Mario Vargas Llosa

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Perfil 02 Mario Vargas Llosa: Mario Vargas Llosa é jornalista, ensaísta, crítico e escritor. Sua vasta produção artística passa por teatro, contos, ensaios e ficções e lhe rendeu inúmeros prê- mios. Agora, após dois anos de reclusão literária, ele conclui o novo trabalho, El sueño del celta, a ser lançado no fim de 2010, coincidindo com sua vinda a Por- to Alegre para palestrar no curso Fronteiras do Pensamento, em 04 de outubro. o melhor está por vir M ario Vargas Llosa é um dos raros homens movidos por sentimentos e virtudes como verdade, moral e paixão pela humanidade. Conhecido por sua lit- eratura politizada, levou seus escri- tos à ação e concorreu à presidência de seu país em 1990. Criticado por ter trocado o Peru ditatorial pela vida na Euro- pa ou por ter ido do esquerdismo marxista à aceitação do neoliber- alismo, foi derrotado por Alberto Fujimori. No episódio, acabou refor- çando sua coerência ideológica e sua opção de vida: ignorar estratégias do sistema e vencer na história como um ser humano formado por me- dos, amores, dúvidas e descobertas nem sempre positivas. Objeto de inúmeros ensaios, perfis e entrevistas, Llosa conver- sou com o jornal da PUCRS sobre os primeiros 20 anos de sua vida e expôs a difícil relação com seu pai, essencial para sua formação como autor. Mario Vargas Llosa: o autor Nome indispensável na literatura contemporânea, Llosa é conhecido pela minuciosa análise dos temas sociais de nosso tempo. Seus leitores se defrontam com uma existência cotidiana autônoma, que fatalmente surge e se impõe mui- to além da presença e da essência dos personagens. Esta força sobre- humana e opressora que acaba se tornando personagem principal das obras e da realidade em si, vem de um dos mestres de Llosa, o francês Jean-Paul Sartre. Este conceito de ex- istência foi atualizado pela literatura ao longo dos tempos até os escri- tores atuais, conhecidos como pós- modernos. Aqui e agora, o homem enfrenta a total falta de poder peran- te a realidade esmagadora. Contudo, a década de 60 reservou a Vargas Llosa e aos seus conterrâneos, conhecidos como o boom latino-americano, uma ideo- logia afim dificilmente vista na atu- alidade. Esta vanguarda literária composta também por Garcia Mar- quez, Carlos Fuent- es e outros, possuía uma ambição muito maior. A obra de arte total, utopia original de Wagner na música clássica, foi ampliada pelo poeta Mallarmé e levada à literatura francesa por Flaubert, outra influên- cia confessa do escritor peruano. O combustível destes artis- tas era alcançar uma fotografia viva da realidade composta por múlti- plos elementos como identidades, visões políticas, gostos, sonhos e de- cepções. Para a realidade que inde- pende de um personagem e de uma fatia específica do contexto, a narra- tiva literária deve buscar o momento em que a existência e a essência se chocam. Ela deve questionar, filosoficamente, as complexas tra- jetórias que compõem a sinfonia da vida e a liberdade de criação e de mudança do homem, um não tão mero elemento para a literatura de Mario Vargas Llosa. Tramas não-lineares ligam universos separados e criam uma narrativa experimental ao leitor de- sacostumado à sua própria visão crítica do todo. A realidade total, como Llosa prefere chamar, é uma lição ficcional sobre a vida real. Suas obras ensinam a enxergar o tecido que coexiste no fundo de tantas indi- vidualidades e que pode e deve ser o fator que levará os ho- mens, personagens de uma vida tão ficcional e literária quanto seus livros, a uma mudança concreta do mundo. Como não poderia deixar de ser, os trabalhos de Vargas Llosa estão profundamente ligados ao seu tempo e podem ser divididos em três períodos. Na década de 60, como grande parte dos escritores deste contexto histórico, Llosa participava de um olhar marxista radical, que apoiava a revolução cubana com fer- vor. Já nos anos 70, após testemun- har o desfecho do autoritarismo de “... O homem que crê já ter sido seu melhor está fada- do à decadência. A melhor atitude frente à vida é crer que o melhor está por vir.”

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texto para a cadeira de redação da Pucrs - entrevista ficcional por Juliana Szabluk

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Page 1: Mario Vargas Llosa

Perfil •02

Mario Vargas Llosa:

Mario Vargas Llosa é jornalista, ensaísta, crítico e escritor. Sua vasta produção artística passa por teatro, contos, ensaios e ficções e lhe rendeu inúmeros prê-mios. Agora, após dois anos de reclusão literária, ele conclui o novo trabalho, El sueño del celta, a ser lançado no fim de 2010, coincidindo com sua vinda a Por-to Alegre para palestrar no curso Fronteiras do Pensamento, em 04 de outubro.

o melhor está por vir

Mario Vargas Llosa é um dos raros homens movidos por sentimentos e virtudes

como verdade, moral e paixão pela humanidade. Conhecido por sua lit-eratura politizada, levou seus escri-tos à ação e concorreu à presidência de seu país em 1990.

Criticado por ter trocado o Peru ditatorial pela vida na Euro-pa ou por ter ido do esquerdismo marxista à aceitação do neoliber-alismo, foi derrotado por Alberto Fujimori. No episódio, acabou refor-çando sua coerência ideológica e sua opção de vida: ignorar estratégias do sistema e vencer na história como um ser humano formado por me-dos, amores, dúvidas e descobertas nem sempre positivas.

Objeto de inúmeros ensaios, perfis e entrevistas, Llosa conver-sou com o jornal da PUCRS sobre os primeiros 20 anos de sua vida e expôs a difícil relação com seu pai, essencial para sua formação como autor.

Mario Vargas Llosa: o autor

Nome indispensável na literatura contemporânea, Llosa é conhecido pela minuciosa análise dos temas sociais de nosso tempo. Seus leitores se defrontam com uma existência cotidiana autônoma, que fatalmente surge e se impõe mui-to além da presença e da essência

dos personagens. Esta força sobre-humana e opressora que acaba se tornando personagem principal das obras e da realidade em si, vem de um dos mestres de Llosa, o francês Jean-Paul Sartre. Este conceito de ex-istência foi atualizado pela literatura ao longo dos tempos até os escri-tores atuais, conhecidos como pós-modernos. Aqui e agora, o homem enfrenta a total falta de poder peran-te a realidade esmagadora.

Contudo, a década de 60 reservou a Vargas Llosa e aos seus conterrâneos, conhecidos como o boom latino-americano, uma ideo-logia afim dificilmente vista na atu-alidade. Esta vanguarda literária composta também por Garcia Mar-quez, Carlos Fuent-es e outros, possuía uma ambição muito maior. A obra de arte total, utopia original de Wagner na música clássica, foi ampliada pelo poeta Mallarmé e levada à literatura francesa por Flaubert, outra influên-cia confessa do escritor peruano.

O combustível destes artis-tas era alcançar uma fotografia viva da realidade composta por múlti-plos elementos como identidades, visões políticas, gostos, sonhos e de-cepções. Para a realidade que inde-pende de um personagem e de uma fatia específica do contexto, a narra-

tiva literária deve buscar o momento em que a existência e a essência se chocam. Ela deve questionar, filosoficamente, as complexas tra-jetórias que compõem a sinfonia da vida e a liberdade de criação e de mudança do homem, um não tão mero elemento para a literatura de Mario Vargas Llosa.

Tramas não-lineares ligam universos separados e criam uma narrativa experimental ao leitor de-sacostumado à sua própria visão crítica do todo. A realidade total, como Llosa prefere chamar, é uma lição ficcional sobre a vida real. Suas obras ensinam a enxergar o tecido que coexiste no fundo de tantas indi-vidualidades e que pode e deve ser o

fator que levará os ho-mens, personagens de uma vida tão ficcional e literária quanto seus livros, a uma mudança concreta do mundo.

Como não poderia deixar de ser, os trabalhos de Vargas Llosa estão profundamente ligados ao seu tempo e podem ser divididos em três períodos.

Na década de 60, como grande parte dos escritores deste contexto histórico, Llosa participava de um olhar marxista radical, que apoiava a revolução cubana com fer-vor. Já nos anos 70, após testemun-har o desfecho do autoritarismo de

“... O homem que crê já ter sido seu melhor está fada-do à decadência. A melhor atitude frente à vida é crer que o melhor está por vir.”

Page 2: Mario Vargas Llosa

Fidel Castro, a desilusão to-mou conta da ideologia. As-

sim, Llosa e sua obra entraram em uma fase neoliberal que re-forçava os direitos humanos com apoio à democracia e às economias de livre mer-cado.

Após ser derrotado por Fujimori na eleição presiden-

cial de 1990, o escritor deu início ao que seria sua terceira fase, mar-

cada por um pessimismo quase que oposto à lição ensinada no início de sua carreira. O personagem, então, era incapaz de mudar o sistema atu-al por meio de sua ação política. Es-tas mudanças de posicionamento e estrutura textual foram consideradas por muitos críticos como perda de foco prejudicial à qualidade literária de Vargas Llosa.

Mario Vargas Llosa: o homem

Llosa nasceu em 1936, em Arequipa, uma cidade colonial no sul do Peru. Seus pais, Ernesto e Dora, se separaram antes mesmo de seu nas-cimento. Dora, envergonhada por ser mãe solteira em uma sociedade ma-chista, se mudou para a Bolívia e foi morar com seu pai, Pedro Llosa, que acabou se tornando cônsul do Peru em Cochabamba. Lá, o pequeno Ma-rio desfrutou da enorme casa repleta de serviçais por oito anos. Após este período, a família retornou ao Peru, mais especificamente à cidade de Pi-ura, na costa nordeste do país, onde seu avô Pedro foi eleito prefeito.

Foi apenas aos 10 anos de idade que Mario soube que seu pai ainda estava vivo, quando Ernesto e Dora reataram os laços e se mudaram para a capital Lima. Os próximos anos de Mario se tornariam um pesadelo criado a partir da raiva e dos espanca-mentos de seu pai. Dentre experiên-cias cruelmente reais e fugas imag-inárias necessárias, Mario e Ernesto ainda desconheciam a influência que ambos exerciam em suas vidas.

Ernesto desprezava o en-tusiasmo de Mario com os livros. “Meus versos e poesias eram pro-va de homossexualidade para ele. Cresci ouvindo que minhas paixões me levariam a uma estrada de fome e fracasso profissional”, confessa.

“Ler e escrever eram minha única fuga de um universo insuportável de abuso e medo”.

Ernesto, na tentativa de tirar o filho deste caminho, o enviou para a Academia Militar de Leoncio Prado, também em Lima. “Foi a descobe-rta do inferno”, desabafa Llosa. “A Academia era uma janela à vida do campo, uma sociedade peruana em miniatura. Lá, você encontrava to-das as classes sociais e raças. Bran-cos, negros, índios, mestiços... As classes mais altas e as mais pobres conviviam juntas. Era uma atmos-fera tremendamente explosiva em que todos sofriam preconceito com imensa tensão e violência. Sofri mui-to por ter sido mimado ao longo de minha vida, mas isso acabou sendo uma extraordinária lição.”

Aos 15 anos, Llosa foi trab-alhar como repórter na madrugada do jornal peruano La Crónica. No emprego, descobriu outro lado da re-alidade. Os crimes e a prostituição de Lima chocavam o menino e criavam o grande autor. Os fatos que Mario es-crevia no jornal foram base profunda e viva em seu terceiro romance, a ficção Conversa na Catedral, que teve sua segunda edição brasileira lançada pela editora Arx em 2009. Na obra, Llosa justifica seu rancor pela igreja católica ao revelar para o público que havia sido molestado sexualmente por padres quando tinha 12 anos. Com isso, também explicou seu repúdio à escolha dos pais de mandá-lo para a Universidade Católica, instituição fre-quentada pelos “brancos”.

O trauma do passado o levou para um novo futuro, a Universidade de San Marcos, que abrigava grupos culturais diversos de mestiços, ateus e comunistas, mistura que colaborou no desenvolvimento de sua ampla visão crítica do contexto social da época.

Em 1958, aos 22 anos, o au-tor recebeu uma viagem a Paris como prêmio de uma competição de con-tos. Passou a residir em Madri, onde escreveu sua tese de doutorado sobre García Márquez. Quatro anos mais tarde, a obra A cidade e os cachorros (1962) lhe deu o renome internacional necessário para abrir as portas corre-tas. Llosa foi contratado por uma esta-ção de TV e rádio francesa e começou a se aproximar de outros escritores la-

tino-americanos como Fuentes, Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Alejo Car-pentier e Miguel Angel Asturias.

No final da década de 60, Llosa se tornou professor da King’s College e, como prova pensada de que o homem pode mudar seu próprio sistema ou simplesmente pela coerência inconsciente da vida, fechou um ciclo ao se tornar o opos-to do que o pai Ernesto previra. Bem sucedido, autor reconhecido, queri-do por todos, poderia desfrutar de suas conquistas, mas preferiu ser ex-tremamente recluso, recusando os diários convites para festas, álcool e paradigmas boêmios para seguir es-tudando e escrevendo. “Não foi uma escolha para me opor ao meu pai. Optei por uma disciplina difícil por tudo que a própria vida me obrigou a aprender. É preciso lutar até o fim, pois o homem que crê já ter sido seu melhor está fadado à decadência. A melhor atitude frente à vida é crer que o melhor está por vir”, defende.

O que seria do homem sem sua história? Mais ainda, no caso de Llosa, o que seria do contador de histórias sem sua própria? O jovem superou a figura castradora e opres-sora de um pai e de um governo dita-torial para se tornar um lutador pela liberdade humana e social. O adoles-cente foi diminuído por seu univer-so paralelo da escrita, mas ergueu sua caneta em batalha. Como autor, provou ao pai e ao mundo que a ex-istência pode sim matar, mas nunca aqueles que possuem o maldito dom (ou a divina maldição) da sabedoria de si e da coerência do todo.

Hoje, aos 74 anos, o es-critor peruano se diz no ápice de sua produção literária, tão arraiga-da, que já não é mais definida como motivação ou expressão do homem: juntos, autor e obra são simplesmente Mario Vargas Llosa.

Perfil •03

“A vocação literária nasce do desacordo do homem com o mundo. Ela pode morrer, mas nunca será conformista.”