verificam quaisquer semelhanças ou paralelismos formais entre o discurso

bíblico e o conteúdo da crônica. O intertexto se apresenta de forma difusa no

texto, não sendo possível recuperá-lo numa leitura mais rasa. Apenas um leitor

com certo grau de conhecimento das Escrituras pode estabelecer a relação

entre o enunciado efetivamente produzido pela crônica e o discurso bíblico.

Ao olhar analítico, a transferência de significado – do bode sacrificial

bíblico para o “bode expiatório” da crônica, numa espécie de trajetória

metafórica – operada por Lya Luft ao aludir ao discurso bíblico, produzindo a

sequência “o sacrifício de alguns bodes expiatórios para nos fazer crer que

tudo está resolvido”, se justifica, sobretudo, pela semelhança entre as

simbologias expressas pelos bodes apresentados como oferta, na Bíblia, e pelo

“bode expiatório da crônica”, simbologias essas de teor sacrificial, em que um

assume a culpa em favor de outro(s).

Vê-se, então, que, além do recurso à pressuposição e a mecanismos de

referenciação, o emprego de outras estratégias linguístico-discursivas, como a

metáfora, reforça o caráter parcialmente intencional da cronista na construção

de uma imagem de si.

Ampliando-se a análise para uma perspectiva mais ampla de

intertextualidade, pode-se verificar que o discurso bíblico, da memória, e o

discurso jornalístico, da atualidade, se entrecruzam no espaço da crônica,

efeito da interdiscursividade que caracteriza a linguagem e seus usos.

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4.1.2 “A matança dos bebês”

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A análise desta crônica permitiu a identificação de três ocorrências de

intertextualidade por alusão às Sagradas Escrituras. Saliente-se que se julga

necessário que se façam alguns registros históricos, a fim de se apurar a

construção do sentido e a orientação argumentativa no texto.

As duas primeiras ocorrências de intertextualidade por alusão são

identificadas pelo nome “Herodes”, que aparece duas vezes no primeiro

parágrafo. Um ponto importante a se destacar é sua articulação com o título “A

matança dos bebês”. A sentença que introduz o texto, imediatamente após o

título, é: “Herodes faria uma festa” – primeira ocorrência. Linhas abaixo, lê-se

a frase “Viva Herodes” – segunda ocorrência.

De acordo com as Escrituras, Herodes – conhecido como Herodes, o

Grande – era rei de toda a Palestina na época do nascimento de Jesus Cristo.

A narrativa bíblica envolvendo Herodes e Jesus está registrada no capítulo 2

do evangelho de São Mateus, o qual segue transcrito, a fim de se obter um

entendimento mais abrangente para a análise da crônica em questão:

Depois que Jesus nasceu em Belém da Judeia, nos dias do rei Herodes,

magos vindos do oriente chegaram a Jerusalém e perguntaram: “Onde

está o recém-nescido rei dos judeus? Vimos a sua estrela no oriente e

viemos adorá-lo”.

Quando o rei Herodes ouviu isso, ficou perturbado, e com ele toda

Jerusalém. Tendo reunido todos os chefes dos sacerdotes do povo e os

mestres da lei, perguntou-lhes onde deveria nascer o Cristo. Em Belém

da Judeia; pois assim escreveu o profeta:

“Mas tu, Belém, da terra de Judá, de forma alguma és a menor em meio

às principais cidades de Judá; pois de ti virá o líder que, como pastor,

conduzirá Israel, o meu povo”.

Então Herodes chamou os magos secretamente e informou-se com eles

a respeito do tempo exato em que a estrela tinha aparecido. Enviou-os a

Belém e disse: “Vão informar-se com exatidão sobre o menino. Logo que

o encontrarem, avisem-me, para que eu também vá adorá-lo”.

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Depois de ouvirem o rei, eles seguiram o seu caminho, e a estrela que

tinham visto no oriente foi adiante deles, até que finalmente parou sobre

o lugar onde estava o menino. Quando tornaram a ver a estrela,

encheram-se de júbilo.

Ao entrarem na casa, viram o menino com Maria, sua mãe, e,

prostrando-se, o adoraram. Então abriram os seus tesouros e lhe deram

presentes: ouro, incenso e mirra. E, tendo sido advertidos em sonho

para não voltarem a Herodes, retornaram a sua terra por outro caminho.

Depois que partiram, um anjo do Senhor apareceu a José em sonho e

lhe disse: “Levante-se, tome o menino e sua mãe, e fuja para o Egito.

Fique lá até que eu diga a você, pois Herodes vai procurar o menino

para matá-lo”.

Então ele se levantou, tomou o menino e sua mãe durante a noite e

partiu para o Egito, onde ficou até a morte de Herodes. E assim se

cumpriu o que o Senhor tinha dito pelo profeta: “Do Egito chamei meu

filho”.

Quando Herodes percebeu que havia sido enganado pelos magos, ficou

furioso e ordenou que matassem todos os meninos de dois anos para

baixo, em Belém e nas proximidades, de acordo com a informação que

havia obtido dos magos.

Então se cumpriu o que fora dito pelo profeta Jeremias:

“Ouviu-se uma voz em Ramá, choro e grande lamentação; é Raquel que

chora por seus filhos e recusa ser consolada, porque já não existem”.

Depois que Herodes morreu, um anjo do Senhor apareceu em sonho a

José, no Egito, e disse: “Levante-se, tome o menino e sua mãe e vá

para a terra de Israel, pois estão mortos os que procuravam tirar a vida

do menino”.

Ele se levantou, tomou o menino e sua mãe e foi para a terra de Israel.

Mas, ao ouvir que Arquelau estava reinando na Judeia em lugar de seu

pai Herodes, teve medo de ir para lá. Tendo sido avisado em sonho,

retirou-se para a região da Galileia e foi viver numa cidade chamada

Nazaré. Assim cumpriu-se o que fora dito pelos profetas: “Ele será

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chamado Nazareno”. (Evangelho de Mateus 2:1-23; Bíblia de estudo

NVI, 2003, pp. 1615-1618).

O conjunto de profecias acerca da chegada do Messias ao mundo

estava para se cumprir, e tratava-se, de acordo com essas previsões, de um

menino – o Filho de Deus – que nasceria para reinar, tornando-se o “rei dos

judeus”. A ideia de alguém que viria para reinar sobre o povo de Israel (judeus)

causa em Herodes, de acordo com a narrativa, um sentimento de perturbação,

uma vez que naquele momento era ele quem reinava nas regiões habitadas

por este povo, e, obviamente, faria de tudo para eliminar quaisquer ameaças

contra o seu governo. Na verdade, havia um receio de que toda a

descendência real de Herodes fosse comprometida com a chegada do Cristo

prometido.

De acordo com o relato, algum tempo depois, o rei Herodes, sem saber

a real origem e localização do recém-nascido, ordenou que matassem todos os

meninos de dois anos ou menos, com o intuito de eliminar todas as

possibilidades de que tal bebê sobrevivesse e ameaçasse o seu reinado.

É nesse ponto que, voltando-se agora para a crônica, intitulada “A

matança dos bebês”, fazem-se essenciais algumas explicações no que tange

aos elementos intertextuais em foco. Para isso, é válida a transcrição do

primeiro parágrafo da crônica, onde o nome “Herodes” é mencionado duas

vezes:

“Herodes faria uma festa. Eu que às vezes penso que nada mais vai me

chocar, mal acredito no que se anuncia: morreram trinta e tantos bebês

em certo hospital do norte do país. Já é horrível. Logo depois, haviam

morrido quase 100 e, finalmente, as autoridades admitiram bem mais de

200 mortos em alguns meses. Bebês morriam como moscas no hospital

que lhes devia propiciar a vida. Era caso de fechamento em todos os

hospitais do mundo, mas uma autoridade local apenas disse, piscando

os olhos como quem está um pouquinho insegura: „Esse numero de

bebês mortos em hospital nessas condições é aceitável‟. Como tais

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condições perduraram mais de um dia? Eu estava ouvindo e lendo bem?

Estava em meu juízo normal? Estava. Pois então, viva Herodes. Porém,

os caixõezinhos amontoados em uma pequena carreta e um pai muito

jovem carregando mais um corpo, como se fosse o seu filinho morto,

não permitiam gracejo”. (Veja, 23 de julho de 2008, p.20)

Não é forçoso o estabelecimento de associações entre a crônica e a

narrativa de Mateus 2, propiciada pela menção do nome “Herodes”. Tendo ele

sido o responsável pela morte de tantos bebês nos dias do nascimento de

Jesus e tendo em foco que a crônica traz à tona a notícia sobre a morte de 200

bebês “em alguns meses” em um hospital no norte do Brasil, concluí-se que, na

avaliação da cronista, a responsabilidade atribuída a Herodes naqueles dias

supõe a necessidade de que alguém se responsabilize pelos bebês mortos no

hospital brasileiro, e que alguma atitude seja tomada em razão do ocorrido.

Como estratégia de referenciação textual, o nome “Herodes” opera, no

contexto da crônica, como uma espécie de anáfora discursiva, ou, mais

precisamente, como um encapsulador anafórico,15 uma vez que, pode remeter

o leitor a toda a narrativa bíblica do capítulo 2 do evangelho de São Mateus.

A propósito da orientação argumentativa e sua relação com o elemento

intertextual em foco, é possível destacar, no interior do primeiro parágrafo da

crônica, enunciados que indicam a tese inicial e o argumento que entra em

relação com essa tese. São eles:

Tese: “Herodes faria uma festa”

Argumento: “morreram trinta e tantos bebês em certo hospital do norte do país

(...) Logo depois, haviam morrido quase 100 e, finalmente, as autoridades

admitiram bem mais de 200 mortos em alguns meses. Bebês morriam como

moscas no hospital que lhes devia propiciar a vida”

15 O encapsulamento anafórico, estratégia textual-discursiva de referenciação, é o processo pelo qual uma expressão nominal opera, no texto, como uma espécie de anáfora resumitiva de uma porção de texto de extensão complexa, ou de um referente difuso (não delimitável) sugerido pelo cotexto. No caso do emprego do nome “Herodes”, na crônica de Lya Luft em análise, o processo de referenciação ultrapassa os limites do cotexto, visto que remete a um fora do texto, a saber, uma narrativa pertencente a outra esfera discursiva.

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A sequência correspondente ao argumento cumpre a função de justificar

a proposição expressa pela tese “Herodes faria uma festa”. No caso em

questão, é importante destacar que essa articulação tese-argumento só é

possível pelo domínio do intertexto, ou melhor, pelo conhecimento da narrativa

bíblica que o nome “Herodes” suscita por via do fenômeno intertextual que,

nesta ocorrência, é tratado como alusão.

Acredita-se, como já se mencionou na análise da seção anterior, que,

além do recurso às formas de intertextualidade em sentido restrito em foco

nesta pesquisa, seja coerente atrelar tais configurações a uma visão ampla de

intertextualidade, ou, mais precisamente, ao nível do interdiscurso.16 Por via da

memória discursiva, recupera-se o discurso registrado no capítulo 2 do

evangelho de Mateus, o qual é trazido à atualidade no entrecruzamento com o

discurso jornalístico materializado na crônica em análise.

O caráter sagrado, além de temas como esperança e sacrifício, que

alimentam a fé e o otimismo de muitas sociedades, torna o discurso bíblico

capaz de atravessar as mais variadas esferas discursivas, incluindo-se aí a

esfera jornalística.

No quarto parágrafo da crônica, outro caso de intertextualidade por

alusão ao texto bíblico – terceira ocorrência – é identificado. Após relatar

toda sua indignação em relação ao conteúdo expresso no primeiro parágrafo, a

cronista, entre outras reflexões, avalia:

“(...) tanta gente bandida vivendo feito rei, e tanta gente boa crucificada

quando quer fazer o bem e consertar o mal”

A identificação de referências ao texto bíblico é possibilitada pela

presença das palavras “rei” e “crucificada”. Analisando o trecho em dois

momentos, tem-se:

16 Advindo da proposta teórica de Michel Pêcheux, o interdiscurso “relaciona-se à memória discursiva, ou seja, aos vários discursos anteriores e exteriores ao dizer, construído no momento da enunciação” (FLORES et al., 2009, p.144).

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1º) “tanta gente bandida vivendo feito rei”: se, pelo aspecto intertextual, essa

sequência retoma a figura de “Herodes” – o antagonista e “bandido” que era rei

na narrativa bíblica –, na crônica seu significado se estende àqueles que vivem

como “reis” na realidade atual do Brasil. É possível pensar naqueles que não

dependem, por exemplo, de hospitais do mesmo nível daquele onde os bebês

foram mortos. Usando um trecho da própria crônica, essa “gente bandida

vivendo feito rei” certamente não representa

“tantas famílias feridas, pais e mães arrasados, vidas desperdiçadas

nesse vergonhoso lamaçal de omissão. O mesmo que em tantos lugares

deixa milhares de doentes serem atendidos no corredor, sofrendo ou

morrendo em salas de espera, ou no pátio do hospital – mais recente

notícia”.

2º) “e tanta gente boa crucificada quando quer fazer o bem e consertar o mal”:

nesta sequência, a palavra “crucificada” remete claramente à figura de Jesus

Cristo, morto inocentemente – ou seja, por “fazer o bem” – por meio de

crucificação. O uso da referida sequência na crônica adquire um valor

metafórico que conduz o leitor a associá-la, mesmo por inferência, àqueles que

poderiam trabalhar de forma benéfica, a fim de transformar a realidade do

descaso na saúde pública e, assim, “consertar o mal”.

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4.1.3 “A praga moderna”

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Logo no primeiro parágrafo, a autora indica qual é a “praga moderna”

sobre a qual se posiciona – o estresse. Nas primeiras linhas, ela comenta:

“Nossas pestes – que também as temos – podem ser menos tenebrosas

do que as medievais, que nos faziam apodrecer em vida. Mas, mesmo

mais higiênicas, destroem. E se multiplicam, na medida em que se

multiplica o nosso stress. Ou melhor: o stress é uma das modernas

pragas”.

Mais adiante, ao terceiro parágrafo, aparece a primeira ocorrência de

intertexto bíblico nesta crônica – um caso de intertextualidade com valor de

subversão, a qual está registrado em destaque no trecho transcrito a seguir:

“O que somos mesmo, neste período pós-moderno de que algumas

pessoas tanto se orgulham, é estressados. Não tem doença em que

algum médico ou psiquiatra não sentencie, depois de recitar os

enigmáticos termos médicos: “E tem também o stress”. Para alguns, ele

é, aliás, a raiz de todos os males. Eu digo que é filho da nossa

agitação obsessivo-compulsiva. Quanto mais compromissados, mais

estressados: é inevitável, pois as duas coisas andam juntas, gêmeas

siamesas da desgraça”.

A propósito do tópico sobre o qual discorre, a cronista sugere que

algumas pessoas pensam ser ele, o stress, a raiz de todos os males. Para fins

de análise e entendendo-se que o pronome “ele” substitui anaforicamente a

expressão nominal “o stress”, tem-se: “o stress é a raiz de todos os males”.

Na Bíblia Sagrada, o apóstolo Paulo, em epístola dirigida a Timóteo, um

de seus pupilos na fé, usa o mesmo predicativo para exortá-lo acerca da

ganância, como se vê, em negrito, na citação abaixo:

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“Os que querem ficar ricos caem em tentação, em armadilhas e em

muitos desejos descontrolados e nocivos, que levam os homens a

mergulharem na ruína e na destruição, pois o amor ao dinheiro é a raiz

de todos os males. Algumas pessoas, por cobiçarem o dinheiro,

desviaram-se da fé e se atormentaram com muitos sofrimentos” (I

Timóteo 6:9,10; Bíblia de estudo NVI, 2003, p. 2074).

Do ponto de vista formal, o que ocorre é um processo de reenunciação

da afirmativa bíblica (origem) pela cronista, estratégia discursiva que, aliás, se

consolida mais a cada passo das análises aqui empreendidas. Neste caso, a

reenunciação ocorre por substituição de palavras, em que “o stress” entra no

lugar de “o amor ao dinheiro”:

Na Bíblia Sagrada: “(...) o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males”.

Na crônica: “(...) o stress é a raiz de todos os males”.

Na perspectiva das instâncias enunciativas, é necessário considerar que

a assertiva “o stress é a raiz de todos os males” (na crônica), não corresponde

ao ponto de vista da cronista. O trecho em que tal afirmação está inserida é:

“Para alguns, ele [o stress] é, aliás, a raiz de todos os males”. Obviamente, o

modalizador em negrito sugere que a sequência em questão deve ser atribuída

a um enunciador E3. A opinião da cronista é expressa no período subsequente:

“Eu digo que [o stress] é filho da nossa agitação obsessivo-compulsiva. Com

isso, tem-se

E1: “(...) o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males”.

E3: “(...) o stress é a raiz de todos os males”.

E2: o stress não é a raiz de todos os males, mas o resultado de nossa agitação

obsessivo-compulsiva

L: “ (...) [o stress] é filho da nossa agitação obsessivo-compulsiva”.

em que

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E1 corresponde à voz do hiperenunciador – a Bíblia Sagrada –, que é o

ponto de partida, o texto-origem que fundamenta o processo de

retextualização por substituição;

E2 corresponde ao ponto de vista expresso/implícito na voz de L. Trata-

se daquilo que L quer dizer ao se posicionar diante do tópico em

questão;

L corresponde à materialização linguística do ponto de vista da cronista

(locutor L);

E3 corresponde à voz de um terceiro enunciador, não identificado,

senão pela expressão modal “Para alguns”.

Como se pode observar, a cronista não apenas não assume a

responsabilidade pela expressão (re)enunciada por E3, como também se

posiciona em relação a isso. Sua argumentação inclui, portanto, os três

elementos que configuram o modo argumentativo de organização do discurso,

que são: proposta, tese e argumento(s).

A propósito, pois, da orientação argumentativa e da forma como o

enunciado em análise se articula com o projeto de influência da cronista, os

referidos elementos podem ser identificados (neste, que é o terceiro parágrafo

da crônica) na seguinte ordem:

Proposta: “Para alguns, ele [o stress] é, aliás, a raiz de todos os males”.

Tese: “Eu digo que é filho da nossa agitação obsessivo-compulsiva”.

Argumentos: “Quanto mais compromissados, mais estressados: é inevitável,

pois as duas coisas andam juntas, gêmeas siamesas da desgraça. Porque a

gente trabalha demais, se cobra de mais e nos cobram demais, porque a gente

não tem hora, não tem tempo, não tem graça”.

De acordo com a metodologia de análise da organização do discurso

argumentativo, tem-se que a proposta corresponde a “uma ou mais asserções

que dizem respeito a alguma coisa sobre os fenômenos do mundo”

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(CHARAUDEAU, 2008, p.222) e, via de regra, trata-se de expressão do ponto

de vista de outrem. No caso em questão, a proposta é evocada – porém, não

apoiada – pela cronista sob o enunciado “ele [o stress] é, aliás, a raiz de todos

os males”.

A tese é expressa por um enunciado de responsabilidade do enunciador

E2, através do qual irá propor o seu posicionamento em relação à proposta –

se é a favor ou contra, ou, pelo menos, parcialmente contra. Nesta análise,

considera-se que o sujeito não apoia a proposta uma vez que, se, para um

terceiro, o estresse é a raiz de todos os males, para a cronista, ele é filho (não

a raiz/origem, mas o fim/produto) da nossa agitação obsessivo-compulsiva.

Os argumentos cumprem o papel de oferecer o suporte à tese

apresentada. Neste caso, a tese é amparada por uma série de argumentações

que, seguindo o estilo de discurso de Lya Luft, construído predominantemente

na primeira pessoa do plural, tonifica ainda mais o quadro de persuasão.

Vejam-se os argumentos:

1) Quanto mais compromissados, mais estressados: é inevitável, pois as

duas coisas andam juntas, gêmeas siamesas da desgraça.

2) Porque a gente trabalha demais

3) [porque a gente] se cobra de mais

4) [porque] nos cobram demais

5) porque a gente não tem hora

6) [porque a gente] não tem tempo

7) [porque a gente] não tem graça

Essa série de avaliações constituem, pois, os argumentos do enunciador

que reforçam a tese em apreço, segundo a qual o stress não é a raiz de todos

os males, mas filho de nossa agitação obsessivo-compulsiva. Acredita-se que

toda essa organização discursiva, formada pela tríade argumentativa proposta

– tese – argumentos, com o intuito de se buscar a adesão do enunciatário por

meio de uma construção racional, ainda é realçada por outro eficiente recurso

de captação do outro: o emprego da primeira pessoa do plural – nós / a gente.

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Tal estratégia não somente garante um estreitamento nas relações entre

cronista e leitor, mas implica também a divisão da responsabilidade dos pontos

de vista expressos com o leitor, que acaba por se tornar cúmplice do produtor

do texto.

Em síntese, entende-se que a análise envolvendo os três elementos que

caracterizam o modo argumentativo objetiva mostrar o papel do referido

enunciado no direcionamento argumentativo proposto pela cronista; e que o

emprego da primeira pessoa do plural, típico em textos de teor mais intimista, é

uma instrução definida pelo próprio contrato que se estabelece entre os

sujeitos envolvidos na troca comunicacional.

Vale destacar, neste ponto, a maneira como Lya Luft conduz o discurso

na construção de cada um dos textos, principalmente no que concerne à

manipulação com as palavras do texto bíblico, na forma como são retomadas e

reenunciadas para atender aos propósitos comunicativos da cronista. Isso está

ligado ao que Charaudeau (2008) nomeia como legitimação de fala,17 segundo

a qual o sujeito comunicante, ciente de que está legitimado no espaço social –

circuito externo (EUc – TUi) –, poderá permitir-se a construir qualquer imagem

do sujeito enunciador, conforme o grau de credibilidade do qual julga gozar

junto ao sujeito interpretante.

Vale destacar que, se a imagem de credibilidade construída é fruto de

uma atribuição dada ao sujeito falante, podendo tratar-se de algo que é prévio

ao ato de enunciação – um ethos pré-discursivo –, o ethos religioso cristão é

projetado diretamente pela expressão dos atos de linguagem verificados a

cada texto que compõe o corpus. Reitera-se, contudo, que a construção desse

ethos é apreendida pelo olhar do sujeito analisante, visto que o leitor comum

pode não perceber que comentários como “o stress é a raiz de todos os

males”, por exemplo, sejam a reenunciação de uma passagem bíblica.

Ainda na mesma crônica, encontra-se um segundo registro do

fenômeno intertextual. Neste caso, porém, trata-se de uma ocorrência de

intertextualidade por alusão. De fato, como se verá a seguir, não se trata de

uma reenunciação com paralelismo sintático, como se pôde observar na 17 Termo, segundo explica o próprio autor, utilizado também pela escola de sociologia de Pierre Boudieu, porém inserido em uma problemática distinta.

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primeira ocorrência. Observe-se, pois, no trecho transcrito a seguir, a porção

de texto em negrito:

(...) ainda temos a casa, o marido, os filhos, a creche, o pediatra, o

ortodontista, a aula de dança ou de judô dos meninos, de inglês, de

mandarim (...), mas a verdade é que o stress nos domina. É nosso novo

amante, novo rival da família e da curtição de todas as coisas boas da

vida.

Que pena. Houve uma época em que a gente resolvia, meio às

escondidas, dar uma descansadinha: 4 da tarde, a gente deitada no sofá

por dez minutos, pernas pra cima... e eis que, no umbral da porta, mãos

na cintura ou dedo em riste, lá apareciam nossa mãe, avós, tias, dizendo

com olhos arregalados: “Como??? Quatro da tarde e você aí, de pernas

pra cima, sem fazer nada?”

Era preciso alguma energia para espantar os tais fantasmas. Neste

momento, porém, eles nem precisam agir: todos nós, homens e

mulheres, botamos nos ombros cruzes de vários tamanhos, com

prego ou sem prego, com ou sem coroa de espinhos (...) Começo a

ficar com medo, não do destino, eterno culpado, não da vida nem dos

deuses, mas disso que, robotizados, estamos fazendo a nós mesmos.

Note-se, nesta ocorrência, que a referência ao texto bíblico é de

natureza alusiva, uma vez que as menções de cruz, prego e coroa de espinhos

estão diluídas nos evangelhos e em outras passagens do Novo Testamento.

Mesmo não se tratando de uma referência pontual, a alusão remete

diretamente a Jesus Cristo, que, ao sofrer injusta condenação, foi forçado a

subir até o monte Calvário levando, nos ombros, a cruz na qual iria sofrer sua

morte, e usando, em sua cabeça, a coroa de espinhos que soldados romanos –

alguns de seus algozes – colocaram em sua cabeça ao mesmo tempo em que

zombavam dele. Alguns dos versículos bíblicos que narram a trajetória e o

sofrimento de Jesus, na ocasião de sua condenação e morte, estão no capítulo

19 do evangelho de João, conforme segue:

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“Então Pilatos mandou açoitar Jesus. Os soldados teceram uma coroa

de espinhos e a puseram na cabeça dele. Vestiram-no com uma capa

de púrpura e, chegando-se a ele, diziam: “Salve, rei dos judeus!” E

batiam-lhe no rosto (...) Finalmente, Pilatos o entregou a eles para ser

crucificado. Então os soldados encarregarem-se de Jesus. Levando a

sua própria cruz, ele saiu para o lugar chamado Caveira. Ali o

crucificaram (...)” (Evangelho de João 19:1-3,16-18; Bíblia de estudo

NVI, 2003, pp.1832-1833).

O intercâmbio de sentido que se pode abstrair do emprego do intertexto

na crônica é o de que, semelhantemente a Jesus Cristo, que foi declarado

culpado sem ter culpa alguma, o stress é fruto do que “estamos fazendo a nós

mesmos”, já que, na visão da cronista, a carga de tarefas e responsabilidades

que o homem moderno impõe a si acaba por se tornar um verdadeiro e

incômodo “peso nos ombros”, da mesma forma como os pecados da

humanidade (simbolizados pela cruz) pesaram, naquele momento, sobre os

ombros de Cristo. Por outro lado, da mesma forma como Cristo lutou contra e

venceu o pecado, a crônica sugere que o homem de hoje necessita enfrentar o

stress, “novo rival da família e da curtição de todas as coisas boas da vida”.

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4.1.4 “Voz no deserto”

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Diferentemente das análises anteriores, em que as ocorrências do

fenômeno intertextual aparecem apenas ao longo dos parágrafos das crônicas,

o texto selecionado para está ultima análise de cunho qualitativo registra uma

primeira ocorrência de intertexto bíblico no título – “Voz no deserto”.

Trata-se de um caso de intertextualidade com valor de subversão às

passagens bíblicas que apontam para a figura do profeta João Batista,

personagem do Novo Testamento sobre quem outro profeta, Isaías, é guiado a

pronunciar:

“Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho ao Senhor; endireitai,

no ermo, vereda a nosso Deus” (Isaías 40:3; Tradução ARC, online)

Essa mensagem é reiterada pelo profeta Malaquias, que, em tom

profético, anuncia:

“„Vejam, eu enviarei o meu mensageiro, que preparará o caminho diante

de mim. E então, de repente, o Senhor que vocês buscam virá para o

seu templo; o mensageiro da aliança, aquele que vocês desejam, virá‟,

diz o Senhor dos Exércitos” (Malaquias 3:1; Bíblia de estudo NVI, 2003,

p.1598)

Nos evangelhos, confirmam-se as passagens proféticas anunciadas em

Isaías e Malaquias, sobre as quais João Batista haveria de vir antes de Jesus

Cristo, a fim de lhe preparar o caminho através da pregação em prol do

arrependimento:

“Naqueles dias, surgiu João Batista, pregando no deserto da Judeia. Ele

dizia: „Arrependam-se, pois o Reino dos céus está próximo‟. Este é

aquele que foi anunciado pelo profeta Isaías: “Voz do que clama no

deserto: „Preparem o caminho para o Senhor, façam veredas retas para

ele‟”. Assim surgiu João, batizando no deserto e pregando um batismo

de arrependimento para o perdão dos pecados. [...] E esta era a sua

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mensagem: „Depois de mim vem alguém mais poderoso do que eu,

tanto que não sou digno nem de curvar-me e desamarrar as correias de

suas sandálias‟” (Mateus 3:1-4,7; Bíblia de estudo NVI, 2003, p.1618).

Na crônica de Lya Luft, a figura “voz no deserto” é atribuída ao deputado

Romário, sobre quem a autora comenta em alguns trechos do segundo

parágrafo, transcritos a seguir:

“(...) me causaram admiração e tristeza os comentários do agora

deputado Romário sobre o Congresso, a Copa e outros temas. Porque

ele, político estreante, teve a coragem, e porque tudo me pareceu tão

evidente, e tão corajoso neste nosso teatro de invenções e negação da

realidade. Animou-me um deputado comentar que ali no Parlamento

poucos de verdade trabalham; que muito do que se anuncia sobre a

Copa é bastante improvável; e que há perigo de também nela

acontecerem propina, desvio de dinheiro, o circo habitual. Entristeceu-

me (...) que coubesse a ele, jogador de futebol, e deputado novato, botar

em palavras, publicamente, o que muitos de nós percebemos, com

maior ou menor entendimento e lucidez, mas não fazemos nada. Por

que não formamos um grande coro? Porque temos receio de críticas ou

preferimos desviar o rosto e os olhos e fechar a boca? (...)”

As duas interrogações ao final da citação acima traduzem uma

insatisfação e apontam para a responsabilidade de cada brasileiro na busca

por uma política mais séria e de uma nação menos corrupta. A cronista tira o

foco de um único parlamentar “tão corajoso nesse nosso teatro de invenções e

negação da realidade” (referindo-se ao deputado Romário, no 2º parágrafo), e

expande seu otimismo a outros possíveis parlamentares que buscam trabalhar

para o bem, no 3º parágrafo:

“(...) Sei que os governantes que querem o bem deste povo, deste país,

dos estados municípios, podem ainda nos salvar (...)”.

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Ao último parágrafo, num comportamento elocutivo, a cronista expressa

uma opinião que não contempla somente “um deputado corajoso” ou mais

“governantes que querem o bem...”. Trata-se, implicitamente, de uma

convocação para que cada brasileiro contribua na construção de um país mais

justo:

“(...) E acho que nós, os cidadãos comuns, podemos ajudar, se não

aceitarmos fatos ruins como coisa natural, não acreditarmos em

promessas nem em exigências absurdas, se cumprirmos com

excelência nosso dever de cada dia, que inclui trabalho, cuidado com a

família, honradez e patriotismo – cada um dentro das suas

possibilidades (...)”.

Saliente-se que o comportamento elocutivo ocorre quando “o locutor

expressa seu ponto de vista, configurando-se linguisticamente através de

categorias modais específicas” (CHARAUDEAU, 2008, p.91). No trecho da

crônica citado acima, tal comportamento assume um valor avaliativo,

denunciado pela modalização expressa por “acho que”. A categoria de língua é

a da Apreciação, pela qual o locutor manifesta “uma avaliação de ordem

afetiva” (p.93), julgando conforme seus próprios sentimentos. Além disso, o

emprego da primeira pessoa do plural aponta para a adesão do locutor ao

próprio ponto de vista e busca, ao mesmo tempo, garantir a adesão do leitor.

A propósito do intertexto bíblico representado pelo título desta crônica,

observe-se a distribuição de vozes enunciativas:

E1 = “voz do que clama no deserto”

E2 = Um único parlamentar corajoso para comentar sobre problemas

relacionados à Copa e a outros temas

L = “voz Ø no deserto”

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Quanto às instruções formais, a construção de sentido parte da

modificação da forma “voz do que clama no deserto” e, passando pelo

processo de retextualização de supressão de palavras, chega-se à forma “voz

no deserto”.

Para se levantar uma hipótese de interpretação para o emprego da

expressão “voz no deserto”, cuja fonte é bíblica, em referência à Romário, na

crônica, é necessário observar que, na Bíblia Sagrada, quando João Batista se

apresenta como “a voz do que clama no deserto”, o espaço geográfico onde

ele pregava era, de fato, no deserto da Judeia.

Se nas Escrituras, a palavra “deserto” é empregada de forma literal, na

crônica há uma transferência de sentidos, já que, nela, “deserto” não é usada

para se referir a um locus físico. No último período da crônica, a cronista, num

comportamento elocutivo, expõe claramente sobre qual “deserto” ela se

posiciona. O comportamento elocutivo é expresso por uma fórmula

modalizadora que indica o desejo de realçar e de esclarecer seu ponto de vista:

“(...) O que realmente estou querendo dizer é que, num deserto de ideias

lúcidas e opiniões honradas, a gente precisa tentar, com amor e

coragem, abrir caminhos, portas, janelas, e ajudar a mudar as coisas

que podem ser mudadas.”

Registre-se, aliás, neste trecho, uma segunda ocorrência do fenômeno

intertextual. Trata-se de um caso de intertextualidade por alusão, em que

“abrir caminhos” alude à mesma passagem bíblica referente a João Batista, no

livro do profeta Isaías:

“Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho ao Senhor; endireitai,

no ermo, vereda a nosso Deus” (Isaías 40:3; Tradução ARC, online)

Em síntese, a mensagem que a crônica deixa ao leitor é que, assim

como coube a João Batista – a voz do que clama no deserto – pregar aos

pecadores – “preparem o caminho para o Senhor” –, cabe aos cidadãos,

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reunidos em um “grande coro”, abrir caminhos em prol das mudanças

necessárias e desejadas.

Ainda no parágrafo final, encontra-se uma terceira ocorrência de

intertexto bíblico – outro caso de intertextualidade por subversão. Observe-

se, na citação que se segue, a expressão em destaque:

“(...) E acho que nós, os cidadãos comuns, podemos ajudar, se não

aceitarmos fatos ruins como coisa natural, não acreditarmos em

promessas nem em exigências absurdas, se cumprirmos com

excelência nosso dever de cada dia, que inclui trabalho, cuidado com a

família, honradez e patriotismo – cada um dentro das suas

possibilidades (...)”.

No que concerne à dinâmica enunciativa, tem-se:

E1 = “pão nosso de cada dia”

E2 = Os cidadãos comuns ajudariam cumprindo com excelência os seus

deveres, entre outras possibilidades.

L = [“se cumprirmos com excelência”] “nosso dever de cada dia”

Nesta ocorrência, verifica-se o processo de substituição de palavras

como estratégia de reenunciação. O nome “pão” é substituído pelo nome

“dever”, dando margem à uma possível interpretação:

o “pão nosso de cada dia” é, na Bíblia, uma figuração da graça – o favor

imerecido – de Deus, visto que, o pão-alimento simboliza o próprio

Cristo, o menino-Deus, que outrora declarou “Eu sou o pão da vida.

Aquele que vem a mim nunca terá fome” (Ev. de João 6:35),

expressando-se acerca da fome espiritual;

na crônica, “nosso dever de cada dia” reflete a postura de

responsabilidade do ser humano mortal para o cumprimento de suas

obrigações;

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logo, ao enunciar “nosso dever de cada dia”, remetendo à passagem

bíblica popularmente conhecida como “oração do Pai Nosso”,

estabelece-se uma relação entre aquilo que Deus já fez pelo homem,

mesmo que este não seja merecedor, e aquilo que o homem deve fazer

em retribuição ao favor imerecido de Deus.

4.1.5 Microanálises das ocorrências

A tabela a seguir elenca as 53 crônicas, com as ocorrências de intertexto

bíblico identificadas em cada uma delas, bem como microanálises de cada uma

dessas ocorrências contemplando: (a) a transcrição de cada ocorrência e da

passagem bíblica que a que ela remete; (b) o tipo de intertextualidade

identificado; (c) a operação de retextualização empregada, nos casos de

intertextualidade com valor de subversão.

* Legenda: P (E2) em (L) significa Perspectiva do enunciador E2 na voz do locutor (L). Exclusiva para os casos de subversão, em que se verificam operações de retextualização.

Título Síntese do Fenômeno Intertextual

“Notas sobre cinema”

Ocorrência(s) na crônica: (1) “Mocinha e treinador jogavam

pérolas a porcos”

Texto-origem: “Não deem o que é sagrado aos cães, nem

atire suas pérolas aos porcos” (Mateus 7:6)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“Uma Páscoa particular” Ocorrência(s) na crônica: (2) “A Páscoa” / (3) “a Páscoa” /

(4) “Minha Páscoa” / (5) “o fim dos tempos” / (6) “Minha

Páscoa”

Ocorrências 2, 3, 4 e 6

Texto-origem: “Então Moisés convocou todas as

autoridades de Israel e lhes disse: „Escolham um cordeiro ou

um cabrito para cada família. Sacrifiquem-no para celebrar a

Páscoa!‟” (Êxodo 12:21)

Tipologia: intertextualidade por alusão nas quatro

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ocorrências

Ocorrência 5

Texto-origem: “Tendo Jesus se assentado no monte das

Oliveiras, os discípulos dirigiram-se a ele em particular e

disseram: „Dize-nos, quando acontecerão essas coisas? E

qual será o sinal da tua vinda e do fim dos tempos?‟”

(Mateus 24:3)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“Faxina nos mitos II” Ocorrência(s) na crônica: (7) “É verdade que todos

precisamos ganhar o pão nosso com o velho suor”

Texto-origem: Trata-se de alusão ao texto popularmente

conhecido como “Oração do Pai Nosso”; remete,

especificamente, ao versículo que diz: “Dá-nos hoje o nosso

pão de cada dia” (Mateus 6:11 – NVI) ou “O pão nosso de

cada dia dá-nos hoje” (Mateus 6:11 – ARC)18

Tipologia: intertextualidade por alusão

“O feio vício da inveja” Ocorrência(s) na crônica: (8) “Se só vulgarização e baixo

nível vendessem uma obra, o Espírito Santo – para quem

nele acredita – teria descido de nível ao inspirar a Bíblia, o

livro que mais vende no mundo”

Texto-origem:

“Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o

ensino, para a repreensão, para a correção e para a

instrução na justiça, para que o homem de Deus seja

apto e plenamente preparado para toda boa obra” (II

18 Além da tradução bíblica NVI, optou-se por apresentar, em algumas análises, a tradução ARC – Almeida Revista e Corrigida –, que, na microanálise da ocorrência 7, apresenta um paralelismo sintático entre o texto origem e o evento alusivo com o emprego da expressão “o pão nosso”. Não é o que se verifica na NVI, que traz “o nosso pão”.

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Timóteo 3:16)

“pois jamais a profecia teve origem na vontade

humana, mas homens falaram da parte de Deus,

impelidos pelo Espírito Santo” (II Pedro 1:21)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“Quero a pena de morte” Ocorrência(s) na crônica: (9) “ídolos de pés de barro”

Texto-origem: “Tu olhaste, ó rei, e diante de ti estava uma

grande estátua: uma estátua enorme, impressionante, e sua

aparência era terrível. A cabeça da estátua era feita de ouro

puro, o peito e o braço eram de prata, o ventre e os quadris

eram de bronze, as pernas eram de ferro, e os pés eram em

parte de ferro e em parte de barro” (Daniel 2:32,33)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“A revolução da decência” Ocorrência(s) na crônica: (10) “ídolos de barro”

Texto-origem: “Tu olhaste, ó rei, e diante de ti estava uma

grande estátua: uma estátua enorme, impressionante, e sua

aparência era terrível. A cabeça da estátua era feita de ouro

puro, o peito e o braço eram de prata, o ventre e os quadris

eram de bronze, as pernas eram de ferro, e os pés eram em

parte de ferro e em parte de barro” (Daniel 2:32,33)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“Meu país é uma fênix” Ocorrência(s) na crônica: (11) “O Brasil geme nas dores

do parto de (esperemos) uma democracia menos infestada

pela corrupção” / (12) “Que surpresa malévola nos aguarda

a cada dia?” / (13) “temo uma varredura generalizada para

debaixo dos tapetes, com o sacrifício de alguns bodes

expiatórios para nos fazer crer que tudo está resolvido”

Ocorrência 11

Texto-origem: “Sabemos que toda a natureza criada geme

até agora, como em dores de parto” (Romanos 8:22)

Tipologia: intertextualidade por subversão

Operação de retextualização: substituição de palavras /

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acréscimo de palavras / supressão de palavra

E1: “Sabemos que toda a natureza criada geme até agora,

como em dores de parto”

P (E2) em L: “O Brasil geme nas dores do parto de

(esperemos) uma democracia menos infestada pela

corrupção”

Ocorrência 12

Texto-origem: “Portanto, não se preocupem com o amanhã,

pois o amanhã trará as suas próprias preocupações. Basta a

cada dia o seu próprio mal” (Mateus 6:34)

Tipologia: intertextualidade por subversão

Operação de retextualização: transposição

E1 = “Basta a cada dia o seu próprio mal”

P (E2) em L: “Que surpresa malévola nos aguarda a cada

dia?”

Ocorrência 13

Texto-origem: Trata-se de uma referência alusiva ao

sacrifício vicário de uma vida por outra, o qual é mencionado

pela primeira vez no livro de Gênesis: “Abraão ergueu os

olhos e viu um carneiro preso pelos chifres num arbusto. Foi

lá pegá-lo, e o sacrificou como holocausto em lugar de seu

filho” (Gênesis 22:13).

De acordo com nota textual da Bíblia NVI, em concordância

com a teologia do antigo testamento, “assim como o carneiro

morreu no lugar de Isaque [filho de Abraão], também Jesus

deu a vida em resgate „por‟ (lit. „em lugar de‟) muitos”19

Tipologia: intertextualidade por alusão

“Quem, por quê?” Ocorrência(s) na crônica: (14) “tudo fazem para que as

chaves sejam jogadas no mar do ignorado”

Texto-origem: “De novo terás compaixão de nós; pisarás as

nossas maldades e atirarás todos os nossos pecados nas

19 Nota textual, Bíblia de Estudos NVI, p.41.

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profundezas do mar” (Miqueias 7:19)

Tipologia: intertextualidade por subversão

Operação de retextualização: substituição de palavras

E1: “atirarás todos os nossos pecados nas profundezas do

mar”

P (E2) em L: “tudo fazem para que as chaves sejam jogadas

no mar do ignorado”

“Quanto nós merecemos” Ocorrência(s) na crônica: (15) “Não nos ensinaram que

„Deus faz sofrer a quem ama‟?”

Texto-origem: “pois o Senhor disciplina a quem ama, assim

como o pai faz ao filho de quem deseja o bem” (Provérbios

3:12).

As aspas caracterizam o discurso relatado em estilo direto, e

podem indicar também: o distanciamento do locutor L com a

forma subvertida do enunciado origem, “Deus faz sofrer a

quem ama”; e que esse locutor busca se eximir da

responsabilidade pelo referido enunciado.20

Tipologia: intertextualidade por subversão

Operação de retextualização: substituição de palavras

E1: “o Senhor disciplina a quem ama”

P (E2) em L: “Deus faz sofrer a quem ama”

“Para onde estamos

indo?”

Ocorrência(s) na crônica: (16) “sujeira por toda parte,

frases ameaçadoras nas paredes, trincheiras cheias de

pontiagudas estacas de bambu disfarçadas por ramos e

folhas para receber quem viesse tentar refazer a ordem e a

decência”

Texto-origem: “Mas tudo deve ser feito com decência e

ordem” (I Coríntios 14:40)

Tipologia: intertextualidade por alusão

20 Nesta ocorrência em particular, tem-se, do ponto de vista empírico, “uma só enunciação, pois, nesse caso, ela é ação de um único sujeito falante, mas a imagem que o enunciado dá dela é a de troca, de um diálogo, ou ainda de uma hierarquia de falas” (CARDOSO, 1999, p.68).

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“Mulheres & poder” Ocorrência(s) na crônica: (17) “um messias de saias” / (18)

“a esperança nossa de cada dia”

Ocorrência 17

Texto-origem: “O primeiro que ele encontrou foi Simão, seu

irmão, e lhe disse: „Achamos o Messias‟ (isto é, o Cristo)”

(João 1:41)

Tipologia: intertextualidade por subversão

Operação de retextualização: acréscimo

E1: “Messias”

P (E2) em L: “messias de saias”

Ocorrência 18

Texto-origem: “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia”

(Mateus 6:11 – NVI) ou “O pão nosso de cada dia dá-nos

hoje” (Mateus 6:11 – ARC)

Tipologia: intertextualidade por subversão

Operação de retextualização: substituição de palavras

E1: “o pão nosso de cada dia”

P (E2) em L: “a esperança nossa de cada dia”

“Não vou pra Pasárgada” Ocorrência(s) na crônica: (19) “pão nosso de cada dia”

Texto-origem: “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia”

(Mateus 6:11 – NVI) ou “O pão nosso de cada dia dá-nos

hoje” (Mateus 6:11 – ARC)

Tipologia: intertextualidade por captação

“Um grande lamento” Ocorrência(s) na crônica: (20) “levados ao sacrifício como

pobres carneiros, vão continuar morrendo

desnecessariamente pessoas que amamos tanto”

Texto-origem: “Ele foi oprimido e afligido; e, contudo, não

abriu a sua boca; como um cordeiro foi levado para o

matadouro, e como uma ovelha que diante de seus

tosquiadores fica calada, ele não abriu a sua boca” (Isaías

53:7)

Tipologia: intertextualidade por alusão

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“Sobre o papel do pai” Ocorrência(s) na crônica: (21) “Com defeitos e

dificuldades, como todo mundo, sendo apenas um pobre ser

humano como todos nós, o pai tem de ser glorificado,

procurado, amado, aplaudido, pelo menos no dia a ele

dedicado”

Texto-origem: “E eu farei o que vocês pedirem em meu

nome, para que o Pai seja glorificado no Filho” (João 14:13)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“Paisagem com

problemas”

Ocorrência(s) na crônica: (22) “„Do caos nasce a luz‟ e da

derrota pode nascer uma nova pessoa”

Texto-origem: Trata-se de uma referência ao primeiro

capítulo do livro de Gênesis, onde se lê: “Era a terra sem

forma e vazia; trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito

de Deus se movia sobre a face das águas. Disse Deus:

„Haja luz‟, e houve luz” (Gênesis 1:2,3)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“Sem retoque ou com

retoque?”

Ocorrência(s) na crônica: (23) “as notícias nossas de todo

dia”

Texto-origem: “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia”

(Mateus 6:11 – NVI) ou “O pão nosso de cada dia dá-nos

hoje” (Mateus 6:11 – ARC)

Tipologia: intertextualidade por subversão

Operação de retextualização: substituição de palavras

E1: “o pão nosso de cada dia”

P (E2) em L: “as notícias nossas de todo dia”

“Honrar pai e mãe” Ocorrência(s) na crônica: (24) “Honrar pai e mãe”

Texto-origem: “Honra teu pai e tua mãe,a fim de que tenhas

vida longa na terra que o Senhor, o teu Deus, te dá” (Êxodo

20:12)

Tipologia: intertextualidade por alusão

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“A matança dos bebês” Ocorrência(s) na crônica: (25) “Herodes faria uma festa” /

(26) “viva Herodes” / (27) “tanta gente boa crucificada

quando quer fazer o bem e consertar o mal”

Ocorrências 25 e 26

Texto-origem: “Depois que Jesus nasceu em Belém da

Judeia, nos dias do rei Herodes, magos vindos do oriente

chegaram a Jerusalém” (Mateus 2:1)

Tipologia: intertextualidade por alusão

Ocorrência 27

Texto-origem: “Um dos criminosos que ali estavam

dependurados lançava-lhe insultos: „Você não é o Cristo?

Salve-se a si mesmo e a nós!‟. Mas o outro criminoso o

repreendeu, dizendo: „Você não teme a Deus, nem estando

sob a mesma sentença? Nós estamos sendo punidos com

justiça, porque estamos recebendo o que os nossos atos

merecem. Mas este homem não cometeu nenhum mal‟”.

(Lucas 23:39-41)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“As bolsas e as vidas” Ocorrência(s) na crônica: (28) “o mundo ia se acabar” /

(29) “Dilúvio de grana entrando pelos bolsos” / (30) “o

mundo talvez esteja salvo” / (31) “inundá-los com essas

torrentes de dinheiro”

Ocorrência 28

Texto-origem: A Bíblia Sagrada não registra nada sobre o

mundo se acabar (o fim do mundo), o que parece ser uma

visão secular distorcida sobre “o fim dos tempos”. A primeira

ocorrência sobre o fim dos tempos encontra-se no Novo

Testamento: “Tendo Jesus se assentado no monte das

Oliveiras, os discípulos dirigiram-se a ele em particular e

disseram: „Dize-nos, quando acontecerão essas coisas? E

qual será o sinal da tua vinda e do fim dos tempos?‟”

(Mateus 24:3)

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Tipologia: intertextualidade por alusão

Ocorrência 29 e 31

Texto-origem: “„Eis que vou trazer águas sobre a terra, o

Dilúvio, para destruir debaixo do céu toda criatura que tem

fôlego de vida‟” (Gênesis 6:17)

Tipologia: intertextualidade por alusão

Ocorrência 30

Texto-origem: A Bíblia Sagrada ensina que o papel de

Salvador do mundo é atribuído a Jesus Cristo, o que pode

ser averiguado na seguintes passagens:

“Hoje, na cidade de Davi, lhes nasceu o Salvador que

é Cristo, o Senhor” (Lucas 2:11)

“E vimos e testemunhamos que o Pai enviou seu

Filho para ser o Salvador do mundo” (I João 4:14).

Tipologia: intertextualidade por alusão

“Caipirinha chapa-branca” Ocorrência(s) na crônica: (32) “Dei-me ao trabalho de

botar os óculos, acender outra luz, ver melhor, ver para crer”

Texto-origem: Trata-se de uma alusão a Tomé, um dos

doze discípulos, que, a propósito de ressurreição de Jesus

Cristo, declarou: “Se eu não vir as marcas dos pregos em

suas mãos, não colocar o meu dedo onde estavam os

pregos e não puser a minha mão no seu lado, não crerei”

(João 20:25)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“Do horror brota a

grandeza”

Ocorrência(s) na crônica: (33) “Famílias para sempre

destroçadas, para todo o sempre”

Texto-origem: “sim, ao único Deus sábio seja dada glória

para todo o sempre, por meio de Jesus. Amém” (Romanos

16:27)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“Acreditar no Natal” Ocorrência(s) na crônica: (34) “coelho da Páscoa” / (35)

“São Pedro” / (36) “o milagre” / (37) “o nascimento de Cristo”

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Ocorrência 34

Texto-origem: “Então Moisés convocou todas as

autoridades de Israel e lhes disse: „Escolham um cordeiro ou

um cabrito para cada família. Sacrifiquem-no para celebrar a

Páscoa!‟” (Êxodo 12:21)

Tipologia: intertextualidade por alusão

Ocorrência 35

Texto-origem: “Andando à beira do mar da Galileia, Jesus

viu dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão, André.

Eles estavam jogando redes ao mar, pois eram pescadores.”

(Mateus 4:18)

Tipologia: intertextualidade por alusão

Ocorrência 36

Texto-origem: “E não pôde fazer ali nenhum milagre, exceto

impor as mão sobre alguns doentes e curá-los” (Marcos 6:5)

Tipologia: intertextualidade por alusão

Ocorrência 37

Texto-origem: “Foi assim o nascimento de Jesus Cristo:

Maria, sua mãe, estava prometida em casamento a José,

mas, antes que se unissem, achou-se grávida pelo Espírito

Santo” (Mateus 1:18)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“As mortes poderiam ser

evitadas”

Ocorrência(s) na crônica: (38) “Talvez seja mais um sinal

dos tempos”

Texto-origem: “Dizia ele à multidão: „Quando vocês vêem

uma nuvem se levantando no ocidente, logo dizem: „Vai

chover‟, e assim acontece. Quando sopra o vento sul, vocês

dizem: „Vai fazer calor‟, e assim ocorre. Hipócritas! Vocês

sabem interpretar o aspecto da terra e do céu. Como não

sabem interpretar o tempo presente?‟” (Lucas 12:54-56)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“Como administramos Ocorrência(s) na crônica: (39) “o apocalipse está

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crises?” chegando”

Texto-origem: Referência ao título do último livro da Bíblia

Sagrada, o “Apocalipse”.

Tipologia: intertextualidade por alusão

“No paraíso da

transgressão”

Ocorrência(s) na crônica: (40) “No paraíso da

transgressão” / (41) “paraíso dos transgressores”

Texto-origem: Tem-se, nas duas ocorrências, um paradoxo,

pelo qual se opõem duas ideias biblicamente opostas:

“paraíso” X “transgressão”/”transgressores”. Nos dois casos,

é possível que se esteja fazendo referência ao Jardim do

Édem, popularmente conhecido como “paraíso”, e onde

também se registra o primeiro caso de “transgressão”,

quando Eva comeu do fruto da árvore que Deus havia

proibido.

Tipologia: intertextualidade por alusão

“Esse poço tem fundo?” Ocorrência(s) na crônica: (42) “escândalos nossos de cada

dia” / (43) “a desorientada juventude nossa” / (44) “mas logo

se desfaz diante do comentário que vem do alto”

Ocorrência 42

Texto-origem: “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia”

(Mateus 6:11 – NVI) ou “O pão nosso de cada dia dá-nos

hoje” (Mateus 6:11 – ARC)

Tipologia: intertextualidade por subversão

Operação de retextualização: substituição de palavras

E1: “pão nosso de cada dia”

P (E2) em L: “escândalos nossos de cada dia”

Ocorrência 43

Texto-origem: “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia”

(Mateus 6:11 – NVI) ou “O pão nosso de cada dia dá-nos

hoje” (Mateus 6:11 – ARC)

Tipologia: intertextualidade por subversão

Operação de retextualização: substituição de palavras /

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acréscimo de palavras / supressão de palavras

E1: “o pão nosso de cada dia”

P (E2) em L: “a desorientada juventude nossa”

Ocorrência 44

Texto-origem: “Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm

do alto, descendo do Pai das luzes, que não muda como

sombras inconstantes” (Tiago 1:17)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“A sordidez humana” Ocorrência(s) na crônica (45) “e se dirá que é por

idealismo, pela fé, porque seu Deus quis assim, porque terá

em compensação o paraíso para si e seus descendentes”

Texto-origem: a reunião dos vocábulos “Deus”, “paraíso” e

“descendentes” na mesma sentença permite a remissão a

várias passagens da Bíblia Sagrada, tais como:

“Jesus lhe respondeu: „Eu lhe garanto: Hoje você

estará comigo no paraíso‟” (Lucas 23:43)

“Porei inimizade entre você e a mulher, entre a sua

descendência e o descendente dela; este lhe ferirá a

cabeça e você lhe ferirá o calcanhar” (Gênesis 3:15)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“É o fim do mundo” Ocorrência(s) na crônica: (46) “É o fim do mundo” / (47)

“„Isso é o fim do mundo‟” / (48) “Minha avó acharia que o

mundo está por acabar” / (49) “O mundo vai acabar, diria

minha severa avó luterana” / (50) “O mais novo anuncio do

fim do mundo” / (51) “quem sabe o fim do mundo ainda

demore um pouco para chegar”

Ocorrências 46, 47, 48, 49, 50 e 51

Texto-origem: A Bíblia Sagrada não registra nada sobre o

mundo se acabar (o fim do mundo), o que parece ser uma

visão secular distorcida sobre “o fim dos tempos”. A primeira

ocorrência sobre o fim dos tempos encontra-se no Novo

Testamento: “Tendo Jesus se assentado no monte das

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Oliveiras, os discípulos dirigiram-se a ele em particular e

disseram: „Dize-nos, quando acontecerão essas coisas? E

qual será o sinal da tua vinda e do fim dos tempos?‟”

(Mateus 24:3)

Tipologia:

- intertextualidade por subversão em (46), (47), (50) e (51)

- intertextualidade por alusão em (48) e (49)

Operação de retextualização [em (46), (47), (50) e (51)]:

substituição de palavras

E1: “o fim dos tempos”

P (E2) em (L): “o fim do mundo”

“Trilha de contradições” Ocorrência(s) na crônica: (52) “pouca trégua e nenhuma

misericórdia”

Texto-origem: “Tendo ele hesitado, os homens o agarraram

pela mão, como também a mulher e as duas filhas, e os

tiraram dali à força e os deixaram fora da cidade, porque o

Senhor teve misericórdia deles” (Gênesis 19:16)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“Educação e autoridade” Ocorrência(s) na crônica: (53) “Quem dá forma ao mundo

ainda informe de uma criança e um pré-adolescente são os

adultos”

Texto-origem: “No princípio Deus criou os céus e a terra.

Era a terra sem forma e vazia; trevas cobriam a face do

abismo, e o Espírito de Deus se movia sobre a face das

águas (...) No sétimo dia Deus já havia concluído a obra que

realizara, e nesse dia descansou. Abençoou Deus o sétimo

dia e o santificou, porque nele descansou de toda a obra

que realizara na criação” (Gênesis 1:1,2 e 2:2,3)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“Contraponto: deixar

desabrochar”

Ocorrência(s) na crônica: (54) “veremos milagres” / (55)

“apenas humanos tentando entender o mundo de Deus e as

humanas trapalhadas”

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Ocorrência 54

Texto-origem: “E não pôde fazer ali nenhum milagre, exceto

impor as mão sobre alguns doentes e curá-los” (Marcos 6:5)

Tipologia: intertextualidade por alusão

Ocorrência 55

Texto-origem: Trata-se de uma alusão ao diálogo entre

Jesus Cristo e Nicodemos, registrado no capítulo 3 do

evangelho de João, do qual segue um trecho transcrito: “O

vento sopra onde quer. Você o escuta, mas não pode dizer

de onde vem, nem para onde vai. Assim acontece com

todos os nascidos do Espírito. Perguntou Nicodemos: „Como

pode ser isso?‟ Disse Jesus: „Você é mestre em Israel e não

entende essas coisas? Asseguro-lhe que nós falamos do

que conhecemos e testemunhamos do que vimos, mas

mesmo assim vocês não aceitam nosso testemunho. Eu

lhes falei de coisas terrenas e vocês não creram; como

crerão se lhes falar de coisas celestiais?” (João 3:8-12)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“A gente decide” Ocorrência(s) na crônica: (56) “Indagados, os mais

desassistidos dirão que Deus é quem sabe, Deus decide, a

quem ama Deus faz sofrer”

Texto-origem: “pois o Senhor disciplina a quem ama, assim

como o pai faz ao filho de quem deseja o bem” (Provérbios

3:12)

Tipologia: intertextualidade por subversão

Operação de retextualização: substituição de palavras

E1: “o Senhor disciplina a quem ama”

P (E2) em L: “a quem ama Deus faz sofrer”

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“A praga moderna” Ocorrência(s) na crônica: (57) “Não tem doença em que

algum médico ou psiquiatra não sentencie, depois de recitar

os enigmáticos termos médicos: „E tem também o stress‟.

Para alguns, ele é, aliás, a raiz de todos os males‟. / (58)

“todos nós, homens e mulheres, botamos nos ombros

cruzes de vários tamanhos, com prego ou sem prego, com

ou sem coroa de espinhos”

Ocorrência 57

Texto-origem: “Os que querem ficar ricos caem em

tentação, em armadilhas e em muitos desejos

descontrolados e nocivos, que levam os homens a

mergulharem na ruína e na destruição, pois o amor ao

dinheiro é a raiz de todos os males. Algumas pessoas, por

cobiçarem o dinheiro, desviaram-se da fé e se atormentaram

com muitos sofrimentos” (I Timóteo 6:9,10)

Tipologia: intertextualidade por subversão

Operação de retextualização: substituição de palavras

E1: “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males”

P (E2) em L: “[o stress] é a raiz de todos os males”

Ocorrência 58

Texto-origem: “Então Pilatos mandou açoitar Jesus. Os

soldados teceram uma coroa de espinhos e a puseram na

cabeça dele. Vestiram-no com uma capa de púrpura e,

chegando-se a ele, diziam: “Salve, rei dos judeus!” E batiam-

lhe no rosto (...) Finalmente, Pilatos o entregou a eles para

ser crucificado. Então os soldados encarregarem-se de

Jesus. Levando a sua própria cruz, ele saiu para o lugar

chamado Caveira. Ali o crucificaram (...)” (João 19:1,2-16-

18)

Tipologia: intertextualidade por alusão

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“Trabalhar e sofrer” Ocorrência(s) na crônica: (59) “„O trabalho enobrece‟ é

uma dessas frases que a gente repete sem refletir no que

significam, feito reza automatizada. Outra é „A quem Deus

ama, ele faz sofrer‟, que fala de uma divindade cruel, fria,

que não mereceria uma vela acesa sequer” / (60) “darás a

luz com dor”

Ocorrência 59

Texto-origem: “pois o Senhor disciplina a quem ama, assim

como o pai faz ao filho de quem deseja o bem” (Provérbios

3:12).

Tipologia: intertextualidade por subversão

Operação de retextualização: substituição de palavras

E1: “o Senhor disciplina a quem ama”

P (E2) em L: “a quem Deus ama, ele faz sofrer”

Ocorrência 60

Texto-origem: “À mulher, ele declarou: „Multiplicarei

grandemente o seu sofrimento na gravidez; com sofrimento

você dará à luz filhos” (Gênesis 3:16 - NVI); ou “E à mulher

disse: „Multiplicarei grandemente a tua dor e a tua

conceição; com dor terás filhos‟” (Gênesis 3:16 – ARC)

Tipologia: intertextualidade por captação

“Alegres e ignorantes” Ocorrência(s) na crônica: (61) “uma conversa pode nos

tirar escamas dos olhos”

Texto-origem: “Imediatamente, algo como escamas caiu

dos olhos de Saulo e ele passou a ver novamente.

Levantando-se, foi batizado” (Atos 9:18)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“Mordaças e palmadas” Ocorrência(s) na crônica: (62) “Mas a tal lei da palmada,

me perdoem: parece-me irreal, inexequível, geradora de

muita confusão e de indevidas intromissões no lugar que

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deveria ser o mais nosso, o mais pessoal, nosso refúgio,

nosso reino, nosso santo dos santos:21 a casa, a família, o

lar”

Texto-origem:

“Depois Arão entrará na Tenda do Encontro, tirará as

vestes de linho que usou para entrar no Santo dos

Santos e as deixará ali” (Levítico 16:23)

“O véu separará o Lugar Santo do Lugar Santíssimo”

(Êxodo 26:33)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“Plataforma contra as

fomes”

Ocorrência(s) na crônica: (63) “o prato de cada dia”

Texto-origem: “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia”

(Mateus 6:11 – NVI) ou “O pão nosso de cada dia dá-nos

hoje” (Mateus 6:11 – ARC)

Tipologia: intertextualidade por subversão

Operação de retextualização: Substituição de palavras

E1: “o pão nosso de cada dia”

P (E2) em L: “o prato de cada dia”

“Os dias depois” Ocorrência(s) na crônica: (64) “Que os fantasmas de

pesadelo que a rondam periodicamente desapareçam para

todo o sempre, amém”

Texto-origem: “sim, ao único Deus sábio seja dada glória

para todo o sempre, por meio de Jesus. Amém” (Romanos

16:27)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“A lei e a Justiça” Ocorrência(s) na crônica: (65) “os escândalos nossos de

cada dia”

Texto-origem: “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia”

(Mateus 6:11 – NVI) ou “O pão nosso de cada dia dá-nos

hoje” (Mateus 6:11 – ARC)

Tipologia: intertextualidade por subversão

21 Também conhecido, nas Escrituras, como Lugar Santíssimo.

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Operação de retextualização: Substituição de palavras

E1: “pão nosso de cada dia”

P (E2) em L: “os escândalos nossos de cada dia”

“O inverno do nosso

desalento”

Ocorrência(s) na crônica: (66) “quem não quer ver, para

não ter de crer”

Texto-origem: Trata-se de uma alusão a Tomé, um dos

doze discípulos, que, a propósito de ressurreição de Jesus

Cristo, declarou: “Se eu não vir as marcas dos pregos em

suas mãos, não colocar o meu dedo onde estavam os

pregos e não puser a minha mão no seu lado, não crerei”

(João 20:25)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“A dor do mundo” Ocorrência(s) na crônica: (67) “nosso pão de cada dia”

Texto-origem: “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia”

(Mateus 6:11 – NVI) ou “O pão nosso de cada dia dá-nos

hoje” (Mateus 6:11 – ARC)

Tipologia: intertextualidade por captação

“Drogas: o labirinto” Ocorrência(s) na crônica: (68) “Drogas tem sido o assunto

nosso de cada dia, não o pão, mas o veneno da alma” / (69)

“se abram os abismos do inferno, não míticos infernos de

anjos caídos, mas o labirinto onde se desperdiça a vida”

Ocorrência 68

Texto-origem: “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia”

(Mateus 6:11 – NVI) ou “O pão nosso de cada dia dá-nos

hoje” (Mateus 6:11 – ARC)

Tipologia: intertextualidade por subversão

Operação de retextualização: Substituição de palavras

E1: “pão nosso de cada dia”

P (E2) em L: “assunto nosso de cada dia”

Ocorrência 69

Texto-origem: “Ele respondeu: „Eu vi Satanás caindo do

céu como relâmpago‟” (Lucas 10:18)

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Tipologia: intertextualidade por alusão

“Baile de máscaras” Ocorrência(s) na crônica: (70) “Somos muitos, já disse o

demônio encarnado em algum pobre que Cristo libertou”

Texto-origem: Pois Jesus lhe tinha dito: „Saia deste homem,

espírito imundo!‟. “Então Jesus lhe perguntou: „Qual é o seu

nome?‟. „Meu nome é Legião‟, respondeu ele, „porque

somos muitos.‟ E implorava a Jesus, com insistência, que

não os mandasse sair daquela região. Uma grande manada

de porcos estava pastando numa colina próxima. Os

demônios imploraram a Jesus: „Manda-nos para os porcos,

para que entremos neles‟. Ele lhes deu permissão, e os

espíritos imundos saíram e entraram nos porcos” (Marcos

5:8-13)

Tipologia: intertextualidade por captação

“Pós-modernos de

tacape”

Ocorrência(s) na crônica: (71) “não se consegue por todo

o sempre, mas por algum tempinho”

Texto-origem: “sim, ao único Deus sábio seja dada glória

para todo o sempre, por meio de Jesus. Amém” (Romanos

16:27)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“Voz no deserto” Ocorrência(s) na crônica: (72) “Voz no deserto” / (73) “a

gente precisa, com amor e coragem, abrir caminhos, portas,

janelas, e ajudar a mudar as coisas que podem ser

mudadas” / (74) “nosso dever de cada dia”

Ocorrência(s) 72

Texto-origem: “Este é aquele que foi anunciado pelo profeta

Isaías: “Voz do que clama no deserto: „Preparem o caminho

para o Senhor, façam veredas retas para ele‟” (Mateus 3:3)

Tipologia: intertextualidade com valor de subversão

Operação de retextualização: Supressão de palavras

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E1: “Voz do que clama no deserto”

P (E2) em L: “voz no deserto”

Ocorrência(s) 73

Texto-origem: Texto-origem: “Este é aquele que foi

anunciado pelo profeta Isaías: “Voz do que clama no

deserto: „Preparem o caminho para o Senhor, façam

veredas retas para ele‟” (Mateus 3:3)

Tipologia: intertextualidade por alusão

Ocorrência(s) 74

Texto-origem: “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia”

(Mateus 6:11 – NVI) ou “O pão nosso de cada dia dá-nos

hoje” (Mateus 6:11 – ARC)

Tipologia: intertextualidade por subversão

Operação de retextualização: Substituição de palavras

E1: “pão nosso de cada dia”

P (E2) em L: “nosso dever de cada dia”

“Degraus de ilusão” Ocorrência(s) na crônica: (75) “Podemos ser derrotados,

mas não estaremos jogados na cova dos leões do destino,

totalmente desarmados”

Texto-origem: “Todos os supervisores reais, os prefeitos, os

sátrapas, os conselheiros e os governadores concordaram

em que o rei deve emitir um decreto ordenando que todo

aquele que orar a qualquer deus ou a qualquer homem nos

próximos trinta dias, exceto a ti, ó rei, seja atirado na cova

dos leões” (Daniel 6:7)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“O instinto animal” Ocorrência(s) na crônica: (76) “não é certo que da treva

sempre nasce a luz”

Texto-origem: Trata-se de uma referência ao primeiro

capítulo do livro de Gênesis, onde se lê: “Era a terra sem

forma e vazia; trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito

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de Deus se movia sobre a face das águas. Disse Deus:

„Haja luz‟, e houve luz” (Gênesis 1:2,3)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“Querendo que dê certo” Ocorrência(s) na crônica: (77) “o sal da terra” / (78) “um

milagre” / (79) “Não acredito cegamente”

Ocorrência 77

Texto-origem: “„Vocês são o sal da terra. Mas se o sal

perder o seu sabor, como restaurá-lo? Não servirá para

nada, exceto para ser jogado fora e pisado pelos homens‟”

(Mateus 5:13)

Tipologia: intertextualidade por alusão

Ocorrência 78

Texto-origem: “E não pôde fazer ali nenhum milagre, exceto

impor as mão sobre alguns doentes e curá-los” (Marcos 6:5)

Tipologia: intertextualidade por alusão

Ocorrência 79

Texto-origem: Trata-se de uma alusão a Tomé, um dos

doze discípulos, que, a propósito de ressurreição de Jesus

Cristo, declarou: “Se eu não vir as marcas dos pregos em

suas mãos, não colocar o meu dedo onde estavam os

pregos e não puser a minha mão no seu lado, não crerei”

(João 20:25)

Tipologia: intertextualidade por alusão

“A formação de um povo” Ocorrência(s) na crônica: (80) “não adianta um telhado de

luxo sobre paredes rachadas em casas construídas sobre

areia movediça”

Texto-origem: “Mas quem ouve estas minhas palavras e

não as pratica é como um insensato que construiu a sua

casa sobre a areia. Caiu a chuva, transbordaram os rios,

sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela caiu.

E grande foi a sua queda” (Mateus 7:26,27)

Tipologia: intertextualidade por alusão

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“Eu ia falar de flores” Ocorrência(s) na crônica: (81) “nem só de indignação, por

mais justa que seja, a gente vive”

Texto-origem: “Assim, ele os humilhou e os deixou passar

fome. Mas depois os sustentou com maná, que nem vocês

nem os seus antepassados conheciam, para mostrar-lhes

que nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra

que procede da boca do Senhor” (Deuteronômio 8:3)

Tipologia: intertextualidade por subversão

Operação de retextualização: substituição de palavras

E1: “nem só de pão viverá o homem”

P (E2) em L: “nem só de indignação... a gente vive”

“O jeito brasileiro” Ocorrência(s) na crônica: (82) “Aí vem Francisco, o papa,

com seu jeito de vovozinho alegre, mas não se enganem: é

experiente, é sábio, é corajoso, chega dizendo que não traz

nem ouro nem prata, mas Cristo”

Texto-origem: a fonte original encontra-se no livro de Atos

dos Apóstolos: “Disse Pedro: „Não tenho prata, nem ouro,

mas o que tenho, isto lhe dou. Em nome de Jesus Cristo, o

Nazareno, ande‟” (Atos 3:6).

Nesta ocorrência, o locutor incorpora linguisticamente na

sua fala a fala de um locutor L2: “não traz ouro nem prata,

mas Cristo”, enunciado antecedido pelo marcador de

discurso indireto “dizendo que”.

Tipologia: intertextualidade por captação

“Eu pensava ter visto

tudo”

Ocorrência(s) na crônica: (83) “queremos a boa-nova de

que médicos brasileiros ou estrangeiros cumprindo as

provas legais encontrem condições mínimas para trabalhar”

Texto-origem: “Jesus foi por toda a Galileia, ensinando nas

sinagogas deles, pregando as boas novas do Reino e

curando todas as enfermidades e doenças entre o povo”

(Mateus 4:23)

Tipologia: intertextualidade por alusão

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“Tomie Ohtake e a

esperança”

Ocorrência(s) na crônica: (84) “que tudo não desmorone

como um grande castelo erguido sobre um mangue”

Texto-origem: “Mas quem ouve estas minhas palavras e

não as pratica é como um insensato que construiu a sua

casa sobre a areia. Caiu a chuva, transbordaram os rios,

sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela caiu.

E grande foi a sua queda” (Mateus 7:26,27)

Tipologia: intertextualidade por alusão

Por meio de alguns critérios, buscou-se, por meio da análise qualitativa,

descrever o funcionamento dos elementos intertextuais na construção de um

ethos cristão. A primeira parte, que contempla análises de quatro crônicas, não

somente revela a presença do intertexto bíblico, como também aponta para sua

atuação na organização discursiva, uma vez que, em alguns casos, os

referidos elementos participam efetivamente. A segunda parte, correspondente

à tabela com as micro-análises, oferece, como se pode observar, uma visão

geral de todas as ocorrências do fenômeno intertextual.

Acredita-se, com esse procedimento, que as hipóteses relacionadas à

análise qualitativa, previamente levantadas e registradas na introdução desta

pesquisa, sejam ratificadas.

A primeira hipótese, segundo a qual a ocorrência do intertexto bíblico

nas crônicas de Lya Luft expressaria um ethos religioso cristão, é parcialmente

confirmada, já que ela está atrelada também à análise quantitativa e à

ratificação das demais hipóteses.

A segunda hipótese, segundo a qual a manifestação do intertexto bíblico

revelaria um conhecimento especificamente amplo da Bíblia por parte da

escritora Lya Luft, se sustenta pela constatação de que as passagens bíblicas

que se verificam como fonte da intertextualidade são variadas, já que se

encontram em diferentes livros, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento.

A terceira hipótese, de acordo com a qual os casos de intertextualidade

por subversão – em que ocorre a retextualização do texto-fonte – seriam

indícios de uma forte familiaridade com o discurso bíblico. Para validar essa

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hipótese, observe-se como a cronista, partindo da estrutura do texto original,

engendra novas significações em seu discurso, de maneira bastante particular.

A quarta hipótese, pela qual se revelaria que o intertexto bíblico participa

da orientação argumentativa que a cronista busca imprimir em seus textos, é

ratificada pela primeira parte da análise, por meio da qual se demonstrou, em

alguns casos, que a argumentação se estrutura em torno de um elemento

intertextual. A título de exemplificação, retoma-se a primeira ocorrência de

intertexto bíblico verificada na análise da crônica “Meu País é uma Fênix”, bem

como o seu funcionamento na organização argumentativa do texto:

Tese: “O pano de fundo de minhas frases acabaria sendo a teia de malfeitos

que de momento constrangem o meu país”.

Argumento: “O Brasil geme nas dores do parto de (esperemos) uma

democracia menos infestada pela corrupção”.

Observe-se que a sequência de texto correspondente ao argumento é

uma retextualização da passagem bíblica registrada na carta do apóstolo Paulo

aos Romanos, transcrita a seguir:

“Sabemos que toda a natureza criada geme até agora, como em dores

de parto. E não só isso, mas nós mesmos, que temos os primeiros frutos

do Espírito, gememos interiormente, esperando ansiosamente nossa

adoção como filhos, a redenção do nosso corpo” (Romanos 8:22; Bíblia

de estudo NVI, 2003, p.1934).

Assim, nota-se que o intertexto bíblico, além de expressar um ethos

religioso cristão, participa, em alguns casos do direcionamento argumentativo

ao qual o leitor é levado a seguir.

As demais hipóteses serão confirmadas pela análise quantitativa,

apresentada na próxima seção.

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4.2 O corpus sob uma perspectiva quantitativa

Considerando-se que, dentre 228 crônicas reunidas, publicadas entre os

anos de 2005 e 2013, foram selecionadas 53 para composição do corpus; e

que o fenômeno intertextual focalizado apresentou 84 ocorrências, observe-se

o seguinte gráfico, bem como o significado dos resultados obtidos:

DISTRIBUIÇÃO DOS TIPOS DE INTERTEXTUALIDADE

68%(57)

26%(22)

6%(5)

Intertextualidade com valor de captação

Intertextualidade com valor de subversão

Intertextualidade por alusão

O gráfico mostra que, do total de 84 ocorrências de intertexto bíblico, a

maior frequência – 68% (57 oc.) – é constituída de casos de intertextualidade

por alusão; 26% (22 oc.) correspondem aos casos de intertextualidade com

valor de subversão; e 6% (5 oc.) são casos de intertextualidade com valor de

captação.

Assim como na análise qualitativa, a análise quantitativa deverá

viabilizar a ratificação de algumas hipóteses que foram delineadas na

introdução deste trabalho.

A quinta hipótese, pela qual se atestaria o recurso ao intertexto bíblico

como um fenômeno recorrente nas crônicas de Lya Luft se confirma pelo total

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de ocorrências identificadas no corpus. São 84 ocorrências distribuídas entre

as três modalidades de intertextualidade – captação, subversão e alusão.

A sexta hipótese, segundo a qual a construção do referido ethos cristão

se dá preferencialmente por meio de formas intertextuais de natureza mais

implícitas, considerando-se uma escala de implicitude, é validada pela maior

frequência de ocorrências de intertextualidade por alusão e de intertextualidade

com valor de subversão. O primeiro situa-se no nível mais profundo de

implicitude; e o segundo, em um nível intermediário de implicitude.

A menor frequência de ocorrências de intertextualidade com valor de

captação reafirma a preferência de Lya Luft por estratégias menos evidentes –

de maior implicitude –, que configuram um estilo próprio e, por isso, revela a

intimidade que, ao longo dos anos, se estabeleceu entre a cronista e seu

público leitor. Saliente-se que, embora a tipologia da captação se situe em um

nível mais “raso” de implicitude, não se deve ignorar que se trata de uma forma

não marcada de intertexto, e, portanto, da ordem do implícito.

A sétima hipótese, que prevê que o ethos religioso cristão se expressa

também na dinâmica polifônica, numa relação entre as vozes das instâncias

enunciativas é confirmada pelo considerável número de ocorrências de

intertextualidade com valor de subversão. Analisados sob a ótica da Teoria

Polifônica da Enunciação, os casos de subversão apontam para a existência de

um enunciador E1, responsável pela expressão do texto-fonte, extraído da

Bíblia Sagrada, e de um enunciador E2, que corresponde a uma perspectiva

que se expressa pela voz do locutor L, materializando linguisticamente o

intertexto.

O próximo gráfico apresenta as frequências referentes às operações de

retextualização verificadas nas 22 ocorrências de intertextualidade com valor

de subversão registradas:

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DISTRIBUIÇÃO DAS OPERAÇÕES DE RETEXTUALIZAÇÃO

NAS OCORRÊNCIAS DE INTERTEXTUALIDADE COM

VALOR DE SUBVERSÃO

12%(3)

4%(1)

12%(3)

72%(19)Substituição

Acréscimo

Supressão

Transposição

O gráfico é claro ao evidenciar, dentre um total de 26 ocorrências, a

supremacia da operação de substituição de palavras, empregada em 72% (19

oc.) dos casos, contra 12% (3 oc.) correspondentes à frequência da operação

de acréscimo; outros 12 % (3 oc.) correspondentes à frequência da operação

de supressão; e 4% (1 oc.) correspondentes à frequência da operação de

transposição.

Saliente-se que as operações de retextualização são aquelas que, nas

análises, são empregadas por um enunciador E2 a fim de alterar/subverter o

texto-origem, resultando nas ocorrências de intertextualidade por subversão,

expressas pela voz do locutor L.

A operação de retextualização por substituição consiste na omissão de

certas palavras do texto-origem para dar lugar a outras palavras, como

mostram os exemplos abaixo, retomados do corpus:

1) E1: “o Senhor disciplina a quem ama”

P (E2) em L: “Deus faz sofrer a quem ama”

[Ocorrência (15)]

2) E1: “o pão nosso de cada dia”

P (E2) em L: “a esperança nossa de cada dia”

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[Ocorrência (18)]

3) E1: “pão nosso de cada dia”

P (E2) em L: “escândalos nossos de cada dia”

[Ocorrência (42)]

4) E1: “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males”

P (E2) em L: “[o stress] é a raiz de todos os males”

[Ocorrência (57)]

A constatação de que a operação de substituição é a mais recorrente

indica a busca do enunciador por preservar ao máximo a estrutura formal do

enunciado original. Se assim não fosse, as operações de supressão e/ou

acréscimo deveriam ser as mais frequentes, uma vez que implicam alterações

relativamente mais profundas na estrutura do texto-origem.

Além disso, é plausível considerar que a frequência abundante da

operação de substituição possa significar que ela constitui a forma mais

emblemática de retextualização, tendo em vista que, em suma, a

retextualização consiste em “substituir” um texto por outro.

Por conta dessas evidências, acredita-se que os casos de

intertextualidade com valor de subversão se sobressaem no quadro geral das

análises, ainda que apareçam com um percentual inferior em relação aos

casos de intertextualidade por alusão.

Ao fim deste capítulo de análises, acredita-se que se confirma a primeira

hipótese levantada na introdução, podendo-se afirmar, então, que a ocorrência

do intertexto bíblico nas crônicas de Lya Luft expressa um ethos religioso

cristão.

Tendo em vista o quadro geral das análises qualitativa e quantitativa, registra-

se a defesa da tese: diferentes estratégias de intertextualidade participam

da construção de um ethos religioso cristão em crônicas de Lya Luft

publicadas na revista Veja.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nos pressupostos teóricos elencados e na metodologia de

análise adotada para conduzir as investigações, pode-se confirmar as

hipóteses previamente levantadas e, assim, chegar ao término da tese em

defesa. Após este percurso teórico-analítico, trilhado para satisfazer os

propósitos delineados ao longo do trabalho, conclui-se com o registro de

algumas considerações.

Em síntese, os resultados obtidos mostram a construção de um ethos

religiosos cristão que se projeta pelo emprego de certas formas de intertexto

bíblico que a escritora Lya Luft utiliza com bastante frequência em suas

crônicas.

A propósito das ocorrências de intertexto bíblico identificadas no corpus,

verificou-se a existência de três tipologias: intertextualidade por alusão,

intertextualidade com valor de subversão e intertextualidade com valor de

captação. Adotou-se, como critério de classificação, uma escala de implicitude,

no interior da qual se estabeleceu que a alusão ocupa o pólo de maior

profundidade e a captação, o nível mais raso de implicitude. A tipologia da

subversão, por sua vez, situa-se em uma posição intermediária.

Os resultados apontam a tipologia intertextual da alusão como a mais

recorrente nas crônicas de Lya Luft analisadas. Ao descrever o modo como as

formas alusivas ultrapassam os limites do cotexto, situando-se no nível mais

profundo da escala de implicitude, pode-se compreender que um evento

alusivo ancora-se essencialmente na memória discursiva, exigindo do leitor um

esforço extremamente maior para o reconhecimento do intertexto.

Não se pode deixar de realçar os casos de intertextualidade com valor

de subversão, por meio dos quais pode-se perceber a produtividade da

aplicação da teoria polifônica como método analítico. Essa opção para tratar

dos referidos casos de subversão revelou-se eficaz não somente para o

conhecimento de cada uma das instâncias expressas pelos elementos

intertextuais, mas para se confirmar pontualmente quais foram os textos-fonte

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(hiperenunciador E1) expressos pela voz do locutor (L), a fim de se chegar à

forma empregada nas crônicas (enunciador E2).

Quanto aos casos de intertextualidade com valor de captação, destaca-

se que, embora as ocorrências evidenciem uma menor exigência de esforço

cognitivo do leitor para a recuperação do intertexto, por conta de seu caráter de

semelhança com o texto-fonte, não se pode negar que se trata de um tipo de

intertextualidade implícita. Por isso, mesmo que os resultados apontem para

uma menor frequência de ocorrências de captação, entre as três tipologias, tais

casos não devem ser ignorados.

No que se refere à maneira como os três tipos de intertextualidade

convergem para a construção do ethos cristão, é preciso ressaltar que:

nas ocorrências de intertextualidade por alusão, a projeção de uma

imagem de si constitui-se como resultado do recurso aos níveis

mais implícitos de intertextualidade restrita;

nas ocorrências de intertextualidade com valor de subversão, a

construção do referido ethos é operada, principalmente, na

dinâmica polifônica, ou, mais precisamente, pela identificação do

enunciador E1, responsável por enunciar o texto-origem;

nas ocorrências de intertextualidade com valor de captação, a

semelhança do elemento intertextual com o texto-origem indica que

a construção do ethos cristão se dá, sobretudo, por meio das

instruções formais presentes no cotexto.

Compreendendo-se o fenômeno da intertextualidade não mais no

sentido restrito como foi tratado ao longo desta pesquisa, mas como uma

condição constitutiva da linguagem e sabendo-se, assim, que todo discurso é

atravessado por discursos outros, verificou-se, nas análises, que não se trata

somente do emprego da forma de um conteúdo fragmentado da Bíblia

Sagrada. Para além das restrições formais, observou-se que se trata, de fato,

do discurso bíblico em interação com o discurso jornalístico, representado pelo

gênero analisado, a crônica. Esferas discursivas distintas se entrecruzando a

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cada enunciação, fruto da natureza dialógica de que se revestem a linguagem

e os sujeitos.

Assim, a Bíblia Sagrada atravessa os discursos contemporâneos, como

uma forma de ela própria perpetuar na história, servindo como reflexo tanto do

que se foi (memória) quanto do que é (atualidade). E a sua vastidão temática

torna ainda maior sua capacidade de perpassar os espaços sociais e o tempo:

a esperança que conduz ao otimismo; o sacrifício que suscita a ideia de

assunção de papéis relevantes; as dores e aflições que podem ser uma formas

de disciplinar o homem. Todos esses aspectos são bem explorados por Lya

Luft, que, mesmo inconsciente disto – porque o interdiscurso é esse espaço de

constituição do sentido que escapa às intenções subjetivas –, revela-se em seu

discurso.

Antes de fechar esta conclusão, julga-se importante destacar, ainda, a

contribuição dos teóricos a que se recorreu para fundamentar a pesquisa, uma

vez que foram essenciais no auxílio à compreensão dos fenômenos estudados.

Nesse sentido, este trabalho é também uma exaltação aos autores referidos.

Acredita-se que esta investigação é relevante, no âmbito de uma linha

de pesquisa que estuda as relações entre língua e discurso, uma vez que

deverá:

constituir uma alternativa de modelo de análise para outros trabalhos

sobre ethos discursivo;

contribuir para pesquisas posteriores, aos interessados pelo

fenômeno da intertextualidade;

contribuir também para trabalhos cujo material de análise é

constituído de exemplares do gênero textual crônica jornalística; e

salientar a relevância das teorias elencadas para as pesquisas em

torno do temas abarcados.

Chega-se, assim, ao encerramento deste trabalho, intitulado O

Intertexto Bíblico Como Expressão De Um Ethos Nas Crônicas De Lya

Luft.

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ANEXOS

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