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COLEÇÃO ABIA

P POLÍTICAS ÚBLICAS, No 4

ROPRIEDADE NTELECTUAL E RE OSIFERENCIADOS DE EDICAMENTOS SSENCIAS

P I PD M E

Ç:

MARISTELA ASSOBABRíCIO OLIDOF P

A B I AIDSR J

2005

SSOCIAÇÃO RASILEIRA NTERDISCIPLINAR DE

IO DE ANEIRO

Políticas de aúde ública paraaíses em esenvolvimento

S PP D

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COLEÇÃO ABIA

PROPRIEDADE INTELECTUAL E PREÇOS

DIFERENCIADOS DE MEDICAMENTOS ESSENCIAIS:

Políticas de Saúde Pública paraPaíses em Desenvolvimento

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA INTERDISCIPLINAR DE AIDSRIO DE JANEIRO

2005

MARISTELA BASSO

FABRÍCIO POLIDO

POLÍTICAS PÚBLICAS, No 4

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É permitida a reprodução total ou parcial do artigo desta publicação, desde que citadas a fonte e os autores.

Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS - ABIARua da Candelária, 79/10o andar - CentroCEP: 20091-020 - Rio de Janeiro - RJTelefone: (21) 2223-1040 Fax: (21) 2253-8495E-mail: [email protected] http://www.abiaids.org.br

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CIP-Brasil. Catalogação na Fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

B323p

Basso, MaristelaPropriedade intelectual e preços diferenciados de medicamentos essenciais : políticas de saúde pública

para países em desenvolvimento / Maristela Basso e Fabrício Polido. - Rio de Janeiro : ABIA, 2005 (Políticas públicas/ABIA ; v.4)

Inclui bibliografiaISBN 85-88684-21-7

1. Política de saúde. 2. Medicamentos essenciais - Preços diferenciados. 3. Indústria farmacêutica. 4.Organização Mundial do Comércio. 5. Organização Mundial da Saúde. 6. Propriedade intelectual (Direitointernacional). 7. Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Organização). 8. Medicamentos - Patentes. I.Polido, Fabrício. II. Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS. III. Título. IV. Série.

04-0080. CDD 362.196978CDU 614:616.98

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SUMÁRIO

PREFÁCIO 5

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS 10

2. PREÇOS DIFERENCIADOS E MEDICAMENTOS ESSENCIAIS 12

2.1 Definições. Funções dos Preços Diferenciados e Acesso à Saúde 122.2 Preços Diferenciados de Medicamentos Essenciais e Políticas Globais de

Acesso à Saúde 15

3. POLÍTICA INDUSTRIAL, PROPRIEDADE INTELECTUAL E PREÇOS DIFERENCIADOS DE

MEDICAMENTOS ESSENCIAIS 17

3.1 Propriedade Intelectual e Preços Diferenciados 173.2 Patentes e Preços Diferenciados: Exceções e Instrumentos Concorrenciais

para Prover o Acesso aos Medicamentos Essenciais 19

3.2.1Políticas de preços diferenciados: relação específica com o direito antitruste e asexceções patentárias 22

3.3 Estratégias da Indústria Farmacêutica, Acesso aos Medicamentos Essenciaise Preços Diferenciados: Programas de Doação e Leilões para Aquisição deMedicamentos 25

4. ACESSO À SAÚDE E ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO: TENDÊNCIAS PARA UMA

DISCUSSÃO SOBRE POLÍTICAS DE PREÇOS DIFERENCIADOS 28

4.1 A Declaração de Doha sobre TRIPS e Acesso à Saúde e a Política dePreços Diferenciados 28

4.2 Resultados da Declaração de Doha - Cenário Favorável às Políticas dePreços Diferenciados de Medicamentos Essenciais 32

5. CONCLUSÕES 34

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 36

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PREFÁCIO

A presente publicação é o primeiro fruto de uma parceria que a ABIAvem desenvolvendo, ao longo dos últimos anos, com o Instituto deDireito do Comércio Internacional e Desenvolvimento (IDCID),

uma organização não-governamental sediada em São Paulo, que vem des-pontando no cenário político nacional e internacional na discussão sobrequestões comerciais relacionadas ao acesso a medicamentos, a partir de umaperspectiva jurídica.

Esse relacionamento nasce no âmbito das atividades do Grupo de Tra-balho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dosPovos (GTPI/REBRIP), que reúne entidades da sociedade civil preocupa-das em minimizar o impacto dos acordos comerciais no acesso aos medica-mentos e em promover a saúde pública e os princípios que norteiam o Siste-ma Único de Saúde. Desde 2003, a ABIA organiza as atividades do GTPI,sendo, desse modo, membro integrante da Coordenação Geral da REBRIP.

A interface entre propriedade intelectual e acesso a medicamentos es-senciais vem tomando vulto nas discussões sobre políticas de comércio in-ternacional e no cotidiano das organizações que trabalham na luta contra aAIDS, desde o momento em que o governo dos Estados Unidos da Améri-ca entrou com uma queixa contra a lei brasileira de propriedade industrial(lei nº 9279/96). Esse painel, apresentado em 2001 na Organização Mundialde Comércio (OMC), questionava a necessidade dos detentores de patentesinternacionais de usá-las localmente, isto é, produzir no território brasileiroos bens que estão licenciados (patenteados). A sociedade civil brasileira, emconsonância com o ativismo internacional, logo percebeu que o que estavapor trás da queixa norte-americana era justamente a fabricação nacional demedicamentos genéricos, especialmente os anti-retrovirais, usados no trata-mento das pessoas com AIDS.

A fim de mobilizar a opinião pública quanto aos riscos dessa queixapara a saúde pública, organizações da sociedade civil promoveram manifes-tações em frente à Embaixada dos Estados Unidos, em Brasília, e aos consu-lados norte-americanos em diversas capitais (São Paulo, Rio de Janeiro, Re-cife). Além disso, realizaram-se seminários de reflexão e debate, que tinhamcomo objetivo clarificar as co-relações entre a defesa dos direitos de proprie-dade intelectual e a manutenção e promoção do direito à saúde pública. To-dos esses eventos envolveram atores e atrizes de diferentes movimentos so-ciais, o que permitiu o estabelecimento de uma efetiva articulação em rede,

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por meio da qual passaram a ser discutidas e encaminhadas as questões co-muns às entidades que trabalham com temas relacionados ao comércio in-ternacional e à defesa da saúde pública.

É nesse espírito que começa a se consolidar, no âmbito da REBRIP, ogrupo de trabalho sobre propriedade intelectual que, desde a sua formação,vem dando destaque às questões relativas ao acesso aos medicamentos, àprodução local de genéricos e à forma como esses temas vêm sendo aborda-dos pelas políticas nacionais e pelos tratados comerciais bilaterais e regio-nais, tais como a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e o acordoentre os países do Mercosul e da União Européia. De pronto, uma análisecuidadosa dos capítulos de propriedade intelectual nesses acordos revela asmanobras da indústria transnacional, principalmente o setor farmacêutico,para reforçar os direitos patentários, com um número maior de restrições emenor de flexibilidades do que é preconizado pelo acordo sobre direitos depropriedade intelectual relacionados ao comércio (TRIPS, na sigla em in-glês) da OMC.

Embora todas essas questões pareçam revestidas de uma grande com-plexidade e demandam um diálogo maior dos grupos que atuam na lutacontra a AIDS com outros segmentos da sociedade civil organizada, elas jápovoavam o cotidiano dos pacientes de AIDS no Brasil e das entidades quedefendem o interesse público. Dito de outro modo, quando, pressionadopelas organizações não governamentais, o governo brasileiro adotou a polí-tica de distribuição gratuita de anti-retroviral, fazendo valer o princípio cons-titucional de que a saúde é um direito de todos e dever do Estado, as críticasde organismos internacionais não foram amenas. Questionava-se como umpaís em desenvolvimento, com um sistema de saúde público ainda incipiente,poderia oferecer tratamentos considerados complicados para uma popula-ção que, dado o seu nível sócio-econômico, dificilmente teria condições decompreender e aderir às prescrições médicas. Dada a determinação e a ou-sadia em adotar tal política, em pouquíssimo tempo já se colhiam os resulta-dos positivos: a estabilização na velocidade da transmissão do HIV e a redu-ção dos níveis de morbidade e mortalidade em função da AIDS.

Aliadas à vontade política e à mobilização comunitária, a produçãolocal de fármacos e uma legislação de saúde pública efetivamente democrá-tica garantiram o sucesso e o reconhecimento internacional para a respostabrasileira ao HIV/AIDS. Mas, novamente, essas conquistas estão ameaçadas.Os novos críticos de nossa empreitada em saúde pública são os organismosinternacionais e setores produtivos estrangeiros que tentam, por meio desuas regras e acordos, fazer valer o interesse privado, mesmo que isso impe-ça as nações de usufruírem o que está disposto na Declaração Universal dosDireitos Humanos. Na direção contrária a esse importante manifesto, a saú-de virou negócio e a vida, agora, tem o seu preço.

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A entrada de novas drogas no tratamento das pessoas que vivem comAIDS, todas elas patenteadas pela indústria farmacêutica transnacional, fazcom que o impacto da aquisição desses medicamentos seja sentido nos co-fres públicos. Se antes o Brasil podia produzir versões genéricas dos medica-mentos, na medida em que eles não estavam protegidos por patentes, com alei brasileira de propriedade industrial, a situação se tornou mais difícil. Alémde conceder patentes para produtos e processos farmacêuticos, o que nãoera necessário até a promulgação dessa lei, a indústria nacional se vê na obri-gação de aguardar, pelo menos, vinte anos – o prazo de vigência de umapatente – para que ela possa produzir versões genéricas de medicamentosnovos. Enquanto isso, governo, consumidores e contribuintes pagam o pre-ço que a indústria farmacêutica transnacional estipula, na medida em que eladetém cerca de 97 % do total de patentes concedidas pelo Instituto Nacionalde Propriedade Industrial (INPI).

Em outras palavras, o sistema internacional de patentes, que o Brasilreconhece formalmente na medida em que é membro da OMC, sob a alega-ção (falaciosa) de que é necessário proteger os direitos de propriedade inte-lectual para estimular mais pesquisa e desenvolvimento, acaba por favorecersomente os monopólios estrangeiros, acirrando a dependência tecnológicadas nações mais pobres do planeta. O conhecimento acaba se tornando res-trito e o acesso das populações dos países em desenvolvimento às inovaçõescientíficas no campo da biotecnologia – os medicamentos – passa a ser, aolado do combate à fome, um dos maiores desafios para a manutenção dadignidade humana. A devastação provocada pela epidemia de AIDS no con-tinente africano é a mais tocante evidência do nefasto impacto de políticas eprojetos que sobrepõem o lucro à vida.

Assim, o presente texto busca discutir soluções para esses impasses,esperando apontar alguns caminhos onde se possam equacionar as regrasque protegem os direitos de propriedade intelectual e o acesso a medica-mentos, considerando a realidade de países em desenvolvimento e a com-plexidade dos problemas que precisam ser enfrentados. Toda esta reflexão,que anima e fundamenta as atividades do GTPI, parte do princípio de não sepode conceder aos medicamentos o mesmo tipo de abordagem que se dápara outros produtos tecnológicos, como máquinas, carros e computadores.A vida pode ser mais complicada sem estes últimos, mas ela é impossívelquando não temos remédios. Medicamentos não podem ser tratados sim-plesmente como bens de consumo. Nós estamos falando de produtos quesalvam vidas.

O objetivo da ABIA em publicar este artigo como o fascículo número4 da Coleção ABIA (Políticas Públicas), é de ampliar a disseminação destasinformações entre o maior número possível de interessados. A idéia das Co-leções em fascículos, além de facilitar a sua distribuição e acesso, favorece a

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sua reprodução, seja por impressão gráfica, seja por meio eletrônico. Destaforma, esperamos alcançar um número maior de leitores, que possam utili-zar esta e outras publicações das Coleções como um instrumento de apoioas suas iniciativas tanto de ensino e pesquisa, como de ativismo nas diferen-tes áreas relacionadas ao enfrentamento da epidemia de HIV/AIDS. Outrostítulos das Coleções encontram-se a disposição em formato impresso ou nahomepage da ABIA.

Que a leitura do texto de Maristela Basso e Fabrício Polido consigaajudar formuladores de políticas públicas, ativistas do movimento social e oconjunto de setores da sociedade empenhado na construção coletiva de ummundo mais justo e igualitário, a encontrar soluções viáveis para que, nem osnossos preceitos constitucionais, nem a afirmação dos direitos fundamentaisda pessoa humana se tornem letra morta. Afinal, é isto o que motiva os maisdiferentes segmentos sociais na luta contra a AIDS desde o seu início e nofortalecimento de um sistema de saúde pública, cujo acesso é universal.

Carlos André Passarelli(a)

Veriano Terto Jr.(b)

Cristina Pimenta(c)

Richard Parker(d)

(a) Mestre em psicologia social. Assessor de projetos da ABIA.(b) Coordenador geral da ABIA.(c) Coordenadora geral da ABIA.(d) Diretor-presidente da ABIA. Professor e chefe do departamento de Ciências Sóciomédicas na Escola de Saúde Pública daUniversidade de Columbia - Nova Iorque. Co-coordenador do Grupo Internacional de Trabalho sobre Sexualidade e PolíticasSociais (GITSPS ).

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PROPRIEDADE INTELECTUAL E PREÇOS

DIFERENCIADOS DE MEDICAMENTOS

ESSENCIAIS: POLÍTICAS DE SAÚDE PÚBLICA

PARA PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO1

MARISTELA BASSO2

FABRÍCIO POLIDO3

Sumário: O presente artigo examina a in-dispensável relação entre uma adequada alocaçãodos direitos de propriedade intelectual e o aces-so à saúde pública, abordando algumas questõesrelativas à proteção patentária na indústria far-macêutica e implementação de políticas de pre-ços diferenciados para a aquisição de medica-mentos essenciais, nos países em desenvolvimen-to e de menor desenvolvimento relativo.Enfatiza, igualmente, temas estabelecidos naagenda atual da Organização Mundial da Saúdee da Organização Mundial do Comércio referen-tes aos instrumentos institucionais e políticaspúblicas de acesso à saúde nos países em desen-volvimento. São considerados, também, os re-

centes debates sobre a proteção dos direitospatentários e a observância, pelos países mem-bros da OMC, das importantes previsões da De-claração de Doha sobre TRIPS e Saúde Pública.

Unitermos: saúde pública; políticas de acessoa medicamentos essenciais; preços diferenciados;indústria farmacêutica; Organização Mundial daSaúde; Organização Mundial do Comércio; po-lítica industrial; propriedade intelectual; paten-tes farmacêuticas; licenças compulsórias; impor-tação paralela; TRIPS; flexibilidades; Declaraçãode Doha sobre TRIPS e Saúde Pública.

1 O presente estudo é resultado dos trabalhos desenvolvidospelo Instituto de Direito do Comércio Internacional e Desenvolvimento(IDCID) na linha de pesquisa sobre o tema do acesso à saúde edireitos de propriedade intelectual. No campo do Direito emespecial, é possível examinar como suas instituições podem serúteis para a concretização de um acesso justo aos mercados demedicamentos essenciais, dentro de um ambiente de preserva-ção da livre-concorrência e dos direitos de propriedade inte-lectual. Sugestões e críticas pelo e-mail: [email protected]

2 Professora Livre-Docente do Departamento de Direito Inter-nacional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo(FDUSP). Presidente do Instituto de Direito do Comércio In-ternacional & Desenvolvimento (IDCID).3 Pós-Graduando em Direito Internacional pela Faculdade deDireito da Universidade de São Paulo (FDUSP). Realizou estu-dos na Eberhard-Karls-Universität Tubingen, Alemanha (2002/2003), e foi estudante visitante na Charles-University of Prague,Republica Tcheca. Pesquisador do Instituto de Direito do Co-mércio Internacional e Desenvolvimento (IDCID)”.

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1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O tema “acesso à saúde e medicamentosessenciais” tem sido constantemente enfatizadona agenda de debates da comunidade internacio-nal, especialmente se considerados os últimos dezanos de trabalho da Organização Mundial daSaúde (OMS) na definição de diretrizes inter-nacionais para a reformulação de sistemas pú-blicos de saúde nos países-membros da ONU,e no aprofundamento das discussões sobre a“efetividade do acesso a medicamentos” nospaíses em desenvolvimento. O problema tambémse encontra inserido no âmbito das negociaçõesda Organização Mundial do Comércio (OMC),especialmente com relação aos modelos deproteção da propriedade intelectual em seus pa-íses-membros e o gerenciamento de patentes far-macêuticas segundo as regras estabelecidas noAcordo TRIPS, suas salvaguardas e exceçõesespecíficas.4

Em manifestação recente, a AssembléiaGeral da ONU editou a Resolução 2001/33, quetrata, dentre outros aspectos, do acesso aos me-dicamentos para tratamento de doençaspandêmicas incidentes na população de países emdesenvolvimento e em menor desenvolvimentorelativo.5 Por meio desse documento, a comuni-

dade internacional reconhece que o acesso à saú-de constitui um dos mais importantes direitosfundamentais da pessoa e enfatiza que os Esta-dos-membros devem se abster de tomar quais-quer medidas que venham negar ou limitar ascondições de acesso aos medicamentos e àstecnologias biofarmacêuticas empregadas na pre-venção e tratamento de doenças pandêmicas edas infecções mais freqüentes que as acompa-nham. A Resolução estabelece, também, aobrigação dos países de adotarem medidascomplementares em suas legislações a fim de res-guardar-se o acesso a tais medicamentos outecnologias preventivas e curativas, bem comoestabelecer políticas públicas adequadas para aalocação de recursos que fomentem o acesso àsaúde.6

No Brasil, muitas instituições têm sidoquestionadas a responder à necessidade de pla-nejamento e efetividade das políticas públicasde acesso à saúde, especialmente por ser esteum direito fundamental do cidadão, e pela ne-cessidade de incrementar os métodos de tra-tamento das doenças que afetam contingentespopulacionais necessitados no território nacio-nal. Determinar uma estratégia de incentivo econcretização do acesso à saúde, em qualquernível que se trate, revela-se um desafio sempreatual. Recentemente, o Ministério da Saúde noti-ciou a tentativa de estimular negociações entre o

4 Importante literatura sobre os temas tem sido desenvolvida,como os estudos de S. STERCKX, Patents and Access to Drugs inDeveloping Countries: An Ethical Analysis, in Developing WorldBioethics, vol. 4, n. 1, 2004. pp. 58 e ss.; P.J. HAMMER, DifferentialPricing of Essential AIDS Drugs: Markets, Politics and Public Healthin Journal of International Economic Law, vol. 5, n. 4, 2002, pp. 883e ss.; J. NOGUÉS, Patents and Pharmaceutical Drugs: Understandingthe Pressures on Developing Countries, in Journal of World Trade,vol. 24, n. 6, 1990. pp. 81e ss; D. HENRY e J. LEXCHIN, Thepharmaceutical industry as a medicines provider, in The Lancer, vol.360, 2002. pp. 1590 e ss; R. LOPERT et alli, Differential Pricing ofdrugs: a role for cost-effectiveness analysis, in The Lancer vol. 360,2002. pp. 2105 e ss.5 Cf. Resolution 2001/33 on Access to Medication in the Context ofPandemics such as HIV/AIDS.

6 A Resolução detalha os propósitos da difusão do tema emâmbito internacional: (i) refrain from taking measures which woulddeny or limit equal access for all persons to preventive, curative or palliativepharmaceuticals or medical technologies used to treat pandemics such asHIV/AIDS or the most common opportunistic infections thataccompany them; (ii) adopt legislation or other measures, in accordancewith applicable international law, including international agreementsacceded to, to safeguard access to such preventive, curative or palliativepharmaceuticals or medical technologies from any limitations by thirdparties; adopt all appropriate positive measures to the maximum of theresources allocated for this purpose so as to promote effective access tosuch preventive, curative or palliative pharmaceuticals or medicaltechnologies”.

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governo federal e empresas farmacêuticas paraa aquisição de medicamentos a preços diferen-ciados, bem como a realização de leilões para acompra centralizada de medicamentos, com des-contos e preços reduzidos.7

Vale lembrar que o Brasil contribuiu parao fortalecimento da discussão sobre acesso aosmedicamentos essenciais na âmbito interna-cional, especialmente no fim da década de 90,com políticas públicas relacionadas ao trata-mento universal das doenças vinculadas aoHIV/AIDS e à campanha pela gratuidade doacesso ao coquetel anti-retroviral. Sua repercus-são, pelo mérito que teve, chamou a atençãode várias organizações e organismos interna-cionais e aproximou países em desenvolvimen-to e em menor desenvolvimento relativo emtorno de uma concepção humanitária do aces-so à saúde no mundo.8

No entanto, muitos problemas ainda sãode difícil superação nesse campo, pelo menosinternamente. Dados do Instituto Brasileiro deGeografia e Estatística (IBGE) constataram que40% dos brasileiros não têm acesso efetivo a

medicamentos essenciais. No Brasil, os gastoscom saúde aparecem em quarto lugar dentre asdespesas familiares, atrás apenas daqueles refe-rentes à habitação, alimentação e transporte. Amaior parcela dos gastos é decorrente da aquisi-ção de medicamentos, por conta dos preçosfreqüentemente elevados ou desproporcionais àrenda efetiva da população brasileira.

No plano internacional, várias fórmulas sãopostas em evidência como tentativa deconcretização do direito fundamental do homemde acesso à saúde, especificamente aquelas queobjetivam a modificação de estruturas do pro-cesso econômico - produção, distribuição e con-sumo - relacionadas ao mercado de produtosfarmacêuticos essenciais e à função destes depossibilitar tratamentos adequados às doençasmais comuns que afetam a população. Nesse con-texto específico, discute-se a importante noçãode “preços diferenciados de medicamentos es-senciais” como opção viável de fomento às polí-ticas públicas de acesso à saúde.9

Na verdade, essa política afirmativa inclui-se entre várias, e implica divulgação de amploalcance que se justifica no contexto internacio-nal, no qual desenvolvem-se ações relacionadasao acesso à saúde mediante redução, pelos paí-ses, dos preços dos medicamentos essenciais. Dealguma maneira, pretende-se afastar os prejuízosrelativos ao “custo da saúde”, que representambarreiras à concretização do direito fundamen-tal de acesso e direito à saúde (garantido a todosos cidadãos, internamente, conforme a Consti-tuição, e internacionalmente, em diversos trata-dos e convenções internacionais).

7 O mesmo se verificou com relação ao programa FarmáciaPopular do Brasil, lançado pelo Governo Federal no intuito deampliar, ao consumidor final,. o acesso aos medicamentos es-senciais, por meio da redução de preços. A Fundação OswaldoCruz (Fiocruz), órgão do Ministério da Saúde, é responsávelpela execução do programa e pela aquisição dos medicamentos,tanto de laboratórios farmacêuticos públicos quanto privados.Uma das finalidades do programa seria justamente a de permi-tir que a população de baixa renda tivesse facilidade ao acesso demedicamentos e recebesse tratamento adequado de suas doen-ças. Cf. objetivos do programa no endereço http:www.saude.gov.br/farmacia popular. Vale ressaltar que o barateamento dos métodosde aquisição de medicamentos para conseqüente financiamentodo acesso à saúde pública representa uma saída interessante e,portanto, deve ser estimulado.8 Entre 1995 e 2000 o acesso era concedido a aproximadamente92.000 pacientes, alcançando a redução de 40 a 70% na mortali-dade dos infectados e evitando cerca de 240 mil internações. Omesmo acontecia com relação ao preço médio de aquisição dosanti-retrovirais, que caiu cerca de 72% num período de 5 anos.Dados recentes são divulgados no site http://www.aids.gov.br

9 O termo refere-se à expressão “differential pricing”, não tradu-zindo, necessariamente, o conceito de preço discriminatórioempregado na definição da conduta de discriminação de preçosno direito antitruste. Sobre as distinções e suas dificuldades, cf.P. J. HAMMER, Differential Pricing of Essential AIDS Drugs:Markets, Politics and Public Health, cit., pp. 883 e ss.

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O presente estudo tem como objetivo ana-lisar os aspectos relacionados às iniciativas atu-ais no tocante ao acesso à saúde, medicamentosessenciais e preços diferenciados para os paísesem desenvolvimento, com vistas a determinar suapertinência e seus impactos no contexto brasilei-ro. Para tanto, analisamos, inicialmente, a defini-ção e as funções dos preços diferenciados demedicamentos essenciais no que diz respeito aoacesso à saúde, bem como a importância delesnas iniciativas de ações afirmativas e políticaspúblicas. São discutidas, também, questões rela-cionadas às patentes farmacêuticas, aspectos daconcorrência nos mercados e estratégias da in-dústria farmacêutica quanto às políticas de pre-ços diferenciados para medicamentos essenciais.Por fim, dedicamos atenção aos desdobramen-tos do tema dentro do contexto da OrganizaçãoMundial do Comércio, e aos aspectos mais rele-vantes da Declaração de Doha sobre TRIPS eSaúde Pública, ocasião em que se faz propíciaa apresentação de propostas que possam esti-mular os debates.

2. PREÇOS DIFERENCIADOS E MEDICAMEN-TOS ESSENCIAIS

2.1 Definições. Funções dos Preços Diferen-ciados e Acesso à Saúde

Segundo ampla definição apresentada pelaOMS, os preços diferenciados (differential,preferential ou equity princing) aplicáveis à categoriados medicamentos essenciais são preços adapta-dos ao poder de compra dos consumidores empaíses em desenvolvimento e em menor desen-volvimento relativo. Em última análise, dizemrespeito ao “grau de acessibilidade” do consu-midor aos medicamentos essenciais, refletido nacapacidade de aquisição destes pelos indivíduos,especialmente nas populações mais carentes, so-cial e economicamente.10-11

Esses preços não seriam destinadosà aquisição de todo produto derivado da indús-tria farmacêutica, mas sim daqueles considera-dos medicamentos essenciais. A própria classifi-cação trazida pela OMS estabelece que é essencialtodo medicamento que satisfaça as necessidades básicasde cuidado da saúde humana, devendo ser acessível a todomomento, em quantidade e qualidade adequadas e emformas apropriadas de dosagem.12 Desde a recepçãode importantes princípios contidos na Declara-ção de Alma-Ata de 197813, realizada na antiga

10 Cf., fundamentalmente, WHO, More Equitable Pricing forEssential Drugs, Workshop on differential pricing and financingof essential drugs, Hosbjor, Norway, April 2001, item 2.1; eJ.WATAL, Differential Pricing and Financing of Essential Drugs,WHO/WTO Secretariat Workshop on Differential Pricing andFinancing of Essential Drugs, Hosbjor, Norway, April 8-11,2001, documento disponível online no site: http://www.wto.org11 Ver também a opinião de C. PÉREZ-CASAS e N. FORD, Pricingof drugs and donations: options for sustainable equity pricing in Tropi-cal Medicine and International Health, vol. 6, n. 1, 2001, p. 964.Segundo esses autores: “Equity pricing is based on principle thatpoor should pay less for, and have access to, life-saving, essential medicines.The final aim is to make essential drugs available at a price that is fair,equitable and affordable for all in need. Access to essential drugs shouldnot be a luxury of the privileged few. It is a matter of social equity andjustice”. (“O preço diferenciado é baseado no princípio de que opobre deva pagar menos pelos medicamentos essenciais, e te-nha acesso a eles. O objetivo final é tornar tais medicamentosdisponíveis a todos, mediante um preço que seja justo, eqüita-tivo e possível para aqueles indivíduos que estejam em situaçãode necessidade. O acesso aos medicamentos essenciais não deveser luxo ou privilégio de poucos. É uma questão de justiça eeqüidade social.”)

12 O conceito em questão encontra-se atualmente incorporadona listagem de medicamentos essenciais elaborada pela Organi-zação Mundial da Saúde. A 12th Model List of Essential Drugs,de 2002, contém 325 medicamentos unitários, sendo 12 anti-retrovirais para prevenção e tratamento das doenças relaciona-das ao HIV-AIDS. A primeira lista foi publicada em 1977, iden-tificando 208 medicamentos unitários. Sobre elas, ver conteúdoem http://www.who.int/medicines13 International Conference on Primary Health Care of Alma-Ata,USSR, realizada entre 6 e 12 Setembro de 1978. Na ocasião eramlançadas as bases para a propaganda mundial do acesso à saúdecom ênfase nos medicamentos essenciais. A Declaração consi-dera que a saúde é um estado de bem-estar geral do ser huma-no, que encontra sua completude na saúde física e mental. (“TheConference strongly reaffirms that health, which is a state of complete

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União Soviética quando o tema teria ganhadoamplo espaço nas discussões acadêmicas, o con-ceito de medicamentos essenciais sofreu signifi-cativa ampliação na regulamentação internacio-nal do acesso à saúde, não mais se resumindo auma lista de fórmulas e compostos farmacêuti-cos para o tratamento de determinadas doenças.Medicamentos essenciais passam a bens de aces-so universal nos países, correspondendo justa-mente à concretização das prioridades referen-tes às necessidades básicas de saúde, incrementodas formas de tratamento de doenças e melhoruso dos medicamentos e dos recursos destina-dos ao acesso à saúde.14

Diversos estudos têm apontado a dupla fun-ção dos preços diferenciados: ao mesmo tempoem que permitiriam facilitar o acesso aos medi-camentos essenciais, também estimulariam a ca-pacidade inventiva na indústria farmacêutica enovas descobertas em relação ao tratamento dedoenças existentes.15 Assim, eles gerariam (i) re-dução das barreiras de acesso aos medicamen-tos essenciais pelos cidadãos nos países, (ii) umamelhor repartição de receitas entre as empresas

dentro do mercado de produtos farmacêuticos,especialmente aquelas originárias dos países de-senvolvidos (high-income markets); e (iii) a supera-ção dos problemas decorrentes da falta de me-dicamentos essenciais para aqueles que precisamadquiri-los, promovendo o bem-estar e a curade doenças, sejam elas epidêmicas, endêmicas,infecciosas ou naturais.16

Além dessa tripartição, os preços diferen-ciados encontram-se na lista de fatores que de-terminam a efetividade do acesso aos medica-mentos essenciais. Oferecem condições para umautilização racional dos medicamentos, estimulama acessibilidade, criam formas de financiamentosustentável e auxiliam no restabelecimento daintegridade dos sistemas públicos de saúde. Adificuldade de concretização de tais fatores, osquais constituem, na verdade, uma “fórmula”geral de acesso à saúde, é explicada em grandeparte pelas barreiras à obtenção, pelos países emdesenvolvimento e em menor desenvolvimentorelativo, dos medicamentos essenciais que seri-am úteis para o tratamento das doenças que afe-tam suas populações. Essas barreiras de acessosurgem em dois planos: (i) na relação entre paí-

physical, mentaland social wellbeing, and not merely the absence ofdisease or infirmity, is a fundamental human right and that the attainmentof the highest possible level of health is a most important worldwidesocial goal whose realization requires the action of many other social andeconomic sectors in addition to the health sector). São enfatizados aliimportantes objetivos de regulamentação internacional do acessoà saúde, como a oferta e provisão de medicamentos essenciais.Ver assim, §7, inciso II da Declaração, que expressamente men-ciona: “immunization against the major infectious diseases, preventionand control of locally endemic diseases; appropriate treatment of commondiseases and injuries; and provision of essential drugs” (imunizaçãocontra as doenças infecciosas, prevenção e controle de doençasendêmicas locais, tratamento de doenças mais comuns e provi-são de medicamentos essenciais).14 Ver também, nesse sentido, as importantes considerações deJ. D.QUICK, Essential medicines twenty-five years on: closing the accessGap, in Health Policy and Planning; vol. 18, n .1, 2003, p. 3, arespeito da evolução do tema e de sua importância, inclusivecom relação ao estímulo à indústria dos genéricos: “At least 88countries have introduced the essential medicines concept into curriculafor medicine and pharmacy students, and the WHO Guide to Good

Prescribing has been translated into 18 languages and adopted by teachinginstitutions throughout the world. Generic competition is encouraged inscores of countries. Over a dozen countries provide price information onpublic world-wide-web sites and WHO, with other partners, maintainspricing services for the full range of essential medicines, for activeingredients and for HIV-related medicines.” E conclui o autor emseguida: “Over the last 25 years, the essential medicines concept hasproven itself to be an effective global concept that is central to expandingaccess to medicines which improve health, reduce suffering and extendlives”.15 Sobre a referida dupla função, são fundamentais os comentá-rios de J.WATAL, Differential Pricing and Financing of EssentialDrugs, cit., especialmente item 3.16 É verdade que os preços diferenciados atendem a uma impor-tante função jurídica: auxiliar e assegurar que o preço dos medi-camentos essenciais não implique barreira ao acesso aos medica-mentos essenciais (facilita o consumo mediante “preço justo”)pelas populações do planeta e mantém a proporcionalidade dobinômio necessidade/reinvestimento. Sobre isso, ver J. WATAL,Differential Pricing, cit., p. 5.

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ses e indústria farmacêutica, e (ii) entre empresase consumidores.17

Do mesmo modo, muito poderia ser ditoa respeito da dependência existente entre acessoà saúde e iniciativa privada. Em países de menordesenvolvimento relativo, a relação existente en-tre esses campos é marcante, especialmente noque concerne à questão do financiamento. Nes-ses países, o setor governamental normalmentenão se estruturou suficientemente para garantiro acesso à saúde como direito fundamental docidadão, tornando ainda mais evidente a depen-dência do acesso. Em última análise, o acesso àsaúde estaria associado à prestação de serviçospúblicos, caracterizados pela essencialidade dosbens (e.g. provimento ao tratamento de doenças,internações, distribuição de medicamentos, etc.),atribuível, com exclusividade, à iniciativa estatal.

Em condições adequadas, os preços dife-renciados significam preços de aquisição maisacessíveis (critérios de barateamento) de medi-camentos essenciais destinados ao tratamento dedoenças infecciosas que afetam grande númerode pessoas, especialmente nos países em desen-volvimento e em menor desenvolvimento re-lativo. Associa-se a capacidade econômica deaquisição dos consumidores à razão entre custo,tempo e necessidade do tratamento.18 Segundoa literatura produzida sobre o tema, a determi-nação dos preços diferenciados dependeria das

variáveis relacionadas aos índices de renda nospaíses e à situação da concentração de riquezana sociedade, já que uma discriminação em po-tencial não se justificaria aleatoriamente, massim, apenas com base no poder de compra doconsumidor e na necessidade de tratamento parasua doença.19

No plano internacional, todavia, essa mes-ma lógica buscaria facilitar o acesso aos merca-dos consumidores dos países em desenvolvimen-to e em menor desenvolvimento relativo, que são,precisamente, os mais dependentes dos medica-mentos provenientes da indústria farmacêuticanos países ricos e desenvolvidos. Para alguns au-tores, o sucesso de uma política internacional depreços diferenciados requer um método trans-parente e eficaz para a avaliação do alcance dadistribuição dos medicamentos (relação necessi-dade v. viabilidade econômica).20 Seria indesejá-vel, social e economicamente, que aqueles quetivessem condições plenas de aquisição median-te preços normais passassem a fazê-lo mediante

17 Muitos autores referem-se a esse quadro, como é o caso de J.D. QUICK, Essential medicines twenty-five years cit, p.3., a propósitodas distinções observadas entre os países: “In high incomecountries, consumer prices are rarely more than twice the producer orimporter price. But in low-income countries, the combined effects ofmultiple middlemen, taxes, duties, distribution costs and retail marginsresult in a final price that is commonly more than double – and sometimesthree to five times – the producer or importer price. Reducing the finalprice of medicines to health systems and to consumers depends ontransparent price information, generic and therapeutic competition toreduce producer and importer prices, greater distribution efficiency,reasonable dispensing fees, and elimination of duties and taxes on essentialmedicines”.

18 Cf. J. WATAL, Differential Pricing cit., p. 11, item 3.1; e R. LOPERT

et alli, Differential Pricing of drugs: a role for cost-effectiveness analysis,in The Lancer, vol. 360, November 16, 2002, p. 1590.Princípio do acesso a medicamentos essenciais por preços dife-renciados - aquele pelo qual os medicamentos são adquiridosde acordo com a capacidade econômica dos consumidores(measure of affordability)19 A abordagem sobre preços diferenciados e renda dos paísesesboça os contornos da maior parte da literatura a respeito dospreços diferenciados, como em R. LOPERT et alli., DifferentialPricing of drugs: a role for cost-effectiveness analysis cit., pp. 1590 ess.20 Esse apelo é referido pela maioria dos autores, como J. D.QUICK, Essential medicines twenty-five years cit., p. 3. Assim explicao autor: “In high income countries, consumer prices are rarely morethan twice the producer or importer price. But in low-income countries,the combined effects of multiple middlemen, taxes, duties, distributioncosts and retail margins result in a final price that is commonly morethan double – and sometimes three to five times – the producer orimporter price. Reducing the final price of medicines to health systemsand to consumers depends on transparent price information, generic andtherapeutic competition to reduce producer and importer prices, greaterdistribution efficiency, reasonable dispensing fees, and elimination ofduties and taxes on essential medicines”).

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preços diferenciados. Também se acredita no ris-co de que os medicamentos sejam adquiridos emmercados de países em desenvolvimento e ven-didos em países desenvolvidos a preços extre-mamente elevados.21

2.2. Preços Diferenciados de MedicamentosEssenciais e Políticas Globais de Acesso àSaúde

A abordagem sobre os preços diferencia-dos no que concerne à produção e distribuiçãode medicamentos essenciais permitiria identifi-car inúmeras questões acessórias, como é o casodas condições gerais de acesso aos medicamen-tos essenciais que se constroem a partir da estru-tura da indústria, dos monopólios conferidospelas patentes, da intensidade das barreiras àentrada dos agentes econômicos nos mercadose dos dados concretos relacionados ao padrãode consumo pelas populações necessitadas. To-davia, essa não seria apenas a preocupação daregulamentação internacional dos preços diferen-ciados. A tentativa de implementação de políti-cas afirmativas nesse campo vem apenas expor aexistência do desequilíbrio entre as economiasdos países, refletido na desigualdade de distri-buição de renda, no abismo social e na insuficiên-cia do padrão de consumo pelas populações.22

Como tem sido cada vez mais salientadopelos autores, nos países em desenvolvimento e

em menor desenvolvimento relativo inúmerasbarreiras de acesso à saúde podem seridentificadas: elevados preços de aquisição dosmedicamentos; tributação inadequada e despro-porcional sobre determinadas categorias; siste-mas deficitários de distribuição pelas redes pú-blicas de saúde; além de problemas atribuídos àprópria indústria farmacêutica, tais como a faltade fiscalização e controle de qualidade dos pro-dutos, e o uso indevido de fórmulas inacabadase placebos.23 A isso somam-se a dificuldade deas autoridades governamentais controlarem aefetiva repartição dos benefícios gerados pelaproteção patentearia aplicada aos produtos far-macêuticos, a precariedade da indústria local pararesponder a uma eventual política de licençascompulsórias de curta e de longa duração, bemcomo a carência de recursos de investimentovoltados para a importação paralela.

Sabe-se que esses preços diferenciados,uma vez aplicados, permitem que sejam cobradospreços maiores para determinados medicamen-tos em países desenvolvidos, e outros, substan-cialmente menores, em países em desenvolvimen-to e em menor desenvolvimento relativo, sem queas empresas percam suas fatias de participaçãonos mercados. Se os preços forem objeto de umapolítica alternativa para aquisição de produtosfarmacêuticos, eles podem ser utilizados comoinstrumento de mediação das tensões entre os

21 Ver M. KINDERMANS e F. MATTHYS, Introductory note: The accessto Essential Medicines Campaign, in Tropical Medicine and InternationalHealth Vol. 6, n. 1, 2001, pp. 955 e ss. A preocupação tinha sidomanifestada pelo Mèdecins Sans Frontières, a respeito da criaçãode um sistema internacional de preços diferenciados. Por meiodeste, os medicamentos essenciais poderiam ser adquiridos emcondições especiais de modo a beneficiar os países pobres e emdesenvolvimento. Trata-se de uma campanha pública para cre-ditar às populações mais necessitadas do globo o direito deacesso aos medicamentos essenciais seja pela redução eqüitativade preços, seja pelo emprego de instrumentos de licença com-pulsória e importações paralelas sob princípios da transparênciade preços no âmbito internacional.

22 Nesse campo torna-se evidente a tônica do debate sobre aces-so aos medicamentos essenciais e preços diferenciados. Em maisde uma oportunidade, encara-se a dicotomia entre países de-senvolvidos e países em desenvolvimento e em menor desen-volvimento relativo, justificando o acesso à saúde pelos critériosde classificação de renda e índices de subdesenvolvimento. Ospreços diferenciados vêm mediar essas desigualdades, buscan-do uma saída mais eqüitativa para a distribuição de medicamen-tos essenciais.23 D. HENRY e J. LEXCHIN, “The pharmaceutical industry as amedicines provider”, in The Lancer, vol. 360, November 16,2002, p. 1590. Nesse mesmo sentido, ver também, J. D. QUICK,Essential medicines twenty-five years cit., p. 3.

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países no que se refere ao acesso aos medicamen-tos essenciais, trazendo consigo uma importantemedida combinada. Ao mesmo tempo em que pre-vêem a manutenção e a revalorização dos direi-tos de propriedade intelectual, estimulam, igual-mente, a concretização dos objetivos humanitá-rios das políticas de saúde pública.24

Por outro lado, sabe-se que o consumidorfinal é o sujeito diretamente afetado pela varia-ção dos preços. Está sujeito, para ver seu bem-estar aumentado e suas condições de saúde me-lhoradas, a pagar preços relativamente caros pôrmedicamentos que lhes são urgentes e básicos.Reage sensivelmente às variações (se compara-do com o desejo de adquirir outros produtos) enem sempre pode abrir mão do produto ou en-contrar um substituto adequado.25 Esse consumi-dor individual, o cidadão, dificilmente estaria emposição propícia para negociar, com a indústriafarmacêutica, condições especiais de aquisiçãodos medicamentos, ao contrário do que ocorrecom relação ao Estado, às organizações gover-namentais e não governamentais.26

Também com relação à questão específicada institucionalização de políticas uniformes de pre-ços diferenciados, existe uma pluralidade de su-jeitos envolvidos na regulamentação internacio-nal do acesso aos medicamentos essenciais. Atentativa de tratamento uniforme referente à apli-cação de tais preços tem sido verificada em ne-gociações bilaterais e multilaterais, intermediadas,em grande parte, pela Organização Mundial daSaúde. Nessas negociações tem sido verificada aatuação de uma série de agentes, tais como (i) osórgãos governamentais dos países interessados,seja no que diz respeito à regulação e controle dosistema público de saúde, seja de coordenação depolíticas industriais relacionadas ao setor farma-cêutico; (ii) os representantes de governo dos paísesdesenvolvidos na tarefa de empregar recursostécnicos e financeiros sobre a política domésticados países em menor desenvolvimento relativo eem desenvolvimento; (iii) as empresas farmacêu-ticas que atuam na produção e comercializaçãode medicamentos com base em plataformas depesquisa e desenvolvimento e estímulo à indús-tria dos genéricos; (iv) as entidades e associaçõesde defesa dos interesses de consumidores, além deorganizações não governamentais; e (v) organiza-ções e fundações internacionais, como a UNICEF,a UNAIDS, UNFPA e o Banco Mundial.27

24 Aqui vale a pena retomar as considerações de P. J. HAMMER,Differential Pricing of Essential AIDS Drugs: Markets, Politics andPublic Health cit., p. 884: “Under appropriate market conditions, pricediscrimination will arise naturally, as a profit maximizing businessstrategy. It is doubtful, however, that it is now, or will be in the foreseeablefuture, independently rational for first world pharmaceutical companiesto cultivate and supply a market for low drugs in developing countries.Markets can not solve the AIDS crisis by themselves. Nevertheless, theclassic economic model of price discrimination can serve as a useful‘political framework’ to mediate first- and third-world tensions over essentialdrugs, providing a template that can maintain the integrity of intellectualproperty rights while respecting humanitarian concerns over access to life-saving drugs”.25 O consumidor de um medicamento essencial é “consumidorcerto”, especialmente porque estará condicionado ao pagamen-to de qualquer preço pelo medicamento de que precise para verseu bem-estar melhorado. De fato, ele não estaria tão sensível àsvariações de preços de outros produtos de que careça tão urgen-temente, como um determinado alimento ou vestuário, oubens supérfluos. Por essa razão é que as variáveis (i) preço domedicamento, (ii) poder de compra do cidadão e (iii) aumentodo bem estar são muito importantes no debate sobre do acessoà saúde e medicamentos essenciais.

26 Cf. D. HENRY e J. LEXCHIN, The pharmaceutical industry as amedicines provider, in The Lancer, vol. 360, November 16, 2002, p.1590. Os autores relatam que nos Estados Unidos o mesmoproblema também é sentido, como a ausência de benefíciosrelacionados à política e distribuição de medicamentos essenci-ais sem cobertura por planos de saúde, em que boa parte dapopulação paga, pelo acesso, um dos preços mais elevados deque se tem registro.27 Cf. WHO, More Equitable Pricing for Essential Drugs cit., espe-cialmente item 2.1. No que concerne às ONG´s em geral, suaatuação tem sido significativa para participação do setor privadonas discussões sobre o acesso aos medicamentos essenciais epreços diferenciados. O interesse público, como categoria geralde interesse a ser tutelado nas relações que envolvem o direitode acesso à saúde, cumpre um papel fundamental para justificara transformação dos preços de aquisição dos medicamentosessenciais em preços diferenciados.

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A OMS, por sua vez, tem enfatizado queuma política de preços diferenciados ou de “ple-na acessibilidade” relativa à aquisição de medi-camentos essenciais requer, necessariamente, quesejam estabelecidos instrumentos de preserva-ção da concorrência entre as empresas, assegu-rando preços reduzidos de aquisição por partedas empresas fabricantes, visando atingir as po-pulações necessitadas.28 A situação de muitospaíses em desenvolvimento, no entanto, tambémnão seria muito favorável à efetividade dos pre-ços diferenciados, especialmente por conta daestrutura de distribuição dos medicamentos es-senciais que acabam sendo adquiridos por pre-ços mais elevados que nos países desenvolvidos,pelas falhas dos sistemas de saúde planejados efinanciados pelos poderes públicos, e pela faltade sintonia entre as estratégias empresariais daindústria farmacêutica e o debate da sociedadecivil sobre o acesso à saúde. O adequado funcio-namento de um sistema de preços diferenciadospara medicamentos essenciais estaria justamentecondicionado à coordenação e efetividade depolíticas públicas do Estado, à construção de umsistema eficiente de distribuição desses medica-mentos (propaganda sobre a utilidade e atendi-mento/cobertura das populações necessitadas)até atingir-se um mercado de medicamentosessenciais que funcioasse segundo regras de pre-ços diferenciados, atendendo efetivamente acapacidade econômica das populações maisnecessitadas.29

3. POLÍTICA INDUSTRIAL, PROPRIEDADE

INTELECTUAL E PREÇOS DIFERENCIADOS DE

MEDICAMENTOS ESSENCIAIS

3.1 Propriedade Intelectual e Preços Dife-renciados

Muitas críticas também têm sido dirigidasà questão específica da relação entre preços dife-renciados e a proteção de propriedade intelec-tual. A discussão nesse campo parece ser guiadapela polarização de interesses (aparentemente)conflitantes. De um lado, surge a orientação daindústria farmacêutica, autoridades governamen-tais dos países desenvolvidos nos quais existe umasignificativa concentração da plataforma de pes-quisa e produção dos medicamentos essenciaise, de outro, a dos organismos internacionais, pa-íses em desenvolvimento, e organizações não-governamentais.

A questão crucial é saber se uma políticade preços diferenciados sobre medicamentosessenciais seria ou não prejudicial à proteção dapropriedade intelectual por meio de patentes far-macêuticas, especialmente com relação à redu-ção de incentivos para investimento em pesquisae desenvolvimento (P&D).30 Como será exami-nado adiante, a mesma polêmica transfere-se paraa Organização Mundial do Comércio, evidenci-ando a preocupação de determinados paísesquanto ao suposto conflito existente entre os

28 Cf. WHO, More Equitable Pricing for Essential Drugs cit., p. 11.29 A esse propósito, é interessante a opinião de P. J. HAMMER,Differential Pricing of Essential AIDS Drugs: Markets, Politics andPublic Health cit., p. 889, analisando os problemas relativos aosmercados consumidores de medicamentos essenciais e as inefi-ciências a ele atribuídas: “Pharmaceutical markets in developingcountries are substantially underdeveloped, with current drugs price setprimarily to service developed markets. As a result, developing countriesare essentially priced out of the market. From this starting point, ifreforms could facilitate the creation of a sustainable regime of differentialpricing to serve developing countries, the result would be welfare enhancing.”

Por fim, conclui o autor, p. 890, que a efetividade dos preçosdiferenciados depende de reformas institucionais nos países,dentre as quais aquelas relativas ao sistema público de saúde:“In the longer term, however, an initiative that synergistically pursuedobjectives of economic development, the building of a public healthinfrastructure, and the construction of a distribution system for thedissemination of low-priced drugs, could lead to the creation of strongermarkets in developing countries”30 Sobre a problemática (e emblemática) relação entre patentesfarmacêuticas e o acesso à saúde, cf. J. NOGUÉS, Patents andPharmaceutical Drugs: Understanding the Pressures on DevelopingCountries, in Journal of World Trade, vol. 24, n. 6, 1990, pp. 81-103.

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preços diferenciados e os dispositivos do TRIPSsobre proteção patentária. 31

Com freqüência, estudos de política indus-trial procuram demonstrar os vários custos rela-cionados à pesquisa farmacêutica, à divulgaçãodos produtos e à política de aplicação das fór-mulas descobertas. Fala-se sobre os riscos asso-ciados à dificuldade de testar novas substânciasquímicas nos seres humanos e à imprevisibilidaderelativa à utilização prolongada dos medicamen-tos. Associa-se a proteção patentária a um im-portante instrumento de garantia de continuida-de da pesquisa e desenvolvimento (P&D), o qualtambém proporciona, indiretamente, aumentodo bem-estar dos consumidores. J. Nogués32

observa que esse argumento é o que sempre in-formou o debate sobre acesso a medicamentos,de acordo com a percepção da indústria farma-cêutica e dos países interessados na manutençãoda rigidez das políticas de proteção patentária.

Parcela significativa da indústria farmacêu-tica também acredita que o monopólio conferi-do pelas patentes, nesse setor, venha assegurar atotalidade do investimento revertido em impor-tantes ações relacionadas à pesquisa e aos pro-cessos de fabricação e distribuição dos medica-mentos. A proteção patentária conferiria, igual-mente, maior grau de certeza em litígios envol-vendo os produtos desenvolvidos e simplificariaprocedimentos de comprovação da originalida-de das fórmulas associadas aos medicamentos(e.g. composição química, formulação de com-

postos, etc.), muito mais do que aconteceria comrelação a complexos componentes desenvolvi-dos a partir de sistemas mecânicos e elétricos.33

Essas preocupações, ao mesmo tempo quemeritórias, por salientarem a importância daspatentes para os incentivos à indústria e seus pro-cessos inventivos, não seriam absolutas em face dasconstatações referentes à distribuição das efici-ências relacionadas nos mercados consumidoresdos países em menor desenvolvimento relativo eem desenvolvimento. Sempre se questionou qualseria a relação efetiva entre os benefícios produ-zidos pelas patentes farmacêuticas e aqueles com-partilhados com a sociedade, considerando-se olongo tempo para a exclusividade da fabricaçãodos produtos e a concentração do monopóliopatentário na indústria farmacêutica – em sua gran-de maioria situada nos países desenvolvidos.34

O grande problema resulta do conflito entrea indispensável proteção do potencial inventivo daindústria farmacêutica e a necessidade de acessoaos medicamentos por meio de preços acessíveise competitivos. Tais questionamentos sempre es-tão associados ao bem estar do consumidor e aofuncionamento equilibrado dos mercados, justa-mente no ponto final do ciclo econômico perti-nente aos medicamentos.35 Por isso é que a re-

33 Para uma visão geral sobre a aplicação técnica das patentesfarmacêuticas ver ainda J. NOGUÉS, Patents and PharmaceuticalDrugs: cit., especialmente pp. 87-89.34 O reconhecimento das finalidades das políticas de proteçãopatentária para medicamentos essenciais foi salientado emWHO/WTO, Report of the Workshop on Differential Pricing andFinancing of Essential Drugs especialmente item 3.6 e ss.35 Alguns estudos também procuraram demonstrar que existeuma clara oscilação das margens de lucro relacionadas à industriade medicamentos essenciais e a efetiva receita que é destinada àcobertura daqueles custos referentes à pesquisa e desenvolvi-mento. Como visto, o argumento básico da indústria de medi-camentos essenciais é que a proteção dos direitos de PI nessesetor seria fundamental para garantir o investimento necessárioa ser revertido em P&D e assegurar a manutenção dos proces-sos de desenvolvimento, fabricação e distribuição dos medica-mentos. O grande problema seria portanto determinar, oumelhor, quantificar as margens de lucro necessárias para cober-

31 Alguns autores têm tratado do tema, enfatizando as ques-tões relacionadas à interpretação favorável dos artigos do TRIPSsobre proteção patentária e o acesso à saúde. Assim, ver funda-mentalmente S. M. FORD, Compulsory Licensing Provisions underthe TRIPS´ Agreement: Balancing pill and Patents, in AmericanUniversity International Law Review, vol.15, 2001, pp.941 e ss; A.LACAYO, Seeking a Balance: International Pharmaceutical PatentProtection, Public Health Crises, And the Emerging Threat of Bio-Terrorism, in The University of Miami Inter-American Law Review,vol. 33, n. 2/3, 2002, pp. 295 e ss.32 J. NOGUÉS, Patents and Pharmaceutical Drugs cit. p. 87.

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dução do período de exclusividade de fabrica-ção e comercialização, conferidos pela patentede um medicamento, seria o primeiro argumen-to em favor de uma distribuição mais eqüitativados direitos de propriedade intelectual. Comose sabe, esse período pode variar de 15 a 20 anosnos países, sendo que o monopólio para vendados produtos também dura cerca de 12 a 14 anospor conta do tempo necessário para que o medi-camento ganhe espaço no mercado.

Não seria possível, portanto, afirmar quepreços diferenciados de medicamentos apareçamcomo ameaças à estabilidade dos direitospatentários reservados à indústria farmacêutica,nem obstáculos à manutenção de uma efetivaplataforma de pesquisa e desenvolvimento dasempresas atuantes no setor. Assim, em impor-tante estudo, Hammer36 observa, curiosamente,que muitas tendências doutrinárias são emprega-das para justificar a “supremacia” de direitos depropriedade intelectual, mas que objetivariam,única e exclusivamente, afastar o debate sobre pre-ços diferenciados na indústria farmacêutica. Al-guns chegam a sustentar que políticas afirmativaspara o acesso à saúde por meio de preços diferen-ciados podem determinar a depreciação do valordas patentes farmacêuticas e, conseqüentemente,a redução do potencial de P&D aplicado ao setor.

Contudo, constata-se que o efeito dos pre-ços eqüitativos é justamente o oposto, a saber, ode incentivar a pesquisa e desenvolvimento naindústria de medicamentos essenciais, já que asempresas seriam levadas a aumentar o volumeda produção e redirecionar as metas de desen-volvimento de fórmulas e compostos que sirvam

ao tratamento das principais doenças que afetammuitos dos países, sejam eles desenvolvidos ouem desenvolvimento.37

3.2 Patentes e Preços Diferenciados: Exce-ções e Instrumentos Concorrenciais para Pro-ver o Acesso aos Medicamentos Essenciais

Como visto anteriormente, as patentes re-lacionadas à indústria farmacêutica mantêmuma importante associação com a pesquisa e de-senvolvimento no setor, sendo consideradasdeterminantes para a proteção do portifólioinventivo das empresas, descoberta de novos tra-tamentos na área da pesquisa biofarmacêutica egarantia de adequada aplicação dos medicamen-tos destinados ao consumo humano. Por outrolado, não podemos deixar de reconhecer que asexclusividades gerais e específicas concedidaspela patente, por um longo período de tempo,acabam por influenciar na prática de preços ele-vados para aquisição de medicamentos, o que nãose mostra desejável para os mercados consumi-dores, especialmente aqueles dos países pobrese em desenvolvimento e em menor desenvolvi-mento relativo.38

tura desses custos. D. HENRY e J. LEXCHIN, The pharmaceuticalindustry as a medicines provider cit. pp. 1593 e ss., observam queuma parcela muito pequena advinda das patentes expressadanum determinado preço de aquisição do medicamento seriadestinada a recuperar os custos de fabricação do produto.36 P. J. HAMMER, Differential Pricing of Essential AIDS Drugs:Markets, Politics and Public Health cit. p. 889.

37 P. J. HAMMER, Differential Pricing of Essential AIDS Drugs:Markets, Politics and Public Health cit., p. 890, não esconde seuceticismo diante do estado da discussão nos setores ligados àindustria farmacêutica e do fato de que o problema não teriasolução a tão curto prazo. Admite ainda que não há funciona-mento adequado do mercado de farmacêuticos também nospaíses em desenvolvimento. O custo no acesso à saúde é altodevido à incapacidade dos governos de criarem, nesses países,políticas sustentáveis de estimulo às negociações privilegiadascom a indústria e de controle da efetividade da distribuição dosmedicamentos nos mercados consumidores, a fim de verificaro grau de alcance e de acesso.38 O monopólio de produção e exploração industrial dessaspatentes farmacêuticas, se por um lado objetiva assegurar querecursos sejam investidos em pesquisa e tecnologia, por outroacaba por encarecer os medicamentos. Em mercados de medica-mentos competitivos, poderá ocorrer uma queda acentuada dospreços dos produtos, situação nem sempre desejável para otitular da patente.

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Do ponto de vista da concorrência de mer-cado, pode ser que existam outros fatores a in-fluenciar a inexistência de preços competitivospara medicamentos essenciais, que não apenas aexclusividade na fabricação e comercializaçãoproporcionada pelos monopólios conferidospelas patentes. Na indústria farmacêutica existesignificativa concentração empresarial, tanto pelofato de que a maior parte dos agentes econômi-cos atuantes nos mercados constitui grandesgrupos de empresas, como pelo problema daaglutinação das plataformas de P&D e de pro-dução de medicamentos na maioria dos paísesdesenvolvidos, além de seus respectivos produ-tos e marcas associadas.39 São também elevadasas barreiras à entrada nos mercados farmacêuti-cos e muito significativos os incentivos estruturaispara as práticas restritivas à concorrência pelasempresas. A esses fatores soma-se a dificuldadede alguns países de implantarem uma indústriade genéricos e políticas voltadas para a importa-ção paralela de medicamentos essenciais que per-mitam a redução dos preços de aquisição.40

Estudos indicam que a indústria farmacêu-tica também fora objeto de subsídios estatais emmuitos países, especialmente em face dos pro-gramas governamentais de acesso à saúde nasdécadas de 70 e 80 e da implementação de polí-ticas welfaristas para prestação de serviços pú-blicos essenciais, e a manutenção de plataformasde pesquisa e fabricação integralmente financia-das a partir de recursos do Estado.41 Essa situa-ção acompanhou, em muitos países, a concessãode patentes para medicamentos que foram de-senvolvidos quase que exclusivamente por em-presas subsidiadas, mas cuja produção estavadestinada à comercialização exclusiva a preçospraticamente inacessíveis à sociedade. Ao mes-mo tempo em que o Estado via-se obrigado apromover o acesso à saúde, subsidiando deter-minados ramos da indústria farmacêutica, cria-va também uma situação de insustentabilidadeno futuro.

No caso dos Estados Unidos da América,por exemplo, tem sido muito questionada aefetividade dos march-in rights aplicados ao setorfarmacêutico, a saber, a possibilidade de que as

39 Segundo dados da OCDE, a industria farmacêutica mos-trou-se como o segmento mais lucrativo da indústria nos últi-mos anos. Em 24 dos 32 anos, entre 1960 e 1991, esteve aocupar a primeira e a segunda posição no ranking da RevistaFortune, das indústrias mais lucrativas nos Estados Unidos e nomundo. Essa situação teria sido constatada pelo o retorno ob-tido em investimentos realizados e o rendimento alcançadopelos acionistas das empresas (dividendos e receitas obtidaspela venda das ações). Em 1998 foi o primeiro setor da indús-tria a lucrar em receitas e também em relação aos balanços posi-tivos, contábeis e de ativos, seguida apenas pela indústria detelecomunicações, que ocupava o segundo lugar na lista. A con-centração verificada também não é desprezível. Em valores rela-tivos, as participações de mercado em países europeus, como aAlemanha, o Reino Unido e a França são as maiores existentes,especialmente de acordo com as marcas de medicamentosconsumidas. Considerando as cinco mais importantes de acor-do com cada categoria de medicamentos produzidos nos paí-ses, os indicativos são os seguintes: medicamentos para doen-ças cardiovasculares (80 marcas produzidas no Reino Unido, 67na Alemanha e 60 na França), anti-hipertensivos (60 na Alema-nha e 60 na França), analgésicos (36 no Reino Unido, 36 na

Alemanha e 75 na França), tranqüilizantes (80 no Reino Unido,68 na Alemanha e 70 na França), anti-reumáticos (65 no ReinoUnido, 60 na Alemanha e 50 na França), antibióticos (43 noReino Unido, 26 na Alemanha e 25 na França), antiasmáticos(77 no Reino Unido, 41 na Alemanha), diuréticos (69 no ReinoUnido, 70 na Alemanha e 79 na França). Sobre a estrutura dosmercados de farmacêuticos, ver OECD, Competition and regulationissues in the pharmaceutical industry, Committee on CompetitionLaw and Policy, Directorate for Financial, Fiscal and EnterpriseAffairs, February 06, 2001.40 Vale ressaltar que um número mais elevado de empresasprodutoras de genéricos não significa necessariamente preçosmais reduzidos. A Argentina parece ser um bom exemplo, jáque o custo anual para o tratamento contra HIV por meio decoquetel anti-retroviral é de aproximadamente US$ 10,929.00,enquanto que no Brasil e Índia esse custo chega a US$ 5,019.00e US$ 5,466.00 respectivamente. Os três países apresentam con-siderável número de empresas que comercializam medicamen-tos genéricos, mas com custos bastante díspares.41 A propósito, ver D. HENRY e J. LEXCHIN, The pharmaceuticalindustry as a medicines provider cit, pp. 1592-1593.

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autoridades administrativas licenciem patentespara outras empresas, caso a titular não oferte osmedicamentos mediante condições razoáveis (p.ex.: “preços justos”, quantidade abundante, etc.).A crítica não seria ao expediente em si, já que eleé, do ponto de vista da proteção à propriedadeintelectual, concebido em vários países sob a formade licenciamento compulsório, como é tambémo caso do Brasil. Na verdade, o grande problemaseria a relutância do governo norte-americano emfazer uso de tal exceção para facilitar o acessoaos medicamentos essenciais, o que também es-taria bem estampado, nos últimos anos, na atua-ção do país nas questões comerciais envolvendoa industria farmacêutica e patentes.42 O mesmoabsenteísmo ocorre em relação à negociação di-reta com as grandes empresas nesse setor, já quea falta de competição em determinados segmen-tos levaria à dificuldade de encontrar soluçõespara a aquisição de medicamentos por preçosmais acessíveis às populações necessitadas.43

Por essa e por outras razões, a opinião pú-blica também se voltou contra os resultados ne-gativos das exclusividades asseguradas pela pro-teção patentária em relação aos medicamentosessenciais, porém não pela sua existência em si,já que isso seria desacreditar a efetividade dossistemas de proteção de direitos de propriedadeintelectual.44 A grande crítica, muito plausível,passou a se construir em torno dos efeitos de-correntes do abuso de direitos patentários, não ape-

nas no que se refere aos medicamentos, mas emrelação a vários setores da indústria nos quais asrelações de concorrência e consumo estivessemsendo prejudicadas por conta do exercícioabusivo de tais direitos (especialmente nas áreasda bioquímica, eletrônica e tecnologia de infor-mação). A sensibilidade envolvendo preços ecustos finais de aquisição dos produtos paten-teados seria um dos primeiros sinais da frag-mentação do caráter absoluto dos monopóliosproporcionados pelas patentes; no fim do cicloeconômico é que isso seria facilmente detectável,especialmente considerando-se a situação doconsumidor final.

De fato, as reflexões sobre desvio de fina-lidade e abuso dos direitos de propriedade inte-lectual, especialmente no campo das patentes,foram determinantes para a criação de uma cons-ciência universal sobre alternativas necessárias afacilitar o acesso à saúde nos países em menordesenvolvimento relativo e em desenvolvimento.45

44 A referência básica é justamente à vigência de um indispensá-vel “sistema internacional de proteção da propriedade inte-lectual”, edificado desde as Convenções de Paris, em 1883, e deBerna, em 1886, (as Uniões), passando pela criação da OMPI,em 1967, e a inserção na esfera das negociações comerciais entreos países membros da OMC, conforme estabelecida na AtaFinal da Rodada do Uruguai de 1994. Trata-se, antes de tudo, deum sistema de garantias institucionais relacionadas à aplicaçãode políticas de proteção da propriedade intelectual em âmbitointernacional, com observância pelos países membros. Sobre oestudo específico sobre o tema, ver M. BASSO, O Direito Interna-cional da Propriedade Intelectual, Porto Alegre, Livraria do Advo-gado, 2000, pp. 159 e ss.45 Em linhas gerais, o abuso de direitos patentários existe quan-do o titular passa a adotar um comportamento com desvio definalidade, valendo-se da exclusividade proporcionada pelo di-reito que lhe foi reconhecido para alcançar efeitos indesejáveisdo ponto de vista jurídico, tais como a violação de regras deproteção do consumidor, da concorrência, e, também, relacio-nadas à proteção da propriedade intelectual (especialmente quan-do ele vise expandir, oportunística e indiscriminadamente, oâmbito de exclusividade conferido pela patente). Em seu artigo65, por exemplo, o Patent Act of 1985 do Canadá estabelecehipóteses amplas sobre abuso dos direitos conferidos pela pa-tente, tais como (i) a falta de atendimento adequado, pelo titu-lar, da demanda do produto patenteado, em períodos e condi-

42 Cf. D. HENRY e J. LEXCHIN, The pharmaceutical industry as amedicines provider cit. (nota supra), p. 1593. Isso mostra que aquestão dos medicamentos essenciais e o acesso à saúde nãodiria repsito apenas aos países em desenvolvimento, já que ésentida nos Estados Unidos, como visto. Uma sensibilidademaior ao problema é verificada quando este diz respeito aogrupo de países que contam com boa parte da população viven-do abaixo da linha de pobreza, no qual se enquadram expressi-vo número de países em desenvolvimento e a totalidade dospaíses em menor desenvolvimento relativo.43 D. HENRY e J. LEXCHIN, The pharmaceutical industry as a medicinesprovider cit., p. 1593.

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A busca por uma melhor distribuição de medi-camentos essenciais, tais como nos casos relacio-nados ao tratamento de doenças infecto-contagio-sas e endêmicas, estaria em muito associada aoequilíbrio entre dois fatores: a proteção patentáriaaplicada aos medicamentos e o grau de efetividadedo acesso à saúde. Ou os dois convivem em equi-líbrio, ou será necessário que um deles se esgotepara que o outro se concretize. Assim, por exem-plo, quando expirados os prazos de proteção dedeterminadas patentes, muitos países têm utili-zado estratégias de fomento da indústria de me-dicamentos genéricos, que representam grandepotencial de substituição dos medicamentos an-teriormente patenteados e de titularidade de gran-des empresas farmacêuticas.46

Com a indústria dos genéricos, acredita-seque os mesmos benefícios proporcionados pelosmedicamentos fabricados pela empresa detentorada patente sejam alcançados. Já na segunda me-tade da década de 90, o Brasil soube utilizar-sede tal estratégia, especialmente no que concerneà redução dos preços de aquisição dos medica-

mentos essenciais, não mais exclusivos a umadeterminada empresa, mas sim disponíveis àdistribuição para o tratamento de muitasdoenças.47 Como destacaremos mais adiante, vá-rias soluções teriam sido observadas tambémcom relação à iniciativa unilateral da indústria far-macêutica e das negociações governamentaisaplicadas à política de preços diferenciados.48

3.2.1 Políticas de preços diferenciados: relação específicacom o direito antitruste e as exceções patentárias

Estudos recentes têm constatado que cer-tos instrumentos relacionados à proteção da pro-priedade intelectual podem ser utilizados comvistas a alcançar os efeitos de uma política depreços diferenciados, seja incentivando a redu-ção de preços de aquisição de medicamentos, sejaestimulando importações paralelas de produtosmais baratos. O mesmo aconteceria em relaçãoaos instrumentos concorrenciais, já que a aplica-ção de uma política de preços diferenciadospara medicamentos essenciais conteria uma

ções razoáveis; (ii) a recusa de licenciar, fabricar ou distribuir osprodutos patenteados; ou ainda (iii) se uma pessoa ou classe depessoas for prejudicada pelas condições advindas da exclusivi-dade, ou ainda se o produto ou processo patenteados foremutilizados pelo titular para prejudicar a atividade de industriali-zação e comercialização de outros produtos. Sobre o tema doabuso de direitos patentários, ver importantes estudos comoos de E. T. SULLIVAN, The Confluence of Antitrust and IntellectualProperty at the New Century, in Minnesota Intellectual Property Review,no 1, 2000. pp. 1 e ss; e D. J. GIFFORD, The Antitrust/IntellectualProperty Interface: An Emerging Solution to An Intractable Problem,in Hofstra Law Review, n. 31, 2003, pp. 363 e ss.46 Os órgãos governamentais competentes para a concessão depatentes e os órgãos de saúde pública também poderiam con-juntamente fomentar programas de acesso aos medicamentosessenciais, o que poderia ser feito mediante o incentivo de umcontrole de adequação da finalidade da patente farmacêutica àsua destinação (tratamento de doenças), bem como o recensea-mento dos medicamentos que não estão patenteados. A OMSestima que na grande maioria dos países em menor desenvolvi-mento relativo e em desenvolvimento, menos de 20 % dosmedicamentos essenciais são protegidos por meio de patentes.Muitos deles estão no domínio publico, mas sequer foram con-

vertidos em genéricos, e são extremamente caros, já que a aqui-sição é feita mediante importação direta dos mercados dos paí-ses desenvolvidos. Nestes, os preços praticados contam com avalorização cambial (basta verificar as moedas norte-americana eeuropéia) sofrendo elevação substancial nos mercados consu-midores dos países pobres e em desenvolvimento.47 No Brasil, a definição de medicamento genérico foi dada pelaLei nº 9.787, de 10 de fevereiro de 1999 (“Lei dos Genéricos”),ao alterar dispositivos da Lei nº 6.360, de 23 de setembro de1976 que disciplina a vigilância sanitária no país. Esta prevê emseu artigo 3º, inciso XXI, que genérico é o “medicamento similar aum produto de referência ou inovador, que se pretende ser com esteintercambiável, geralmente produzido após a expiração ou renúncia daproteção patentária ou de outros direitos de exclusividade, comprovada asua eficácia, segurança e qualidade” Segundo estimativas, nos últi-mos anos foram 39.170 mil (2001), 75.650 mil (2002) e 79.161mil (2003) unidades produzidas, com um significativo cresci-mento de quase 482% entre 2001 e 2002, sendo comercializadaspor preços quase 40% inferiores aos medicamentos de marca.Segundo a dados da Pro-Genéricos (http://www.progenéricos.org.br), foram 83 registros desse tipo de produto em 2001, e1124 registros em 2004.48 Cf. item 3.3.

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discriminação em si. Os produtos alvos sãocomercializados/fornecidos para determinadosconsumidores a preços reduzidos, quando deve-riam, em tese, ser adquiridos por todos a ummesmo preço final.49

A questão que se apresenta, portanto, é ade saber em que medida a determinação eviabilização dos preços diferenciados de medi-camentos essenciais são perfeitamente associáveisaos objetivos do direito da propriedade intelec-tual e do direito antitruste. Várias alternativas têmsido destacadas em estudos jurídicos e econô-micos com enfoque nas políticas de acesso à saú-de nos países. Todas elas revelam uma impor-tante preocupação em manter equilibrados ossistemas de concorrência e proteção da proprie-dade intelectual e os mecanismos que permitemaos países pobres e em desenvolvimento o acessojusto e eqüitativo aos medicamentos essenciais.50

Detemo-nos, ainda que a passos largos, emalgumas das principais alternativas aqui apresen-tadas. A primeira delas mostra-se uma solução

muito mais drástica e menos desejável do pontode vista concorrencial e para a credibilidade depolíticas econômicas adotadas pelo Estado. Tra-ta-se da redução compulsória de preços de aquisição se-guida de uma política de controle. O titular da patentemantém-se como produtor exclusivo do medi-camento essencial e passa a ofertar seus produ-tos a preços mínimos, fixados ou tabelados porautoridades regulatórias. Esta medida, ainda queobjetive, em última instância, atingir critérios deacessibilidade que facilitem o acesso pelos con-sumidores de baixa renda, possuiria, a nosso ver,um viés pouco concorrencial. Controle e fixa-ção de preços seriam indesejáveis nos mercadosde medicamentos essenciais, porque fortaleceriamo lobby entre a indústria e as autoridades gover-namentais por determinados preços e apenas in-centivariam abusos de direitos patentários. Emsíntese, uma redução compulsória de preços nãoteria o alcance de determinar preços acessíveis aosconsumidores dos medicamentos essenciais.51

Outra medida seria a adoção de uma polí-tica governamental de estímulos a contratos delicença cumulados, com transferência detecnologia e pagamento de royalties diferenciadosàs empresas titulares da patente. A não-exclusi-vidade poderia estimular a concorrência no mer-cado relacionado à produção e distribuição dosmedicamentos essenciais, além da transferênciade tecnologia ser plenamente consistente com aproteção patentária na maioria dos países, e comas salvaguardas estabelecidas no TRIPS. Aquitambém seria necessário um controle para asse-gurar que os licenciados não passem a produziros medicamentos em outros mercados que nãoos mercados-alvos, direta ou indiretamente. Afinalidade da licença seria, justamente, a de

49 Acredita-se que, do ponto de vista da organização industrial,a própria segmentação de mercado em função da variedade ecomposição de produtos farmacêuticos poderia favorecer polí-ticas de preços diferenciados. Essa política, todavia, depende demaciça ação governamental e negociação com as empresas paracriação de um ambiente de geração de efeitos distributivos. Per-mite-se a admissão de duas faixas de preços de aquisição demedicamentos essenciais para países de baixa renda e para paí-ses desenvolvidos que contam com sistemas públicos eficientesde acesso à saúde. Igualmente, segundo a Organização Mundialde Saúde, a experiência realizada com relação aos indicadores depreços de aquisição e produtos farmacêuticos de utilidade es-sencial mostrou que preços reduzidos só são alcançados quan-do existe um número razoável de produtores inseridos emmercados concorrenciais.50 Cf. fundamentalmente, J. HUDSON, Generic Take-up in thePharmaceutical Market Following Patent Expiry: A Multi-CountryStudy, in International Review of Law and Economics, vol. 20, 2000,pp. 205-221. Também os dados empíricos em KBALASUBRAMANIAM, Equitable Pricing, Affordability and Access toEssential Drugs in Developing Countries: Consumers Perspective,WHO/WTO Secretariat Workshop on Differential Pricing andFinancing of Essential Drugs, Hosbjor, Norway, April 8-11,2001.

51 Nesse sentido, cf. WHO/WTO, More equitable princing foressential drugs, Workshop on Differential Pricing and Financingof Essential Drugs, Hosbjor, Norway, April 8-11, 2001, espe-cialmente Parte B.

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viabilizar a oferta de medicamentos essenciaissob regime de preços diferenciados (a partir deroyalties também diferenciados) para os países emdesenvolvimento e em menor desenvolvimentorelativo, e não fazer com que eles sejam destina-dos aos mercados consumidores dos países de-senvolvidos, seguindo um efeito reverso.

Outra alternativa, mais efetiva, porém poucoutilizada, é a implementação de políticas de licen-ças compulsórias. Esta hipótese compatibiliza-se com previsões estabelecidas no TRIPS, sendoum dos expedientes mais comuns utilizados paraa produção local do medicamento essencial.52 NoBrasil, a Lei nº 9.279/96 traz previsão expressasobre a possibilidade de concessão de licençascompulsórias para os casos relacionados à insu-ficiência de produção local ou de abuso, pelo ti-tular, dos direitos conferidos pela patente.53 Aprática revelou que ela ainda é muito pouco uti-lizada, podendo, no futuro, ser objeto de regula-mentação (mais) efetiva que facilite, e não difi-culte, o procedimento de concessão das licençascompulsórias para os casos relacionados às pa-tentes farmacêuticas.

Dentre as várias alternativas existentes,enfatizamos aquela que se baseia no estímulo aoentrosamento entre os governos de países de baixarenda interessados em programas de preços di-

ferenciados e a indústria farmacêutica – desdeque pautado pelos princípios da legalidade etransparência.54 Como indica a experiência bra-sileira, os medicamentos essenciais podem seradquiridos a preços diferenciados mediante ne-gociações mais vantajosas e leilões centralizados,e distribuídos em farmácias populares, nas quaisos medicamentos seriam adquiridos diretamen-te pelo consumidor.55

Com relação às políticas antitrustes, aindaque exista uma diferença substancial entre pre-ços praticados para os medicamentos essenciaisnos mercados envolvidos (i.e. em países desen-volvidos e em países em desenvolvimento), nãoseria adequado tratar a empresa ofertante comoagente que estivesse a implementar uma práticaanticompetitiva. Como é sabido, na conduta dediscriminação de preços, uma empresa vende seusprodutos a diferentes preços (reduzidos e eleva-dos), para consumidores que, em tese, estariamnas mesmas condições para a aquisição dos bens.A diferença de preços em si não sugere, portan-to, a prática discriminatória, como esclarece adoutrina antitruste56, podendo ser justificada porcritérios objetivos (p. ex.: descontos oferecidos,duração das negociações, etc.) e pela preferênciae situação do consumidor.

No caso dos preços diferenciados paramedicamentos essenciais, a situação é bem clara:

52 Para esse caso específico da licença compulsória, o TRIPSprevê que o titular receba o pagamento adequado pelolicenciamento, levando-se em conta as circunstâncias de cadacaso e o valor econômico da licença (cf. Artigo 31 do TRIPS).Nos vários segmentos da indústria farmacêutica são pagosroyalties que variam de 5 a 10%, dependendo da natureza efinalidade da licença, quer em relação ao produto quer em rela-ção ao processo inventivo. Nesse sentido, cf. especialmente D.M. MC.GAVOCK, Licensing practices, business strategy and factoraffecting royalty rates, in Licence Law and Business Report, n. 205,1991.53 Posteriormente foi promulgado o Decreto n. 3.201/99 queregulamentou a licença compulsória no Brasil para os casos rela-cionados à emergência nacional e interesse público. Mais recen-temente, esse Decreto foi modificado pelo Decreto n. 4.830, de04 de setembro de 2003, que incorporou, no Brasil, os princípi-os da Declaração de Doha sobre TRIPS e Saúde Pública.

54 Isso se justifica pela necessidade de assegurar o adequadoequilíbrio entre os mecanismos previstos no direito da propri-edade intelectual, no que concerne à concessão de licenças com-pulsórias em caso de patentes farmacêuticas, e também às polí-ticas públicas de acesso à saúde e de manutenção de um sistemade saúde pública eficiente. O princípio da transparência, de quese fala, pretende evitar que os Estados abandonem os objetivosde políticas públicas de acesso à saúde, a despeito de se utiliza-rem, exclusivamente, de expedientes de pressão sobre as em-presas por meio da licença compulsória. É fundamental que oEstado tenha presente que é dele que se espera a promoção dobem estar social e a garantia da saúde pública.55 Sobre essas estratégias em especial, ver item 3.3.56 Cf. fundamentalmente R. BORK, The Antitrust Paradox: APolicy War with Itself, New York, The Free Press, 1993, pp. 382 e ss.

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de um lado tem-se a indústria farmacêutica, e deoutro dois sujeitos: os países em desenvolvimentoou de menor desenvolvimento relativo e seusconsumidores de baixa renda. Para estes, preçosmais acessíveis para os medicamentos podem seraproveitados e se mostram eqüitativos, de modoque não haveria discriminação de preços, conde-nável do ponto de vista concorrencial. Nessaanálise, ainda que superficial, estariam evidentesa importância da capacidade econômica de aqui-sição do consumidor e a facilidade de acesso aosprodutos, no caso, os medicamentos.

Também nessa linha, a OMC e a OMS rea-firmam que o objetivo esperado é a concretizaçãode políticas de preços diferenciados de medica-mentos essenciais como “ponto de equilíbrio”entre acesso à saúde, efetividade da proteçãopatentária e instrumentos de preservação da li-vre-concorrência nos mercados.57 Isto porque,parece ser compreensível aquela preocupaçãoinicial de que os preços diferenciados se justifi-cam pela necessidade e prioridade de acesso aosmedicamentos nos países em desenvolvimento eem menor desenvolvimento relativo.58 De fato,a resistência dos países desenvolvidos em rela-ção a esse tópico especial não estaria concentra-da apenas na preocupação com a suposta ameaçada proteção das patentes farmacêuticas decorrente

da implementação de políticas de preços diferen-ciados. Esses países suscitam a questão relativa aosimpactos negativos dos preços diferenciadossobre o desempenho de seus mercados internos,sustentando a lógica de que preços reduzidos demedicamentos nos países em menor desenvolvi-mento relativo e em desenvolvimento significa-ria um grande ônus para o orçamento públicodestinado aos sistemas de saúde domésticos.

Contudo, sabe-se que o papel dos setoresinteressados na maior divulgação dos benefícios dapolítica de preços diferenciados de medicamentosessenciais parece ter sido fundamental para apon-tar os êxitos da campanha de acesso à saúde emnível internacional. Além disso, uma política depreços diferenciados para países em menor desen-volvimento relativo e em desenvolvimento não seriaprejudicial para a indústria farmacêutica, atual-mente bastante desenvolvida em escala mundial.

3.3 Estratégias da Indústria Farmacêutica,Acesso aos Medicamentos Essenciais e Pre-ços Diferenciados: Programas de Doação eLeilões para Aquisição de Medicamentos

Como visto anteriormente, persistem ain-da alguns problemas associados à concentraçãoda indústria farmacêutica nos países desenvolvi-dos e, conseqüentemente, a preocupação com aproteção patentária dos produtos destinados aosmercados consumidores nos países em desenvol-vimento. Até mesmo em casos relacionados àprodução local de medicamentos, inclusive aque-les destituídos de proteção patentária, é possívelverificar a manutenção de preços elevados e pou-co acessíveis aos cidadãos.59

Tem-se reconhecido, também, que a indús-

57 WHO/WTO, Report of the Workshop on Differential Pricing.cit., item 3.6 e ss.58 Alguns acreditam na existência de riscos de interdependênciade preços nos mercados, salientados pelos efeitos daimplementação de preços diferenciados nos mercados consu-midores de países pobres e em desenvolvimento sobre o nívelde oferta de medicamentos nos países desenvolvidos. A regula-mentação desses preços estaria justamente condicionada às com-parações de valores em escala internacional, sendo que os paí-ses-alvos das políticas de preços diferenciados (p. ex.: quase atotalidade dos situados no hemisfério sul) já as têm utilizadonas negociações com os fabricantes. O que parece ter acontecidoé a criação de uma rede institucional de comparação de preçosem escala internacional nos últimos anos e que deve influenciar,com periodicidade, os principais aspectos das negociações entrea industria farmacêutica e os governos.

59 Para uma visão crítica sobre este tópico, cf. MSF, DesequilíbrioFatal: A Crise de Pesquisa e Desenvolvimento de Drogas para DoençasNegligenciadas, Campanha de Acesso a Medicamentos Essen-ciais e Grupo de Trabalho de Drogas para Doenças Negli-genciadas, setembro de 2001.

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tria farmacêutica, em escala internacional, vem seesforçando na divulgação e fomento das políticasde doações, leilões de aquisição de medicamen-tos e negociações privilegiadas com os Estados.São estabelecidas condições mais favoráveis deaquisição de medicamentos (as quais seriam umprenúncio para os preços diferenciados), bem comoa manutenção de um padrão efetivo de qualida-de de produção dos medicamentos. São desta-cadas, igualmente, as iniciativas dos governos ede organismos internacionais relacionadas àscompras centralizadas em leilões de medicamen-tos essenciais, muito utilizados para a aquisiçãode vacinas, contraceptivos e alguns medicamen-tos específicos para tratamento da tuberculose.60

Os programas de doações (corporate donationprogrammes) seriam uma forma mais generosa quemuitas das iniciativas governamentais relativas aoacesso ao sistema de saúde pública, por estar vin-culada diretamente à ampliação de mecanismosde distribuição de medicamentos essenciais.61

Normalmente, com intuito de se recom-pensar as empresas envolvidas, vários tipos deincentivos são oferecidos à indústria farmacêuti-ca, tais como isenções fiscais, deduções em im-posto de renda e demais benefícios que simboli-zam, justamente, a divisão do “encargo social”do acesso à saúde entre setor público e privado.62

Outras estratégias correspondem a uma

redução voluntária de preços de aquisição dosmedicamentos, como as que têm sido utilizadapara a distribuição de medicamentos do coque-tel anti-retroviral de tratamento das doenças as-sociadas ao HIV/AIDS. Na verdade, ou elasaparecem, em primeiro plano, como iniciativa daspolíticas governamentais em face da pressão in-ternacional e da opinião pública em torno daemergência interna ou incremento das redes dedistribuição de medicamentos, ou pelas empre-sas, quando estas têm em mira cumprir progra-mas de responsabilidade social. Em outros ca-sos, trata-se de políticas regulatórias aplicadas aoestímulo à competição nesses setores, especial-mente as que prevêem regras específicas paraevitar retenção da oferta em mercados nos paí-ses desenvolvidos.

Tem-se verificado que os programas dedoação levados a cabo pela indústria são instru-mentais, porém não revelam um alcance maisamplo para suprir as necessidades encontradasnos países pobres e em desenvolvimento em re-lação ao acesso à saúde. Tais programas apon-tam para mecanismos de diferenciação da indús-tria farmacêutica nos mercados e apresentamefeitos distributivos não duradouros em relaçãoao consumidor. Os governos dos países encon-tram dificuldades para suprir os custos efetivosdos programas de doação, especialmente comrelação ao controle e provimento de infra-estru-tura para que eles funcionem adequadamente (p.ex.: procedimentos de registro e listagem demedicamentos essenciais para aquisição, crité-rios seletivos de distribuição e censo sobre osconsumidores necessitados, etc.).63

Do mesmo modo, sabe-se que seria impos-sível depender da durabilidade de programas dedoação, que são sempre voluntários e necessitamde políticas agressivas de incentivo e regulamen-

60 A UNICEF conta com programas relacionados à compra demedicamentos por meio de leilões públicos, e aqueles financia-dos com fundos regionais, como o Conselho de Cooperaçãodo Golfo (Gulf Cooperation Council) e a ACAME (AfricanAssociation of Central Medical Stores), chegando-se à negociaçãode preços diferenciados com redução de 30% para a maioria dosmedicamentos essenciais. Nos Estados Unidos, o programaestá associado em grande escala à compra de contraceptivos,alcançando-se a redução de cerca 90% em relação ao preço nor-mal de mercado.61 Cf. J. WATAL, Differential Pricing and Financial of Essential Drugscit., especialmente item 2 e ss.62 J. WATAL, Differential Pricing and Financial of Essential Drugscit., p. 10.

63 Nesse sentido, ver P. J. HAMMER, Differential Pricing of EssentialAIDS Drugs: Markets, Politics and Public Health cit. pp. 889 e ss.

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tação. A opção pelos preços diferenciados seriamuito mais segura para os países em desenvolvi-mento, tanto pelo seu alcance institucional eacoplado ao processo econômico (produção-distribuição-consumo), como pelo fato de refle-tir o “peso no bolso” dos governos dos países edo consumidor sem poder de barganha nas ne-gociações individuais.64

As técnicas de doação e leilões também seencontram, na maioria das vezes, restritas aospaíses desenvolvidos, especialmente naqueles emque estão situadas muitas das empresas farma-cêuticas detentoras de patentes relacionadas aosmedicamentos essenciais. Estas, como observamHenry e Lexchin65, acabam por substituir seu focode atividades, no que tange à descoberta e desen-volvimento de novos medicamentos, por sistemase métodos mais eficazes de comercialização e pro-paganda de seus produtos já comercializados nosmercados, justamente com intuito de manter ouaumentar lucros operacionais. Enquanto isso, tam-bém não ocorreria um deslocamento do eixo deP&D para suprir a demanda da maioria das do-enças que afetam a população do globo, concen-trando-se na aplicação industrial de medicamen-tos para o tratamento de doenças típicas dospaíses desenvolvidos.66

Esse dado não seria desprezível, já quemuitos estudos têm mostrado que as estratégiasde pesquisa na indústria farmacêutica nem sem-pre estão associadas à pesquisa de medicamen-tos para o tratamento de doenças que afetam a

população de países em desenvolvimento e emmenor desenvolvimento relativo, mas sim dedoenças incidentes em países desenvolvidos,como aquelas relacionadas ao envelhecimento dapopulação (colesterol, depressão, distúrbiosmotores, esclerose, etc.). É justamente nos paí-ses desenvolvidos que o retorno de investimen-to em P&D revelar-se-ia mais provável. A deci-são por um determinado medicamento, seja eleessencial ou não, normalmente está associada aotempo de pesquisa, de desenvolvimento da fór-mula e sucesso do planejamento. Por isso é que,nem sempre, as empresas atuantes nos países quemais necessitam de políticas de acesso à saúdeestarão dispostas a desenvolver, em tão curtoperíodo de tempo, medicamentos essenciais paraconsumo local, destinados ao tratamento dedoenças mais freqüentes.67 Daí porque uma po-lítica patentária aplicada à indústria farmacêuti-ca nos países em desenvolvimento e em menordesenvolvimento relativo devem ser constante-mente repensadas. Seria indesejável do ponto devista da proteção dos direitos de propriedadeintelectual que seus institutos sejam inadequada-mente manipulados, que atendam a exclusivida-des injustificadas e subaproveitadas.

Essas são algumas das razões pelas quais aoportunidade de acesso aos medicamentos es-senciais nos países em desenvolvimento e menordesenvolvimento relativo tem sido cada vez maislimitada. A indústria farmacêutica local poderiarecorrer aos programas de doação ou reduçãode preços, muito mais no intuito de cumprirmetas de responsabilidade social ante a opiniãopública (cuja pressão não é desprezível) do quenecessariamente por iniciativa própria ou porparte do Estado.68

O argumento sustentado pela OMS tam-

64 Isso se explica justamente pela impossibilidade do Estado dedepender unicamente dos programas de doações como fontesde oferta de medicamentos essenciais para as populações necessi-tadas. Não seria possível verificar, nesse tipo de opção, a melhoralternativa para se esquivar da política pública de acesso à saúde.65 The pharmaceutical industry cit., p. 1593.66 Sobre isso, ver as importantes conclusões a que chega o traba-lho dos Médicos Sem Fronteiras, Desequilíbrio Fatal: A Crise dePesquisa e Desenvolvimento de Drogas para Doenças Negligenciadas,Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais e Grupo deTrabalho de Drogas para Doenças Negligenciadas, setembro de 2001.

67 D. HENRY e J. LEXCHIN, p. 1592; ver ainda MSF, DesequilíbrioFatal cit, especialmente pp. 16 e ss, a respeito das pesquisasexcludentes na indústria farmacêutica.

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bém é reticente em relação ao alcance desses pro-gramas, observando que as doações têm a des-vantagem pela falta de sustentabilidade. São le-vadas a cabo por pouco tempo e dependem doequilíbrio de poder de negociação entre gover-nos e indústria farmacêutica. Há situações emque, mesmo sendo ofertado a preços reduzidospelas empresas, um determinado medicamentorevela-se relativamente caro para os consumido-res finais nos países em menor desenvolvimentorelativo e em desenvolvimento. Para a indústriafarmacêutica seria mais atrativo valer-se de pro-gramas de doação de medicamentos do que ne-cessariamente se sujeitar à negociação com asentidades governamentais a respeito de uma po-lítica de redução de preços que eleve os medica-mentos (produto ofertado) a patamares de aces-sibilidade assegurados (uma política de preçosdiferenciados), o que demandaria reformaslegislativas e institucionais concretas.69

Finalmente, é de se esperar que algumasalternativas possam ser estabelecidas a fim desuperar o déficit de efetividade desses progra-mas de doação e leilões de aquisição de medica-mentos essenciais. Como mencionado anterior-mente, o planejamento, em nível internacional,pode chegar a muitas delas, tais como (i) aviabilização de políticas públicas de preços dife-renciados para mercados consumidores situados

nos países em desenvolvimento e em menor de-senvolvimento relativo, (ii) a padronização dascompras segundo garantias de volume ofertado,continuidade e regulamentação adequadas, (iii) amanutenção de um padrão de concorrência ele-vado ao nível da oferta, (iv) controle do podermonopsônico dos governos, a fim de que nãosejam exercidos indevidamente, (v) princípios detransparência e eficiência nas compras governa-mentais e (vi) entrosamento entre responsabili-dade social da indústria farmacêutica as políticaspúblicas.70 Em seguida, passa-se ao âmbito doEstado, que pode, por meio da implementaçãode tais políticas, assegurar o acesso à saúde,incrementar as condições de tratamento da po-pulação e desenvolver sistemas mais eficientes deatendimento emergencial e preventivo.

4. ACESSO À SAÚDE E ORGANIZAÇÃO MUN-DIAL DO COMÉRCIO: TENDÊNCIAS PARA UMA

DISCUSSÃO SOBRE POLÍTICAS DE PREÇOS

DIFERENCIADOS

4.1 A Declaração de Doha sobre TRIPS eAcesso à Saúde e a Política de Preços Dife-renciados

A experiência no âmbito da OrganizaçãoMundial do Comércio também tem contempla-do os percalços encontrados no debate interna-cional sobre o acesso aos medicamentos essen-ciais, como decorrência das discussões advindasda Reunião Ministerial de Doha em 2001. A fa-

68 Nos países em desenvolvimento, a política de preços diferen-ciados de medicamentos essenciais deve alcançar preços acessí-veis. Muito dos autores questionam o alcance e efetividade dasiniciativas da indústria farmacêutica, considerando a falta depolíticas públicas que garantam a sistemática e que incentivem acontinuidade dos programas de doação e de leilões de medica-mentos. Sobre isso, criticamente, ver C. PÉREZ-CASAS e N. FORD,Pricing of drugs and donations cit., pp. 960 e ss., para quem osprogramas de doação não poderiam ser utilizados como expe-diente substituto aos preços diferenciados, já que estes se refe-rem à políticas e precisam ser implementadas, enquanto que asdoações são voluntárias e nem sempre sistemáticas, já que de-pendem das disponibilidade das empresas.69 Cf. WHO/WTO, Differential Pricing and Financing of EssentialDrugs cit. especialmente item 3.2.

70 Tal preocupação é manifestada pela OMS, especialmente porser mais viável, econômica e tecnicamente, uma política de pre-ços diferenciados para os medicamentos essenciais. Não basta-ria suprir o déficit de acesso por meio de programas de doação,já que várias são as deficiências desse tipo de expediente. Umaação afirmativa, ainda que mínima, para a implementação deum sistema de preços diferenciados pelas entidades governa-mentais nos países em desenvolvimento seria muito mais pro-missora. Assim, cf. WHO-WTO, Differential Pricing and Financingof Essential Drugs cit., especialmente item 3.2.

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miliaridade com o assunto já tinha, indiretamen-te, revelado-se no conflito envolvendo os Esta-dos Unidos da América e a África do Sul, noqual aquele país veio questionar a legislaçãopatentária sul-africana a respeito da concessão delicenças compulsórias para patentes farmacêuti-cas em caso de situação de emergência interna eproteção da saúde pública. O governo dos Esta-dos Unidos sustentava a incompatibilidade dasmedidas sul-africanas com as obrigações acor-dadas no âmbito do TRIPS e os padrões míni-mos de proteção patentária.71

Em Doha foram discutidos os níveis deproteção patentária concedidos pelo TRIPS,e uma das preocupações da Reunião foi justa-mente buscar o alinhamento dos interessesconflitantes entre os Países-membros (de um lado,o bloco UE-EUA, e de outro o Grupo dos 21)especialmente no que concerne à maior ou me-nor flexibilização dos modelos de proteção dapropriedade intelectual. Assim é que os partici-pantes chegaram è edição do documentointitulado “Declaração de Doha sobre TRIPS eSaúde Pública” (Declaration of Doha on TRIPS andPublic Health).72

Em várias passagens, a Declaração enfatizaque o Acordo TRIPS não deve ser interpretadode modo a impedir que os Países-membros daOMC adotem medidas internas para a proteçãoda saúde pública e que seus dispositivos devemser implementados de modo a dar suporte paraque sistemas de saúde pública sejam incremen-tados e promovam o acesso aos medica-mentos.73 Chegou-se a um consenso mínimo es-tampado na fórmula, ampla e genérica, segundoa qual “os direitos de propriedade intelectual não podemser utilizados de modo a impedir que os países membrostomem as medidas necessárias para a proteção da saúdepública”.74 Seguindo esta orientação, os países quenão são capazes de produzir seus medicamentosessenciais na indústria interna poderiam se valerde licenças compulsórias para produção local emedidas de importação paralela. Tal concepçãopassa a orientar as discussões relativas a patentesfarmacêuticas na lógica do comércio internacio-nal, justamente pelo tratamento específico con-ferido a partir da Declaração75.

71 A África do Sul introduziu, em sua legislação, a possibilidadede concessão de licença compulsória mediante ato do Ministé-rio da Saúde, justamente com o intuito de facilitar o acesso aosmedicamentos de controle e combate à AIDS, assim como aredução de preços de aquisição de medicamentos essenciais (cf.Medicines and Related Substances Control Amendment Act of 1997 eSouth African Medicines and Related Substances Control Act of 1965).Essa iniciativa sofreu críticas e a pressão por parte dos EstadosUnidos pela suposta violação dos padrões mínimos de prote-ção à propriedade intelectual previstos no TRIPS. Os EUA dis-cordaram das finalidades altruísticas da reforma da legislaçãosul-africana para promoção da saúde pública e acesso aos medi-camentos, postura que, na verdade, refletia a pressão exercidapelas industrias farmacêuticas sobre o governo norte-america-no. Como resultado disso, até hoje parece existir muita confu-são nas agências governamentais dos EUA sobre a aplicação daslicenças compulsórias e a questão dos march-in rights. Esse con-flito foi resolvido por meio de sucessivas negociações bilaterais(flexibilização da política comercial em vista do reconhecimentodas circunstâncias especiais do controle a epidemias, no caso aAIDS).

72 Cf. WTO Ministerial Conference, Fourth Session, Doha, 9-14November 2001 (WT/MIN (01)/DEC/2, 20 November 2001).73 Seguindo-se um raciocínio inverso, a redação seria muito maisclara se estabelecesse que a interpretação do TRIPS permita aospaíses tomarem as medidas necessárias para a proteção da saúdeinterna. Criticamente, ver a opinião de J. H. REICHMANN, Takingthe Medicine with Angst: Na Economist’s View of The TRIPSAgreement, in Journal of International Economic Law, n. 4, 2001,pp. 795 e ss.74 Ver especialmente a redação do §4º da Declaração: “We agreethat the TRIPS Agreement does not and should not prevent membersfrom taking measures to protect public health. Accordingly, whilereiterating our commitment to the TRIPS Agreement, we affirm thatthe Agreement can and should be interpreted and implemented in amanner supportive of WTO members’ right to protect public healthand, in particular, to promote access to medicines for all ”.75 Em Doha havia pressão de muitos dos membros para aexclusão da aplicação dessa cláusula para a África do Sul, Brasil eFilipinas, justamente por serem países extremamente populo-sos e com altos índices de doenças, o que os torna mercadosconsumidores extremamente lucrativos para a indústria farma-cêutica, especialmente a norte-americana e a européia.

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Na Reunião evidenciou-se, também, a difi-culdade de se chegar a um consenso sobre a inter-pretação dos dispositivos do TRIPS relacionadosà proteção patentária e das exceções e salvaguar-das estabelecidas. As assim chamadas “flexibili-dades” do TRIPS76 apontariam, na verdade, paraum conflito entre “técnicas” de interpretação,variando com as diferentes abordagens dos países-membros: de um lado, aquelas mais restritivassegundo a concepção dos países desenvolvidos;de outro, aquelas mais permissivas, como pre-tendidas pelos países em desenvolvimento.77

Justamente com relação à proteção patentáriaaplicável ao setor farmacêutico e políticas do-mésticas de concessão de licenças compulsórias,pôde-se notar uma clara divisão na ordem docomércio internacional, a contraposição de inte-resses dos países desenvolvidos, de um lado, edos países em desenvolvimento e em menor de-senvolvimento relativo, de outro.

Nos últimos anos, tem-se buscado uma atua-ção afirmativa dos Estados na implementaçãodo TRIPS de modo que seus dispositivos sejam

aplicados favoravelmente às políticas de saúdepública. Isso ocorre justamente com relação àimplementação de medidas relacionadas às licen-ças compulsórias e importação paralela de me-dicamentos essenciais, ainda reduzidas se com-paradas com a real necessidade dos mercadosconsumidores nacionais. Objetiva-se estimular aredução dos preços e garantia de melhor distri-buição de medicamentos essenciais entre os mer-cados consumidores. Daí porque seria recomen-dável, em nível internacional, um alinhamento dosordenamentos jurídicos nacionais às “flexibilida-des” do TRIPS, especialmente pela possibilida-de de se obter uma interpretação favorável dosseus dispositivos na condução das negociaçõesdiplomáticas no âmbito da OMC.78

No núcleo da Declaração de Doha, perce-be-se a ênfase dada ao “direito” dos Estados-membros de utilizarem as “flexibilidades” que oTRIPS estabelece, especialmente conforme a in-terpretação do Parágrafo 5º, alíneas “b” e “c”,da Declaração:

“b) Cada membro tem o direito de conce-der licenças compulsórias e a liberdade de de-terminar os meios pelos quais essas licenças sãoconcedidas.”

c) Cada Membro tem o direito de deter-minar o que constitui emergência nacional e ou-tras circunstâncias de extrema urgência, enten-dendo-se que crises na saúde pública, incluindoaquelas relacionadas às epidemias de AIDS, tu-berculose, malária e outras epidemias possamrepresentar casos de emergência nacional ou outrascircunstâncias de extrema urgência.”79

76 As mais importantes flexibilidades do Acordo dizem respei-to às exceções à proteção patentária, conforme estabelecidas nosartigos 27 e ss do TRIPS, com relação à possibilidade de impor-tação paralela e licenciamento compulsório de patentes.77 Assim acontece em relação ao artigo 31 do TRIPS e as condi-ções específicas de aplicação conforme as diferentes concepçõesdos países. Assim observa S. FORD, S. FORD, Compulsory LicensingProvisions under the TRIPs Agreement: cit., especialmente pp. 963 ess., a necessidade de articulação dos países em desenvolvimentoem torno de uma interpretação comum sobre as exceções doTRIPS e as licenças compulsórias. A autora fala da interpretaçãoampliativa que pode ser dada ao referido dispositivo, a fim dedelimitar a aplicação das licenças dentro do padrão mínimo con-cebido pelo TRIPS (uma interpretação ampliativa e igualmenteem conformidade ao Acordo). Isso corresponde a dizer que, naconcepção dos países em desenvolvimento, a ênfase pode serdada em relação às cláusulas abertas, tais como »moralidade«,»interesse público«, »emergência nacional« etc., como critériosde interpretação. Por meio deles, as autoridades governamen-tais poderiam analisar com mais cuidado a atuação abusiva dedeterminadas empresas farmacêuticas em relação ao exercíciodos direitos conferidos pelas patentes, e a partir daí, identificar aproteção do interesse público, conforme ressalvado pelo Acordo.

78 Nesse sentido, ver as observações de C. PÉREZ-CASAS e N.FORD, Pricing of drugs and donations: options for sustainable equitypricing cit., pp. 963 e ss. sobre a interpretação favorável das regrasdo TRIPS à implementação das políticas de acesso à saúde eexperiência dos países com relação à importação paralela demedicamentos essenciais e genéricos, bem como a concessão delicenças compulsórias.

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A primeira alínea é muito importante, por-que autoriza uma interpretação positiva em rela-ção à concessão de licenças compulsórias. Esterecurso é dado aos países com intuito de, inter-namente, superar uma situação de desvantagemadvinda das relações do comércio internacionalque sejam conflitantes com o interesse público,permitindo-se alcançar um equilíbrio entre osdireitos e obrigações do titular de uma determi-nada patente farmacêutica. A alínea (c) tambémpode ser interpretada no sentido de se enfatizaro poder autônomo do Estado-membro no queconcerne à decisão a respeito dos critérios paraa concessão de licenças compulsórias em casode situação de emergência nacional.80

Com relação ao parágrafo 6º da Declara-ção, acredita-se que os países-membros que nãocontam com uma plataforma de produção defarmacêuticos ou apresentem insuficiência decapacidade de produção, podem enfrentar difi-culdades de implementar as medidas relaciona-das às licenças compulsórias. A redação do dis-positivo remete, na verdade, à constatação de que

futuras negociações e disputas envolvendo aspatentes farmacêuticas devam levar em conside-ração a situação de determinados países, nosquais estão incluídos a maioria dos países emdesenvolvimento e a totalidade dos países emdesenvolvimento. Basta imaginar o que aconte-ceria se a cada tentativa de implementação de li-cença compulsória, o país interessado invocasseuma solução adjudicatória pelo órgão de solu-ção de controvérsias da OMC.

Assim, uma vez reconhecido que os paísesmenos desenvolvidos têm dificuldade emimplementar as licenças compulsórias, ou aindaque elas venham a ser insignificantes em face dainsuficiência ou ausência da plataforma de pro-dução de medicamentos no mercado domésti-co, seria preciso escolher mecanismos alternati-vos, tais como a importação paralela e a aquisi-ção de produtos por preços diferenciados.81

Quanto à questão da proteção das paten-tes relacionadas aos medicamentos e à aplicaçãodo Acordo TRIPS nos Países-membros daOMC, muito tem sido debatido, especialmentecom relação aos objetivos de saúde pública, cria-ção de incentivos para P&D e desenvolvimentode novos medicamentos (com a preocupação de

79 “(5) Accordingly and in the light of paragraph 4 above, whilemaintaining our commitments in the TRIPS Agreement, we recognizethat these flexibilities include: (...)(b) Each member has the right to grant compulsory licensesand the freedom to determine the grounds upon which suchlicenses are granted.(c) Each member has the right to determine what constitutes anational emergency or other circumstances of extreme urgency,it being understood that public health crises, including thoserelating to HIV/AIDS, tuberculosis, malaria and otherepidemics, can represent a national emergency or othercircumstances of extreme urgency”.80 Cf. S. STERCKX, Patents and Access to Drugs in Developing Countriescit. p. 71. O autor ressalta que o Estados Unidos foi o único paísa opor-se à minuta do Conselho, sendo que a maioria dosmembros foi contra uma limitação ou listagem das doençaspara cujo tratamento determinados medicamentos pudessemou não ser objeto de licenças compulsórias ou importaçõesparalelas. Esse tema específico, muito menos, poderia ser obje-to de negociação no âmbito da OMC. A OMS, por seu turno,em seu papel de formuladora de diretrizes de acesso à saúde naordem constitucional internacional é que tem condições de dis-

criminar medicamentos essenciais e de adotar uma definição aser considerada no plano internacional para adoção pelos Paísesmembros da ONU. Isso sairia, portanto, do escopo das nego-ciações sobre TRIPS na OMC. Os países concordam pelo me-nos num ponto, a saber, que a Declaração de Doha veio estabe-lecer uma tarefa comum: a de os membros implementarem asobrigações do TRIPS de modo a permitir o acesso, por todos,indistintamente, aos medicamentos necessários para o trata-mento de doenças. Sobre a importância das flexibilidades doTRIPS, observa A. LACAYO, Seeking a balance cit., p. 304: “Thisflexibility is the result of the efforts of the developing countries as leastdeveloped countries to incorporate their concerns into he debate followingthe creation of the WTO and about the growth of trade initiatives.From the contention that requiring countries to strictly enforcepharmaceutical patents enables drug companies in the developing world tocharge exorbitant prices that the poor cannot afford, follows the push forflexibility in enacting intellectual property laws.”81 Cf. S. STERCKX, Patents and Access to Drugs in Developing Countries,cit. p. 72.

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torná-los acessíveis aos cidadãos dos países-mem-bros). Como será examinado a seguir, a ReuniãoMinisterial de Doha, da qual resultou a Declara-ção sobre TRIPS e Saúde Pública, abriu a dis-cussão sobre a implementação de políticas depreços diferenciados para contrabalançar as me-didas de proteção patentária concedida aos me-dicamentos essenciais.

Como se sabe, o TRIPS apresenta instru-mentos de flexibilização e períodos de transiçãopara que os países com um nível menor de pro-teção patentária de medicamentos se ajustem aosníveis estabelecidos no Acordo, tais como licen-ças compulsórias, uso exclusivo governamental,medidas de proteção à livre concorrência eexaustão. O TRIPS também reconhece o empre-go, pelos Estados-membros, de medidas e obje-tivos não relacionados ao campo da proprieda-de intelectual, a fim de solucionar questões rela-tivas ao acesso a medicamentos essenciais. Noentanto, a eficiência desse conjunto de instru-mentos está vinculada à aptidão dos Estados-membros para impor as suas reivindicações emface dos maiores interessados em que as paten-tes farmacêuticas tenham sua proteção levadaao extremo.82

Não há dúvida de que o período de transi-ção representa importante ferramenta no que dizrespeito à aplicação das medidas de proteção dosmedicamentos por meio de patentes. O Acordoestabeleceu um prazo de 10 anos para que ospaíses em menor desenvolvimento relativo con-cedessem patentes aos produtos farmacêuticos.Este período foi estendido até 2016 pela Decla-ração de Doha83. Tanto para os países em desen-volvimento quanto para aqueles em menor de-senvolvimento relativo, o estabelecido nos artigos

65.4 e 66. 1 do TRIPS tem sido fundamental paragarantir o acesso a medicamentos essenciais84.

4.2 Resultados da Declaração de Doha -Cenário Favorável às Políticas de Preços Di-ferenciados de Medicamentos Essenciais

O cenário interno dos países em desenvol-vimento apresenta desvios institucionais, comono tocante ao déficit do setor público, na falta deplanejamento, na carência de um sistema de saúdeque atenda universalmente a população. Acredita-se que, sem um melhor desempenho institucional,os países em menor desenvolvimento relativo eem desenvolvimento não teriam condições desuprir toda a demanda pelos medicamentos es-senciais, mesmo valendo-se das exceções conti-das no acordo TRIPS, como as licenças compul-sórias e as importações paralelas.85 Por essas ra-zões é que a Declaração de Doha acabou incen-tivando uma rediscussão do problema dos pre-ços diferenciados e a relevância destes como ins-trumento de oferta efetiva de medicamentos es-senciais, dentro de um programa transparente, emnível mundial, de acesso à saúde.86

82 Cf. J. WATAL, Differential Pricing and Financial of Essential Drugscit., especialmente item 1.4.83 Declaração de Doha sobre TRIPS e Saúde Pública, parágrafo 7º.

84 Alguns países, como Argentina, Brasil, Turquia, Guatemala eMarrocos, mesmo cientes de que é preciso conceder patentesfarmacêuticas, têm também tentado estabelecer um sistema depreços diferenciados para o acesso aos medicamentos essenciais.85 Para a comunidade médica, por exemplo, ainda seria muitocedo para considerar efetivas as negociações de Doha no tocanteà permissividade dos países às licenças compulsórias sobre pa-tentes concedidas em massa para a indústria farmacêutica. Damesma forma, ainda é prematura qualquer conclusão a respeitodas políticas de acesso aos medicamentos essenciais. O proble-ma está justamente no campo do tratamento das doençasinfecto-contagiosas nos países pobres, especialmente pelos cus-tos de aquisição dos medicamentos existentes, bem como osde implantação das políticas de saúde pública. Cf. H. BROW,WTO drug-access agreement will not solve oncology problems, in TheLancet vol. 4, October 2003, pp. 586 e ss.86 Cf. R. LOPERT et alli, Differential pricing of drugs: a role for cost-effectiveness analysis, in The Lancer vol. 360, November 16, 2002,p. 1590.

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Quanto à controvertida questão sobre aseletividade dos medicamentos que poderiam ser ob-jeto de importação paralela, muito ainda há queser discutido. Suscitou-se que as previsões sobresaúde pública e acesso aos medicamentos naDeclaração de Doha não estariam afetas exclusi-vamente ao tratamento de AIDS/HIV, maláriaou tuberculose. Os Estados Unidos, na ocasião,não concordaram com o projeto apresentadopelo Conselho do TRIPS esclarecendo a contro-vérsia da não taxatividade dos medicamentos queseriam alvos potenciais das salvaguardas doTRIPS em matéria farmacopatentária nos paísesmenos desenvolvidos. Por conta do impassegerado, as negociações foram adiadas, e a ques-tão, até o momento está em aberto. Os EstadosUnidos, representando a vertente utilitarista das dis-cussões sobre acesso aos medicamentos, paten-tes farmacêuticas e preços diferenciados, apre-sentam argumentos sobre a erosão dos direitos depropriedade intelectual, a redução de incentivospara a indústria farmacêutica (menor potencialpara P&D), etc.87 No entanto, em se tratando deuma política adequada de preços diferenciadossobre medicamentos essenciais, tais argumentosnão subsistem aos efeitos positivos decorrentesdo estímulo à indústria de genéricos, da possibi-lidade de negociação entre as autoridades gover-namentais e a indústria farmacêutica, e do aumen-to efetivo de produção nos países beneficiados(o que demandaria novas plataformas de P&D eregras claras de concorrência nos mercados far-macêuticos, inclusive com o sancionamento decomportamentos anticompetitivos para as em-presas neles atuantes).

Como parte significativa da oferta de me-dicamentos está concentrada na América doNorte, Europa e Japão (cerca de 90%), esse blo-co de países teria interesse em afastar, nas nego-

ciações da OMC, as teses sobre preços diferen-ciados e salvaguardas admitidas no campo dosdireitos da propriedade intelectual no queconcerne às patentes farmacêuticas. A preocu-pação deles, bem representada no conteúdo dasnegociações levantadas pelos Estados Unidos, éa de que a implementação das exceções previs-tas no TRIPS venha a prejudicar os incentivospositivos à indústria farmacêutica doméstica.88

O argumento pode ter fundamento para tais paí-ses. Contudo, ele não se sustenta em relação àpráxis observada na indústria farmacêutica emâmbito internacional. Muitos dos recursos de fi-nanciamento de P&D nos países desenvolvidosnão são dependentes das receitas geradas nomercado dos países em desenvolvimento e emmenor desenvolvimento relativo.

Por outro lado, o bloco EU/Japão/Esta-dos Unidos tende a adotar uma interpretaçãorestritiva do artigo 31 do TRIPS, a fim de tentardemarcar as situações em que as licenças com-pulsórias e exportações paralelas poderiam serutilizadas no mercado de produtos farmacêuti-cos. Recebem, igualmente, com muita reserva, ainterpretação das cláusulas “emergência nacio-nal” e “interesse público” feita pelos países emdesenvolvimento (especialmente o bloco Brasil/Tailândia/Índia/África do Sul), acreditando queas mesmas possam ser utilizadas para justificar acriação de um “mercado de licenças compulsó-rias”, as quais seriam contrárias aos lucros dasempresas farmacêuticas. Essa posição, como vis-to, já tinha sido adotada pelos Estados Unidosna disputa com a África do Sul referente à ado-

87 Cf. S. STERCKX, Patents and Access to Drugs in Developing Countries,cit. p. 72.

88 A atuação dos Estados Unidos no âmbito da OMC por meiode agentes diplomáticos e pessoas ligadas ao governo nãonecessariamente reflete a opinião comum nos meios acadêmi-cos do país. Vale ressaltar que produção científica tem sido con-siderável nessa área e parece existir a idéia comum sobre a possi-bilidade de acesso aos medicamentos nos países em menordesenvolvimento relativo e em desenvolvimento sem que issocomprometa a indústria farmacêutica nos países desenvolvidos.

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ção, por este país, de uma legislação patentáriapermissiva à concessão de licenças compulsóri-as para a fabricação de medicamentos essenciaisem face de situação de emergência nacional eproteção da saúde pública interna do país.89 Con-tudo, não logrou o êxito esperado, especialmen-te nas discussões posteriores sobre um maiorconsenso acerca da Declaração de Doha.

Como foi examinado, a Declaração é ex-tremamente útil, pois, além de fundamentar ade-quadamente uma interpretação favorável às me-didas relacionadas às flexibilidades previstas noTRIPS, assegura o equilíbrio entre os direitos eobrigações firmados no Acordo e as políticasde acesso à saúde nos países em desenvolvimen-to e em menor desenvolvimento relativo. Damesma forma, como defendido em importantesestudos90, tal preocupação, em sua pretensão àlegitimidade, deve ser estendida às políticas depreços diferenciados, permitindo a ampliação demecanismos que facilitem a produção dos medi-camentos essenciais e sua efetiva distribuição nosmercados consumidores dos países em desenvol-vimento e em menor desenvolvimento relativo.Ainda que esta seja uma tarefa de difícilconcretização no momento, espera-se que me-lhores reflexões sejam feitas no futuro, e o pre-sente estudo tem a pretensão de contribuir comtodos esses debates.

5. CONCLUSÕES

Políticas públicas de preços diferenciadospara medicamentos essenciais implicam medidasimportantes com vistas a atenuar os conflitosexistentes entre políticas industriais de proteçãopatentária e o acesso à saúde nos países em de-senvolvimento e em menor desenvolvimento re-lativo. Como examinado, os mercados consu-midores nesses países podem ser diretamentebeneficiados com políticas positivas de preçosdiferenciados.

O Brasil, por sua expertise em relação aofomento da indústria de genéricos, deve empe-nhar-se em políticas internas mais efetivas de aces-so à saúde, na criação de um espaço transparen-te para negociações concretas com a indústriafarmacêutica e na correta aplicação da legislaçãopatentária, especialmente quanto à observânciados dispositivos de licenciamento compulsórioe de importação paralela. Políticas efetivas depreços diferenciados para medicamentos essen-ciais contribuem para garantir a manutenção dosníveis de proteção conferidos pelos direitos depropriedade intelectual e, simultaneamente, autilização adequada dos mesmos pela indústriafarmacêutica.

Essa mesma linha de conciliação deve serassumida pelo país nas futuras negociações co-

89 Cf. S. FORD, Compulsory Licensing Provisions under the TRIPsAgreement: cit., especialmente pp. 966-967. Embora os EstadosUnidos contem com uma legislação patentária também preven-do concessão excepcional de licenças compulsórias em caso deabuso de direitos conferidos pelas patentes, quando estas tive-rem sido financiadas pelo poder público (caso dos march-inrights), não se observa a mesma postura do país nas negocia-ções referentes ao TRIPS na OMC. Nesse fórum, a preocupaçãodos países desenvolvidos tem sido a de sustentar os padrões deproteção máxima aos direitos de propriedade intelectual, se-gundo a interpretação restritiva que dão ao enforcement das re-gras do Acordo.

90 Cf. fundamentalmente S. STERCKX, Patents and Access to Drugsin Developing Countries cit., p. 74, que enfatiza a importância doproblema: “Indeed, the Doha Declaration should be implemented tothe fullest extent without delay, in order to establish a fairer balancebetween the rights and obligations of patent holders and between theinterests of patients and those of patents owners. Given the basic natureof health needs, patent rules should not prevent countries from adoptingpolicies that protect public health and promote access to drugs.” Ver,também, S. FORD, Compulsory Licensing Provisions under the TRIPsAgreement: cit., especialmente p. 967-968. No período que prece-deu Doha, a autora mencionava a necessidade de se buscar umequilíbrio no escopo de aplicação do TRIPS, entre os interessesmorais amplos e os interesses estritamente protecionistas, demodo a justificar a restauração das relações entre os países noâmbito das negociações internacionais.

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merciais envolvendo o Acordo TRIPS no âmbi-to da Organização Mundial do Comércio, o queseria uma proposta indispensável com vistas agarantir a correta observância do Acordo noplano doméstico. Daí porque se faz importante,como visto, atentar para uma interpretação favorá-vel dos dispositivos do Acordo em conformida-de com a Declaração de Doha sobre TRIPS eSaúde Pública, bem como implementar em nívelnacional o conteúdo dessa Declaração. No tra-tamento das futuras negociações multilaterais emmatéria de TRIPS/OMC e as políticas de obser-vância dos direitos de propriedade intelectual, oBrasil teria condições efetivas de assumir umaestratégia de coordenação, alinhando as questões re-ferentes à proteção patentária de fármacos e anecessidade de acesso à saúde pública nos paísesem desenvolvimento e em menor desenvolvi-mento relativo.

De fato, uma eventual dificuldade deimplementação das “flexibilidades” do TRIPSnos países em desenvolvimento pode ser con-tornada por instrumentos idôneos e eficazes quesejam alinhados à proteção dos direitos de pro-priedade intelectual. Razão pela qual, aqui foienfatizada a importância da implementação depolíticas de preços diferenciados para medicamen-tos essenciais. Fórmulas de pressão institucional,levadas a cabo pelo Estado, tais como a possibi-lidade de aplicação de licenças compulsórias eimportação paralela, podem fazer aumentar apreocupação da indústria farmacêutica em em-preender políticas de preços reduzidos de medi-camentos nos países em desenvolvimento e emmenor desenvolvimento relativo. Considerando-se a necessidade de incremento do acesso efeti-vo aos medicamentos essenciais, haveria maiorinquietude com o tema da adequada aplicaçãodos direitos de propriedade intelectual, especial-mente no que concerne à indústria farmacêutica.

Do mesmo modo, devem ser combinadaspolíticas de Estado suficientemente eficazes no

fomento às políticas de acesso à saúde e que im-pliquem maior empenho institucional das agên-cias governamentais. Os impactos econômicosde uma legislação patentária equilibrada (isto é, queassegure o potencial inventivo da indústria inte-ressada e que permita sancionar os comporta-mentos abusivos por parte dos titulares de pa-tentes) podem ser positivos para os mercadosconsumidores. No Brasil, como examinado, oinstrumento por excelência encontra-se na apli-cação das normas relacionadas ao licenciamentocompulsório e importações paralelas, tais comoo Decreto nº 3.201/99.

Não há dúvida de que acesso à saúde emedicamentos essenciais são temas fundamentaisda agenda de debates da comunidade inter-nacional. Várias são as alternativas que se apre-sentam hoje para os países em desenvolvimentoe em menor desenvolvimento relativo como res-posta à concretização do direito fundamental dohomem de acesso à saúde. Sob essa ótica, deveser dada ênfase àquelas que objetivam a modifi-cação das estruturas do processo econômico(produção – distribuição – consumo) relaciona-do ao mercado de produtos farmacêuticos es-senciais e sua função de promover tratamentoadequado às doenças que nos afetam. No con-texto das alternativas possíveis, os preços diferen-ciados de medicamentos essenciais representamopções viáveis, eficientes e eficazes de fomentoàs políticas públicas de acesso à saúde.

Políticas afirmativas como as de reduçãodos preços de aquisição, pelos países, de medi-camentos essenciais, atenuam o “custo da saúde”,o qual pode, para muitos países, representar bar-reiras à concretização do direito fundamental deacesso à saúde e do direito à saúde.

O êxito de uma política internacional depreços diferenciados requer método transparentee eficaz para a avaliação do alcance da distribui-ção dos medicamentos (relação necessidade v. via-bilidade econômica). De qualquer forma, os preços

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diferenciados podem proporcionar a utilizaçãoracional dos medicamentos, estimular a acessibi-lidade, criar formas de financiamento sustentá-vel e auxiliar no restabelecimento da integridadedos sistemas públicos de saúde.

Como visto, nos países em desenvolvimen-to e em menor desenvolvimento relativo existemsignificativas barreiras para o acesso à saúde: ele-vados preços de aquisição dos medicamentos,tributação inadequada e desproporcional sobredeterminadas categorias, sistemas deficitários dedistribuição de medicamentos pelas redes públi-cas de saúde, bem como problemas atribuídosà própria indústria farmacêutica. Por meio depolíticas de preços diferenciados é possível cobrarpreços maiores para determinados medicamen-tos em países desenvolvidos e outros, substancial-mente menores, em países em desenvolvimentoe em menor desenvolvimento relativo, sem que asempresas farmacêuticas percam seus mercados.

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