Mário Curtis Giordani - Iniciação ao Direito Romano

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MÁRIO CURTIS GIORDANI INICIAÇÃO AO DIREITO ROMANO 3ª EDIÇÃO

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MÁRIO CURTIS GIORDANI

INICIAÇÃO AO

DIREITO ROMANO

3ª EDIÇÃO

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MÁRIO CURTIS GIORDANI Titular de Direito Romano da Faculdade de Direito Candido Mendes,

Rio de Janeiro

INICIAÇÃO AO

DIREITO ROMANO

3ª EDIÇÃO

EDITORA LUMEN JURIS

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Copyright © Mário Curtis Giordani

Coordenação Editorial: Márcia Regina de Jesus Campos

Capa: Maaliaiui Informática Ltda Tel : 242-4017

Impressão: Gráfica Tavares & Tristão

Proibida a reprodução (Lei nº 5.988/73)

1996

Impresso no Brasil

Todos us direitos reservados à EDITORA LUMEN JURIS LTDA

Rua da Assembléia, 36 Salas 203/204 Tels: 531-1790 CEP 20011Rio de Janeiro RJ

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À MEMÓRIA

DO EMINENTE LATINISTA E HELENISTA

PROFESSOR BALTASAR XAVIER DE ANDRADE

E SILVA

Sincera homenagem do autor.

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APRESENTAÇÃO

Nesta breve Iniciação ao Direito Romano procuramos focalizar, de maneira sucinta, aspectos de alguns dos temas que consideramos indispensáveis à preparação para um posterior e aprofundado estudo do Direito Romano. A exposição revestiu um cunho didático, o que explica, por exemplo, a ocorrência de repetições quando, em diferentes capítulos, são abordados pontos idênticos ou afins. Repetitio est mater studiorum, repetia com freqüência um saudoso mestre.

Uma iniciação ao Direito Romano, por mais modesta que seja, não dispensa evidentemente a referência a uma bibliografia especializada, ainda que sumária. Os autores consultados e citados encontram-se mencionados nas notas referentes ao texto e na relação bibliográfica. Chamamos a atenção do leitor para a importância dessas notas, pois aí encontrará observações esclarecedoras e até mesmo opiniões divergentes. Procuramos também propiciar ao leitor um contato direto com as próprias fontes do Direito Romano reproduzindo numerosos textos latinos com a respectiva tradução.

O Autor

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OBRAS PUBLICADAS DO AUTOR,

LIVROS

História da Ação Social da Igreja no Mundo Antigo. (Biblioteca de Cultura Católica) - Vozes, 1959.

História da Antigüidade Oriental -17ª edição - Vozes, 1963.

História da Grécia – 3ª edição - Vozes, 1967.

História de Roma 1ª edição - Vozes, 1965.

História do Império Bizantino 2ª edição - Vozes, 1968.

História dos Reinos Bárbaros I - Vozes, 1970.

História dos Reinos Bárbaros II - Vozes, 1972.

História do Mundo Feudal I - 2ª edição - Vozes, 1973.

História do Mundo Feudal II - 2 tomos - Vozes, 1982 e 1983.

História do Mundo Árabe - Vozes, 1976.

História da África - Vozes, 1985.

Direito Penal Romano Forense, 1982.

Iniciação ao Existencialismo Freitas Bastos, 1976.

ARTIGOS

O professor católico em face do Ensino da História. (Estudo publicado na revista Vozes de abril, junho e julho de 1958).

Origem da Humanidade à Luz das Ciências Biológicas. (Publicado na revista Vozes de agosto e de setembro de 1958 ).

Origem da Humanidade à Luz da Filosofia. (Publicado na revista Vozes de outubro e de novembro de 1958 ).

Origem da Humanidade à Luz da Teologia. (Revista Vozes de dezembro de 1958 ).

A Bíblia e a História do Oriente Antigo. (Publicado na revista Vozes de janeiro de 1959).

Dilúvio e Torre de Babel. (Publicado na revista Vozes de fevereiro de 1959).

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DO DIREITO

A Religião nas Constituições do Próximo e Médio Oriente. (Publicado na revista Vozes de abril de 1959).

O Direito Social nas Constituições dos Países Árabes. (Publicado na revista Vozes de maio de 1959).

A Compra e Venda na Antiga Mesopotâmia. (Publicado na revista Vozes de julho de 1959).

O Direito Penal entre os Povos Antigos do Oriente Próximo. (Publicado na revista Vozes de setembro de 1959).

O Direito Penal entre os Hebreus. (Publicado na revista Vozes de julho de 1960).

A Greve do Direito Europeu Contemporâneo. (Publicado na revista Vozes de abril de 1960).

A Liberdade de Ensino e a Constituição da Guanabara. (Publicado na revista Vozes de agosto de 1961 ).

São Tomás de Aquino e o Direito Romano - in Estudos Jurídicos em Homenagem a Caio Mario da Silva Pereira Forense, 1984.

O Novo Código de Direito Canônico em sua Perspectiva Histórica, - Revista Forense, vol. 284.

ESTUDOS DE HISTÓRIA DA FILOSOFIA

Breve Introdução ao Existencialismo. (Publicado na revista Vozes de março de 1962).

Kierkegaard, Pensador Religioso. (Publicado na revista Vozes de maio de 1962 ).

Heidegger, o Filósofo em Busca do Sentido do Ser, (Publicado na revista Vozes de agosto de 1962).

Jaspers, o Filósofo da Transcendência 1ndefinívèl. (Publicado na revista Vozes de junho de 1962).

Sartre; o Filósofo do Ser e do Nada. (Publicado na revista Vozes de setembro de 1962).

Gabriel Marcel, o Filósofo do Problema e do Ministério. (Publicado na revista Vozes de outubro de 1962 ).

Conclusões sobre o Existencialismo. (Publicado na revista Vozes de dezembro de 1962).

Husserl, o Filósofo das Essências Puras. (Publicado na revista Vozes de outubro de 1964).

Farias Brito, o Apóstolo da Filosofia. (Publicado na revista Vozes de novembro de 1964).

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SUMÁRIO

CAPÍTULO I NOÇÃO DE DIREITO ROMANO. INFLUÊNCIAS RECEBIDAS 1 NOÇÃO DE DIREITO ROMANO 1 A LONGA VIGÊNCIA DO DIREITO ROMANO 1 HISTÓRIA INTERNA E HISTÓRIA EXTERNA 2 INFLUÊNCIAS NA EVOLUÇÃO DO DIREITO ROMANO 3 INFLUÊNCIAS ORIENTAIS 3 INFLUÊNCIAS DA CIVILIZAÇÃO GREGA 6 INFLUÊNCIAS DO CRISTIANISMO 11 CAPÍTULO II ALGUNS TRAÇOS CARACTERÍSTICOS DO DIREITO ROMANO 17 FRUTO DE UM TRABALHO SÉRIO DE JURISTAS E PRETORES 17 FALTA DE UNIDADE. TRADICIONALISMO 17 REALISMO 18 CASUÍSMO 19 INDIVIDUALISMO? 19 DESIGUALDADE 20 OUTRAS CARACTERÍSTICAS 21 CAPÍTULO III UTILIDADE DO ESTUDO DO DIREITO ROMANO 22 UTILIDADE DE ORDEM CULTURAL 22 UTILIDADE DE ORDEM PRÁTICA 26 CAPÍTULO IV DISCIPLINAS AUXILIARES 28 LATIM 28 HISTÓRIA DE ROMA 29 EPIGRAFIA 30 PAPIROLOGIA 33 CAPÍTULO V ALGUMAS NOÇÕES ELEMENTARES 37 O VOCÁBULO JUS 37 JURISPRUDENTIA 38 DEFINIÇÃO DE DIREITO 39 AEQUITAS 39 JUS E FAS 40 MORAL E DIREITO 41 DIVISÕES DO DIREITO 43

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Jus scriptum e Jus non scriptum 43 Jus Civile 44 Jus honorarium 45 Jus Constitutionum 48 Jus Gentium 49 Jus Naturale 52 Jus Singulare e Jus Communae 55 Jus publicum e Jus privatum 56

CAPÍTULO VI FATOS E ATOS JURÍDICOS 59 NOÇÕES GERAIS 59 NEGÓCIO JURÍDICO 59 REQUISITOS GERAIS DO NEGÓCIO JURÍDICO 61

Vicios da vontade 62 Coação (Vis, metus) 65

ELEMENTOS ACIDENTAIS DO NEGÓCIO JURÍDICO 65 REPRESENTAÇÃO 69 CAPÍTULO VII ESTRUTURA POLÍTICA 73 REALEZA 73

Rei 74 Senado 74 Comicios Curiatos 75

REPÚBLICA 75 Magistraturas 76 Imperium 76 Magistrados cum imperio 78 Magistrados sine imperio 79 Edilidade 79 Questura 80 Tribunato da plebe 80 O Senado 81 Os Comicios 82 Comicios curiatos 82 Comicios centuriatos 82 Comicios tributos 84

PRINCIPADO 85 Poderes de Otávio 85 Dominato 88

AS PROVÍNCIAS 89 As provincias na República 90 As Províncias no Império 90

RELAÇÕES INTERNACIONAIS 91 CAPÍTULO VIII FONTES DO DIREITO ROMANO 94 NOÇÃO DE FONTE 94 ORIGENS 96

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Costume 96 ANTIGO DIREITO 97

Lei das XII Tábuas 97 Legislação posterior à Lei das XII Tábuas 99

PERÍODO CLÁSSICO 99 Leis 99 Costume 103 Editos dos Magistrados 104 Responsa Prudentium 106 Senatusconsultos 110 Constituições Imperiais 111

PERÍODO DO BAIXO IMPÉRIO OU BIZANTINO 113 Leges antes de Justiniano 113 A jurisprudência no periodo pós-clássico 114 A lei das citações 115 Compilações de Justiniano 116 O 1º Código 117 O Digesto (Pandectas) 117 As Institutas 119 O segundo Código 119 Novelas 120 Antinomias 120

CAPÍTULO IX INTERPRETATIO 121 NOÇÕES GERAIS 121 A INTERPRETAÇÃO NO DIREITO ROMANO 124 BIBLIOGRAFIA 134 NOTAS 139

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Capítulo I

NOÇÃO DE DIREITO ROMANO. INFLUÊNCIAS RECEBIDAS

NOÇÃO DE DIREITO ROMANO

Podemos definir o Direito Romano como o “conjunto de normas jurídicas que regeram o povo romano nas várias épocas de sua História, desde as origens de Roma até a morte de Justiniano, imperador do Oriente, em 565 da era cristã”1.

Estudando a História da Educação em Roma, o historiador Marrou sublinha que, no campo do ensino jurídico, cessa o paralelismo entre as escolas gregas e latinas : “Abandonando aos gregos a filosofia e (ao menos por muito tempo) a medicina, os romanos criaram com suas escolas de direito um tipo de ensino superior original.” Esta originalidade provém evidentemente do objeto desse ensino: o direito romano que, como acentua, ainda, Marrou, representa “o aparecimento de uma forma nova de cultura, de um tipo de espírito que o mundo grego não havia de modo algum pressentido”2.

É comum salientar-se que, enquanto a Grécia antiga notabilizou-se, entre outras características, pela vocação especulativa, cultora da idolatria da razão, que deu ao mundo ocidental a Filosofia, Roma, impregnada de um senso prático, criou um admirável ordenamento jurídico da sociedade, que reflete tão bem os traços marcantes do gênio romano: a gravitas (senso de responsabilidade), a pietas (expressão da obediência à autoridade tanto divina como humana) e a simplicitas (a qualidade do homem que vê claramente as coisas e as vê tais como são). Kaser atribui aos dotes do povo romano a magnitude e a importância do Direito Romano privado: “A magnitude do Direito Romano privado e sua importante missão histórica devem-se aos dotes do povo de Roma para o Direito, à sua constante atenção para com as realidades vitais e a um sentimento jurídico educado, depurado com o transcurso do tempo.3“ Compreende-se a magnitude dessa criação original ao gênio romano quando se considera que o Direito Romano chegou a ser, na palavra de Jhering, “como o cristianismo, um elemento de civilização moderna”4.

A LONGA VIGÊNCIA DO DIREITO ROMANO

As origens, a evolução e, finalmente, a reinterpretação e atualização do Direito Romano nas compilações justinianas no século VI P. C. abrangem um multissecular espaço de tempo em que os institutos jurídicos surgiram, desenvolveram-se e sofreram modificações, algumas tão profundas que os tornaram quase irreconhecíveis ou simplesmente extinguiram-nos. Compreende-se, assim, que o Direito Romano não ofereça em seu conjunto uma unidade monolítica. Como anota Margadant, frases como: “no Direito Romano encontramos a seguinte regra... “ sugerem falsamente uma unidade que não existe5. A diversidade do Direito Romano encontra fácil explicação em numerosos fatores que, através do tempo, influíram direta ou

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indiretamente na estrutura dos institutos jurídicos. Essa vasta gama de fatores inclui desde os acontecimentos políticos, econômicos, sociais, religiosos que assinalaram as diferentes fases da História de Roma até a intensa atuação dos jurisconsultos das mais diferentes épocas, o profícuo trabalho dos pretores e as normas jurídicas emanadas de fontes tão diversas como os Comícios, o Senado e o Imperador.

HISTÓRIA INTERNA E HISTÓRIA EXTERNA

O filósofo alemão Leibniz (+ 1716) distinguiu, no estudo do Direito Romano, entre História Externa e História Interna. Nem todos os autores estão acordes em aceitar esta divisão e os que a adotam divergem no que tange a seu sentido exato e à respectiva periodização. A História Externa tem por objeto o estudo das instituições políticas e sua atuação como fontes produtoras do direito; a História Interna visa a conhecer os institutos do direito privado em sua formação e ulteriores desenvolvimentos.

A periodização da História Externa do Direito Romano coincide com a da História de Roma:6

Realeza (da fundação de Roma até o início da República em 510 a.C.).

República (de 510 a. C. até a batalha de Actium, 31 a. C. ).

Império subdividido em:

a) Principado (do início do reinado de Augusto até o reinado de Diocleciano).

No principado o imperador é o “primeiro” (princeps) dos cidadãos, mas submetido às leis como os demais.

b) Dominato (do reinado de Diocleciano (284-305) até a morte de Justiniano em 565).

O imperador não é mais o primeiro dos cidadãos, mas o senhor (dominus). Este qualificativo já exigido anteriormente torna-se obrigatório por ordem de Diocleciano.

Observe-se que, da História de Roma, dois acontecimentos devem ser lembrados: em 395, opera-se a divisão definitiva do Império em Império Romano do Ocidente e Império Romano do Oriente. Em 476, o primeiro sucumbe com a deposição de seu último imperador, Rômulo Augústulo.

Entre outras, podemos anotar a seguinte periodização da História Interna :7

1. Período das origens (coincide com a Realeza).

2. Período do antigo Direito (do início da República até a época dos Gracos segunda metade do II século a. C.).

3. Período clássico (da época dos Gracos até Diocleciano ).

4. Período pós-clássico, romano-helênico ou bizantino (de Diocleciano até a morte de Justiniano).

Não se deve confundir período bizantino da História do Direito Romano com Direito Bizantino, isto é, o Direito que se desenvolveu no Império Romano do Oriente, após a morte de Justiniano. 8

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INFLUÊNCIAS NA EVOLUÇÃO DO DIREITO ROMANO

Inserido no importante quadro da História de Roma, o Direito Romano está sujeito através dos numerosos séculos a um longo desenvolvimento que se de um lado conserva uma perene continuidade a partir de suas origens, apresenta, de outro lado, uma ampla e intensa variedade caracterizada por justaposições e estratificações e que ,leva da extrema simplicidade primitiva à mais vasta complexidade”9.

No estudo dessa longa e complexa evolução histórica do Direito Romano constitui um aspecto interessante a indagação sobre se teria havido e, em caso positivo, até onde se teriam feito sentir influências de outros sistemas jurídicos ou de outras manifestações culturais estranhas ao povo romano.

Não cabe evidentemente, dentro dos estreitos limites da presente obra, aprofundar um tema tão interessante e que já despertou entre romanistas os mais vivos debates. Pretendemos, apenas, abordar resumidamente três problemas:

1. Influência dos Direitos Orientais;

2. Influência da Civilização Grega;

3. Influência do Cristianismo.

INFLUÊNCIAS ORIENTAIS

As descobertas arqueológicas no Oriente Próximo revelaram a existência de rico material de conteúdo jurídico desde os códigos legislativos (entre os quais deve-se destacar o famoso Código de Hamurabi) até contratos redigidos em milhares de tabletes de argila 10 . Compreende-se que a decifração e o estudo de toda essa vasta documentação de conteúdo jurídico (na qual deve ser incluída também a grande quantidade de papiros) tenha chamado a atenção não só dos historiadores, de um modo geral, mas dos especialistas em História do Direito e, de modo muito particular, dos romanistas. Ao lado do desenvolvimento do estudo do Direito Comparado surge entre alguns autores a tendência para explicar as origens e a evolução do Direito Romano por influências de outros sistemas jurídicos. Volterra sintetiza a história dos estudos sobre a influência dos Direitos Orientais no Direito Romano, na primeira parte de sua obra Diritto Romano e Diritti Orientali. Aliás a preocupação em comparar normas jurídicas romanas com normas orientais e de mostrar a falta de originalidade das primeiras em relação às segundas já aparece claramente na “Mosaicarum et Romanarum legum collatio” (Comparação das leis mosaicas e romanas), um longo fragmento conhecido através de três manuscritos (de Berlim, de Vercelli e de Viena), parte de uma compilação redigida provavelmente no século IV e que justapõe textos mosaicos extraídos de traduções latinas da Bíblia com textos de Gaio, Papiniano, Paulo, Ulpiano, Modestino e de constituições contidas principalmente nos Códigos Gregoriano e Hermogeniano.

Inútil lembrar ao leitor aqui todos os exageros a que o entusiasmo pelas legislações orientais levou os historiadores do Direito. Assim, por exemplo, Müller lançou em 1903 a hipótese de que a legislação de Hamurabi, a legislação mosaica e a lei das XII Tábuas

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derivariam de uma fonte primitiva. Ainda o mesmo autor, com base no Livro Siro-Romano (tradução em árabe, armênio e siriaco de um manual de direito romano redigido em grego, no século V), que ele considerava como uma fusão de normas romanas e normas orientais, “procura demonstrar profundas relações entre ambos os direitos”11.

Um estudo ainda que superficial do problema das relações entre os sistemas jurídicos orientais e o Direito Romano deve levar, desde logo, em consideração, que entre as origens da Civilização Romana de um lado e as Civilizações Orientais de outro lado encontra-se um hiato cronológico e cultural. Quando as legiões romanas conquistam a bacia do Mediterrâneo Oriental encontram-na helenizada, fato esse que levanta os seguintes problemas estudados mais adiante: Qual a influência da civilização grega na evolução do Direito Romano? Teria havido influências orientais através dos gregos? Quais as influências orientais no Direito Romano tardio?

Volterra sublinha que na comparação entre os institutos arcaicos romanos e os institutos das antiqüíssimas legislações orientais o direito quiritário aparece como absolutamente independente dessas legislações, apresentando uma completa autonomia originária12.

Uma breve comparação entre o Direito contido na Lei das XII Tábuas (como nos foi transmitido pela tradição) e os sistemas jurídicos orientais revela-nos uma antítese fundamental. Com efeito, anota Volterra, o primeiro “é em substância um direito destinado, nas suas origens, a regular a vida pública e privada de uma cidade e que conservará por quase todo o período republicano este caráter fundamental”13.

“O direito do Código de Hamurabi, o direito assírio, o direito egípcio, já a partir da V e da VI dinastias, são, ao contrário, direitos aptos a regular a complexa vida de impérios grandiosos, perfeitamente organizados, a assegurar a existência de sociedades ricas de indústrias e de comércios. Tais direitos respondem, pois, a exigências absolutamente diversas, têm atrás de si um longuíssimo e laborioso processo de evolução: regulam institutos comerciais e industriais que os romanos conhecerão somente em época tardia, a distância de muitos séculos; exercem-se e desenvolvem-se sobre territórios vastíssimos”14.

A diferença entre o Direito Romano e os antigos Direitos Orientais acentua-se em um ainda que rápido confronto entre as estruturas dos principais institutos. Procedendo-se a tal confronto, anota Volterra, experimenta-se “uma verdadeira sensação de estupor” ao constatar-se que alguns autores tenham podido encontrar com tanta segurança analogias entre elementos tão díspares15. Cabe aqui uma observação curiosa que explica, pelo menos em parte, os equívocos resultantes da comparação entre Direito Romano e Direitos Orientais: os orientalistas, ao traduzirem os documentos jurídicos de antigas civilizações orientais, foram levados a usar termos romanísticos correntes para designarem institutos que, na realidade, apresentavam muitas vezes com os institutos romanos apenas “uma aparente e confusa analogia”16.

Os juristas e historiadores, iludidos assim por uma falsa terminologia, teriam concluído da aparente identidade de termos para a existência de uma identidade de estrutura.

De tudo o que se escreveu parece-nos lícito extrair a seguinte conclusão: “Como se pode constatar, mesmo um rápido confronto entre o direito quiritário e os antiqüíssimos direitos orientais é suficiente para persuadir-nos que nenhuma influência podem ter exercido estes sobre aquele e para fazer-nos concluir que na origem o Direito Romano - e sobretudo o privado - apresenta uma singular autonomia de princípios e de institutos”17. Quanto à indagação sobre possível penetração de institutos e princípios de direitos orientais no antiqüíssimo Direito Romano através de influências gregas (uma vez que a civilização grega apresenta em suas origens vínculos diretos ou indiretos com as antigas civilizações do Oriente Próximo ), a resposta dependerá da constatação da influência helênica na época em tela. Focalizaremos mais adiante o problema18.

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Passemos agora às influências dos direitos orientais na evolução posterior do Direito Romano. Volterra, depois de sublinhar que a influência maior foi no direito público (grande parte da organização política do Império do Oriente teria sofrido influências orientais), cita e discute uma série de prováveis ou certos exemplos dessa influência oriental em institutos e princípios do Direito Romano tardio.

Convém, desde logo, advertir o leitor de que é necessário proceder aqui com cautela. Não há dúvida de que a expansão romana para o Oriente pôs os conquistadores em contato com povos cuja civilização possuía raízes milenares e entre os quais estavam vigentes diversos sistemas jurídicos: O ambiente provincial da pars Orientis do Império era, segundo Grosso, “um tanto variado e complexo”19. O mesmo autor chama a atenção para o fato de não ser sempre certa a derivação grega de normas e institutos (o período tardio da História do Direito Romano é chamado romano-helênico) e de não ser sempre possível discernir o caminho através do qual penetraram no Direito Romano, neste período, certos institutos que derivam dos antigos direitos orientais. Teriam as influências orientais impregnado os ambientes provinciais e estes, por sua vez, provocado uma reação positiva no Direito Romano? Ou a penetração das inovações no Direito Romano teria sido direta através do direito hebraico graças à difusão do Antigo Testamento pelos cristãos?20

Sem pretender aprofundar o tema das influências orientais no Direito Romano tardio, vamos limitar-nos aqui apenas a citar alguns exemplos que, parece, dão margem a dúvidas.

Quanto ao Direito Público lembremos que o deslocamento do centro de gravidade do Império Romano para o Oriente favoreceu a influência da mentalidade e das concepções orientais na estrutura governamental. Meyer chama a fase da História do Direito Romano que vai de Diocleciano a Justiniano “a era da orientalização do Direito Romano”. “Expressão característica do novo regime é o tratamento de dominus dado ao imperador por ordem de Diocleciano 21 .” O Imperador lembra então os soberanos absolutos orientais: é legislador exclusivo e absoluto. “Afastava-se do modelo do princeps romano para seguir o da teocracia heleno-egípcia. Já não era princeps, mas dominus (et deus); a quem, como tal, se renda culto (adoratio)22.

Quanto ao Direito Privado, podemos apontar os seguintes exemplos de influências orientais23:

1. As arrae sponsaliciae: soma em dinheiro que um dos sponsi entrega ao outro por ocasião da conclusão dos esponsais24.

2. Papel da escrita como elemento formal dos contratos. “San Nicolo;. entre os exemplos principais da influência oriental sobre o Direito Romano sublinha a sempre maior importância assumida pela escrita como elemento formal dos contratos e nota a diferença que neste campo apresenta o desenvolvimento do direito pós-clássico oriental em confronto com o direito ocidental, onde a instrumento escrito de compra e venda conserva o caráter probatório e não formal”.25

3. O aparecimento de novas formas de adoção consagradas definitivamente por Justiniano (a adoptio minus plena) marca, segundo Giffard, “a orientalização do Direito Romano”.26.

4. O Oriente apresenta resistência à assimilação da patria potestas romana, fato esse que se reflete na simplificação das formalidades da emancipação e na redução dos efeitos desse instituto.27

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Concluamos estas considerações sobre a influência dos Direitos Orientais no Direito Romano tardio com duas observações:

1. A matéria é complexa e muitos exemplos de influência oriental estão sujeitos a controvérsia.

2. Volterra, seguindo S. Nicolo (I problemi degli influensi...), anota que o início da influência oriental situa-se bem antes de Justiniano e, precisamente, no primeiro século do Baixo Império, “quando, como repetidas vezes afirmou Albertario e como afirma a doutrina dominante, teria cessado a resistência imperial, ainda fortíssima sob Diocleciano, aos direitos estrangeiros e quando a divisão do Império teria favorecido tal influência”.28

INFLUÊNCIAS DA CIVILIZAÇÃO GREGA

As influências gregas na evolução da Civilização Romana constituem tema por demais conhecido e estudado tanto nos grandes tratados de História de Roma como em simples compêndios escolares. Que essa influência se tenha feito sentir já em época bem remota é um indício seguro o fato inconteste de o alfabeto latino derivar de um alfabeto grego de tipo ocidental (talvez por intermédio dos etruscos29).

A Expansão Romana através da Magna Grécia e a conquista do Oriente helenizado com a perda definitiva da independência grega ( 146 a.C.) vão ter como conseqüência a intensificação da influência helenística em Roma. Língua, Literatura, Religião, Educação, etc. sofrem o impacto helênico e Horácio (Ep. II, 1, 156) assinala a vitória do vencido sobre o vencedor: Graecia capta ferum victorem cepit et intuit artes agresti Latio (a Grécia vencida conquistou por sua vez seu selvagem vencedor e trouxe a Civilização ao inculto Lácio).

No presente item interessa-nos apenas indagar de modo sucinto sobre a influência da civilização grega no Direito Romano, quer através de legados do próprio Direito Grego ao Direito Romano, quer através da Filosofia Grega.

Preliminarmente convém dizer algumas palavras sobre o Direito Grego. Um rápido olhar sobre a História deste Direito revela-nos, desde logo, um pluralismo de sistemas jurídicos. A vida jurídica encontra-se particularizada em cada uma das numerosas cidades gregas, embora todas elas tenham um denominador comum a civilização grega que se expressa por uma relativa unidade lingüística30. Dos direitos das antigas cidades gregas o que melhor conhecemos é o direito de Atenas. A época helenística, caracterizada sobretudo no Egito dos Ptolomeus por uma vida jurídica intensa revelada pelos papiros gregos, assinala uma nova etapa da evolução histórica do Direito Grego em que influências extra-helênicas se fazem sentir. Assim é que, no Egito, devemos falar de um direito greco-egípcio.

O estudo do Direito Grego antigo não encontrou por parte dos historiadores e juristas o mesmo interesse demonstrado pelo Direito Romano, o que se explica facilmente pelo fato de o primeiro aparecer como um direito meramente histórico sem as profundas repercussões que o segundo teve na elaboração da Civilização Ocidental. Acrescente-se a dificuldade que o estudo do Direito Grego apresenta em virtude da documentação esparsa que constitui sua fonte de cognição.

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Cabe aqui uma observação curiosa. Algumas obras gerais que focalizaram o Direito Grego (como por exemplo a notável Histoire du droit privé de la République Athénienne, da autoria de Beauchet, 1897) revestem a tendência de expor a matéria de direito helênico dentro dos quadros tradicionais do Direito Romano. Este método de exposição pode sugerir uma semelhança entre um e outro. Na realidade um paralelo entre ambos mostra algumas acentuadas diferenças. Um fato chama logo a atenção quando se estuda a formação do Direito Grego: embora tenha existido na Grécia uma vida jurídica, não encontramos aí, anota Gernet, “como órgão de conservação e de elaboração do direito, qualquer coisa comparável aos prudentes romanos”31. A Grécia não produziu juristas. Roma, ao contrário, faz do Direito o objeto de uma jurisprudência profissional32 . Outra, diferença fundamental : o costume, a regra não escrita enraizada em um passado mais ou menos distante, existe em diversos planos (familiar, religioso, econômico) mas não é considerado expressamente, teoricamente, como fonte do direito: “Há no grego uma disposição “intelectualista” que o inclina a não reconhecer outra norma além da norma escrita, que é como um decreto da inteligência a Lei33.”

É interessante observar que a atuação dos tribunais atenienses, que não são integrados por profissionais, obedece à preocupação de orientar-se pela justiça. O sentimento do justo domina o sistema legislativo. “É bem característico que os gregos falem constantemente do justo e não possuam um vocábulo especializado para o direito34.” Sublinhe-se que, em face do Direito Romano, o Direito Grego apresenta, em alguns aspectos essenciais, características originais. Assim, por exemplo, o desenvolvimento do Direito Comercial.

Quanto ao problema das influências gregas no Direito Romano, sublinhemos, desde logo, que enfrentamos um tema controvertido. Mayr, depois de afirmar a existência de numerosos paralelismos entre o Direito Grego e o Direito Romano, sublinha como verossímil a opinião dos que crêem “que em Roma houve, em diferentes épocas e sob diferentes formas, uma vasta recepção de instituições e concepções jurídicas helênicas”35.

A notícia sobre a tão discutida missão à Grécia com a finalidade de estudar a legislação como preparo para a codificação das XII Tábuas, constituiria, segundo Mayr, “uma paráfrase com que se quer aludir às evidentes e profundas influências gregas que se encontram nas XII Tábuas”36.

Arangio-Luiz nega essa influência grega: “Na organização da propriedade como no sistema das penas, nas formas do processo como naquelas dos negócios jurídicos, os decênviros operaram com idéias e institutos francamente romanos, cujas origens poderíamos, talvez, encontrar no mundo etrusco ou latino, se estes ambientes jurídicos nos fossem melhor conhecidos; e também as adaptações que tiveram maior caráter de novidade (como a extinção do pátrio poder em conseqüência da tríplice venda do filho, ou como a interrupção do usucapião do poder marital com a ausência da mulher, por três noites do lar comum) foram concebidos em conformidade com o gênio da raça, não substituindo as antigas por novas concepções jurídicas, mas deduzida sutilmente da própria estrutura dos institutos primordiais.”37

Arangio-Luiz admite que algumas normas particulares gregas (como, por exemplo, as que condenam o luxo dos funerais e que parecem imitadas da legislação de Sólon) tenham sido adotadas por intermédio da Etrúria sem que os legisladores romanos tivessem conhecimento das origens mais distantes. Tais normas, entretanto, não seriam suficientes para caracterizar um sistema jurídico. Convenhamos que o direito vigente no ambiente de intensa vida urbana do mundo grego não tinha muito a oferecer ao mundo romano ainda num estágio de predominância da vida pastoril.38

Na época das guerras púnicas a influência grega em Roma torna-se intensa. “É então somente que os romanos começam a imitar a literatura grega; pouco á pouco, seus talentos despertam ao contato com as obras-primas helênicas e chegam a produzir obras literárias mais

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originais.”39 Entre estes talentos romanos que se inspiram na literatura, nas instituições e nos costumes gregos conservando, contudo, um cunho de profunda originalidade no estilo e na língua, figura Plauto (+ 184 a.C.) com suas numerosas comédias. Por que citá-lo aqui? Porque suas obras constituem um curioso testemunho do conhecimento do Direito Grego por parte dos romanos. Plauto conhece a linguagem jurídica e emprega uma série de termos jurídicos romanos de tal forma que à primeira vista parece constituir uma fonte para o conhecimento de institutos do Direito Romano contemporâneo. Na realidade, a terminologia jurídica romana está aplicada às vezes a institutos do direito grego essencialmente diversos dos institutos do Direito Romano40. Evidentemente, a onda avassaladora do helenismo não atingiria somente o campo literário e o direito grego não chamaria somente a atenção de comediógrafos como Plauto. Chegamos assim ao estudo da influência grega no Direito Romano já não mais na época da Lei das XII Tábuas mas em sua posterior e longa evolução. Antes porém de falarmos da inegável influência, vamos fazer duas observações que nos parecem de capital importância.

1. Segundo alguns autores as chamadas influências helenísticas sofridas pelo Direito Romano no período pós-clássico (período denominado romano-helênico) constituem, não raro, “o produto da ação da refinada técnica romana em uma exigência de vulgarização e da influência de fatores econômico-sociais (...)”.41

Romanistas como Riccobono e Chiazzese defendem a tese “de que, em verdade, as inovações pós-clássicas nada mais são do que o desenvolvimento espontâneo dos elementos romanos colocando em evidência tendências que se observavam no jus honorarium e no jus extraordinarium do período clássico “42.

2. A segunda observação diz respeito às diferenças existentes entre os direitos vigentes nas regiões em que predominava a civilização helenística, e o Direito Romano. Vejamos, somente para ilustrar, alguns exemplos significativos que demonstram a recíproca impermeabilidade entre o Direito Romano e os direitos helenísticos.43

Direito Romano 1) Patria potestas, em princípio, vitalícia.

2) Sucessão dos filhos à mãe e vice-versa só foi

aceita na época imperial e com limitações.

3) No caso de ad-rogação, o ad-rogado perdia seu patrimônio em favor do ad-rogante. No caso de adoção, cessavam as relações jurídicas entre o adotado e a família de origem.

4) A disposição dos bens em testamento obedecia, no Direito Romano, à proibição de testar apenas sobre parte do patrimônio. (Nemo pro porte testatius, pro pocrte intestatus decedcre potest).

5) No Direito Romano os efeitos jurídicos, via

de regra, estavam ligados à enunciação de palavras solenes (verba sollemnia). O uso da escrita havia-se generalizado apenas para testamento visando ao segredo da manifestação da última vontade.

Direitos Helenísticos 1) Patria potestas extingue-se com a maioridade

do filho. 2) Este tipo de sucessão era amplamente

reconhecida. 3) A adoção helenística não destruía as relações

com a família de origem e não privava o adotado dos bens que eventualmente possuísse.

4) Os direitos helenísticos permitiam que se

testasse sobre uma parte do patrimônio, deixando o restante aos herdeiros legítimos.

5) Nos direitos helenísticos, via de regra, os

negócios jurídicos se processavam por escrito.

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Werner Jaeger, em sua famosa Paidéia, considera a Filosofia como a criação mais maravilhosa do espírito grego44.

O contato com o helenismo iria despertar nas classes elevadas de Roma o amor pela cultura literária e o interesse pelas idéias filosóficas. O gênio romano, entretanto, não possuía vocação para a especulação filosófica. O senso prático dos intelectuais romanos levaram-nos a um ecletismo filosófico, aceitando e selecionando, adaptando e vulgarizando os sistemas filosóficos helênicos. Os filósofos romanos raciocinaram em termos de filosofia grega. Lembremos, apenas para exemplificar, o eclético Cícero (+ 43 a.C ) e os estóicos Sêneca ( + 65 P.C. ) e Marco Aurélio (·+ 180 P.C. ) Cícero tem o grande mérito de difundir em alto nível a filosofia grega entre seus concidadãos, criando, em latim, uma verdadeira linguagem filosófica.

A par da influência das idéias filosóficas deve ser acentuado o papel da retórica grega na formação intelectual do romano. Compreende-se esse papel quando se considera com Marrou que a retórica “marca profundamente todas as manifestações do espírito helenístico” 45 . E observe-se que, como a filosofia, estamos aqui em face de uma manifestação cultural estritamente grega. Os autores latinistas inclusive Cícero, estavam impregnados dos ensinamentos da retórica grega, procurando criar um vocabulário técnico latino que reproduz, não raro de modo servil, a nomenclatura grega.46

A evolução do Direito Romano não poderia evidentemente fugir às influências da filosofia e da retórica helênicas. Enfatize-se, todavia, que essa influência nada subtrai ao mérito próprio dos criadores do Direito Romano e nem retira a estes o cunho da criação original que, já vimos, Marrou caracteriza como “uma forma nova de cultura”.

Monier acentua que “com os escritos de Cícero, são os princípios da filosofia estóica, de uma grande elevação moral, que exercem sua influência benfazeja sobre o direito”47. Registre-se que Cícero, imbuído da mentalidade grega, preconiza fazer do direito civil uma “arte”, isto é, um corpo de doutrina estruturado.

Villey, depois de observar que a influência de uma doutrina filosófica sobre os juristas não deve ser imaginada como um decalque literal, pois eles “se inspiram livremente nas filosofias”, salienta que os juristas romanos recorreram simultaneamente a diversas escolas filosóficas: “O estoicismo, em que sobretudo foi instruído Cícero e ao qual aderiu um bom número de jurisconsultos clássicos, deixou sobre o direito romano uma marca bem visível; e o platonismo também não lhe foi sempre estranho. Mas a nossos olhos é da doutrina de Aristóteles que, no início do período clássico, recebeu seus princípios constitutivos e seu valor excepcional48.”

Passemos agora, somente a título de ilustração, a examinar brevemente alguns exemplos da influência da filosofia e da retórica grega no Direito Romano.

1. Direito natural. A idéia de um direito superior, ideal, proveniente de Deus ou decorrente da própria natureza humana que encontramos em textos romanos, tem suas raízes na filosofia grega. No tratado De Republica, Cícero inseriu a famosa definição de lei natural. nitidamente estóica : “Est quaedam vera lex, recta ratio, naturae congruens, difjusa in omnes, constans, sempiterna; quae vocet ad officium jubendo, vetczndo a fraude deterreat (...) “. Existe uma verdadeira lei, reta razão, conforme à natureza, difundida entre todos, constante, eterna; que por seus mandamentos chama ao cumprimento de um dever; por suas proibições afasta do mal (...)49. Cícero conclui dizendo que Deus é o autor dessa lei e que seus transgressores serão punidos pois repudiaram sua natureza humana. Villey chama a atenção para certas definições romanas do direito natural que nos foram conservadas pelas Institutas de Gaio ou pelo Digesto e que “possuem uma tintura estóica”49a. Assim, parece proceder de origem estóica a definição de Ulpiano que estende o direito natural a todos os animais (omnia animalia) (D. I, 1,1,3).

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2. Coisas corpóreas e incorpóreas. Esta classificação das coisas em corpóreas e incorpóreas é anterior a Cícero e provém da filosofia estóica. Era desconhecida,no período do Antigo Direito50

3. Direito e Moral. Giffard, depois de comentar textos de Ulpiano em que parece haver confusão entre o Direito e a moral, atribui essa confusão à influência dos filósofos gregos “que não separaram jamais o direito da moral e viam nesta a ciência geral das ações dos homens da qual o Direito constituía uma parte”51. Mais adiante voltaremos ao problema da distinção entre Direito e Moral.

4. Aequitas, bona fides, utilitas. Essas três concepções, segundo Villers, penetram no Direito Romano através da Filosofia Grega. A primeira “é uma noção matemática extraída das obras de Aristóteles: inspira-se na proporção ou igualdade de duas relações. No plano jurídico, convida a manter entre os homens uma igualdade proporcional tanto às forças como às necessidades de cada um.” Daí o famoso suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu) de Ulpiano (D. I,1,10) 52 . O Exemplo de influência da eqüidade na elaboração do direito é a correção feita pelos pretores às “iniquitates” do velho direito civil, ao elaborarem as regras da sucessão pretoriana53. Na interpretação do Direito, a retórica ensina a preferir a intenção do legislador ou das partes às palavras proferidas.

A fides (fé) era uma velha noção religiosa ligada à deusa Fides a quem o rei Numa havia consagrado um templo. Sob influência grega a fides secularizou-se, chegando a revestir um caráter puramente ético, como, por exemplo, em Cícero (De Officiis I, 7) que a qualifica de “fundamentum justitiae”54. No campo do jus, a fides, qualificada de bona fides, apresenta uma dupla acepção: objetiva e subjetiva. Na primeira, temos as ações de boa fé que possuem uma cláusula “ex bona fide”. Na segunda acepção, temos a bona fides quando um comprador de boa fé crê em determinadas qualidades da coisa adquirida55.

Finalmente os juristas identificam o fim do direito com a utilidade comum. É o bem comum, o bem geral, anota Villers; “a idéia é admitida tanto pelos jurisconsultos como pelos magistrados”56. Os jurisconsultos do século III, por exemplo, dirão que o jus praetorium foi aceito por causa da utilidade pública (propter utilitatem publicam).

5. Divisão do direito segundo Gaio. A famosa divisão do Direito segundo Gaio (I, 1-8) : Omne autem jus quo utimur vel ad personas pertinet vel ad res vel ad actiones (todo o direito de que usamos ou diz respeito às pessoas ou às coisas ou às ações), possuiria uma origem retórica e remontaria a um protótipo de inspiração grega57.

6. A filosofia grega tem influência decisiva na formação dos jurisconsultos romanos e na didática jurídica. Marrou chama a atenção para o fato de que a sabedoria do juris prudens, por muito tempo intuitiva, tornou-se refletida, consciente e soube alimentar-se de toda a contribuição formal do pensamento grego, “da robusta armadura lógica do aristotelismo como da riqueza moral do estoicismo”58 . Ainda Marrou observa que foi somente a partir da geração de Cícero e largamente, ao que parece, graças à sua ação e propaganda que a pedagogia jurídica romana acrescenta ao ensinamento prático (respondentes audire) um ensinamento sistemático (instituere). “Cícero havia intitulado uma de suas obras, infelizmente perdida, de jure civili in artem redigendo; lançando mão de todos os recursos da lógica grega, o direito romano esforça-se, desde então, por apresentar-se aos iniciantes sob a forma de um corpo de doutrina, de um sistema, constituído por um conjunto de princípios, de divisões e classificações apoiados em uma terminologia e em definições precisas.”59

Kaser sublinha também a influência da filosofia grega no método dos juristas, colocando-a já no século II a. C.: “Pela metade do século II a.C. produz-se uma mudança fundamental no método dos juristas romanos que, impulsionados pela filosofia grega, dão à matéria jurídica um enfoque dialético60.” Kaser admite que os precedentes gregos da legislação

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das XII Tábuas tenham favorecido a elaboração de normas gerais (regulae) e acrescenta: “E se nos últimos tempos a produção de regras cobrou novo impulso, até ao ponto de dar a uma determinada fase da evolução o nome de ‘jurisprudência de regras’, deve-se isso ao encontro que se produz entre a jurisprudência romana e a filosofia grega nesta época” (obra citada, p. 27).

Monier, depois de salientar a influência dos princípios estóicos através dos escritos de Cícero, acrescenta: “Ao mesmo tempo, a retórica grega ensina aos jurisconsultos a substituir o método de interpretação literal por um método de interpretação lógica e a procurar a vontade do legislador nos redatores do ato jurídico focalizado.” 61

A respeito da influência da retórica sobre a jurisprudência, convém anotar a advertência de Kaser: “Não obstante, as notas comuns entre jurisprudência e retórica chegam logo a seu fim. Isso se deve sobretudo a que seus fins e seus meios são diversos, embora coincida seu campo de ação no processo. A retórica não tendeu em nada caso concreto à realização da justiça e, se o fez, foi de modo secundário. Por isso nada teve a ver com esse conhecimento intuitivo do Direito, que alcançou com os juristas uma mestria genial. A arte oratória persegue antes êxitos puramente externos e amiúde duvidosos, se temos que julgar com critérios éticos” (Kaser, En torno del método, p. 37).

Quanto à influência direta do Direito Grego no Direito Romano constitui ainda um vasto campo de pesquisas e de controvérsias. Limitar-nos-emos aqui a um exemplo: a chamada Lex Rhodia. Cícero (Pro lege Manilia 18) menciona e elogia a longa tradição naval dos ródios (Rhodii... quorum usque ad nostram memoriam disciplina navulis et gloria remansit). Estrabão, sob o reinado de Augusto, testemunha a prosperidade de Rodes enaltecendo os regulamentos aí elaborados para o policiamento dos mares e que foram adotados por todos os grandes portos de comércio 62 . Compreende-se pois que Roma aplicasse as leis e costumes marítimos convencionados - sob o nome de Lex Rhodia. Augusto aprovou-a expressamente em um rescriptum. Volusius Maecianus, jurisconsulto que se dedicou ao ensino jurídico sob Marco Aurélio, (+ 180), narra-nos que Antonino, o Pio, (+161), atendendo a uma petição do grego Eudêmon, cujo navio naufragara em Icária, citou a lex Rhodia como a norma jurídica pela qual devia ser julgado o litígio entre Eudêmon e os publicanos de Icária que se haviam apoderado dos despojos do naufrágio. Eis a resposta de Antonino : “Eu sou o senhor do orbe, mas a lei Ródia é a senhora do mar; julgue-se esta questão pela lei Ródia marítima no que ela não contrariar alguma de nossas leis. Assim também julgou o divino Augusto” (D. XIV, 2,9)63.

O jurisconsulto Paulus, prefeito do pretório sob Alexandre Severo (222-235), menciona a Lex Rhodia em suas Sententiae (II, 7 ), sob a rubrica ad legem rhodiam. Qual, afinal, o conteúdo da famosa Lex Rhodia? “Em virtude dos princípios reunidos sob essa denominação (Lex Rohdia de jactu), os proprietários de mercadorias lançadas ao mar (jactu), em momento de perigo, devem ser indenizados para que os prejuízos sejam suportados, proporcionalmente, por todos - pelo armador do navio e pelos donos das mercadorias salvas64.”

INFLUÊNCIAS DO CRISTIANISMO

Pela Constituição Tanta (chamada também confirmação do Digesto - De Confirmatione Digestorum), Justiniano promulga o Digesto (dezembro de 533) em nome de Nosso Senhor Deus Jesus Cristo (in nomine Domini Dei nostri Jesu Christi). Esta expressão, que teria causado

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espanto aos jurisconsultos clássicos, é bem um sinal dos tempos: o Cristianismo que, havia muito, emergira vitorioso das catacumbas com o edito de Milão (313), tornara-se religião de Estado desde o reinado de Teodósio I (+ 395) e constituía agora um fator determinante da Civilização, tanto na Pars Orientis como na Pars Occidentis do velho Império Romano, esta última já em sua maior parte dominada pelos reinos bárbaros.

Por sua natureza, a pregação cristã visava antes de tudo a renovação espiritual colocando sobre os altares a crença no Deus crucificado e implantando nos corações dos homens o mandamento sublime da fraternidade universal. Desde o martírio de S. Pedro, o primeiro papa, em Roma, sob o reinado de Nero (54-68), o Cristianismo não cessara de adquirir adeptos e de difundir-se por todas as províncias do Império dos Césares. Os cristãos, segundo um famoso texto de Tertuliano (Apol. 32, final do II século), não viviam à margem da sociedade: “Nós, cristãos, não vivemos à margem do mundo; freqüentamos, como vós, o forum, os banhos, as oficinas, as lojas, os mercados, as praças públicas (...)”

Compreende-se, assim, que a mentalidade da Roma pagã fosse, cada vez mais, sofrendo a profunda influência da doutrina e da moral cristãs. O Direito Romano, evidentemente, não ficaria isento dessa influência. Defini-la, verificar sua extensão e profundidade tem sido o objeto de numerosos estudos e conclusões divergentes. Gaudemet resume, a esse respeito, os pontos de vista dos historiadores: “Para alguns historiadores, bem raros, é verdade, a influência do Cristianismo teria sido limitada. Outros reconhecem uma influência geral da moral cristã sobre a civilização romana de preferência a uma ação precisa que tivesse resultado na modificação das regras jurídicas. Outros, enfim, admitem que, pelo menos em certos domínios, o Cristianismo faz modificar certos princípios jurídicos65.”

Um estudo da influência do Cristianismo no Direito Romano, parece-nos, deve levar em consideração duas fases fundamentalmente distintas : a fase anterior à conversão de Constantino e a fase posterior a essa conversão. Na primeira, não será tão fácil estabelecer se determinadas modificações que se enquadram no espírito da doutrina cristã, refletem realmente a atuação da nova doutrina. Em outras palavras : se os inovadores pagãos teriam agido inconscientemente já influenciados pela doutrina cristã difundida em várias camadas da população, inclusive nas altas esferas administrativas, ou se as transformações das normas jurídicas num sentido mais humanitário obedeceram aos influxos de fatores diversos, inclusive de idéias filosóficas helênicas.

Léon Homo, focalizando o Século de Ouro do Império Romano, isto é, a época dos Antoninos, sublinha o grande élan de humanidade e de caridade que caracteriza o mundo romano no II século depois de Cristo: “Os fracos e os sacrificados da sociedade romana, as mulheres e os escravos em particular, iriam ser os beneficiados naturais dessas tendências novas. A transformação assinala-se, de início, nos costumes, até passar para as leis66.” Homo explica o lugar importante que a moral ocupa na sociedade do II século P.C. por duas causas : a evolução do mundo romano, de uma parte, a influência da filosofia, de outra. Este élan de humanidade reflete-se na maneira com que alguns autores e a própria legislação focalizam a situação do escravo já, aliás, a partir do século I até, inclusive, o século III P.C.

Vejamos alguns exemplos. Sêneca, o filósofo estóico vitima de Nero, vê entre os homens um parentesco natural e “reivindica os direitos da Humanidade para o escravo nascido da mesma origem que nós, escravo pelo corpo mas livre pelo espírito”.67

Epicteto, filósofo estóico que viveu no fim do século I e no início do II, proclama que, para os homens livres, os escravos são irmãos68. Plínio, o Jovem (+ 113), que não professa o estoicismo e que entra em contato com o Cristianismo, revela um sentido profundamente humanitário em relação a seus escravos69. Juvenal (+ 130 ?) critica em suas sátiras o avarento que não nutre os escravos e a mulher que os castiga pela menor falta, com severidade.

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Carcopino observa que a indignação do poeta corresponde à opinião pública70 . Marcial (+ 102 ?), embora não hesite em infligir um castigo corporal a seu cozinheiro, dedica a seus escravos terna afeição.71

Segundo o jurisconsulto Florentino (II século P.C.), “a escravidão é um instituto do direito das gentes pelo qual alguém está submetido ao domínio de outro contra a natureza” (Servitus est constitutio juris gentium, quo quis dominio alieno contra naturam stebicitur - D.1,5. 4.1. ). Ainda Florentino observa que a natureza estabeleceu entre os homens um certo parentesco (inter nos cognatzonem quandam natura constituit - D. 1,1,3). O jurisconsulto Ulpiano (séc. III) ensina que, no que tange ao direito natural, todos os homens são iguais (Quia quod ad jus naturale attinet, omnes aequales sunt - D. 50, 17. 32). Ainda Ulpiano (D. 1.1.4) proclama que por direito natural todos os homens nasceriam livres e que nem seria conhecida a manumissão pois a escravidão seria ignorada (Cum jure naturali omnes liberi nascerentur nec esset nota manumissio, cum servitus esset incognita).

Além de escritores, poetas e jurisconsultos, a própria legislação romana revelou-se também favorável aos escravos Vejamos alguns exemplos. A lex Petronia (19 P.C.), completada por senatus-consultos e rescritos imperiais, proíbe aos senhores entregar o escravo para combater contra feras sem autorização especial do magistrado72 (Post legem Petroniam et senatus consulta ad eam legem pertinentia dominis potestas ablata est ad bestias depugnandas suo arbitrio servos tradere: oblato tamen judici servo, si justa sit domini querella, sic poenae tradetur - D. 48,8 .11. 2). Segundo um edito de Cláudio (41-54), perdia a propriedade sobre o escravo, o senhor que o abandonasse velho ou doente; ao escravo era concedida a cidadania latina73.

A castração dos escravos foi proibida e severamente punida por Domiciano e seus sucessores.74

Adriano (117-138) condena a cinco anos de relegatio (desterro) uma mulher que, por motivos fúteis, maltratara uma escrava. (Divus eticim Hadrianus... quandam matronam in quinquennium relegavit, quod ex levissimis causis ancillas atrocissime tractasset - D. 1. 6. 2).

A legislação põe em cheque o jus vitae necisque (direito de vida e morte) do senhor sobre o escravo. Referindo-se ao século II P. C. , Troplong anota : “Tudo se modifica então na jurisprudência sobre as relações com os escravos; o direito de vida e de morte se transfere aos magistrados. O direito de correção deixado aos magistrados tem que exprimir-se em regras mais humanas; um magistrado, o prefeito da cidade, é o encarregado de aplicar essas medidas75.”

Vamos encerrar esses exemplos de modificação dos costumes num sentido humanitário com a seguinte página de Gaio, contemporâneo dos Antoninos : “Mas nos tempos atuais nem aos cidadãos romanos, nem a quaisquer outros homens, que se encontram sob o império do povo romano, é permitido maltratar exageradamente e sem causa os seus escravos. Pois em virtude de uma constituição do sacratíssimo imperador Antonino, aquele que sem causa matar seu escravo é tão responsável como quem matar um escravo alheio. Mas reprime-se também, pela constituição desse mesmo príncipe, a excessiva crueldade dos senhores; pois, consultado por alguns governadores de províncias sobre os escravos que se refugiam nos templos dos deuses ou nas estátuas dos príncipes, ordenou que, se a dureza dos senhores parecesse insuportável, fossem eles obrigados a vender os escravos. E ambas essas disposições são corretas, pois não devemos usar mal de nosso direito (...)” (Sed hoc tempore neque civibus romanis nec ullis aliis hominibus, qui sub imperzo populi romani surit, licet supra modum et sine causa in servos suas saevire; nam ex constitutione sacratissimi imperatoris Antonini qui sine causa servum suum occiderit non minus teneri jubetur, quam qui alienum servum occiderit. Sed et maior quoque asperitas dominorum per ejusdem principis constituionem coërcetur; nam consultus a quibusdam praesidibus provinciarum de his servis, qui ad fana deorum vel ad

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statuas principum confugiunt, praecepit, ut si intolerabilis videatur dominorum saevitia, cogantur servos suos vendere. Et utrumque recte fit: male enim nostro jure uti non debemus ... - Gaio, I,1, 63).

Como já observamos, não se pode afirmar categoricamente que algumas dessas situações da mentalidade romana e da própria norma jurídica em relação à situação do escravo tenha sido exclusiva influência cristã.

Quando o estoicismo faz sua entrada em Roma (II e I séculos a. C. ), revela-se como a forma da filosofia talhada para o temperamento romano. 76 A doutrina do Pórtico (ετοα – pórtico) encontra-se na segunda etapa de sua evolução histórica abordando já problemas éticos. A terceira etapa do estoicismo coincide com a época imperial romana. Predominam então os temas éticos. Na época que focalizamos nas linhas acima e através desses séculos o estoicismo inegavelmente influiu na mente de intelectuais romanos, tanto no terreno da filosofia como no do direito. Parece-nos, entretanto, que seria exagero atribuir exclusivamente ao estoicismo a tendência humanitária de certos aspectos do Direito Romano. Paralelo ao estoicismo (que atingia principalmente parte da elite intelectual), toma vulto a difusão cristã fecundada pelo sangue de seus mártires. Essa difusão atinge não só as baixas camadas da população, mas também as altas esferas da sociedade romana. As apologias cristãs visam a intelectualidade e várias apologias foram dedicadas a imperadores. “Septimio Severo confiou ao cristão Práculo a educação de seu primogênito. Alexandre Severo, filho de uma mãe quase cristã, adorava Jesus Cristo juntamente com Abraão e Orfeu; tinha, sem cessar, nos lábios, esta máxima evangélica: Não faças a outrem o que não quererias que te fizessem a ti, máxima que fez gravar em seus palácios e até nas paredes dos edifícios públicos.”77

Vamos concluir estas breves considerações em torno das prováveis influências cristãs no Direito Romano na fase anterior a Constantino, repetindo as palavras de Troplong 78 . “A filosofia não pôde ter o privilégio de permanecer mais afastada que a sociedade, que o recebia através de todos os poros, da influência do Cristianismo. Num tempo em que todas as coisas tendiam a relacionar-se e a unir-se; em que os homens e as idéias pareciam possuídos de uma incessante necessidade de comunicação e transformação; em que o ecletismo filosófico meditava a fusão de todos os grandes sistemas em um sincretismo poderoso; onde o Estado Romano, abrindo seu seio a um pensamento de homogeneidade que durante tanto tempo lhe repugnou, dava o título de cidadãos a todos os súditos do Império, apagando assim as distinções de raça-e origem, confundindo o romano com o gaulês, o itálico com os filhos da Síria e da África; no meio de tal ação de todos os elementos sociais, uns sobre os outros, não parece absurdo pensar que o Cristianismo seja o único que não subministrou seu contingente à massa comum das idéias, estando de posse das mais comunicativas e civilizadoras?”

Pisamos terreno firme quando se trata de apontar a influência do Cristianismo no Direito Romano a partir de Constantino. Biondo Biondi, que escreveu uma obra em três volumes com o sugestivo título de Il Diritto Romano Cristiano, sublinha: “as leis pós-clássicas e justinianéias têm o cunho essencialmente cristão79.”

Gaudemet, estudando a influência do Cristianismo no Direito pós-clássico, compara-a com a do estoicismo sobre o Direito Clássico: “Estoicismo e Cristianismo propunham uma filosofia do indivíduo e do grupo. Notaram-se também analogias das doutrinas: ambas afirmam a igualdade e a liberdade natural de todos os homens, ensinam o amor ao próximo e a moral familiar. Mas as diferenças entre estoicismo e cristianismo não são menos evidentes. Não vamos aqui realçar as diferenças doutrinárias mas somente assinalar o quanto a diferença entre uma moral altiva feita para uma elite e uma religião que se dirigia a todos e que encontrou seus primeiros adeptos entre os humildes, devia necessariamente acarretar diferenças em seu modo e possibilidade de ação sobre o direito. Difundidas pela pregação, as idéias morais do

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Cristianismo conheceram uma mais ampla audiência e, em conseqüência, exerceram uma influêncía mais profunda que as máximas estóicas, apanágio de um círculo restrito de sábios.”80

A influência cristã na legislação imperial, a partir do século IV, é tão grande que mereceria um estudo especial. Curioso é que certos historiadores, desvinculados do contexto histórico em que esta influência se processava, viram nela a prepotência imperial sobre a Igreja. Assim é que, como observa Biondo Biondi, Justiniano, louvado e abençoado pelos papas de seu tempo, e colocado por Dante no paraíso como fiel filho da Igreja, foi representado “pelos modernos, sem (e até contra) qualquer documentação, como o típico opressor da Igreja”81.

Entre os numerosíssimos textos da legislação imperial referentes ao Cristianismo, é de suma importância lembrar o edito de Tessalônica (380) que Teodósio endereça ao povo de Constantinopla e que impõe a todos os povos (cunctos populos) a religião que o apóstolo Pedro levou aos romanos (quam divum Petrum apostolum tradidisse romanis) (C. J. 1, 1,1). Cabe aqui chamar a atenção para o papel decisivo de Santo Ambrósio (+ 397 ?), o grande bispo de Milão, exemplo da encarnação do gênio romano depurado pelo Cristianismo, que exerce então uma atuação decisiva na cristianização do Império. Achile Ratti, sucessor de Ambrósio na sé milanesa e posteriormente sucessor de Pedro na sé romana sob o nome de Pio XI, chama a atenção para o fato de que, graças ao santo bispo, “o espírito cristão havia penetrado mais nas leis e o Império como tal acabara de tornar-se cristão”.82

Ambrósio teve ampla influência na legislação imperial promulgada na época em que exerceu o episcopado (323-397). As constituições imperiais passam a adotar as determinações eclesiásticas conferindo-lhes força de lei. “O Código de Teodósio II cita os concílios de Nicéa (C. Th. 16.1.3; 381), de Rimini e de Constantinopla (16, l, 14; 386), de Éfeso (16, 5, 66; 435). O Código de Justiniano cita os quatro primeiros concílios ecumênicos (1, 5, 8; 455). Fora dessas referências expressas, as constituições imperiais inspiram-se freqüentemente em disposições conciliares sem citá-las formalmente.”83 O livro XVI do Código de Teodósio encerra legislação de conteúdo religioso. No Código de Justiniano esses textos terão lugar especial figurando antes dos que se referem às fontes do Direito (C. J. I, 1-13).84

A influência cristã não se limitou somente ao domínio religioso em que, observa Gaudemet, ela é evidente e normal. Essa influência fez-se sentir também no campo da legislação familiar e social. Gaudemet cita os seguintes exemplos:

1. Alteração do calendário, passando o dies solis a domingo (ver C. Theodósio 2.8.18)85.

2. A condenação dos jogos de gladiadores em 32 (embora de êxito limitado, pois esses jogos persistiram até o início do século V).86

3. A repressão da prostituição em 343.

4. Sobre a escravidão, anota Gaudemet : “Se a Igreja não pôde obter o desaparecimento da escravidão, foi sem dúvida ao Cristianismo que se deveu a proibição de marcar os escravos na fronte ou de separar as famílias servis. O reconhecimento da plena validade da manumissão in ecclesia, que na origem não foi senão uma forma particular de manumissão inter amicos, foi devida igualmente à intervenção da Igreja.”87

5. No direito de família, a influência cristã é mais sensível. Temos, por exemplo, a proibição do casamento por affinitas; as restrições à liberdade do divórcio; as sanções que acompanham a ruptura injustificada dos esponsais: a proteção dos interesses pecuniários dos filhos do primeiro leito; a luta contra a exposição dos recém-nascidos, contra a venda de crianças e os abusos da patria potestas.88

6. No campo do Direito penal, deve-se provavelmente à influência cristã a supressão do suplício da cruz; aos bispos foi também dada a missão de fiscalizar as prisões.89

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7. Troplong, na segunda parte de sua conhecida obra Influence du Christianisme sur le Droit Civil des Romáins, estuda esta influência nos seguintes setores: escravidão, matrimônio, impedimentos matrimoniais em virtude do parentesco, restrições ao divórcio, celebração religiosa do matrimônio, concubinato, patrio poder, condição da mulher e direito das sucessões.

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Capítulo II

ALGUNS TRAÇOS CARACTERÍSTICOS DO DIREITO

ROMANO

A longevidade da vigência do Direito Romano dificulta evidentemente a tarefa de apontar-lhe os traços característicos gerais. Cada período da História Interna apresenta características próprias. O mesmo se pode dizer respectivamente do Direito Privado e do Direito Público. Neste item vamos tentar apenas sublinhar algumas características que, no seu conjunto, possibilitem formar uma ligeira idéia do que seria o espírito do Direito Romano.90

FRUTO DE UM TRABALHO SÉRIO DE JURISTAS E PRETORES

No decurso da presente obra, o leitor poderá sentir que este primeiro traço caracteriza bem a multissecular elaboração do Direito Romano. No item referente às fontes teremos oportunidade de enfatizar a atuação dos juristas e dos pretores. Por ora, contentemo-nos em repetir Villey: “O Direito Romano é o fruto de um trabalho sério. Os pretores e jurisconsultos que o elaboraram pacientemente não pretenderam jamais refazer a sociedade sobre bases novas, o que estaria bem acima das forças do espírito humano. Mas lentamente, partirão de dados positivos, guiados somente pela paixão da eqüidade e da utilidade social criaram um direito verdadeiramente adaptado à natureza do homem.”91

FALTA DE UNIDADE. TRADICIONALISMO

Aqui estão duas características que, à primeira vista, parecem conflitar entre si, mas que se harmonizam perfeitamente quando consideradas sob o aspecto dinâmico da evolução histórica do Direito Romano. Assim, por exemplo, se considerarmos dois estratos jurídicos distintos como o jus civile e o jus honorarium, procedentes respectivamente de fontes diversas, aparece-nos nítida a falta de unidade, já sublinhada, aliás, quando tratamos da longa vigência do Direito Romano. Por outro lado, entretanto, mesmo nesta falta de unidade é possível perceber a marca do tradicionalismo. Assim, por exemplo, muitos aspectos do jus honorarium (criado pelos magistrados) que se estende a todos os campos do Direito Privado e do Processo Civil, encontram seu fundamento e sua origem no próprio Jus Civile. E talvez seja oportuno lembrar que “recentes estudos confirmaram que o jus civile era, na sua origem, consuetudinário, era o costume jurídico dos romanos”92. Há, pois, na evolução do Direito Romano, uma certa unidade na diversidade, isto é, uma certa tradição que só aos poucos e diante da própria evolução histórica vai cedendo às transformações inevitáveis. Entre outras, duas razões explicam esse tradicionalismo. Em primeiro lugar porque os romanos, como observa Kaser, “não ab-rogam suas velhas instituições, mas críam junto a elas outras novas, confiando em que, em virtude das

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melhores vantagens que estas oferecem, as antigas irão perdendo a vigência. Só em poucos casos, nos quais é inevitável a inovação, recorre-se às leis ou normas reformadoras”.93

Outra razão desse tradicionalismo reside na constante atuação dos juristas romanos através dos séculos. Esta atuação não se faz sentir somente no campo privado, mas no assessoramento direto de magistrados, juízes e jurados. O tradicionalismo, anota Grosso, está inserido , “na própria mentalidade do jurista (...)”94.

Lembremos aqui, a título de exemplo, a importância que os juristas atribuem muitas vezes à autoridade de seus predecessores, citando-os e emprestando às suas opiniões mais valor que a argumentos de fundo95. Este fio condutor da tradição não impede as transformações, mas está presente em todas as fases da história do Direito Romano, até mesmo nas Compilações de Justiniano96. Concluamos lembrando o apego dos romanos ao tradicionalismo “com sua idéia de manter a todo o custo os costumes que tivessem mostrado sua razão de ser através das gerações. O mos maiorum criou um quadro muito claro das instituições da sociedade e de seus fundamentos, que, em parte, estavam já respaldados por preceitos e proibições; quadro que, firmando-se num conservadorismo agrícola, transmitido de pais para filhos, conduziu por leitos seguros o conhecimento do Direito até o final da época clássica97.”

REALISMO

Dois exemplos podem ser mencionados como manifestação do realismo: a atuação dos juristas, principalmente nos períodos pré-clássico e clássico, e a criação do jus honorarium. Nos períodos citados o Direito privado se manifesta de modo marcante como criação dos jurisprudentes que enfatiza Kaser (Derecho Romano Privado, p. 17), não são sábios idealistas, mas homens práticos “que extraem seus conhecimentos e seu saber da própria vida do Direito e que, por sua vez, influem com seus conhecimentos na prática jurídica”.

A permissão dada aos magistrados com atribuições judiciárias (exemplo: pretores, edis curuis e governadores nas províncias) de aplicar em matéria de direito privado e direito processual princípios que não repousavam em explícitas bases legais foram admitidos por uma tácita tolerância porque correspondiam a exigências práticas), criando assim o jus honorarium, revela o senso realista que presidiu a evolução histórica do direito romano. O direito honorário foi introduzido por utilidade pública (propter utilitatem publicam D. 1.1. 7 .1 ).

Enfatizando o sentido dos romanos para a realidade da vida o qual, tanto na política como no Direito, levava-os a encontrar sempre os meios mais idôneos para realizar suas intenções, Kaser anota: “Este realismo conduzia a soluções que se ajustavam de modo mais perfeito à natureza das coisas e, portanto, à normatividade da matéria tratada98.” Vale aqui repetir a observação de Biondi (Scritti Giuridici I, p. 326) : “A atividade dos juristas é guiada não por um vão intelectualismo, mas por uma finalidade prática: os juristas compreendem muito bem que o direito não é especulação, mas sim instrumento para satisfazer necessidades concretas e mutáveis, e é sempre a realidade da vida com todas as suas exigências que guia o desenvolvimento do sistema.”

Concluamos estas breves considerações sobre o realismo com dois textos que revelam de modo eloqüente como o jurista romano prezava a realidade das coisas que nem a lei poderia, de qualquer forma, alterar. Gaio (I. 3, 794) : “Pois nem a lei pode tornar ladrão manifesto quem não o é, como não pode tornar ladrão quem absolutamente não o é, ou tornar adúltera ou homicida quem não é nem uma nem outra cousa.” (Neque enim lex facere potest, ut qui

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manifestus fur non sit, manifestus sit, non magis quam qui omnio fur non sit, fur sit, et qui adulter aut homicida non sit, adulter vel homicida sit).

Paulo (D. 41. 2 .1. 4) adverte que uma situação de fato não pode ser anulada pelo direito civil (res facti infirmari jure civili non potest).

CASUÍSMO

O enfoque do Direito sob a perspectiva do caso concreto domina todos os períodos da história do Direito Romano. Kaser sublinha que “o Direito Romano manteve sempre este caráter de casuística jurídica, ou melhor, de problemática jurídica. E isto continua sendo certo embora tenha havido atos de codificação em tempos primitivos com as XII Tábuas e, depois, no final da Idade Antiga, com o Corpus Juris. Estas codificações não excluem que o caráter total do Direito romano e, concretamente, do clássico, tenha sido determinado pelo fato de que o conjunto das idéias jurídicas se encarna nos problemas casuísticos que os juristas resolvem e expõem”99.

INDIVIDUALISMO?

Pode-se atribuir ao Direito Romano a característica de individualista por ter reconhecido a liberdade e a autonomia do indivíduo nas relações com outros membros da sociedade ou por considerar o indivíduo como titular de direitos subjetivos? De Martino, em interessante estudo sobre “Individualismo e Diritto Romano Privato”, chama a atenção para o fato de que essa autonomia e essa titularidade de direitos subjetivos constituem fundamentos essenciais do direito privado.100 Por si só não seriam suficientes para caracterizar um sistema jurídico como individualista. Individualista, segundo De Martino, é um sistema em que a liberdade individual é concebida e regulada como fim em si mesma, fora de qualquer subordinação aos interesses do grupo os quais são simplesmente considerados como soma dos interesses individuais que, devendo existir, limitam-se reciprocamente em sentido negativo. O mesmo autor considera a posição da vontade individual no sistema das fontes, em Roma, “bem limitada e definida”101. Vejamos, a seguir, alguns exemplos citados por De Martino em que o Direito Romano aparece com um sentido social, ético, oposto ao individualista.

1. O formalismo na idade primeira do Direito Romano constitui a primeira vitória da sociedade sobre o individual102.

2. A tipicidade dos negócios, considerada como uma das categorias fundamentais do pensamento jurídico romano, revela-se um grave limite à autonomia privada. Encontramos, com efeito, no Direito Romano figuras bem determinadas e definidas de negócios com seus elementos essenciais, com suas ações correspondentes103.

3. O cunho dado à propriedade romana como senhoria absoluta, como poder independente, como ato de verdadeira soberania do paterfamilias, não constitui uma característica nítida de individualismo? De Martino considera esse cunho, essa marca, não como uma exasperação individualística, mas antes como “afirmação da autoridade do pater, isto é, de um grupo étnico autônomo”, e cita Bonfante que procura demonstrar “que quando necessidades gerais e absolutas da coexistência social o exigiram, também a propriedade romana tolerava

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limites104. Refutando a opinião muito difundida que acusa o condomínio romano de extremo individualismo, De Martino observa que o princípio do jus prohibendi, usado no Direito Romano direito de veto de um condômino em relação à atuação de outro condômino não é menos equânime e social que o princípio da maioria. Este, ao contrário, “é mais francamente individualístico porque dá aos mais fortes um poder quase tirânico contra os fracos, isto é, contra os menores e mais modestos interesses”105.

4. No direito das obrigações, De Martino sublinha que “as idéias e tendências sociais possuem uma força preponderante”106. A aceitação da bona fides (que não é uma categoria originária do Direito Romano) constitui um “critério eminentemente social e ético” e revela “uma esplêndida influência das idéias sociais sobre o direito”107.

5. A atuação do pretor, intervindo contra a rígida aplicação do jus civile (conforme veremos mais adiante, especialmente no estudo do processo), acentuou mais o espírito social que impregna certos aspectos do Direito Romano.

DESIGUALDADE

Estudando brevemente alguma das características do Direito Romano, Villey observa : “O direito romano, sem dúvida, é incompleto. Admite a escravidão, não protege os pobres, os doentes, os proletários; está bem longe de fazer reinar uma perfeita igualdade entre os homens.”108 A idéia difundida entre os intelectuais romanos pelo estoicismo de que todos os homens eram fundamentalmente iguais por direito natural (ver o que já escrevemos em páginas anteriores) era contrária ao espírito do Direito Romano que, segundo a clássica summa divisio de Gaio (1,9), dividia todos os homens em livres e escravos (omnes homines aut liberi sunt aut servi). A mentalidade que admite a igualdade fundamental dos homens como filhos do mesmo Deus, só triunfou graças à pregação cristã. Ao lado da desigualdade extrema entre livres e escravos, o Direito Romano admitia também desigualdade entre os próprios livres. Estudando o espírito do Direito Romano, Ihering enfatiza: “Em Roma não existia direito nem Estado, senão para os romanos; ou para falar com mais acerto, o direito era circunscrito à comunidade dos gentis. Gentilidade e capacidade civil plena, falta de gentilidade e completa incapacidade civil são, em sua origem, equivalentes109.”

Notem-se aqui duas modificações impostas pela evolução dos tempos. A concessão do commercium aos estrangeiros e a ampliação da concessão da cidadania.

Focalizando as diferentes formas de proteção aos estrangeiros, Ihering observa : “A mais apreciada consistia na concessão do commercium que fazia participar o estrangeiro das leis romanas sobre os bens, permitindo-lhe, por conseguinte, reclamar a proteção que o Estado garantia ao direito. Já neste ponto o Direito Romano eleva-se à concepção jurídica moderna que não estabelece distinção entre os estrangeiros e os indígenas, com a importante diferença de que, o que em Roma era resultado de um privilégio concedido, ou de um pacto público especialíssimo, é entre nós a aplicação de um princípio geral e o efeito de uma idéia jurídica superior. A concessão do commercium era, entre os romanos, a forma regular que dava acesso às relações jurídicas internacionais”110.

Outra modificação importante é introduzida com a Constituição de Caracala do ano 212 P.C. que, com algumas exceções, concedia a cidadania romana a todos os súditos do Império, transformando esta cidadania, no dizer de Grosso, “em uma cidadania universal do Império”111.

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Entre os próprios cidadãos romanos o Direito estabelecia desigualdades quanto à capacidade jurídica. Assim, por exemplo, o cidadão romano liberto (ex-escravo) formava uma classe à parte e não possuía a mesma capacidade dos cidadãos romanos ingênuos (que haviam nascido livres e jamais haviam sido escravos). Justiniano iria conceder a todos os libertos a condição de ingênuos112.

OUTRAS CARACTERÍSTICAS

Encerremos esta tentativa de apontar algumas características do Direito Romano com a observação de Villey segundo o qual esse Direito “protege as liberdades individuais, com os direitos de contornos firmes assegurados a cada um; reconhece a autonomia da família com o pátrio poder; ensina ao homem a ter uma palavra e a mantê-la; não é estranho aos sentimentos humanitários113“

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Capítulo III

UTILIDADE DO ESTUDO DO DIREITO ROMANO

Por que estudar Direito Romano?

Como resposta bem geral a essa indagação poderíamos repetir Von Ihering em sua já citada obra O Espírito do Direito Romano: “Sucede com o Direito Romano o mesmo que com a fascinação que exercem certos indivíduos sobre outros: sentem o encanto, sem saberem ao certo como se pôde realizar. Tal foi a atração que ele exerceu para aqueles que o estudaram. Todos tiveram a percepção de sua grandeza, alguns levaram-na ao mais cego fanatismo, mas ninguém pensou em formular a justificação científica dessa percepção. Têm-se estudado a matéria nos seus íntimos detalhes e, cada vez que se trata de formular uma opinião contentam-se em outorgar-lhe, nos termos mais gerais, em mais brilhantes testemunhos.

Se só se aspirasse à geral apreciação, se só se procurasse projetar luz brilhante sobre a grandeza do Direito Romano e não se tivesse outro fim senão convencer ao ignorante, ou fechar a boca ao cético, bastaria deixar falar os fatos, porque a história leva em si o melhor testemunho em favor da excelência do Direito Romano: o papel que desempenhou assinala sua verdadeira grandeza.114“

Nas páginas seguintes vamos tentar demonstrar a utilidade do estudo do Direito Romano sob um duplo aspecto: cultural e prático.

UTILIDADE DE ORDEM CULTURAL

Cultura geral - Numa época em que o pragmatismo e o tecnicismo ameaçam bitolar as inteligências, nunca será demais sublinhar quão importante se constitui para o ser humano ampliar cada vez mais seus horizontes culturais adquirindo conhecimentos que lhe proporcionem uma ampla visão de conjunto dos fenômenos que entretecem toda a trama da civilização, quer focalizada em sua horizontalidade atual, quer visualizada em sua verticalidade temporal. Em outras palavras: para o ser humano viver conscientemente sua inserção no contexto histórico, indispensável se torna : aquisição de um bom lastro do que se chama cultura geral, isto é, de conhecimentos que não possibilitem necessariamente lucro pecuniário ou aplicação tecnológica: Entre esses conhecimentos figuram de modo ímpar os relativos à História, de um modo geral, e, de um modo muito especial, à História de nossa Civilização Ocidental. Ora, a presença do Direito Romano é uma constante em todas as fases da elaboração dessa Civilização, desde suas raízes clássicas até a época contemporânea. Compreende-se pois que, se o conhecimento da História de nossa Civilização é parte integrante do cultura geral e se o DirEito Romano constitui um elemento importante na formação dessa civilização, o estudo, ainda que superficial, dos principais aspectos desse Direito, contribua para melhor compreensão dos fenômenos históricos e conseqüente ampliação da cultura geral. Exemplifiquemos.

A civilização greco-romana é o pedestal de nossa Civilização e o Direito Romano constitui, sem dúvida, um dos aspectos mais interessantes dessa civilização. Sem uma noção

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elementar da estrutura político-administrativa e das normas jurídicas que regeram o povo romano através das fases de sua longa história, é impossível compreender plenamente a vida na Roma Antiga, a organização da família romana e seu papel decisivo na História de Roma, o êxito admirável dos romanos na conquista, integração e governo de povos os mais variados sob o ponto de vista racial e cultural, todos reunidos no vasto e imponente Império. Petit chama atenção para a importância do Direito Romano no estudo da civilização romana: “O Direito é indispensável para compreender a história e á literatura romanas. Em Roma, mais que em qualquer outra parte, os cidadãos estavam iniciados na prática do direito; era isto a conseqüência de sua inclinação natural e de seu sistema de organização judiciária”115.

Outro exemplo. Pode-se afirmar, de um modo geral, que os bárbaros germânicos invasores do Império Romano do Ocidente respeitaram o Direito Romano. Vasiliev acentua a influência das normas jurídicas romanas sobre os Reinos Bárbaros: “Enfim, o Código Teodosiano, introduzido no Ocidente na época das invasões germânicas exerceu, com os dois códigos anteriores, as Novelas posteriores e alguns monumentos jurídicos da Roma Imperial (as Institutas de Gaio, por exemplo), uma grande influência, direta e indireta, sobre a legislação bárbara. A famosa “Lei Romana dos Visigodos” (Lex Romana Visigothorum) destinada aos súditos romanos no reino visigótico não é senão uma abreviação do Código Teodosiano e das outras fontes que acabamos de mencionar. Por isso a Lei Romana dos Visigodos se denomina também “Breviário de Alarico “ (Breviarium Aluricianum), do nome do resumo publicado pelo rei visigodo Alarico II, no início do século VI. Este é um exemplo de influência direta exercida sobre a legislação bárbara pelo Código de Teodósio. Porém maior foi ainda a influência indireta que exerceu por intermédio do supracitado código visigótico. Na Alta Idade Média sempre que se alude à Lei Romana, é invariavelmente a Lei Romana dos Visigodos e não o verdadeiro Código Teodosiano que se cita. Durante todo esse período e até a época de Carlos Magno inclusive, a legislação da Europa Ocidental foi influenciada pelo Breviário de Alarico que se converteu na principal fonte do Direito Romano no Ocidente”116.

Enquanto nas antigas províncias romanas do Império do Ocidente ocupadas agora pelos bárbaros estava vigente o Direito Romano baseado no Codex Theodosianus e em algumas disposições legislativas subseqüentes, mas anteriores a Justiniano, na península itálica, após a reconquista, pelas tropas bizantinas, passou a ter vigência o Direito Justinianeu117. Sublinhe-se que este Direito, consubstanciado nas compilações que posteriormente seriam designadas como “Corpus Juris Civilis” não se tornou conhecido em sua totalidade na península itálica. Assim, por exemplo, o Digesto só foi conhecido provavelmente por estudiosos do Direito Romano, pois na prática passou despercebido durante séculos. É provável que uma das causas desse lastimável esquecimento se encontre na elevada linguagem dos jurisconsultos romanos que não estaria ao alcance dos ítalo-romanos habituados a um latim bastante decadente. As Institutas de Justiniano, entretanto, foram conhecidas e estudadas durante todo o período dos Reinos Bárbaros e em pleno Mundo Feudal.

Como o leitor facilmente concluirá, a História da Europa nos séculos que seguiram a Queda do Império do Ocidente seria incompreensível sem uma noção ainda que elementar do papel exercido então pelo Direito Romano. Diga-se o mesmo da História da Europa Feudal, principalmente graças ao êxito da difusão do Direito Romano especialmente o justinianeu. a partir da famosa Escola de Bolonha. A vida jurídica da Europa na época do Mundo Feudal, a atuação dos legistas, a decadência do sistema feudal, etc. constituem aspectos da História Medieval que só podem ser plenamente compreendidos levando-se em conta a maior ou menor influência do Direito Romano118.

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Cultura Jurídica

Que o conhecimento, ainda que elementar, do Direito Romano contribua para ampliar a cultura jurídica, parece-nos ocioso demonstrar. Limitemo-nos, pois, neste item, a chamar a atenção, meramente a título de exemplo, para alguns aspectos da cultura jurídica em que a presença do Direito Romano é marcante, especialmente no que concerne à História do Direito e ao estudo do Direito Comparado.

O que se escreveu a propósito da “cultura geral” evidencia que o Direito Romano através dos tempos constitui um capítulo obrigatório em qualquer estudo da História do Direito. Monier chama a atenção para a importância do Direito Romano sob o ponto de vista histórico: “Sob o ponto de vista histórico, o estudo das instituições jurídicas romanas permite seguir a evolução das regras de direito no decurso de um período de mais de dez séculos: assistimos, de certo modo, ao nascimento de um direito ainda imperfeito e bárbaro, seguimos seu desenvolvimento à medida em que se transforma o meio econômico e social até o período dito clássico, quando, sob a influência dos jurisconsultos, adquire um valor técnico raramente igualado. Enfim, vemos a ciência jurídica entrar em decadência no Baixo Império, em um período de depressão econômica e de perturbações sociais”119.

Depois de uma brilhante demonstração da importância do jusromanismo como meio para proporcionar uma cultura histórico-jurídica, Floris Margadant chama a atenção para o fato de que o direito romano contribui também no sentido de ilustração de teorias sociológico-jurídicas: “Não só histórica mas também sociologicamente, é interessante o Direito Romano. Quantos temas de sociologia jurídica surgem durante a explicação de um sistema jurídico, do qual podemos observar mais de um milênio de desenvolvimento (desde as XII Tábuas até Justiniano, se aceitamos por um momento os limites tradicionais do ensino jusromanista) dentro de uma sociedade ou de feixe de sociedades cujos aspectos religiosos, literários, políticos, militares, econômicos, etc. e cujas transformações sociológicas conhecemos com suficiente detalhe! Assim, durante nossos cursos de direito romano podemos por o aluno em contato com múltiplas ilustrações concretas de idéias e teorias sociológicas”120.

Ihering, depois de salientar que a importância do Direito Romano para o mundo atual não consiste somente em haver sido por um momento a fonte ou origem do direito, anota: “A sua autoridade reside na profunda revolução interna, na transformação completa que fez sofrer todo o nosso pensamento jurídico e em ter chegado a ser, como o cristianismo, um elemento da civilização moderna”121.

A presença do Direito Romano através dos tempos, desde as compilações de Justiniano até nossos dias, é comparada por Biondi com um rio majestoso que através de seu curso continuamente abandona e absorve elementos, mas que avança sempre 122 . Matos Peixoto sublinha a influência do Direito Romano em códigos legislativos modernos: “A influência do direito romano foi tão profunda que nele se baseiam, em substância, as legislações modernas no campo do direito privado. Apesar de revogado, o direito romano não desapareceu: transformou-se e adaptou-se às novas exigências sociais. Seus preceitos ressurgem, modificados e refundidos, no Código Civil Brasileiro e nos congêneres estrangeiros. O direito romano é pois a fonte dessas legislações, a medula de seus dispositivos (Gaston May). Para se conhecer a evolução das normas jurídicas procedentes dessas fontes e medir-lhes ou fixar-lhes o sentido e alcance, é indispensável remontar ao direito romano123.

Vale aqui repetir Abelardo Lobo: “Se passarmos em revista os 1.807 artigos do nosso Código Civil, verificaremos que mais de quatro quintos deles, ou seja, 1. 445, são produtos de cultura romana, ou diretamente apreendidos nas fontes da organização justinianéia, ou

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indiretamente das legislações que aí foram nutrir-se largamente, como aconteceu a Portugal, à Alemanha, à França e à Itália, que fizeram do Direito Romano o manancial mais largo e profundo para mitigar sua sede de saber”124.

Monier adverte: “Não esqueçamos que o conhecimento dos princípios essenciais do direito romano encontra-se à base de todo estudo de direito comparado, pois que o direito alemão sofreu ainda mais que os códigos franceses ou italianos a influência das regras emitidas pelos jurisconsultos; o direito anglo-saxão, em aparência mais independente, encerra também bom número de regras de origem romana”125.

Vale citar, ainda, Matos Peixoto: “Os romanos criaram assim, para sempre, as categorias do pensamento jurídico adotados por todos os povos cultos, mesmo por aqueles como o inglês, o norte-americano e o japonês cujas legislações se formaram fora da influência romana. O direito romano é, pois, necessário para compreender a língua comum aos jurisconsultos de todos os países e por isso é ao mesmo tempo a melhor preparação para o estudo do direito comparado e do direito internacional privado”126.

A presença do Direito Romano não se faz sentir somente em boa parte dos códigos ocidentais, René David lembra: “O atual Direito japonês está absolutamente integrado no Direito Ocidental; ao romanista japonês Harada foi possível referir aos direitos ocidentais ou ao Direito Romano a totalidade dos artigos do Código Civil japonês”127.

De tudo isso fácil será concluir a importância do Direito Romano como pressuposto indispensável para a melhor compreensão da História do Direito Comparado.

Seja-nos permitido fazer aqui uma rápida comparação entre a importância do estudo do Latim e do Direito Romano. O conhecimento da língua latina é perfeitamente dispensável para que se fale ou escreva corretamente o português ou outra língua românica. Ninguém, entretanto, terá uma perfeita compreensão de certos fenômenos de qualquer uma dessas línguas sem um estudo prévio da gramática histórica que, evidentemente, exige como pré-requisito indispensável o conhecimento do latim. Em outras palavras, para que exista sólida cultura filológica é indispensável um estudo ainda que elementar do belo idioma de Cícero.

No caso específico da procedência da maior parte das palavras da língua portuguesa, não constitui um ornamento cultural saber que o acusativo é considerado o caso lexiogênico dessas palavras?

Quanto ao Direito Romano, podemos afirmar também que é possível advogar tranqüilamente sem o conhecimento do Direito Romano. Para uma cultura jurídica mais ampla, porém, parece-nos indispensável uma noção ainda que elementar das origens de numerosos institutos de nossos códigos, especialmente do Código Civil. Que belo ornamento cultural para um advogado saber, por exemplo, referir a fontes romanas inúmeros artigos de nosso Código Civil, explicando a origem, a evolução e a adaptação de institutos tão familiares como o pátrio poder, a adoção, a legitimação, a tutela, a curatela, a emancipação, o dote, etc. Não contribui para a cultura jurídica do advogado ter consciência da preponderante influência romana em nosso direito das obrigações?

E como poderia um jurista dedicar-se ao estudo da obra do genial Teixeira de Freitas sem um preliminar conhecimento do Direito Romano?128

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UTILIDADE DE ORDEM PRÁTICA

A primeira utilidade de ordem prática que poderíamos atribuir ao estudo do Direito Romano provém de ser ele admirável instrumento de educação jurídica, segundo observa Moreira Alves: “Nas ciências sociais, ao contrário do que ocorre nas físicas, o estudioso não pode provocar fenômenos para estudar as suas conseqüências. É óbvio que não se pratica um crime nem se celebra um contrato apenas para se lhe examinarem os efeitos. Portanto, quem se dedica às ciências sociais tem o seu campo de observação restrito aos fenômenos espontâneos, e o estudo destes, na atualidade, se completa com o dos ocorridos no passado. É por isso que, se o químico, para bem exercer sua profissão, não necessita de conhecer a história da química, o mesmo não sucede com o jurista.

Ora, nenhum direito do passado reúne, para esse fim, as condições que o direito romano apresenta. Abarcando mais de 12 séculos de evolução documentada com certa abundância de fontes nele desfilam, diante do estudioso, os problemas da construção, expansão, decadência e extinção do mais poderoso império que o mundo antigo conheceu. É assim o direito romano notável campo de observação do fenômeno jurídico em todos os seus aspectos”129.

A utilidade prática do conhecimento do Direito Romano aparece de modo insofismável para os estudantes das Faculdades de Direito quando se chama a atenção para a íntima relação existente entre inúmeros institutos do Direito Privado e do Direito Romano. É de suma importância didática que os alunos, especialmente no primeiro ano do curso jurídico, tenham uma visão de conjunto das diversas categorias jurídicas que serão mais tarde aprofundadas especialmente através dos anos subseqüenteS em que o ensino do Direito Civil assume revelo especial. Uma simples comparação do programa de Direito Romano privado com um índice sistemático do Código Civil será suficiente para demonstrar como o desenvolvimento do primeiro constitui um elemento propedêutico de inestimável valia em relação ao estudo do segundo.

O Direito Romano oferece também ao estudante oportunidade para excelente exercício de interpretação de leis e contratos conforme as regras constantes no Corpus Juris. Cabe aqui lembrar os brocardos jurídicos de Justiniano contidos no último título do Digesto sob a rubrica “De Diversis Regidis Juris Antiqui”. Embora muitas dessas sentenças já tenham perdido o seu valor em virtude da evolução histórica do Direito, convém lembrar a observação de Limongi: “Em grande parte, porém, estes brocardos apresentam uma lucidez alarmante trazendo ao espírito do estudioso um grande sentimento de admiração pelo fato de, decorridos quase dois milênios, haverem conseguido exprimir, de modo lapidar, verdades básicas estáveis da concepção do Direito”130.

Também no campo da casuística o Direito Romano oferece ao estudante vastas e interessantes possibilidades para exercitar o raciocínio jurídico aplicando a teoria a casos concretos.

O Digesto oferece-nos uma grande quantidade de casos versando sobre os mais variados aspectos jurídicos e que oferecem, assim, ao estudioso, ampla possibilidade de análise paciente e minuciosa, exercitando o raciocínio jurídico. É curioso notar que determinadas situações vistas sob o ângulo jurídico apresentam, às vezes, mais de uma solução válida e justa, o que gera uma saudável ampliação de horizontes para o estudante. Garcia Garrido assim se expressa sobre o valor formativo do casuísmo jurisprudencial romano: “Creio que a eficácia formativa do Direito Romano reside, sobretudo, no estudo do casuísmo jurisprudencial. Os juristas romanos aperfeiçoaram uma técnica que se veio considerando clássica, oferecendo um caudal inesgotável de soluções que perduraram através dos séculos. Se, mais que lógica, o Direito é experiência,

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não é possível imaginar-se uma experiência semelhante à que nos oferecem os textos da jurisprudência romana. A melhor maneira de atualizar os estudos romanísticos é valorizar a contribuição dos jurisconsultos e seguir seus ensinamentos na arte de dar soluções para a vida. O jurista de nossa época que leia os casos do Digesto ficará surpreendido ao encontrar muitos dos problemas que hoje se apresentam e muito mais ao descobrir soluções que, por estarem profundamente enraizadas na realidade para que nasceram, demonstraram-se válidas ao longo dos séculos”131.

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CAPÍTULO IV

DISCIPLINAS AUXILIARES

Para o conhecimento e a exposição da História do Direito Romano contribuem, de um modo geral, as disciplinas auxiliares da História. É que, na realidade, a História do Direito Romano, como a história de qualquer sistema jurídico, constitui apenas um aspecto da História da Civilização. Não existe uma História do Direito desvinculada do contexto amplo em que se inserem as outras manifestações culturais do ser humano. Diga-se o mesmo da História da Arte, da História da Literatura, da História da Religião, etc.

No presente item vamos limitar-nos a algumas considerações em torno de quatro disciplinas que devem ser consideradas em primeiro plano como auxiliares para o estudo do Direito Romano, quer sob o ponto de vista da História Interna, quer sob o ponto de vista da História Externa: língua Latina, História de Roma, Epigrafia Jurídica e Papirologia Jurídica.

Afirmar que o conhecimento do Latim e da História de Roma constituem condições absolutamente indispensáveis para o trabalho do romanista é simplesmente afirmar o óbvio. O que pretendemos aqui é sublinhar a utilidade de conhecimentos ainda que elementares de Latim e de História de Roma para os estudantes das Faculdades de Direito em cujo curriculum figure o Direito Romano.

Quanto à Epigrafia e à Papirologia (cujo estudo aprofundado encontra-se, via de regra, fora do alcance de nossos estudantes ), pretendemos apenas mostrar quão grande foi a contribuição dessas disciplinas no sentido de auxiliar o trabalho dos pesquisadores, ampliando e aprofundando os conhecimentos do Direito Romano.

LATIM

Os bárbaros germânicos que invadiram e ocuparam as antigas províncias da Pars Occidentis do Império Romano respeitaram o Latim. O notável medievalista francês, Ferdinand Lot (Les Invasions Germaniques, p. 236), observa que “a única língua julgada digna de ser escrita foi o latim. Os próprios germanos, durante um grande número de séculos, não conceberam a possibilidade de usar outra língua quando se tomasse a pena”.

Não cabe aqui ressaltar as vantagens do estudo do latim, quer sob um ponto de vista meramente pragmático (o estudo do latim, por exemplo, disciplina a inteligência e contribui de modo decisivo para melhor conhecimento das línguas neo-latinas) quer sob o ponto de vista cultural (a língua latina é chave que nos abre as portas da literatura latina antiga e medieval ).

Sublinhamos apenas a necessidade de um conhecimento básico do latim para melhor entendimento dos textos jurídicos romanos. Biondi, insigne romanista, enfatiza a importância do conhecimento do latim para os estudantes de Direito Romano. Depois de sublinhar o valor da língua latina, e da cultura clássica, observa: “Deixemos de parte língua e cultura. Como docente de direito romano, a minha preocupação é outra. Pergunto-me como se poderá continuar a ensiná-lo, se os jovens não tiverem um discreto conhecimento do latim” (Biondi, Scritti Giuridici, IV, .p. 715). Vale recordar aqui que a língua latina, por sua clareza, vigor e concisão

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(permite que se diga muita coisa em poucas palavras e se presta portanto admiravelmente para breves formulações) tornou-se o instrumento ideal para juristas e magistrados expressarem suas concepções e normas jurídicas. Gasquy anota que a língua latina “com suas formas sonoras, seus torneios breves e imperativos, parecia ser o órgão natural do direito”132.

Ainda o mesmo autor observa que os escritores latinos “amavam as expressões da língua jurídica, empregavam-nas como sendo as mais significativas, mais claras, mais elegantes (...)”.

Villey sublinha a clareza e a simplicidade da linguagem jurídica romana133.

Só o conhecimento do latim pode proporcionar ao estudante o contato direto com essa linguagem. Deve-se notar evidentemente que a língua latina (e, portanto, a linguagem jurídica) sofreu uma profunda evolução através da multissecular História de Roma. Nem sempre, portanto, um conhecimento elementar do idioma de Cícero será suficiente para a perfeita compreensão dos textos. Assim, por exemplo, a leitura dos fragmentos da famosa Lei das XII Tábuas (curioso notar: o mais antigo monumento da prosa latina, notável por sua clareza e concisão, mas carente de valor literário, é também um monumento jurídico!), redigidos em parte em latim arcaico (há expressões “modernas” explicáveis pelas reconstituições posteriores), exigem conhecimentos especiais de gramática histórica latina.

O latim das Institutas de Justiniano - elaboradas quase mil anos depois da Lei das XII Tábuas - é bem mais acessível que o do Digesto, o que não a impedirá, contudo, o estudante com alguns conhecimentos básicos dessa língua de saborear no original, por exemplo as já citadas Regulae Juris contidas no último título do Digesto, muitas das quais ainda hoje são citadas em petições de advogados, pareceres de jurisconsultos e sentenças de juízes.

Encerremos estas breves considerações sobre a utilidade do Latim como disciplina auxiliar do Direito lembrando que uma preleção sobre as interpolações no Digesto se torna muito mais clara e compreensível se o aluno dispuser de noções de língua latina. Assim, por exemplo, compreenderá a observação de que se abusava menos do ablativo antes de Justiniano. O abuso do ablativo poderia ser um indício de interpolação (por exemplo, o ablativo do particípio futuro passivo no fim de uma frase)134. Indício certo de interpolação é também o emprego de uma série de palavras e de locuções em uso na língua latina na época pós-clássica e que não eram empregados no tempo em que viviam os jurisconsultos clássicos135.

HISTÓRIA DE ROMA

Parece-nos quase inútil salientar a importância do conhecimento ainda que superficial da História de Roma para que se possa compreender a evolução histórica do Direito Romano em todos os seus aspectos. É que esse Direito foi durante mais de um milênio um Direito vivo, atuante, e, por isso mesmo, profundamente influenciado por acontecimentos políticos, sociais, econômicos, filosóficos e religiosos. Como entender a elaboração da Lei das XII Tábuas sem apreciar as condições econômico-sociais da época?

Os problemas que suscitaram a famosa legislação social dos Gracos estão estreitamente relacionados com as conseqüências da expansão romana no campo social e político.

O desenvolvimento do jus praetorium (que corrige e ameniza o rígido jus civile) e do jus gentium (que se aplica aos estrangeiros) só se explica pela evolução política, social e econômica de Roma.

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O helenismo triunfante em Roma dá conta nas já citadas influências filosóficas no Direito Romano.

As guerras civis do último século republicano vão resultar no estabelecimento do Principado, acarretando profunda modificação nas fontes de produção do Direito.

A Constituição de Caracala que, com algumas exceções, concedeu a cidadania aos habitantes do Império (212 P.C.), reflete uma nova mentalidade, conseqüência, em parte, do declínio da hegemonia itálica e da rápida provincialização do exército romano.

A inserção do Cristianismo na História Romana vai ter, como já vimos, importantes reflexos em alguns aspectos do Direito Romano.

A divisão do Império Romano em Pars Occidentis e Pars Orientis efetivada em 395 é rica de conseqüências para a evolução do Direito Romano, especialmente no Oriente, evolução esta que vai culminar com as famosas compilações justinianéias no século VI.

Concluamos: É impossível uma perfeita inteligência ao Direito Romano sem inseri-lo dentro do contexto histórico em que se originou, se desenvolveu, se modificou e, finalmente, se cristalizou no Corpus Juris Civilis.

EPIGRAFIA

A epigrafia, uma das mais importantes disciplinas auxiliares da História “é a ciência das inscrições escritas sobre materiais duráveis: pedra, mármore, bronze, etc., e é de suma importância para a história da Antigüidade (em alguns casos também para a dos tempos modernos), dando-nos numerosas informações que os textos escritos sobre papiro e pergaminho não conservaram”136. Intimamente relacionada com a epigrafia, a paleografia, outra disciplina auxiliar da História, “é o estudo metódico de textos antigos quanto à sua forma exterior. Abrange não só a história da escrita e a evolução das letras, mas também o conhecimento dos materiais e dos instrumentos para escrever”137.

A epigrafia latina tem por objeto as inscrições latinas e constitui disciplina auxiliar fundamental da História de Roma. Ao lado da epigrafia latina deve ser mencionada a epigrafia grega igualmente de suma importância para a História de Roma pois inúmeros acontecimentos desta História só nos são conhecidos por intermédio de inscrições gregas.

Um dos mais importantes processos empregados pelos epigrafistas para conseguir cópias das inscrições e facilitar assim o estudo das mesmas é a fotografia. O progresso da técnica fotográfica possibilita a obtenção de material de primeira qualidade. Quando as inscrições, em virtude da ação do tempo ou por outras causas, não proporcionam uma fotografia nítida, impõem-se outros processos: “coloca-se em cima da inscrição uma folha molhada que depois é roçada com uma escova para o papel entrar nas cavidades das letras. Ou, então, não havendo água, cobre-se a folha com plumbagina, esfregando-a depois com uma escova: as letras ocas aparecem em branco, destacando-se dos fundos escuros”138.

As inscrições latinas caracterizam-se sobretudo pela brevidade de sua redação. Freqüentemente a letra inicial ou as primeiras letras de uma palavra substituem a palavra inteira. Compreende-se assim a importância da interpretação das abreviações para a perfeita compreensão do texto epigráfico. Assinalemos de passagem que existem verdadeiros léxicos de siglas (assim se chamam as abreviações que constam só da inicial) e de abreviações139. A obra

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fundamental para o estudo da epigrafia latina é o Corpus inscriptionum latinarum que teve como um de seus redatores Th. Mommsen.

A epigrafia jurídica tem por objeto o estudo das inscrições cujo conteúdo interessa ao Direito. Pacchioni lembra que o século XIX pode ser chamado o século da epigrafia em virtude “da grande importância que a descoberta, a publicação e a ilustração das inscrições gregas e latinas adquiriram para a melhor inteligência e para a integração dos nossos conhecimentos em torno do direito e, em geral, em torno da vida pública e privada dos antigos ( )”140. Um trabalho fundamental para o estudo da epigrafia latina, no que interessa ao Direito Romano, é a obra de Girard: L'épigraphie latine et le droit romain. O conteúdo das inscrições latinas que interessam ao Direito Romano diz respeito à estrutura política (inscrições referentes ao “cursus honorum” e aos títulos imperiais), a atos públicos (leis, plebiscitos, editos, etc.) e atos privados (pouco numerosos).

Os candidatos aos cargos públicos deviam obedecer a determinadas regras que disciplinavam sua ascensão a partir dos escalões inferiores aos mais elevados da carreira das honras (cursus honorum), conforme veremos mais adiante no estudo da estrutura política de Roma. Lembremos agora, apenas a título de exemplo, algumas inscrições referentes a esse cursus honorum. Uma inscrição encontrada em Beirute e datando da metade do século IV emprega a expressão per singulos gradus referindo-se às diferentes etapas que sucessivamente deveriam ser percorridas pelos candidatos na carreira pública. Grande quantidade de inscrições honoríficas ou funerárias contém indicações sobre a carreira percorrida pelo personagem focalizado, “Todo o cursus honorum pode apresentar-se epigraficamente sob duas formas: segundo a ordem direta, se as dignidades forem indicadas na mesma ordem que foi seguida realmente e se o cursus parte assim das funções mais baixas para atingir, finalmente, ás mais elevadas; segundo a ordem inversa se a enumeração parte, ao contrário, destas últimas para chegar progressivamente às primeiras”141. Em alguns casos as inscrições apresentam o cursus de um personagem sob as duas formas.

A título de curiosidade vamos reproduzir algumas siglas e abreviações que designam epigraficamente a questura, a edilidade, o tribunato da plebe, a pretura e.o consulado:

Quaestor - Q, QVAE, QVAES

Aedilis - AED, AEDIL

curuis - CUR plebis - PL, PLEB

Tribunus plebis - TR, TRIB. P, PL

Praetor - P., PR, PRAET.

Consul - C., COS, CON, CONS. plural: COS.S, CONSS, COS

As inscrições epigráficas, cujo conteúdo são fontes produtoras do Direito, revestem importância capital para o estudo do Direito Romano, permitindo-nos o contato direto com leis, plebiscitos, senatusconsultos, etc. Vejamos alguns exemplos142.

1. Senatusconsultum de 186 a.C. relativo às Bacchanales.

Trata-se de uma carta enviada pelos cônsules aos habitantes da ager Teuranus no Bruttium, e que nos torna conhecido o dito senatusconsulto. O texto gravado em bronze e encontrado em 1640 no Bruttium provavelmente no local em que se situava o ager Teuranus encontra-se atualmente no museu de Viena. A inscrição está datada e localizada. Foi gravada por uma pessoa de pouca cultura o que se depreende, por exemplo, dos erros ortográficos143.

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2. Carta do Pretor L. Cornelius (que foi cônsul em 156 a. C.) endereçada aos habitantes de Tibur dando-lhe ciência de uma decisão do senado a seu respeito. A inscrição, gravada em bronze, foi encontrada no século XVI e ignora-se seu atual paradeiro.

3. A Lex Sempronia judiciaria (cerca de 123 a.C.), que reorganizava o tribunal especial diante do qual deviam ser apresentadas às acusações de malversação contra os magistrados romanos, é-nos conhecida através de nove fragmentos de bronze, dos quais sete estão no Museu Nacional de Nápoles e dois no Museu de História da Arte em Viena.143 a.

4. Lex Latina tabulae Bantinae (cerca de 133 a.C.).

Em Bantia (confins da Lucânia e da Apúlia), foi encontrada, em 1790, uma Tábua de bronze mutilada (atualmente no Museu de Nápoles) com uma inscrição em cada face. Em uma face foi gravada uma lei em língua osca. Esta inscrição reveste incalculável valor para o estudo desta língua. Na outra face encontra se gravada a sanctio de uma lei latina de data e conteúdo ignorados. Os textos referentes à sanctio (sanção) interessam ao estudo das partes da lei (ver, mais adiante, item sobre as fontes do Direito Romano ).

5. Lex Julia Municipalis (Tabula, Heraclensis), do ano 45 a.C., contém a regulamentação do mundo municipal. Gravada em bronze, foi encontrada perto de Heracléa, na Lucânia (1732). Os fragmentos encontram-se no Museu Nacional de Nápoles143 b.

6. Em Magliano, na região de uma antiga cidade etrusca, foi encontrada uma lex rogata (cerca de 20 P.C.) concernente às honras oficiais destinadas a perpetuar a memória de Germanicus, morto recentemente. Esta rogatio traz-nos informações importantíssimas “sobre o mecanismo das eleições para as principais magistraturas na época de Tibério e, de modo particular, sobre o processo jurídico da destinatio que era a qualificação oficial dos candidatos às eleições. Apenas publicada, esta lei suscitou numerosos estudos e comentários (...)”144.

7. A epigrafia revela-nos, também, ao lado das leges rogatae, numerosas leges datae (sobre essas expressões, ver mais adiante, item sobre fontes do Direito Romano) promulgadas diretamente pelo imperador, entre as quais deve-se destacar diplomas militares, “cópias entregues diretamente ao interessado, de uma lei imperial que concedia a cidadania romana, após seu tempo de serviço e sua honesta missio, a veteranos de condição peregrina ou direito de justas núpcias (jus conubii) com mulheres de condição peregrina aos veteranos que eram normalmente cidadãos romanos”145.

Como já observamos acima, os atos privados que chegaram ao nosso conhecimento através da epigrafia são pouco numerosos. Citemos, como exemplo:

1)·a série de tabletes de cera encontrada (1875) em Pompéia, nas quais figuram as quitações do banqueiro L. Caecilius Jucundus e que datam dos anos 55/57 P.C.

2) A série de tabletes encontrada (de 1786 a 1855) nas minas de ouro de Verespatak,·Transilvânia; esses tabletes reproduzem contratos efetuados entre 131 e 16? num distrito mineiro da Dácia.

3 ) Um tablete (séc. I P.C. ), descoberto ao norte da Holanda, contém um acordo entre um cidadão romano, fornecedor do exército, e um camponês visando a compra de um boi.

4) Tabletes de madeira encontrados nas proximidades de Tebessa, escritos com tinta, reproduzem atos privados que se situam entre 484-496146.

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PAPIROLOGIA

O papiro (Cyperus papyrus, da família das Cyperaceae) é uma planta palustre que chega a atingir a altura de três metros. O caule, mais ou menos triangular, encerra uma medula que proporciona excelente material para a escrita. “Os egípcios cortavam-na em tiras muito finas, que depois eram secadas ao sol. Vários desses pedaços eram colocados uns ao lado de outros e a folha, assim obtida, era posta em cima de outra folha, cujos nervos corriam perpendiculares aos da primeira. O produto era muito apreciado e exportado para todos os países civilizados do mundo antigo. Já se vendia em Atenas, nos meados do século V a.C.147”

O conteúdo dos papiros constitui uma importante fonte para o estudo dos mais diferentes aspectos da civilização egípcia antiga (literatura, medicina, etc.).

Papirologia é a ciência que estuda o conteúdo dos papiros.

Sob o ponto de vista cronológico, os papiros se classificam em cinco grupos:148

papiros faraônicos - anteriores à conquista de Alexandre (332 a.C.);

papiros ptolomaicos - entre a conquista macedônica e a conquista romana (30 a. C.);

papiros romanos - desde a conquista romana até a ascensão de Diocleciano (284);

papiros bizantinos - entre 284 P.C. e a invasão árabe (639);

papiros árabes - da conquista árabe até meados do século XIII.

A grande maioria dos papiros conhecidos (são milhares) situa-se cronologicamente entre a conquista de Alexandre (332 a.C.) e a conquista árabe (século VII P.C.). A língua predominante nos papiros é o grego (mais de noventa por cento), mas há papiros redigidos em egípcio (o egípcio falado na época, respectivamente, do domínio persa, dos Ptolomeus e dos romanos chamava-se demótico, nome dado também à escrita então usada), copta (o egípcio vulgar falado pelos cristãos e que compreendia diversos dialetos), árabe, latim, aramaico, hebraico, siríaco (ramo do aramaico oriental).

A papirologia jurídica estuda os papiros cujo conteúdo interessa ao jurista ou ao historiador do direito. Estes papiros, que nos dão preciosas informações sobre a vida jurídica quotidiana de egípcios, de gregos e romanos que viviam no Egito e nas províncias orientais “não constituem, observa Pacchioni, somente uma nova abundantíssima fonte de conhecimento para a mais completa reconstrução daqueles direitos, mas uma fonte de caráter totalmente diverso do de outras fontes já à nossa disposição”149. Com efeito ao lado das fontes do Direito Romano oficiais (como, por exemplo, o Corpus Juris Civilis e outros textos) que, no dizer de Pacchioni, só representam indiretamente a vida jurídica romana, os papiros revelam-nos um direito vivo, atuante, aplicado à vida quotidiana.

Compreende-se, pois, a importância capital da papirologia jurídica para os romanistas, embora o conteúdo dos papiros jurídicos não seja predominantemente o direito romano, mas o direito grego, egípcio e oriental. “Ao direito egípcio da época faraônica sobrepõe-se e entrelaça-se o direito grego, após a conquista de Alexandre Magno; ao direito egípcio e grego sobrepõe-se e entrelaça-se o direito romano, a princípio de modo suave e esporádico, após a anexação do Egito como província romana, e, mais tarde, de modo imperativo, após a constituição Antonina (212), que estendeu a cidadania romana a todos os súditos do Império: in orbe romano qui sunt, cives romani effecti sunt. Nessa estratificação tríplice infiltram-se outros elementos de origem oriental e às vezes correntes de pensamento jurídico heterogêneo encontram-se e fundem-se tão intimamente na vida egípcia que, depois de se ler e compreender com acerto um papiro, não se

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pode determinar facilmente, à falta de outros elementos, se ele contém direito romano, grego, egípcio ou oriental.150”

Do que se escreveu até aqui, sem pretender exaurir o assunto e somente a título de exemplo, podemos sintetizar a importância da papirologia jurídica em quatro itens:

1) Proporciona-nos o conhecimento do direito vivo, aplicado na vida quotidiana.

2) Presta-nos informações sobre a administração romana no Egito antigo.

3) Fornece-nos um excelente material para o estudo do Direito comparado na Antigüidade.

4) Esclarece-nos as transformações que o Direito Clássico foi sofrendo nas províncias orientais do Império.

Sobre cada um desses itens vamos tecer algumas considerações.

Quanto ao primeiro, os papiros jurídicos, no que concerne ao Direito Romano, preenchem, como já vimos, uma lacuna, revelando-nos a existência de atos da vida jurídica quotidiana. É verdade que alguns aspectos desta vida jurídica nos são revelados por outras fontes (tabletes de cera, pergaminhos, etc:), mas foram realmente os papiros que lançaram maiores luzes sobre a maneira como as normas jurídicas eram aplicadas concretamente. Os papiros jurídicos versam sobre testamentos, manumissões, casamentos, divórcios, doações, diversos contratos, etc151.

Cabe aqui uma observação curiosa: a arqueologia vem revelando, desde o século passado, milhares de tabletes de argila redigidos com escrita cuneiforme cujo conteúdo constitui preciosa fonte para o conhecimento da vida jurídica quotidiana na Mesopotâmia antiga. Encontramos aí as mais variadas-formas de atos jurídicos tais como contratos de compra e venda de imóveis, contratos de compra e venda de escravos, empréstimo, garantia real, etc. Enquanto os estudiosos do Direito Mesopotâmico dispunham desse copioso material, os romanistas, se não tivesse havido o surto de estudos papirológicos (Pacchioni, Corso de Diritto Romano, volume primo, opina que o século XX poderá ser chamado o “século da papirologia”), estariam restritos, na pesquisa sobre a vida jurídica quotidiana, às fontes supramencionadas152.

Os papiros prestam-nos importantes informações sobre a administração romana no Egito. Convém lembrar aqui que a terra dos faraós constitui uma região à parte no Império Romano. Aí estão presentes as tradições faraônicas milenares e as seculares influências helenísticas dos Ptolomeus. Compreende-se, assim, que o imperador romano seja considerado o sucessor dos faraós e dos Lágidas e use os mesmos títulos divinos e que muitas instituições do Egito Romano sejam simples empréstimos às existentes sob os Ptolomeus153. O representante do imperador assume o título de praefectus (επαρχοζ) e possui os mesmos poderes de um procônsul. Pode-se seguir a atuação da Prefeitura romana do Egito através de sete séculos, até a conquista árabe. Como exemplo de papiro cujo conteúdo constitui fonte para o conhecimento da administração romana no Egito, lembremos o famoso Gnomon do Idiólogo ou “código fiscal do Egito Romano que é, na realidade, uma mina de informações para o Egito Romano e até mesmo para o Egito helenístico ou o direito imperial em geral”154. Redigido sob os Antoninos (Antonino Pio ou Marco Aurélio) o Gnomon (γνωμων) informa nos entre outras coisas, sobre o regime de castas mantido pelos romanos no Egito, as leis caducárias de Augusto (legislação matrimonial), os cultos e condição dos egípcios que haviam passado pelas fileiras do exército romano155.

O estudo do Direito Comparado na Antigüidade encontra na papirologia uma fonte preciosa, o que se explica facilmente pelo que já se disse acima sobre as múltiplas influências raciais e culturais a que esteve submetido o vale do Nilo. Ainda no século IV, S. João Crisóstomo menciona, entre a população egípcia “gregos, italianos, sírios, líbios, cilícios,

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etíopes, árabes, bactrianos, indianos, persas. E, note-se, não se trata de uma nomenclatura limitativa156.

Em matéria de Direito Comparado, um aspecto da papirologia jurídica que interessa sobremodo ao romanista é o cotejo entre institutos respectivamente do direito romano e do direito helenístico. Como já vimos, existem entre um e outro aspectos nitidamente divergentes157.

A papirologia jurídica fornece-nos um testemunho eloqüente da habilidade com que os romanos souberam impor seu domínio a povos os mais diversos, racial e culturalmente, permitindo por longo tempo a existência de sistemas jurídicos locais, especialmente no campo do direito privado. “Os documentos egípcios demonstram a persistência do direito local sob a dominação grega e sob a romana, enquanto os papiros aramaicos de Elefantina e várias outras fontes permitem constatar que também outros povos viviam no Egito segundo o próprio direito”158.

A papirologia jurídica contribui para explicar as transformações que o Direito Clássico foi sofrendo nas províncias orientais do Império e que aparecem nas Compilações justinianéias. Essas transformações iriam resultar posteriormente num módulo novo, o direito bizantino. Vale repetir aqui Pacchioni: “Esta transformação operou-se principalmente no período que se estende de Diocleciano e Constantino até Justiniano, período, no que concerne ao direito privado, assaz mal documentado, que constitui uma zona cinzenta entre os esplendores da época clássica e a viva retomada jurídica da época justinianéia. Os papiros, portanto, lançando sobre esse período muita e nova luz, vieram preencher uma grave lacuna na documentação das últimas transformações do direito privado romano. Ilustraram-nos de modo sugestivo a reação do mundo helênico oriental no campo do direito privado; esta mesma reação que, mais vigorosamente e com resultados mais radicais, operou a transformação das instituições políticas do Império. Na obscuridade desse período trava-se uma áspera luta entre as tradições jurídicas gregas e orientais e o direito romano; e os resultados desta luta que nos aparecem aqui e ali na compilação justinianéia, teriam permanecido para nós verdadeiros enigmas, em torno dos quais teríamos talvez continuado a exercitar, em vão, a agudeza de nosso engenho, se a descoberta dos papiros não nos tivesse oferecido novos elementos de juízo, permitindo-nos em mais casos descobrir os elos intermediários que ligam o direito clássico ao direito justinianeu”159.

Sublinhemos mais uma vez: o direito privado romano conviveu com direitos privados locais nacionais que eram aplicados aos súditos do Império também por magistrados romanos. Explica-se assim que estejam inseridos em constituições imperiais princípios de direito que, na época em que foram formulados, provavelmente só teriam aplicabilidade em determinadas províncias e não em todo o Império. Volterra observa que são numerosas as Constituições do Código de Teodósio e do Código de Justiniano “que contêm dispositivos para o Egito e endereçadas ao prefectus augustalis, outras dirigidas do proconsul Africae ao vicarius Africae e a funcionários da África”160.

Ainda a propósito das Constituições Imperiais que se endereçam a determinadas regiões, Volterra anota: “É certo que a maior parte das constituições citadas diz respeito ao direito público e poucas, relativamente, referem-se ao direito privado. Mas se resulta uma diversidade de normas públicas e administrativas entre as diferentes províncias, é evidente que, com maior razão, uma acentuadíssima diferença deveria haver também no que concerne aos institutos privados, sobre os quais o direito local deve ter exercido uma mais profunda influência e que devem ter oferecido uma resistência mais tenaz à aplicação do direito romano”161.

Cabe aqui chamar a atenção do leitor para a tentativa feita por Diocleciano no sentido de, ao lado da nova organização do Império, unificar os institutos de direito privado. A morte do Augustus (ver item sobre estrutura política), sustou a tendência unificadora. Cerca de um século

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e meio depois, uma nova tentativa de unificação jurídica é feita por Teodósio II, porém sobre novas bases: “não se procura mais fazer com que prevaleça impondo-o a todos os súditos, unicamente o direito romano com exclusão dos outros; tenta-se unir o direito romano e os institutos locais e formar um só direito para todo o Império. É com esta finalidade, mas em bases muito mais amplas, que se desenvolverá mais tarde a outra grandiosa tentativa de Justiniano”162.

De tudo isso o leitor poderá facilmente deduzir quão importante é a contribuição da papirologia jurídica para esclarecer as transformações sofridas pelo Direito Romano nessas tentativas de unificação e adaptação através dos séculos.

Vamos encerrar estas breves notas sobre a papirologia jurídica lembrando dois exemplos notáveis de como os papiros lançaram novas luzes .para uma melhor compreensão de duas fontes jurídicas de natureza diversa mas de suma importância para o estudo da História do Direito Romano: as Institutas de Gaio e a Constituição Antonina.

Quanto às Institutas, recordemos o papiro do século III, encontrado em 1927, nas escavações da antiga Oxirinco (Egito), contendo uma página do livro IV das Institutas de Gaio. Posteriormente foram encontrados também no Egito novos fragmentos gaianos escritos em pergaminho e que dizem respeito a partes dos livros III e IV das mesmas Institutas. O texto contido no papiro foi publicado por A. S. Hunt; os textos em pergaminho foram publicados por Arangio-Ruiz na coleção dos Papiri greci e latini (Publicazione della Società Italiana per la ricerca dei papiri, XI, n. 1182)163 164.

Um papiro bastante mutilado adquirido em 1902 em Ashmunen (Hermupolis Magna) e publicado na coleção de papiros de Giessen contém a versão grega da famosa Constituição do imperador Antonino Caracala. O confronto do texto grego com a informação atribuída a Ulpiano (D. 1, 5, 17) deu margem a numerosos debates sobre a extensão da concessão da cidadania.

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Capítulo V

ALGUMAS NOÇÕES ELEMENTARES

No presente capítulo pretendemos apresentar algumas noções básicas, indispensáveis a um estudo, ainda que sumário, do direito privado romano.

O VOCÁBULO JUS

O vocábulo latino que corresponde ao que chamamos direito é jus, empregado nos textos, ora com sentido objetivo (isto é, como norma jurídica, como norma agendi, na fórmula moderna) ora com o sentido subjetivo (isto é, como faculdade ou poder de agir, na fórmula moderna: facultas agendi, em conformidade com a norma) 165 . Embora os jurisconsultos romanos não tenham formulado teoricamente a distinção entre esses dois aspectos do Direito, é fácil encontrar expressões e textos que mostram inequivocamente o emprego do termo jus nas duas acepções. Arias Ramos chama a atenção para o fato de que essa duplicidade de acepções aparece já desde “a época mais arcaica do Direito Romano”: “Assim, o sentido objetivo aparece na expressão ita jus esto, tão freqüente na Lei das XII Tábuas - uti lingua nuncupassit, ita jus esto; uti legassit, ita jus esto - ou nas referências ao velho Direito Civil - ex jure quiritum. Antiquíssimo é também o uso de jus como sinônimo de poder consentido e garantido pelo Direito objetivo, como nos revelam as vetustas fórmulas processuais solenes aio mihi jus esse (...)”166.

Eis alguns exemplos do emprego do vocábulo jus, respectivamente em sentido objetivo e em sentido subjetivo.

JUS como Direito Objetivo:

1. Jus civile: direito civil

2. Jus praetorium: direito pretoriano

3. Testamentum jure factum: testamento feito de acordo com a lei

4. Juris praecepta sunt haec: os preceitos do direito são estes…

5. Publicum jus: Direito público

6. Privatum jus: Direito privado.

Nota: No período pós-clássico o vocábulo jus é empregado em oposição a leges para indicar o direito objetivo que não se constitui pelas Constituições imperiais.

JUS como Direito Subjetivo:

1. Jus utendi: faculdade de usar

2. Jus fruendi: faculdade de fruir

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3. Jus abutendi: faculdade de dispor

4. Nullus videtur dolo facere, qui suo jure utitur (D.50,17,55): Não se considera agindo com dolo, aquele que usa de seu direito

5. Nemo plus juris ad alium transferre potest, quam ipse habet (D.50,17,54): Ninguém pode transferir a outro maior soma de poderes do que ele mesmo possui

6. Qui jus est donandi, eidem et vendendi et concedendi jus est: Quem tem o direito de doar, tem também de vender ou ceder.

O vocábulo jus possui nos textos romanos outros significados além dos dois supramencionados. Assim, por exemplo, indica o local em que o magistrado -administra a justiça (D.l,1;1: jus dicitur locus in quo jus redditur); citar alguém para que compareça ao tribunal é vocare in jus; as formalidades processuais desenvolvem-se in jure, isto é, no tribunal : cessio in jure, interrogationes in jure, etc. Ad praetorem in jus adire (Cícero, Verr. 4, 147) : apresentar-se no tribunal, perante o pretor.

O vocábulo jus indica, às vezes, uma situação jurídica: jus deterius facere: tornar a situação pior. Significa também poder (potestas) nas expressões pessoas sui juris e pessoas alieni juris, ou ainda parentesco (por exemplo, na expressão: jus cognationis: parentesco cognatício).

Relacionadas com jus são as noções de justum e de justitia. Justum é aquilo que está conforme o jus. Quando a vontade humana se conforma com o jus, é justa. “Se tal adaptação ao jus é constante, constituirá um estado habitual do sujeito: Para referir-se a esta virtude, a esta conformidade habitual de uma vontade humana com o jus, os romanos serviram-se da palavra justitia e, considerada nesta acepção, quer dizer, como uma inclinação subjetiva, os textos justinianeus transmitiram-nos da mesma uma definição. A justiça é, segundo tal definição, recolhida pelo jurisconsulto Ulpiano, constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi”167.

Injuria e injustus contrapõem-se a jus e justus. Injuria é tudo aquilo que não se faz conforme o direito: non jure fit.

JURISPRUDENTIA

Em Roma, jurisprudentia é a ciência do direito (conhecimento teórico e aplicação prática). Ulpiano definiu-a (D. 1.1.10.2) como “o conhecimento das coisas divinas e humanas, a ciência do justo e do injusto” (Jurisprudentia est divinarum atque humanarum rerum notitia, justi atque injusti scientia). Justiniano repete a definição nas Institutas (1.1.). O texto de Ulpiano tem dado margem a interpretações as mais diversas. A primeira parte (divinarum atque humanarum rerum notitia) sugere que Ulpiano, ao formulá-la, tinha diante de si a principal divisão das coisas em coisas de direito divino e coisas de direito humano estabelecida por Gaio: Summa itaque rerum divisio in duos articulos diducitur: nam aliae sunt divini juris, aliae humani (G. 2. 2.) : Assim a divisão principal das coisas se reparte em duas seções: umas são de direito divino, outras, de direito humano.

A amplitude da definição (que, se contivesse somente a segunda parte, talvez não despertasse tantas divergências em sua interpretação) corresponde, na realidade, conforme

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observa Biondi, à função que os romanos atribuem ao jurisprudente. Este deve possuir plena consciência da realidade que inclui a noção das coisas humanas e divinas como pressuposto para a realização da justiça. “A ciência do direito não é considerada pelos romanos como isolada da realidade, mas espraia-se por todas as relações humanas e divinas naquilo que possa interessar o jurista” (Biondi, Instituzioni, p. 30). No item sobre as fontes focalizaremos a atuação dos jurisconsultos e a validade de suas Respostas (Responsa) como fonte do direito.

DEFINIÇÃO DE DIREITO

Estudando a concepção de Direito segundo os romanos, Biondi observa: “A ciência do Direito não é considerada como algo de universal, nem os juristas julgam que seus esquemas e construções possam valer para outros ordenamentos e para todos os tempos, já que para eles o direito é justiça não abstrata mas concreta e, pois, diversa, segundo os diversos povos e as diversas épocas históricas” 168 . Estas considerações parecem-nos indispensáveis para que se compreenda o sentido da famosa definição de jus, tomado em acepção objetiva, atribuída por Ulpiano ao jurisconsulto Celso: “Ut eleganter Celsus definit, jus est ars boni et aequi (como elegantemente Celso define, o direito é a arte do bom e do justo D.1,1,1)169. Este texto tem dado margem a controvérsias. Biondi assim o interpreta: “Deixando de lado a dúvida sobre se tem caráter geral ou se limita ao jus civile, e precisamente à interpretatio prudentium, e prescindindo-se da questão se ars deve ser entendida como técnica ou como sistema, aquela definição põe a luz o lado intrínseco e a finalidade do direito, que visa a realizar o bem (bonum) e o justo (aequum) na convivência social”170. Matos Peixoto assim explica a definição de Celso: o direito é a realização prática (ars) do bem comum (bonum) e da distribuição igual da justiça (aequum)171.

AEQUITAS

Já vimos acima que, segundo Villers, a “eqüidade” é uma noção matemática tirada das obras de Aristóteles: inspira-se na proporção ou igualdade de relações”172. Parece-nos que não cabem dúvidas quanto à origem grega da noção de aequitas. Biondi (Scritti giuridici, IV, p. 886) observa que o conceito de aequitas deriva da filosofia grega e anota: “A jurisprudência romana teve o mérito de haver dado a esse conceito conteúdo e valor jurídico.” Não há, pois, razão para duvidar da importância e influência da aequitas na mentalidade dos juristas e magistrados romanos. O jurisconsulto Paulus sublinha que, em todas as coisas, principalmente no direito, deve observar-se a eqüidade (D.50.17.90 - In omnibus quidem, maxime tamen in jure aequitas spectanda est). O que causa dificuldade no estudo da aequitas diz respeito a seu exato sentido.

A primeira noção de aequitas, anota Biondi, é sugerida pelo significado literal da palavra: igualdade; “é, pois, o critério pelo qual a casos iguais se aplica decisão igual”173. A aequitas é o adequamento do jus aos multiformes casos práticos da vida, “em outros termos, é a justiça do caso concreto”. É a justiça tal como é sentida pela consciência social de que os juristas são seguros intérpretes. “É pois entidade extremamente variável que impede o enrijecer do direito em uma fórmula definitiva. A aequitas tende a traduzir-se no jus; nela se inspiram o

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legislador, os juristas ao apresentarem sua doutrina; os magistrados na sua atividade”174. Razões de equidade (ex bono et aequo) são freqüentemente invocadas, sublinha Arias Ramos, como: motivação de normas novas, especialmente das implantadas pelo pretor”175. Convém enfatizar que a noção de aequitas não equivalia a uma doutrina abstrata, absoluta, imutável. Era, antes, uma noção realista vinculada a determinado momento da consciência social176. “A aequitas é a justiça ideal como é sentida no ambiente social de uma época dada, sentimento difuso que, doutrinariamente, justifica novos reconhecimentos e amparos de direitos subjetivos e preside, como critério diretor, modificação das instituições jurídicas”177. Em nome da aequitas, o pretor chama os cognados à sucessão ab intestato178. Com efeito, lemos no Digesto: “Embora, por direito civil deixem de ser filhos os que, em virtude da capitis deminutio cessaram de ser herdeiros sui, não obstante, o pretor, por razão de eqüidade, rescinde sua capitis deminutia.” (Quamvis enim jure civile deficiant liberi, qui propter capitis deminutionem desierunt sui heredes esse, propter aequitatem tamen rescindit eorum capitis deminutionem praetor D.37.1. 6.1).

Inspira-se também na eqüidade o princípio formulado por Pompônio que proíbe o enriquecimento ilícito: é pela natureza justo (aequum) que ninguém se torne mais rico com prejuízo de outrem (Nam hoc natura aequum est neminem cum alterius detrimento fieri locupletiorem D.12.6.14). Matos Peixoto observa sobre a atuação do pretor inspirado na eqüidade: “Para atender à eqüidade, o pretor mitigava, no edito e na fórmula, o rigor da lei, não alterando-a, mas criando lateralmente uma regra nova que se lhe antepunha”179.

Entre a noção de aequitas, respectivamente no período clássico e no período pós-clássico, existe uma acentuada diferença assim sublinhada por Moreira Alves 180 : “Para os jurisconsultos clássicos, aequitas é o que, modernamente, se denominaria justiça aquele ideal ético que existe, em estado amorfo, na consciência social, e que tende a transformar-se em direito positivo.” “Bem diversa a noção de aequitas no período pós-clássico. Aí em antítese com o jus ela adquire o sentido de benignidade, benevolência (humanitas, benignitas, benevolentia, pietas, caritas). Com base nela, os imperadores romanos derrogam princípios jurídicos, como, por exemplo, permitem que os humildes (humiliores), em certos casos, se desliguem, por vontade unilateral, de vínculos contratuais”181.

JUS E FAS

Virgílio (Geórgicas, I, 269) menciona a existência de oposição entre o mundo divino e o mundo humano quando, a propósito das ocupações a que alguém pode dedicar-se nos dias de festas, afirma: “O Fas e o Direito permitem” (Fas et Jura sinunt). Alguns séculos depois, Sérvio (Séc. IV P.C.), comentador do maior poeta romano, assim explica o verso supracitado: “Isto é, o direito divino e o direito humano permitem, pois o fas concerne à religião, o direito concerne aos homens.”181-a

Tito Lívio (VIII, 5, 6) atribui ao cônsul Tullius Manlius Torquatus, ante uma ameaça iminente ao Estado, as palavras : Ouve, Júpiter, esses crimes! Ouvi, direito humano e direito divino! (Audi, Jupiter, haec scelera, audite jus fasque).

Estudando o Direito Romano antigo, Cornil sublinha que por estarem tanto a autoridade religiosa como a civil reunidas nas mesmas mãos, não se cuidou inicialmente da distinção entre regras cuja observação estaria a cargo de uma ou de outra autoridade. Só quando se precisou a

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diferenciação entre essas autoridades é que se acentuou à existência, ao lado de um direito civil ou profano, designado pelo vocábulo jus, um direito sagrado ou religioso a que se reservou o nome de fas.182

Monier assim explica a distinção entre Jus e Fas: “Nos inícios da civilização romana, o direito não se distinguia nitidamente da religião; pode-se dizer que a observação das regras de direito constituía uma parte dos deveres que o cidadão, desejoso de praticar sua religião, devia cumprir; os pontífices, chefes religiosos, desempenhavam um papel importante na aplicação e na transformação do direito. Mas, na época clássica do direito romano, quanto a religião pagã se encontra em plena decadência, os jurisconsultos distinguem o fas, conjunto de preceitos que regulamenta as relações entre os deuses e os homens, e o jus, direito leigo que está destinado a regular as relações entre os homens”183.

Qual o campo de atuação respectivamente do fas e do jus? Não é pacifica a resposta. Matos Peixoto, seguindo Von Ihering, ensina: “O fas impregnava sobretudo o direito público e o direito criminal. Foram leges sacratae que investiram de inviolabilidade os tribunos do povo; certos delitos eram considerados uma ofensa à divindade e a pena que castigava o delinqüente era uma expiação religiosa. O direito privado era menos acessível à influência religiosa e as suas regras tinham caráter profano, salvo as que diziam respeito à família. Isto explica-se: as questões patrimoniais nada tinham de comum, em regra, com a religião; entretanto, a família romana estava sob a proteção do fas, porque a casa onde ela morava era também habitada pelos deuses domésticos”184.

MORAL E DIREITO

Coube ao jurisconsulto alemão Christianus Thomasius (1655·1728) formular nos tempos modernos a distinção entre Direito e Moral. Até então, observa Cathrein, mantivera-se “a firme convicção de que entre Direito e Moral existia uma relação essencial, ou melhor, que o Direito constituía uma parte da ordem moral”185. Benjamim Oliveira Filho salienta a estreita relação existente entre as normas jurídicas e os preceitos morais e sublinha que, se entre as duas espécies de normas não pode haver nem oposição nem contraste ou contradição, mas coerência e conjugação, “elas podem ser distinguidas tanto por sua forma específica quanto por seu conteúdo próprio”186. Assim, por exemplo, quanto à forma, “isto é, quanto à natureza respectiva de seu imperativo”, o mesmo autor assinala, entre outras, a seguinte diferença: “A regra jurídica tem sua sanção específica, enquanto, pela coação, é imposta pelo poder público, que obriga a reparar os danos e prejuízos, punindo os transgressores. Os preceitos morais não têm sanção efetiva; ao menos terrena. Sanção ultra-terrestre para os crentes, sanção da opinião pública ou de própria consciência individual, muitas vezes poderosa, mas não uma sanção organizada e efetivamente aplicada, como se verifica com relação à norma jurídica” 187 . Quanto a seu respectivo conteúdo, isto é, quanto à matéria de seus preceitos, ainda o mesmo autor aponta, entre outras, a seguinte distinção: “A moralidade abrange o homem inteiro, sua consciência, suas intenções, seus pensamentos e suas ações. Nada escapa ao domínio da moral, que não despreza um único dever e prescreve o exercício de todas as virtudes. A regulamentação jurídica, por outro lado, apenas se preocupa com as atividades humanas, enquanto interessam o bem e a segurança da comunidade, o bem específico que a sociedade tem por missão assegurar a seus membros, estabelecendo, tão-somente, as regras necessárias, sem as quais a vida normal do agregado se tornaria impossível”188.

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Como encaram os romanos o problema da distinção entre Direito e Moral?

Giffard, depois de citar a definição de Celsus e o texto atribuído a Ulpiano sobre os preceitos de direito (que analisaremos logo a seguir) conclui: “Esses textos mostram que os Romanos não distinguem nitidamente entre a moral e o Direito. Esta confusão explica-se pelas fontes a que os jurisconsultos romanos tomaram suas definições gerais. Tiraram-nas, palavra por palavra, dos filósofos gregos,, que não separaram jamais o Direito da Moral e viam nesta a ciência geral das ações dos homens da qual o Direito não é mais que uma parte”189. O mesmo autor, entretanto, vê uma distinção entre o Direito e a Moral num texto do jurisconsulto clássico Paulo, citado no Digesto (50,17.144.1).

Reproduziremos a seguir os textos de Ulpiano e de Paulo supramencionados, bem como dois textos respectivamente de Papiniano e de Modestino. Ulpiano (D.1.1.10.1 e Inst.1.1.3 ) assim formula os preceitos do Direito: “Os preceitos do direito são estes: viver honestamente; não lesar outrem; dar a cada um o que é seu” (Juris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere). O primeiro preceito constitui, anota Biondi, uma orientação geral da conduta humana na convivência social190 . Giffard observa que honeste vivere não é um princípio jurídico. Poder-se-ia também interpretar honeste vivere como um princípio abrangendo não só os preceitos meramente de ordem moral, mas também aqueles de ordem jurídica que vedam determinados atos lesivos .à ordem legal (e, portanto, puníveis) que não implicam lesão ao direito alheio. Matos Peixoto comenta : “Foi certamente tendo em vista casos como esses que Ulpiano incluiu o honeste vivere entre os preceitos jurídicos. É inegável que esse princípio tem alcance metajurídico, pois há casos em que é a moral e não o direito que recomenda o ato honesto; deve-se, porém, não esquecer que os romanos não faziam distinção nítida entre as duas disciplinas”191.

O estudo da História do Direito Romano parece revelar que, com o passar dos séculos, enquanto se delineia claramente a diferenciação entre Fas e Jus, isto é, entre o campo da religião e o do Direito, o inverso acontece na relação entre Moral e Direito: Arias Ramos observa: “O Direito Novo aparece mais influenciado por considerações morais que o velho Direito Civil, e a jurisprudência romana, embora diferenciando a norma ética da jurídica, assinala entre as mesmas uma zona de coincidência, no sentido de que determinadas atitudes e condutas fossem exigidas ao mesmo tempo pela Ética e pelo Direito (...)”192. Vale recordar aqui que Papiniano acentuou na Solução dos problemas jurídicos o elemento moral. Assim, por exemplo, no seguinte texto: “Devemos aceitar que não podemos fazer aquelas coisas que, se feitas, ofendem nossa piedade, nossa dignidade, nosso decoro, e, como diria em termos gerais, vão contra os bons costumes” (quae facta laedunt pietatem, existimationem verecundiam nostram, et ut generaliter dixerim contra bonos mores fiunt, nec facere nos posse credendum est - D.28.7.15).

O jurisconsulto Paulo, contemporâneo de Ulpiano e de Papiniano, em famoso axioma formula claramente a distinção entre Moral e Direito (D. 50.17.144.1): non omne quod licet honestum est: nem tudo o que é lícito, é honesto. Se o Direito permite coisas que a moral reprova, comenta Giffard, “é que, seus domínios são diferentes”193.

Modestino, jurisconsulto que viveu nos meados do século III, sublinha a distinção entre Direito e Moral, quando afirma (D.23:2.42. pr.): In conjunctionibus non solum quid liceat considerandum est, sed et quid honestum sit: nas uniões conjugais não só se deve considerar o que é lícito, mas também o que é honesto.

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DIVISÕES DO DIREITO

Os textos apresentam-nos diversas divisões e subdivisões do direito objetivo com base, como veremos, em diferentes critérios.

Jus scriptum e Jus non scriptum

Os autores divergem quanto à interpretação desta divisão que, aliás, como sublinha Girard, possui pouco interesse prático194.

Nas Institutas de Justiniano (1.2.3), sublinha-se a distinção entre direito escrito e não escrito: “O nosso direito é escrito ou não-escrito, como entre os gregos: das leis, umas são escritas, outras não escritas. O direito escrito é a lei, o plebiscito, os senatusconsultos, as constituições imperiais, os editos dos magistrados, as respostas dos prudentes.” (Constat autem jus nostrum aut ex scripto aut non scripto, ut apud graecos: των ϖομων οι εγγραφοι οι αγραφοι. Scriptum jus est hex, prebiscita, senatusconsulta, principum placita, magistratuum edicta, responsa prudentium.)

O jus non scriptum assim é explicado (I.1.2.9 ): “direito não-escrito é o comprovado pelo uso” (Ex non scripto jus venit, quod usus comprobavit).

No Digesto (1.1.6) encontramos a mesma distinção: “E este direito nosso é em parte escrito e em parte não escrito, como entre os gregos (...) “(Hoc igitur jus nostrum consat aut ex scripto aut sine scripto, ut apud graecos (...).

Segundo Kaser, estes mesmos aqui em face de uma distinção criada pela escola romano-oriental sob a influência da filosofia grega195. Arias Ramos assim explica a distinção entre jus scriptum e jus non scriptum: “Distinguia-se o Direito em escrito e não escrito olhando, não a circunstância de que as normas estavam ou não redigidas por escrito, mas a maneira como as mesmas apareciam ou se formavam. As que haviam sido elaboradas pelo Poder Público e emanavam diretamente daqueles de seus órgãos comícios, senado, magistrados, imperadores que tinham tal faculdade, eram jus scriptum, estivessem ou não materialmente fixadas por escrito embora, como é natural, o estivessem normalmente. As normas surgidas do costume, assim como aquelas resultantes da interpretatio dos juristas primitivos, formam o jus non scriptum. A deficiente adequação da terminologia à realidade explica-se por tratar-se de uma bipartição grega das normas de conduta, em geral aplicada tardiamente ao campo do Direito por juristas pós-clássicos ou bizantinos”196. A esse jus non scriptum formado pelos prudentes alude o Digesto (1.2.2.5) depois de narrar sucintamente a elaboração da Lei das XII Tábuas: “este direito que, sem escrever-se, veio a ser composto pelos prudentes (hoc jus quod sine scripto venit compositum a prudentibus).

Girard assim caracteriza esta divisão: “O direito escrito (jus scriptum) e o direito não escrito (jus non scriptum) diferem pelo modo de formação e não, como se poderia pensar, pelo fato material da escrita. O jus scriptum é aquele produzido por um dos poderes públicos investidos de um papel legislativo e que normalmente será redigido por escrito; o jus non scriptum é aquele que o uso produz insensivelmente e que, por conseqüência, se forma sem

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escrita, mas que naturalmente não mudaria de caráter se fosse objeto de uma redação privada.197”

Jus Civile

A expressão jus civile pode ser focalizada sob vários aspectos: Kaser (Derecho Romano privado, p. 27) anota: “Designa uma contraposição diante do jus gentium e também em face do jus honorarium. Expressa igualmente todo o direito privado elaborado pelos juristas (em oposição ao jus sacrum e ao jus publicum) e também um direito distinto do jus militare (direito singular dos militares).”

Gaio (1.1.) assim define jus civile: “o direito que cada povo se constitui para si mesmo, esse lhe é próprio e se chama direito civil, direito, por assim dizer, próprio da cidade” (quod quisque populus ipse sibi jus constituit, id ipsius proprium est vocaturque jus civile, quasi jus proprium civitatis). As Institutas de Justiniano (1.2.2) explicam a origem da expressão jus civile e de seu equivalente jus Quiritum: “Ora, o direito civil tira a sua denominação da cidade a que pertence, assim o dos atenienses; pois quem quiser chamar às leis de Solon ou de Dracon, direito civil dos atenienses, não errará; e assim também o direito de que usa o povo romano lhe chamamos direito civil dos romanos ou direito dos Quirites, de que usam os Quirites, pois por cáusa de Quirino os romanos se chamam Quirites” (Sed jus quidem civile ex una quaque civitate appellatur, veluti Atheniensium; nam si quis velit Solonis vel Draconis leges appellare jus civile Atheniensium, non erraverit. Sic enim et jus, quo populus Romanus utitur, jus civile romanorum appellamus vel jus Quiritium, quo Quirites utuntur; Romani enim a. Quirino Quirites appellantur).

De Martino chama a atenção para recentes estudos que confirmam a origem consuetudinária do jus civile198 . Biondi observa que inicialmente “o jus civile é constituído unicamente pela interpretatio prudentium que procede dos mores maiorum”199.

Papiniano (D.1.1.7.) caracteriza o jus civile pela fonte donde procede : “Direito Civil é o que emana das leis, dos plebiscitos, dos senatusconsultos, dos decretos dos príncipes, da autoridade dos prudentes” (jus autem civiÌe est, quod ex legibus, plebiscitis, senatuscansultis, decretis principum, auctoritate prudentium venit). O direito civil engloba pois todo o direito privado com exclusão do jus honorarium.

Via de regra o jus civile aplica-se exclusivamente aos cidadãos romanos. Os não cidadãos a que se concedia o commercium (capacidade para celebrar determinados negócios próprios do jus civile) ou o conubium (capacidade para celebrar um matrimônio válido, de acordo com o jus civile) constituíam a exceção à regra. “Com a progressiva extensão da cidadania romana na república tardia e na época do principado perde também importância a concessão do jus commercium e do jus conubium.”200

Concluamos estas breves considerações sobre o jus civile lembrando com, De Martino que ele “permanece sempre a ossatura do direito romano do qual é fundamento e ao qual dá sólidas linhas arquitetônicas, mesmo quando a praxe da jurisdição pretória e o edito criaram novos princípios e novos institutos que, no campo da propriedade, das sucessões e das obrigações regulam toda a vida jurídica romana”201. Podemos avaliar a importância do jus civile quando constatamos, através das Institutas de Gaio, que em plena época dos Antoninos “as

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instituições sobre as quais os estudiosos do direito davam os primeiros passos eram as do jus civile”202.

Jus honorarium

Em pleno desenvolvimento da República, quando Roma se expande e o relacionamento entre romanos e estrangeiros, especialmente no campo econômico, se intensifica, o Estado, através do imperium do praetor peregrinus (o pretor para os estrangeiros), protege estes últimos. “Nada sabemos dos métodos empregados pelo pretor no início de sua jurisdição regular sobre os estrangeiros, porém podemos conjeturar e algumas instituições de direito posterior·apontam positivamente nesta direção que seguia o jus civile, exceto com respeito a matérias que, por sua natureza, não podiam aplicar-se a estrangeiros. Não obstante, o poder ilimitado, encerrado no imperium do pretor, permitia-lhe também levar em conta as novas necessidades criadas pela crescente intensidade e complexidade da vida econômica e que não estavam reguladas pelo jus civile”203. Acrescente-se o poder especial de organizar o processo concedido ao magistrado pela Lex Aebutia203-a. O praetor urbanus (a quem estavam afetas as causas entre cidadãos romanos), investido do mesmo imperium de seu colega, o praetor peregrinus, possuía também o poder de prescindir das normas do jus civile “quando a estrita aplicação destas levava a conseqüências que se consideravam injustas ou que não correspondiam a condições sociais mais avançadas: Como seu colega, podia também proporcionar remédios juridicos em situações não enfrentadas pelo jus civile”204.

Desta necessidade de adaptar o jus civile a situações novas, criadas pela evolução da vida econômico social, surgiu o jus honorarium. “Pouco a pouco, resultou desta prática um corpo de princípios estáveis que, em seu conjunto, constituiu o jus praetorium (direito pretoriano) ou, com mais propriedade, o jus honorarium”205. Esta última expressão relaciona-se com o vocábulo latino honos (honra) que, num sentido mais técnico, significa o cargo conferido pelo povo romano ao magistrado206. Cabe aqui uma indagação : são equivalentes as expressões jus honorarium e jus praetorium? Embora na prática possam ser às vezes considerados equivalentes (ver a citação de Papiniano, nota 206), deve-se notar que a expressão jus honorarium possui um sentido mais abrangente pois inclui o direito criado pelos editos dos outros magistrados, como anota Grosso: “Além disso, uma certa importância tinha também o edito dos edis curuis, pela jurisdição que lhes competia em matéria de venda feita nos mercados, em particular quanto aos vícios ocultos das coisas vendidas. Nas províncias, em seguida, o governador que aí exercia a jurisdictio expedia um edito, o edictum provinciale que representava, com as adequadas adaptações, o paralelo do edito do pretor (cf. Gaio, I, 6). De todos estes editos que tinham, como dissemos, o modelo e termo de referência fundamental no edito do praetor urbanus, resultava o jus honorarium”207.

Gaio (I, 6) sublinha a importância dos editos dos magistrados romanos: “O direito de expedir editos têm os magistrados do povo romano; mas o amplíssimo direito está nos editos dos dois pretores, urbano e peregrino, tendo a jurisdição deles, nas províncias, os governadores das mesmas; o mesmo se dá com os editos dos edis curuis, cuja jurisdição é exercida nas províncias pelos questores do Povo Romano.”

(“Jus autem, edicendi habent magistratus populi Romani; sed amplissimum jus est in edictis duorum praetorum urbani et peregrini, quorum in provinciis jurisdictionem praesides earum

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habent; item in edictis aedilium curulium, quorum jurisdictionem provinciis populi Romani quaestores habent.”)

Qual o papel do jus praetorium em face do jus civile? Papiniano (D. 1.1.7.1) no-lo informa : “Direito pretoriano é o que os pretores introduziram com o propósito de corroborar, suprir ou corrigir o direito civil, tendo em vista a utilidade pública.” (“Jus praetorium est, quod praetores introduxerunt adjuvandi vel supplendi vel corrigendi juris civilis gratia propter utilitatem publicam...”) Kaser assim comenta este texto: adjuvandi, o praetor, sob este aspecto, cumpre o Direito Civil sem alterar nada do mesmo; supplendi, o praetor supre as lacunas que o Direito Civil oferece; corrigendi, substitui velhas organizações por outras por ele criadas”208.

Quando havia uma oposição entre o jus honorarium e o jus civile, este não era formalmente ab-rogado pois o magistrado não dispunha de poder neste sentido. Todavia o pretor tornava-o ineficiente no caso concreto através de meios inerentes à sua jurisdictio como, por exemplo, a denegatio actionis (denegação de ação).

Biondi acentua que o direito pretoriano constitui uma entidade jurídica intrinsecamente diversa do jus civile “como tal considerada pelos próprios juristas romanos”209.

Tentemos, a seguir, estabelecer um rápido paralelo entre jus civile e jus praetorium210:

JUS CIVILE

É um sistema jurídico que se desenvolve organicamente mercê da interpretatio. “É um sistema orgânico, e segue uma linha natural de desenvolvimento”, anota BIONDI211.

O desenvolvimento do jus civile é pautado por uma rigorosa lógica, embora leve em consideração a realidade social. Pode-se dizer que o jus civile é ratio.

O jus civile é ordenamento não só lógico, mas rigoroso e inflexível. É, como sublinha BIONDI, lei.

As prescrições do jus civile revestem um caráter de generalidade e de impersonalidade. Valem por si mesmas. São disposições normativas que atribuem a cada um direitos e deveres.

No campo do jus civile, o pretor assiste e controla a legalidade formal do processo, mas é o autor (actor) que dá impulso ao agere (atividade jurídica no processo, participação de um processo).

O jus civile apresenta um caráter de “personalidade”

JUS PRAETORIUM

O jus pretorium carece de organicidade tanto na sua essência como em seu desenvolvimento histórico. Consiste num infindo suceder-se de editos através do tempo, formando um complexo desorgânico.

A atuação do magistrado é influenciada por uma série de contingências da vida quotidiana e reveste um caráter heterogêneo. Daí a impossibilidade de reconstituir o jus praetorium com os mesmos métodos e critérios do jus civile. Pode-se dizer que o jus praetorium, em face de sua sensibilidade às contingências sociais, é oportunidade212.

O jus praetorium é uma concretização do imperium do magistrado no campo jurídico. BIONDI sublinha que a ordem emitida pelo magistrado é ato de vontade e não aplicação de um princípio jurídico pois que, se assim fosse, isto é, jus, não teria tido necessidade do imperium do magistrado para ser atuado (Scritti Giuridici, vol, I, p. 263.).

A vontade do pretor impregna o jus praetorium: o edictum permaneceria letra morta se o magistrado não aplicasse ao caso concreto o conteúdo do mesmo. Este, por si só, não vincularia nem as partes nem o pretor. Não criaria direitos entre as partes independentemente da atividade pretoriana. A interferência da vontade do pretor transparece nitidamente nas constantes expressões contidas nos editos, tais como: jubebo, dabo, veto, restituas. Do pretor emanam pois. imposições coercitivas de conduta causa cognita, isto é, em cada caso que surge em face da declaração geral contida no edito213.

No âmbito do jus honorarium é o pretor que dá impulso ao agere, prevalecendo, portanto, a atuação do magistrado sobre a da parte.

O jus honorarium reveste uma nítida marca de patrimonialidade, o que se explica pelo desenvolvimento intenso das relações econômico-sociais.

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As relações do jus praetorium não apresentam essa estrutura arcaica (assim, por exemplo, a bonorum possessio não é a hereditas do jus civile): o que encontramos aí é uma série de fatos e de ordens. Uma reconstituição aqui limita-se à descrição e análise do fato focalizado pelo pretor nas conseqüências jurídicas que decorrem da atuação deste.

Os institutos do jus civile apresentam uma estrutura arcaica e seus conceitos jurídicos podem ser facilmente reconstituídos. Exemplo: hereditas (herança) e successio (sucessão) são conceitos jurídicos cujo desenvolvimento histórico pode ser seguido.

(BIONDI, Ist., p. 67).

Exemplo: à bonorum possessio (atribuição, por ordem do

pretor, dos bens do defunto a favor de determinadas pessoas) é inaplicável a noção técnica de successio pois o beneficiário (bonorum possessor) adquire uma situação nova que é mantida graças exclusivamente à autoridade do pretor.

Depois deste rápido paralelo vamos lembrar, a título de exemplo, algumas instituições jurídicas criadas pelos pretores214:

- Interditos possessórios: destinados a assegurar a posse contra as perturbações e espoliações.

- Publiciana actio: ação que dá proteção aos que adquirem bens sem as fórmulas rigorosas exigidas pelo jus civile.

- Actio doli: ação que permite o restabelecimento de um direito lesado por fraude praticada por outrem.

- Restitutio in integrum: que anulava os atos fraudulentos causadores de lesão de direitos e restituía as coisas ao estado anterior.

- Bonorum possessio: pela qual se concedia aos parentes só por consangüinidade (cognação), embora não fossem considerados herdeiros pela lei civil, o gozo de direitos sobre a herança, dando-lhes o encargo de cumprir as obrigações do defunto.

Embora as relações reconhecidas pelo pretor apresentem analogias com as do jus civile, os clássicos mostram uma certa relutância em atribuir às primeiras a mesma denominação das segundas.

Falando de certas ações pretorianas, Gaius (4.111) lembra que o pretor imita o direito legítimo: imitatur jus legitimum. E Paulus (D. 1.1.11), ao estudar as diferentes acepções do vocábulo JUS, lembra que “não com menor razão, em nossa cidade se chama direito ao direito honorário: nec minus jus recte appellatur in civitate nostra jus honorarium. Biondi comenta, a propósito deste texto; que a denominação de jus devia encontrar certa resistência na consciência romana (...)215.

O grande período do jus honorarium situa-se no último século republicano caracterizada por profundas alterações políticas, sociais e econômicas.

A promulgação de editos continuou durante o período imperial mas a atividade criativa e inovadora do pretor viu-se cerceada, desde o início da nova fase histórica, pela preponderância do poder do soberano. Sob Adriano (117-138), os editos pretorianos e edilícios foram redigidos de forma definitiva pelo jurista Sálvio Juliano: o edictum perpetuum (assim chamado posteriormente).

“O jus honorarium como o jus civile havia terminado sua carreira. A função criadora passou às mãos dos imperadores. A distinção entre jus honorarium e jus civile manteve-se enquanto se usou o sistema judiciário com o qual estavam relacionados. Na realidade os juristas romanos todavia foram capazes de desenvolver ulteriormente o jus honorarium por meio da interpretação criadora de máximas e instituições declaradas no edictum perpetuum. Contudo, a

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importância entre a distinção dos dois corpos de direito era agora bem mais de forma que de fundo.

Quando novos métodos de administrar a justiça, que refletiam as transformações políticas acontecidas, substituíram finalmente as formas processuais republicanas, a distinção embora ainda recordada pelos teóricos perdeu todo o significado e levou-se a cabo a fusão do jus civile com o jus honorarium”216.

Jus Constitutionum

Durante o principado acrescenta-se gradativamente ao jus civile e ao jus honorarium o chamado jus constitutionum (direito das constituições), isto é, o Direito Imperial. “Os príncipes careciam de poder legislativo, tomada esta expressão em seu sentido técnico. Não obstante, suas disposições, em virtude da autoridade imperial de que emanavam, foram consideradas como fontes de Direito Obrigatório (...)” 217 . Estamos aqui diante das Constituições Imperiais (Constitutiones Principum), que serão objeto de um estudo especial no item “Fontes de Direito”.

Três textos respectivamente de Gaio, de Ulpiano e de Papiniano atribuem a esses diplomas a força de lei:

Gaio (1.5.): “A Constituição do príncipe é o que o imperador ordena mediante um decreto, edito ou epístola. Nem jamais se duvidou de que tenha força de lei, pois é através da lei que o próprio imperador assume o “imperium”.” (Constitutio principis est quod imperator decreto ve1 epistula constituit; nec unquam dubitatum .est quin id legis vicem optineat, cum ipse imperator per legem imperium accipiat.)

Ulpiano (Libro primo institutionem): “O que aprouve ao príncipe tem força de lei, pois pela lei régia, que se promulgou acerca de seu império, o povo transferiu-lhe todo seu império e poder.” (Quod principi placuit, legis habet vigorem utpote cum lege regia, quae de imperio ejus lata est, populus ei et in eum omne suum imperium et potestatem conferat - D.1.4.1.)

Papiniano (Libro secundo definitionum) enuncia as constituições imperiais entre as fontes do jus civile: “O Direito Civil é o que vem dos decretos dos príncipes” (Jus autem civile est quod ex... decretis principum. - D. 1.1.7.)

Quanto à natureza do jus constitutionum convém distinguir duas categorias de Constituições Imperiais218 . Umas se referem ao jus civile tradicional e ao jus honorarium, desenvolvendo-os principalmente a partir da fixação do edito pretoriano feita sob Adriano. Estas Constituições possuem um caráter predominantemente interpretativo. Estamos, assim, em presença de um desenvolvimento ulterior do direito civil e honorário sobre as mesmas bases e dos mesmos institutos dos dois tradicionais sistemas219.

Outras Constituições revelam uma intensa atividade inovadora por parte dos imperadores que ampliam notavelmente os horizontes jurídicos. “Estamos em presença de uma nova e autônoma neo-formação jurídica; é um novo estrato, um novo complexo jurídico que vem acrescentar-se aos precedentes”220. Digno de nota é o aparecimento de um novo sistema processual diverso do sistema per formulas (ordo judiciorum privatorum) aplicável tanto no

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campo do jus civile como do jus honorarium: Trata-se do chamádo processo extra ordinem (cognitio extra ordinem).

Lembremos que o processo extra ordinem já revela uma nova concepção segundo a qual o processo judiciário começou a ser concebido como função do Estado e como meio ou instrumento genérico de proteção e execução do Direito221.

Através da época clássica persistem os três sistemas jurídicos (jus civile, jus honorarium, jus constitutionum) formalmente distintos embora se inicie um processo de influências recíprocas, sem que contudo se chegue a uma unificação222. Ê curioso notar através dos juristas clássicos a incerteza e hesitação quando procuram inserir a nova formação legislativa no ordenamento jurídico.

Ora se incluem as Constitutiones Principum entre as fontes do jus civile (temos aqui talvez um modo de agradar ao príncipe) e se aplica assim a denominação de jus civile ao direito imperial (ver, supra, citação de Papiniano, D. 1.1.7), ora fala-se em novum jus (ver Gaio, D.5.3.3), ora contrapõe-se o jus extra ordinem ao jus civile e ao jus honorarium (ver Marcianus, D. 48.10.7). Biondi sublinha : “os juristas percebem bem que se trata de qualquer coisa de novo a que não sabem dar um nome preciso, mas acabam enquadrando-a no âmbito do jus civile que, em sua progressiva evolução, tendia a compreender todo o direito privado”223.

Na época pós-clássica é nítido o processo de unificação que se conclui sob Justiniano conforme atestam as Institutas (2, 10-3): “paulatinamente, tanto pelo uso dos homens quanto pelas formas das constituições, começou a unificar· se numa mesma consonância o direito civil e o direito pretoriano (...) (paulatim tam ex usu hominum quam ex constituionum emendationibus coepit in unam consonantiam jus civile et praetorium jungi).

Jus Gentium

A expressão jus gentium é empregada nos textos em mais de uma acepção, o que tem dado margem a interpretações diversas por parte dos romanistas. Quando às atividades comerciais dos romanos se expandiram através da bacia do Mediterrâneo, tornou-se necessária a criação de um cargo de pretor cujo titular tivesse jurisdição entre as contendas que surgiam quer entre os próprios estrangeiros, quer entre estes e os cidadãos romanos (inter peregrinos e inter cives et peregrinos): aparece assim o praetor peregrinus (242 a.C.). Perante o tribunal deste magistrado as partes tinham grande liberdade na escolha das expressões com que manifestavam suas pretensões (podiam até servir-se de intérpretes), não estando, portanto, presas às palavras sacramentais da legis acto. Estamos aqui em face de duas jurisdições paralelas: a do praetor urbanus (inter cives) e a do praetor peregrinus (inter peregrinos e interperegrinos et cives).

Este paralelismo, enfatiza Pacchioni, “foi fecundo em resultados para o processo de formação do direito privado romano”224. O antigo direito é revisado, ampliado e modernizado.

O conjunto de relações jurídicas de que participavam também os peregrini formava um “complexo concreto que tinha sua individualidade” a que os romanos referiam “um conceito doutrinal que encontramos nos escritores não jurídicos (particularmente em Cícero) e que entra plenamente na linguagem dos juristas na época de Adriano, o de jus gentium (...)”225.

Cícero (De Off. 3 .17, 69) anota que “os antepassados quiseram que uma coisa fosse o jus civile, outra o jus gentium (Maiores aliud jus civile, aliud jus gentium esse voluerunt).

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O jus gentium é um direito positivo do Estado Romano, aplicável aos estrangeiros (e aos cidadãos em suas relações jurídicas com os peregrini) e que formalmente possui suas raízes no Edito do Praetor peregrinus 226 . Em seu conteúdo o jus gentium inspira-se também em princípios e institutos estranhos ao antigo jus civile que, como anota Biondi, “não eram recebidos passivamente, mas enquadrados no sistema e remodelados pelo espírito jurídico romano com aquela elasticidade que tornava possível sua aplicação a uma pluralidade heterogênea de povos”227. O jus gentium era pois, como diz Giffard, “um direito comum a todos os povos (gentes) do mundo romano (orbis roma· nus)”228.

Cabe aqui uma indagação: qual a relação entre o jus gentium e o jus civile?

Não há dúvida de que ambos possuem um denominador comum: constituem direito privado. É o que está expresso tanto na subdivisão dicotômica (jus civile e jus gentium) como na subdivisão tricotômica (jus civile, jus gentium e jus naturale) do direito privado formuladas pelos jurisconsultos romanos.

Quanto à antítese jus gentium-jus civile, deve-se notar que a mesma só é válida sob o ponto de vista já acentuado da aplicabilidade de um às relações jurídicas entre os peregrini ou entre estes e os cives romani e da aplicabilidade do outro exclusivamente a estes últimos.

O jus gentium, em oposição ao jus civile, reconhece em suas relações jurídicas como sujeitos de direitos e deveres, seres humanos livres não-cidadãos.

De resto esta antítese se dilui quando consideramos que normas do jus gentium “foram em breve tempo acolhidas nas relações entre romanos e aplicadas também no Tribunal do praetor urbanus; neste sentido os juristas podiam dizer que, enquanto o jus civile pode não ser jus gentium, o jus gentium é necessariamente jus civile”229 . Cícero já havia observado em continuação do texto supracitado: “O que é direito civil, nem por isso é direito das gentes, mas o que é direito das gentes deve ser direito civil” (quod civile non idem continuo gentium, quod autem gentium idem civile esse debet.) Em outras palavras: num sentido lato, o jus civile incluiria também o jus gentium; num sentido restrito, jus civile seria o direito somente aplicável aos cidadãos romanos).

O jus gentium inspira-se na bona fides (fides é o dever de cumprir a palavra empenhada, imposto a todos os homens) e na aequitas e tem em mira a esfera das relações patrimoniais especialmente as mais freqüentemente empregadas nas operações mercantis: venda, locação, sociedade, mandato, depósito, comodato, tradição, etc.230 Surgem no âmbito do jus gentium institutos que têm análoga função prática à dos existentes no jus civile, porém apresentam mais elasticidade e não revestem a mesma solenidade: “novos tipos de contratos são reconhecidos pelo jus gentium, completando a série dos admitidos pelo jus civile; a sponcio, típico instituto civilista encerrado em uma fórmula solene, amplia-se na stipulatio, de aplicação universal e que preludia a noção moderna de contrato; a traditio suplanta na prática a vetusta mancipatio quando o praetor concede a Actio Publiciana, que tem a mesma função da reivindicatio”.231

A distinção prática entre jus civile e jus gentium foi perdendo a importância à medida que se ampliava o círculo de concessão da cidadania romana.

Após a Constituição Antonina (212 P.C.) sobre a extensão da cidadania romana aos habitantes livres do Império não havia mais razão para distinção prática entre os dois ramos do direito privado a não ser, como anota Biondi, em relação a algumas minorias privadas dà cidadania romana232.

Até aqui temos tratado do jus gentium como direito positivo233. A este direito refere-se Gaio (3,93 ) (que escreveu cerca de duzentos anos depois de Cícero), quando afirma que as obrigações verbais diversas da sponsio são do direito das gentes e conseqüentemente valem para

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todos os homens, cidadãos romanos ou peregrinos (ceterae vero juris gentium sunt, itaque inter omnes sive cives romanos sive peregrinos valent).

Outros textos têm dado margem a diferentes interpretações. Assim, por exemplo, o jus gentium a que se refere Gaio (1,1) quando menciona as normas peculiares a determinado povo e as normas comuns a todos os povos (partim suo proprio, partim communi omnium hominum jure utitur), se opõe a jus civile no sentido lato (isto é, o jus civile restrito acima mencionado mais o jus gentium positivo), O jus gentium então envolve uma noção amplíssima, doutrinária. Estamos aqui em face de um direito que a razão natural constitui entre todos os homens e que todos os povos como que o observam (quod vero naturalis ratio inter omnes homines constituit, id apud omnes populus peraeque custoditur vocaturque jus gentium, quasi quo jure omnes gentes utuntur). Que esta noção doutrinária de jus gentium difere do jus gentium positivo (direito aceito pelo Estado Romano e criado por seus magistrados, praetores peregrini) está bem claro quando logo a seguir Gaio (1.2) enumera as fontes do direito romano e entre elas inclui (1.6) os editos do pretor peregrino (sed ainplissimum jus est in edictis duorum praetorum): A expressão ratio naturalis denota a identificação do jus gentium (doutrinário) com o jus naturale.

Ulpiano, que adota (D.1.1.1.2) uma subdivisão tricotômica do direito privado considerando-o “coligido de preceitos naturais, de preceitos das gentes e de preceitos civis.” (privatum jus tripertitum est: collectum etenim est ex naturalibus praeceptis aut gentium aut civilibus), distingue o jus gentium do jus naturale: aquele é o de que usam todos os povos e facilmente pode ser distinguido do direito natural pois este é comum a todos os animais e o das gentes somente aos homens entre si (jus gentium est quo gentes humanae utuntur, quod a rtaturali recedere facile intelligere licet, quia illud omnibus animalibus, hoc solis hominibus inter se commune sit.)

Ainda Ulpiano (D.1.1.4) sublinha a diferença entre jus gentium e jus naturale pelo fato de este desconhecer a escravidão pois “por direito natural todos os homens nasceriam livres, não sendo conhecida a manumissão por ser desconhecida a escravidão” (cum jure naturali omnes liberi nascerentur nec esset nota manumissio, cum servitus esset incognita); uma vez porém que a escravidão apareceu pelo direito das gentes seguiu-se o benefício da manumissio (sed posteaquam jure gentium servitus invasit secutum est beneficium manumissionis).

Florentino (D.1.5.4.1) acentua a distinção entre jus gentium e jus naturale com fulcro na instituição da escravidão, que é contra a natureza (servitus est constitutio juris gentium, qua quis dominio alieno contra naturam subicitur).

Da mesma forma Trifonino (D. 12,6,64): a liberdade é de direito natural e a escravidão foi introduzida pelo direito das gentes (libertas naturali iure continetur et dominatio gentium iure introducta est...).

Hermogeniano (D.1.1.5) inclui na esfera do jus gentium uma série de fenômenos comuns a todos os homens: guerras, separação entre os povos, fundação de reinos, distinção entre as propriedades, instituição do comércio, etc... (Ex hoc jure gentium introducta bella, discretae gentes, regna condita, dominia distincta... commercium, ...)

Temos aqui uma concepção ampla e filosófica do jus gentium considerado como um denominador comum a to· dos os povos que compõem o gênero humano.

Pompônio (D.50.7.18) emprega a expressão jus gentium num sentido que corresponderia hoje ao direito internacional público: “se alguém atentasse contra um embaixador enviado pelo inimigo, isto seria considerado contra o direito das gentes, pois os embaixadores são considerados invioláveis; assim, pois, se, enquanto estiverem entre nós embaixadores de um povo estrangeiro for declarada guerra a este, respondeu-se que deviam permanecer como livres,

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pois assim o exige o direito das gentes...” (Si quis legatum hostium pulsasset, contra jus gentium id commissum esse existimatur, quia sancti habentur legati et ideo si cum legati apud nos essent gentis alicuius, bellum cum eis indictum sit, responsum est liberos eos manere; id enim juri gentium convenit esse.)

Autores não jurídicos como os historiadores Salústio e Tito Lívio usam a expressão jus gentium em sentido semelhante ao do texto acima de Pompônio.233-a

De tudo o que escrevemos sobre a noção de jus gentium parece-nos lícito extrair as seguintes conclusões:

1) A simples leitura dos textos revelam uma noção oscilante. A expressão jus gentium possui entre os autores romanos (jurídicos e não jurídicos) sentido divergente. Convém levar em consideração aqui a época em que a expressão foi usada.

2) As Institutas de Justiniano agravam essa divergência, pois ora distinguem claramente entre direito natural, direito das gentes e direito civil (De jure naturali, et gentium et civili), ora identificam jus naturale com jus gentium (jure gentium id est jure naturali).

3) Podemos considerar tranqüilamente o jus gentium como um direito positivo do Estado Romano, criado em virtude das circunstâncias históricas por imperativo do relacionamento mercantil entre romanos e peregrini e aplicado pelos magistrados romanos.

4) Diante da constatação de que alguns institutos (assim, por exemplo, a escravidão) eram encontrados em outros povos da bacia mediterrânea e sob a influência de princípios filosóficos, alguns juristas romanos assinalaram como fundamento do jus gentium a naturalis ratio aproximando-o assim do jus naturale e transformando uma formação concreta, histórica, em uma concepção doutrinária234. Cabe aqui repetir a advertência de Wolff: “Porém a crença romana de que os princípios em questão eram comuns a toda a humanidade era um erro. A maioria das doutrinas que eles consideravam como jus gentium constituía, na realidade, aquisições típicas do pensamento jurídico romano e não eram compartilhadas por outras nações. Não obstante, o conceito de jus gentium como um direito natural comum a todas as nações teve um efeito estimulante na evolução do direito romano. Em particular, ajudou os romanos a superarem a rigidez do primitivo formalismo do seu direito”235.

Jus Naturale236

Na Antígona, de Sófocles, considera-se o ato de dar sepultura um preceito natural que prevalece sobre a proibição de Creon, rei de Tebas, Antígona, com efeito, declara a Creon (que a condenara à morte por haver dado à sepultura seu irmão): “Não pensava que os decretos de um mortal como tu tivessem força suficiente para prevalecerem sobre as leis não escritas, obra imortal dos deuses”. Esta idéia da existência de leis não escritas, de um direito natural superior ao direito positivo foi transmitida aos autores romanos através dos filósofos gregos. Sócrates ensina que o homem justo deve obedecer não somente às leis que emanam do Estado mas também às leis não escritas dos deuses, cuja violação acarreta em si mesma a punição. (Xenofonte, Memorabilia, 4).

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Aristóteles distingue no Direito vigente no Estado (πολιτικον δικαιον) elementos que pertencem ao direito natural (φνσικον) e outros que têm o caráter puramente legal ou humano (νομινον, ανθρωπινον) .”O natural tem valor universal em todas as partes, tempos e regiões. É imutável (ακινητον) e não depende das opiniões nem das resoluções dos homens (πανταχον την αντην εχον δυναμιν). Ao Contrário, o direito legal é o que determina coisas, por si mesmas indiferentes, que, porém, uma vez estabelecidas por lei, adquirem valor obrigatório”237.

A lei comum (κοινον), não escrita (αγραφα), conforme a natureza (κατα φνσιν), é idêntica em todos os povos.

A moral ensinada pelo Estoicismo primitivo baseia-se na relação objetiva das ações humanas com um princípio superior ao homem : a razão eterna que rege toda a natureza e a ordem cósmica universal. Essa Razão Universal equivale a uma lei eterna, fixa e imutável. “Nessa lei eterna se baseia a lei natural, comum a todos os homens e que é anterior e superior a todas as leis positivas, civis e escritas dos Estados, pois procede da Razão ou da Lei divina imanente ao mundo e a todas as coisas”238.

Compreende-se que os pensadores e juristas romanos não tivessem ficado alheios a essas idéias. Explica-se assim o aparecimento entre os romanos da noção de jus naturale como categoria autônoma239.

Observe-se, desde logo, que essa noção não apresenta homogeneidade. Assim é que, sem pretender exaurir o assunto, podemos fixar quatro conceitos diversos de jus naturale de acordo com os textos:

1) A concepção de jus naturale que o identifica com o jus gentium doutrinário (assim, por exemplo, em textos de Cícero e de Gaio).

2) A concepção segundo a qual o jus naturale abrange os homens e os animais (Famoso texto de Ulpiano).

3) A concepção segundo a qual jus naturale é aquele que é sempre justo e bom (semper aequum et bonum) (texto de Paulo inserto no Digesto,1.1.11).

4) A concepção justinianéia influenciada pelo Cristianismo, segundo a qual o jus naturale provém da Providência Divina (texto das Institutas).

Vejamos, somente a título de exemplo, alguns textos referentes ao jus naturale que devem ser comparados com os que já citamos no item anterior a propósito do jus gentium.

Eis uns dos mais famosos textos de Cícero sobre o jus naturale: “Est quidem vera lex recta ratio, naturae congruens, difusa in omnes, constans, sempiterna. Nec vero aut per senatum aut per populum solvi hac lege possumus... nec erit alia lex Romae, alia Athenis, alia nunc, alia posthac.”

(Existe uma verdadeira lei, reta razão, conforme à natureza, difundida entre todos, constante, eterna. Não podemos ser dispensados desta lei nem pelo Senado, nem pelo povo... nem será uma lei em Roma, outra em Atenas, uma atualmente, outra no futuro (...)240. A naturae ratio (razão da natureza) é considerada por Cícero como “lex divina et humana” (Ds Off. 3,5,23).

Cícero fala nestes textos mais como filósofo que como jurista, mas, note-se, essas idéias inspiram os juristas clássicos, quando recorrem à natura e à naturalis ratio para fundamentarem ou justificarem determinados institutos. Assim, por exemplo, Gaio (I, 189) justifica a tutela dos impúberes por ser conveniente á razão natural (naturali rationi conveniens); o mesmo autor (II, 66) usa esta expressão para justificar as coisas adquiridas pela tradição e pela ocupação

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(naturali nobis ratione adquiruntur). Note-se que natura para os antigos significa realidade, essência, normalidade 241 . “Transferida para o campo jurídico, denota aquela realidade das coisas, aquela necessidade inelutável que é levada em consideração pelo direito”242.

Quintiliano (advogado e retor do Iº século de nossa era) divide o direito vigente em duas partes: justum natura e o justum constitutione; o primeiro consiste nas leis que: por natureza, são comuns a todos; o segundo nas leis que são peculiares a cada povo, com exclusão dos demais. (Instit. Orat. 7, 4, 5; 12, 2, 3.)

Sêneca (séc. I de nossa era), filósofo estóico, fala freqüentemente em jus naturae (direito da natureza) e lex naturae (lei da natureza): o jus naturae possui força própria universal porque procede da natureza. (Epist. 4. De benef. 4, 12, 17.) O texto atribuído a Ulpiano e inserto no Digesto (1.1.1.3) e nas Institutas de Justiniano (1,2. pr.) inclui os animais no âmbito do jus naturale: “jus naturale est quod natura omnia animalia docuit. Nam jus istud non humani generis proprium est, sed omnium animalium, quae in terr, quae in mari nascuntur, avium quoque commune est. Hinc descendit maris atque feminae conjunctio, quam nos matrimonium appellamus; hinc liberorum proceatio et educatio...” (O direito natural é o que a natureza ensinou a todos os animais. Pois este direito não é próprio do gênero humano, mas de todos os animais que nascem na terra, no mar, é também comum às aves. Daqui resulta a união do homem e da mulher, a que chamamos matrimônio, daqui a procriação e educação dos filhos...)

Este texto tem dado margem a dúvidas e controvérsias. À primeira vista sugere uma confusão entre a noção de instinto e a noção de direito. Na realidade, o jus naturale a que se refere Ulpiano pode ser entendido como um conjunto da leis da natureza que impele os animais (inclusive, portanto, os homens) a determinadas práticas como, por exemplo, procriação e propagação da espécie e a proteção e alimentação dos filhos. A animalidade, denominador comum entre o irracional e o homem (animal racional segundo a definição clássica) faz com que naquele e neste haja ações materialmente comuns. Na esfera do racional porém (em que os instintos são submetidos à força da vontade e à luz da inteligência) é que se situa a aptidão para exercer direitos e contrair obrigações. Aliás o próprio Ulpiano reconhece que o animal não pode ser sujeito de direitos e de deveres quando afirma (D. 9.1.1.3) que “um animal não pode obrar com culpa pois carece de razão” (nec enim potest animal injuria fecisse, quod sensu caret). A inserção do texto de Ulpiano referente ao jus naturale que a natureza ensinou a todos os animais, no Digesto e nas Institutas não significa portanto que Justiniano tenha considerado o irracional como sujeito de direitos e de deveres. Gathrein observa que: “do Corpus Juris Civilis justinianeu resulta evidente que os jurisconsultos romanos estavam muito longe de considerar os animais como sujeitos de Direito”. Os animais são, na realidade, tratados como coisas ou objetos do Direito243. Segundo um texto de Paulo, inserto no Digesto (D. 1.1.11) jus naturale é aquele que é sempre justo e bom (id quod semper aequum et bonum...) O jus naturale representaria então, no dizer de Grosso, “o ideal de adequação social do direito”244.

A expressão semper (sempre) (que alguns consideram interpolada) “proclama a eternidade do direito natural, enquanto corresponde, em todos os tempos, aos ditames do bonum et aequum, ou seja, à justiça”245. As Institutas de Justiniano (I, 2, 11) acentuam também esta perenidade do jus naturale: os direitos naturais... sempre permanecem firmes e imutáveis (naturalia jura semper firma atque immutabilia permanent) em oposição aos ordenamentos de cada civitas que muitas vezes costumam ser mudados quer pelo consenso tácito do povo, quer por outras leis posteriores (saepe mutari solent, vel tacito consensu populi vel alia postea lege lata).

A concepção de jus naturale em Justiniano tem um caráter nitidamente teológico : emana de Deus, da própria Providência Divina (naturalia... jura divina quadam providentia constituta... - Inst. I, 2, 11)246.

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O jus naturale aparece a Justiniano como algo de absoluto e primordial, coevo à formação da humanidade, anterior a qualquer legislação humana (Inst. 2,1,11). O direito natural é reconhecidamente antiqüíssimo, originou-se com o próprio gênero humano. (Palam est autem vetustius esse naturale jus, quod cum ipso genere humano rerum natura prudidit).

É curioso notar aqui, meramente a título de exemplo, alguns princípios que Justiniano aceita como afirmados pelo direito natural:

1) a igualdade de todos os homens (quod ad jus naturale attinet omnes homines aequales sunt - D. 50 .17. 32)

2) a liberdade inicial de todos os homens (jure enim naturali ab initio omnes liberi nascebantur - Inst. 1. 2. 2 ).

3) a escravidão, instituição do jus gentium, submete um homem sob o domínio de outro, contra a natureza (dominio alieno contra naturam subicitur - Inst. I, 3,2).

4) Biondi anota que a paridade geral de tratamento entre dois sexos é admitida pelo legislador já que a natureza não distingue entre homem e mulher247. (Non autem distinguimus de filiis sive masculi sive foeminae sint. Sicut enim natura nihil circa hoc arte ratiocinatur...) (Nov. 18,5).

Jus Singulare e Jus Communae

As normas jurídicas são formuladas com a configuração de princípios ou regras gerais aplicando-se às pessoas, ás coisas e às relações jurídicas em geral. Ulpiano (D. 1. 3. 8) lembra a generalidade que, em princípio, caracteriza a norma jurídica: Jura non in singulas personas sed generaliter constituuntur. Estamos aqui em face do chamado jus commune mencionado em diversos textos.

Quando situações ou circunstâncias especiais pedem normas particulares que constituem exceção ao jus commune, temos o chamado jus singulare que se aplica a determinada categoria de pessoas, de coisas ou de relações jurídicas248. Paulo (D. 1. 3 .16) assim o define: “direito singular é aquele que foi introduzido contra o curso normal do direito pela autoridade dos que o constituem por motivo de alguma utilidade” (Jus singulare est quod contra tenorem rationis, propter aliquam utilitatem, auctoritate constituentium introductum est)249.

Enquanto o Jus commune inspira-se na lógica jurídica, na razão do direito (ractio juris), em seu curso normal o Jus singulare fundamenta-se na utilidade (Propter aliquam utilitatem). O vocábulo utilitas aqui, Porchat (Curso elementar, p. 165), “é empregado com o valor de necessitas”.É o que se depreende do texto de Paulo (D. 50 .17 .162): O que se admitiu como solução de necessidade não deve converter-se em regra. (Quae propter necessitatem recepta sunt, non debent in argumentum trahi). Do jus singulare não se deve pois extrair conseqüências que alterem o jus commune além do que é imposto pela utilitas ou necessitas.

Neste sentido vale citar ainda Paulo (D. 50 .17 .141 pr.): O que se admitiu contra a razão do direito não deve ser levado até suas últimas conseqüências” (Quod contra rationem juris receptum est, non est producendum ad consequentia)250. Evite-se confundir com jus singulare aquelas normas que, em virtude das situações especiais que elas tutelam, atribuem direitos ou impõem deveres somente a um número restrito de pessoas ou até mesmo a uma só pessoa. Tais

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são, por exemplo, as normas que estabelecem as atribuições das diversas magistraturas ou aquelas que determinam a posição dos filhos de família (filiifamilias).

- Como jus singulare, podemos citar, a título de exemplo:251

1) Os preceitos que proibiam doações entre marido e mulher (o jus commune admitia a admissão e eficácia das doações ).

2) A simplificação das normas relativas às formalidades testamentárias no testamento dos militares em campanha.

3) A inalienabilidade dos imóveis dotais itálicos ou pertencentes a menores sob tutela.

4) O credor por despesas funerárias não estava sujeito ao rateio do produto da herança do devedor insolvável; tinha preferência no pagamento (D. 11.7.45 : impensa funeris sempre ex hereditate deducitur, quae etiam omne solet praecedere…)

A certas disposições do jus singulare dá-se especialmente, no direito justinianeu, a designação de beneficio. Assim, por exemplo, chama-se beneficium competentiae a concessão feita ao devedor de conservar o necessário para sua subsistência (só responderá pelo débito dentro de certos limites, in id quod facere possunt)

Cabem aqui algumas observações sobre o privilegium. O significado originário deste vocábulo é o de “norma emanada para prejuízo de pessoas determinadas, especialmente no sentido de aplicar contra qualquer um uma pena não prevista por leis anteriores ou de levar um tribunal a julgar fatos cometidos em época na qual não constituíam crime”252. A lei das XII Tábuas (tábua IX) proibiu os privilégios no sentido acima explicado: privilegia ne inroganto.

Na linguagem dos juristas clássicos o vocábulo assumiu o sentido de norma constituída em favor de determinadas classes ou grupos de pessoas. Pouco a pouco “a noção de privilégio vai-se aproximando da de beneficium e em alguns casos é tarefa difícil determinar em que medida as normas que derrogam regras gerais se inspiram em motivos elevados de justiça e podem chamar-se jus singulare, ou em prerrogativas abusivas de indivíduos, cargos ou classes sociais e constituem privilegia”253.

Jus publicum e Jus privatum

A antítese jus publicum e jus privatum é mais importante para os juristas modernos do que o foi para os jurisconsultos romanos. Estes, como observa Arangio Ruiz, “não fizeram objeto de pesquisa profunda nem erigiram em sistema outra matéria a não ser a do direito e do processo privado, a única que se apresentava a seu espírito quando falavam de jus”254. (Ver, a propósito, a divisão de Gaio 1. 8: omne autem jus quo utimur vel ad personas pertinet, ve1 ad res veI ad actiones).

Embora através dos tempos mais antigos da História Romana seja possível traçar com nitidez um paralelo entre institutos de direito público e de direito privado como o fez Bonfante255 em magistral estudo (La progressiva diversificazione del dirito pubblico e privato), forçoso é confessar que à expressão jus publicum só em raríssimos textos pode ser atribuído um sentido que se aproxime ao que modernamente se define como direito publico256.

Pompônio, estudando (século II p. C.) os jurisconsultos romanos, enumera o doutíssimo Túbero que se dedicava ao estudo do direito público e privado, e que escreveu numerosas obras257.

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O mais importante texto sobre a distinção entre jus publicum e jus privatum é atribuída a Ulpiano (séc. III p. C.). Depois de tecer considerações em torno da definição de Celsus, Ulpiano formula a famosa divisão do direito: “Hujus studii duae sunt positiones, publicum et privatum. Publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem: sunt enim quaedam publice utilia quaedam privatim” (D. 1.1.1. 2 ).

“Duas são as posições deste estudo: o público e o privado. Direito público é aquele que se refere à organização do Estado Romano; direito privado é o que (se refere) à utilidade dos particulares, pois há certas coisas de utilidade pública e outras de utilidade privada.”

Nas Institutas de Justiniano (1.1. 4) encontramos reproduzida a mesma distinção: “Hujus studii duae sunt positiones, publicum et privatum. Publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat, privatum quod ud singuloruma utilitatem pertine.” “Duas são as posições deste estudo: o público e o privado. O direito público é aquele que se refere à organização do Estado Romano; o direito privado é o que concerne à utilidade dos particulares”258.

A interpretação deste texto de Ulpiano tem dado margem a divergências. Parecem-nos oportunas as seguintes observações:

1) Jus publicum e Jus privatum, anota Arias Ramos, não são contrastes essenciais mas pontos de vista (posições - positiones, diz Ulpiario) “que dependem do interesse tutelado que se apresenta ou que aparece como predominante ou preferente”.

Matos Peixoto comenta259:

“O critério dessa distinção assenta, pois, no interesse: de um lado, o interesse do Estado direito público; do outro lado, o interesse dos indivíduos: direito privado. Esse critério, apesar de geralmente seguido ainda hoje, tem sido criticado, porque, sendo o Estado composto de indivíduos, não há direito que interesse àquele sem interessar a estes ao mesmo tempo e vice-versa. Encarada de frente esta crítica é irrespondível; mas não há ou, pelo menos, ainda não se descobriu critério mais exato. Pode-se apenas atenuar o defeito baseando a distinção na preponderância do interesse: a norma será de direito público, quando o interesse do Estado estiver em primeiro plano e, em segundo plano, o do indivíduo; será de direito privado, quando o interesse do indivíduo ocupar o primeiro plano e o do Estado, segundo”260.

2) O Jus publicum, como direito que diz respeito ao Estado, abrange, na concepção romana, campo mais vasto que na concepção moderna. Assim, por exemplo, quando o Estado praticava atos de ordem patrimonial que, por sua natureza, se situavam no campo do Direito privado (compra e venda, arrendamento, empréstimo) nunca se colocava em condição de igualdade com os particulares: não atuava como particular mas como soberano. Assim é que as relações jurídicas resultantes, ao contrário do que acontece no direito moderno, filiavam-se no direito público, por serem manifestações de atividade do Estado, que era soberano”261.

3) Em muitos textos a expressão jus publicum designa antes uma norma proveniente do Estado (em vez de pertinente ao Estado) “em antítese às regras que as partes fixam à conduta própria ou de outrem nos negócios jurídicos”262. Neste sentido Papiniano (D. 2 .14. 38 ) “usa da expressão jus publicum para indicar todas aquelas normas invariáveis, mesmo do direito privado, que em virtude do interesse público que encerram, não podem ser mudadas pelos pactos dos particulares: jus publicum privatorum pactis mutati non potest”263.

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No mesmo sentido Ulpiano (D. 50 .17. 45 .1) emprega a expressão jus publicum quando diz que a convenção dos particulares não derroga o direito público: privatorum conventio juri publico non derogat.

Vejamos três exemplos que ilustram este sentido de jus publicum264:

1) Concernente ao instituto dotal existe uma série de disposições legais que visam conservar intacto o dote para a mulher e às quais esta não pode renunciar porque interessam sobremaneira ao Estado a fim de que a mulher possa casar mais facilmente: “rei publicae interest mulieres dotes salvas habere propter quas nubere possunt” (D. 23, 3, 2).

2) O pai não pode isentar o tutor, nomeado em testamento, da prestação de contas da tutela pois é do interesse do Estado a conservação do patrimônio do pupilo: interest rei publicae rem pupilli salvam fore265.

3) No que tange ao poder de fazer testamento, as respectivas regras jurídicas (que se exercem na esfera do direito privado) são consideradas jus publicum como ordenamentos que interessam altamente à coletividade. Assim é que Papiniano (D. 28.1.3) afirma : a capacidade de fazer testamento não é de direito privado mas de direito público (testamenti factio non privati, sed publici juris est).

Resumindo os dois sentidos da expressão jus publicum aqui estudados podemos dizer que no primeiro sentido (quod ad statum rei Romanae pertinet) a distinção entre jus publicum e jus privatum repousa no critério da matéria regulada; no segundo sentido (ordenamento que interessa à comunidade, à coletividade) a distinção se apóia no critério da revogabilidade ou não da norma por livre iniciativa dos particulares266.

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Capítulo VI

FATOS E ATOS JURÍDICOS

NOÇÕES GERAIS

Fatos jurídicos são “aqueles aos quais o ordenamento atribui a virtude de produzir efeitos de direito, ou seja: eventualidades capazes de provocar a aquisição, a perda e a modificação de um direito”267.

Os fatos jurídicos podem ser divididos em duas categorias: fatos naturais e fatos voluntários Os primeiros são “fatos da natureza capazes de produzir conseqüências na esfera jurídica de uma pessoa, como a morte, a aluvião, a queda de um edifício”268. Os segundos são “ações humanas devidas a um ato de vontade, quer esta se dirija ou não a provocar efeitos jurídicos”269.

Os fatos voluntários chamam-se propriamente atos jurídicos. Biondi divide-os em três espécies270:

Atos materiais, que, embora voluntários, não consistem em declarações de vontade. Tais são, por exemplo, o encontro de um tesouro, o abandono de uma coisa, etc.

Atos voluntários, que se executam por meio de uma declaração de vontade que se dirige a fins reconhecidos e protegidos pelo ordenamento jurídico. Assim, por exemplo, o matrimônio, o testamento, a aceitação de uma herança, a venda, etc. A estes atos se deu a designação de negócios jurídicos (Rechtsgeschäft dos alemães).

Atos voluntários, que se executam em antítese ao ordenamento jurídico. Temos aqui os atos ilícitos, atos que a lei reprova e reprime.

NEGÓCIO JURÍDICO

O negócio jurídico é uma categoria abstrata elaborada pela dogmática moderna, sobretudo alemã, e compreende várias e heterogêneas figuras jurídicas271.

De Ruggiero define negócio jurídico como “uma declaração de vontade do indivíduo tendente a um fim protegido pelo ordenamento jurídico”272.

O negócio jurídico, como categoria geral que reúne numerosos tipos diversos, conta com dois elementos fundamentais: uma ou mais de uma declaração de vontade e o próprio fim, “isto é, a condição objetiva requerida pelo direito para dar atuação à vontade”273.

Depois desta sumária exposição sobre a noção de fatos e atos jurídicos, convém fazer algumas observações a respeito da posição do Direito Romano em face do assunto.

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1. Antes de mais nada deve-se enfatizar que “a categoria do negócio jurídico é estranha aos romanos, os quais conhecem só atos típicos, tendo cada um a própria estrutura e regime jurídico”.274

2. Uma das características da mentalidade jurídica romana era a “tendência para concretitude e tipicidade; as categorias gerais não são nem o ponto de partida nem o ponto de chegada da evolução jurídica”275.

3. Sublinhe-se, contudo, que as generalizações não estão ausentes dos textos jurídicos. Assim, por exemplo, o conceito de contractus abrange vários atos que produzem obligatio; o pactum ou conventio constitui uma vasta categoria, e os romanos consideram a conventio como generale verbum D. 2.14.1.3: Conventionis verbum generale est ad omnia pertinens (...). Outras expressões de caráter geral são, por exemplo: actus, actio, etc... Quanto ao vocábulo negotium aparece não com o sentido moderno mas com o significado de negócio lícito em oposição a delictum, ou a donatio”276.

4. Embora a noção de negócio jurídico, como a entendem os modernos, falte nos textos romanos, encontram-se, nestes, elementos suficientes para a elaboração de uma teoria do negócio jurídico, o que efetivamente foi feito pelos pandectistas alemães do século XIX. Tendo em vista que “essa teoria foi elaborada com base nos textos romanos e que ela põe em relevo, de modo sistematizado, conhecimentos jurídicos de que os jurisconsultos romanos tiveram intuição, tanto que emanam de suas obras, os autores modernos geralmente a utilizam no estudo do direito romano”277.

5. Já vimos que a declaração da vontade é elemento fundamental do negócio jurídico. Cabem aqui breves comentários ao papel da vontade do Direito Romano. “O ponto de partida romano não considera a vontade como produtora de efeitos jurídicos. O que produz conseqüências na órbita do direito é o agere; não basta querer, mas é necessário agir, desenvolver uma atividade (...)278. Compreende-se assim o emprego de termos como actus, actio, agere. Kaser sublinha o papel do formalismo jurídico: “No antigo Direito Romano, como em todos os direitos antigos, existe a peculiar crença em que os vínculos jurídicos somente podem criar-se com a observância de gestos e ações rituais. Este primitivo formalismo brota do afã de plasticidade que os antigos sentem. Esta necessidade do rito é mais intensa em Roma, graças à circunstância de que a custódia do Direito, na Antigüidade, se confiou aos sacerdotes aos quais era familiar o ritualismo, pela constante relação que mantinham com seus deuses”279.

6. O papel da vontade nos negócios jurídicos evidentemente evoluiu. Os negócios que se efetuam no âmbito do jus gentium fogem ao formalismo: “neles domina em toda a plenitude a vontade; assim a traditio, os contratos consensuais”280. Compreende-se assim Que, já antes da época clássica, se inicie “um movimento tendente a dar relevo à vontade em todos os negócios, devido, em parte, à própria interpretatio prudentium, mas sobretudo ao pretor, o qual, mediante a exceptio doli ou pacti ou outros remédios, torna sem nenhuma eficácia o negócio a que não corresponda a vontade ou o mantém eficaz em virtude daquilo que seja efetivamente querido”281. Nesta evolução a influência da retórica helenística, por sua vez influenciada pela filosofia, tem a sua parte. “A oratória grega conquistou em Roma, entre os anos 150 a 50 a.C., um elevado prestígio, e foi Cícero a encarnação romana mais conspícua desta oratória. Enquanto os juristas romanos da época defendiam a rigorosa submissão ao valor objetivo das palavras, não só como garantia da segurança do tráfico jurídico, mas também por sua crença no valor educativo da forma, os

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oradores forenses erigem-se em paladinos da interpretação da vontade. O êxito que lhes estava reservado contribuiu para o relaxamento dos rígidos princípios sustentados pelos juristas”282. Vale recordar aqui a causa Cicriana (93 a. C.) em que L. Licínio Crasso, o mais famoso orador de seu tempo, defendendo a interpretação de um testamento segundo a vontade do testador, triunfou sobre o jurista Q. Mucius Scaevola. Chegou-se assim no Direito Romano a uma fase em que “a vontade está no centro do ordenamento jurídico, como elemento propulsor de qualquer efeito na órbita do direito”283.

REQUISITOS GERAIS DO NEGÓCIO JURÍDICO

Os requisitos gerais dos negócios jurídicos são: capacidade das partes, objeto lícito e manifestação da vontade. Quanto à forma pré-constituída, deve-se notar que constitui requisito essencial nos atos solenes.

Capacidade das partes - As partes devem ter capacidade de direito e capacidade de fato. Estas noções são minuciosamente estudadas quando se focaliza a Pessoa Física ou natural. Lembremos apenas que “personalidade jurídica é a potencialidade de adquirir direitos ou de contrair obrigações; a capacidade jurídica é o limite dessa potencialidade”284. Capacidade de fato é “a aptidão para praticar, por si só, atos que produzam efeitos jurídicos”285. Observe-se que para a realização de um negócio jurídico é necessária a legitimação da parte, “isto é, que esta preencha as exigências que a norma jurídica impõe para que se considere habilitada a praticar determinado negócio jurídico”286.

Objeto licito - O objeto (prestação ou abstenção) do negócio jurídico deve ser lícito e possível:

1. Será inútil a estipulação se alguém tiver estipulado dar uma coisa naturalmente não-existente ou que não pode existir, por exemplo : Stico, já morto, mas que supunha vivo; ou um hipocentauro, que não pode existir. (At si quis rem, quae in rerum natura non est aut esse non potest dari stipulatus juerit, veluti Stichum, qui mortuus sit, quem vivere credebat, ut hippocentaurum, qui esse non possit, inutilis erit stipulatio - Inst. 3.19.1).

2. Da mesma forma, se for estipulada sob uma condição irrealizável, como a de tocar com o dedo o céu, a estipulação é sem valor. (Item si quis sub ea condicione stipuletur quae existere non potest,”veluti si digito coelum tetigerit”, inutilis est stipulatio - G. 3.98.)

3. Não vale o prometido por causa torpe, por exemplo, de quem prometeu haver de cometer um homicídio ou um sacrilégio. (Quod turpi ex causa promissum est; veluti si quis homicidium vel sacrilegium facturum promittat, non valet - Inst. 3.29.24.)

Manifestação da vontade - Esta manifestação deve ser efetivada de tal modo que possa ser percebida. Celso (D. 33 .10. 7. 2) adverte: embora a intenção de quem falou seja anterior e de maior relevância que a voz, contudo não se concebe que alguém diga algo sem expressar-se pela voz (sem a voz). (Et si prior atque potentior est quam vox mens dicentis, tamen nemo sine voce dixisse existimatur.)

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Observe-se que nos negócios não solenes a vontade pode manifestar-se de várias maneiras, quer por palavras proferidas, quer por palavras escritas, quer ainda mediante gestos que expressem a intenção, como, por exemplo, um aceno (nutus), um sinal com o dedo (digito ostendere). Às vezes pode-se caracterizar a manifestação da vontade por um comportamento inequívoco de uma pessoa: um herdeiro estranho paga um débito da herança que lhe é deferida. Este comportamento como herdeiro (pro herede gestio) indica que aceitou a herança.

Que dizer do silêncio? Importa, às vezes, em manifestação da vontade? “O silêncio apresenta hipóteses tão diferentes que não é possível resumi-las sob esquemas rígidos”.287

Paulus (D. 50.17.142) advertiu: quem cala certamente não confessa, mas é verdade que também não nega (qui tacet non utique fatetur sed verum est eum non negare). Para Biondi este texto, que no contexto genuíno se refere à confessio in jure (confissão na presença do magistrado), “não resolve a questão, já que não diz se o silêncio importa ou não, consentimento”.288

Em alguns casos o silêncio é acompanhado por um comportamento passivo que, pela natureza do ato e pelas circunstâncias presentes, pode ser interpretado como manifestação tácita.

Os juristas romanos dão ao silêncio um valor de assentimento em uma série de atos relacionados com a vida da família. Assim, por exemplo, com relação aos esponsais a filha de família devia consentir (D. 23.1.11: sponsalibus filiam familias consentire oportet), mas “entende-se que consente a que não se opõe à vontade do pai” (D. 23.1.12: Sed quae patris voluntati non repugnat consentire intelligitur). O mesmo ocorria com o filius-familias que não impugnava a adoção ou a emancipação.

Note-se que às vezes o non contradicere faz parte do ritual e equivale a aceitar, a consentir. É o que ocorre com o alienante em face do adquirente na mancipatio e na in jure cessio289. A vontade do alienante se manifesta pela sua presença e pelo fato de não contraditar. Na in jure cessio, por exemplo, o adquirente reivindica perante o magistrado, a coisa que deseja adquirir; o alienante não contesta a reivindicação.

Vicios da vontade

A vontade manifestada pode não corresponder à vontade real em virtude da existência de algum dos chamados vícios da vontade: erro (error), dolo (dolus malus) e coação (vis ou metus).

Erro - Os romanos distinguiam entre erro de fato e erro de direito (D. 26.6.1.: Ignorantia vel facti vel juris est)290.

Erro de fato é “a falsa noção a respeito de uma pessoa ou coisa”291. Erro de direito “é a ignorância, o falso conhecimento ou a errada interpretação de uma norma jurídica”292.

Paulo (D. 22. 6. 9. pr.) observa que o erro de direito prejudica e o erro de fato não prejudica (Regula est juris quidem ignorantiam cuique nocere, facti vero ignorantiam non nocere)293.

Como a lei é obrigatória para todos, a presunção é de que todos a conheçam, segundo o brocardo extraído de textos romanos: nemo jus ignorare censetur. Admitiam-se, entretanto, exceções a esta regra, em favor de diversas categorias de pessoas por razões também diversas:

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1. Aos menores de vinte e cinco anos permitia-se o erro de direito (minoribus vinginti quinque annis jus ignorare permissum est. D. 22.6.9.pr.). A razão era a idade (propter aetatem).

2. Às mulheres também se permitia o erro de direito em alguns casos (et in feminis in quibusdam causis. D.22.6.9.pr.). A razão era a debilidade do sexo (propter sexus infirmitatem).

3. Aos militares se desculpava em certos casos o erro de direito (jus ignorare potest. D.22.6.9.1.). Note-se que a condição de miles era privilegiada.

4. Aos rústicos (rustici) a desculpa repousa na própria rusticidade (ob rusticitatem. D.2.13.1.5.).

O erro de fato pode incidir sobre pessoa ou sobre coisa. acidental. O primeiro “obsta à formação do ato jurídico, por excluir a manifestação da vontade real” (D. 39.3.20.: nulla erdim voluntas errantis est). O segundo “vicia essa vontade mas não a exclui”294 . Na realidade” a influência do erro de fato na validade do negócio jurídico variou através da história do Direito Romano.295

Vejamos, a seguir, algumas modalidades de erro de fato, de acordo com os textos.296

Error in negotio - recai sobre a própria índole do negócio jurídico. Exemplo : “se eu der uma soma em depósito e tu a recebes como mútuo; não há depósito nem mútuo”. (D. 12.1.18.1.: Si ego quiasi deponens tibi dedero, tu quasi mutuam accipias, nec depositum, nec mutuum est.) Uma parte queria praticar um ato e a outra queria praticar ato diferente.

Error in persona - recai sobre a identidade da pessoa “a quem o ato favorece ou com quem se contrata”297. Exemplo: Se um testador, querendo designar alguém herdeiro, designa outro por engano. (D. 28.5.9.pr.: Quotiens volens alium heredem scribere alium scripserit in corpore hominis errans...) Não é herdeiro o que foi designado porque não era essa a intenção nem o que se pretendeu designar porque não foi designado (placet neque eum heredem esse qui scriptus est, quoniam voluntate deficitur, neque eum quem voluit, quoniam scriptus non est). Note-se que a nulidade do ato decorre do fato de ser visada uma determinada pessoa (o negocio jurídico é praticado intuitu personae). “Entretanto, quando a consideração da pessoa não é essencial, o certo a respeito dela é indiferente, exemplo: o negociante vende a dinheiro a quem quer que seja, pelo que, se em certo comprador lhe parece reconhecer Pedro em vez de Paulo, isso não afeta a validade do ato”298.

O erro sobre o nome (error nominis) da pessoa ou da coisa, como que uma ou outra possa ser identificada não implica a invalidade do negócio jurídico. Inst. 2.20.29.: Si quis in nomine... erraverit, si de ·persona constat, nihilominus valet legatum... Se alguém errou no nome… , sendo conhecida a pessoa, nem por isso deixa de valer o legado. D. 18.1.9.1.: nihil enim facit error nominis, cum de corpore constat: nada influi o erro na denominação, quando se identifica o objeto.

Error in corpore – recai sobre a identidade da coisa. Exemplo: “Se o estipulante se refere a uma coisa e o promitente a outra, não se contrai nenhuma obrigação, como se nenhuma resposta desse a uma pergunta; por exemplo, se alguém estipula de ti um escravo Stico e tu pensas que se trata de Pânfilo, que julgas chamar-se Stico” (Inst. 3.19.23.: Si de alia re stipulator senserit, de alia promissor, perinde nulla contrahitur obligatio, ac si ad interrogatum responsum non esset, veluti si hominem Stichum a te stipulatus quis fuerit, tu de Pamphilo senseris, quem Stichum vocari credideris).

Error in substantia - “recai sobre a matéria de que a coisa é feita”299. Biondi anota que a substantia rei “não é dada pela constituição química da coisa mas pela função econômico-social

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que tem a coisa na vida comum; é a diversa função social que faz divergir essencialmente um escravo de uma escrava, um quadro de outro, o original de uma cópia.”300 Estamos aqui em face de assunto controvertido.

Os juristas clássicos divergiam na apreciação das conseqüências jurídicas do error in substantia. Para os seguidores da doutrina peripatética como, por exemplo, Marcelo, este error não implicava nulidade pois consideravam o critério decisivo de identificação das coisas a forma e não a matéria. Para os que seguiam a doutrina estóica (como, por exemplo, Ulpiano) a matéria era essencial para a identificação das coisas e não a forma (ver Matos Peixoto, obra citada, p. 393 ).

Ulpiano (D. 18. 1. 9. 2.) comenta : “Dai indaga-se se há compra e venda quando não se erra no próprio objeto mas na substância; por exemplo, se for vendido vinagre por vinho, bronze por ouro, ou chumbo por prata ou outro objeto que pareça prata. Marcelo escreveu que há compra e venda porque se consentiu no objeto, embora se haja errado na matéria.” (Inde quaeritur si in ipso corpore non erratur, sed in substantia error sit, ut puta si acetum pro vino veneat, aes pro auro ve1 plumbum pro argento vel quid aliud argento simile, an emptio et venditio sit. Marcellus scripsit libro sexto digestorum emptionem esse et venditionem, quia in corpus consensum est, etsi in materia sit erratum.) Ainda Ulpiano (ibidem) nega a nulidade do negócio se foi comprado vinagre feito de vinho (si modo vinum acuit) em vez de vinho; o negócio porém é nulo se foi adquirido como se fosse vinho um vinagre não feito de vinho (si vinum non acuit, sed ab initio acetum fuit). Neste caso parece que foi vendida uma coisa por outra (aliud pro alio venisse videtur). Nos demais casos, conclui Ulpiano, “toda vez que há erro quanto à matéria, não há venda (o ato é nulo): (in caeteris autem nullam esse venditionem puto, quotiens in materia erratur).

Error in quantitate - Trata-se de erro quanto à quantidade da coisa. As opiniões aqui não são uniformes. Vejamos um exemplo : D. 19.2.52.: Se te alugo uma herdade por dez mil sestércios e se tu crês que tomaste de aluguel por cinco mil, o contrato é nulo (Si decem tibi locem fundum, tu autem existimes quinque te conducere, nihil agitur); mas se eu entendesse que te alugava por menos e tu (entendesses) que tomavas de aluguel por mais, certamente o aluguel não será maior do que eu pensei (sed et si ego minoris me locare sensero, tu pluris te conducere, utique non pluris erit conductio, quam quanti ego putavi).

Dolo Os antigos juristas romanos distinguiam entre dolus malus e dolus bonus. O primeiro, segundo Lábeo é definido como “a malicia, engano, maquinação empregada para valer-se da ignorância de alguém, para enganálo ou fraudá-lo. (D. 4.3.1.2.: Labeo autem... sic definiit dolum malum esse omnem calliditatem, fallaciam, machinationem ad circumveniendum, fallendum, decipiendum alterum adhibitam.) Dolus bonus é “uma certa astúcia, socialmente tolerada como a que se usa contra o inimigo e contra os ladrões ou a que o vendedor ou o locador usa para melhor vender ou locar a coisa”301. (D. 4.3.1.3.: os antigos mencionavam também dolo bom e davam este nome à astúcia sobretudo quando alguém maquinava algo contra o inimigo ou contra o ladrão: veteres dolum etiam bonum dicebant et pro sollertia hoc nomen accipiebant, maxime si adversus hostem latronemve quis machinetur).

O dolus malus é “o único que tem relevância jurídica”302.

Nos judicia bonae fidei (ações de boa fé, aquelas em que o judex aprecia os fatos ex fide bona, isto é, de acordo com a boa fé) levava-se em consideração o dolus malus. Valia aqui o princípio: a boa fé é incompatível com a fraude e o dolo. (D. 17.2.3.3.: fides bona contraria est fraudi et dolo.) Na stipulatio (contrato verbal de ampla aplicação) o credor pode precaver-se contra o dolo por parte do devedor por meio da cláusula doli em que o segundo assegura a ausência de dolo presente e futuro.

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O pretor Aquilius Gallus (séc. I a.C.) introduziu a actio doli (ação de dolo) que configura o dolus como delito privado.303

A exceptio doli foi introduzida pelo pretor em favor da parte lesada e oponível contra a ação que surgisse em virtude de negócio doloso.

Lembremos que se ambas as partes agissem dolosamente, nenhuma delas podia reclamar contra a outra. (D. 4.3.36.: si duo dolo malo fecerint, invicem de dolo non agent).

Coação (Vis, metus)

Distingue-se entre coação física (vis corpori illata) e coação moral (vis animo illata). A primeira consiste em forçar fisicamente (vis absoluta) alguém a praticar contra sua vontade um determinado ato; exclui a vontade da vítima e impede assim a existência do próprio negócio jurídico. A segunda (vis compulsiva ou impulsiva) consiste em “ameaça à vida, à integridade física, à liberdade, à honra da própria pessoa ou de pessoa que lhe é cara”304. Os romanos usam dois vocábulos para exprimirem a coação moral: metus e vis; metus é a situação de temor em que se encontra uma pessoa por efeito das ameaças; vis é a própria ameaça.305

“Entretanto nem toda violência moral é suficiente para determinar a anulabilidade do ato jurídico; são necessárias umas tantas condições: que seja grave, atual e capaz de impressionar um homem ponderado. Se a ameaça tem por fim compelir o ameaçado a cumprir um dever jurídico (ex.: pagar uma dívida), não vicia o ato, embora possa ser punida criminalmente306.

Lábeo (D. 4.2.5.) diz que por metus se deve entender não um temor qualquer mas o de um mal maior (metum accpiendum Labeo dicit non quemlibet timorem sed maioris malitatis).

ELEMENTOS ACIDENTAIS DO NEGÓCIO JURÍDICO307

Entre os elementos acidentais do negócio jurídico (que existem em número indeterminado) vamos lembrar: o termo (dies), a condição (condicio) e o modo (modus). Observe-se que esses elementos acidentais não são elementos de importância secundária pois fazem parte integrante do negócio jurídico em concreto. Essa inclusão é voluntária e empresta ao ato uma fisionomia particular. Biondi (obra citada, p. 194) sublinha que “se fala também de limitações voluntárias do efeito do negócio pois que visam limitar as conseqüências legais do ato”. Evidentemente determinado elemento acidental não será adicionado se a natureza do ato não o comportar ou se a lei não o permitir.

Termo - é “aquele momento a partir do qual o negócio jurídico deve começar a produzir os seus efeitos ou deve deixar de os produzir”308.

Tem por fim fixar a duração dos efeitos da relação, fazendo-os começar ou fazendo-os cessar num dado dia309. Distingue-se, assim, entre termo suspensivo ou inicial (a partir dele o direito pode ser exercido) e termo resolutivo ou final (com seu advento, o direito se extingue). Exemplo de termo inicial: a data de vencimento de uma dívida. Exemplo de termo final : o dia em que termina uma locação310.

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Os romanos designavam o termo inicial e termo final respectivamente com as expressões ex die e in diem. Os antigos romanistas diziam respectivamente dies a quo (termo inicial, dia a partir do qual) e dies ad quem (termo final, dia para o qual se vai).

Paulo (D. 44.7.44.1.) assim distingue o termo (dies): “Acerca do termo há um duplo aspecto: ou a obrigação começa num termo (ex die) ou existe até que chegue o termo (in diem); termo inicial por exemplo (a estipulação): “prometes dar nas calendas de Março” tem por efeito que não pode ser exigida antes do termo; termo final, porém, por exemplo: “prometes dar até as calendas?” (Circa diem duplex inspectio est: nam vel ex die incipit obligatio aut confertur in diem; ex die velut Kalendis Martiis dare spondes? Cujus natura haec est, ut ante diem non exigatur; ad diem autem “usque ad Kalendas dare spondes?”.)

Vale aqui lembrar que “os juristas romanos não admitiam termo resolutivo com relação a certos direitos ou situações jurídicas (assim, o direito de propriedade, o direito de servidão, a qualidade de herdeiro), que não podiam ter, em Roma, duração limitada no tempo pela vontade das partes”311.

Papiniano (D. 28.5.34.) diz que “a herança não pode ser dada com termo inicial ou termo final, mas, posto de lado o vício do prazo, mantém-se a instituição” (Hereditas ex die ve1 ad diem non recte datur, sed vitio temporis sublato manet institutio).

O lapso de tempo decorrido entre a data do negócio jurídico e a superveniência do termo chama-se prazo. Quando o prazo começa a correr, usa-se a expressão dies cedit; quando se extingue, diz-se dies venit. É o que nos ensina Ulpiano (D. 50.16.213. pr;): “Cedere diem” significa que começa a ser devida a quantia; venire diem significa que chegou o dia, em que se pode exigir a quantia” (“Cedere diem” significat incipere deberi pecuniam; “venire diem” significat eum diem venissse quo pecunia peti possit).

O termo, em geral, é fixado com base em uma data do calendário (Kalendis Martiis) ou em um acontecimento futuro mas certo (cum morieris). A futuridade e infasibilidade do evento constituem características essenciais do termo. Note-se, contudo, que pode ser incerto o tempo em que esse evento se realiza.312

Condição (condicio) - “é o evento futuro e incerto de que depende o nascimento ou a extinção de um direito”.313

Exemplo: “se um navio vier da Ásia” (si navis ex Asia venerit).

Não se consideram condições:

1. As cláusulas que, apesar de se assemelharem às condições, referem-se a acontecimentos passados ou presentes embora desconhecidos pelas partes.

“As condições que se referem a uma época passada ou presente, por exemplo, prometes dar-me se Tício foi cônsul ou se Mévio estiver vivo, Ou invalidam imediatamente a obrigação ou não a procrastinam. Na verdade, se o fato se não realiza, a estipulação é nula, e se o fato se realiza, a estipulação vale desde o momento em que se fez, porquanto um fato certo na ordem dos acontecimentos não retarda a obrigação, ainda que seja incerto relativamente a nós.”

(Inst. 3.15.6.: Condiciones, quae ad praeteritum vel ad praesens tempus referentur, aut statim infirmant obligatianem aut omnino non differunt: veluti si Titius consul fuit vei si Maevius vivit dare spondes? Nam si ea ita non sunt, nihil valet stipulatio: sin autem ita se habent, statim valet. Quae enim per rerum naturam certa sunt, non morantur obligationem, licet apud nos incerta sint.)

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2. As chamadas condições tácitas ou implícitas (condiciones quae tacite insunt, na linguagem das fontes ou condictiones juris, na linguagem dos romanistas).

São na realidade “cláusulas que decorrem necessariamente da natureza do direito a que acedem”.314

Assim, por exemplo, o dote prometido sob a condição de casamento: não há dote sem matrimônio. D. 23.3.21.: A estipulação que se faz por causa do dote, consta que implica esta condição: se efetuar-se o matrimônio. (Stipulationem quae propter causam dotis fiat, canstat habere in se condicionem hanc “si nuptiae fuerint secutae.)

Há condições que, “por certas circunstâncias não produzem os seus efeitos normais”315. São as que consistem em fato impossível fisicamente e as que configuram um fato ilícito, imoral ou contra os bons costumes. Examinemo-las brevemente.

Segundo as Sententiae de Paulo (3.4B.1.) há duas espécies de condições: possível ou impossível; possível é a que pode ser admitida pela natureza das coisas; impossível a que não o pode. (Condicionum duo sunt genera: aut enim possibilis est, aut impossibilis: possibilis, quae per rerum naturam admitti potest, impossibilis, quae non potest.) Quando se subordina a obrigação a uma condição impossível, a estipulação é nula (Inst. 3.19.11.: Si impossibilis condicio obligationibus adiciatur, nihil valet stipulatio).

Exemplo de condição impossível (Inst. 3.19.11.): prometes dar se eu tocar o céu com o dedo” (si digito caelum attigero, dare spondes?) Observe-se, entretanto, que se a condição for enunciada negativamente (prometes dar se eu não tocar o céu com o dedo? Si digito caelum non attigero, dare spondes?) entende-se a obrigação como pura (isto é, sem condição) e imediatamente exigível (Inst. 3.19.11.: pure facta obligatio intellegitur, ideoque statim petere potes)316.

As condições ilícitas (turpes) invalidam o ato. Segundo as Sententiae de Paulo (3.4B.2.) as condições contra as leis, decretos dos imperadores ou bons costumes são nulas (contra leges et decreta principum vel bonos mores... nullius sunt momenti). Exemplo: se cometeres um homicídio (Si homicidium feceris)317.

Distinguem-se várias espécies de condições propriamente ditas: Positivas ou negativas: “se a estipulação consiste em ser alguma coisa feita ou não” (Inst. 3.15.4.: si aliquid factum fuerit aut non fuerit).

“A condição pode consistir tanto na verificação de um fato, como na sua não verificação, sendo positiva no primeiro caso (si navis ex Asia venerit) e negativa no segundo (si servum non manumiseris). Se é positiva aparece quando surge o fato; se é negativa, até o momento em que se verifique a eventualidade considerada.”318

Exemplos de condição positiva:

si navis ex Asia venerit

(se vier o navio da Ásia)

si Titius consul factus fuerit

(se Ticio for feito cônsul)

Exemplos de condição negativa:

si servum non manumiseris

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(se não manumitires o escravo)

si in Capitolium non ascendero

(se não subir ao Capitólio)

Potestativas, casuais e mistas (C. J. 6. 51. 7.: sin autem aliquid sub condicione relinquatur, vel casuali, vel potestativa, ve1 mixta).

Potestativas são “as que dependem da vontade de uma das partes”319 (C, J. 6. 51. 7.: ex honoratae personae voluntate pendeat).

Casuais são “as que independem da vontade das partes”320 (C. J. 6. 51. 7.: ex fortuna... pendeat.)

Mistas são aquelas que “dependem, ao mesmo tempo, da vontade de uma das partes e de terceira pessoa”321 (C. ,J.6.51.7.: ex utroque pendeat).

Exemplo de condição potestativa:

Si in Capitolium ascenderis

Se subires ao Capitólio

Exemplo de condição casual:

Si navis ex Asia venerit

Se o navio vier da Ásia

Exemplo de condição mista:

Si Titicim nupseris

Se desposares Tícia

Sobre a condição potestativa convém não confundi-la com a mera potestativa : “a primeira implica sempre um ato exterior ou uma abstenção limitando a vontade individual; ao passo que a segunda depende exclusivamente do arbítrio do devedor e por isso não forma vínculo jurídico, ex. : pagarei tal importância, se quiser (si valam)322.

Modernamente distingue-se entre condição suspensiva e resolutiva. Suspensiva é a condição de que “depende a produção dos efeitos do negócio jurídico”; resolutiva “quando dela depende a cessação dos efeitos do negócio jurídico”323.

Biondi observa que “a terminologia possui uma certa confirmação nas fontes” e cita como exemplos D. 40.4.44.: libertas suspensa sub condicione (liberdade suspensa sob condição) e D. 18.2.2. pr. em que se menciona a emptio (compra) que se resolve sob condição (D. 18.2.2. pr. sub condicione resolvitur) 324 . “O direito mais antigo e o clássico somente conhecem a condição suspensiva na qual o negócio jurídico produz seus efeitos quando o fato condicional se cumpre”325. Biondi observa que as cláusulas resolutivas começam a ter eficácia por obra do pretor e que no direito justinianeu começa a aparecer a noção de condição resolutiva distinta da suspensiva.326

Os efeitos da condição resolutiva são idênticos aos do termo resolutivo. Quanto aos efeitos da condição suspensiva podem ser consideradas três hipóteses: condição pendente

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(condicio pendet, pendente condicione), condição realizada (condicio existit, existente condicione) e condição falha (condicio deficit, deficiente condicione).

Sem entrar em pormenores, podemos dizer que na primeira hipótese o negócio não produz os efeitos jurídicos; dele não surgem nem direitos nem obrigações. Contudo “o negócio se considera como existente e potencialmente produtivo”327. Há uma spes juris.

Na segunda hipótese, produzem-se os efeitos do negócio jurídico, discutindo-se apenas “se o advento da condição produz efeito apenas a partir do momento em que ela se realiza (ex nunc) ou se os seus efeitos retroagem à data da obrigação (ex tunc) como se a realização houvesse ocorrido nessa data” 328 . “Segundo parece, no direito romano clássico, os efeitos jurídicos se produziam ex nunc; no direito justinianeu, ex tunc.329

Na terceira hipótese o negócio é considerado como não existente (D. 18.6.8.: si sub condicione res venierit si quidem defecerit condicio, nulla est emptio sicuti nec stipulatio: se a coisa tivesse sido vendida sob condição, se esta falhasse, a compra seria nula como também a estipulação).

Modo (modus) é um encargo imposto em um ato de liberalidade (testamento, doação) pelo disponente ao designatário, para um certo fim.

Nas fontes são empregados diversos vocábulos para designar o modo: modus, lex, condicio, jubere e a circunlocução sic dedit ut (assim deu para que...).

Eis um texto referente ao modus: Se a álguém foi deixado um legado para que à custa dele fizesse algo como por exemplo uma sepultura para o testador ou uma obra pública ou um banquete para os munícipes, ou para que restituísse parte do legado a outra pessoa, entende-se que se fez um legado com encargo (D. 35.1.17.4.: Quod si cui in hoc legatium sit, ut ex eo aliquid faceret, veluti monumentum testatori vel opus aut epulum municipibus faceret, vel ex eo ut partem alii restitueret: sub modo legatum videtur.) O seguinte texto mostra-nos a diferença entre um negócio jurídico sub condicione e um negócio jurídico sub modo, “pois não diremos que está na mesma situação aquele a quem é deixado um legado se tiver feito um sepulcro e aquele a quem é deixado um legado para que faça um sepulcro (D. 35.1.80.: nec enim parem dicemus eum, cui ita datum sit, si monumentum fecerit, et eum, cui datum est, ut monumentum faciat).

No ato modal os efeitos independem do cumprimento do encargo; a eficácia do ato sub condicione depende da realização da condição suspensiva.

“Entretanto na prática, às vezes, é sutil a diferença entre condição e modo, cumprindo atender sobretudo à vontade do disponente para resolver as dificuldades” (Matos Peixoto, obra citada, p. 408).

REPRESENTAÇÃO

Representação, define De Ruggiero, é “o instituto graças ao qual alguém pratica um ato jurídico em lugar de uma outra pessoa com a intenção de que esse ato valha como se fosse praticado por essa outra e produzindo realmente para ela os seus efeitos”330.

Estamos aqui diante da chamada representação direta, modalidade de representação, observa Kaser, “relativamente recente” 331 . O Direito Romano teve como “princípio

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fundamental” a exclusão da representação direta 332 . Enquanto na representação direta o representante age em nome e por conta do representado de tal modo que os efeitos do negócio digam respeito direta e exclusivamente ao representado, na representação indireta, o representante age por conta do representado mas em próprio nome de tal modo Que os efeitos digam respeito à própria pessoa do representante. Evidentemente na representação indireta, com base na relação interna entre representado e representante, este último deverá recorrer a outro ato jurídico para transferir ao primeiro os direitos e obrigações constituídos frente a terceiros. “Por exemplo, se, em virtude de incumbência a mim dada por Tício, compro por conta dele mas em meu nome um escravo, Quem adquire a propriedade sou eu e não Tício; depois é que lhe retransmito o escravo comprado e ele me reembolsa das despesas feitas”333.

No Direito Romano dominava o princípio da representação indireta: uma pessoa sui juris só indiretamente podia representar outra pessoa sui juris.

Gaio (2. 95) afirma peremptoriamente: “não podemos adquirir em caso algum por intermédio de homens livres que não estão sujeitos a nosso poder..” (per liberos homines quos neque juri nostro subjectos habemus... nulla ex causa nobis adquiri posse). Dá mesma forma as Sententiae de Paulo (Sent. 5.2.2.). “Nada pode ser adquirido para nós por meio de pessoas livres que não estão sob nosso poder” (per liberas personas, quae in potestate nostra non sunt, adquiri nobis nihil potest...). Em outras palavras (Gaio 2. 95.), não se pode em princípio adQuirir por meio de pessoa estranha (per extraneam personam nobis adquiri non posse).

Entre as explicações dadas para a não aceitação da representação direta pelos romanos figura a peculiar organização familiar romana : “O paterfamilias servia-se de filhos, escravos e pessoas in mancipio como meios auxiliares de irradiação de sua atividade jurídica. De acordo com o Direito Civil, os efeitos favoráveis dos atos desses súditos do chefe de família revertiam automaticamente para o patrimônio do pater...”334.

Gaio (2. 87) informa-nos: “Por conseguinte adquirimos o que os nossos filhos, que temos em nosso poder, ou nossos escravos recebem por mancipação, obtêm por tradição, estipulação ou qualquer outra causa; porque quem se encontra em nosso poder nada pode ter para si.” (Igitur quod liberi nostri quos in potestate habemus, item quod servi nostri mancipio accipiunt ve1 ex traditione nanciscuntur, sive quid stipulentur, vel er aliqualibet causa adquirunt, id nobis adquiritur; ipse enim qui in nostra potestate est, nihil suum habere potest.) Era como se o filho ou o escravo falasse pela boca do pai ou do senhor (Inst. 3. 19. 13: quia patris ve1 domini voce loqui videtur).

Acrescente-se que o jus honorarium tornou o paterfamilias responsável pelas obrigações resultantes desses atos.

Cabe aqui uma observação respectivamente sobre as figuras do nuntius e do procurator.

Nuntius era um mero portador da declaração de vontade emitida por quem realizava o negócio (dominus negotii). Cabia-lhe reproduzir fielmente a declaração da vontade da parte ao respectivo destinatário. Era utilizado apenas em negócios jurídicos não solenes.

Em D. 18.1.1.2. encontramos menção ao nuntius para a efetivação de um contrato consensual: “A compra é de direito das gentes e por isso se realiza mediante consentimento e pode contratar-se entre ausentes por mensageiro ou por carta” (Est autem emptio juris gentium, et idev consensu peragitur et inter absentes contrahi potest et per nuntium et per litteras).

O “nuntius” equivalia portanto a uma carta, isto é, a um mero instrumento de comunicação.

Procurator - O termo procurator, anota Biondi, “na linguagem romana denota o ofício de uma pessoa que faz as vezes de outra mas não denota representação”335.

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Excepcionalmente a posse pode ser adquirida por procurador (Paulo, Sent. 5.2.2.: sed per procuratorem adquiri nobis possessionem posse utilitatis causa receptum est).

Gaio (2. 95) já anotara: “Apenas quanto à posse, pergunta-se se podemos adquiri-la por pessoa estranha” (Tantum de possessione quaeritur, an per extraneam personam nobis adquiratur).

“Na procuratio, que tem raízes na antiga família romana, o procurator - em geral um liberto - é o senhor de fato do patrimônio que se encontra sob sua administração, tanto que, com relação a ele, tem poderes amplos. Mas a procuratio é um instituto mais social do que, propriamente, jurídico. Segundo parece, o procurador verdadeiro era munido de mandato (tanto assim que o gestor de negócios era um falsus procurator), mas se distinguia do mandatário por cuidar prolongadamente dos negócios de outrem, e não por um só momento”336.

O Procurator omnium rerum, representante direto do paterfamilias, era em geral um liberto que administrava todos os bens numa família romana importante.

Ulpiano (D. 3.3. 1.) assim define procurador: Procurador é aquele que administra os negócios alheios por mandato do titular (Procurator est qui aliena negotia mandatu domini administrat).

Vejamos agora, brevemente, a representação das partes em juízo. Bonfante observa que esta representação “foi a primeira forma de representação amplamente admitida pelos romanos”337.

Convém lembrar preliminarmente que encontramos na História do Direito Romano três sistemas de processo civil: ações da lei (legis actiones), formulário (per formulas) e extraordinário (cognitio extraordinaria).

Diga-se de passagem que a sucessão cronológica desses sistemas processuais é gradual: um suplanta o outro após um período de coexistência.

No processo formalista das legis actiones, era proibido agere nomine alieno com algumas exceções constantes das Institutas (Inst. 4.10.) que completam um texto de Gaio (4. 82.)338.

pro populo: para defender causas de interesse público.

pro libertate: em defesa da liberdade de alguém.

pro tutela: em defesa do pupilo.

ex lege Hostilia: em caso de furto, a favor de um prisioneiro em poder dos inimigos ou de um ausente a serviço público.

No processo formulário aparecem novas categorias de representantes: curadores, representantes de pessoas jurídicas (actores ou sindici), cognitores e procuratores. Estas duas últimas categorias merecem uma atenção especial.

Cognitor - Estamos aqui diante de um mandatário ad litem, instituído perante o magistrado (in jure) pelo autor ou pelo réu, na presença do adversário (coram adversario) e por meio de palavras solenes (certis verbis) conservadas por Gaio ( 4. 83. ).

Procurator era primitivamente um encarregado de administrar bens. Podia, sem mandato especial, litigar na justiça e cumprir outros àtos de gestão do patrimônio. 339 “O conceito de procurador nasceu na humilde família agrícola romana. O atarefado paterfamilias manumite seu hábil villicus Hermes e, de forma implícita, tácita ou explícita, em um mandato geral incumbe seu novo liberto da administração de seus bens e especialmente da defesa de seus interesses econômicos”340.

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Desde a época de Gaio (4. 84.) considera-se igualmente como procurator aquele que recebeu especialmente mandato para pleitear na justiça, sem palavras especiais, podendo constituir-se na ausência e ignorância do adversário (Procurator nullis certis verbis in litem substituitur, sed ex solo manduto et absente et ignorante adversario constituitur).

Ainda Gaio nos informa que alguns consideraram também procurator quem não tivesse mandato, contando que assumisse a causa de boa fé e apresentasse caução pela futura ratificação de seus atos pelo mandante (caveat ratam rem dominum habiturum).

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Capítulo VII

ESTRUTURA POLÍTICA

Já sublinhamos a importância da História de Roma como disciplina auxiliar indispensável ao estudo do Direito Romano. Entre os capítulos dessa História que apresentam íntima relação com o estudo do Direito figura o referente à estrutura política de Roma, à organização da Res Publica. Estamos aqui em pleno campo do Jus publicum. Conforme veremos no capítulo seguinte (Fontes do Direito Romano) é na estrutura política de Roma que encontramos as chamadas Fontes de Produção em sentido material, a saber, “os órgãos que, segundo a estrutura política do Estado em determinada época, têm a função de criar as normas de direito”.341

O estudo das Instituições Políticas de Roma apresenta ainda um significado especial para os estudiosos da Teoria Geral do Estado e do Direito Constitucional, como acentua Burdese (Manual de Derecho Publico Romano, p. V): “A configuração do Estado Moderno foi realizada pelos juristas e teóricos da política da Baixa Idade Média e do Renascimento sobre o modelo de Roma. A idéia do Estado como um ente abstrato e supremo, distinto da massa de indivíduos que o integram, e que atua por meio de normas gerais ou leis e de ordens concretas e atos coercitivos impostos por um aparelho burocrático, é de origem romana. Roma também proporciona o modelo mais conhecido, ao lado da Monarquia britânica, de um governo equilibrado em seus diversos órgãos para evitar abusos do poder, o que constitui a essência do moderno governo constitucional analisado por Montesquieu, que foi um bom conhecedor da História Antiga.”

No sucinto estudo que pretendemos fazer da Estrutura Política de Roma vamos seguir a periodização tradicional já mencionada quando focalizamos a História Externa do D. Romano: Realeza, República, Império ( Principado e Dominato).

REALEZA

A história da fundação de Roma e dos acontecimentos que se enquadram dentro do período chamado Realeza constitui um amplo campo de dúvidas e de controvérsias. Vale aqui repetir a observação de Gaudemet: “A realeza romana só é conhecida por fontes de informação indiretas e imperfeitas, principalmente pelas narrações ou alusões dos autores literários romanos que escreveram muitos séculos após o desaparecimento desse regime. A parte das lendas nessas narrações é considerável. Mas sob a forma pitoresca que a história da realeza reveste, ocultam-se muitos dados reais”342. Um fato deve ser sublinhado no estudo da estrutura política romana sob a Realeza : a influência etrusca : “a realeza etrusca dotou o Estado Romano de seus órgãos políticos essenciais”343.

Com base nas informações transmitidas por Tito Lívio, Dionísio de Halicarnasso, Cícero e Plutarco, a estrutura política da Realeza apresentaria o seguinte esquema: o rei, a assembléia curiata e o senado.

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Rei

Com base nas supracitadas fontes a realeza pode ser caracterizada como eletiva, vitalícia e não hereditária: A escolha do monarca obedeceria ao seguinte processo: “o rei é eleito pela assembléia curiata que, em virtude de um ato distinto e complementar, a lex curiata de imperio, investe-o do imperium, totalidade do poder executivo e confirmado pelo Senado, em virtude da auctoritas patrum. À sua morte, a autoridade volta ao Estado, à comunidade representada a título permanente pelo Senado que sorteia em seu próprio seio, e pela duração limitada de cinco dias, um rei interino, o inter-rei; decorrido o prazo, este inter-rei se nomeia um sucessor e assim por diante o número dos inter-reis eventuais é ilimitado até o dia em que um deles reúne a assembléia curiata que procede à eleição do novo rei”344.

Quais as atribuições do rei? Ainda aqui paira a incerteza e surgem as controvérsias, o que se explica pela imprecisão e até mesmo contradições das fontes.

O rei desempenhava funções religiosas (era intermediário entre os homens e os deuses), exercia funções judiciárias (dava soluções de direito: jura dare). Segundo Leo Bloch “era o juiz supremo contra cujas decisões não havia apelação ao povo” 345 . O rei detinha o poder de comando : conduzia os homens ao combate e “depois de uma guerra vitoriosa dispunha do país conquistado bem como de seus habitantes”346.

Gaudemet sublinha que o papel essencial do rei é o de comandar (dar ordens, dicere, interdicere)347, “Em face da coletividade o rei possui grandes poderes: organiza a civitas, detém o jus belli ac pacis, o jus vitae necisque; pode repartir as terras públicas entre particulares”348.

Encerremos esta breve (e suscetível de discussão ) caracterização da realeza lembrando que a autoridade real sofria limitações pelo fas (direito religioso) e pelos mores (costumes tradicionais).

Senado

O senado era integrado pelos chefes (patres) das grandes famílias (gentes)349. O número de senadores, de acordo com a tradição, teria atingido a casa dos trezentos nos últimos tempos da Realeza. Conselho do Rei, o senado era convocado e consultado pelo soberano que, entretanto, não estava obrigado a seguir-lhe a orientação.

Entre as atribuições do Senado na Realeza, podemos citar, a título de exemplo:

1. A já mencionada interferência por ocasião da morte do rei e a confirmação do poder real em virtude da auctoritas patrum (autoridade dos pais).

2. Assentimento especial em face de expedições militares.

3. Manutenção àos costumes dos antepassados (mos maiorium).

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Comicios Curiatos

A tradição atribui a Rômulo a divisão do povo em cúrias que, distribuídas em número de dez para cada tribo, integravam as três tribos: Ramnes, Tities e Luceres.

Note-se que o vocábulo Curia designa tanto a reunião de homens como o local da reunião. As cúrias fornecem o quadro para os chamados comícios curiatos. Raymond Bloch assim resume as atribuições da assembléia curiata: “tem por prerrogativas a eleição do rei, certos direitos legislativos e judiciários...” 350 As Assembléias Curiatas eram também convocadas para imprimirem um caráter público a determinados atos de direito privado tais como testamentos e adoções.

Gaudemet anota sobre essas assembléias: “Seu papel de resto não está melhor definido que o do Senado. Reunida pelo rei, quando ele julga oportuno, e consultada sobre o que ele deseja submeter-lhe, a assembléia é, antes, convidada a aprovar do que a tomar iniciativas”351.

Eis aí em rápidos traços a estrutura política da Realeza, segundo as fontes tradicionais que devem ser usadas com cuidado. Homo julga que desse quadro constitucional pouca coisa deve ser retida.352

REPÚBLICA

A História dos inícios da República Romana apresentam aspectos obscuros. Grosso não dá crédito à tentativa da lenda de atribuir a uma revolução a transformação institucional que teria marcado a passagem brusca e imediata da ordem monárquica à ordem republicana já perfeitamente delineada353.

Dois fatos, entretanto, devem ser sublinhados no processo de substituição da monarquia pela república: a reação nacional latina dirigida pelo patriciado e a conseqüente queda da dominação etrusca354.

Nas linhas seguintes pretendemos traçar um rápido quadro da constituição política republicana que apresenta uma tríplice estrutura: magistratura, senado e assembléias populares355.

À magistratura, cujos quadros, via de regra, preenchiam-se por eleição popular e estavam abertos a todos os cidadãos (havia magistraturas patrícias reservadas em princípio aos patrícios mas depois acessíveis aos plebeus; havia magistraturas plebéias, o tribunato da plebe e a edilidade plebéia), correspondia o exercício dos poderes governamentais356.

O senado, integrado por antigos magistrados, revestia, em virtude da vitaliciedade de seus membros, um caráter de estabilidade que assegurava uma continuidade de governo e detinha várias atribuições que genericamente podem ser definidas como direção política, iniciativa e controle em face à atividade dos demais órgãos constitucionais357. Era o verdadeiro centro de governo da Roma republicana.

“As assembléias populares, de que participam teoricamente todos os cidadãos com plenitude de direitos, competem funções legislativas, funções de eleição dos diferentes magistrados, funções judiciais em matéria criminal. A todo cidadão se assegura, no

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desenvolvimento normal da vida constitucional e salvo circunstâncias excepcionais, a fundamental garantia da provocatio ad populum, ou seja, o direito de recorrer ao juízo da assembléia popular contra a atividade dos magistrados de repressão criminal que implique a imposição de sanções particularmente graves. Produz-se um singular equilíbrio entre os diversos elementos constitucionais que já maravilhava Políbio, induzindo-o a ver harmonizados na constituição romana todos e cada um dos três princípios de governo, teorizados e clarificados pelo pensamento grego e em particular por Aristóteles, respectivamente expressos, o monárquico pelo poder dos magistrados, o aristocrático pelo senado e o democrático pelas assembléias do povo”358.

Magistraturas

O termo magistratus (de magister) significa quer a própria magistratura (e neste caso equivale a honor) quer o próprio cidadão investido no cargo.

Dois poderes caracterizam as magistraturas romanas: a potestas e o imperium.

Potestas designa de um modo geral toda forma de autoridade reconhecida pelo direito e que uma pessoa exerce sobre outra ou sobre coisas. Assim, por exemplo, o paterfamilias detém a potestas sobre os filhos (patria potestas) e sobre os escravos (dominica potestas)359.

Em direito público potestas é um poder comum a todos os magistrados em virtude do qual estes representam a Res publica e podem estabelecer prescrições (jus edicendi), que serão obrigatórias enquanto o magistrado estiver no exercício de suas funções, e exercer uma certa coerção, por exemplo, através de multas (coercitio minor), no sentido de que sejam observadas suas prescrições.

Imperium

Os mais altos magistrados de Roma (ditadores, cônsules e pretores) dispunham de uma vasta soma de poderes compreendida sob a designação de imperium. Segundo Homo, este poder “comportava ao mesmo tempo a administração civil do território, o comando das tropas, o exercício da justiça, numa palavra, o conjunto de atribuições civis, militares e judiciárias”.360

Originariamente um poder de comando fundado sobre a força e o prestígio do chefe, a noção de Imperium vai adquirir na época republicana um valor jurídico mais preciso361. O conceito de imperium, anota Wolff, “era o eixo de todo o pensamento constitucional romano”362.

“A constituição republicana considera porém o imperium sob dois diversos aspectos, conforme seja exercido dentro do pomoerium da cidade (imperium domi) ou fora dele, não só na guerra (como faria pensar a denominação de imperium militiae) mas também nas funções administrativas e jurisdicionais exercidas nos territórios submetidos. Enquanto o imperium domi encontra seu limite na provocatio ad populum referente ao condenado à morte, nas competências do senado e das assembléias, na irrevogabilidade do jus civile e na santidade das leis votadas pelo povo, o imperium militiae é juridicamente ilimitado363.

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No último século da República a concepção tradicional de imperium sofre alterações: os magistrados de Roma, cônsules e pretores, passam a ter apenas funções civis enquanto os pro-magistrados, governadores de províncias, conservam o imperium integral.364

Três princípios dominam a organização das magistraturas republicanas: anualidade, colegialidade e responsabilidade.

Em princípio o mandato do magistrado é anual (com exceção do ditador e do censor). Ao término deste prazo os poderes do magistrado cessam automaticamente365. Esta cessação pode ocorrer antes do decurso de um ano por vontade do titular do cargo quando houver motivo grave relacionado com o interesse do Estado.

A reeleição era permitida após determinados intervalos366. A partir do final do século III prolonga-se a função de magistrado com a atribuição da pro-magistratura a um magistrado que deixa o cargo. Assim temos o pro-pretor, o pro-consul. A pro-magistratura surgiu da necessidade de assegurar comandos militares em diversos teatros de operações e prover os cargos de governadores nas províncias.

O princípio da colegialidade constitui um dos traços mais originais da magistratura romana e encontra sua expressão mais típica no exercício da magistratura consular367.

As magistraturas, via de regra (exceção é, por exemplo, o ditador) são exercidas por vários magistrados: dois cônsules, dois pretores (número ampliado posteriormente) dois edis curuis, etc. Uma das razões da multiplicação do número de magistrados integrantes de um mesmo colégio explica-se, entre outras, pelo acúmulo de serviço e pela preocupação em evitar a concentração de poderes em uma mesma mão. Deve-se, entretanto, sublinhar que o colégio de magistrados não constitui uma entidade que só pode agir por unanimidade de seus membros. É antes uma reunião de magistrados do mesmo tipo. Cada membro do colégio pode atuar separadamente. Partilham entre si as tarefas quer através de uma alternância temporal (assim, por exemplo, os cônsules, podiam revezar-se mensalmente em determinadas atribuições) quer por meio de uma divisão das funções.

Como cada magistrado detém a plenitude do poder e o mesmo poder de seu colega, pode interferir na atuação deste quer opondo-se preventivamente (prohibitio) a uma tomada de atitude, quer cassando a decisão tomada (intercessio).

A prohibitio e a intercessio tornaram-se possíveis não somente entre membros de um mesmo colégio (par potestas) mas por parte de um magistrado superior em relação a um de colégio inferior (maior potestas). “O censor fica fora desta hierarquia; não pode paralisar a atividade dos outros magistrados mas nenhum magistrado pode opor-se a seus atos”368.

Os autores divergem quanto à caracterização e ao alcance da responsabilidade dos magistrados romanos. Gaudemet observa que ao término de sua magistratura os magistrados devem jurar que nada fizeram contra as leis. “Devem dar conta de sua gestão e podem ser julgados pelo Senado. Esta responsabilidade permaneceu assaz teórica pois o próprio Senado é composto de antigos magistrados: Juízes e acusados pertencem muitas vezes ao mesmo meio social e as alianças familiares evitam uma condenação”369.

As magistraturas não eram, em princípio, remuneradas. Para o exercício do imperium militiae as populações submetidas deviam arcar com as despesas de viagem, sustento e alojamento do magistrado e do seu séquito.

Uma visão geral das magistraturas romanas permite-nos distinguir entre:

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a) Magistraturas ordinárias (funções permanentes e titulares eleitos anualmente) e extraordinárias (funções temporárias). Entre estas últimas figurava, por exemplo, a ditadura.

b) Magistraturas maiores (por exemplo: consulado e pretura) e magistraturas menores. Caracterizadas respectivamente pelo direito de tomar auspícios em Roma e fora de Roma ou somente em Roma. Note-se que auspicium era um prognóstico divino (aprovando ou desaprovando determinado ato público) tomado em um espaço quadrangular (templum) mediante a observação (spectio) de determinados sinais como o relâmpago, o vôo das aves, etc... A divindade consultada era principalmente Júpiter.

c) Magistraturas patrícias e magistraturas plebéias. As primeiras, em princípio, estavam reservadas aos patrícios embora posteriormente ficassem ao alcance dos plebeus; as segundas só eram ocupadas pelos plebeus: Distinguia-se também entre magistraturas curuis e magistraturas não curuis segundo a faculdade de usar ou não a chamada sella curulis, cadeira curul, assento de pés recurvos e cruzados; os não curuis sentam em tamboretes de pés direitos (subsellium).

d) Magistraturas cum imperio ou sine imperio. Esta distinção fundamenta-se no imperium de que estavam investidos os titulares das primeiras e que faltava aos titulares das segundas. Entre os que possuíam o imperium figuravam os consules, os pretores e os ditadores.

As condições de elegibilidade (jus honorum) variaram de acordo com a época: cidadania, completa, serviço militar, idade mínima para cada magistratura, etc.

Foi estabelecida através dos tempos uma ordem na seqüência dos cargos (certus ordo magistratum) a serem exercidos: é o chamado cursus honorum. A lex Villia annalis ou annaria de 180 a.C. estabeleceu a seqüência: questura, pretura e consulado. Entre o exercício de uma e outra destas magistraturas estabelecia-se o intervalo de dois anos. O acesso à questura deveria ser precedido de decem stipendia, isto é, de dez anos de serviço no exército. Entre a questura e a pretura introduziu-se mais tarde a edilidade ou o tribunato da plebe. Só podia ser censor ou ditador quem houvesse exercido o consulado. Permitia-se o acúmulo de uma magistratura ordinária com uma extraordinária.

Passemos, agora, a um sumário exame de cada magistratura370.

Magistrados cum imperio

Os inícios do Consulado são obscuros e remontam à época de transição da monarquia para a república.

Inicialmente são chamados praetores ou judices (juízes) e posteriormente consules. Em 367 um dos cargos consulares é reservado aos plebeus. Eleitos pelos comícios centuriatos, os cônsules possuem vastas atribuições: convocam os comícios (jus agendi cum populo) e o senado (jus agendi cum patribus); comandam as tropas em tempo de guerra, etc., etc.

As origens da Pretura são também obscuras. A tradição romana vincula às leis Licínias (367 a.C.) o aparecimento do pretor, collega minor dos cônsules. Exclusivamente patrícia no início, a pretura abriu-se mais tarde (337 a.C.) aos plebeus. O pretor foi um magistrado

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essencialmente judiciário. O acúmulo de serviço levou à criação de um colega em 242, o Praetor peregrinus de que já falamos ao estudarmos o jus gentium. Voltaremos ao pretor no item sobre as fontes do Direito, quando focalizaremos a natureza do Edictum.

Originariamente chamado magister populi e posteriormente dictator (porque dictat, isto é, dispõe sem consultar outro colega), o ditador foi um magistrado supremo de caráter extraordinário talvez desde os inícios da constituição republicana371.

Designado por um ou por ambos os cônsules em caso de perigo externo (belli gerundi ou rei gerundae causa) ou interno (seditionis sedandae causa), o ditador exerce o mandato pelo período máximo de seis meses durante os quais está revestido de um imperium maius, isto é, de poderes mais amplos que os dos cônsules. O ditador escolhe um auxiliar, o magister equitum, que está também revestido de imperium.

A intercessio tribunicia e a provocatio ad populum revelaram-se, em princípio, impotentes contra o poder ditatorial372.

Magistrados sine imperio

A tradição fixa a instituição da censura em 443 a.C. Estamos aqui diante de uma verdadeira magistratura moral373.

Eleitos em número de dois pelos comícios centuriatos cada cinco anos, os censores exerciam seus poderes durante dezoito meses.

“Os censores careciam de imperium mas seu cargo era considerado, sob alguns aspectos, a dignidade mais elevada que um cidadão romano podia alcançar; assim é que somente os consulares, isto é, os que haviam sido cônsules, eram eleitos ordinariamente para o cargo (...)”374.

Entre as atribuições dos censores destacamos:

1. O census: recenseamento qüinqüenal dos cidadãos, o qual tinha por fim reparti-los em centúrias e tribos segundo sua idade, sua fortuna, sua residência e sua condição;

2. Regimen morum: no desempenho de suas atividades, o censor exercia um policiamento dos costumes podendo censurar os cidadãos cuja vida privada ou oficial revelasse áspectos reprováveis: a nota censoria podia privar o cidadão de seus direitos políticos (jus suffragium e jus honorum);

3. A lectio senatus era a elaboração da lista dos senadores podendo ser excluídos os considerados indignos.

Edilidade

Os edis da plebe (aediles plebis) foram instituídos ao mesmo tempo que os tribunos da plebe (494 a.C.) dos quais foram auxiliares 375 . Segundo Piganiol os edis podem ter sido

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originalmente os guardiões do templo (aedes) de Ceres ao sopé do Aventino376. Os edis curuis foram criados em 367 a.C.

Entre as atribuições dos edis figuravam o abastecimento da cidade (cura annonae), o cuidado das vias públicas (cura viarum), dos edifícios e construções públicas (cura aedium). Cabia-lhes também a realização dos jogos públicos (cura lutorum), tarefa esta de grande influência na carreira política.

Questura

Os questores como auxiliares dos cônsules em suas funções administrativas da cidade foram criados em 447 a.C. em número de dois377. Entre as atribuições dos questores (cujo número aumentou) na época republicana podemos lembrar : guardar o tesouro conservado no templo de Saturno; acompanhar os cônsules em campanha, providenciando o pagamento das despesas e cuidando das presas de guerra. Fundamentalmente a órbita da atuação desses magistrados, quer em Roma, quer nas províncias, girava em torno da administração das finanças.

Tribunato da plebe

Os tribunos da plebe (tribuni plebis) aparecem, segundo a tradição, em 494 a. C. A princípio em número de dois, seu número elevou-se a dez em 457 a.C. Não eram magistrados propriamente ditos. Careciam de potestas (no mesmo sentido da potestas dos demais magistrados) e de imperium.

A potestas tribunicia (poder tribunício) era potestas sacrosancta e “tornou-se em Roma o poder mais elevado (exceto a antiga ditadura), pois não se inclinava diante de outro poder e todos os outros poderes se inclinavam diante dela”378.

Originariamente a missão dos tribunos foi a de proteger os plebeus em face da prepotência dos cônsules contra os interesses dos plebeus: auxilum latio adversus cônsules.

Nas atribuições do tribuno da plebe podemos distinguir um poder negativo, a intercessio (veto aos atos dos demais magistrados inclusive tribunos) e um poder positivo, a summa coercendi potestas, isto é, o sumo poder de coerção através do qual o tribuno tutelava a própria inviolabilidade (os tribuni plebis haviam sido declarados sacrosancti, invioláveis à coercitio dos supremos magistrados da civitas) e o exercício da intercessio. A coercitio tribunícia manifestava-se por exemplo pela faculdade de ordenar a prisão (prensio) de um cidadão, impor-lhe multas, etc.

A potestas tribunicia encontrou limitações como: a intercessio de outro tribuno, o imperium militar exercido na cidade só em casos excepcionais e o limite da jurisdição urbana.

Entre as prerrogativas dos tribunos da plebe figurava o jus agendi cum plebe, isto é, o direito de convocar a plebe e falar-lhe.

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Através da história republicana o tribunato da plebe, instituído para defender os plebeus, sofreu transformações. Wolff (obra citada, p. 41) observa que “o caráter democrático do cargo quase desapareceu no final da República. O requisito de que deviam ser plebeus os que o desempenhavam converteu-se em mera formalidade. O tribunato degenerou em um cargo político solicitado pelos membros jovens da classe senatorial; incorporou-se ao cursus honorum (carreira política) depois da questura e, amiúde, mais que titulares de uma magistratura eram instrumentos de que se valia a aristocracia senatorial para a consecução de seus programas políticos mais reacionários”.

O Senado

Estamos aqui em face do órgão-chave da constituição da República Romana. Bloch sublinha: “A estabilidade das instituições e da política romana, que chega a extremos surpreendentes tratando-se de uma República, baseava-se no poder e no respeito do senado”379.

O número de trezentos· senadores atribuído pela tradição ao senado da Realeza indica também inicialmente a quantidade de componentes do órgão republicano. Note-se, entretanto, que o número de senadores variou posteriormente. Assim, por exemplo, sob Sila o senado foi integrado por seiscentos membros.

A escolha dos senadores competia originariamente aos supremos magistrados da República. A partir do fim do século IV a.C. (entre 318 e 312) a lei Ovinia atribuiu aos censores a escolha dos senadores. Os antigos magistrados curuis tiveram a preferência nesta escolha e o senado passou a ser integrado quase exclusivamente por antigos magistrados curuis (cônsules, pretores, edis curuis). Quando os plebeus tiveram acesso ao senado estabeleceu-se uma distinção entre os senadores patrícios (Patres) e os de origem plebéia (conscripti). Note-se, contudo, que com o decurso do tempo esta distinção foi superada tendo-se ampliado a competência do senado patrício-plebeu380.

O senado deve ser convocado por um dos magistrados que tem o jus agendi cum patribus como, por exemplo, o cônsul, o pretor, certos magistrados extraordinários e, mais tarde, os tribunos da plebe.

As atribuições do senado republicano foram as mais variadas. Vejamos alguns exemplos:

Interregnum - em caso de vacância da magistratura suprema o interrex, sobrevivência da monarquia, é escolhido entre os senadores patrícios. Os patres exercem por turno, durante cinco dias cada um, o interregnum até que um interrex (que não pode ser o primeiro designado) convoca e preside os comícios eleitorais para a creatio do cônsul.

Auctoritas patrum - é uma ratificação das deliberações comiciais por parte dos patres “expressando assim a soberania do senado patrício que se reserva o direito de confirmar as deliberações legislativas tanto eleitorais como judiciais, levadas a cabo pelas assembléias populares”381. A auctoritas patrum assegura à deliberação comicial uma eficácia plena (auctoritas vem de augere = aumentar). Esta instituição tornou-se mais tarde mera formalidade.

Função legislativa - “sua função legislativa reveste caracteres amplíssimos. Realiza-a mediante as discussões e aprovações dos projetos de lei que o correspondente magistrado submete ao conhecimento e voto das assembléias e em certas ocasiões mediante a petição ao

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magistrado, tomando a iniciativa, para que este apresente à assembléia o correspondente projeto de lei382. No final da época republicana o Senado se arroga o direito de declarar a inconstitucionalidade de certas leis bem como de dispensar a observância de certos preceitos legislativos 383 . No item sobre as Fontes do Direito focalizaremos o senatus consultum.

Guardião dos cultos - o senado decide sobre a admissão de novos deuses, a proibição de cultos estrangeiros, etc.

Atuação no campo militar - exerce a direção suprema da guerra e controla o imperium militae dos magistrados. Autoriza o recrutamento, licenciamento ou a permanência dos soldados nas fileiras, etc.

Atuação financeira e administrativa - Fiscaliza o tesouro, autoriza as despesas, especialmente a guerra e obras públicas. Administra as terras públicas (ager publicus) que são importante fonte de renda.

Política externa - abriu-se, anota Bloch, “o campo de mais brilhante atuação para o Senado”384. Recebe embaixadas e envia seus legados ao exterior. Prepara e autoriza a conclusão de tratados.

Concluamos esta incompleta visão do senado romano da República: “Assim, pela variedade de suas competências, a continuidade de sua ação, a autoridade de seus membros, o senado desempenhou um papel essencial no estabelecimento do império de Roma sobre o mundo mediterrâneo. É ele que, com o povo mas antes dele (Senatus populusque romanus) encarna a cidade e a majestas senatus não é menor que a do povo.”385

Os Comícios

Comícios curiatos

Estas assembléias cuja origem remonta à Realeza, tornam-se no século III a.C. “um simples simulacro e uma pura formalidade”386. Os cidadãos (inicialmente os comícios curiatos eram integrados só por patrícios, posteriormente os plebeus lograram seu ingresso) não mais comparecem às reuniões fazendo-se representar por trinta litores. Entre suas atribuições figuram: 1) votar a Lex curiata de imperio que confere o imperium aos magistrados superiores; 2) em matéria de direito privado aprovam o testamento comicial e autorizam a adrogatio (adoção de um paterfamilias por outro).

Comicios centuriatos

Os comícios centuriatos (comitia centuriata) constituem a assembléia por excelência (comitiatus marimus) da Constituição Republicana. A tradição atribui a Servius Tullius (578-

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535 a.C.) a criação da nova assembléia que desempenharia papel tão relevante na História Republicana, sofrendo no decurso do tempo profundas reformas. A organização primitiva da Assembléia centuriata bem como as datas que assinalam sua evolução estão sujeitas a dúvidas e debates entre os historiadores, o que se explica facilmente pela deficiência das fontes387. Sobre um ponto não pairam dúvidas: as origens militares dos comitia centuriata deixaram numerosas e acentuadas marcas na convocação, no local (Campo de Marte), na obrigação de o cidadão apresentar-se armado, na repartição dos cidadãos de acordo com a idade (aptidão para o combate), na presidência reservada a magistrados titulares do imperium, etc.

Nas linhas seguintes limitar-nos-emos a uma sucinta exposição da estrutura e das atribuições dos comícios centuriatos, mencionando a reforma efetuada no século III a.C. (por volta de 241 a.C.).

A assembléia estava repartida em cinco classes integradas quer por patrícios quer por plebeus, de acordo com a respectiva fortuna apurada no recenseamento (census). (Note-se que desde 312 a.C. a fortuna mobiliária foi equiparada a fortuna imobiliária que até então constituía a base da organização. Imóveis e móveis foram avaliados em dinheiro, asses)388.

Eis as classes censitárias :

Primeira classe: cidadãos possuidores de uma fortuna que: ultrapassasse os 125.000 asses. Esta classe compreendia 80 centúrias, sendo 40 de juniores (cidadãos de 17 a 45 anos) e 40 de seniores (cidadãos que haviam atingido a idade de 46 anos). Note-se que estes ficavam adstritos à defesa da cidade até os 66 anos.

Segunda classe: cidadãos de 75.000 asses.

Terceira classe: cidadãos de 50.000 asses.

Quarta classe: cidadãos de 25.000 asses.

Estas três últimas classes compreendem, cada uma, 20 centúrias (10 de juniores e 10 de seniores).

Quinta classe: está integrada pelos cidadãos de 11.000 asses e se compõe de 30 centúrias.

Devemos ainda acrescentar: 1) 18 centúrias de cavaleiros; 2) 5 centúrias acessórias, fora das classes. Observe-se, entretanto, a divergência com relação ao número dessas centúrias.

A votação se fazia por cabeça dentro de cada centúria. A maioria dos sufrágios expressos dentro de cada centúria constitui o voto desta centúria. A opinião da Assembléia estava firmada quando 97 centúrias (a maioria dentre as 193) estavam de acordo. Bastava, para obter esse resultado, que as 18 centúrias de cavaleiros (prestavam serviço militar a cavalo, adquirido e mantido pelo Estado: equites equo publico) entrassem em acordo com as 80 centúrias da primeira classe, para decidir a votação que se iniciava pelas centúrias eqüestres.

Note-se que as centúrias de infantes não contavam necessariamente cem integrantes. O número era, na realidade variável para mais ou para menos de cem, “Inferior a cem nas centúrias de primeira classe, excedia a esse número e dele se distanciava progressivamente, à medida que se descia na escala da fortuna, nas demais classes”389. Observe-se que os votos dos seniores equivaliam em número aos votos dos juniores, embora os primeiros certamente fossem menos numerosos que os segundos.

“Privilégios de idade e de fortuna faziam dos Comícios centuriatos uma assembléia aristocrática e tradicionalista”390.

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No século III (por volta de 241 a.C.) opera-se uma reforma na assembléia centuriata. .Infelizmente as fontes não nos prestam informações seguras sobre a natureza dessa reforma, o que explica as divergências existentes entre os historiadores391.

Segundo Gaudemet o único dado certo sobre a reforma foi a perda da prerrogativa de votar em primeiro lugar por parte dos cavaleiros 392 . “A eleição não começava mais pelas centúrias eqüestres, mas por uma das centúrias da primeira classe, tirada a sorte para votar em primeiro lugar e que se chamava centuria praerogativa.”.393

Entre as atribuições dos comícios centuriatos podemos lembrar:

1. Eleger os magistrados superiores : censores, cônsules, pretores, tribunos militares com poder consular (tribuni militum consulari potestate, substitutos, de maneira intermitente, dos cônsules entre 444 a.C. e 367 a.C.). Gaudemet (obra citada, p.168) observa que só tardiamente, em parte por influência de doutrinas políticas gregas,”o magistrado aparecerá como uma criação da assembléia”. Segundo a concepção republicana antiga a assembléia apenas confirmaria a creatio feita pelo magistrado anterior.

2. Votar as leis sob o controle rigoroso dos magistrados.

3. Possuíam uma jurisdição em matéria penal.

4. Intervinham em grau de recurso (provocatio ad populum) interposto contra sentença que condenasse à pena capital.

Comícios tributos

Os comícios tributos originaram-se, provavelmente, dos antigos concilia plebis (assembléias compostas exclusivamente de plebeus).

A criação de circunscrições territoriais urbanas denominadas tribos, ainda na Realeza, constituiu, observa Homo “uma inovação duplamente interessante: aplicava-se ao mesmo tempo a patrícios e plebeus (as duas grandes classes passavam a ter um quadro comum) e introduzia na organização da cidade um princípio novo, o de domicílio “que devia ter na história constitucional de Roma uma fortuna particularmente brilhante”394.

Mais tarde o número de tribos ampliou-se: a organização estendeu-se ao campo. “Como o número de patrícios se tornava cada vez mais restrito, tanto fazia convocar a plebe com exclusão deles (concilia plebis), como convocar as tribos com alguns patrícios, que constituíam em cada uma delas uma fração ínfima, impotente para deslocar a maioria. Conduzindo os concilia plebis praticamente ao mesmo resultado que os comícios por tribos, foram por estes absorvidos ou neles se transformaram, assumindo assim o caráter de assembléia de todo o povo romano. A tribo que votava em primeiro lugar chamava-se principium”395.

Entre as atribuições dos antigos concilia plebis figurava a de votar plebiscitos, decisões que, emanadas da lebe, só tinham validade entre os plebeus.

Os comícios tributos, que herdam as atribuições dos concilia, adquirem um papel de importância cada vez maior. Assim, por exemplo, no campo legislativo os plebiscitos vão ser equiparados, quanto à sua força legal, às leis votadas pelos demais comícios. “A lei Valeria Horatia de 449 a.C., segundo a data fixada pela tradição, tinha dado aos plebiscitos que emanavam dos comícios tributos pleno valor legal sob a reserva de ratificação consecutiva pelo

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Senado (auctoritas patrum). Uma das leis de Publilius Philo, em 339 a.C., confirmou essa concessão, mas transformou a sanção senatorial consecutiva·sm prévia; enfim, a lei Hortensia, de 287 a.C., por uma solução radical suprimirá pura e simplesmente para os plebiscitos a necessidade da auctoritas patrum”396.

Figuram entre as atribuições dos comícios tributos:

1. Eleger os tribunos da plebe, os edis e os questores.

2. Julgar em grau de recurso (provocatio) contra as sentenças que cominavam multas elevadas (multa suprema),

3. Votavam os plebiscitos que, como já vimos, adquiriram força de lei397.

PRINCIPADO

A transição da República Romana para a Monarquia tem dado margem às mais diversas interpretações. A perfeita compreensão da estrutura política que então se desenvolve (primeiramente no Principado e depois no Dominato) exige um conhecimento de todo o contexto histórico de Roma em seus múltiplos aspectos: políticos, sociais, financeiros, econômicos, religiosos, etc. Homo assim caracteriza o aparecimento do regime imperial: “O regime pessoal nasceu de causas distantes e de necessidades profundas. Podemos resumi-las todas em uma palavra: a conquista. Chegou um momento em que Roma, esta cidade que, por um destino único, havia conquistado um mundo, teve que escolher entre a manutenção de suas instituições tradicionais e a conservação de seu império”398.

O regime instituído por Otávio repousa sobre dois atos fundamentais :

1. A concentração de dignidades e de poderes republicanos entre as mãos de uma só pessoa, o princeps.

2. A criação de novos órgãos políticos administrativos estreitamente dependentes do princeps.

Deve-se observar que a estrutura política republicana (magistraturas, senado e comícios) sobrevive mas com as modificações que assinalaremos mais adiante399.

Poderes de Otávio

Piganiol, sublinhando que Otávio procura inserir seus poderes nos quadros constitucionais, indica os seguintes passos de concentração de poderes: “É cônsul todos os anos desde 31, recebe em 30 o poder tribunício vitalício, o direito de julgar em grau de recurso (a provocatio ao povo é substituída pela provocatio ao príncipe), o direito de criar patrícios (lex Saenia) e, em uma data desconhecida, a censoria potestas”400.

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Gaudemet observa que “do fim do triunvirato até a sessão do senado de 13 de janeiro de 27, a base dos poderes de Otávio é incerta.

Nas vésperas da batalha de Actium, ele exigira da Itália e das províncias um juramento de fidelidade à sua pessoa. Tratava-se de um fato importante, senão absolutamente novo. Estabelecia um elo pessoal entre Otávio e os habitantes do mundo romano. Fora deste juramento, a autoridade de Otávio repousa sobre a força de seu exército, o prestígio de suas vitórias, as riquezas do Oriente e a herança de César. Habilmente ele se apresentou como um libertador da República e fez da luta contra a facção de Antônio o fundamento de sua legitimidade”401.

Em 13 de janeiro de 27 a.C. Otávio declara no Senado sua intenção de restituir ao próprio Senado e ao povo o governo do Estado (lê-se nas Res gestae: rem publicam ex mea potestate in senatus populique Romani arbitrium transtuli). O Senado, entretanto, unanimemente pede a Otávio que conserve o poder e ele aceita.

Em 28 a.C. Otávio se inscrevera no album senatorial como princeps senatus (considerava-se o primeiro dos senadores e também o primeiro dos cidadãos; donde o nome de Principado); em 27 assume o imperium proconsulare nas províncias mais importantes sob o ponto de vista militar; recebe o título de Augustus (título religioso que passará a ser usado pelos imperadores); em 23 o imperium proconsulare é estendido a todo o império; este imperium é vitalício e sem limites cronológicos ou territoriais; em 12 obtém o cargo de Pontifex Maximus e com ele a direção oficial da vida religiosa.

A tribunicia potestas (poderes tribunícios vitalícios) e o imperium proconsulare (sem limites no tempo e no espaço) constituirão as bases jurídicas essenciais do poder imperial. A essas bases podemos acrescentar o Pontificado Máximo que dá ao imperador além de autoridade moral, uma série de atribuições no campo religioso.

Depois desta sucinta exposição dos poderes do princeps passemos a um rápido estudo do destino dos antigos órgãos republicanos tradicionais e do aparecimento de novas instituições.

Os comícios republicanos entram irremediavelmente em decadência. Com efeito, seus poderes legislativos, eleitorais e judiciários vão-se extinguindo. O poder legislativo transforma-se em mera formalidade pois as leis são inspiradas pelo imperador, e as assembléias vão limitar-se a aclamar a proposição feita quer pelo próprio soberano, quer pelos magistrados a ele subordinados. O último exemplo de lei comicial data do reinado de Nerva (96-98)402. O poder eleitoral das assembléias já havia sofrido sério golpe quando César introduziu a recomendação oficial (commendatio) dos candidatos. Embora as assembléias continuem elegendo magistrados, sob Augusto e seus sucessores, a indicação do candidato parte do imperador.

As atribuições judiciárias das Assembléias haviam sofrido um golpe já no último século da República com a instalação dos júris permanentes (quaestiones perpetuae). “Sob o Império esses júris persistiram por algum tempo. Mas a jurisdição criminal passou de fato para o senado e para o imperador (ou seus funcionários). Neste domínio igualmente as assembléias não mais tiveram a desempenhar papel algum”403.

Quanto ao senado, não é mais aceitável a teoria de Mommsen segundo a qual o poder, nos inícios do Império, fora repartido entre o senado e o príncipe. Na realidade não existiu essa diarquia. O papel do imperador na escolha dos magistrados assegurava-lhe desde logo o controle sobre o senado.

O senado imperial abriga um bom número de membros naturais das províncias. “Esta adaptação ao universalismo do Império contribuiu para assegurar ao senado um papel às vezes eficaz” 404 . “O senado herdou o poder eleitoral dos comícios e até certo ponto seu poder

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legislativo; em matéria criminal ele veio a ser, com apoio em precedentes republicanos, um tribunal senatorial-consular, porquanto se lhe atribuiu competência facultativa (pois podia recusá-la), para, por iniciativa do cônsul, conhecer de quaisquer delitos; mas que notadamente se exercia quando se “tratava de atentado contra o Estado ou à pessoa do imperador, assim como dos crimes de concussão dos funcionários provinciais e das acusações capitais contra os senadores. Retirou-se-lhes, porém, a direção dos negócios estrangeiros: o senado não superentendia mais as declarações de guerra, os tratados de paz e de aliança.

Não sendo o principado uma magistratura hereditária, competia ao senado o direito de designar o sucessor do príncipe falecido; mas na realidade esse direito era menos exercido pelo senado do que pelo exército, que impunha um dos seus chefes à escolha senatorial”405.

Das magistraturas republicanas o consulado foi a que perdeu a maior parte de seu conteúdo, embora tivesse conservado grande prestígio. A redução de duração do mandato consular pelo imperador facilitava a este a designação de maior número de familiares que ambicionavam as honras do cargo.

Os antigos cônsules são designados governadores das províncias mais importantes e fornecem também o quadro dos mais altos funcionários.

Os pretores continuaram sendo os magistrados. judiciários por excelência tanto no cível como no crime. Sua jurisdição criminal extinguiu-se, entretanto, com o desaparecimento das já mencionadas quaestiones perpetuae (séc. III) que eles presidiam.

As atribuições da censura, já em decadência no final da República, vão ser assumidas pelo imperador. Domiciano liga a censura à dignidade imperial fazendo assim desaparecer a magistratura dos censores.

Os edis conservam sua jurisdição mas perdem suas funções administrativas que são absorvidas pelos funcionários imperiais. Depois do século III não há mais menção aos edis.

Os questores perdem a guarda do Tesouro.

O tribunato encontra-se em plena decadência: o imperador detém a potestas tribunicia dissociada do cargo de tribuno. A intercessio perdeu boa parte de sua importância pois não pode ser usada contra o imperador nem seus funcionários. Os tribunos conservaram o direito de convocar e presidir o Senado.

Entre os novos órgãos que integram a estrutura política do Principado figuram o consilium principis e os funcionários imperiais.

Sob Augusto o consilium não possui composição e atribuições claramente definidas. O princeps convoca seus amigos (amici) e companheiros (comites): parentes, altos funcionários, especialistas em administração e juristas. Os assuntos tratados no consilium são os mais variados: política externa, questões militares, administrativas e judiciárias.

Sob Tibério o consilium torna-se permanente. Sob Adriano sofre profunda reforma com a introdução de um elemento permanente, os jurisconsultos, cuja presença se tornava indispensável em virtude do exercício das prerrogativas legislativas e judiciárias por parte do princeps. A partir dos Severos o Consilium tornou-se “o centro do governo e o grande motor da administração imperial”406.

Os funcionários imperiais diferem dos magistrados republicanos por serem nomeados e demissíveis a critério do princeps que lhes delega poderes.

Os principais funcionários eram:

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Praefectus praetorio (prefeito do pretório). Seu número e atribuições variaram. Os praefecti praetorio foram instituídos por Augusto em número de dois para comandarem a guarda pessoal do imperador. (Praetorium era o quartel- general do comandante militar.) Sob a dinastia Júlio-Claudia os prefeitos do pretório ampliam suas atribuições e adquirem notável influência no governo. Especialmente a partir do século II são-lhes conferidas importantes funções judiciárias, o que explica o fato de encontrarmos neste cargo juristas famosos como Papiniano, Ulpiano e Paulo.

Praefectus urbi (prefeito da cidade encontra-se também o genitivo urbis). Compete-lhe a administração de Roma, especialmente no tocante à manutenção da ordem pública. Possui, assim, atribuições de polícia (comando das coortes urbanas) e atribuições no campo judiciário. O cargo era confiado a um senador que exercera o consulado e considerava-se o coroamento da carreira senatorial.

Praefectus vigilum. Era o responsável pelo policiamento noturno de Roma.

Praefectus annonae. Era encarregado do abastecimento de Roma (cura annonae).

Praefecti aerarii. Administravam o tesouro público.

A burocracia imperial possui um grande número de servidores que atendem às mais variadas necessidades e estão distribuídos entre os diversos scrinia (secretarias). Havia, por exemplo, a secretaria “a rationibus” encarregada de assuntos financeiros, “ab epistulis” (para a correspondência oficial), a libellis (encarregada de examinar as questões (preces, libelli) propostas por particulares), etc.

Dominato

O Principado estabelecido por Augusto encerrava em si duas tendências que levariam inexoravelmente a uma monarquia absoluta de tipo oriental: a fossilização e decadência dos órgãos da estrutura republicana ao lado da progressiva centralização de poderes na pessoa do imperador. Este vai deixar de ser o princeps (primeiro dos cidadãos) para tornar-se o dominus (o senhor).

Vale lembrar aqui a tetrarquia estabelecida por Diocleciano (284-305): dois Augustos e dois Césares (subordinados aos primeiros). A tetrarquia não teria longa duração após Diocleciano, mas suas idéias essenciais (necessidade prática da divisão do Império e co-participação do poder) iriam permanecer. Com a ascensão de Constantino ao trono, o regime do Dominato ganha seus traços definitivos: absolutismo, princípio dinástico, influência do cristianismo, transferência da capital para Constantinopla e orientalização progressiva do Império407.

Estudemos sucintamente os poderes do imperador e os novos órgãos da estrutura político-administrativa.

O Imperador assume títulos que denotam uma nova concepção do poder: Dominus Noster, Sacratissimus Dominus, etc. “Não é mais um magistrado romano, é um monarca universal de um tipo novo”408. O imperador é o único legislador. As constituições imperiais chamam-se Leges. O monarca detém a totalidade do poder judiciário: é o juiz supremo e os demais juízes são apenas seus delegados. O imperador é também o chefe militar supremo, decidindo sozinho da paz e da guerra.

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É curioso notar que sob o Dominato ainda subsistem vestígios das velhas magistraturas republicanas: há cônsules nomeados pelo imperador e pretores eleitos pelo senado. Esses magistrados não exercem funções importantes. Neles o que mais importa é o título honorífico409.

No campo da administração, Constantino estabeleceu como princípio estável a separação entre funções civis e militares. Os prefeitos do pretório e governadores de província tiveram atribuições puramente civis.

Eis; a seguir, uma sucinta relação dos principais órgãos e cargos sob o Dominato.

O Senado - A partir de Constantino há dois senados respectivamente em Roma e em Constantinopla. Embora “conservando notável prestígio, especialmente no Ocidente, não realizaram substanciais funções nem políticas nem legislativas, sendo raramente ouvidos em questões políticas e limitando-se comumente em matéria de legislação, a servir de instrumento de publicidade das leges imperiais”410.

Consistorium - órgão consultivo do imperador em matéria política e administrativa, possui também atribuições judiciárias. Integram-no altos funcionários e jurisconsultos.

Secretarias - (scrinia) como, por exemplo, secretaria da correspondência (epistolarum), dos julgamentos (libellorum), etc.

Entre os principais funcionários, podemos lembrar:

Praepositus sacri cubiculi. Era o chefe da casa imperial e como tal supervisionava toda a administração da corte.

Magister officiorum. Chefiava diversos serviços entre os quais os citados scrinia.

Quaestor sacri palatus. Era o intérprete do pensamento imperial em matéria judicial. Cabia-lhe preparar os projetos de constituições.

Comes sacrarum largitionum. Administrava o tesouro do Estado.

Comes rerum privatarum. Administrava o domínio privado (resprivata) do imperador.

Magistri militum. Eram os chefes militares, dois na corte e quatro à frente das grandes circunscrições: Oriente, Ilíria, Itália, Gália.

Praefectus praetorio. Alto funcionário com atribuições administrativas, financeiras e judiciárias. Cabia-lhe julgar em nome do imperador. Foram colocados prefeitos do pretório à frente das grandes circunscrições territoriais.

AS PROVÍNCIAS

Este brevíssimo estudo da estrutura política ficaria incompleto se não disséssemos algumas palavras sobre a admirável organização provincial romana sob a República e sob o Império.

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As províncias na República411

No período republicano a organização inicial de cada província cabia, via de regra, ao conquistador e a uma comissão de dez cidadãos (decem legati) orientados pelo Senado. A situação da província era regulamentada através de estatuto provincial, a lex provinciae, que o Senado deveria aprovar. No governo das províncias foram colocados inicialmente os pretores. Posteriormente designaram-se governadores os magistrados que deixavam o cargo: propretores e procônsules.

Note-se que a legislação republicana sobre o governo das províncias sofreu diversas alterações. Quanto á condição jurídica do solo provincial, encontramos também grande variedade.

Na estrutura governamental de uma província romana na República devemos lembrar o governador e o questor.

Governador a esfera de aplicação de seu poder é estabelecida no senatusconsultum que lhe designa a província.

Possui jurisdição administrativa, penal e civil com limitações quanto às civitates foederatae, isto é, cidades ligadas a Roma por tratados que lhes proporcionam certa autonomia. O governador era fiscalizado por cidadãos enviados pelo senado.

Questor - o questor provincial possui atribuições financeiras e participa também da administração da justiça.

Além do questor, o governador dispõe de outros auxiliares designados como assessores e apparitores. “Os cidadãos de elevada categoria são escolhidos pelo governador para integrarem seu próprio consilium que coopera na administração da justiça e no governo da província.”412

As Províncias no Império

A administração das províncias é partilhada entre o senado e o imperador: províncias senatoriais (provinciae Senatus et populi), definitivamente pacificadas e ordinariamente desprovidas de tropas, e províncias imperiais (provinciae Caesaris) onde estacionam as legiões. Os governadores dos primeiros são ex-magistrados nomeados pelo senado, e exercem o cargo, via de regra, por um ano; os governadores das segundas são delegados do Imperador (legati Augusti pro praetore) e permanecem no cargo enquanto assim aprouver ao soberano413.

Note-se que a Itália goza de situação privilegiada e não está dividida em províncias. Augusto reparte-a em onze regiões para facilitar o census. Em princípio a administração da península depende do senado e dos magistrados.

O imperador Adriano dividiu a Itália em quatro circunscrições judiciárias.

A organização provincial sofre, no Dominato, profundas modificações. Encontramos então: prefeituras (à frente das quais estão os prefeitos do pretório), dioceses (à frente das quais estão os vigários) e as províncias (à frente das quais estão os governadores que apresentam

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diferentes denominações, de acordo com sua importância: proconsutes (mesmo que não tenham sido anteriormente cônsules), correctores, praesides).

RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Vamos encerrar o presente item sobre a Estrutura política com algumas breves considerações em torno das relações internacionais mantidas pelos romanos.

Convém, desde logo, sublinhar que pisamos aqui um terreno de controvérsias em que as dificuldades se delineiam quando pretendemos aplicar pura e simplesmente às relações internacionais dos Romanos categorias do direito internacional público moderno. A deficiência das fontes (que consistem muitas vezes em fragmentos de textos de épocas diferentes) levou os estudiosos a focalizarem o “direito internacional” romano em termos por demais absolutos, correndo o risco de chegarem a sínteses arbitrárias “fundadas sobre princípios supostos e às vezes inexistentes, que os fatos e os acontecimentos históricos em nada confirmam”414.

Parece-nos que um estudo ainda que sucinto das relações internacionais dos romanos deve ter presente as seguintes realidades históricas415:

1. Não existe, na Antigüidade Romana, uma comunidade; “uma espécie de sociedade agrupando idealmente os estados existentes, respeitando suas competências respectivas e assegurando, se possível, a paz entre si”.

2. Não existia a mentalidade segundo a qual todos tinham a obrigação de respeitar um certo número de princípios universalmente aceitos e deviam abster-se de praticar atos atentatórios à independência dos demais estados ou de ingerir-se em assuntos internos de outros estados.

3. O Imperium Romanum encontrava-se em face de uma pluralidade de potências e governos, vizinhos uns, afastados outros do orbis romanus, muitos dos quais os romanos nem subjugaram nem absorveram.

4. Com os vencidos “as relações internacionais subsistem, pois esses vencidos conservam as mesmas competências, a mesma personalidade jurídica, salvo o caso, relativamente bem raro, em que Roma os aniquilou”.

5. Ocorre às vezes que um povo anexado ao orbis romanus ou uma cidade conquistada podem conservar suas instituições, suas leis, seus magistrados e, embora sob o poder de Roma, manter com esta as mesmas relações que os estados realmente independentes. Compreende-se diante desses fatos, a dificuldade existente às vezes na distinção categórica entre os que são estrangeiros e os que não o são, de acordo com critérios fronteiriços.

6. A noção de fronteira entre estados é flutuante. Os romanos conheciam limites definidos como o recinto sagrado, o antigo pomoeritum, as demarcações do território de uma colônia ou de uma província mas não se conheciam com exatidão os fines imperii.”Os limites do império não tinham o mesmo significado que têm para os estados modernos. Não assinalavam o limite do espaço territorial sobre o qual uma potência governa soberanamente, mas os marcos de sua influência política. .Juridicamente não concretizavam a distinção entre o dominio da administração interna e o das relações externas (Lemosse, obra citada, p.14).

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7. A atitude de Roma em face dos povos vencidos variou de acordo com as circunstâncias em que se realizou a conquista e, principalmente, em função do estágio cultural desses mesmos povos. O tratamento não podia ser o mesmo para com as cidades helenísticas e para com os bárbaros.

8. A título de exemplo vamos lembrar quatro termos que, na linguagem do “direito internacional” romano, possuem um sentido especial correspondendo a realidades distintas: civitates, gentes, foedus e deditio416. Civitates indica as formas de vida coletiva dentro da concepção greco-romana segundo a qual os homens vivem em um grupo cujos membros são senhores de suas decisões comuns. Os integrantes das gentes estão submetidos a um chefe que dispõe de sua sorte até mesmo arbitrariamente. Compreende-se logo que ao tratar (quer na guerra, quer na paz) com as civitates, estarão em jogo os interesses da coletividade representada pelos magistrados; ao tratar com um povo desprovido da estrutura da civitas, Roma levará em conta apenas os interesses do chefe, do dinasta.

Quando Roma consentia em tratar com um povo vencido, estabelecia-se um foedus: “instituição que é talvez a mais antiga do direito internacional romano, ao menos a mais formalista, e cujo benefício fazia do inimigo um parceiro ligado por relações recíprocas precisas, gozando, em princípio, de uma condição invejável vinculada ao título de foederatus”417.

Quando, entretanto, não existia esse tratado e o povo vencido “se rendia incondicionalmente à vontade discricionária de Roma, colocando-se sob sua dominação e confiando-se à eventual proteção que o vencedor houvesse por bem conceder-lhe, não sofria necessariamente uma sorte rigorosa e podia gozar de um estatuto mais ou menos vantajoso, embora concedido, determinado, sancionado somente pelo alvitre do conquistador; tal era a condição daqueles que se haviam entregue in dicionem populi romani, que tinham feito a deditio”418.

Deve-se observar que se inicialmente os termos foederati e dediti significam realidades fundamentalmente diversas, a evolução da História da expansão e conquista romanas, emprestou-lhes novos significados 419 . O estudo da história,das relações internacionais dos romanos tem como ponto de partida o Colégio dos feciais (fetiales) cuja origem, a julgar pelos ritos de caráter mágico que praticavam seus integrantes e pelas armas que usavam, devia ser bem antiga. Com efeito os fetiales “não são nem exclusivamente romanos nem exclusivamente latinos”420.

Composto de vinte membros, cabia ao colégio dos feciais velar para que as relações exteriores do Estado romano se desenvolvessem de conformidade com o jus divinum421. Tanto na declaração de guerra como na conclusão da paz deviam ser respeitadas regras precisas e minuciosas. Os fetiales exerciam suas funções em pequenas comissões sob as ordens de um presidente que tinha o título de pater patratus. A declaração de guerra era precedida de uma tentativa de paz efetuada pelos feciais (em número de dois ou de quatro). Fracassada a tentativa, aguardava-se o decurso do prazo de trinta dias ao fim do qual, por decisão do senado, o pater patratus, escoltado por uma delegação de feciais, dirigia-se à fronteira, declarava solenemente a guerra, obedecendo a uma fórmula ritual e lançava em território inimigo a hasta infecta sanguine (lança ensangüentada). “Esta formalidade não se pôde cumprir quando em 280 a.C. Roma precisou declarar guerra a Pirro, rei do Epiro, separado da Itália, pelo mar Adriático. Para contornar o obstáculo, recorreu-se a um expediente engenhoso: capturaram um soldado epirota e fizeram no comprar no campo de Marte, diante do templo de Belona, deusa da guerra, um terreno que por ficção foi considerado campo inimigo (locus hostilis), para o efeito de ser nele atirada a lança fecial. Simplificou-se depois a ficção: erigiu-se nesse terreno uma pequena coluna de pedra simbolizando o marco da fronteira inimiga (columna bellica) : era por sobre

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essa coluna que o pater patratus arremessava a lança”422. A conclusão da paz requeria um cerimonial mais complexo que incluía vasos sagrados e ervas misteriosas.

O rito fecial de declaração de guerra foi mantido até o final do II século P.C. Marco Aurélio declarou guerra (178 P.C.) aos marcomanos segundo esse ritual.

Num estudo sobre as relações dos romanos com outros povos, Catalano observa que “para os romanos existiam com outros povos relações jurídicas mesmo independentemente de tratados”423. O mesmo autor sublinha que das fontes relativas a aplicação do jus fetiale “não resulta jamais uma distinção entre povos com que Roma houvesse concluído foedera e povos estrangeiros no sentido rigoroso da palavra 424 . Assim, por exemplo, quando os fetiales declararam guerra (280 a.C.) a Pirro, não havia nenhum tratado com o rei do Epiro.

Os atos do jus fetiale eram pois necessários para um bellum justum (guerra justa) mesmo que não existisse um foedus ou qualquer outro tratado com o povo estrangeiro. De um modo geral “pode-se dizer que o jus fetiale era considerado vigente em relação a todos os povos”425.

Através de seu ritual minucioso e da solenidade com que cercavam seus atos, os fetiales contribuiram para dar às relações internacionais uma base jurídico-religiosa.

Encerremos essas breves anotações com a observação de que os fetiales atuavam, tanto na declaração de guerra como na conclusão da paz, como expressão da vontade do senado. Deve-se sublinhar aqui a importância decisiva do senado republicano na condução da política externa de Roma. De modo especial, o senado concentrou em suas mãos a direção da diplomacia. Competia aos senadores a decisão do envio de qualquer missão ao estrangeiro bem como a designação de seus integrantes; qualquer embaixada estrangeira, que chegasse a Roma, solicitava desde logo a audiência do senado (os membros da embaixada, mesmo que fossem adversários, gozavam do privilégio da inviolabilidade)426.

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Capítulo VIII

FONTES DO DIREITO ROMANO

NOÇÃO DE FONTE

Na linguagem da História, fontes são os meios que nos levam ao conhecimento do passado da humanidade. Entre as fontes da História, os textos escritos são as mais importantes. Para o conhecimento das origens e evolução histórica do Direito Romano (ou de qualquer outro Direito) usamos dessas fontes, chamadas “fontes de cognição”. Biondi caracteriza-as como “todas aquelas notícias e elementos, de qualquer espécie ou gênero, que nos permitem reconstruir o estado do direito nas várias épocas históricas”427.

As fontes de cognição se dividem em fontes jurídicas e fontes extrajurídicas. As primeiras são aquelas que, no passado, constituíram normas jurídicas. Assim, por exemplo, a Lei das XII Tábuas, os editos dos magistrados, as constituições imperiais; etc. Hoje tais fontes servem-nos de meios de conhecimento do direito objetivo como se configurava no passado. Fontes de cognição extrajurídicas são os documentos de toda natureza (literária, arqueológica, etc.) que na época não constituíam normas jurídicas mas que nos prestam informações sobre o Direito Romano. Assim, por exemplo, páginas de historiadores latinos, de poetas, de filósofos, de escritores e oradores (inúmeras obras de Cícero, por exemplo ), etc.

Na linguagem do Direito, o vocábulo fonte possui um sentido peculiar: indica tanto a nascente donde promana o direito objetivo como “as formas de que se recobre o preceito, porque o preceito assume diferentes aspectos exteriores, revestindo-se de roupagens diversas, que variam segundo sua natureza e segundo a própria fonte, isto é, segundo sua proveniência, derivando de tal ou qual órgão”428.

Estamos aqui diante das chamadas Fontes de Produção que podemos dividir em Fontes de produção em sentido restrito e Fontes de produção em sentido amplo429.

As primeiras são os órgãos de expressão do direito, isto é, “os órgãos que, segundo o ordenamento jurídico do tempo, têm a função de criar a norma jurídica” 430 . São também chamadas fontes em sentido material. Exemplo: os comícios, o senado, as magistraturas, etc. As segundas são “os modos, as várias maneiras pelas quais se declara, ou se manifesta, a regra jurídica”431. São também chamadas fontes em sentido formal. Assim, por exemplo, a lei, o senatusconsulto, o edito dos magistrados, etc.

Observe-se que as fontes de cognição juridicas (que para nós constituem meios que nos levam ao conhecimento do Direito no passado) eram, na época em que foram elaboradas, fontes de produção no sentido amplo (fontes formais).

Nas seguintes linhas vamos fazer um sucinto estudo das fontes de produção no sentido amplo de acordo com os períodos estabelecidos por Giffard (ver, a divisão da História Interna) :

Origens - Costume e leis régias

Antigo Direito - Lei das XII Tábuas e legislação posterior

Período Clássico – Leis

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Costume

Editos dos Magistrados

Responsa Prudentium

Senatusconsultos

Constituições Imperiais

Período do Baixo·Império

ou Bizantino - Constituições Imperiais antes de Justiniano

A Jurisprudência

As compilações de Justiniano

Antes de iniciarmos o estudo das Fontes em cada um desses periodos, convém lembrar alguns textos referentes às fontes do Direito.

Gaio (1.2): “Constant autem jura populi romani ex leugizbus, plebiscitis, senatusconsultis, constitutionibus principum, edictis eorum qui jus edicendi habent, responsis prudentium” = “Os direitos do povo romano constam de leis plebiscitos, senatusconsultos, constituições imperiais, editos dos que têm o direito de expedi-los, respostas dos jurisconsultos.”

Justiniano (Inst.1. 2. 3) : Scriptum jus est lex, plebiscita, senatusconsulta, principum placita, magistratuum edicta, responsa prudentium = “O direito escrito é a lei, os plebiscitos, os senatusconsultos, as constituições imperiais, os editos dos magistrados, as respostas dos jurisconsultos.”

Papiniano (D.1.1.7): Jus autem civile est, quod ex legibus, plebiscitis, senatusconsultis, decretis principum, auctoritate prudentium venit. Jus praetorium est, quod praetores introduxerunt. . . .-. “Direito Civil é aquele que vem das leis, dos plebiscitos, dos senatus consultos, dos decretos dos príncipes, da autoridade dos jurisconsultos. O direito pretoriano é aquele que os pretores introduziram...”

Pompônio (D. 1.2.2.12): Ita in civitate nostra aut jure id est lege constituitur, aut est praprium jus civile, quod sine scripto in sola prudentium interpretatione consistit, aut sunt legis actiones, quae formam agendi continent aut plebiscitum, quod sine auctoritate patrum est constitutum, aut est magistratuum edictum, unde jus honararium nascitur, aut senatusconsultum, quod solum senatu constituente irducitur sine lege, aut est principalis constitutio, id est, ut quod ipse princeps constituit pro lege servetur = “Assim em nossa cidade estão constituídas (as seguintes fontes): o direito, isto é, a lei, o direito civil propriamente dito, que, sem estar escrito, consiste só na interpretação dos jurisconsultos, as ações da lei, que contém a forma de demandar, o plebiscito, que se fez sem a autoridade dos patrícios, o edito dos magistrados, donde nasce o direito honorário, senatusconsulto, que se introduz sem lei, somente pela deliberação do senado, e a constituição do príncipe, isto é. o que o próprio príncipe determina que seja observado como lei.

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ORIGENS

Costume

Na Realeza a principal fonte do Direito foi o costume dos antepassados (mos maiorum, jus non scriptum), “normas consuetudinárias transmitidas de geração em geração, não desligadas de todo da norma religiosa (fas) e completadas, quanto ao Direito público, pelos tratados (foedem) intergentilícios que estruturaram a cidade”432.

Pomponius, jurisconsulto contemporâneo de Adriano e de Antonino Pio, informa-nos em um fragmento conservado no Digesto (1.2.2.1) que, em suas origens, o povo romano era governado pelos reis, sem lei certa e sem jurisprudência certa (sine lege certa, sine jure certo).

Ainda Pomponius (D. 1.2.2.2) menciona a existência de leis votadas pelos comícios curiatos e colecionadas em um livro por um certo Sextus Papirius, importante personagem contemporâneo de Tarquínio, o Soberbo. O livro, diz ainda Pomponius, “chama-se jus civile papirianum, não porque Papírio tenha acrescentado algo, mas porque deu unidade às leis promulgadas sem ordem”. (Liber... appellatur jus civile Papirianum, non quia Papirius de suo quicquam ibi adiecit, sed quod leges sine ordine latas in unum composuit.) Autores antigos como Dionísio de Halicarnasso (séc. I a.C ), Cícero (106-43), Tito Lívio (59 a.C.-17 p.C. ) e Plutarco (46-120) mencionam as leis régias. Estas leis são atribuídas principalmente a Rômulo, o fundador, e a Numa, o rei legislador. Seu conteúdo diz respeito ao ritual dos sacrifícios, a matéria de direito privado e de direito penal. As sanções são, em geral, religiosas433.

Sobre as leis régias Gaudemet anota434:

1. Não existiam verdadeiras leis votadas pela assembléia na época real.

2. Não se pode tratar de leis escritas porque a escrita na época real era excepcional e porque no início da república os plebeus reclamaram no sentido de que o direito fosse redigido. “As ‘leis régias’ não são leis nem mesmo regras jurídicas escritas”435. Seriam, antes, “expressão de antigos costumes, colocados pela tradição sob o patrocínio dos lendários reis de Roma”436.

Arias Ramos observa que “a atividade legislativa dos comícios curiatos no tempo dos reis era uma dessas antecipações de que tanto usa a historiografia romana em seu afã de dar antigüidade a suas instituições políticas”437.

Quanto ao jus civile papirianum, a primeira notícia segura de sua existência é um comentário feito por Grânio Flaco, contemporâneo de Júlio César438. Autores como Cícero e Varrão, que citam freqüentemente as leis régias, não fazem menção alguma ao jus Papirianum, ao menos nas obras que conhecemos. Com base neste silêncio Mommsem e Girard crêem que se trata de uma compilação apócrifa da época de César ou de Augusto. Outros autores, entretanto, consideram possível que a compilação tenha sido efetivada em fins do século III ou do século II a.C.439

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ANTIGO DIREITO

Lei das XII Tábuas440

No período do Antigo Direito a primeira fonte a ser mencionada é a Lei das XII Tábuas, a mais importante das leis republicanas. No presente item faremos um rápido estudo sobre este notável documento que Tito Lívio (3, 34, 6) considerou fons ommis publici privatique juris (fonte de todo o direito público e privado), e a seguir enumeraremos as principais leis subseqüentes. No item seguinte, ao abordarmos as fontes no período clássico, exporemos uma breve noção de lei.

Segundo a tradição histórica, os plebeus, insatisfeitos com a interpretação dos costumes pelos pontífices, escolhidos entre os patrícios, e desejosos de verem escritos e divulgados esses mesmos costumes, teriam pleiteado (462 a.C.), por intermédio do tribuno da plebe Terentilius Arsa, a nomeação de uma comissão para efetuar a almejada redação. Depois de vários anos, em 451, a assembléia centuriata teria designado uma comissão de dez membros incumbidos de redigir as leis (decemviri legibus scribundis). Observe-se que, ainda segundo a tradição, antes da eleição dos decênviros, teria sido enviada uma missão à Grécia para estudar as leis helênicas, especialmente as de Solon.

Em 450 ou 451 teriam sido redigidas as dez Tábuas da Lei. A codificação foi completada no ano seguinte (450 ou 449) com a redação de mais duas tábuas, formando se assim a Lex duodecim Tabularum (Lei das XII Tábuas) conhecida também como Lex decenviralis (Lei decenviral) ou apenas Lex.

Entre os que contestaram a tradição relativa à Lei das XII Tábuas, defendendo teses que Gaudemet chama de hipercríticas, figuram Ettore Pais (historiador italiano) e Edouard Lambert (professor da Faculdade de Lyon). “Segundo Pais, as XII Tábuas não representam uma obra legislativa feita de um jacto, no meado do século V a.C. mas uma compilação constituída por leis votadas em datas diversas, no curso do século IV e publicada com o nome de Jus Flavianum, nos fins desse século, por Cneus Flávio, amanuense do censor Ápio Cláudio. A tese de Lambert é mais audaz e demolidora: a lei decenviral é apenas uma coleção de brocardos jurídicos, feita para servir às necessidades práticas, nos fins do século III pelo jurista romano Sexto Élio Peto Cato. Tanto o historiador italiano como o jurista francês deslocam do meado do século V para uma época posterior (fins do século IV, conforme o primeiro, fins do século III, conforme o segundo), a confecção do código decenviral.”441

Entre os que fizeram um estudo critico das teses de Pais e Lambert figura P. F. Girard que demonstrou, “por razões ao mesmo tempo jurídicas, históricas e filológicas, que não se podia rejeitar toda a antiga tradição”442.

Gaudemet lembra que três elementos atestam o caráter arcaico das XII Tábuas : a tradição romana, a linguagem do texto e o caráter das instituições reveladas pelo texto. Quanto à linguagem note-se que ao lado de expressões “modernas” (explicáveis pelas reconstituições feitas através dos tempos) o texto decenviral apresenta termos que os romanos da idade clássica não entendiam. “Aí se deparam palavras desaparecidas depois ou empregadas em acepção extinta. No primeiro caso estão sanates e obvagulare, que somente se encontram na lei decenviral; no segundo caso estão fortes (os que sempre foram amigos do povo romano), portus, orare, adorare, significando porta, cumprir, acionar, respectivamente, e lessus, lamentação, cujo sentido o próprio Sexto Élio Peto Cato, a quem Lambert atribui o código decenviral, não sabia qual fosse.443”

As instituições reveladas pela lei decenviral atestam que ela se insere num contexto social arcaico. “A economia permanece essencialmente agrícola (disposição sobre a proteção

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das colheitas ou dos animais domésticos). As relações comerciais ocupam aí menor espaço que no código de Hamurabi. A fronteira de Roma passa ainda nos limites da cidade, pois a venda de um cidadão além do Tibre é uma venda no estrangeiro. A repressão penal é severa. A pena é às vezes a de talião. Numerosas disposições de caráter religioso, sanções religiosas mostram que o direito ainda não se distingue perfeitamente da religião”444.

Os textos da Lei decenviral foram expostos no Fórum para que estivessem ao alcance de todos. Com a tomada de Roma pelos gauleses (387-386 ou em 381 a.C.) as Tábuas teriam sido destruídas ou extraviadas445. Reconstituídos posteriormente (com atualização da linguagem) os textos foram transmitidos às novas gerações quer pelos tribunais “que faziam a sua aplicação e que nela assentavam a sua jurisprudência” quer “pelo ensino, uma vez que as XII Tábuas eram utilizadas nas escolas para instruir a juventude”446. É bem possível ou até mesmo provável que nesta transmissão da lei decenviral através do tempo tenha havido também atualização de algumas disposições.

Sabemos por Cícero (De leg. II, 3, 9; 23, 59) que, no seu tempo, as crianças decoravam a Lei das XII Tábuas nas escolas. “Sua difusão foi assegurada em todo o Império, mesmo em uma época tardia. Segundo S. Cipriano, ela estava ainda afixada no Fórum de Cartago em 254”447.

Autores literários (por exemplo, Cícero) e jurisconsultos clássicos citam disposições da Lei das XII Tábuas quer em seus próprios termos quer comentando-os. O primeiro comentário de que se tem notícia foi elaborado pelo jurista Sextus Aelius Paetus Catus (séc. II a.C.) que publicou uma obra denominada Tripertita, dividida, como o nome indica, em três partes: 1) a lei das XII Tábuas, 2) a interpretação da lei das XII Tábuas, 3) as antigas ações da lei e as que lhes foram acrescentadas. A esta terceira parte é que provavelmente Pomponius denomina jus Aelianum (D. 1.2.7).

No início do Império, o jurisconsulto Labeo fez um comentário à Lei decenviral. Gaio (sec. II P.C.) também dedicou-se à Lei das XII Tábuas. Fragmentos desses comentários foram-nos conservados no Digesto448.

A reconstituição da Lei das XII Tábuas, baseada nos textos disponíveis, apresenta um duplo aspecto: restauração quanto possível do próprio conteúdo da Lei e o ordenamento deste conteúdo nas doze Tábuas449. O primeiro, evidentemente.o mais importante, é facilitado pela grande quantidade “de textos precisos que nos fazem conhecer numerosas disposições da lei quer em seus termos quer em seu sentido”450.

O segundo baseia-se: 1) em alguns testemunhos positivos que indicam a que tábua determinada pertencem certas disposições; e 2) na ordem geral seguida por Gaio em seus comentários cujos fragmentos se encontram no Digesto.

Entre os nomes dos reconstituidores da Lei das XII Tábuas deve ser lembrado em primeiro lugar o de Jacques Godefroy (1616). Depois de Godefroy, vale citar ainda, entre outros que se dedicaram à árdua tarefa: Dirksen (1824), Rudolf Schaell (1866), Voigt (1883) e Riccobono.

Encontramos na Lei das XII Tábuas matéria de Direito público e de Direito privado. Para um estudo mais minucioso sobre essa matéria remetemos o leitor aos próprios textos da Lei Decenviral lembrando que os assuntos relativos à agricultura (demarcações das propriedades agrícolas, escoamento de águas pluviais, delitos rurais, etc.) mereceram cuidado especial por parte dos decênviros. Compreende-se, assim, que, embora não seja um código no sentido moderno (é, antes, uma lei geral englobando disposições de diversos ramos do direito ), Giffard tenha caracterizado a Lei decenviral principalmente como “um código de agricultores”451.

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Legislação posterior à Lei das XII Tábuas

Antes de enumerarmos algumas das principais leis que se situam entre a Lei decenviral e o início do período clássico convém dizer algumas palavras sobre o plebiscito e sua equiparação à lei, complementando o que já escrevemos ao focalizarmos os comícios tributos.

O vocábulo plebiscitum significa “ordem da plebe”.

Plebiscita eram pois as deliberações da plebe (plebs) reunida no concilium plebis (ver no capítulo VII, as atribuições dos comícios tributos).

Gaio (1.3 ) diz que plebiscito é o que a plebe ordena e constitui: est quod plebs subet atque constituit.

Justiniano (1.2.4) define-o: Plebiscitum est, quod plebs plebeio magistratu interrogante, veluti tribuno, constituebat: Plebiscito é aquilo que a plebe determinava; sob proposta de um magistrado plebeu, como o tribuno.

Os plebiscita valiam somente para a plebe enquanto as leges valiam para todo o populus (patrícios e plebeus)452. A plebe estava para o povo como a espécie para o gênero (plebs autem a populo eo differt quo species a genere. I. 1.2.4).

A Lex Hortensia (286 a.C.) equiparou definitivamente os plebiscitos às leis. Grosso anota: “Com a lex Hortensia a equiparação é plena e absoluta; não existe aí distinção de competência nem de eficácia e também o número dos plebiscita supera de longe o das leis verdadeiras e próprias”453.

Lei Canuleia (445 a.C.) - permitiu o casamento entre patrícios e plebeus.

Lex Poetelia Papiria (326 a. C.) - melhorou a situação dos devedores insolventes.

Lex Ovinia (318-316 a.C.) - transferiu a escolha dos senadores para os censores.

Lex Aquilia de damno dato (plebiscito, 287 a.C.) - tratava da indenização por motivo de dano.

Lex Cincia de donis et muneribus (plebiseito, 204 a. C.) - limitou a liberdade de doações.

O costume continuou sendo fonte do Direito durante a época em foco. Vamos estudá-lo com mais minúcias no Período Clássico. Sobre a interpretação da lei pelos pontífices e pelos jurisconsultos leigos, ver, adiante, item “Responsa Prudentium”.

PERÍODO CLÁSSICO

Leis

Na linguagem do Direito Romano o vocábulo lex apresenta diferentes acepções. Assim, por exemplo, denominam-se lex as cláusulas inseridas por um particular em um contrato: lex contractus. Chama-se também lex o estatuto de uma corporação: lex collegii.

Como fonte do direito Lex “é qualquer deliberação que possui conteúdo normativo tomada pelo populus romanus reunido nos comícios por proposta do magistrado e confirmada pelo senado”454. Os textos apresentam-nos diversas definições de Lex.

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Capito (reinado de Augusto), em um texto conservado por Aulo Gélio (Noctes Atticae, 10.20.2), dá-nos uma definição de lei que corresponde ao conceito dos juristas do último século da República: lex est generale jussum populi aut plebis rogante magistratu (lei é uma ordem geral do povo ou da plebe, a pedido de um magistrado). Note-se nesta definição o vocábulo lex empregado para designar também o plebiscito.

Gaio (1. 3 ) apresenta-nos uma definição menos completa: Lex est quod populus jubet atque constituit (Lei é o que o povo manda e constitui).

Papiniano (D. 1.3.1) dá-nos uma definição com caráter filosófico inspirada na de Demóstenes455. Lex est commune praeceptum, virorum prudentium consultum, delictorum quae sponte vel ignorantia contrahuntur coercitio, communis rei· publicae sponsio. “A lei é um preceito comum, a deliberação de homens prudentes, repressão dos delitos que se cometem voluntariamente ou por ignorância, garantia comum da república.” Temos aqui a lei apresentada como uma espécie de pacto que vincula os cidadãos e assegura a ordem e o poder do estado.

Para Justiniano (1.2.4), calcado em Gaio, a lei se define: Lex est quod populus romanus, senatorio magistratu interrogante veluti consule, constituebat: A lei é o que o povo romano, por proposta de um magistrado senatorial, como por exemplo o cônsul, constituía. Esta definição distingue a lei do plebiscito cuja definição já reproduzimos anteriormente.

Os romanos distinguiam duas espécies de leges publicae (leis públicas, isto é, provenientes das autoridades públicas que formulam regras obrigatórias de caráter geral): leges datae e leges rogatae. As primeiras emanam dos magistrados que atuam em virtude de uma delegação do povo ou do senado. As leges datae mais numerosas consistem em estatutos provinciais ou municipais visando a organização de territórios conquistados. Leges rogatae são as leis votadas pelos cidadãos nos comícios. Após a equiparação dos plebiscito à lex, a denominação de leges rogatae abrange também os plebiscitos.

Na elaboração da lei cooperavam a magistratura, o senado e o comício: a lei é uma publica pactio: um público acordo entre os vários elementos constitucionais da República. Nenhuma lei podia ser proposta a não ser por um magistrado (os membros da assembléia não tinham o poder de apresentar uma proposta legislativa. Quando o plebiscito foi equiparado à lei, a iniciativa legislativa passou, de fato, para os tribunos da plebe456.

O projeto de lei era afixado (promulgatio) para que os cidadãos o discutissem com o magistrado em reuniões não oficiais (contiones).

A proposta do magistrado chamava-se rogatio. Aos participantes do comício distribuíam-se duas pequenas tábuas, uma com a letra A (inicial do verbo antiquo = rejeito) e outra com as letras U.R. (uti rogas = como pedes). O votante depositava a tábua de sua preferência na urna (cistula) limitando-se a aprovar ou rejeitar integralmente os projetos de lei ou ainda a abster-se (non liquet), Compreende-se que esse processo de votação propiciava abusos por parte do proponente que podia enxertar em propostas, disposições heterogêneas. As leis assim enxertadas chamavam-se leges saturae e foram posteriormente proibidas457.

A lei aprovada pelos comícios necessitava da ratificação do senado: auctoritas patrum. “A partir da lei Publilia a auctoritas do senado passou a ser dada por antecipação, qualquer que fosse o resultado da votação comicial (incertus eventus) ; tornou-se assim mera formalidade e com esse caráter subsistiu enquanto subsistiram os próprios comícios”458.

A lei votada pelo comício (lex rogata) constava, além do index (que continha o nome gentilício do magistrado proponente e a sucinta indicação do conteúdo da lei: Lex Aquilia de damno), de três partes:

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Praescriptio: continha o nome e o título do magistrado proponente, a data e o local da votação, a indicação da cúria, centúria ou tribo que votava em primeiro lugar bem como o nome do cidadão chamado a iniciar a votação.

Eis, a título de exemplo, a praescriptio da Lex Quinctia de aquaeductibus do ano 9 a.C.

T. Quinctius Crispinus consul populum jure rogavit populusque jure scivit in foro pro rostris aedis divi Julü pridie K. Julias. Tribus Sergia principium fuit, pro tribu S. Sex... L. f. Virro primus scivit.

T. Quíncio Crispim cônsul propôs legalmente ao povo e o povo legalmente votou no foro ante a tribuna do templo do divo Júlio no dia anterior às Kalendas de Júlio. Foi a primeira a tribo Sérgia e pela tribo S. Sex. Virro, filho de Lúcio, votou primeiro.

Rogatio: era o próprio texto da lei apresentado pelo magistrado e aprovado pela assembléia. Se fosse muito extenso, o texto era dividido em capítulos.

Sanctio: indicava as medidas a serem tomadas em caso de transgressão da lei459.

As leis comiciais entravam em vigor a partir do momento em que o magistrado proclamava sua aprovação (renuntiatio) e independentemente do ato de publicação. Os textos das leis eram gravados em bronze ou pedra e expostos ao público. A expansão do domínio romano tornou necessário afixar as leis votadas na capital, nas regiões do interior. Assim é que grande parte das leis romanas conhecidas através da epigrafia provém da Itália ou das províncias.

Um texto de Ulpiano (Lider singularis regulurum) distingue entre leis perfeitas, imperfeitas e menos que perfeitas (Leges aut perfectae sunt, aut imperfectne, aut minus quam perfectae).

Perfectae são aquelas que impunham a nulidade do ato praticado contra o dispositivo legal. Assim, por exemplo, a Lex Vocania (169 a.C.) declarava nulos os legados superiores à parte destinada ao herdeiro testamentário. A Lex Aelia Sentia (3 P. C. ) anulava as manumissões feitas pelo devedor em fraude do credor.

Minus quam perfectae são as que não estabelecem a nulidade do ato contrário mas impõem uma pena ao transgressor. Assim, por exemplo, a Lex Furia testamentaria (204-169 a.C.), que vedava, com certas exceções, o legado excedente de mil asses, não anulava o legado assim concedido mas obrigava o legatário a restituir ao herdeiro o excesso em quádruplo.

As Imperfectae não são sancionadas nem pela nulidade nem por uma pena. Assim, por exemplo, a Lex Cincia de donationibus (204 a.C.) que proibia qualquer espécie de doação superior a determinada quantia (que ignoramos), excetuando-se dessa proibição determinadas pessoas. A lei não impunha nulidade nem pena. “Disso resultava que nessa hipótese o magistrado não podia prestar o seu concurso para fazer cumprir a lei. Assim é que, se a doação excessiva havia sido prometida mas ainda não estava realizada, o donatário não podia exigir o cumprimento dela, porque a lei a proibia; por outro lado, se a doação tivesse sido efetuada, não podia o doador reaver a coisa doada, porque a lei não estabelecia a nulidade do ato”460.

O imperador Teodósio II (439) estabeleceu que a sanção de nulidade se contém implicitamente em toda lei proibitiva.

As leis comiciais não tinham valor territorial mas pessoal: aplicavam-se somente aos cidadãos romanos em qualquer lugar em que se encontrassem461.

Quanto à lei no tempo, deve-se observar que na legislação republicana não havia regra geral estabelecendo o princípio da irretroatividade em direito civil. “Atesta, todavia, Cícero que

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as leis civis continham normalmente uma cláusula de estilo vedando-lhes o efeito retroativo: em virtude dessa cláusula, a lei nova respeitava os atos praticados de acordo com a lei antiga”462.

A lei Falcidia ( 44 a. C. ), que proibia os legados excedentes de três quartos da herança, afastou expressamente a hipótese da retroatividade ao estabelecer a cláusula : post hanc legem rogatam (D. 35.2.1) “A repetição dessa cláusula em diversas leis denota que não havia um princípio geral vedando o efeito retroativo da lei; aliás, não seria necessária a repetição”463.

Os juristas clássicos, quanto se sabe através dos textos, não formularam o princípio da irretroatividade da lei. No período pós-clássico aparece numa constituição (codex theodosianus, 1.1.3) de Teodósio I (393) o princípio geral segundo o qual as leis não prejudicam os fatos passados e estabelecem regras apenas para os fatos futuros: omnia constituta non praeteritis calumniam faciunt, sed futuris regu1am ponunt464.

Em diversas constituições de Justiniano afirma-se expressamente a irretroatividade. Quando, entretanto, a lei retroagir, não pode prejudicar a coisa julgada ou aquilo convencionado em uma transação : “quae enim jam vel judiciali sententia finita sunt vel amicali pacto sopita, haec resuscitari nullo volumus modo” (Const. Tanta, 23 - In Confirmatione Digestoram).

Na Novela 22 (cap. I) Justiniano formula explicitamente o princípio segundo o qual os fatos jurídicos e suas conseqüências (eventus) devem ser regidos pela lei do tempo em que ocorreram (haec valeant singula secundum propria tempora) sem nenhuma interferência da lei nova (non habentia ullam ex praesenti lege novitatem).

Embora as leis comiciais, quando versavam sobre um princípio de direito, pretendessem ter validade perpétua (in perpetuum valitura) e chegassem a prever especiais sanções contra qualquer modificação ou revogação, os romanos tiveram que curvar-se ante a realidade dos fatos mais poderosa que a pretendida validade perpétua. Assim é que se admitia a revogação da lei quando a mesma não mais correspondia às necessidades da época.

Já na Lei das XII Tábuas existe o princípio de que a lei posterior revoga a anterior. “Cícero alude a esse princípio e juristas clássicos o salientam”465.

A lei permanecia em vigor enquanto não fosse revogada por outra lei ou pelo desuso. Vale recordar o texto de Juliano (D. 1.3.32.1): “leges non solum suffragio legislatoris, sed etiam tacito consensu omnium per desuetudinem abrogentur.” As leis se ab-rogam não só mediante o sufrágio do legislador, mas também pelo consentimento tácito de todos, por desuso.

Justiniano (Inst. 4.4.7) declara que a pena de injúria introduzida pela Lei das Doze Tábuas caiu em desuso sendo substituída por uma outra estabelecida pelos pretores, chamada também honorária, e freqüente no foro. (Sed poena quidem injuriae, quae ex lege duodecim tabularum introducta est, in desuetudinem abiit: quam autem praetores introduxerunt, quae etiam honoraria appellatur, in iudiciis frequentatur). O mesmo imperador, ao dar instruções a Triboniano para coordenar as leis que constituiriam o código, recomendou que não inserisse nesta compilação as velhas leis caídas em desuso, mas somente aquelas levadas em consideração pelos juízes ou as comprovadas por antigo costumes. (Sed et si quae leges in veteribus libris positae jam in desuetudinem abierunt, nullo modo vobis easdem ponere permittimus)465-a.

Ainda Justiniano (Nov. 89.15), ao tratar dos filhos espúrios, recusa-se a adotar uma constituição de Constantino (com disposições favoráveis aos espúrios), por considerá-la perempta uma vez que caiu em desuso : haec nan recipimus: quoniam et non utendo perempta est.

Paulus observa que as leis posteriores se integram nas anteriores a não ser que sejam contrárias: posteriores leges ad priores pertinent, nisi contrariae sint (D. 1.3.28).

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A revogação só se dá quando entre a lei antiga e a lei nova existe uma antinomia inconciliável; se não houver, a lei nova passa à formar um sistema com a antiga.

Modestino (D. 50.16.102) sintetiza de modo conciso a noção de revogação em seu duplo aspecto: Derroga-se ou ab-roga-se a lei. Derroga-se a lei quando uma parte da mesma deixa de subsistir, ab-roga-se uma lei, quando é ela totalmente eliminada: Derogatur legi aut abrogatur. Derogatur legi, cum pars detrahitur: abrogatur legi, cum prorsus tollitur.

Leges rogatae e leges datae vão-se tornando cada vez mais raras à medida que se avança no período clássico, o que se explica em face do poder crescente do imperador. O fim do Iº século da era cristã, assinala o término da legislação comicial.

Entre as principais Leges rogatae do período em foco podemos citar a título de exemplo: Lex Aebutia (entre 149 - 126 a.C.) que, segundo alguns autores, teria introduzido um novo sistema processual, o processo formulário466.

Lex Falcidia (44 a.C.) - que reservou para o herdeiro testamentário um quarto do valor líquido da herança.

Lex Fufia Caninia - (sob Augusto) visou restringir o número de manumissões em testamento.

Entre as Leges datae lembremos a Lex Rubria (49 a.C.) chamada também Lex de Gallia Cisalpina. Regula a jurisdição naquela região por haver sido concedida a cidadania a seus habitantes.

Costume

O costume (usus, mos; consuetudo) continua como fonte do Direito no período clássico467.

Girard observa que o jurisconsulto Juliano (D.1.3.32.1) definiu muito bem o papel supletivo novo desempenhado pelo costume ao lado de outras fontes, desde o momento em que deixou de ser a única fonte em virtude da lei escrita468. Não sem razão observa·se como lei o costume inveterado (Inveterata consuetudo pro lege non immerito custoditur) e este é o direito que se diz constituídopelos usos (et hoc est jusquod dicitur moribus constitutum) pois assim como as próprias leis em virtude de nenhuma outra causa nos obrigam, a não ser por terem sido aceitas pela vontade do povo (nan cum ipsae leges nulla alia ex causa nos teneant, quam quod juidicio populi receptae sunt), com razão aquelas coisas que o povo aprovou sem escrito algum, obrigarão a todos (merito et ea que sine ullo scripto populus probavit, tenebunt omnes).

Ulpiano (Regulae 1.4) definiu o costume “um tácito consentimento do povo implantado por um longo hábito” (Tacitus consensus populi langa consuetudine inveteratus) e declara (D. l.3.33) que o costume constante se observe como direito e como lei naquilo que não está previsto no direito escrito (Diuturna consuetudo pro jure et lege in his quae non ex scripto descendunt observari solet).

Observe-se que a prática de determinados atos para que constitua costume, fonte do direito, deve ter a característica da diuturnidade. Explica-se assim por que os textos mencionam os vocábulos consuetudo, mos ou resus acompanhados de expressões como inveteratus, diuturnus, tenaciter servatus (tenazmente observado), etc469.

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Calistratus (D.1.3.38) anota que o imperador Severo dispõem que nas dúvidas que surgem das leis, deve valer como lei o costume ou a autoridade das decisões judiciais reiteradas (rescripsit in ambiguitatius quae ex legibus profisciscuntur consuetudinem aut rerum perpetuo similiter judicatarum auctoritatem vim legis optinere debere).

Um rápido olhar nos textos revela-nos que em face do jus scriptum o costume podia desempenhar uma função interpretativa, supletiva ou até mesmo revogatória.

Vejamos três textos que indicam respectivamente cada uma dessas funções:

Interpretativa: Paulus (D. 1. 3. 37) afirma: O costume é o melhor intérprete da lei (optima enim est legum interpres consuetudo).

Supletiva: Juliano (1.3.32) diz expressamente que naquelas causas em que não se aplicam as leis escritas, é conveniente observar aquilo que foi introduzido pelos usos e costumes (De quibus causis scriptis legibus nan utimur, id custodiri oportet, quod moribus et consuetudine in ductum est).

Revogatória: No já citado texto de Juliano (D. 1.3.32.1) afirma-se expressamente que a lei pode ser revogada pelo desuso: “sed etiam tacito consensu omnium per desuetudinem abrogentur”. Há períodos em que certas leis antigas não mais se adaptam às novas circunstâncias, opondo-se assim ao atual sentimento jurídico popular. Os costumes, traduzindo diretamente esse sentimento, agem, então, de duas maneiras diversas: ou de um modo positivo, revelando um novo direito contrário à lei escrita (usus, consuetudo) ou de um modo negativo, pelo abandono, pelo não uso da lei (desuetudo)470.

Editos dos Magistrados

Ao focalizarmos o Jus honorarium já sublinhamos a importância dos Editos dos Magistrados. Gaudemet considera-os “uma das fontes essenciais do direito clássico” e observa que “se trata aqui de uma fonte muito original que não se encontra, sob esta forma, em qualquer outro sistema jurídico”471. Sublinhemos ainda uma vez a já citada observação de Gaio (1. 6) sobre a importância dos editos dos pretores: sed amplissimum jus est in edictis duorum praetorum urbani et peregrini (mas o amplíssimo direito está nos editos dos dois pretores urbano e peregrino ).

Justiniano (J. 1. 2. 7), numa época já bem distante da grande atividade criadora dos pretores, lembra sua importância: Também os editos dos pretores gozam de não pequena autoridade jurídica; este é também o direito que costumamos chamar direito honorário, por serem os que desempenham as honras, isto é, os magistrados, os que deram autoridade a esse direito. (Praetorum quoque edicta non modicam juris optinent auctoritatem. Hoc etiam jus honorarium solemus appellare, quod qui horcores gerunt, id est magistratus, auctoritatem huic juri dederunt.) Inicialmente os editos eram proclamações orais (ex dicere = dizer solenemente, dizer em voz alta) dos magistrados por ocasião de assumir o cargo ou durante o exercício deste. Posteriormente os editos passaram a ser redigidos em caracteres negros sobre tábuas de madeira revestidas de gesso que, em virtude da cor branca deste, chamavam-se album, designação esta dada também ao conjunto das disposições contidas nessas tábuas. Os títulos eram escritos em vermelho, donde seu nome: rubricas.

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Promulgado para vigorar durante um ano, o edito do pretor chamava-se edictum perpetuum (permanente) ou edictum annuum (anual). Quando circunstâncias imprevistas exigiam solução jurídica imediata não contemplada no edictum perpetuum, o pretor publicava um edito especial: edictum repentinum (edito imprevisto)472.

O pretor que assumia o cargo não tinha a obrigação de acolher o edito de seu antecessor. Ordinariamente porém aceitava as disposições do edito anterior que haviam sido aprovadas pela prática e acrescentava novas disposições. Assim é que o edictum perpetuum continha sempre uma parte que passava de pretor a pretor e que recebeu a designação de edictum vetus ou edictum translaticium (pars transaticiu) em oposição ao edictum novum (pars novus), obra pessoal do novo pretor.

Qual o conteúdo do Edictum? “O edito comporta essencialmente promessas de ações. Ao prometer uma ação, o pretor cria um direito, pois reconhece que uma situação determinada merece ser juridicamente protegida. Transforma o que não era senão uma situação de fato em uma situação de direito. Com efeito, é na medida em que podem obter uma ação na justiça que os cidadãos podem dizer-se titulares de um direito”473. Convém reter que o pretor indicava os modelos ou fórmulas-tipos das ações previstas pela lei (ações civis) e das ações que ele mesmo criava (ações pretorianas). “Quanto às ações civis, o magistrado limitava-se a dar a respectiva fórmula, sem indicar as condições em que a concederia, porque isso já constava da lei.”474 “(Quanto às ações pretorianas, não bastava a fórmula-tipo; o magistrado antepunha-lhe uma cláusula estabelecendo as condições em que concederia ou denegaria a fórmula”475.

Se confrontarmos a lex com o edictum verificaremos as seguintes diferenças fundamentais:

Lex

A lei tinha validade permanente.

A lei estendia-se a todo o Império.

A lei podia revogar uma regra de direito civil.

Edictum

O edito tinha em princípio, validade anual. Seu autor podia modificá-lo ou revogá-lo. Note-se que esta faculdade foi-lhe retirada pela Lex Cornelia (67 a.C.). Este plebiscito obrigou os magistrados a exercerem a jurisdição segundo seus editos: ex edictis suis jus dicere476.

O edito só se aplicava no território sob a jurisdição do magistrado que o promulgara.

O edito não revogava diretamente: “podia apenas chegar praticamente ao mesmo resultado, neutralizando, na aplicação, a lei existente ou suprindo a omissão dela”477.

Com relação ao problema da retroatividade do Edito deve-se observar que “o magistrado concedia a ação ou a denegava no momento em que as partes litigantes compareciam à sua presença, o que implica dizer que o principio a ser aplicado no caso era o do edito desse magistrado, ainda que o fato tivesse ocorrido durante a magistratura de um dos seus antecessores, cujo edito dispusesse, a respeito, de modo diferente”478.

Embora teoricamente a validade do Edito estivesse limitada no tempo (um ano) e no espaço (o território de jurisdição do magistrado), na prática essa validade prolongou-se pelo tempo, como já vimos, através do pars translaticia. No espaço, a extensão do jus honorarium às

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províncias foi assegurada pelo fato de os governadores e questores reproduzirem as partes essenciais do edictum translaticium do pretor urbano ou dos edis de Roma.

O edictum perpetuum do pretor urbano foi codificado, por ordem do imperador Adriano (séc. II), pelo jurisconsulto sabiniano Salvius Julianus.

Um senatusconsultum convidou então os magistrados do Império a aplicá-lo dentro de suas jurisdições.Desde então o jus honorarium foi fixado e somente o imperador podia modificá-lo ou completá-lo479.

A codificação de Juliano teve diversos comentários conforme no-lo atestam os fragmentos encontrados no Digesto referentes aos trabalhos de Ulpiano e de Paulo (século III).

Na reconstituição do Edictum Perpetuum de Salvius Julianus notabilizou-se o grande jurisconsulto alemão (séc. XIX) Otto Lenel.

Responsa Prudentium

Ao estudarmos as características do Direito Romano já acentuamos a importância do trabalho dos juristas na formação das normas jurídicas.

No presente item, depois de um sucinto estudo da jurisprudência romana em geral, vamos focalizar de modo especial a atividade dos jurisconsultos no período clássico e a validade de sua contribuição como fonte do Direito.

Ulpiano, ao fazer a já comentada distinção entre jus publicum e jus privatum (D. 1.1.1.2) sublinha que o primeiro consiste nas coisas sagradas, nos sacerdotes, nos magistrados : (publicum jus in sacris, in sacerdotibus, in magistratibus consistit...). Temos aqui ainda um reflexo da importância do sacerdócio nos tempos antigos de Roma, quando o sumo pontífice (pontifex maximus), como anota Festus, era considerado o “juiz e o árbitro das coisas divinas e humanas”. Nocera chama a atenção para o fato de que a aproximação entre a jurisprudência, considerada divinarum humanarumque rerum notitia (conhecimento das coisas divinas e humanas) e o supremo sacerdócio, como judex atque arbiter rerum divinarum humanarumque (juiz e árbitro das coisas divinas e humanas) mostra por si só, através da eloqüência da linguagem, a extensão e influência sacerdotal sobre o direito mais antigo, influência essa que se reflete ainda no direito posterior480.

O colégio dos pontífices era o primeiro, em dignidade, dos grandes colégios sacerdotais de Roma. Era o guardião oficial da religião nacional. As atribuições, comuns a todos os membros do colegiado, concentravam-se de modo especial nas mãos do presidente do colégio, o Pontifex Maximus.

Os pontífices organizavam o calendário com a indicação dos dias em que era permitido tratar causas em juízo (dies fasti) e dos dias em que essa atividade era proibida (dies nefasti); detinham o segredo das fórmulas rituais que deviam ser usadas para fazer contratos e intentar ações.

Os pontífices desempenhavam papel decisivo na vida jurídica de Roma, praticando uma jurisprudência “esotérica” secreta, privilégio dos patrícios, pois os pontífices eram todos patrícios; o primeiro Pontifex Maximus plebeu foi Tiberius Coruncanius (por volta de 254 a.C.).

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Compreende-se que o monopólio jurisprudencial dos pontífices tenha provocado reações por parte dos plebeus. Em 304 a.C. o já citado Cnaeus Flavius, secretário de Appius Claudius Caecus, publicou uma coleção de fórmulas das ações da lei (legis actiones). Esta coleção foi chamada, segundo Pomponius (D. 1.2.2.7), Jus civile Flavianum. Atribui-se a Flavius também a publicação do calendário. Os leigos podiam agora não só saber em que termos defenderiam seus direitos mas também em que dias podiam fazê-lo.

Por volta de 254 a.C: o já citado Tiberius Coruneanius, segundo Pompônio (D. 1.2.2.35: publice professum), começou a dar consultas jurídicas em público. Este exemplo foi amplamente seguido. “Formados na disciplina jurídica, os candidatos às magistraturas adquiriram o hábito de criar-se uma clientela eleitoral dando consultas gratuitas em público”481.

Laicizado, o direito romano tornou-se uma ciência autônoma possibilitando assim o aparecimento de jurisconsultos leigos entre os quais deve ser mencionado Sextus Aelius Paetus Catus, cônsul em 198 a. C., que publicou uma obra conhecida como Tripartita em virtude de abranger três partes: a Lei das XII Tábuas, a interpretação da mesma e as ações (provavelmente o Jus Aelianum)482.

“A jurisprudência romana possui desde seus inícios, um caráter prático e concreto que permanecerá seu traço fundamental”483.

Pontífices e juristas leigos foram antes práticos que teóricos, procurando sempre orientar as partes na redação dos atos e nas formalidades processuais.

Em meados do século II a. C. a jurisprudência romana é dominada por três jurisconsultos que Pompônio (D. 1. 2. 2. 39) chama de fundadores do jus civile (qui fundaverunt jus civile): Publius Mucius Scaevola, Junius Brutus e Manilius. Vale recordar que Pompônio entende aqui por jus civile aquele direito constituído pelos jurisprudentes (venit compositum a prudentibus D. 1.2.2.5) e que consiste somente na interpretação dos prudentes (in sola prudentium interpretatione consistit D. 1.2.2.12).

Na época de Cícero multiplicam-se os jurisconsultos que sofrem a influência da retórica e da filosofia: lembremos, entre outros, Quintus Mucius Scaevola (cônsul em 95 a.C.), filho de Publius, que escreveu um tratado de direito civil em dezoito livros, constituindo uma exposição metódica do jus civile seguida por outros autores. Aquilius Gallus, amigo pessoal de Cícero, criou uma ação para reprimir o dolo (actio de dolo malo). Servius Sulpicius fez um comentário ao Edito do Pretor. Alfenus Varus (discípulo de Servius), que foi o primeiro a compor Digesta, isto é, “um trabalho de conjunto sobre o Direito Civil e o Direito Pretoriano”484.

Sob o Império os juristas se recrutam dos mais diversos meios: “aos italianos, majoritários no primeiro século, ajuntam-se, a partir da época de Adriano, provinciais, espanhóis ou africanos, inicialmente (cfr. o jurista Africano); a partir do final do século II, orientais”485.

Sob o Império vai-se observar a integração de juristas no quadro de altos funcionários: “Os juristas mais eminentes se põem a serviço do imperador no conselho imperial e nas secretarias. Esta tendência triunfa com os Severos. Os maiores jurisconsultos desta época ocupam altos postos administrativos e têm assento no Conselho Imperial”486.

Sob Augusto, de acordo com o testemunho de Pomponius (D. 1.2.2.47-48 ) iniciam-se duas tendências ou escolas de juristas: Escola Proculiana e Escola Sabiniana (ou Cassiana). Note-se que o nome de cada uma dessas Escolas não é o do respectivo fundador mas o de um dos discípulos.

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Antistius Labeo fundou os Proculianos e Ateius Capito os Sabinianos. Entre os seguidores de Labeo figuram: Nerva Pater, Proculus (que deu o nome à Escola), Nerva Filius, Longinus, Pegasus, Celsus Pater, Celsus Filius e Neratius Priscus.

Entre os seguidores de Capito enumeram-se: Massurius Sabinus (que deu o nome à Escola), Cassius Longinus, Cacilus Sabinus, Javolenus Priseus, Salvius Julianus, Gaius (séc. II a. C.).

Pomponio (séc. II a.C.) presta-nos algumas informações sobre os fundadores dessas escolas. Labeo era um republicano apegado aos antigos costumes. Capito era favorável ao novo regime instituído por Augusto. Sob o ponto de vista jurídico, entretanto, deve-se sublinhar que Labeo era um espírito inovador e Capito tradicionalista487. O último sabiniano teria sido Gaio.

Sob Adriano viveu Salvio Juliano, o codificador do Edictum Perpetuum e considerado hoje, por alguns, o maior jurisconsulto romano.

Pompônio e Gaio foram contemporâneos e viveram sob os Antoninos. A Gaio se devem as Instituições que serviram de base às Instituições de Justiniano.

Na época dos Severos encontram-se, segundo Giffard, “ us três maiores e mais famosos jurisconsultos romanos que são Papiniano, Ulpiano e Paulo” 488 . O primeiro chamado “o príncipe dos jurisconsultos romanos” foi Praefectus Praetorio sob Septímio Severo e acabou assassinado em 212 P.C. por ordem de Caracala. O Digesto contém numerosos fragmentos de suas “Respostas” (Responsa). Ulpiano, discípulo e colaborador de Papiniano, foi também Praefectus Praetorio. Escritor fecundo e excelente vulgarizador, encontra-se dele massa considerável de fragmentos no Digesto489. Paulo, igualmente Praefectus Praetorio, escreveu cerca de noventa obras. No meio do século temos Modestino “jurisconsulto de um bem menor valor”490.

Depois desta brevíssima visão da jurisprudência romana desde suas origens até o final da época clássica, passemos à atividade dos jurisconsultos clássicos.

A jurisprudência clássica apresenta entre outras as seguintes características491:

1. É eminentemente criativa. Em oposição aos antigos jurisconsultos republicanos, que se apegavam demasiadamente aos antecessores e à letra da lei e só timidamente ousavam introduzir novidades, os jurisconsultos clássicos atuam com mais liberdade e segurança, inspirando-se diretamente nas necessidades da vida e superando muitas vezes com um simples aequum est ou sed verius videtur (me parece mais verdadeiro) as dificuldades apresentadas pela letra da lei.

2. Respeito à tradição. Esta característica não se opõe à anterior. A criatividade e o progresso dos clássicos pisavam o chão firme da obra da jurisprudência antiga. Os jurisconsultos clássicos inovaram mas com o olhar voltado também para o passado cuja contribuição aproveitavam e ampliavam.

3. É eminentemente prática. O jurisconsulto romano propunha-se sempre um fim prático que consistia em apresentar soluções convenientes e justas ou ainda em formular princípios ou regras que contribuíssem para essas soluções.

4. É universal, cosmopolita. Este traço característico encontra-se especialmente na última fase do período clássico. Os jurisconsultos procuram criar um direito humano, aequum e bonum apto a satisfazer às exigências de diversas nacionalidades integradas nos amplos horizontes do Império Romano. Lembremos que alguns famosos juristas clássicos eram orientais ou helênicos: Ulpiano era de Tiro, Papiniano da Síria, Modestino e Calistrato eram gregos, Juliano era africano.

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5. Sistematização do direito. Os jurisconsultos clássicos, “seguindo o movimento geral de sua época, sistematizaram o direito que existia antes deles, estabeleceram as categorias jurídicas, construíram os quadros institucionais em que dispuseram as soluções, jurisprudenciais e pretorianas, as decisões legislativas que existiam e preencheram os vazios por meio da análise jurídica e a solução de novas espécies. Esta obra de sistematização é a característica principal do direito romano clássico”492.

Podemos distinguir na atividade dos jurisconsultos um duplo aspecto: prático e científico. As expressões respondere, cuvere, agere e scribere resumem essa dupla atividade. As três primeiras referem-se à atividade prática493:

Agere significa conduzir um processo, orientando o litigante (indicando, por exemplo, a fórmula).

Cavere significa aconselhar os particulares em sua vida de negócios.

Respondere significa responder a consultas feitas quer em casa (domo) quer em público (no Forum).

Observe-se que a prática dos jurisconsultos exercia-se também na função de assessores (assessores ou comites) dos magistrados e, mais tarde, dos imperadores (consilium, auditorium, consistorium).

O aspecto científico da atuação do jurisconsulto caracterizava-se:

1. Pela docência: seu ensinamento revestia um aspecto mais prático que teórico pois formavam seus discípulos através de respostas às consultas formuladas.

2. Pela redação (scribere) de obras jurídicas. Na época clássica encontramos em Roma uma rica literatura jurídica.

Cabem aqui algumas considerações sobre a validade dos Responsa Prudentium como fonte do Direito494.

Na época anterior a Augusto as respostas (responsa) dos jurisconsultos processavam-se sem interferência do Estado. Segundo Pompônio (D. 1. 2. 2. 49) Augusto criou um privilégio especial para alguns jurisconsultos : o jus publice respondendi495. Esta concessão de Augusto tem dado margem a divergências de interpretação quanto à sua natureza e quanto a seu alcance. Giffard assim se manifesta sobre estes dois aspectos: “Jus respondendi é o direito de dar uma consulta, isto é, de fixar a propósito de uma espécie determinada, de um casus, o princípio de direito a aplicar Publice significa “em nome do povo”. Conseqüentemente, os jurisconsultos que receberam o jus publice respondendi estão munidos de uma autoridade jurídica e suas consultas têm a mesma autoridade para o juiz que a lei que eles interpretam. Vinculam-no em direito e ele nada mais tem a fazer senão verificar os fatos”496.

Giffard anota que o privilégio concedido a certos jurisconsultos perturbou logo os imperadores que nele viam como que uma limitação de seus próprios poderes.

Suetônio conta que Calígula havia jurado proibir aos jurisconsultos dar responsa497.

O imperador Adriano recusou conceder o jus publice respondendi aos que o solicitavam (Pompônio, D.1. 2. 2. 49), entendendo que tal privilégio deveria ser reservado aos jurisconsultos chamados a integrarem o Conselho imperial (Consilium principis). Após o reinado de Adriano os jurisconsultos privilegiados integram, via de regra, o Consilium.

Suas obras podiam ser invocadas diante dos tribunais e teriam a autoridade da lei (legis vicem obtinent) quando fossem concordes. “Nesta medida, o imperador lhes reconhece a missão de fazer o direito: jura condere”498.

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Gaio (1. 7) menciona este novo aspecto da atuação e validade dos jurisconsultos: Respostas dos prudentes são as sentenças e as opiniões daqueles a quem é permitido constituir o

�direito. E se todos estiverem de acordo em uma mesma opinião, seu conteúdo tem força de lei; se porém dissentirem, ao juiz será lícito seguir a opinião que quiser, como dispõe um rescrito do divino Adriano (Responsa prudentium sunt sententiae et opiniones eorum, quibus permissum est jura condere. Quorum omnium si in unum sententiae concurrunt, id, quod ita sentiunt, legis vicem obtinet; si ve:o dissentiunt, judici licet quamvelit sententiam sequi: idque rescripto divi Hadriani significatur).

Giffard observa que neste texto de Gaio a expressão responsa prudentium não possui o mesmo sentido da época de Augusto e de Tibério quando o responsum era uma consulta de direito dada a um particular em um caso determinado. Agora responsa são as opiniões encontradas nos escritos dos jurisconsultos499.

Senatusconsultos

Gaio (I. 4) define senatusconsulto como “o que o senado ordena e constitui” (Senatusconsultum est quod se natus jubet atque constituit). Curioso é que Gaio, logo após esta definição, afirma que o senatusconsulto tem força de lei (legis vicem obtinet) mas acrescenta que isto foi posto em dúvida (quamvis fuerit quaesitum).

Ulpiano iC D. 1. 3. 9), em época posterior, não hesita em afirmar: Não se duvida de que o senado possa criar direito (Non ambigitur senatum jus facere posse).

As Institutas de Justiniano (1. 2. 5 ) repetem a definição de Gaio: “Senatusconsulto é o que o senado ordena e constitui” (Senatusconsultum est, quod senatus jubet atque constituit) e acrescenta a seguinte interessante observação baseada em Pompônio (D.1.2.2.9) : “Tendo o povo romano crescido, de modo a ser impossível convocá-lo num só corpo para o fim de sancionar as leis, considerou-se eqüitativo consultar o senado em lugar do povo” (Nam cum auctus est populus Romanus in eum modum, ut difficile sit in unum eum convocare legis sanciendae causa, aequum visum est senatum vice populi consuli).

Pompônio (D. 1. 2 : 2. 9) registra : Depois, como começou a ser difícil reunir-se a plebe, com certeza com muito mais dificuldade o povo, em virtude de tão grande multidão de homens, a própria necessidade transferiu ao senado o governo da república: assim o senado começou a interpor-se e tudo o que constituía era observado, e este direito era chamado senatusconsulto (Deinde quia difficile plebs convenire coepit, populus certe multo difficilius in tanta turba hominum, necessitas ipsa curam rei publicae ad senatum deduxit: ita coepit senatus se interponere et quidquid constituisset observabatur, idque jus appellabatur senatusconsultum).

É interessante observar que Cícero (Topica § 5) enumera os senatusconsultos entre as fontes do jus civile. Destes testemunhos “conclui-se que, já no período republicano, ao menos nos últimos tempos, pode contar-se o senatusconsulto como fonte do direito privado, reconhecendo-se, assim, o poder legislativo do senado”500.

Durante o principado, com a decadência da atividade legislativa dos comícios, aumenta a autoridade legislativa do senado, o que se explica pelas relações entre este órgão e o imperador. Com efeito, no início do principado, “o príncipe, não querendo arrogar-se abertamente o poder legislativo para não contrariar as formas tradicionais, intervinha junto ao senado para que este propusesse ao pretor as reformas necessárias. Numerosos são os senatusconsultos que contêm propostas dessa ordem, como, entre os mais importantes para o direito privado, na segunda metade do século I, o sc. Claudiano (52) sobre as relações ilícitas de

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mulher com escravo alheio, o sc. Neroniano (54-68) sobre os legados nulos por vício de forma, o sc. Trebeliano (55 ou 56) sobre os fideicomissos, o sc. Veleiano (41-79) proibindo às mulheres a intercessão por outrem e o sc. Macedoniano (69-79) vedando empréstimo de dinheiro a filho-família. Mas o senado não se limitou a formular propostas ao pretor: a partir de Adriano (117-138), arrogou-se, sem rebuços, o poder de criar e revogar o direito civil, sub-rogando-se no poder legislativo dos comícios...”501.

Outros senatusconsultos referentes ao direito privado são: “o senatusconsulto Tertuliano (117-138) sobre a sucessão da mãe na herança dos filhos; o senatusconsulto Orfitiano sobre a sucessão dos filhos na herança da mãe (178); a oratio Severi (195), proibindo, salvo casos especiais, a alienação total ou parcial dos prédios rústicos ou suburbanos pertencentes aos menores sob tutela; e, fechando a série, a oratio Antonini (206) ratificando as doações entre cônjuges (proibidas por lei), se o doador morria, sem se ter arrependido ou divorciado”502.

Durante o Império o poder legislativo é mais aparente que real. A iniciativa da proposta de úm senatusconsulto parte ou do imperador ou de um magistrado que é seu porta-voz. Quando a proposta é oral chama-se oratio; quando é escrita chama-se epistula, o que explica a designação dada às vezes aos senatusconsultos: orationes ou epistulae principis ou imperatoris. Gradativamente o senado vai perdendo a faculdade formal de aprovar ou não a oratio principis. Chegamos então às Constituições Imperiais como fonte importante do Direito.

A denominação dos senatusconsultos obedecia a diversos critérios: o conteúdo (de bacchanalibus), o nome do proponente ou proponentes (Trebellianum, Trebellius, cônsul sob Nero), (Claudianum, Claudius imperador) e até o nome da pessoa que havia provocado o senatusconsultum (Macedonianum, referente a um certo Macedo, o usurário mencionado por Ulpiano - D. 14.6.1).

Constituições Imperiais

Já estudamos brevemente o Jus Constitutionum. Vimos então as concepções de jurisconsultos clássicos sobre esses diplomas. No presente item limitar-nos-emos a um rápido estudo das diferentes espécies de constituições. Antes, porém, parece-nos conveniente, tecer breves considerações em torno da origem do poder imperial de legislar503.

No regime instaurado por Augusto, não se confere ao princeps poder legislativo algum embora desde o início do principado as constituições imperiais sejam “uma fonte autônoma de direito”504. Biondi observa que é “ocioso indagar o fundamento jurídico de uma situação que nasce e se afirma, como todos os novos regimes, sobre elementos mais políticos que jurídicos, como o prestigio (auctoritas) e a supremacia de fato que o príncipe assume na vida pública”505.

A origem do poder de legislar do príncipe reside pois na própria autoridade de que gozava o soberano. Fenômeno semelhante, lembra Biondi ocorreu com outros órgãos que não tinham por sua natureza constitucional atribuições legislativas mas que as assumiram em virtude do prestígio de que desfrutavam e da oportunidade de suas intervenções. Isto ocorreu com os concilia plebis, com certos magistrados e com o senado506.

Não corresponde à realidade dos fatos a tardia justificativa de Ulpiano (já citada no item sobre o jus Constitutionum) do poder legislativo do príncipe através de uma lex regia. Justiniano (I. 1. 2. 6) menciona a mesma lei507. Concluamos com Biondi: “Quando o príncipe personifica o Estado e se torna o único órgão dotado de soberania, parece bem natural e inevitável que ele tenha, entre outros, também o poder legislativo e toda justificativa parece ociosa”508.

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Gaio (1. 5) enumera três espécies de constituições: decreto, edito e epístola (Constitutio principis est, quod imperator decreto, vel edicto vel epistula constituit). Da mesma forma Justiniano (I. 1. 2. 6) enumera as três espécies : Assim, pois, tudo o que o imperador decide por uma epístola, julga por um decreto ou ordena por um edito, tem o valor de lei; estas são o que se chama Constituições. (Quodcumque igitur imperator epistulam constituit, vel cognoscens decrevit, vei edicto praecepit, legem esse constat: haec sunt quae constitutiones appellantur).

A terminologia e as distinções referentes às Constituições (Constitutiones, placita) nem sempre são precisas. Os autores, levando em consideração o conteúdo e a natureza do diploma, distinguem quatro categorias de constituições: editos, decretos, rescriptos e mandatos.

Edicta - eram disposições de ordem geral tomadas pelo imperador e aplicáveis, segundo a vontade do soberano, a todo o Império, a uma província, a uma cidade ou a uma determinada categoria de pessoas. O edito imperial distinguia-se do edito dos magistrados quer por sua própria natureza (formulava regra geral obrigatória para todos) e pela duração de sua vigência (em princípio continuava em vigor mesmo depois da morte de seu autor, a não ser que fosse expressamente revogado)509.

Decreta - eram as sentenças que, no exercício da sua função judiciária, o imperador prolatava em seu tribunal (auditorium principis), com o auxílio de seus conselheiros ou assessores. O imperador podia avocar causas ou julgar em grau de recurso. A força obrigatória do decretum restringia-se à espécie prevista na decisão, constituindo coisa julgada (res judicata). Na prática, entretanto, os decretos gozavam de grande autoridade não só por emanarem do imperador como também por serem elaborados com o concurso de um conselho integrado pelos mais eminentes juristas do Império. Compreende-se assim que os juízes o levassem em consideração em suas sentenças e que as sentenças imperiais fossem muitas vezes invocadas pelos jurisconsultos clássicos510.

Justiniano (C. 1.14.12. pr.) atribuiu aos decreta eficácia de lei, -valendo não só para a espécie prevista mas para todos: hanc esse legem non solum illi causae pro qua producta est, sed omnibus similibus.

Rescripta - eram respostas dadas por escrito pelo Imperador (ou por seu conselho) à consulta de um particular ou de um magistrado sobre determinada matéria jurídica. Em geral a resposta a um particular era feita por uma nota escrita à margem ou debaixo da consulta (adnotatio, subnotatio, subscriptio) e a um magistrado era feita mediante uma carta especial (epistula)511.

Mandata - eram instruções de caráter administrativo expedidas pelo imperador a seus funcionários, especialmente aos governadores de províncias. O conteúdo dos mandatos versa geralmente sobre matéria administrativa ou fiscal. Acessoriamente, entretanto, contém disposições de direito civil ou criminal. Assim, por exemplo, Ulpiano (D.29.1.1) informa-nos que os mandatos tratavam do testamento dos militares (postea divus Nerva plenissimam indulgentiam in milites contulit: eamque et Trajanus secutus est et exinde mandatis inseri coepit caput tale: em seguida o divo Nerva outorgou aos militares amplíssima liberdade: Trajano manteve-a e, desde então, começou a inserir-se nos mandatos imperiais o seguinte capítulo...).

Os mandatos só se aplicavam nas circunscrições territoriais em que se exercia a jurisdição do destinatário e só permaneciam vigentes enquanto vivesse o imperador ou enquanto estivesse em exercício o destinatário.

“Morrendo o imperador ou extinguindo-se as funções do destinatário, era preciso a princípio revigorar os mandatos; mas depois foi-se prescindindo dessa formalidade e os mandatos acabaram por tornar-se definitivos, enquanto não fossem revogados. No correr do tempo os mandatos tomaram grande desenvolvimento, formando uma espécie de código dos governadores das províncias”512.

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PERÍODO DO BAIXO IMPÉRIO OU BIZANTINO

As fontes do Direito neste período, anota Giffard, “resumem-se em duas: as leges (e o nome designa agora as constituições) e o jus, que é o direito criado pelos antigos jurisconsultos, o direito clássico completado, revisto e interpretado pelo imperador”513.

Vamos dividir este breve estudo, em dois itens: 1) Leges e jus antes de Justiniano. 2) Compilações justinianéias.

Leges antes de Justiniano

As constituições imperiais (cujas diferentes categorias supra-estudadas tendem a confundir-se) são compiladas resPectivamente no final do século III e no início do século IV em duas coleções conhecidas pelos nomes de seus autores: Codex Gregorianus e Codex Hermogenianus. O primeiro, elaborado no Oriente por um certo Gregorius, abrangia constituições de Adriano e Diocleciano; o segundo, “provavelmente obra do jurisconsulto Hermogeniano, autor de um trabalho intitulado Epitomae Juris”, completava o anterior e continha rescritos de Diocleciano dos anos 293 e 294514.

Os dois códigos, compilações particulares, foram posteriormente atualizados com o acréscimo de novas constituições. Note-se que esses códigos não chegaram até nós515.·Deles só restam poucos fragmentos.

A primeira coleção oficial de Leges é o Codex Theodosianus.

A grande quantidade de textos promulgados no decurso do século IV com as conseqüentes transformações na organização administrativa, financeira e no próprio direito privado (o leitor deve ter presente o quadro político, social e econômico que a História do Império Romano oferece na época) tornava necessária uma codificação que facilitasse o trabalho de jurisconsultos, advogados e juízes.

Teodósio II (408-450) tivera em mente realizar uma vasta obra de compilação que abrangeria as Leges e o jus516.

Este projeto tornou-se inviável e o imperador nomeou em 435 uma comissão de dezesseis membros com a finalidade de compilar as Constituições a partir de Constantino (quas divus Constantinus posterioresque principes ac nos tulimus) e com amplos poderes para reproduzirem em cada constituição somente o que possuísse valor legislativo, devendo suprimir o que fosse considerado inútil, adaptar as disposições legais às condições da época e acrescentar o que lhes parecesse necessário517. A compilação, conhecida como codex Theodosianus foi completada em 437. Em 15 de fevereiro de 438 foi publicada no Oriente e em 25 de fevereiro foi apresentada ao Senado de Roma. O código, que entrou em vigor a 1º de janeiro de 439, está dividido em dezesseis livros subdivididos em títulos em que as constituições são classificadas de acordo com a ordem cronológica. Uma das características do Codex Theodosianus é a prevalência do direito público sobre o direito privado, o que se explica pelo fato de os códigos Gregoriano e Hermogeniano conterem numerosos rescritos referentes ao último dos dois grandes ramos do direito. O livro décimo-sexto do Codex Theodosianus reveste importância especial para o historiador das relações entre a Igreja Cristã e o Império.

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O Codex Theodosianus só teve vigência no Oriente até a entrada em vigor do primeiro código de Justiniano (15 de abril de 529). No Ocidente teve validade até a queda do Império do Ocidente. Note-se, entretanto, que nos Reinos Bárbaros o Codex Theodosianus constitui a principal fonte para o conhecimento do Direito Romano. Uma parte considerável desse código foi usada na chamada Lex Romana Visigothorum ou Breviário de Alarico518. Assim é que o Codex Theodosianus, através do Breviário, tornou-se, no Ocidente, a principal fonte do Direito Romano até o renascimento dos estudos jurídicos em pleno Mundo Feudal519.

A atividade legislativa prosseguiu após a vigência ao código Teodosiano. As constituições então promulgadas por Teodósio II e por outros imperadores estão reunidas em coleções de Novelas pós-teodosianas.

Quanto à transmissão do código observe-se que ele não chegou até nossos dias nem diretamente nem em sua totalidade. Conhecemo-lo quase exclusivamente através de manuscritos ocidentais (especialmente manuscritos do já citado Breviário ).

A jurisprudência no período pós-clássico

Existe uma profunda diferença entre a doutrina jurídica pós-clássica e a jurisprudência clássica. Eis algumas características da primeira520:

1. Anonimato. Não se conservou o nome de um autor jurídico importante a partir do início do século IV até a época de Justiniano.

2. Pouca originalidade. Os juristas são antes compiladores que criadores. A criatividade mais importante consiste em participar da elaboração da legislação imperial cuja interpretação é entretanto privilégio do imperador.

3. Dogmatismo. Este traço se revela na predileção pelas classificações, pelas definições com sacrifício da análise e da discussão de casos “que haviam feito a glória da jurisprudência clássica”521.

4. Simplificação. Havia preocupação de simplificar renunciando-se assim a discussões sutis que não estariam ao alcance do entendimento do leitor e, muitas vezes, do próprio autor522.

Merece menção especial o ensino jurídico oficialmente organizado no período pós-clássico. Entre os centros mais importantes de estudo figuravam Roma, Constantinopla e Beirute. Esta última reveste enorme importância no século V, tendo contribuído para preservar o pensamento jurídico clássico e preparando assim o terreno para as compilações justinianéias.

As obras dos autores pós clássicos podem ser divididas em resumos e compilações.

Entre os resumos podemos lembrar:

Res Cottidianae ou Aureae - trata-se de uma nova elaboração das Institutas de Gaio datada de cerca do ano 300. Conhecemo-la apenas através dos fragmentos conservados no Digesto e nas Institutas de Justiniano523.

Sententiae Pauli - trata-se de um trabalho sumário (antes de 327-328) baseado nas obras de Paulus. “Sacrifica toda discussão jurídica à exposição de máximas simples (sententiae) que já não reproduzem exatamente as soluções clássicas”524.

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Liber singularis regularum – (entre 320 e 342) atribuído a Ulpiano, “trata-se de um resumo que utiliza vários tratados clássicos sobre a base das “Institutas” de Gaio”525.

Entre as compilações deve-se reter:

Fragmentos do Vaticano - coleção, elaborada entre 318 e 321 por autor desconhecido, que contém textos de jurisconsultos clássicos (Papiniano, Paulo, Ulpiano) e constituições imperiais.

Collatio legum Mosaicarum et Romanarum - coleção elaborada por volta de 320 que apresenta um paralelo entre as leis mosaicas e romanas.

A lei das citações

Antes de passarmos ao estudo das compilações de Justiniano, convém dizer algumas palavras sobre a autoridade da jurisprudência no período pós-clássico.

Constantino em 321 manda que sejam abolidas as Notas de Paulo e de Ulpiano às obras de Papiniano. (Ulpiani uc Pauli ir Papinianum notas... aboleri praecipimus - C. th. 1.4.1.) visando assim a pôr fim às dificuldades suscitadas pelas divergências de opinião entre os jurisconsultos citados na justiça (perpetuas prudentium contentiones eruere cupientes C. th. 1.4.1.).

Em 328 Constantino atribui autoridade a toda obra de Paulo e especialmente às Sententiae que ele considera de grande valor jurídico (Universa, quae scriptura Pauli continentur, recepta auctoritate firmanda sunt et omni veneratione celebranda. Ideoque sententiarum libros plenissima luce et perfectissima elocutione... valere minime dubitatur C. Th. 1.4.2).

Uma constituição dos imperadores Teodósio II e Valentiniano III do ano 426 (a famosa lei das citações) destacou, entre diversas obras doutrinárias, “as cinco autoridades de Gaio, Papiniano, Paulo, Ulpiano e Modestino, que formaram, na frase de Serafini, um colégio de mortos sob a presidência de Papiniano”526.

Gaio (1.7) anotara que, segundo um rescripto de Adriano, se todos os jurisconsultos a quem fora permitido constituir o direito, estivessem de acordo (si in unum sententiae concurrunt), este acordo teria força de lei (legis vicem optinet); se porém dissentissem, o juiz poderia decidir livremente (si vero dissentiunt, judici licet quam velit sententiam sequi...).

A lei das citações, já bem distante no tempo, vai, de certa forma, completar o rescrito de Adriano: regulará a escolha a ser feita pelo juiz quando houver desacordo entre os jurisconsultos cuja opinião pode ser citada em juízo.

A citada constituição de 426 divide os jurisconsultos (auctores) em dois grupos:

1. O primeiro grupo está integrado por Gaio, Papiniano, Paulo, Ulpiano e Modestino. ,Estes cinco jurisconsultos poderão ser sempre citados diante do juiz. (Papiniani, Pauli; Gai, Ulpiani atque Modestini scripta universa firmamus...) (Confirmamos o conjunto dos escritos (todos os escritos) de Papiniano, de Paulo, de Gaio, de Ulpiano e de Modestino... - C. Theod. 1.4.3).

2. O segundo grupo está constituído pelos juristas utilizados pelos autores do primeiro grupo, como, por exemplo, Sabino, Scaevola, Juliano, etc... As obras

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destes autores só podiam ser invocadas perante o juiz se houvesse uma collatio codicum, isto é, se fosse exibido o manuscrito da respectiva obra, “o que, dada a impossibilidade ou grande dificuldade da exibição nessa época, importava praticamente em permitir citar somente os cinco jurisconsultos nomeados”527.

(Eorum quoque scientiam, quorum tractatus atque sententias praedicti omnes suis operibus miscuerunt, ratam esse censemus, ut Scaevolae, Sabini, Juliani atque Marcelli amniumque, quos illi celebrarunt, si tamen eorum libri, propter antiquitatis incertum, codicum collatione firmentur = Ordenamos também que seja confirmada a ciência daqueles cujos tratados e opiniões os acima citados inseriram em suas próprias obras, como de Scaevola, de Sabino, de Juliano, de Marcelo e de todos os que aqueles citaram, contanto que, em virtude da incerteza causada pela antiguidade, seus textos sejam confirmados pela comparação com os códigos.)

Em caso de divergência entre os cinco jurisconsultos ou entre estes e os que eles citavam, o juiz devia decidir de acordo com a opinião da maioria. Se houvesse empate, prevalecia a opinião de Papiniano e se este não se tivesse pronunciado, o juiz escolheria a opinião que lhe parecesse mais adequada.

(Ubi autem diversae sententiae proferuntur, potior numerus vincat auctorum, vel, si numerus aequalis sit, ejus partis praecedat auctoritas, in qua excellentis ingenii vir Pipinianus emineat, qui ut singulos vincit, ita cedit duobus: Quando forem proferidas opiniões diferentes. que prevaleça o maior número dos autores, ou, se o número for igual, que prevaleça a autoridade do grupo em que se distinga Papiniano, homem de notável espírito; assim é que ele tem preferência sobre cada um em separado, mas cede a dois (C. Th. 1.4.3).

(Quando as opiniões daqueles cuja autoridade é equivalente, forem produzidas em número igual, que a prudência do juiz escolha os que deve seguir = Ubi autem eorum. pares sententiae recitantur, quorum par censetur auctoritas, quos sequi debeat, eligat moderatio judicantis. C. Th. 1.4.3.)

A constituição de 426 confirmava a decisão de Constantino em relação às Notas de Paulo e de Ulpiano à obra de Papiniano: continuavam desprovidas de validade (praecipimus infirmari).

A lei das citações, que estabelecia o valor de uma opinião jurídica levando em consideração o número dos autores e não o conteúdo da mesma, dá-nos uma idéia da decadência da ciência jurídica na época. “O valor de uma opinião jurídica não é função nem do número nem do prestígio de um grande nome”528.

Compilações de Justiniano

Vamos encerrar este estudo sobre as Fontes do Direito Romano focalizando sucintamente a monumental obra jurídica de Justiniano a que Dionísio Godofredo (1583) deu o título de Corpus Juris Civilis.529

A decadência acentuada dos estudos jurídicos, a inumerável quantidade de obras dos jurisconsultos (copia immensa librorum) e de leis imperiais haviam tornado praticamente impossível a aplicação eficiente das regras jurídicas.

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Justiniano (527 - 565), que tinha como ideal a unidade romana e cristã na universalidade do Império e da Igreja, decidiu empreender à unificação e atualização do Direito mediante a compilação da massa enorme e confusa de leges e de jura.

O 1º Código

Em 13 de fevereiro de 528 através da constituição Haec quae necessario (observe-se o uso de indicar as constituições referentes aos trabalhos de compilação com as palavras iniciais) Justiniano nomeou uma comissão de dez membros presidida por João, ex quaestor sacri palatii e integrada, entre outros juristas, por Triboniano, um dos jurisconsultos mais notáveis da época (Justiniano chama-o de vir magnificus), e por Teófilo professor de direito em Constantinopla, para fazer uma compilação de Leges.

A matéria à disposição dos comissionados eram os códigos Gregoriano, Hermogeniano e Teodosiano, e as novas constituições de Teodósio II e dos imperadores que lhe sucederam, inclusive as do próprio Justiniano. Recomendou-se aos compiladores que evitassem disposições semelhantes ou caídas em desuso, permitiu-se a supressão do desnecessário, a correção e a atualização das constituições.

Em pouco mais de um ano a obra estava concluída e o novo código foi publicado a 7 de abril de 529 com o nome de Codex Justinianeus para entrar em vigor a partir de 16 de abril do mesmo ano. Deste primeiro código só conhecemos, através de um papiro descoberto em Oxirinco em 1914 o fragmento de um índice das constituições dos títulos 11-16 do primeiro livro.

O Digesto (Pandectas)

Através da constituição Deo auctore de 15 de dezembro de 530 Justiniano incumbiu a Triboniano, então quaestor sacri palatii, de realizar a compilação do direito contido nas obras dos antigos jurisconsultos (jura). Triboniano escolheu seus colaboradores formando uma comissão de dezesseis membros entre os quais figuravam onze advogados, Doroteu e Anatólio, professores da escola de Beirute (Berito), Teófilo e Cratino, da escola de Constantinopla, e Constantino, ex-professor da mesma escola e comes sacrarum largitionum (conde das liberalidades sagradas). O objetivo da compilação era pôr fim às incertezas e confusões provocadas pelo grande número de obras e opiniões dos jurisconsultos clássicos. Justiniano rompia assim os estreitos limites estabelecidos pela Lei das Citações, fornecendo aos litigantes o essencial da jurisprudência numa seleção levada a cabo por eminentes e atualizados juristas.

Lemos na Const. Deo auctore (4): Jubemus igitur vobis antiquorum prudentium, quibus auctoritatem conscribendarum interpretandarumque legum sacratissimi principes praebuerunt, libros ad jus Romanum pertinentes et leger et elimare, ut ex his omnis materia colligatur, nulla (secundum quod possibile est) neque similitude neque discordia derelicta; sed ex his hoc colligi quod unum pro omnibus sufficiat... = Dispomos, pois, que leiais os livros sobre Direito Romano daqueles antigos prudentes a quem os sacratíssimos príncipes deram autoridade para redigir e

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interpretar as leis, que os depureis de modo que toda a matéria seja tomada deles na medida do possível sem deixar repetição ou contradição, mas tomado deles o que tenha validade definitiva.

A comissão tinha poderes expressos para completar o imperfeito (quod imperfectum est repleatis), corrigir (hoc reformetis) e suprimir as normas caídas em desuso (jam in desuetudinem abierunt), manter o que se coaduna com a prática quotidiana ou o que o inveterado costume confirmou (cum haec tantummodo obtinere volumus, quae vel judiciorum frequentissimus ordo exercuit vel longa consuetudo hujus almae urbis comprobavit.)...

Segundo a constituição Tanta (1) os juristas teriam consultado cerca de dois mil livros e um total de três milhões de linhas.

Apesar de o imperador haver previsto que a compilação exigiria um dilatado prazo, a comissão levou rapidamente a cabo seu trabalho e o Digesto pôde ser publicado em 16 de dezembro de 533 pela constituição Tanta dirigida por Justiniano ao senado e a todos os povos (ad senatum et omnes populos) entrando em vigor a 30 de dezembro do mesmo ano.

O Digesto consta de cinqüenta livros divididos em títulos salvo os livros 30, 31 e 32. As rubricas dos títulos indicam o objeto de cada um. Em cada título os fragmentos (chamados “leis” pelos antigos) contêm inicialmente uma indicação do jurista e da obra de que foi extraído o texto. Para facilitar as referências, os comentadores medievais do Digesto subdividiram os fragmentos longos em um principium (parte inicial) seguido de vários parágrafos. Um modo corrente de citar o Digesto é indicar a abreviatura D (Digesto) seguida respectivamente dos números do livro, do título, do fragmento e, quando houver, do parágrafo (ou pr. quando se tratar da parte inicial). Assim, por exemplo, D. 7.1.58.1 lê-se: Digesto, livro 7, título 1, fragmento (ou lei) 58, parágrafo 1. Quando a citação se refere aos livros 30, 31, 32 (que, como já foi dito, não estão divididos em títulos pois só têm um título ), o segundo número indica diretamente o fragmento ou lei. Os fragmentos são chamados “leis” porque Justiniano reconheceu-lhes caráter legislativo.

Como os compiladores haviam recebido a incumbência de atualizar o direito, viram-se forçados a fazer interpolações que podem ser substanciais (implicam importante modificação na substância do direito) ou formais (que dizem respeito somente à forma do texto ). Estamos aqui em face de um dos aspectos mais interessantes do estudo do Digesto: a procura das interpolações através de rigorosos métodos críticos que às vezes descambaram para uma condenável hipercrítica. A indicação exata das interpolações reveste importância para a reconstituição da História do Direito Romano. Assim, por exemplo, é de suma relevância saber se um determinado texto atribuído a um jurisconsulto clássico reproduz realmente o direito romano clássico ou já constitui remanejamento para exprimir uma concepção jurídica justinianéia. Note-se, contudo, que os textos clássicos nem sempre chegaram intactos à época de Justiniano, pois muitos sofreram graves alterações no decurso do período pós-clássico530.

O melhor manuscrito do Digesto que se conhece data da segunda metade do século VI ou do início do século VII e encontra-se na biblioteca Laurenziana de Florença e é chamado Florentina. Este manuscrito contém o Index auctorum, isto é, uma lista dos jurisconsultos cujas obras foram atualizadas pelos membros da comissão incumbida da redação do Digesto. As obras mais usadas foram as dos grandes clássicos: Gaio, Papiniano, Paulo e sobretudo Ulpiano.

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As Institutas

Ainda antes da conclusão do Digesto, Justiniano designou três membros da mesma comissão, Triboniano, Doroteu e Teófilo, para a redação de um breve tratado elementar de Direito, as Institutiones. Esta obra, dedicada à juventude desejosa de estudar as leis (cupidae legum juventuti), obedece ao plano das Institutas de Gaio. Suas fontes são as próprias Institutas de Gaio, antigos tratados jurídicos, leis, editos, respostas dos prudentes e algumas constituições imperiais. Note-se, contudo, que alguns textos foram elaborados tendo em vista as inovações introduzidas no campo jurídico. Mais simples que o Digesto e mais teóricas que o Código, as Institutas de Justiniano apresentam noções gerais, definições e classificações que tornam o estudo do direito fácil e atraente.

As Institutas se dividem em quatro livros subdivididos por sua vez em títulos; cada título, com a rubrica do assunto versado, abrange um principium e diversos parágrafos. Eis alguns exemplos do conteúdo:

O primeiro livro trata das pessoas, o segundo da divisão das coisas, da propriedade, dos demais direitos reais, das doações e dos testamentos; o terceiro versa sobre a sucessão ab intestato, as obrigações oriundas de contratos e de quase-contratos. O quarto livro trata das obrigações ex delicto e quasi ex delicto, das ações.

Publicadas em 21 de novembro de 533, as Institutas entraram em vigor na mesma data do Digesto: 30 de dezembro de 533.

O modo corrente de citação das Institutas obedece ao seguinte esquema:

I ou Inst seguido de três números indicando respectivamente o livro, o título e o parágrafo (ou pr. = principium).

O segundo Código

Quando o Digesto e as Institutas entraram em vigor, a atividade legislativa de Justiniano com a publicação de novas constituições tornava necessária uma segunda edição do código (Codex repetitae praelectionis). Assim é que o imperador designou uma comissão integrada por Triboniano, Doroteu e três advogados para elaborarem uma nova edição do código (a única que conhecemos).

O código está dividido em doze livros subdivididos em títulos com as respectivas rubricas e que compreendem várias constituições. As mais longas destas contêm um principium e parágrafos. Publicado em 16 de novembro de 534, entrou em vigor a partir de 29 de dezembro do mesmo ano.

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Novelas

A atividade legislativa de Justiniano prosseguiu até sua morte. As Constituições promulgadas a partir da data da vigência do segundo código chamam-se Novellae e constituem, hoje, parte do Corpus juris civilis. Estas Novellae, escritas em grego, em latim ou em ambas as línguas, poderiam ter ensejado uma terceira edição do código. Justiniano chegou a pensar em tal mas não levou a cabo o projeto.

Assim é que só existem coleções particulares das Novelas:

Epitome Juliani (cerca de 555): de autoria de Juliano, professor de Direito em Constantinopla. Contém, em latim (o que demonstra ter sido a coleção destinada ao Ocidente), 124 constituições (sendo duas repetidas ).

Authenticum: coleção de 134 novelas que chegam até o ano 556. As novelas gregas foram aí reproduzidas, em latim. A tradução é medíocre. Ignora-se a data da compilação provavelmente efetuada na Itália. A designação de Authenticum provém de Bolonha onde a coleção havia sido considerada primeiramente falsa; depois, entretanto, sua autenticidade foi reconhecida.

A coleção mais completa das Novelas é a “Coleção grega das 165 Novelas” composta sob o reinado do imperador Tibério II (578-582) e que contém 158 Novelas de Justiniano, 4 de Justino II, três de Tibério II e ainda três editos (formae) de prefeitos do Pretório.

Antinomias

Vamos encerrar este sumaríssimo estudo sobre as Compilações de Justiniano reproduzindo as regras que devem ser observadas em caso de antinomias entre as diferentes partes do Corpus Juris Civilis;531

I. Antinomia entre o Digesto e as Institutas : como' essas compilações entraram em vigor na mesma data, constituem uma lei única e as contradições entre elas resolvem-se não pelos princípios de revogação, mas de interpretação das leis.

II. Antinomia entre o Digesto ou as Institutas e o Código: este derroga qualquer daquelas compilações, na parte contraditória, em virtude da regra de que a lei posterior revoga a anterior.

III. Antinomia entre o Digesto, as Institutas ou o Código e as Novelas : preponderam estas últimas, em virtude da regra de que a lei nova revoga a mais antiga.

IV. Antinomia entre as Novelas: prevalece a mais recente; por força da mesma regra.

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Capítulo IX

INTERPRETATIO

NOÇÕES GERAIS

A redação dos preceitos jurídicos reveste, via de regra, um caráter abstrato e geral que contrasta com a multiforme variedade dos casos concretos apresentados pela vida quotidiana. Arias Ramos acentua, a propósito: “A previsão do legislador é extremamente finita e a multiplicidade das situações que a realidade oferece, incalculável”532. Acrescente-se o fato de que nem sempre as normas jurídicas são formuladas com a suficiente clareza de molde a não deixarem dúvidas quanto à sua aplicabilidade a determinado caso. De Ruggiero anota ser também “freqüente o legislador exprimir-se com imprecisão de linguagem, quer adotando termos que são equívocos, quer usando para o mesmo conceito vocábulos diferentes, que não são sinônimos (...)” (Instituições, I, pág. 124).

Impõe-se, assim, um trabalho intelectual destinado a fixar o conteúdo e o alcance das normas jurídicas: é a interpretação (interpretatio). Interpretar a lei, ensina Clóvis Beviláqua, “é revelar o pensamento que anima as suas palavras”533.

Entender uma lei, observa Ferrara, “não é somente aferrar de modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal, é indagar com profundeza o pensamento legislativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as suas direções”534. A missão do intérprete é, pois, descobrir o conteúdo real da norma jurídica buscando “não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objetivamente querido : a mens legis e não a mens legislatoris”535 . Em outras palavras, o intérprete procura a voluntas legis e não a voluntas legislatoris. Ferrará salienta: “Relevante é o elemento espiritual, a voluntas legis, embora deduzida atravé das palavras do legislador”536.

A interpretação pode ser classificada quanto à fonte de que emana, quanto ao método empregado e quanto aos efeitos.

Quanto à fonte, temos a interpretação autêntica, a judicial e a doutrinal.

A primeira é obra do próprio legislador. “O que há, porém, de especial na interpretação autêntica, é um nexo íntimo entre a nova e a antiga lei, proveniente da declaração que faz aquela de que o seu pensamento é o mesmo desta, constituindo ambas um só corpo de lei”537. “É interpretativa toda lei que, ou por declaração expressa ou pela intenção de outro modo exteriorizada, se propõe determinar o sentido de uma lei precedente, para esta ser aplicada em conformidade”538. Advirta-se que não se configura a interpretação autêntica “quando se regula só para o futuro ou se completa qualquer lacuna duma lei precedente”.539

A interpretação judicial emana dos juízes. “Em cada caso julgado, há sempre uma interpretação da lei aplicada; se esse modo de interpretar prevalece, resiste às críticas e aos recursos contra eles interpostos e passa a ser adotado por outros juízes, torna-se então jurisprudência”540.

A interpretação doutrinal exprime-se em pareceres dos juristas. Sua influência decorre sobretudo do vigor das razões expendidas e do prestígio técnico do intérprete. Não é, portanto, vinculativa mas meramente persuasiva.

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As interpretações autêntica e judicial são vinculativas : a primeira é lei interpretativa que se incorpora à lei interpretada; a segunda vincula as partes em litígio. Ferrara sublinha a diferença entre interpretação autêntica e doutrinal: “A interpretação autêntica tem, por certo, de comum com a interpretação doutrinal o seu fim, a saber, a determinação do sentido duma norma jurídica; mas ao passo que a interpretação doutrinal o procura livremente, deduzindo-o da letra e das razões, e vale só na medida em que corresponde à vontade legislativa real, a interpretação autêntica, pelo contrário, declara formal e obrigatoriamente o sentido de uma lei anterior, prescindindo de que este se ache efetivamente contido na lei interpretada”541.

Quanto ao método empregado, a interpretação pode ser de gramatical, lógica, sistemática e histórica.

A gramatical baseia-se na letra da lei e chama-se também literal. “A lei é uma realidade morfológica e sintática que deve ser, por conseguinte, estudada do ponto de vista da gramática tomada esta palavra no seu sentido mais amplo o primeiro caminho que o intérprete deve percorrer para dar-nos o sentido rigoroso de uma norma legal. Toda lei tem um significado e um alcance que não são dados pelo arbítrio imaginoso do intérprete, mas são, ao contrário, revelados pelo exame imparcial do texto”542. Ferrara adverte sobre interpretação literal : “As palavras hão de entender-se na sua conexão, isto é, o pensamento da lei deve inferir-se do complexo das palavras usadas e não de fragmentos destacados, deixando-se no escuro uma parte da disposição. Deve-se partir do conceito de que todas as palavras têm no discurso uma função e um sentido próprio, de que neste não há nada supérfluo ou contraditório, e por isso o sentido literal há de surgir da compreensão harmônica de todo o contexto”543.

A interpretação lógica ou racional procura alcançar o sentido da lei através dos processos fornecidos pela lógica geral: “Pretende do simples estudo das normas em si, ou em conjunto, por meio do raciocínio dedutivo, obter a interpretação correta”544. “O elemento lógico consiste na análise da organização do pensamento da lei, isto é. no estudo da relação lógica em que se acham suas diversas partes, de modo a se conseguir o seguro conhecimento do seu sentido, que não deve ser viciado: por ele recorre o intérprete ao raciocínio, à análise, à comparação, a todos os meios que fornecem a ciência jurídica a exata compreensão do direito na mecânica social, a História da formação da lei e a evolução do direito”545.

A interpretação sistemática consiste em “comparar o dispositivo sujeito a exegese com outros do mesmo repositório ou de leis diversas mas referentes ao mesmo objeto” 546 . Focalizando o elemento sistemático na interpretação, Ferrara enfatiza que um princípio jurídico não existe isoladamente: “O direito objetivo, de fato, não é um aglomerado caótico de disposições, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, em que cada um tem o seu posto próprio. Há princípios jurídicos gerais de que os outros são deduções e corolários, ou então vários princípios condicionam-se ou restringem-se mutuamente, ou constituem desenvolvimentos autônomos em campos diversos. Assim todos os princípios são membros dum grande todo”547.

Miguel Reale observa que a interpretação lógica e a sistemática são antes “aspectos de um mesmo trabalho de ordem lógica, visto como as regras de direito devem ser entendidas organicamente, estando umas na dependência das outras, exigindo-se reciprocamente através de um nexo que a “ratio juris” explica e determina”548.

A interpretação histórica enfoca a lei como realidade cultural que se situa por conseguinte na progressão do tempo: “Uma lei nasce obedecendo a certos ditames, a determinadas aspirações da sociedade, interpretadas pelos que a elaboraram, mas o seu significado não é imutável”549. Ferrara observa que a interpretação não é pura arte dialética, não se desenvolve com método geométrico num círculo de abstrações, mas perscruta as necessidades práticas da vida e a realidade social”550.

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Porchat (obra citada, p. 284) chama a atenção para o elemento histórico no estudo da interpretação “pois para se conhecer convenientemente uma disposição legislativa, convém conhecer-lhe a história. Daí o dizer Ortolan que todo jurisconsulto deveria ser um historiador, observando Montesquieu que é preciso esclarecer as leis pela história e a história pelas leis”.

A occasio legis, a circunstância particular do momento histórico que determinou o aparecimento do preceito (Ruggiero, Instituições, vol. I, p. 125), constitui elemento que o intérprete não pode ignorar. Entra aqui também o elemento sociológico. De Ruggiero (obra citada, p. 129) salienta que a lei é o pensamento e a vontade do presente e não do passado. Compreende-se assim a importância de levar-se em consideração a realidade da vida social que se transforma e se desenvolve incessantemente.

Quanto aos efeitos, a interpretação pode ser declaratória, restritiva ou extensiva.

Embora a interpretação seja, sempre declaratória, pois, como observa Matos Peixoto, “o seu objetivo é precisamente explicar o sentido da lei”, “costuma-se chamar declaratória especialmente a interpretação que esclarece as leis ambíguas, obscuras ou imprecisas ou que apenas verifica sem nada reduzir ou acrescentar, o sentido das que o não são”551.

Dá-se a interpretação restritiva quando as palavras da lei dizem mais do que foi desejado pelo legislador (plus dixit quam voluit). O intérprete da lei, a quem compete fixar a mens legis, “subtrai a aplicação da lei a casos que, parecendo compreendidos na generalidade do texto, contrastam evidentemente o seu espírito”552.

Ferrara aponta os seguintes casos em que tem lugar particularmente a interpretação restritiva553.

“1º) se o texto, entendido no modo tão geral como está redigido, viria a contradizer outro texto da lei; 2º) se a lei contém em si uma contradição íntima (é o chamado argumento ad absurdum); 3º) se o princípio, aplicado sem restrições, ultrapassa o fim para que foi ordenado.”

Quando as palavras dizem menos do que foi pretendido pelo legislador e o intérprete amplia o significado aplicando a lei a casos que pareciam excluídos de sua compreensão, temos a interpretação extensiva. Esta ocorre, portanto, quando o legislador disse menos do que queria: minus dixit quam voluit.

Benjamim de Oliveira Filho assim caracteriza as interpretações extensiva e restritiva : “As interpretações extensiva e restritiva provêm de desacordo entre as palavras da lei, verba legis, e o espírito da lei, mens legis, isto é, o sentido, a razão de ser da lei. Entre os dois elementos pode não haver sempre correspondência ou concordância. Ora as palavras da lei, em sua letra, exprimem de maneira acanhada a intenção da lei, sententia legis, ou, em geral, seu espírito, mens legis, e, no caso, intervém a interpretação extensiva para restabelecer o equilíbrio ou a equivalência; ora, ao invés, as palavras da lei excedem seu alcance, ou finalidade, ratio legis, e o corretivo, aparece com a interpretação restritiva”554.

Cabem aqui algumas palavras sobre a analogia. Esta, ensina Carlos Maximiliano, “consiste em aplicar a uma hipótese não prevista em lei a disposição relativa a um caso semelhante”555.

Ferrara assim caracteriza a analogia: “A analogia consiste na aplicação dum princípio jurídico que a lei põe para certo fato a outro fato não regulado, mas semelhante, sob o aspecto jurídico, ao primeiro. Perante casos de que o legislador não cogitou, o intérprete busca regulá-los no sentido em que o legislador os teria decidido se neles tivesse pensado”556.

Cabe pois ao intérprete, nestes casos, preencher as lacunas da lei através do método analógico que se baseia no principio segundo o qual os “fatos de igual natureza devem ser

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regulados de modo idêntico. Ubi eadem legis ratio, ibi aedem legis dispositio: onde se depare razão igual à da lei, ou prevalece a disposição correspondente, da norma referida (...)”557. Ratio legis “é o motivo da norma, a sua razão justificativa”558.

Impõe-se aqui chamar a atenção para a distinção fundamental entre interpretação extensiva e analogia. Na primeira “se reconhece que a norma está expressa na lei, mas que só as palavras não são adequadas à extensão do pensamento nela contido” 559 . Na segunda “se reconhece que não existe norma para o caso mas que se a lei houvesse ditado uma norma para o regular, teria prescrito aquela mesma norma que se conhece para o caso previsto”560.

“A interpretação extensiva não faz mais do que reconstruir a vontade legislativa já existente, para uma relação que só por inexata formulação dessa vontade parece excluída; a analogia, pelo contrário, está em presença duma lacuna, dum caso não prevenido, para o qual não existe uma vontade legislativa, e procura tirá-la de casos afins correspondentes” 561 . Resumindo: a interpretação extensiva completa a lei e a analogia o pensamento da lei562.

Ferrara adverte que o procedimento analógico “não pode desenvolver-se no domínio do jus singulare, porque este, tendo sido introduzido exclusivamente para determinadas categorias de pessoas, coisas ou relações, constitui um campo fechado que não pode ser alargado pelo intérprete, mas só pelo legislador”563.

A INTERPRETAÇÃO NO DIREITO ROMANO

Depois desta sumária exposição sobre a noção de interpretação e suas diferentes modalidades, vamos examinar o problema da interpretatio no Direito Romano desenvolvendo, após breve introdução, o seguinte roteiro : 1 ) A interpretatio através da evolução histórica do Direito Romano 2) Exposição de textos do Direito Romano enquadrados dentro do esquema acima estudado. 3) Breve relação de algumas regras de interpretação extraídas do Digesto.

Para ressaltar a importância que os juristas romanos atribuíram à atividade interpretativa bastaria citar as palavras de Celso (D. 1.3.17) : Saber a lei não é apreender suas palavras mas seu espírito e alcance (Scire leges non hoc est verba earum tenere sed vim ac potestatem).

Ulpiano atribuía tanto valor à interpretação que a recomendava até mesmo em casos de normas jurídicas claras como se vê do seguinte texto: quamvis sit manifestissimum edictum praetorzs, attamen non est neglegenda interpretatio ejus (D. 25.4.1.11): ainda que o edito do pretor seja claríssimo, contudo não deve ser negligenciada sua interpretação. Bonfante (Istituzioni di Diritto Romano, p. 29) enfatiza: “a doutrina da interpretação é parte essencial da ciência do direito romano. Biondi (Istituzioni di Diritto Romano, p. 78) sublinha que faltou uma doutrina sobre a interpretatio que, para os romanos, “era antes uma arte”. Sem teorizar sobre a interpretatio os juristas romanos, com o senso prático que os caracterizava, souberam usá-la de acordo com as circunstâncias históricas.

Justiniano tentou no Digesto (1.3) um esboço de teoria de interpretação cuja sistematização preocupou a doutrina a partir dos glosadores 564 . Assim é, que, desde o renascimento dos estudos de Direito Romano, os juristas, através de uma longa elaboração, procuraram extrair do Corpus Juris Civilis os princípios de uma interpretação jurídica : “Foi desta longa elaboração que saíram os esquemas dogmáticos precisados e fixados pelos pandectistas e em seguida utilizados pelos civilistas e romanistas modernos: Esses esquemas são os elementos de uma espécie de teoria geral de interpretação jurídica considerada como própria

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para constituir a estrutura dogmática de uma exposição da interpretação da lei em uma época qualquer”565.

Um rápido olhar através da História do Direito Romano revela-nos a importância da interpretatio como monopólio dos pontífices aos quais se recorria para as ações, para os negócios e para a obtenção de soluções jurídicas em determinados casos. O magistrado que consultava os pontífices dirigia-se ao Colegiado enquanto que os particulares costumavam recorrer a um dos pontífices. Anualmente um deles era designado para atender às consultas privadas566.

Pompônio (D. 1.2.2.6) informa-nos a propósito : “A ciência da interpretação dessas leis assim como o conhecimento das ações se encontravam no colégio dos pontífices, entre os quais se designava um que cada ano atendesse aos particulares.” (Omnium tamten harum et interpretiandi scientia et actiones apud collegium pontificum erant, ex quibus constituebatur, quis quoquo anno praeesset privatis.).

“A princípio, a interpretatio dos pontífices e dos primeiros juristas leigos diferia bastante da interpretação moderna, pois, por meio daquela, se aplicava norma jurídica existente para atingir fim diverso daquele para que fora criada. Por exemplo, a Lei das XII Tábuas estabelecia que, se o paterfamilias vendesse três vezes o filho, este se libertaria do pátrio poder. A finalidade do preceito era punir o paterfamilias que assim procedesse, fazendo-o perder a patria potestas sobre o filho. Mas os juristas, pela interpretatio, se serviram dessa norma para criar um modo legítimo de emancipação do filho, mediante três vendas simuladas”567.

O monopólio dos pontífices foi-se progressivamente deteriorando. Uma das etapas da quebra desse monopólio foi o ato do primeiro pontífice máximo plebeu, Tiberius Coruncanius (cerca de 254 a.C.) que, segundo Pompônio (D. 1.2.2.35 e 38), começou a publice profiteri, isto é, a dar consultas em público com caráter de divulgação e de didática568.

Abriu-se, assim, o caminho para a jurisprudência leiga que foi dominar o desenvolvimento do direito nos últimos dois séculos da república. Estamos aqui em face do que os romanos chamavam jurisprudentia ou prudentes.569

Sobre a jurisprudência antiga, Von Ihering, depois de citar exemplos que parecem não deixar dúvida sobre o apego rigoroso à palavra, observa: “A nosso ver, é preciso, no entanto, desfazer, em absoluto, essa opinião”570. E mais adiante: “A jurisprudência antiga, com efeito, não se cingia a explicar o conteúdo da lei, interpretava-a segundo queria fazê-lo; e submetendo-se aparentemente à lei, colocava-se, na realidade, fora dela. Mais de uma de suas explicações desmentiam o texto e o sentido da lei, não se podendo ocultar que em muitas circunstâncias zombava de seus termos. A exatidão da interpretação, quer dos termos, quer do pensamento do legislador, não era a única decisiva para que se adotasse ou se repelisse, desde logo, a sua conveniência; o verdadeiro criterium era a oportunidade prática”.571

A atividade respectivamente dos juristas e dos pretores ilustra bem esta assertiva. Arangio Ruiz chama a atenção para o papel desempenhado pelo jurisconsulto romano como intérprete de um costume considerado “capaz de aplicações indefinidas, sempre que estas se enquadrassem nos esquemas prefixados dos negócios jurídicos e das ações judiciárias” 572 . Explica-se assim a antítese entre lex e jus; jus aqui equivale a interpretatio, “palavra que não se deve referir à lei mas ao costume”573 . Compreende-se assim a distinção de Pompônio (D. 1.2.2.12) entre uma parte do Direito constituída pela lei (lege constituitur) e outra que consista só na interpretação dos jurisprudentes (in sola prudentium interpretationum consistit). Da mesma forma, continua Arangio Ruiz, “explica-se o nome de juris conditores (fundadores do direito) e até de legum inventores (autores de leis) “que nos textos jurídicos e não jurídicos encontramos dado aos juristas”574.

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Quanto ao papel do pretor romano, remetemos o leitor para o que já escrevemos a propósito do jus honorarium. De Ruggiero observa que a correção da norma é trabalho vedado ao intérprete “que não tem hoje, como tinha o pretor romano, a faculdade de corrigir o direito objetivo”575. Ainda o mesmo autor: “Se o pretor tem esta faculdade, além daquela de integrar e cooperar no desenvolvimento do jus civile (D. 1.1.7.1. Jus praetorium est, quod praetores introduxerunt adjuvandi vel supplendi vel corrigendi juris civilis gratia propter utilitatem publicam), tal depende do fato de ser um dos órgãos mais importantes da criação do direito em Roma.” Note o leitor o senso prático romano revelado na expressão propter utilitatem publicam (por causa do interesse público).

No que concerne à liberdade de interpretar, os jurisconsultos clássicos seguiram na esteira de seus predecessores da época antiga. Vonglis adverte que se a interpretação clássica das leges parece menos livre “é porque esses textos relativamente recentes concerniam a domínios bem precisos nos quais não se havia produzido nenhuma evolução durante o período considerado”576. Ao lado dessa liberdade que caracteriza a atuação criativa dos jurisconsultos (o jus civile chegou a ser caracterizado como interpretatio prudentium) convém chamar a atenção do leitor para a influência da retórica no desenvolvimento da interpretatio. Lembremos que jurisconsultos e retores, embora representassem disciplinas bem distintas entre si, encontravam um terreno comum na prática judiciária “em que a eloqüência destes valorizava a ciência daqueles a não ser que o interesse do cliente do momento exigisse que a ridicularizassem”577.

Os tratados de retórica (entre os quais podemos lembrar, a título de exemplo, os Institutionis oratoriae libri XII de Quintiliano) ensinavam como persuadir pela palavra a respeito de qualquer tema e “in utramque partem”, isto é, pró ou contra. Compreende-se o papel decisivo da interpretatio que a teoria retórica aplicava a todos os textos: leis e atos jurídicos. O problema da relação entre verba (palavras) e a sententia (veremos mais adiante o significado desta expressão) ocupa “um lugar importante nos métodos jurídico e retórico de interpretação da lei”.578

Para uma compreensão ainda que superficial da atividade interpretativa dos jurisconsultos na época clássica convém ter presentes duas noções fundamentais: interpretatio ex verbis e interpretatio ex sententia.

Todo texto legislativo é a expressão de uma vontade. A expressão se faz evidentemente através das palavras (verba) que constituem o texto. A vontade do legislador deve ser procurada nessas palavras. Temos aqui a interpretatio ex verbis, a interpretação literal. Quando, entretanto, o intérprete, em função do império da realidade e da concepção de justiça reinante em sua época, dá ao texto um sentido diverso do literal, temos a interpretatio ex sententia.

Na interpretatio ex verbis o intérprete se vê na contingência de respeitar os limites em que se encerra a vontade do legislador, abstendo-se tanto de restringir o sentido da lei (a não ser que esta restrição esteja literalmente expressa) como de complementá-lo ou estender o domínio de sua aplicação. Vonglis observa que numerosos textos revelam que efetivamente jurisconsultos e retores aplicam essas duas regras 579 . A interpretatio ex verbis encontrava porém uma dificuldade praticamente insuperável quando o texto apresentava ambigüidade (ambigua vox legis), isto é, admitia dois ou mais sentidos possíveis. Os retores dedicaram-se a fundo ao estudo dos diferentes modos de apresentar-se a ambigüidade. Quintiliano distinguiu duas categorias de ambigüidade; a que provém de uma palavra isolada (vocibus singulis) ou de diversas palavras reunidas (vocibus conjunctis) 580 . Sobre a interpretação em caso de ambigüidade Celsus (D. 1.3.19) adverte : Em um termo ambíguo da lei deve se admitir de preferência aquele sentido que carece de falha, principalmente quando daí se possa também inferir a vontade da lei (In ambigua voce legis ea potius accipienda est significatio, quae vitio caret praesertim cum etiam voluntas legis ex hoc colligi possit)581.

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Calistratus (III séc. P.C.) anota, a propósito da interpretação em caso de ambigüidade, ter o Imperador Septímio Severo disposto em um rescriptum que nas ambigüidades surgidas das leis deve valer como lei o costume ou a autoridade das coisas julgadas. (Nam imperator noster Severus rescripsit in ambiguitatibus quae ex legibus proficiscentur consuetidinem aut rerum perpetuo similiter judicatarum auctoritatem vim legis optinere debere. D.1.3.38).

Compreende-se que a ambiguitas ou mesmo uma pretensa ambiguitas ensejasse aos jurisconsultos uma liberdade de interpretação, isto é, uma interpretação pessoal do jurisconsulto. Esta interpretação pessoal podia ser restritiva ou extensiva (lei incompleta: verba desunt).

Para entendermos melhor a liberdade de interpretação dos jurisconsultos torna-se indispensável uma noção sucinta da já mencionada sententia legis, pois numerosos textos jurisprudenciais referem-se à sententia legis visando a apoiar uma interpretação infiel às verba legis (palavras da lei). Sublinhe-se, desde logo, que sententia legis não é a voluntas legislatoris (vontade do legislador): é “o sentido dado à lei em função das necessidades apreciadas pelo intérprete segundo sua concepção do aequum e do bonum”. “É o espírito da lei, seu sentido útil, seu conteúdo latente...”582

O intérprete deve compreender o texto legislativo em função do aequum e do bonum. “Mas como a lei é durável e realidade mutável, é a noção do aequum e do bonum própria de uma época que o intérprete levará em consideração e não a que estava em uso no momento da elaboração da lei583. Interpretar ex sententia é interpretar em um dos sentidos autorizados pelas virtualidades lógicas do texto.

Na interpretação ex sententia a apreciação pessoal dos jurisconsultos clássicos desempenhou papel decisivo e, quanto permitem as fontes, pode se afirmar que durante o período clássico os intérpretes gozavam de ampla liberdade. Com efeito nem o jus respondendi nem o ingresso dos jurisconsultos no consilium principis parecem ter implicado limitação a essa liberdade. Esta limitação apareceu no período pós-clássico com a decisão de Constantino inserta no Código (1.14.1): o imperador se reserva o direito de interpretar (Inter aequitatem jusque interpositam interpretationem nobis solis et oportet et licet inspicere) = somente a nós compete e é lícito fixar a interpretação nos casos de dúvida entre a aequitas e o jus.

Concluamos estas breves considerações sobre a interpretatio ex verbis e a interpretatio ex sententia, lembrando alguns princípios que constituiriam, por assim dizer, a técnica de interpretação584.

1) O intérprete pode tirar partido de todas as possibilidades que lhe oferece o texto da lei quer diretamente no sentido literal das palavras (verba), quer indiretamente ex sententia. Ulpiano (D. 50.16.6.1) enuncia este princípio : Tam ex legum sententia quam ex verbis.

2) O processo intelectual da interpretação tem seu ponto de partida no exame do caso particular proposto ao jurisconsulto.

3) Na solução do caso, o jurisconsulto persegue a realização do bonum (no sentido daquilo que é conveniente, que é oportuno) e do aequum (no sentido aristotélico de igualdade proporcional).

4) A atividade do jurisconsulto se encontra de certa forma cercada pelos imperativos do sistema legislativo vigente. Se houver identidade absoluta entre o caso em foco e outro já previsto expressamente em lei, a aplicação da norma legal se impõe de acordo com a manifesta voluntas legislatoris.

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5) A medida que a semelhança se dilui, o jurisconsulto pode escolher segundo critérios próprios (que não contrariem ao mesmo tempo as palavras (verba) a sententia) invocando então a sententia legis.

Tentemos agora focalizar, por meio de alguns textos, a interpretação romana dentro do esquema estudado no início deste capítulo. Já sublinhamos que os juristas romanos não elaboraram especialmente uma teoria da interpretação. Os juristas clássicos contudo utilizam-se amplamente dos métodos que ainda hoje são empregados. Assim, por exemplo, encontramos nos textos a interpretação gramatical, lógica, sistemática, etc. . . Comecemos com as modalidades da interpretação quanto à fonte donde emana.

A interpretação autêntica no Direito Romano predomina no período pós-clássico quando o imperador se torna o único legislador e intérprete. Constantino declara a supremacia imperial em matéria de interpretação (C. 1.14.1: interpositam interpretationem nobis solis et oportet et licet inspicere). Justiniano (C. 1.14.12) declara peremptoriamente que se compete só ao imperador o poder de fazer leis (si enim in praesenti leges condere soli imperatori concessum est), a ele também deve competir interpretá-las (et leges interpretari solum dignum imperio esse oportet)585.

Na Constituição Tanta (De Confirmatione Digestorum) Justiniano adverte (§ 21) que se houver algum ponto duvidoso (ambiguum fuerit visum) os juízes devem submeter o caso ao imperador (hoc ad imperiale culmen per judices referatur), o único a quem é permitido fazer as leis e interpretá-las (cui soli concessum est leges et condere et interpretari).

Na novela 143 Justiniano proclama que ninguém duvida (nemini venit in dubium) competir a interpretação da lei somente ao imperador (legis interpretationem culmini tantum principali competere).

De Ruggiero (obra citada, p. 138) observa, contudo, que dessas passagens não se deve concluir que Justiniano houvesse banido por completo a interpretação doutrinal e judicial.

A interpretação judicial vincula as partes litigantes em torno da questão julgada, de acordo com o princípio enunciado por Ulpiano (D 50.17.207): a coisa julgada é aceita como verdade (res judicata pro veritate accipitur). Segundo o já citado rescriptum de Septímio Severo referido por Calistrato (D. 1.3.38) nos casos ambíguos a interpretação fixada em decisões judiciárias uniformes sobre espécies semelhantes teria força de lei (In ambiguitatibus quae ex legibus proficiscuntur (...) rerum perpetuo simileter judicatarum auctoritatem vim legis optinere debere).

A interpretação doutrinária já foi focalizada de modo especial, no item sobre Responsa prudentium como fonte do direito.

Passemos, agora, a breves comentários sobre o método empregado na interpretação. A interpretação gramatical fundamenta-se na letra da lei, donde a designação de literal. Von Ihering (O Espírito do Direito Romano, T. III, p. 105 e ss) cita diversos exemplos do Antigo Direito que sugerem um rigoroso apego da jurisprudência antiga à palavra da lei. Assim, por exemplo, a passagem da Lei das XII Tábuas sobre a venda dos filhos pelo pai: Si pater filium ter venumduit filius a patre liber esto (Se o pai vender o filho três vezes, o filho estará livre do pai), foi interpretada pelos juristas posteriores no sentido de estender a expressão filius aos filhos e netos. Os juristas antigos aplicavam-na rigorosamente aos filhos. Von Ihering, na obra supracitada, observa: “Estes exemplos parecem não deixar nenhuma dúvida de que a jurisprudência antiga, para a interpretação das leis, atinha-se rigorosamente à palavra. A nosso ver, é preciso, no entanto, desfazer em absoluto essa opinião”586. O eminente romanista cita então uma série de exemplos em que a jurisprudência antiga se afasta inteiramente do sentido da palavra. Vejamos apenas um exemplo : A lei das XII Tábuas fixa o prazo de usucapião em dois

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anos para o fundus e um para as caeterae res (outras coisas). Surge a indagação: em que categoria seriam colocadas as casas? “Atendo-se à interpretação literal, pertencem evidentemente às caeterae res; no entanto a interpretação, acertadamente, as assimila, na prática, ao fundus”.587

Bonfante adverte que interpretação gramatical e interpretação lógica constituem dois momentos do processo lógico. 588 “Pode acontecer que a interpretação gramatical não proporcione de modo algum um sentido claro e verossímil: Aqui começa a tarefa da interpretação lógica. Neste segundo estágio a primeira coisa que convém olhar é a conexão entre as várias partes da própria lei”.589

Eis os passos do processo lógico e sistemático:

1. Relacionar as diferentes partes da lei. “Não se deve dar, de uma disposição isolada, uma interpretação contraditória a uma outra disposição ou ao espírito do conjunto do texto”590. Celso (D. 1.3.24) adverte contra o ato de julgar ou decidir, deixando-se de lado o texto em seu conjunto e levar-se em consideração apenas uma parte do mesmo (Incivile est nisi tota lege perspecta una aliqua particula ejus proposita judicare vel respondere).

No texto D. 50.16.53 Paulus desenvolve uma interpretação utilizando-se do elemento lógico. Ei-lo: Freqüentemente acontece, adverte Paulus, que coisas que parecem reunidas por uma conjunção copilativa, devem estar separadas, e coisas que parecem separadas por uma disjuntiva devem estar reunidas; assim, quando os antigos usam da expressão - adgnatorum gentiliumque - eles separam os agnados dos gentis; quando se diz, porém super pecuniae tutelaeve suae não é possível separar os bens e a tutela, porque não se pode nomear tutor separadamente à pessoa sem o nomear aos bens; quando dizemos - quod dedi aut donavi falamos de ambas as coisas; quando dizemos, porém, quod eum facere dare oportet, basta que se verifique o fazer ou o dar (...)“591.

Depois de salientar que o processo lógico tem mais valor do que o simplesmente verbal, Carlos Maximiliano repete o conselho: “deve-se evitar a supersticiosa observância da lei que, olhando só a letra dela, destrói a sua intenção” e acrescenta: “Por outras palavras o Direito Romano chegara conclusão idêntica; declarara age em fraude da lei aquele que, ressalvadas as palavras da mesma, desatende ao seu espírito”592. (In fraudem vero, qui, salvis verbis legis, sententiam ejus circumvenit - D. 1.3.29).

Sobre a interpretação sistemática no Direito Romano escreve Porchat: “No direito romano é impossível desconhecer o grande interesse e mesmo a necessidade do emprego do processo sistemático para a interpretação das leis. Como prova disso, basta recordar que esse direito foi sistematizado de um modo admirável pelo imperador Justiniano, que, ao promulgar as suas três grandes coleções (Institutas, Digesto e Código) declarou ficarem elas constituindo a única legislação em vigor, sem conter contradição alguma e recomendou que, no caso de aparecer, à primeira vista, qualquer antinomia, recorresse o intérprete a um estudo mais atento (subtili animo), certo de que ela só desvaneceria completamente”593.

(C. Tanta, 15: Contrarium autem aliquid in hoc codics positum nullum sibi locum vindicabit nec invenitur si quis subtili animo diversitatis rationes excutiet...) (Não haverá neste código nenhuma contradição nem se encontrará se alguém com argúcia souber afastar as razões da diferença).

2. Verificar a conexão de uma lei com outras tanto anteriores como posteriores. Assim é que Paulo (D.1.3.26 e 1.3.28) adverte: “Não é novidade que as leis anteriores se estendam nas posteriores (Non est novum, ut priores leges ad posteriores trahan tur).” “Mas também as leis posteriores se integram nas

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anteriores, a menos que sejam contrárias” (Sed et posteriores leges ad priores pertinent, nisi contrariae sint).

3. Procurar o fim a que se propõe a lei : a ratio legis. Paulo (D. 10.4.19) ensina que não se deve tergiversar com palavras mas que convém levar em consideração a intenção com que uma coisa é dita (respondit non oportere… neque verba captari, sed qua mente quid diceretur, animadvertere convenire…). Celso (D. 33.10.7.2) diz que a intenção de quem afirma é mais importante e de mais força do que a palavra (Prior atque potentior est quam vox, mens dicentis.) A norma, anota Ferrara, “descansa num fundamento jurídico, numa ratio juris que indigita sua real compreensão”594.

4. Verificar as condições jurídicas e sociais em que foi elaborada a norma: a occasio legis. Esta é “a circunstância histórica de onde veio o impulso exterior para a criação da lei”595. O exame da occasio legis permite muitas vezes ao intérprete desvendar o sentido de leis ambíguas e evita entendimentos alheios à mens legis. Paulo (D. 1.3.23) lembra que de modo algum deve ser alterado o que sempre teve uma interpretação certa (Minime sunt mutanda quae interpretationem certam semper habuerunt). Ainda o mesmo jurista valoriza o elemento histórico-sociológico ao afirmar (D. 1.3.37): “Quando se indaga sobre a interpretação de uma lei, deve-se averiguar em primeiro lugar de que direito havia usado anteriormente a cidade em casos semelhantes, já que o costume é o melhor intérprete das leis.” (Si de interpretatione legis quaeratur, in primis inspiciendum est, quo jure civitas retro in ejusmodi casibus usa fuisset: optima enim est legum interpres consuetudo).

No que tange aos efeitos da interpretação vamos examinar exemplos respectivamente de interpretação restritiva e extensiva no Direito Romano. Ulpiano (D. 3.2.11.2) dá-nos um exemplo de interpretação restritiva quando menciona a opinião de Pompônio segundo a qual a proibição imposta à mulher de casar dentro do ano de luto pela morte do primeiro esposo, não deve ser aplicada àquela que já deu à luz um filho depois de haver enviuvado: Pomponius eam, quae intra legitimum tempus partum ediderit, putat statim posse nuptiis se collocare: quod verum puto.

Vejamos outro exemplo interessante: “dava-se a ação ad exibendum a quem tivesse interesse na exibição de coisa móvel em poder de outrem (D. 10.4.3.9). Parece à primeira vista que qualquer interesse autorizava esta ação; mas a interpretação restritiva limitava o seu emprego ao caso em que a exibição fosse indispensável para documentar alguma ação intentada ou a intentar”596. Eis o texto mencionado (D. 10.4.3.9): Deve-se saber que a exibitória não só compete aos que já dissemos mas também a quem interessa que algo seja exibido; portanto o juiz deverá conhecer sumariamente se o autor da demanda tem interesse, não se a coisa é sua, e conseqüentemente dispor que seja exibida; ou não, quando não existe interesse (Sciendum est autem non solum eis quos diximus competere ad exhibendum actionem, verum ei quoque cujus interest exhiberi: judex igitur summatim debit cognoscere, an ejus intersit, ,non an ejus res sit, et sic jubere vel exhiberi, vel non, quia nihil interest).

Gaio (D. 23.5.4) dá-nos um exemplo de interpretação (plenius interpretandu) à lei Júlia, “dizendo que essa lei, que proibiu ao marido obrigar ou alienar o fundo dotal, deve ser interpretada extensivamente, de modo que se pode haver a proibição tanto para o marido como para o noivo”597. (Lex Julia quae de dotali praedio prospexit ne id marito liceat obligare aut alienare, plenius interpretanda est, ut etiam de sponso idem juris sit quod de marito.)

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Quando os juristas romanos admitem (Inst. 2,1,29) que a denominação de tignum (trave, viga) designa todo o material de que consta os edifícios (appellatione autem ligni omnis materia significatur, ex qua aedificia fiunt) interpretam extensivamente o vocábulo tignum.

Javolenus (sec. I) anota que os benefícios concedidos pela liberalidade imperial devem ser interpretados amplamente (D. 1.4.3 = Beneficium imperatoris... quam plenissime interpretari debemus).

Resta dizer algumas palavras sobre a Analogia no Direito Romano. Biondi (Ist., pág. 79) chama a atenção para o largo emprego da analogia pelos juristas romanos: “é por meio dela que se desenvolve sobretudo o jus civile.”

Julianus (D. 1.3.10) lembra: “Nem as leis, nem os senatusconsultos podem ser redigidos de tal forma que compreendam todos os casos que podem de quando em vez aparecer na prática, mas é Suficiente que contenham os que ordinariamente acontecem.” (Neque leges, neque senatusconsulta ita scribi. possunt, ut omnes casus qui quando·que inciderint comprehendantur, sed sufficit ea quae plerumque accidunt contineri.).

Ainda Julianus (D. 1.3.12) observa : “ Não podem todas as questões, uma por uma, ser compreendidas pelas leis ou pelos senatusconsultos; mas, quando em alguma causa a solução dada por esses textos é manifesta, aquele que tem jurisdição deve estendê-la aos casos semelhantes e assim ministrar a justiça.” (Non possunt omnes articuli singillatim aut legibus, aut senatusconsultis comprehendi; sed cum in aliqua causa sententia eorum manifesta est, is, qui jurisdictioni praeest, ad similia procedere, atque ita jus dicere debet.)

Ulpiano (D. 1.3.13) ensina: “pois, como diz Pédio, sempre que por lei uma ou outra coisa é estabelecida, boa ocasião é para que sejam supridos mediante a interpretação ou certamente, pela administração da justiça, outros casos semelhantes (outros mais) que tendem à mesma utilidade (que apresentam a mesma utilidade) (Nam ut ait Pedius, quotiens lege aliquid unum vel alterum introductum est, bona occasio est caetera, quae tendunt ad eandem utilitatem, vel interpretatione ve1 certe jurisdictione suppleri).

Tertullianus (séc. III P. C.) (D. 1.3.27) ensina ser conveniente supor que nas leis encontra-se quase sempre subentendido que elas devem estender-se às pessoas e coisas em casos semelhantes (semper quasi hoc legibus inesse credi oportet, ut ad eas quoque personas et ad eas res pertinerent, quae quandoque similes erunt).

Gaio (1,165) apresenta-nos um caso interessante de analogia: A lei das XII Tábuas atribuía aos patronos os bens dos libertos mortos intestados; nada, entretanto, se dizia quanto à tutela dos libertos impúberes e das libertas. Ora, um dispositivo da mesma lei concedia aos agnados a herança e a tutela ao mesmo tempo.

Por analogia atribuiu-se aos patronos os mesmos direitos reservados aos agnados no campo da tutela. Assim é que a tutela dos libertos impúberes foi deferida aos patronos e, ainda mais, foi qualificada de legitima.

Vejamos o texto de Gaio: “Pela mesma lei das XII Tábuas a tutela das libertas e dos libertos impúberes compete aos patronos e a seus filhos. Tal tutela chama-se legítima, não porque esta lei trate dela especialmente; mas porque foi reconhecida por interpretação como se tivesse sido introduzida pelas palavras da lei.

E por isso mesmo que a herança dos libertos e das libertas, mortos intestados, cabia por imposição da lei aos patronos e a seus filhos, os antigos pensavam que a lei quisesse, além disso, atribuir a tutela daqueles aos patronos e à seus filhos, pois ordenara fossem também tutores os agnados que chamou à herança.”

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(Ex eadem lege XII Tabularum libertarum et impuberum libertorum tutela ad patronos liberosque eorum pertinet. Quae et ipsa tutela legitima vocatur non quia nominatim ea lege de hac tutela cavetur sed quia proinde accepta est per interpretationem, atque si verbis legis introducta esset. Eo enim ipso, quod hereditates libertorum libertarumque, si intestati decessissent, jusserat lex ad patronos liberosve eorum pertinere, crediderunt veteres voluisse legem etiam tutelas ad eos pertinere, quia et agnatos, quos ad hereditatem vocavit, eoSdem et tutores esse jusserat).

A propósito da analogia no Direito Romano, cabem duas observações :

1) Os jurisconsultos romanos não recorriam à analogia em normas que já constituíam exceções aos princípios fundamentais de determinado instituto, isto é, recusavam a aplicação analógica ao jus singulare, “Sobre a base do jus singulare não se pode induzir, mercê da analogia, a presumível vontade do legislador nas espécies não contempladas nos institutos afins”598. Paulo (D. 1.3.14) adverte: “O que se admitiu contra a razão do direito, não há de ser levado até suas conseqüências (Quod vero contra rationem juris receptum est, non est producenalum ad consequentias). Ainda Paulo (D. 50.17.162): “O que se admitiu como solução de necessidade, não deve converterse em regra.” (Quae propter necessitatem recepta sunt, non debent in argumentum trahi.)

2) Os romanos admitiam a aplicação analógica em matéria de direito penal, “pois o seu direito penal não era rígido e inextensível; pelo contrário tinha elasticidade bastante para apanhar em suas malhas os atos merecedores de punição, mas não contemplados em seus dispositivos”599.

Vamos, a seguir, dentro do roteiro que traçamos, enumerar algumas regras de interpretação extraídas do Digesto 600

1) In ambígua voce legis, ea potius arcipienda est significatio, quae vitio caret. (Celso D. 1.3.19) Em uma expressão ambígua da lei deve se adotar preferencialmente aquele sentido que carece de defeito.

2) Jura non in singulas personas sed generaliter constituuntur. (Ulpiano, D. 1.3.8) O direito não se estabelece em atenção aos indivíduos mas em geral.

3) “Nam ad ea potius debet aptari jus, quae et frequenter et facile, quam quae per-raro eveniunt.” (Celso, D. 1.3.5) “pois o direito deve antes adaptar-se àquelas coisas que sucedem freqüentemente e facilmente e não às que mui raramente acontecem”.

4) “Is qui jurisdictioni praeest ad similia procedere atque ita jus dicere debet.” (Juliano, 1.3.12) “aquele que tem jurisdição deve proceder por analogia e assim declarar o direito”.

5) Benignius leges interpretandae sunt, quo voluntas earum conservetur. (Celso, D. 1.3.18) As leis devem ser interpretadas benignamente para que desta forma seja respeitada sua vontade.

6) Nulla juris ratio aut aequitatis benignitas patitur, ut quae salubriter pro utilitate hominum introducuntur, ea nos duriore interpretatione contra ipsorum commodum producamus ad severitatem. (Modestino, D. 1.3.25) Nenhuma razão de direito nem a benignidade da eqüidade permite que tornemos mais severo, por uma interpretação mais dura, contra o interesse dos homens, aquilo que foi introduzido salutarmente para a utilidade dos mesmos.

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7) ”Diuturna consuetudo pro jui-e et lege in his quae non ex scripto descendunt observari solet.” (Ulpiano, D. 1.3.33) O costume constante deve observar-se como direito e como lei naquelas coisas não previstas pelo direito escrito.

8) “Sed in re dubia benigniorem interpretationem sequi non minus justius est quam titius.” (Marcelo, D. 28.4.3) Na dúvida é tão justo como seguro seguir a interpretação mais benigna.

9) “In poenalibus causis benignius interpretandum est.” (Paulo, D. 50.17.155) Nas causas penais deve-se seguir a interpretação mais benigna.

10) Interpretatione legum poenae molliendae sunt potius quam asperandue. (Hermogeniano, D. 48.19.42) Numa ínterpretação das leis deve-se antes diminuir as penas que agravá-las.

11) “In omnibus quidem, maxime tamen in jure aequitas spectanda est.” (Paulo, D. 50.17.90) A eqüidade deve ser observada em tudo, principalmente no direito.

12) Duobus negativis verbis quasi permittit lex magis quam prohibuit: idque etiam Servius animadvertit. (Gaio, D. 50.16.237) Duas negações em uma lei, permitem mais que proíbem, como o adverte também Sérvio.

13) Quotiens idem sermo duas sententias exprimit, ea potissimum excipiatur quae rei gerendae aptior est. (Julianus, D. 50.17.67) Quando uma mesma frase tem dois significados, deve-se aceitar preferencialmente aquele que é mais apto para produzir o efeito próprio do ato.

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NOTAS

CAPÍTULO I 1 Matos Peixoto, Curso, p. 15. 2 Marrou, Histoire de l'Éduccation. . . p. 386. 3 Kaser, Derecho privado romano, p. 5. 4 Von Ihering, O espírito do Direito Romano, I, p. 12. 5 Margadant, El significado del Derecho Romano, p. 12. 6 Segundo a chamada cronologia de Varrão, a fundação de Roma situa-se em 753 a. C. Sobre Varrão, ver nossa Hìstória de Roma, p. 240. Basselar (Introdução aos estudos históricos, p. 184) observa que a "aera Varroniana" provavelmente foi inventada por Tito Pompônio Ático, amigo de Cícero. Este adotou-a e Varrâo elaborou-a. Quanto à batalha de Actium no ano 31, Grosso (Lezioni di Storia di Diritto Romano, quinta edizione, p. 348) anota: “Con questo eveato si puó registrare 1'atto di nascita del principato.” 7 Giffard, Précis du Droit Romain, p. 23; Matos Peixoto Curso de Direito Romano, p. 16 e ss. 8 Sobre a evolução histórica do Direito Bizantino, ver nossa História do Império Bizantino, capítulo sobre o Direito. 9 Grosso, Lezioni di Storia..., p. 3. 10 Lembremos, a título de exemplo:

Código de Ur-Namu redigido em sumério (2. 050 a. C. ) e identificado em 1952. Código de Eshnunna (redigido em língua acádica no IIº milênio a. C. ) estudado e identificado em 1948. Código de Lipit-Istar, redigido em sumério (por volta do século XVII a.C.), restaurado e traduzido em 1947-

1948. Código de Hámurabi, redigido em língua acádica no reinado de Hamurabi (1728-1686 a.C.) e encontrado em

1901-1902. Sobre esses códigos e outros aspectos do Direito Oriental Antigo, remetemos o leitor para o que já eserevemos em nossa História da Antiguidade Oriental e em nossos estudos, “O Direito Penal entre os Povos Antigos do Oriente Próximo” e “A compra e venda na Antiga Mesopotâmia”, publicados na revista VOZES, respectivamente e,m setembro e em julho de 1959. Há uma tradução recente do Código de Hamurabi de autoria de E. Bouzon, Editora Vozes. Sobre o Direito Oriental ver ainda as obras citadas na bibliografia.

11 Volterra, Diritto Romano e Diritti Orientali, p. 51. 12 Idem, ibidem, p. 85. O autor não nega possíveis mas ainda não comprovadas influências dos povos itálicos que precederam os romanos. 13 Idem, ibidem, p. 88. 14 Idem, ibidem. Hiato cronológico e cultural existe também entre a legislação mosaica e o Direito Romano Antigo. A influência bíblica no Direito Romaino far-se-ia sentir através do Cristianismo. Note,-se que certos aspectos da Legislação Mosaica e da Legislação Babilônica refletem as condições de uma civilização semítica mais amtiga. Sobre este tema, consultar, “nossa História da Antiguidade Oriental, cap. 8, item 6, O Direito Hebraico”. 15 Volterra, Diritto Romano e Diritti Orientali, p. 89. Sobre a comparação do Código de Hamurabi com a Lei das XII Tábuas, consultar Bonfante: Scritti Giuridici Vari, Roma, 1925, p. 151 e ss.: “Le Leggi di Hammurabi re di Babilônia”. Ver também Silvio Meira, Curso de Direito Romano (História e Fontes) Cap. V, n. 164, “As XII Tábuas e o Código de Hamurabi”. 16 Volterra, Diritto Romano e Diritti Orientalli, p. 89. 17 Idem, ibidem, p. 173. 18 Sobre as origens da Civilização Grega e o “milagre grego” ver nossa História da Grécia, p. 9 e ss. 19 Grosso, Lezioni di Storia Del Diritto Romano, p. 480. 20 Idem, ibidem, p. 480-481.

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21 Mayr, História Del Derecho Romano, II, p. 351. 22 Idem, ibidem, p. 351. 23 Volterra, Diritto Romano e Diritti Orientali, p. 246 e ss. 24 Volterra (obra citada, p. 247) chama a atenção para a influência, aqui, do Cristianismo. 25 Volterra, Dirittti Romano e Diritti Orientali, p.250. O mesmo autor observa (p.248-249) que, enquanto no direito romano clássico negava-se a necessidade. de redigir as tabulae para a validade do matrimônio, Justiniano exige o ato escrito em quatro casos distintos: I) para tomar por esposa a, própria concubina (Nov. 89, c.2); .2) para contrair matrimônio com artista que tenha readquirido boa fama ou com liberta (Nov. 78 c.3, Nov. 117 c.6); 3) para contrair casamento com uma escrava alheia (Nov. 22, c. 11).4) no casamento de pessoas revestidas de altas dignidades (Nov.117, c.4). 26 Giffard, Précis de Droit Romain, I, p. 261. 27 Mayr, Historia Del Derecho Romano, II, p. 261. 28 Volterra, Dirittti Romano e Diritti Orientali, p. 262-263. 29 Consultar Février, Historie de l’Ecriture, p. 477 e ss. Ver também nossa História de Roma, capítulos respectivamente sobre a Literatura Latina e sobre a Educação. 30 Gemet, Le droit grec ancien: notions générales, p. 41. 31 Idem, ibidem, p. 52. 32 Idem, ibidem, p. 46. 33 Idem, ibidem, p. 53. 34 Idem, ibidem, p. 54. Ver nas páginas 48-49 algumas diferenças entre o Direito Romano e o Direito Grego no campo dos direitos reais e do direito das sucessões. Sobre a influência do Direito Grego, consultar também o minucioso estudo de Silvio Meira no cap. V de “A Lei das XII Tábuas”. 35 Mayr, Historia Del Derecho Romano, I, p. 31. 36 Idem, ibidem, p. 86. 37 Arangio-Ruiz, Storia Del Diritto Romano, p. 66. Ver, contudo, Silvio Meira, “A Lei das XII Tábuas”. 38 Idem, ibidem, p. 66. 39 Laurand, Manuel, Tome II, Rome, p. 499. 40 Ver um delicioso estudo de Darest sobre “Le Droit Romain et le Droit Grec dans Plaute”, em Etudes d’Histoire du Droit, vol. I, p. 149 e ss. 41 Grosso, Lezioni di Storia Del Diritti Romano, p. 476. 42 Moreira Alves, Direito Romano, I, p. 95. 43 Arangio-Ruiz, Storia del Diritto Romano, p. 331. Sobre os institutos do Direito Romano (patria potestas, ad-rogatio, testamento), citados na comparação com o Direito helenístico, retemos o leitor ao estudo do Direito Privado onde encontrará a devida explicação. 44 Jaeger, Paideia, p. 8. 45 Marrou, Histoire de l‘Education dans l’Antiquité, p. 269. 46 Idem, ibidem, p. 382. 47 Monier, Manuel élementaire de droit romain, p. 48. 48 Villey, La formation de la penseé juridique moderne, p. 63. 49 Sobre a conservação deste texto de Cícero, ver Cathrein, Filosofia... p. 169. Ver tb. Giffard, Précis, p. 11. Villey, La Formation... p. 64. 50 Giffard, Précis de Droit Romain, p. 319. 51 Idem, ibidem, p. 9.

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52 Villers, Rome et le Droit Romain, p. 98. 53 Idem, ibidem, p. 99. 54 Idem, ibidem. 55 Idem, ibidem., p. 100. Ver, contudo, as considerações de Yan Thomas em La langue du droit romain (p. 106) sobre o sentido de fides nos textos jurídicos. 56 Villers, Rome et le Droit Privé, p. 100. 57 Villey, Recherches sur la littérature didactique romaine, 1945, citado em Yan Thomas, La langue du droit romain, p. 118, nota 3. 58 Marrou, Historie de l’Education, p. 386. 59 Idem, ibidem, p. 387. Estudos recentes atestam que, a partir do fim da República (Cícero foi morto em 43 a.C.), começa a aparecer uma literatura didática, embora o pragmatismo seja um traço característico de boa parte da literatura jurídica romana. Ao que parece, teria sido Gaio (séc. II P. C.) o primeiro autor que pôs em prática os ideais de Cícero. Para um melhor conhecimento desses ideais, é indispensável uma consulta ao De Oratore. 60 Kaser, Em torno al método, p. 39. 61 Monier, Manuel élémentaire de Droit Romain, p. 48.. 62 Estrabão, XIX, 2,5, citado em Dareste, Histoire du Droit, III, p.93. Sobre a lex Rhodia, seguimos principalmente Dareste. 63 No Digesto o texto está redigido em grego. Eis a tradução latina:

“Ego orbis terrarum dominus, lex autem maris lege Rhodia de re nautica judicium fiat, quarenus nulla lex ex nostris si contraria est; idem etiam divus Augustus judicavit.” 64 Moreira Alves, Direito Romano, vol. II .192-193. Ver também Girard, Manuel Elémentaire de Droit Romain, p. 572. Sobre as “leis navais de Rhodia”, codificação bizantina composta entre os anos 600 e 800, ver Ménager, Notes sur les codifications byzantines e 1'Occident (Varia, T. III, Sirey 1958). 65 Gaudemet, La Formation du Droit Séculier… p. 178. 66 Homo, Le Siècle, p. 188. 67 Epist. 90 e 95; De Ira, 31; Epist. 47; De Benef. III, 20. Citações tomadas de Troplong, Influência del Cristianismo en el Derecho Romano. Segundo Troplong, o Cristianismo havia envolvido Sêneca em sua atmosfera. 68 Homo, Le Siècle, p. 189. 69 Idem, ibidem. 70 Carcopino, La vie quotidienne, p. 78. 71 Idem, ibidem. 72 Segundo Troplong (La Influencia Del Cristianismo, p. 95), a Lei Petrônia teria sido promulgada sob Nero, sob a influência do Cristianismo e do estoicismo. 73 Claudius, Suetônio, apud Villers, Rome et le droit privé, p. 190. 74 Vida de Domiciano, Suetônio, apud João Henrique, Direito Romano, T. I, p. 114. 75 Troplong, La Influencia, p. 95. 76 Sobre o Estoicismo, ver nossa História da Grécia, cap. XV, p. 395 e ss. 77 Troplong, La Influencia, p. 56-57. 78 Idem, ibidem, p. 56-57. 79 Biondo Biondi, Scritti Giuridici, I, p. 543. 80 Gaudemet, La Formation du Droit Séculier et du Droit de l’Église... p. 188-189. 81 Biondo Biondi, Scritti Giuridici, I, p. 650.

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82 Biondo Biondi, Scritti Giuridici, I, p. 650. 83 Gaudemet, La Formation du Droit Séculier... p. 189-190. 84 Idem, ibidem, p. 194 ss. 85 Solis Die, quem dominicum rite dixere maiores, omnium omnino litium, negotiorum, convetionum quiescat intentio; debitum publicum privatumque nullus efflagitet... 86 Cruenta spetacula in otio civili et domestica qiete non placent... (C. Th. 15.12.1) 87 Gaudemet, La Formation du Droit Séculier, p. 197. 88 Idem, ibidem. 89 Idem, ibidem.

CAPÍTULO II

90 Um estudo aprofundado do Espírito do Direito Romano o leitor ·encontrará na famosa obra de Ihering: Geist des römischem Rechts, traduzida para o português por Rafael Benaion. 91 Villey, Le Droit Romain, p. 120. 92 De Martino, Individualismo e Diritto Romano privato, p. 4. 93 Kaser, Derecho romano privado, p. 16. 94 Grosso, Le idee fondamentali, p.12. 95 Kaser, En torno al método de los juristas romanos, p.18. 96 Grosso, Le idee fondamentali, p.12. 97 Kaser, En torno al método de los juristas romanos, p.20. 98 Idem, ibidem, p.19-20. 99 Idem, ibidem, p.16. 100 De Martino, lndividualismo e Diritto Romano Privato, p. 3. 101 Idem, ibidem, p.4. 102 Idem, ibidem. Sobre o formalismo o leitor deverá consultar o capítulo concernente ao Processo. 103 Idem, ibidem, p.5. 104 Idem, ibidem, p.37 e p.38. 105 Idem, ibidem, p.42. 106 Idem, ibidem, p.45. 107 Idem, ibidem, p.46. 108 Villey, Le Droit Romain, p. 121. 109 Ihering, O Espírito do Direito Romano, I, p.166. 110 Idem, ibidem, I, p.171. 111 Grosso, Storia del Diritto Romano, p.421. 112 Note-se que o sentido de ingenuus variou conforme a época histórica. Sobre a igualdade existente no Direito Romano ver Ihering, O Espírito do Direito Romano, Lìvro II, Parte Primeira, Título II, Cap. II, “Espírito de Igualdade”: “A igualdade romana vai de mãos dadas com a verdadeira liberdade, e, conseqüentemente, com o movimento fecundo das desigualdades da história, podendo ser considerada como emanação da própria liberdade.” (p.63). 113 Villey, Le Droit Romain, p.121.

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CAPÍTULO III 114 Von Ihering, O Espírito do Direito Romano, I, p. 22. 115 Petit, Derecho Romano, p. 25. 116 Vasiliev, Hist oria del Imperio Bizantino, I, p. 12 5. Os dois “códigos anteriores” mencionados por Vasiliev são o Codex Gregorianus e o Codex Hermogenianus. Sobre o Direito Romano na época dos Reinos Bárbaros, ver nossa História dos Reinos Bárbaros, IIº volume, Cap. III. 117 Sobre a Reconquista e a vigência do Direito Justiniameu, ver nossa História dos Reinos Bárbaros (Iº e IIº volumes) e nossa História do Império Bizantino. 118 Sobre o “Renascimento” e a difusão do Direito Romano na Mundo Feudal, ver nossa História do Mundo Feudal, IIº volume, capítulo sobre o Direito. 119 Monier, Manuel Elémentaire, I, p.2. 120 Floris Margadant, El significado del Derecho Romano, p.74. 121 Von Ihering, O Espírito do Direito Romano; I, p.12. 122 “Se consideriamo la storia del diritto non dico della fondazione di Roma, ma dalla celebre codificazione, che va sotto il nome de Corpus Juris Civilis, computa da Giustiniano neI VI sec. fino ai nastri giorni, sia in Oriente che in Occidente, il diritto romano dà l’mpressione di un fiume maestoso, che lungo i1 suo corso continuamente abbandona ed assorbe elementi, secondo il tempo ed i paesi che bagna, ma che avanza sempre…” Biondi, Scritti giuridici, I, p.447-448. 123 Matos Peixoto, Curso de Direito Romano, p.196. 124 Lobo, Curso de Direito Romano, I, p. LI. 125 Monier, Manuel Elémentaire du Droit Romain, I, p. 3. 126 Matos Peixoto, Curso de Direito Romano, p.197. 127 David, Los grandes sistemas juridicos contemporaneos, p.149. 128 Sobre a influência do Direito Romano no pensamento criador de Teixeira de Freitas consultar o excelente e minucioso estudo do Prof. Sílvio Meira na Revista da Consultoria Geral do Estado - Ano l – 1972 - Belém - Pará. Sobre as fontes romanas dos artigos do Código Civil Brasileiro, consultar: Clóvis Beviláqua, Código Civil Comentado; Vieira Ferreira, O Código Civil Anotado e Gaetano Sciascia, Direito Romano e Direito Civil Brasileiro. Villey (Philosophie du Droit, p.90) sublinha a importância do Direito Romano para o jurista ocidental: “Nossa Ciência do direito procede de Roma; é uma invenção dos romanos, assim como a filosofia é invenção dos gregos. É tão despropositado para um jurista ocidental desprezar o direito romano, quanto para um filósofo envergonhar-se da filosofia dos gregos. É ter vergonha de sua mãe.” O leitor encontrará um minucioso e documentado trabalho sobre a utilidade prática do estudo do Direito Romano, em Floris Margadant, El significado del Derecho Romano, especialmente a partir da p. 79. 129 Moreira Alves, Direito Romano I, p. 3. 130 Limongi França, Brocardos Jurídicos, p. 43. 131 Garcia Garrido, Casuismo y Jurisprudencia Romana, p. XV-XVI.

CAPÍTULO IV

132 Gasquy, Cicéron jurisconsulte, p. 13. 133 Villey, Le Droit Romain, p. 120. 134 Appleton, Interpolations, p. 50. Ernout e Thomas (Syntaxe Latine, p. 287) anotam: “Toutefois, c'est seulement à partir du III.e e IV.e e siècle ap. J.C. que I'adjectif en-adus s'établit gleinement dans le rôle de participe futur passif.” Os autores syntaxe latine não aduzem exemplos da linguagem jurídica.

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135 Idem, ibidem, p.205. 136 Besselaar, Introdução aos Estudos Históricos, p.215. 137 Idem, ibidem, p. 205. 138 Idem, ibidem, p.216. 139 Bloch, L'Epigraphie Latine, p.8. 140 Pacchioni, Corso di Diritto Romano, I, p. CCXXVI. 141 Bloch, L'Epigraphie Latine, p.36. 142 Idem, ibidem; p.89 e seguintes. Consultar também Ernout, Recueil de Textes Latins Archaiques, Première Partie: Textes Epigraphiques, e Riccobono, Fontes Juris Romani Antejustiniani, Pars I a. 143 Ver o texto original na íntegra em Ernout, Recueil de textes latins archaiques, p.58-59. 143 a Esta lei é considerada por alguns autores como “Lex Acilia”. Ver contudo a opinião da crítica mais recente em Grosso; Lezioni di Storia del Diritto Romano, p.07. 143 b Ver Bloch, L'Epigraphie, p.88 e Riccobono, Leges,141. 144 loch, l'Epigraphie Latine, p.91. 145 Idem, ibidem, p.92. 146 Idem, ibidem, p.98. 147 Besselaar, Introdução aos Estudos Históricos, p.205. O papiro fornecia matéria-prima também :para embarcações, esteiras, cordas e sandálias. 148 Matos Peixoto, Curso de Direito Romano, p. 155. 149 Pacchioni, Corso di Diritto Romano, p. CCXXVII. 150 Matos Peixoto, Curso de Direito Romano, p.157. Ver também Pacchioni, obra citada, p. CCXXVIII a CCXXIX. 151 Um estudo interessante do conteúdo de inúmeros papiros concernentes à vida jurídica quotidiana (Negotia) pode ser feito através de Fontes Juris Romani Antejustiniani, Pars Tertia, Negotia - edidit Vinc. Arangio-Ruiz. 152 Sobre a vida jurídica quotidiana na Mesopotâmia Antiga, recomendamos a obra de Giuseppe Resina; Summer e Akkad - la Vita Economica. Estudo interessantíssimo também foi feito por Guillaume Cardascia sobre os Arquivos dos Murasu, uma família de homens de negócio da Babilônia durante o domínio dos Aquemênidas. 153 Ver Piganiol, Histoire de Rome, p.377 e Chapot, Le Monde Romain, p. 279. 154 Henne, La papyrologie et les Etudes juridiques, p. 77. 155 Idiólogo (ιδιοζ λογοζ) era um fúncionário importante da época ptolomaica que tratava de assuntos fiscais extraordinários, terras não cultivadas, questões de heranças e estatuto pessoal, templos e sacerdotes, etc.

Gnômon (γνωμων) significa esquadria, indicador… Aqui pode ser traduzido como “prontuário”. Sobre o Gnômom, ver também Arangio-Ruiz, Storia, p.265. 156 Chapot, Le Monde Romain, p. 292. 157 Sobre os institutos jurídicos referentes a pessoas, revelados pelos papiros, vale indicar o excelente estudo de Arangio-Ruiz: Persone e Famiglia nel Diritto dei Papiri. 158 Volterra, Diritto Romano e Diritti Orientali, p.277. Note-se que outros povos conquistadores da Antiguidade, anteriores aos romanos, já haviam procedido da mesma forma, isto é, respeitando o direito local privado dos vencidos. 159 Pacchioni, Corso di Diritto Romano, p. CCXXIX. Ver também Matos Peixoto, Curso de Direito Romano, p. 158. 160 Volterra, Diritto Romano e Diritti Orientali; p.283. 161 Idem, ibidem, p. 295.

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162 Idem, ibidem, p. 305. Depois da Constituição de Caracala (Constituição Antonina, 212 P. C.) deveria ter cessado a impermeabilidade entre direitos locais e direito romano, em virtude da concessão da civitas romana a todos os habitantes da Império. Claro está que houve reações, o que explica as lutas unificadoras de imperadores como Alexandre Severo e Diocleciano. Note-se, contudo, que essa hostilidade em relação aos direitos locais visavam apenas determinados institutos que repugnavam à mentalidade romana, tais como a poligamia, a adoção por parte das mulheres, etc. Havia, entretanto, tolerância quanto a outros preceitos locais (por exemplo: os filhos de família podiam comportar-se como proprietários, etc.). 163 Arangio-Ruiz, Storia del Diritto Romano, p. 301, e Matos Peixoto, Curso de Direito Romano, p. 125. 164 Arangio-Ruiz, Storia, p. 301 e Breviarium Juris Romani, p. 9.

CAPÍTULO V

165 Biondi; Istituzioni di Diritto Romano, p. 55. Sobre a tese de Villey a respeito da inexistência do direito subjetivo e sua refutação por Pugliese, ver excelente síntese de Moreira Alves, Diritto Romano, I, p. 116 e seguintes. “Com efeito, a tese de Villey somente poderia ser demonstrada se ficasse provado que os romanos, além de não haverem conceituado o direito subjetivo, desconheceram a realidade dele, não tendo a ordem jurídica de Roma atribuído às pessoas as faculdades ,em que, modernamente, se traduz o direito subjetivo. E Villey não conseguiu caracterizar este fato” (Moreira Alves. obra citada, v. 118). Convém lembrar aqui que a noção de direito subjetivo envolve um elemento formal (poder concedido à vontade, faculdade de agir) e um elemento material (o próprio conteúdo do direito, o interesse, juridicamente protegido ). 166 Arias Ramos, Derecho Romano, I, v. 2;8. Notar: (...) uti lingua nuncupassit, ita jus esto (Tábua V1, 1 ), traduz-se: (...) Como houver declarado, assim se; o direito. Nuncupassit é forma arcaica, ver Ernout, Morphologie historique du Latin, p. 163. ... uti legassit..., ita jus esto (Tábua V). traduz-se: o que tiver estabelecido sobre seu patrimônio... Assim seja observado (assim será o direito).

Aio mihi jus esse: Digo que tenho direito. isto é, poder, faculdade de agir. 167 Arias Ramos, Derecho, p. 3. A tradução do texto é: “Vontade firme e permanente de atribuir a cada um o seu direito” (D. 1. 1. 10 e I. l, l, pr). Cícero já definira justiça: animi affectio suum cuique tribuens iustitia dicitur (De finibus V, 23 ). 168 Biondi, Istituzioni di Diritto Romano, p. 60. 169 Alguns autores traduzem “eleganter” por “exatamente”. 170 Biondi, Istituzioni di Diritto Romano, p. 60.

Notar: Interpretatio prudentium: interpretação dos jurisprudentes. 171 Matos Peixoto, Curso de Direito Romano, p. 205. O jurisconsulto Paulus (D. I, I ,1 I) sublinha que JUS se emprega em várias acepções e que uma delas ocorre quando se chama JUS aquilo que sempre é justo e bom, “como é o dìreito natural”; Jus pluribus modis dicitur: uno modo, cum id quod semper aequum ac bonum est jus dicitur, ut est jus naturale. 172 Ver, contudo, o estudo de Bonfamte: L'Equità em Scritti Giuridici vari, p. 124 e seguintes: “La cosidetta equità greca, della quale abbiamo il sommo pittore in Aristotele, non ha precisamente nulla che vedere con I'aequitas romana. Essa non vi corrisponde per 1'etimologia. Non vi corrisponde per gli usi e per lo spirito.” 173 Biondo Biondi, Istituzioni, p. 60-61. 174 Idem, ibidem, p. 61. 175 Arias Ramos, Derecho Romano, I, p. 31. 176 Idem, ibidem. 177 Idem, ibidem. 178 Sobre as noções de cognado, de capitis deminutio, de sucessão ab intestato, de herdeiros sui e de pretor, o leitor deverá consultar respectivamente o direito das pessoas (Jus personarum), o direito das sucessões (Jus successionum) e estrutura política.

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179 Matos Peixoto, Curso de Direito Romano, p. 209. 180 Moreira Alves, Direito Romano, I, p. 104. 181 Idem, ibidem. Cabe aqui uma observação: Yan Themas, estudando a linguagem do Direito Romano (Le Langage du Droit, de vários autores, p. 114-115), chama a atenção para o fato de que esses termos (caritas, aequitas, humanitas, benignitas, etc.) oriundos da linguagem moral que penetraram no direito justinianeu, se tornaram aí suportes de sentidos jurídicos novos. Assim, por exemplo, caritas torna-se nas novelas de Justiniano um conceito propriamente jurídico pois que a extensão de seu significado não coincide com a extensão do sentido que adquiriu na linguagem cristã. Enquadrados na terminologia jurídica e com seu conteúdo semântico alterado, nem por isso a migração desses termos, do campo da moral para o terreno jurídico, deixa, a nosso sentir, de testemunhar a influência cristã no direito justinianeu. 181-a “Id est divina humanaque jura perrnittunt: nam ad religionem, fas ad hornines jura pertinent. Citado em Noailles, Du Droit Sacré au Droit Civil, p. 18. Trata-se do gramático Servius Maurus Honoratus. 182 Cornil, Ancien Droit Romain, p. 6-7. 183 Monier, Manuel élémentaire de droit romain, p. 4. Von Iherimg, depois de acentuar que o povo romano, desde sua aparição, traz consigo a antítese do fas e do jus, caracteriza a distinção entre ambos: “Fas é direito religioso, santo ou revelado, e compreende tanto a religião, quando toma uma formula jurídica (em nossa linguagem atual, direito eclesiástico), como o direito privado e público, em caráter religioso... O jus é de instituição humana, e, portanto, variável; a sua força obrigatória reside no acordo geral do povo e a sua inobservância só prejudica interesses puramente .humanos. O fas, ao contrário, é imutável; funda-se na vontade dos deuses, a estes somente compete o direito de modificá-lo. Quem infringe o fas, ultraja a divindade (...)” (O Espírito do Direito Romano, I, p. 192). 184 Matos Peixoto, Curso de Direito Romano, p. 204. 185 Cathrein, Filosofia del Derecho, p. 268. 186 Benjamim de Oliveira Filho, Introdução à Ciência do Direito, p. 46. 187 Idem, ibidem. 188 Idem, ibidem. 189 Giffard, Précis de Droit Romain, p. 9. 190 Biondi, Scritti Giuridici, I; p. 41. 191 Matos Peixoto, Curso de Direito Romano, p.207. 192 Arias-Ramos, Derecho Romano, I, p. 30. 193 Giffard, Précis de Droit Romain, p. 9. 194 Girard, Manuel élémentaire de Droit Romain, p. 3. 195 Kaser, Derecho Romano Privado, p. 26. 196 Arias-Ramos, Derecho Romano, I, p. 39. 197 Girard, Manuel élémentaire de Droit Romain, p. 3. 198 De Martino, Individualismo e Diritto Romano, p. 4. 199 Biondi, Istituzioni di Diritto Romano, p. 66. 200 Kaser, Derecho Romano Privado, p. 28. 201 De Martino, Individualismo e Diritto Romano, p. 8. 202 Idem, ibidem. 203 Wolff, Introducción histórica al Derecho Romano, p. 81. 203-a Note-se a divergência entre os romanistas sobre o alcance da lei Aebutia. 204 Idem, ibidem, p. 83. 205 Idem, ibidem, p. 80.

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206 Idem, ibidem. Papiniano (D. 1. 1. 7. 1) explica que o jus praetorium (direito pretoriano) se chama direito honorário tendo em vista o cargo (honorem) dos pretores: Quod et honorarium dicitur ad honorem praetorum sic nominatum. 207 Grosso, Storia del Diritto, pp. 288-289. O mesmo autor observa que Volterra (intorno all'editto degli edili curuli, Scritti Borsi p. 3 segg.) sustentou que os romanos não qualificavam o edito dos edis curuis como jus honorarium. 208 Kaser, Derecho Romano Privado, p. 20. 209 Biondi, Scritti Giuridici, I, p. 261-262. 210 Idem, ibidem e também Istituzioni di Diritto Romano, p. 68. 211 Idem, Scritti Giuridici, I, p. 264. 212 Biondi, idem, ibidem. Esta oportunidade deve ser entendida como referência às diversas circunstâncias econômico-sociais que influíam na elaboração e emissão do Edito. Arangio-Ruiz (Istituzioni, p. 3) observa que a atuação do pretor obedecia a regras fixas “che il pretore nuovo eletto publicava in un albo come principii a cui si sarebbe attenuto durante 1'anno della sua carica”. Note-se, contudo, que um magistrado podia afastar-se das diretrizes de seu próprio edito, o que, evidentemente, ensejava arbitrariedades. Provocada pelas denúncias de Cícero contra Verres, uma lei de 67 a. C. proibiu que os magistrados se afastassem da orientação de seus próprios editos. 213 A expressão causa cognita (ablativo absoluto) significa: após o exame dos fatos relativos ao negócio. 214 Porchat, Curso elementar de Direito Romano, pp.200-201.

Ver também Alexandre Correia e Gaetano Sciascia, Manual de Direito Romano, I, p. 27. 215 Biondi, Scritti Giuridici, I, p. 261. 216 Wolff, Introducción histórica, pp. 92-93. 217 Kaser, Derecho Romano Privado, p. 21. 218 Idem, ibidem, p. 22. Ver também Biondi, Scritti Giuridici, I, p. 277. 219 Biondi, Scritti Giuridici, I, p. 277. 220 Idem, ibidem, p. 278. 221 Idem, ibidem, p. 281.

Biondi chama a atenção para o fato de que a maior parte dos institutos mais fundamentais do processo moderno têm origem no processo extra ordinem. Assim; por exemplo, a noção de ação como ius iudicio persequendi quod sibi debetur, as provas formais, a sententia, a execução... 222 Biondi, Istituzioni, p. 69. Ver, contudo, Grosso, Problemi generali, p. 79 e seguintes e, também; Mayr, Historia del Derecho, I, p. 336. 223 Idem, ibidem, p. 283. 224 Pacchioni, Corso di Diritto Romano, p. 150. 225 Grosso, Storia, p.273. Foi Cícero um jurista? Villey (Le Droit Romain, p. 39) observa que “ele não era um jurista de ofício; confessa às vezes sua ignorância da técnica das fórmulas e em certos trechos revela desprezo pela disciplina dos juristas que ele considera de segunda ordem”. Sobre o mesmo tema vale consultar: Cicéron jurisconsulte de Armand Gasquy e Cicerone giurisconsculto de Emílio Costa. Sobre um ponto não há dúvida: Cícero foi o maior advogado da História de Roma. 226 Sob este ponto de vista (formalmente levando-se em consideração a fonte donde brotava, isto é, o edito do magistrado) Mayr (Historia, I, p. 335) considera o jus gentium também um “direito romano honorário”. A designação porém pode facilmente levar a equívocos. Ver opinião de Grosso em Problemi generali del Diritto attraverso il Diritto Romano, pp. 64-65. 227 Biondi, Instituzioni di Diritto Romano, p. 72.

Devem ser evitados aqui os exageros. Arangio-Ruiz (Storiu, p. 147), adverte que só em raras hipóteses institutos tipicamente romanos tornaram-se acessíveis aos estrangeiros ou institutos estrangeiros foram acolhidos no D. Romano. Um caso típico da primeira hipótese é a stipulatio (contrato verbal mediante uma pergunta e uma

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resposta); os exemplos da segunda hipótese situam-se nos institutos de tráfico marítimo como o foenus nauticum: empréstimo de dinheiro para financiar operações de comércio marítimo 228 Giffard, Précis de Droit Romain, p. 10.

A conceituação de jus gentium tem dado margem a controvérsias entre os romanistas. Sobre jus gentium ver Arangio-Ruiz, Storìa, pp. 145 e ss. Kaser (Derecho Romano Privado, p. 29) ensina “La República Tardia compreende bajo la denominación de jus gestium el Derecho válido para ciudadanos y peregrinos”). 229 Arangio-Ruiz, Storia, pp. 148-149. Note-se que o jus gentium, sob o ponto de vista de sua fonte (praetor peregrinus) era um direito honorário (Mayr, Historio, I, p. 335) Ver nota 226. 230 Biondi, Istituzioni, p. 71. 231 Idem, ibidem. Ver também nota 227. A actio publiciana era concedida para a proteção de quem, não tendo a condição de proprietário quiritário, encontrava-se em vias de usucapir. Em virtude da ficção introduzida pelo pretor, o juiz deveria decidir como se a aquisição por usucapião já estivesse consumada. 232 Idem, ibidem, p. 73. 233 Matos Peixoto (obra citada, p. 249) considera o jus gentium positivo “o direito internacional privado dos romanos, diferente do direito internacional privado moderno. Este não tem conteúdo próprio pois não diz como se devem realizar os atos jurídicos em que os estrangeiros são partes,. apenas declara que lei aplicável na hipótese, se a lei nacional ou estrangeira. O jus gentium positivo romano tinha, porém, substância própria, pois era um sistema de regras criadas precisamente para regular esses atos.” 233-a Ver Petit, Tratado Elemental, p. 31, nota 9. 234 Cícero caracteriza a própria natureza com o jus gentium (De offic. 3, 5, 23; Neque vero hoc solum natura id est jure gentium... 235 Wolff, Introclución al Derecho Romano, p. 95 236 O estudo do Direito Natural constitui um dos aspectos mais importantes da Filosofia Cristã. A noção do Direito Natural como direito de procedência divina é tradicional na Igreja. S. Paulo (Rom. 2, 14-15) menciona-o: “Quando os gentios que não têm lei cumprem, pela luz natural, aquilo que a lei ordena, sem terem a lei, são lei para si mesmos; eles mostram a ação da lei gravada nos seus corações, como o atestam a sua consciência e as reflexões, que vez por vez os acusam ou também os defendem (...) “(Cum enim gentes, quae legem non habent, naturaliter ea, quae legis sunt; faciunt, ejusmodi legem nos lurbentes ipsi sibi sunt lex; qui ostendunt opus legis scriptum in cordibus suis, testimonium reddente illis conscientia ipsorum, et inter se invicem cogitationibus accusantibus aut atiam defendentibus (...)”. 237 Fraile, Historia de la Filosofia, I, p. 510. Ver Aristóteles: Ética a Nicômaco e Retórica. 238 Fraile, Historia de la Filosofia, I, p. 602. 239 Villey em sua interessante História da Filosofia do Direito (La Formation de la Pensée Juridique Moderne, p. 432) recusa ao estoicismo um lugar na noção de direito natural. “C'est une grande erreur historique bien qu'extrêmement répandue et facilemet explicable que la doctrine du droit naturel aurait sa source dans le stoicisme. Nous savons qu 'elle vient d'Aristote, qu'elle est contenue tout entière en termes exprès. dans son Éthique. Quant au stoicisme mon seulement il n’est pas le père authentique du droit naturel, mais il en est la négation.” 240 Este texto é reproduzido por Latâncio (Div. Inst. 6 .8). Ver Cathrein, Filosofia Del Derecho, p. 169, nota 2. 241 Biondi, Scritti Giuridici, p. 570. 242 Idem, ibidem. 243 Cathrein, Filosofia Del Derecho, p. 176. 244 Grosso, Le idee fondamentali Del diritto romano p. 45. 245 Biondi, Scritti Giuridici, I, p. 581.

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246 Notar a diferença entre a concepção pagã e a concepção justinianéia (cristã) sobre a origem divina do jus naturale. A primeira, anota Biondi (obra supracitada, p. 572) “se não é uma recordação histórica, é fruto de reflexão, trata-se de especulação, toda subjetiva, de poucos solitários pensadores, sem algum influxo no direito positivo (...)” “ao invés, na concepção de Justiniano o direito natural é entidade objetiva que, na crença não de poucos solitários mas universal do povo, é aceita firmemente emanada de Deus e por esta fonte divina, vincula os fiéis (...)”. 247 Biondi, Scritti Giuridici, p. 581. O texto citado está inserido na Novela 18, cap. V que trata da sucessão ab intestato das concubinas e dos filhos naturais. A Novela 18 é do ano 536. 248 Matos Peixoto, Curso de Direito Romano, p. 242. Sobre a contraposição entre Direito comum (jus commune) e Direito excepcional ou singular (jus singulare) Kaser (Derecho romano privado, p. 32) observa que “no tiene gran importância” e que esses conceitos teóricos “han sido desarrollados por la Doctrina del Derecho comum y no se debe atribuir su paternidad a los juristas clássicos”. Sobre a generalidade como característico da norma jurídica ver primoroso estudo em Benjamim de Oliveira Filho, Introdução à Ciência do Direito, 2.ª edição, p. 230 e ss. 249 Sobre o sentido da expressão tenor ver Matos Peixoto, Curso, p. 243: Tenor significa, em sentido próprio, movimento contínuo, na mesma direção, como em Virgilio Aen. X, 340: hasta servat tenorem: o dardo segue o seu curso. 250 Biondi (Istituzioni, p. 76) adverte que a jurisprudência romana exerceu a interpretatio também com relação ao jus singulare: “é sicuro infatti che norme de diritto singolare sono estese oltre i casi in esse contemplati, anzi tavolta intituti come jus sirigulare hanno avuto cosi larga estensione da costituire diritto comune.” 251 Ver vários exemplos em Matos Peixoto, Curso, pp. 242-243.

Arias Ramos, Derecho Romano I, p.40 e Bonfante, Istituzioni, pp.14-15. 252 Arangio-Ruiz, Istituzioni, p.32. O autor cita como privilégio (no sentido negativo) a lex Clodia de exilio Ciceronis (58 a. C.) que aplicou ao orador a pena de aquae et ignis interdictio pela maneira como atuou na repressão da conjuração de Catilina, cinco anos antes. 253 Arias Ramos, Derecho Romano, I, p. 41. Porchat (Curso elementar de D. Romano, p. 153) assim estabelece e distinção entre privilégio e jus singulare: “O privilégio distingue-se, portanto, pela sua própria natureza, de direito singular: ele resulta exclusivamente da vontade do legislador, e encerra uma disposição particular concernente a um indivíduo ou a certa coisa, enquanto que o direito singular tem por fundamento uma razão de utilidade ou de necessidade e abrange a todas as pessoas que se acham nas mesmas condições que o provocaram. No privilégio há uma franca violação do princípio da igualdade das pessoas; no direito singular há o reconhecimento desse princípio que apenas se modifica em virtude de condições especiais em que se acha uma classe de pessoas.” 254 Arangio-Ruiz, Istituzioni, p. 8. O autor lembra que o horizonte de Gaio na sua famosa divisão do direito (I, 8: omne autem jus quo utimur…) não vai além do direito privado: “e infatti di diritto publico non si fa mai parola in tutta l'opera”. 255 Bonfante, Scritti Giuridici Vari, p. 28 e ss. 256 Arangio-Ruiz, Istituzioni, p. 30. 257 “Tubero doctissimus quidem habitus est juris publici et privati et complures utriusque operis libros reliquit (...)” (Sex. Pomponii, Enchiridii liber singularis, N. 46. Ver Guarino Esegesi delle Fonti, p. 704. 258 Note-se que o texto constante das Institutas inclui o verbo pertinet após utilitatem. O vocábulo Publicus equivalente a populicus indica tudo o que se refere ao populus, isto é, “aquela organização política que chamamos Estado. Populus romanus ou simplesmente populus é o Estado Romano, e jus publicum é o jus populi, isto é, aquele direito que diz respeito ao Estado”, .(Biondi, Instituzioni, p. 64). O vocábulo status tem sido traduzido de diversas maneiras: modo de ser, condição, interesse, existência e atividade, organização, governo e administração. (Ver Biondi, Ist. p. 65, M. Peixoto, Curso, p. 244, nota 578, Arias Ramos, Derecho I, p. 33). Giffard (Précis de Dorit Romain, p. 9)traduz status rei romanae: organização da república romana).

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259 Arias Ramos (Derecho Romano I, p. 34). Ver também Biondi, Instituzioni, p. 65: “Pertanto i romani parlano non di distinzioni tra diritto publico e diritto privato, ma piuttosto di duae positiones, cioè di due punti di vista da cui si puo considerare il diritto.” 260 Matos Peixoto, Curso de D. Romano, p. 245. 261 Idem, ibidem, p. 247. 262 Arangio-Ruiz, Istituzioni, p. 30. 263 Porchat, Curso Elementar de Direito Romano, p. 145. 264 Bonfante, Instituzioni, p. 13. 265 Idem, ibidem – Sobre a integridade do patrimônio do pupilo ver D. 46. 6 (Rem pupilli vel adulescentis salvam fore). 266 Arias Ramos, Derecho Romano, I, p. 35.

CAPÍTULO VI

267 De Ruggiero, Instituições de D. Civil, I, p. 213. 268 Idem, ibidem. 269 Idem, ibidem. 270 Biondi, Istituzioni, p. 172. Clóvis Bevilaqua (Teoria geral do Direito Civil, p. 271) apresenta o seguinte esquema referente aos fatos e atos jurídicos:

Note-se que os atos ilícitos não se incluem aqui entre os atos jurídicos. Moreira Alves (Direito Romano, I, p. 178 e ss.), assim define fato jurídico em sentido amplo: situação de fato de que o direito objetivo faz decorrer efeito jurídico (isto é, o nascimento, a modificação ou à extinção de uma relação jurídica). Os fatos jurídicos em sentido amplo se classificam em: a) fatos jurídicos involuntários (também denominados fatos jurídicos em sentido estrito ou fatos jurídicos materiais, como, por exemplo a idade).

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b) fatos jurídicos voluntários (dependem da vontade humana) que se subclassificam em duas categorias: atos jurídicos lícitos e atos jurídicos ilícitos. Os atos jurídicos lícitos (ações humanas lícitas que produzem efeitos jurídicos) abarcam: negócios jurídicos (manifestações de vontade que visam a um fim prático que é tutelado pela ordem jurídica, como, por exemplo, um contrato de compra e venda); atos jurídicos em sentido estrito (ações humanas em que, para a produção de efeitos jurídicos basta certa intenção - animus - do agente. Exemplo: a ocupação); meros atos jurídicos ou atos-fatos jurídicos (ações voluntárias cujos efeitos jurídicos se produzem independentemente do querer do agente. Ex: a acessão por semeadura). os atos jurídicos ilícitos são as ações humanas que, por ferirem a ordem jurídica, produzem efeitos jurídicos não queridos pelo agente. Ex. o furto.

271 Biondi, obra citada, p. 175. 272 De Ruggiero, obra citada, p. 275. 273 Idem, ibidem, p. 220. 274 Biondi, obra citada, p. 176. 275 Idem, ibidem. 276 Idem, ibidem, p. 177. 277 Moreira Alves, Direito Romano, I, p. 180. 278 Biondi, obra citada, p. 181. 279 Kaser, Derecho Romano privado, p. 39. 280 Biondi, obra citada, p. 182. 281 Idem, ibidem. 282 Kaser, obra citada, p. 50. 283 Biondi, obra citada, p. 183. Biondi (p. 182) observa que na evolução do direito prevaleceu a tese de que se devia dar mais valor à voluntas em face dos verba. “É difficile supporre Che i giuristi classici abbiano potuto acorra raffigurare i negozi giuridici come macchine automatiche Che bastasse mettere in moto per avere quel determinato risultato, senza risalire allá volontá dil’ agente.” 284 Moreira Alves, Direito Romano, I, p. 115. 285 Idem, ibidem, p. 148. Note-se que a incapacidade de fato das pessoas sui juris é sanada, no Direito Romano, pela tutela ou pela curatela. 286 Idem, ibidem, p. 189. 287 Biondi, obra citada, p. 186. 288 Idem, ibidem. Matos Peixoto (Curso, p. 389) observa: “Mas o sentido torna-se claro quando se considera que ela se refere à confessio in jure e quer dizer: quem não responde ao magistrado em juízo, reputa-se réu confesso.” 289 Biondi, obra citada, p. 187. Mancipatio e In jure cessio são modos de aquisição a título derivado. A mancipatio (descrita por Gaio 1.119) é modo de adquirir a propriedade das res mancipi, ex jure Quiritium; a in jure cessio é modo de adquirir a propriedade quiritária tanto das res mancipi como das res nec mancipi. 290 Modernamente, os autores distinguem o erro impróprio (ou obstante) do erro próprio. O erro impróprio é aquele que ocorre quando há desacordo entre a vontade e sua manifestação (exemplo: alguém, por lapso, escreve algo diverso do que realmente quer). O erro próprio é o desconhecimento ou a falsa noção da realidade. Anormalidade quanto ao processo de formação da vontade só ocorre no erro próprio; no impróprio ou obstante o que há é anormalidade quanto à relação entre a vontade e sua manifestação. Essa distinção não foi conhecida dos romanos.” Moreira Alves, Direito Romano, vol. I, p. 211. 291 Matos Peixoto Curso, p. 391.

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292 Moreira Alves, obra citada, p. 211. 293 Matos Peixoto, obra citada, p. 392. 294 Idem, ibidem. 295 É importante aqui a observação de Moreira Alves (obra citada, p. 211): “Com relação ao erro de fato, sua influência sobre a validade de negócio jurídico variou segundo os períodos em que se divide o direito romano, sendo difícil, entretanto, precisar qual tenha sido exatamente essa evolução. 296 Seguiremos Biondi, Istituzioni, p. 211 e ss.; Matos Peixoto, Curso, p. 392 e ss.; Ruggiero, Instituições, I, p. 235. 297 Matos Peixoto, obra citada, p. 392. 298 Idem, ibidem. 299 Idem, ibidem. 300 Biondi, obra citada, p. 212. 301 Matos Peixoto, obra citada, p. 394. 302 Idem, ibidem. Note-se que a distinção entre dolus causam dans (dolo causal, a causa, o móvel do ato) e dolus incidens (dolo acidental sem o qual o ato teria sido praticado mas de outro modo) não encontra base nas fontes. Ver Bonfante, Insituzioni, p. 91. O dolo causal determina a anulação do ato; o acidental dá direito apenas a uma indenização. 303 A actio doli teve ampla aplicação devida em parte, ao direito justinianeu; unida à actio legis Aquiliae (ação que faz surgir como figura delituosa autônoma o damnum injuria datum isto é o dano causado culposamente em coisa alheia), a actio doli preludia o conceito moderno de responsabilidade civil. (Ver Biondi, obra citada, p. 215). 304 Matos Peixoto, obra citada, p. 395. 305 Biondi, obra citada, p. 216. 306 Matos Peixoto, obra citada, p. 395. 307 A par dos requisitos gerais do negócio jurídico, distinguem-se, em cada espécie deles, elementos essenciais, naturais e acidentais. Elementos essenciais são aqueles sem os quais determinado negócio jurídico não pode existir: a coisa e o preço, na compra e venda. Elementos naturais são aqueles que, embora não expressos, estão subentendidos pois correspondem à índole de cada negócio jurídico. Assim, por exemplo, a evicção é elemento natural do contrato de compra e venda. Se não houver alusão à evicção, sua existência está subentendida. As partes podem, entretanto, excluí-la expressamente. Elementos acidentais são aqueles que não estão implicitamente contidos no negócio jurídico: sua existência depende da vontade das partes. (Para maiores explicações sobre elementos essenciais, etc., ver Matos Peixoto, obra citada, p. 398, e Moreira Alves, Direito Romano, vol. I, 5.a edição, p. 186 e ss.). 308 De Ruggiero, Instituições, I, p. 264. 309 Idem, ibidem. 310 Matos Peixoto, obra citada, p. 399. 311 Moreira Alves, Direito Romano, I, p. 200. Ver também Matos Peixoto, obra citada, p. 399. 312 Levando em consideração as diferentes possibilidades de incerteza, a doutrina formula as seguintes quatro hipóteses, reproduzidas em Matos Peixoto (obra citada, p. 400):

a) termo certo quanto à ocorrência e certo quanto à data; dies certus an certus quando. ex: dar-te-ei cem áureos em 8 de janeiro próximo. b) termo certo quanto à ocorrência mas incerto quanto à data; dies certus an incertus quando. ex: dar-te-ei cem áureos quando Caio morrer. c) terma incerto quanto à ocorrência e certo quanto à data; dies incertus an certus quando. ex: dar te-ei cem áureos quando completares 25 anos. d) termo incerto quanto à ocorrência e incerto quanto à data; dies incertus an incertus quando. ex: dar-te-ei cem áureos no dia do meu casamento.

O termo incerto quanto à ocorrência (incertus an), quer seja certa ou não a data (c e d), não é termo por não ser infalível: é uma condição. 313 Matos Peixoto, Curso, p. 402.

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314 Idem, ibidem, p. 404. 315 Moreira Alves, Direito Romano, I, p. 194. 316 Com relação à formulação da condição impossível de modo positivo, houve divergência de interpretação entre proculeianos e sabinianos; para os primeiros a condição acarretava a nulidade do negócio jurídico quer inter vivos quer mortis causa; para os segundos a nulidade só ocorria nos negócios inter vivos pois nos mortis causa deviam considerar-se como não apostas ao negócio jurídico que assim produzia seus efeitos como se fosse puro. Justiniano seguiu a opinião dos sabinianos. (Moreira Alves, Direito Romano, I, p. 194 e Matos Peixoto, pág. 403). Ver também Gaio 3. 98 e D. 35. 1. 3.: optinuit impossibiles condiciones testamento adscriptas pro nullis habendas). 317 No direito clássico “só em hipóteses excepcionais o jus civile considerava nulos os negócios jurídicos a que tivesse sido aposta condição ilícita, imoral ou contra os bons costumes. O pretor é que, no jus honorarium negava eficácia aos negócios inter vivos sob tais condições, e, com relação aos mortis causa, ele, a pedido do interessado, o exonerava do cumprimento delas, mantendo o negócio jurídico como se fosse puro. No direito pós-clássico e justinianeu, deu-se às condições ilícitas, imorais ou contra os bons costumes o mesmo tratamento que às impossíveis. (Moreira Alves, Direito Romano, I, p. 195). 318 De Ruggiero, Instituições, I, p. 255. 319 Matos Peixoto, obra citada, p. 403. 320 Idem, ibidem. 321 Idem, ibidem. 322 Idem, ibidem. 323 Moreira Alves, obra citada, p. 196. 324 Biondi, obra citada, p. 197. 325 Kaser, Derecho Romano privado, p. 57. 326 Biondi, obra citada, p. 188. De Ruggiero (obra citada, p.254) anota: “Os romanos não conceberam deste modo a condição resolutiva, não lhes parecendo possível que o próprio negócio jurídico contivesse já em si (como se exprime Ferrini) o gérmen da própria destruição. Todas as condições eram para eles suspensivas e onde a vontade tendesse a revogar os efeitos já produzidos, o negócio era considerado puro mas com a adição de um pacto contrário destinado a revogá-lo e submetido ele mesmo à condição, de modo que esta suspendia a anulação prevista pelo pacto (negotium purum quae sub condicione resolvitur).” Moreira Alves (obra citada, p. 196) aborda o mesmo tema: “Os jurisconsultos romanos não conhecerem a condição resolutiva. Ao aludirem eles à condicio referiam-se sempre à condição que denominamos suspensiva. Quando queriam atingir o mesmo resultado, a que, modernamente; chegamos com a utilização da condição resolutiva, usavam de meio indireto que era o seguinte: ao negócio jurídico puro (isto é, sem condição), apunham um pacto de resolução submetido à condição suspensiva (por exemplo: Caio vende sua casa a Tício, e ambos apõem a esse negócio jurídico puro um pacto no qual estabelecem que, se Caio, dentro de dois anos, regressar àquela cidade, a venda ficará desfeita). Esse pacto se diz de resolução sob condição suspensiva, porque por ele a resolução do negócio jurídico fica em suspenso até que se verifique se a condição se realizará ou não.” 327 Idem, ibidem. Note-se que o credor, em certos casos, poderia tomar providências para acautelar os direitos que viria a ter se realizada a condição. Ver Moreira Alves, obra citada, a diferença entre os defeitos da condição suspensiva no direito clássico e no direito justinianeu. (obra citada, p. 197). 328 Matos Peixoto, obra citada, p. 406. 329 Moreira Alves, obra citada, p. 197. 330 De Ruggiero, obra citada, p. 241. 331 Kaser, obra citada, p. 62. 332 Arangio-Ruiz, Istituzioni, p. 94. 333 Matos Peixoto, Curso, p. 390.

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Arias Ramos, (Derecho Romano I, p. 145) observa “De ordinário, la trama que une al representante indireto com su representado será um mandato aceptado por aquél”. Madato (mandatum é um contrato pelo qual o mandante (mandans) encarrega o mandatário (is qui mandatum accipit), que aceita, de praticar gratuitamente uma atividade em favor do mandante ou de terceiro. O mandatário deve transferir ao mandante tudo o que lhe coube com a execução do mandato. 334 Arias Ramos, Derecho Romano I, p. 145. 335 Biondi, obra citada, p. 188. 336 Moreira Alves, Direito Romano, II, p. 201., p. 337 Bonfante, Istituzioni, p. 119. 338 Ver minuciosa explicação desses casos em Scialoja, Procedimiento Civil Romano, pp. 190 e ss. 339 Monier, Manuel élémentaire, I, p. 175. 340 Méhéz, Advocatus romanus, p. 20.

CAPÍTULO VII

341 Moreira Alves, Direito Romano, I, p. 96. 342 Gaudement, Institutions de 1'Antiquité, p. 136. Sobre a História da Realeza ver nossa História de Roma e os autores aí citados como Homo, Piganiol, Raymond Bloch, etc. 343 Bloch, Les Origines, p. 67. 344 Homo, Les Institutions, p. ll. Ver também Raymond Bloch, Les origines, p. 68: “Selon la tradition la royauté aurait été attribuée par élection et aurait été viagère. C'est 1'assemblée curiate qui choisit le roi, puis lui attribue le pouvoir. exécutive, l'imperium par une loi spéciale dite lex curiata de imperio: ensuite le Sénat, de par l'auctoritas patrum, confirme le pouvoir royal.” Ver outras versões em Gaudemet, Les Institutions, p. 138; Burdese, Manual de Derecho Publico Romano, p. 14 e Piganiol, Histoire de Rome, p. 29. Moreira Alves, Direito Romano, vol. I, p. 8 e Grosso, Storia del Diritto Romano, p. 39. 345 Bloch, Leo, Instituciones Romanas, p. 15. 346 Idem, ibidem. 347 Gaudement, Institutions de 1'Antiquité, p. 140. 348 Ellul, Histoire des Institutions, I, p. 252. 349 Gens era um “agrupamento de famílias nobres (sem antepassados com mácula de servidão), descendentes de um tronco comum e ligadas pela identidade de nome e de culto doméstico. Os membros da gens chamam-se gentiles (gentis) e o conjunto destes forma o patriciado, que era classe dominante”. (Matos Peixoto, Curso, p. 30). 350 Bloch, Raymond, Les Origines, p. 68. O autor inclui entre as atribuições da assembléia julgar em grau de recursos as sentenças reais. Já Leon Bloch (Instituciones Romanas, p. 15) sublinha que contra as decisões reais não havia apelação para o povo. Parece-nos que está com a razão pois, como anota Gaudemet (Insitutions, p. 143) a “provocatio ad populum” data de época mais recente. Gaudemet (ibiden) nega as atribuições judiciárias e poderes legislativos. 351 Gaudemet, Les Institutions, p. 143. 352 Homo, Les Institutions, p. 12. 353 Grosso, Storia, p. 59. 354 Homo, Les Institutions, pp. 25 e 30. Burdese chama a atenção para o fato de o domínio etrusco haver menosprezado a aristocracia local latino-sabina baseada na gens cuja expressão constitucional eram os patres do senado (Derecho publico, p. 33).

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355 O rápido estudo da estrutura política republicana que ora se faz só será perfeitamente compreendido dentro do amplo contexto da História Romana, especialmente em seus aspectos sociais como a ascensão da plebe. Ver, a propósito, os capítulos sobre a História Política (cap. IV) e a Estrutura Social (cap. X) de nossa História de Roma. 356 Burdese, Derecho Publico, p. 61. 357 Idem, ibidem, p. 62. 358 Idem, ibidem. 359 Gaudemet, Instituions, p. 173. 360 Homo, Les Institutions, p. 270. 361 Gaudemet, Insitutions, p. 173. Ver também, sobre a noção de imperium, Grosso, Lezioni di Storia del Diritto Romano, pp. 168 e ss. Grosso faz uma importante observação sobre a terminologia romana que designa o poder no campo do direito público: “non é sempre univoca, e tavolta nella determinazione dei rapporti fra i concetti designati dai diversi termini (soprattutto imperium e potestas) e per altro verso dei rapporci con altri concetti (iurisdictio, coercitio, eec.) si notano oscillazioni.” 362 Wolff, Introducción histórica, p. 31. 363 Arangio-Ruiz, Storia, p. 96. Pomoerium fora inicialmente a verdadeira linha defensiva da cidade. 364 Homo, Les Institutions, p. 270. 365 Gaudemet, Institutions, p.177. Burdese (obra citada, 71) anota contudo: “A necessidade de assegurar a continuidade no comando de operações militares impunha que o poder dos cônsules, pretores, e também dos questores continuasse automaticamente, mesmo depois de vencido o ano, até que chegasse seu sucessor (…)”. 366 Uma lei do ano 265 a. C. proibiu sucessivamente de forma absoluta a repetição da censura e análogas disposições foram tomadas para o consulado no ano 151 a. C. (Burdese, obra citada, p. 77). Hacquard (Guide Romain, p. 50) anota que os censores não eram reelegíveis - Ver também Gaudemet, Institutions, p. 178. 367 Segundo Mommsen (citado em Matos Peixoto, Curso, p. 41, nota 67) não seria correto falar em colégio dos cônsules porque para formar um colégio seriam necessários pelo menos três colegas (…). Entretanto note-se que, como adverte o próprio Mommsen “o termo collegium se emprega para designar menos conjunto dos colegas do que a relação de um deles com o outro. 368 Gaudemet, Instituions, p. 180. Ver, contudo, Burdese, Manual de Derecho Romano, p. 85: “Sus actos están sometidos a la intercessio de los cônsules y de los pretores.” Ver também Bloch, Instituciones, p. 48. 369 Gaudemet, Instituions, p. 180. A ivergência dos autores quanto à responsabilidade dos magistrados romanos explica-se talvez pela época focalizada. Hacquard (Guide Romain Antique, p. 50) informa-nos: “Em teoria os magistrados não estão cobertos por nenhuma imunidade. Na prática os magistrados cum império só podem ser citados perante os comícios; os tribunos, os edis da plebe e os censores estão cobertos por sua inviolabilidade; só podem ser objeto de uma demanda (excepcionamente) os edis curuis e os questores. 370 Para um estudo mais amplo recomendamos ao leitor a consulta ao capítulo “Instituições políticas” de nossa História de Roma. Entre as obras fundamentais para o estudo de cada magistratura figura Disegno del Diritto Publico Romano de Th. Mommsen e Manual de Derecho Publico Romano de Burdese. Consultar também o resumido mas excelente estudo de Gaudement Les Institutions de 1'Antiquité, a obra de Leo Bloch, Instituciones Romanas e a clássica Les Institutians Politiques Romaines de Léon Homo. 371 Burdese, Derecho Publico Romano, p. 81. 372 Bloch, Instituciones Romanas, p. 42. Ver também Gaudemet, Institutians, p. 180-181, Grosso, Storia, p. 189 e, sobretudo Mommsen, Disegno del Diritto Publico Romano: “similimente in origine mella coercizione e nella potestá criminale in cittá egli non é legato né alla provocazione, né alla intercessione tribunizia (...) “No decurso da História houve modificações: no século III admitiu-se a Provocatio contra o ditador. A intercessio tribunicia também foi invocada. (Ver Burdese, Manual de Derecho Publico Romano, p. 81).

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373 Gaudemet, Les Instituions, p. 181. Os censores são considerados magistrados ordinários mas não permanentes. 374 Wolff, Introducción Histórica, p. 38. 375 Laurand, Manuel, II, p. 484.

Piganiol (Historie de Rome, p. 47) assinala a data de 493 para a designação dos dois primeiros tributos. 376 Piganiol, Historie de Rome, p. 47. Ver nossa História de Roma, p. 93. 377 Note-se a existência de quaestores parricidii, agentes subalternos dos cônsules para determinadas funções judiciais. Parricidium designava primitivamente homicídio doloso de cidadão romano. Posteriormente passou a designar especificamente o assassinato do pai (Matos Peixoto, obra citada, p. 45). 378 Matos Peixoto, Curso, p. 55. Piganiol (Historie de Rome) observa a propósito do tribunato: “Esta magistratura anárquica, que podia entravar todo o jogo da constituição, foi posta pouco a pouco em harmonia com ela” (p. 93). 379 Bloch, Leo, Instituciones Romanas, p. 64. 380 Grosso, obra citada, pp. 202. 381 Burdese, Manual de Derecho Publico Romano, p. 96. 382 Idem, ibidem, p. 97-98. 383 Idem, ibidem, p. 98. 384 Bloch, Leo, Instituciones Romanas, p. 70. 385 Gaudemet, Les Instituions, p. 189. 386 Homo, Les Institutions, pp. 151. 387 Entre os autores antigos citados figuram: Tito Lívio, Dionísio de Halicarnasso e Cícero. 388 O montante da fortuna em asses varia de autor para autor. Os limites etários também são variáveis. Ver, por exemplo, Grosso, Lezioni di Storia, v. 209. Seguiremos aqui os dados fornecidos por Gaudemet, Les Institutions, p. 165 e Matos Peixoto, obra citada, p. 100. Ver nossa História de Roma pp. 100-102. Sobre os asses ver também a mesma obra p. 147. 389 Matos Peixoto, obra citada, p. 63. 390 Gaudemet, Les Instituions, p. 167. 391 Ver, a propósito, Ellul, Histoire des Institutions, pp. 316-317; Grosso, Lezioni di Storia del Diritto Romano, p: 215-217 (La data e i termini della riforma ci sfugono), menciona a descoberta da Tabula Hebana (placa de bronze encontrada em Magliano, Grosseto Etrúria) que, entretanto, menciona uma assembléia da época do Principado. Ver ainda sobre a reforma, Matos Peixoto, Curso, p. 66 e Homo, Les Institutions, p. 79. Em nossa História de Roma (p. 101) seguimos estes dois últimos autores. Sobre Tabula Hebana. Ver Arias Ramos e Bonet Derecho Publico, p. 91. 392 Gaudemet, Les Instituions, p. 168. 393 Matos Peixoto, Curso de D. Romano, p. 67. 394 Homo, Les Institutions, pp. 21 395 Matos Peixoto, Curso, p. 68-69. 396 Homo, Les Institutions, pp. 67. Ver, contudo, Grosso, obra citada, p. 110. 397 Grosso (Lezioni di Storia, p. 222) adverte a propósito da função legislativa dos comícios: “No que tange à função legislativa faltava uma distinção nítida entre as competências dos comícios centuriatos e a dos comícios tributos. Competência exclusiva dos comícios centuriatos eram a lex centuriata de bello indicendo e a lex centuriata de potestate censoria.” 398 Homo, Les Institutions, pp. 243-244.

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399 Excelente fonte para o estudo dos poderes de Otávio é sua própria autobiografia (Res gestae divi Augusti), redigida para seu monumento funerário e da qual foram feitas inúmeras cópias e traduções expostas em diversas cidades do Império. Lembremos aqui a inscrição encontrada em Ancira (Monumentum Ancyranum) em texto bilíngüe: latino e grego (quase completo este e bastante conservado aquele); fragmentos análogos foram encontrados em Antioquia (Manumemtum Antiochenum). Nas ruínas de Apollonia (Galácia) foi encontrado também um fragmento grego. 400 Piganiol, Historie de Rome, p. 215. 401 Gaudemet, Les Instituions, p. 274. 402 Idem, ibidem, p. 292. 403 Idem, ibidem, p. 293. 404 Idem, ibidem, p. 295. 405 Matos Peixoto, Curso, p. 111. 406 Homo, Les Institutions Politiques, p. 368. 407 Gaudemet, Les Instituions, p. 408. 408 Ellul, Histoire des Institutions, p. 408. 409 Gaudemet, Les Instituions, p. 414. 410 Burdese, obra citada, p. 283. 411 Um minucioso estudo do quadro provincial encontra-se na excelente obra de Victor Chaot Le Monde Romain. 412 Burdese, obra citada, p. 142. 413 Segundo Homo (obra citada, p. 382) todos os governadores senatoriais, quer fossem ex-cônsules ou ex-pretores, tinham o título uniforme de proconsules.

Entre os séculos II e III consolida-se o uso técnico do vocábulo praeses para indicar os governadores das províncias. (Burdese, obra citada, p. 245). 414 Lemosse. Le regime des relations internationales..., p. 5. 415 Idem, ibidem, p. 7. 416 Idem, ibidem, p. 17 e ss. 417 Idem, ibidem, p. 18. 418 Idem, ibidem. 419 Idem, ibidem, p. 19 e ss. 420 Catalano, Linee Del Sistema..., p. 21. 421 Fabre, La Religion Romaine, p. 377. 422 Matos Peixoto, obra citada, p. 36. 423 Catalano, Linee Del Sistema..., p. 15. 424 Idem, ibidem, p. 17. 425 Idem, ibidem, p. 29. 426 Sobre a atuação do Senado Republicano na política externa, consultar Homo, Les Institutions, p. 167 e ss.

CAPÍTULO VIII

427 Biondi, Istituzioni, p. 11. 428 Oliveira Filho, Introdução à Ciência do Direito, p. 299.

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429 Moreira Alves, Direito Romano, I, p. 108. O mesmo autor na 5.ª edição de sua obra vol. I, p. 96 distigue entre fontes de produção em sentido material (os órgãos que têm a função de criar as normas de direito) e em sentido formal (as formas em que o direito objetivo se manifesta). 430 Biondi, Istituzioni, p. 11. 431 Oliveira Filho, Introdução, p. 299. Note-se que o autor não usa as expressões “fontes em sentido restrito e em sentido amplo”. Fala em órgãos de expressão do direito e fontes formais. 432 Arias Ramos, Derecho Publico, p.21. 433 Gaudemet, Institutions de 1'Antiquité, p.213. Sobre as leges regiae, consultar Fontes juris romani antejustiniani, pars prima (Salvatore Riccobono). 434 Idem, ibidem. 435 Idem, ibidem. 436 Villers, Rome et le droit privé, p.20 e Gaudemet obra citada, p.213. 437 Arias Ramos, Derecho Publico, p. 2. 438 Pacchioni, Corso de Diritto Romano, p.14.

Ver Digesto 50.16 144 - Paulus, libro décimo ad legem Juliam et Papiam: Granius Flaccus in libro de jure Papiriano scribit… 439 Ver Arias Ramos, Derecho Público, p. 2 e Pacchioni, Corso, p.15-16. Ver também Matos Peixoto, Curso, p.37-38. 440 Um minucioso e documentado estudo sobre a Lei das XII Tábuas e problemas correlatos, em Silvio Meira, A lei das XII Tábuas. A tradição referente à Lei decenviral apresenta variações. 441 Matos Peixoto, Curso, p.81-82. 442 Giffard, Précis de Droit Romain, p.34. 443 Matos Peixoto, Curso, p. 84 e notas esclarecedoras sobre o sentido dos vocábulos e os textos das XII Tábuas , em que são encontrados.

Sanates (T. I, 5, sanatum ou sanatium = povo vizinho de Roma).

obvagulare (T. II, 3) = obvagulo, atum = reclamar em altos brados (ver Gaffiot, Dictionnaire illustré Latin Français). Fortes (T. I, 5), portus (T. II, 3), orare (T. I, 6), adorare (T. VIII, 16), lessus (T. X, 4). As Tábuas foram citadas de acordo com a numeração de Fontes juris Romani Antejustiniani, pars prima Leges - Riccobono. Ernout, RacueiÌ de textes Latinss archaiques cita. (p. 114 e ss.) textos arcaicos da Lei das XII Tábuas. 444 Gaudemet, Institutions, p. 217. 445 Segundo Pomgonius (D. 1.2. 2. 4) as Tábuas haviam sido redigidas em marfim (tábulas eboreas). Segundo alguns o vocábulo eboreas deve ser corrigido para roboreas (de CarvaIho). Segundo Tito Lívio (III, 57, 10) o material das tábuas teria sido o bronze (aes). 446 Silvio Meira, A Lei das XII Tábuas, pp. 97-98, citando Michel Bréal, Journal des savants. 447 Gaudemet, obra citada, p.216. 448 Sobre autores que citaram ou comentaram a Lei das XII Tábuas ver Silvio Meira, obra citada, p.137 e ss. 449 Idem, ibidem, p.133. O autor cita Girard, Textes de Droit Romain. 450 Idem, ibidem. 451 Giffard, Précis de Droit Romain, p.36. 452 Festus e outros autores usaram o termo populiscitum para indicar a lex. A técnica jurídica porém não consagrou o uso deste vocábulo. 453 Grosso, Storia, p. 110 e 223. O autor focaliza aí as leis que teriam antecedido a Lex Hortensia de 286 a. C. 454 Biondi, Istituzioni, p. 13. Note-se que a noção de Lex ampliou-se com o decurso do tempo; de deliberação comicial passou a abranger os senatusconsulta e finalmente as constituições Imperiais.

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Em um texto (D. 38. 8.1.2.) o edito pretoriano é designado lex. 455 A definição de Demóstenes encontra-se logo a seguir (D. 1. 3 .2); lê-se aí também a definição do filósofo estóico Criso. 456 Pacchioni, Corso, p. 155. 457 A rogatio per saturam foi proibida.

Segundo Grosso (obra citada, p. 229) “il divieto, già presuposto nella legge de repetundis Del 123-122 Av. Cr., e stato ribadito dalla lex Caecilia Didia Del 98 Av. Cr...” 458 Matos Peixoto, Curso, p. 70. “As resoluções votadas nos comícios por cúrias ou por centúrias precisavam da sanção do senado (patrum auctoritas) para terem força obrigatória.”Ver o que escrevemos no capítulo sobre a Estrutura política: atribuições do senado e dos comícios. 459 Sobre o conteúdo da sanctio ver Arangio-Ruiz, Storia, p. 93 e Arias Ramos, Derecho Publico, p. 72. 460 Matos Peixoto, Curso, p. 215. 461 Pacchioni, Corso, p. 163. 462 Matos Peixoto, Curso, p. 232-233. 463 Idem, ibidem, p. 233 nota 532. 464 Calumniam facerem = causar prejuízo. 465 Matos Peixoto, Curso, p. 216. 465-a Ver Porchat, obra citada, p. 231. 466 Sobre o alcance da Lei Aebutia, ver Moreira Alves, obra citada, 5.ª edição, vol. I, p. 251. 467 “Para os romanos, uma regra jurídica considerava-se como bem fundada quando se manifestava por um costume de muitos anos, sendo aceita pelo consenso do povo. Por isso as fontes empregam constantemente as expressões - diuturni mores - inveterata consuetudo - usus longaevus - per annos plurimos observata - consensu utentium - Tacitus consensus populi - Tacita civium conventio.”

(Ver Porchat, Curso elementar, p. 223). 468 Girad, Manuel de Droit Romain, p. 50. 469 Porchat, Curso elementar, p. 224. 470 Porchat, Curso elementar de D. Romano, p. 230. 471 Gaudemet, Instituions, p. 344. 472 Matos Peixoto, Curso, p. 90, observa que esta expressão (repentinum) usada por Cícero e adotada pelos autores modernos “nada tem de técnica”. O Digesto (D. 2. 1. 7) designa o edito repentinum por uma perífrase quod prout res incidit propositum est: que foi proposto incidentemente. 473 Gaudemet, Les Instituions, p. 345. 474 Matos Peixoto, Curso, p. 93. 475 Idem, ibidem, p. 91. Os juristas dão a essa cláusula o nome de edito em sentido restrito para distinguir do edito em sentido lato: o conjunto das disposições do album. 476 Discute-se, contudo, o alcance desse plebiscito que parece ter sido uma medida de ocasião. Ver Gaudemet, Institutions, p. 347. 477 Matos Peixoto, Curso, p. 93. 478 Moreira Alves, Diritto Romano, I, p. 99, 5.ª edição. 479 Giffard, Précis de Droit Romain, p. 50. 480 Nocera, Jurisprudentia, p. 12. 481 Gaudemet, Instituions, p. 222. 482 Pacchioni, Corso di Diritto Romano, I, p. 65. Muitos autores identificam o Jus Aelianum com os Tripertita.

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Pomponius (D. 1. 2. 2. 7) fala-nos do livro de Sextus Aelius, que contém as ações e é chamado jus Aelianum.

(non post multum temporis spatium Sextus Aelius alias actionus composuit et librum populo dedit; qui appellatur jus Aelianum). O mesmo Pompônio (D. l. 2. 2. 38) menciona mais diante o Tripertita (tripertita autem dicitur, quoniam lege XII Tabularem praeposita jungitur interpretatio, deinde subtexitur legis actio...) Gaudemet, Institutions, p. 222. 483 Gaudemet, Instituions, p. 222. 484 Giffard, Précis de Droit Romain, p. 54. 485 Gaudemet, Instituions, p. 354. 486 Idem, ibidem. 487 Pomponius (D. 1. 2. 2. 47) informa-nos: “nam Ateius Capito in his quae ei tradita fuerant, perseverabat: Labeo... plurima innovare instituit.

Sobre a oposição entre Capito e Labeo, ver Grosso (Storia del Diritto, p. 393) comentando o texto de Pompônio: Não obstante a aparente contradição, existe um nexo entre os dois juízos: a postura de Capito era de conformismo, quer a respeito das doutrinas jurídicas, quer a respeito da realidade política; a postura de Labeo representava uma atitude de independência, quer mos confrontos dos acontecimentos políticos, quer nos confrontos das doutrinas jurídicas. A posição deste último podia qualificar-se de tradicionalista no sentido de saber pesquisar a tradição para extrair-lhe vigorosas e originais conclusões... aparecendo assim como inovador (plurima innovare institutit). 488 Giffard, Précis de Droit Romain, p. 55. 489 Idem, ibidem, p. 56. 490 Idem, ibidem, p. 56. 491 Pacchioni, Corso, p. 323 e ss. 492 Ellul, Histoire des Institutions, p. 470. 493 Porchat, obra citada, p. 208.

Giffard, Précis de Droit Romain, p. 56.

Consultar Cícero, De Oratore I, 48, 112. 494 Seguiremos aqui Giffard, Précis, p. 60-62. 495 Ver Gaudemet, Institutions, p. 358.

Outros autores atribuem a criação do jus publice respondendi a Tibério – Ver Giffard, obra citada, p. 60. 496 Seguimos a opinião de Giffard segundo a qual a resposta vinculava, em matéria de direito, o juiz. E nisto sobretudo deveria consistir o beneficium conferido por Augusto.

Biondi (Istituzioni, p. 34) afirma expressamente a propósito da expressão “jus respondendi ex auctoritate eius” = a resposta, já que provinha, formalmente, da autoridade do príncipe, obrigava o juiz a segui-la.

Alguns autores entretanto discordam dessa interpretação. Assim, por exemplo, Gaudemet (Histoire des Institutions, p. 359) diz que a resposta não tem valor oficial e juridicamente não liga o juiz.

Monier (Manuel, I, p. 81) anota: “Os autores modernos admitem geralmente que, à diferença das respostas dadas pelos jurisconsultos não diplomados, o responsum de um jurisconsulto oficial se impunha ao juiz do litígio, que estava obrigado a dar uma sentença conforme a consulta, sob a condição de que os fatos invocados para obtê-la fossem provados.” Monier, entretanto, adverte que se é certo que os juízes quase sempre seguiam a orientação do jurisconsulto cuja autoridade havia sido reconhecida pelo imperador, não está demonstrado que eles estavam legalmente obrigados a observá-la.

Note-se que as Institutas de Justiniano (1.2.8), em texto paralelo ao de Gaio (1.7), sugerem a interpretação segundo a qual os responsa (as respostas) obrigavam, em matéria de direito, os juízes: Responsa prudentiam sunt sententiae et opiniones earum quibus permissum erat jura condere. Nam antiquitus institutum erat ut essent qui jura publice interpretarentur, quibus a Caesare jus respondendi datum est, qui jurisconsulti appellabantur quorum omnium sententiae et opiniones eam auctoritatem tenebant, at judici recedere a responso eorum non liceret, ut est constitutum. 497 Giffard, Précis de Droit Romain, p. 60.

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498 Idem, ibidem, p. 61. 499 Idem, ibidem. 500 Porchat, Curso elementar de D. Romano, p. 182. 501 Matos, Peixoto, Curso, p. 114-115. 502 Idem, ibidem. 503 Biondi, Istituzioni, p. 27.

Gaudemet, Instituions, p. 349 e ss.

Porchat, Curso Elementar, p. 185 e ss. 504 Gaudemet, Instituions, p. 349. 505 Biondi, Istituzioni, p. 21. 506 Idem, ibidem. Lembremos o jus edicendi do pretor. 507 Gaio, (l. 5) já mencionara que o imperador recebe o império por uma lei (cum ipse imperator per legern imperium accipiat). Alguns autores relacionam esta lex com a chamada lex de império Vespasiani (fragmento divulgado no séc. XIV enb Roma. Ver mais informações em Fontes juris romani, pars prima, Leges - de Salvator Riccobono, p. 154) que conferia a cada imperador os poderes que diziam respeito a Augusto. (Ver Biondi, obra; citada, p. 27-28) - Ver, contudo, Porchat, obra citada, p. 186. 508 Biondi, Istituzioni, p. 28. 509 Gaudemet, Institutions, p. 350. Ver, contudo, Matos Peixoto Curso de D. Romano, p. 117: inicialmente os editos eram obrigatórios só durante a vida do imperador. Mais tarde introduziu-se o costume de o novo imperador ratificar os editos de seu predecessor. Finalmente os editos ficaram indefinidamente em vigor. 510 Gaudemet, Instituions, p. 351. 511 Um estudo mais minucioso sobre os Rescripta em Porchat. Curso Elementar, p. 190 e ss. 512 Matos Peixoto, Curso de Direito Romano, p. 118.

O mesmo autor observa que Gaio e Ulpiano não incluíram os mandata entre as constituições imperiais por serem atos administrativos independentes de publicação. 513 Giffard, Précis de Droit Romain, p. 67. 514 Grosso, Storia, p. 447. 515 Idem, ibidem, p. 448. 516 Giffard, Précis, p. 68. 517 C. TH. 1.1.6.

Gaudemet observa que o código não colecionou todas as leis gerais a partir de Constantino, entre outras razões, ta;vez por deficiência dos arquivos ou por negligência dos compiladores. (Gaudemet, La Formation, p. 52.) 518 Sobre o Direito Romano e o Direito Germânico no Ocidente após as invasões, ver o 2.º volume de nossa História dos Reinos Bárbaros, capítulo sobre o Direito. 519 Gaudemet, Institutions, p. 460 – Sobre o renascimento do D. Romano, ver nossa História do Mundo Feudal, 2º vol., 1ª parte. 520 Idem, ibidem, p. 460 e ss. 521 Idem, ibidem, p. 461. 522 Idem, ibidem. 523 Idem, ibidem, p. 462. Note-se contudo a observação de Grosso (Storia, p. 445): “ed é quindi eccesiva la tesi, oggi molto diffusa, che si tratti puramente de rielaborazione postclassica.” 524 Idem, ibidem, p. 462. 525 Idem, ibidem, p. 463.

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526 Porchat, Curso Elementar, p. 215. 527 Matos, Peixoto, obra citada, p. 131. Ver Gaudemet, La Formation, p. 76 sobre outros juristas” além dos cinco. Teria havido aqui uma interpolação? 528 Gaudemet, Institutions, p. 465. 529 Segundo Porchat, a denominação de Corpus Juris Civilis foi usada pelos glosadores da escola Bolonha, a partir

do século XII “os quais, por esse modo, distinguiam o direito romano do direito canônico, cuja coleção era conhecido pelo nome de Corpus juris Canonici”. A expressão corpus juris é antiga. Tito Livio já a havia empregado para designar a Lei das XII Tábuas: Corpus omnis romani juris. O vocábulo “corpus” foi também usado para as obras de jurisconsultos (Papiniani Corpus) e para códigos (ex corpore Theodosiani). Foi Dionísio Godofredo. entretanto, o primeiro que deu o titulo de Corpus juris Civilis ao conjunto da obra de Justiniano na edição publicada em 1583. (Porchat, Curso Elementar, p. 36).

Sobre Justiniano e seus ideais ver nossa História do Império Bizantino, respectivamente, capítulos sobre Histórta .política e Direito.

530 Há diversos critérios para a descoberta de interpolações. (Ver Grosso, Lezioni di Storia, pp. 507-508):

Critério textual: confronto do texto justinianeu com o mesmo texto conservado em uma fonte pré-justinianéia (por exemplo; as Institutas de Gaio).

Critério histórico: verificação da incompatibilidade do dispositivo contido na compilação com o instituto existente no direito clássico ou da época de um determinado jurista.

Critério lógico: constatação de contradições existentes num mesmo texto ou entre textos de um mesmo autor.

Critério legislativo: introdução de um “tom” legislativo em um texto de um jurista.

Critério filológico: emprego de estilo ou formas gramaticais não usadas na época do jurista a quem é atribuído o texto.

531 Reproduzimos aqui as regras estabelecidas por Matos Peixoto, Curso, p. 218-219.

O problema das antinomias entre as diversas partes do Corpus Juris suscitou soluções divergentes. Sobre o pensamento de Savigny ver Matos Peixoto, ibidem. Ver também um estudo mais minucioso sobre as antinomias ein Porchat (Curso Elementar, p. 55 e ss.) que segue Savigny: “Se a antinomia se dá entre disposições. que se acham nas coleções que formam a primeira parte (Inst. Dig. e Cod.) não se pode dizer que uma prevaleça sobre outra, porquanto, segundo o desejo expresso por Justiniano, essas coleções deviam constituir um verdadeiro código, formando uma unidade.”

Sobre o destino do Digesto através dos tempos ver nossas obras: História do Império Bizantino, História dos Reinos Bárbaros (2.º vol.) e História do Mundo Feudal (2.º vol. l.ª parte).

CAPÍTULO IX

532 Arias Ramos, Derecho Romano, I, p.41. 533 Clóvis Beviláqua, Teoria do Direito Civil, p.48. 534 Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, p.128. 535 Idem, ibidem, p.135. 536 Idem, ibidem, p.128. 537 Porchat, Curso Elementar, p. 287. 538 Ferrara, obra citada, p.132. 539 Idem, ibidem. 540 Nóbrega, Introdução ao Direito, p.209. 541 Ferra, obra citada, p.133. 542 Reale, Lições Preliminares, p.315.

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543 Ferrara, obra citada, p.139. 544 Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, p.159. 545 Porchat, Curso Elementar, p.283. 546 Maximiliano, obra citada, p.164. 547 Ferrara, obra citada, p.143. 548 Reale, obra citada, p.316. 549 Idem, ibidem, p.318. 550 Ferrara, obra citada, p.141. 551 Matos, Peixoto, Curso de Direito Romano, p.226. 552 Idem, ibidem, p.222. 553 Ferrara, obra citada, p.158. 554 Oliveira Filho, Introdução, p.339. 555 Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação, p.260. 556 Ferrara, obra citada, p.158. 557 Maximiliano, obra citada, p.158.

A doutrina distingue entre analogia juris e analogia legis. A primeira “tem lugar quando se argumenta com os princípios que governam uma matéria análoga”; e segunda “tem lugar quando uma norma existente se aplica a um caso não contemplado mas pertencente à mesma matéria”. (Ver De Ruggiero, Instituições de Direito Civil, I, p.135 e Ferrara, obra citada, p.159).

558 De Ruggiero, Instituições de Direito Civil, I, p.125. 559 Porchat, obra citada, p.294. 560 Idem, ibidem. 561 Ferrara, obra citada, p.162. 562 Idem, ibidem, p.163. 563 Idem, ibidem, Observa-se que o direito singular bem como o direito penal e todas as outras leis excepcionais admitem, como normal, a interpretação extensiva. (Ver de Ruggiero, obra citada, p. 132 e também Ferrara, obra citada, p. 151). 564 Vonglis, La lettre et l’esprit de la loi, p. 7. 565 Idem, ibidem, p. 8. 566 Grosso, Lezioni di Storia Del Diritto Romano, p.121. 567 Moreira Alves, Direito Romano, I, pp. 99-100. 568 Grosso, obra citada, p. 122. 569 Idem, ibidem. 570 Von Ihering, O espírito do Direito Romano, III, p. 106. 571 Idem, ibidem, p. 109. 572 Arangio-Ruiz, Instituzione di Diritto Romano, p. 38. 573 Idem, ibidem, p.39. 574 Idem, ibidem. 575 De Ruggiero, obra citada, p.131. 576 Vonglis, obra citada, p.194. 577 Idem, ibidem, p.16.

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578 Idem, ibidem, p.19. Ver, contudo, observação de Kaser sobre a influência da retórica, citada no cap.: I, item referente à influência da Filosofia Grega. 579 Idem, ibidem, p.43. 580 Idem, ibidem, p.72. 581 Alguns julgam que o texto, a partir de praesertim seja uma interpolação. 582 Vonglis, obra citada, p.165. 583 Idem, ibidem, p.196. Vonglis chama a atenção para a distinção entre voluntas legis e sententia legis. Enquanto os retores consideram essas expressões como sinônimos, os jurisconsultos raramente o fazem. 584 Idem, ibidem, p.195. 585 Biondi, Istituzioni, p.79 comenta: “Aqui o imperador entende avocar a si não a interpretação doutrinal que, como livre atividade do pensamento, nenhum legislador pode proibir, mas a interpretação vinculativa quer autêntica, quer judicial.” 586 Von Ihering, obra citada, p.106. 587 Idem, ibidem,. Note-se que o vocábulo fundus apresenta diversos sentidos, como, por exemplo, terreno sem o edifício (sentido primitivo), terreno com edifício, etc. (ver, a propósito, Matos Peixoto, Curso, p. 378). 588 Bonfante, Istituzioni, p. 25. 589 Idem, ibidem. 590 Vonglis, La lettre et l’espirit de la loi, p. 115. 591 Porchat, obra citada, pp. 283-284 592 Maximiliano, obra citada, pp. 159-160. 593. Porchat, obra citada, p.285. Ver, contudo, o que já escrevemos anteriormente sobre as antinomias no Corpus Juris Civilis. 594 Ferrara, obra citada, p. 141. 595 Idem, ibidem, p. 142. 596 Matos Peixoto, obra citada, p. 227, nota 513. 597 Porchat, Curso Elementar, p. 291. Note-se que o vocábulo praedium é nome geral para designar o imóvel edificado ou não. 598 Bonfante, Istituzioni, p. 27. Vale, contudo, reproduzir aqui a observação de Ferrara (obra citada, p. 163, nota 1). ”Regelsberger - Pandekten, p. 160, quer limitar o princípio de que o direito singular “é incapaz de aplicação analógica, dizendo que o pensamento fundamental do jus singulare pode alargar-se; e cita o exemplo da sucessiva extensão do Senatus-consulto Velleiano, que na origem se referia só às alienações, às constituições de penhor, assunções de dívidas e (actos) semelhantes. Mas é de objetar que a extensão analógica em direito romano tem caráter produtivo de direito, visto o sistema da participação do magistrado pretório na evolução do material jurídico.” 599 Matos Peixoto, obra citada, p.228. 600 O leitor encontrará uma excelente exposição das Regras de Interpretação em Porchat, obra citada, pp. 296 e ss. O autor enumera, ao lado de textos romanos, alguns brocardos jurídicos. Em nossa enumeração limitar-nos-emos a textos inseridos no Digesto.

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