MARTON, Scarlett (org.). Nietzsche hoje Colóquio de Cerisy

100
• Acreditavam os Gregos em Seus Mitos? - Paul Veyne Passeios ao Leu - Gerard Lebrun Primeira Filosofia - Varias Autores Encanta Radical • Friedrich Nietzsche - Urna Filosolia a Marteladas - Scarlett Marton Nietzsche hoje? Col6quio de Cerisy Organizar;lJo e revislJo tecnica: Scarlett Marton Tradur;lJo: Milton Nascimento e SOnia Salzstein Goldberg .Ip .;; l 1985

Transcript of MARTON, Scarlett (org.). Nietzsche hoje Colóquio de Cerisy

  • Acreditavam os Gregos em Seus Mitos? - Paul Veyne Passeios ao Leu - Gerard Lebrun Primeira Filosofia - Varias Autores

    Cale~iio Encanta Radical Friedrich Nietzsche - Urna Filosolia a Marteladas - Scarlett

    Marton

    Nietzsche hoje? Col6quio de Cerisy

    Organizar;lJo e revislJo tecnica: Scarlett Marton

    Tradur;lJo: Milton Nascimento e

    SOnia Salzstein Goldberg

    .Ip .;;

    l 1985

  • L,-,

    Copyright Union Generale O'Editions. Titulo original: Nietzsche Aujourd'Hui Copyright da tradur:ilo: Editora Brasiliense S.A.

    Capac. Carlos Matuck

    Revisilo: Suzana Lakatos Saulo C. R. Barros

    . ~.

    ~

    "t::::Hop...~ '. ""'C d

  • I' ,

    lu,

    Apresenta~io

    Em julho de 1972, pensadores franceses e alemAes, na sua maioria, reuniram-se em Cerisy-Ia-Salle para debater 0 tema "Nietzsche hoje?". Cern anos antes, 0 Nascimento da Tragedia no espirito da mUsica era acolhido com elogios, cri-ticas, reticencias. Do primeiro livro ao Col6quio, urn seculo marcado pela polemica - em torno da figura e da obra de Friedrich Nietzsche.

    Nietzsche hoje? alinha posi~Oes e posturas divergentes: da metafisica a estrategia, do conceito a intensidade, do texto a deriva. 0 interesse pelo tema ja se coloca como questil.o. Karl L/lwith e Eugen Fink, alemAes, parecem nAo se maravi-!har com Nietzsche; confessam 0 mal-estar que Ihes causam 0 estilo e 0 pathos de seus escritos. Fink sugere que 0 encanto produzido pela perfei~Ao de sua linguagem e coisa datada. Sua obra liteniria nAo influencia mais escritores de talento, como no inicio do seculo. LOwith admite que a embriaguez provocada por suas metaforas, parabolas e aforismos per-tence an pass ado. EntAo, Assim fa/ou Zaratustra, verdadeira Biblia, acompanhava os voluntarios da Primeira Guerra e empolgava os "circulos nietzschianos" que se multiplicavam na Alemanha. Agora nem mesmo la urn debate sobre 0 fil6-sofo encontraria eco. Surpreso, LOwith procura entender a atra~Ao que Nietzsche volta - ou continua - a exercer no pais vizinho. Desde a decada de 60, e para ele que os franceses dirigem outra vez 0 olhar.

  • II 8 APRESENTA
  • L-.

    10 APRESENTAc;:AO

    incompreensAo calculada e a tantas mas interpreta90es. Por sua vez, ~arah Kofman lembra, a partir dos textos de Nietzs-che, que nAo htl leitura sem interpreta9Ao e que toda interpre-ta9Ao equivale a uma domina9Ao, a uma nova apropria9Ao. Eugen Fink, finalmente, ressalta que 0 pr6prio Nietzsche per-mitiria multiplas interpreta90es, dados sua recusa do rigor e exatidAo do conceito e seu estilo fragmentario e sedutor.

    Diferentes interpreta90es, diferentes leituras - sem du-vida, e 0 que se apresenta no Col6quio de Cerisy. E tambem diferentes abordagens de temas comuns: 0 eterno retorno visto por Danko Grlic e Pierre Klossowski, a cultura encarada por Eric Blondel e Sarah Kofman, a rela9Ao homem/inundo refletida por Karl L(jwith e Eugen Fink. E ainda diferentes referenciais te6ricos subjacentes: Heidegger de certo modo presente nas considera9oes de Fink e Grlic; Derrida, nas de Clemens e Kofman. E, enfim, diferentes preocupa90es: Nietzsche permaneceria enredado na metafisica ocidental ou teria rompido com ela? Estaria inserido na tradi9Ao filos6fica ou seria 0 criador da nAo-filosofia? Demandaria urn comen-two exegetico ou exigiria uma leitura intensiva?

    o Col6quio de Cerisy foi publicado com 0 titulo Nietzs-che aujourd'hui?, em dois volumes, pela Union Generale d'Editions de Paris, na cole9Ao 10/18. Reuniu vinte e quatro comunica90es, geralmente seguidas pela reprodu9Ao das dis-cussoes, e duas mesas-redondas. 0 criterio que orientou nossa escolha para esta edi9Ao 1 foi 0 de oferecer a maxima diversidade, diversidade de temas, abordagens, perspectivas.

    Quando da revisao tecnica, comparamos todas as cita-90es de Nietzsche com 0 original da edi9ao organizada por Colli e Montinari, para a Walter de Gruyter & Co., Berlim. Sempre que possivel, recorremos a tradu9Ao de Rubens Ro-drigues Torres Filho para 0 volume Nietzsche Obras Incom-pletas, da cole9Ao "Os Pensadores", Abril Cultural.

    Sao Paulo, outubro de 1984. Scarlett Marton

    ~

    Circulus vitiosus*

    Pierre Klossowski

    "Quando caminhamos em dir~lo a um obje-tivo, parece inconcebivel que a 'ausencia de objetivo em si' possa ser nosso principio de cren9a. Vejo, por toda parte, nlo haver vitoriosos, nlo subsistir senllo, justamente, aqueles que com-prometem a vida, 0 valor da vida."

    (Anti-Darwin)

    Lembrarei inicialmente, fazendo de certa maneira urn balan90, que, no que concerne ao pensamento autentico de Nietzsche - e ainda 0 termo autentico e muito equivoco, autentico no sentido de que, htl quarenta anos, dispomos de melhores condi90es para apreende-Io em seu aparente siste-ma, sob seu verdadeiro aspecto - uma coisa ao menos parece conquistada daqui para frente: nAo se ousartl mais, como foi o caso durante cerca de meio seculo ap6s 0 desaparecimento de Nietzsche, separar nem opor, como excludentes, as n090es do eterno retorno e da vontade de potencia. Mas se Nietzsche, realmente, s6 e 0 fil6sofo da vontade de potencia porque e 0 doutor do eterno retorno, esta defini9Ao irrecustlvel dada por Heidegger pode, por sua vez, ser interpretada diferentemente e suscitar graves dificuldades, e isto a partir das dec1ara90es de Nietzsche. Em apoio a essas ultimas, podemos seguir as fases sucessivas pelas quais Nietzsche, afastando-se do instante

    Trad.: SOnia Salzstein Goldberg.

  • I i ~.' II . . ,

    i :1,:' 12 PIERRE KLOSSOWSKI

    arrebatador de Sils Maria, depois de ter convertido 0 fato vivido em conceito, ou melhor, naquilo que nomeia 0 pensa-mento dos pensamentos, tentou dar-Ihe uma versAo cientifi-camente estabelecida e apresentou-a como a pr6pria mola da vontade de potencia, ao enunchl-Io como 0 instrumento se-creto de sua doutrina seletiva: em outros termos, para falar de urn ponto de vista pUramente hist6rico, a trans formacAo do niilismo passivo em niilismo ativo, cujo signo e figura e 0 circulus vitiosus Deus.

    o que conduz (como ousei fazer em meu estudo)' a uma anillise - que creio indispensavel - dos criterios nietzschia-nos de decadencia e de expansilo, do que e silo, do que e m6r-bido, do que e gregorio, do que e caso particular ou caso sin-gular, e, mais particularmente em fun~Ao do circulo vicioso, do caso jortuito. Quanto a mim, deixei-me sempre guiar por urn fio condutor, 0 que me parecia 0 mais seguro para superar esse sentimento de estranheza que inspiram, num primeiro momento, certas afirma~oes de Nietzsche - isto e, tudo 0 que em suas afirma~oes e seus projetos diz respeito a prepara-

    ~Ao de urn compl6. Ou nos desviamos deste aspecto de Nietzs-che como de uma aberra~Ao que nAo constituiria seu pensa-mento autentico, ou aceitamos este pensamento naquilo que enuncia num primeiro momenta - isto e, que nAo possuimos, propriamente, nenhum criterio para verificar 0 que e aber-rante ou que nAo 0 e, senAo a possibilidade ou a impossibili-dade de viver a partir de urn produto do pensamento. 0 mo-tivo do compl6 nAo me permite tratar como puras metilforas os termos de "alem-da-humanidade", "senhor e escravo" ,

    "forma~Ao soberana", nem sobretudo a sugestAo de metodos experimentais que as diretivas de uma sele~Ao exigiriam. Compl6 que se trama contra 0 surdo conluio entre a moral institucional e a teoria darwiniana (" a sele{:ilo precisamente nilo se produz em javor das exce{:oes", mas unicamente dos mediocres). Ora, 0 compl6 germina no pensamento do eterno retorno a medida que este se explicita. A doutrina do circulo vicioso tern 0 efeito de abolir 0 principio de identidade, a identidade individual, e portanto, tambem, os atos dos pre-postos da potencia, que entretanto somente a exercem se ima-

    1 Trata-se de Nietzsche et Ie cercle vicieux, Mercure de France, Paris. 1969 (Nota do Organizador).

    CIRCULUS VITIOSUS 13

    ginam previamente urn objetivo e urn sentido para sua a~. Mas, porque 0 circulo vicioso suprime, com as identidades, a

    significa~Ao dos atos, definitivamente, e necessita de sua re-peti~Ao infinita numa total ausencia de obi etivo , ai esta 0 motive pelo qual ele passa a ser, no compl6, 0 criterio seletivo da experimenta~Ao. Que soberania ousara, alguma vez, re-nunciar as no~oes de sentido e de objetivo, a partir das quais uma for~a constituida se autoriza a dominar? Que soberania nAo praticara outra violencia senAo a do absurdo? Essa sobe-rania, ou essas forma~oes soberanas (Herrschajtsgebilde) de-veriam entAo confundir sua domina~Ao con) sua pr6pria

    desintegra~Ao, se todavia se tratasse de uma institui~Ao, de urn Estado, no sentido tradicional. ConseqUentemente, nAo pode tratar-se, no pensamento de Nietzsche, de instituir urn regime politico no sentido tradicional do termo. 0 compl6 de Nietzsche s6 se concebe na medida em que seria conduzido por alguma comunidade secreta, inapreensivel, cuja acAo pu-desse se exercer em qualquer regime. S6 essa comunidade teria a aptidAo para desintegrar, enquanto projetasse sua pr6-pria a~Ao, ao passo que ela, por sua vez, se desintegraria fatalmente, desde que a realidade gregaria se apoderasse de seu segredo a titulo institucional.

    Mas Nietzsche, por outro lado, fala do advento de urn poder, mesmo que fosse 0 de uma sociedade secreta, de expe-rimentadores, sabios e artistas, ou, de urn modo geral, como ele diz, de criadores que saberAo agir em nome dessa doutrina do circulo vicioso e que farAo dela a condi~Ao sine qua non da existencia universal. Assim, ele introduz 0 tema do terror ilu-minador, que 0 pensamento do eterno retorno exerceria. Mas como pode exerce-Io? Por seu pr6prio conteudo, esse pensa-mento deixaria a massa dos individuos indiferente. Ele s6 poderia ser levado a serio se 0 terror que Ihe e implicito se traduzisse em atos consecutivos a seu conteudo: nada possui outro objetivo ou outro sentido senAo 0 de retornar ad infini-tum. Nenhum regime politico jamais poderia adota-Io, mas os individuos e as massas que nAo suportam viver sob esse signo, sem obietivo nem sentido, deverAo, como ele 0 supoe, desaparecer.

    Nietzsche, em suas pr6prias especula~oes, nAo pesa 50-mente as chances concretas da realiza~Ao de urn tal poder como sendo ut6pico; ele decifra os dados,as perspectivas de

    ,j

  • Ililll : 1'.1';

    I

    i

    14 PIERRE KLOSSOWSKI

    uIila tal a~Ao inscritas na pr6pria evolu~Ao da economia mo-dema. A gestAo total da Terra, a planifica~Ao planetaria da existencia, obedece it lei de urn movimento irreversivel. Este movimento economico, que consagra a mentalidade reinante da falsa sele~Ao darwiniana, ou seja, uma mediocriza~Ao do homem, exige a rea~Ao de urn contramovimento. Parece-me uti! ler para voces esta passagem, que todos mais ou menos conhecem e que e conveniente reler para a seqiH!ncia de minha exposic1io:

    "Ha necessidade de demonstrar que, em relacao a urn con-sumo cada vez mais econOmico do ser humane e da hurnani-dade, em relacao a urna rede de interesses e de realizacoes cada vez mais estreitamente entrelacados, e precise urn contra-movimento. Designo este como elimina9ilo de um luxe exce-dente da humanidade: nele, deve vir it luz urna especie mais forte. urn tipo mais elevado, com outras condi~Oes de forma-CAo e de conservacao que nAo as do homem medio. Meu con-ceito, minha par6bola para esse tipo e, como se sabe, 0 termo 'alem-do-homem' ...

    Nessa primeira direcao, que agora e totalmente previsi-vel, formam-se a adaptacao, 0 nivelamento, 0 "chinesismo" superior, a modestia do instinto, a satisfacAo no apequena-mento do ser humane - uma especie de estagna(:iio do nfvei do ser humano. S6 quando tivermos em mAos essa gestAo total da economia da Terra, ineviUlvel e iminente, entAo a humanidade poderli encontrar seu melhor sentido enquanto maquinaria a servico dessa gestAo: enquanto uma enorrne engrenagem de rodas cada vez menores, cada vez mais suti!-mente "adaptadas"; enquanto urn vir-a-ser superfluo cada vez maior de todos os elementos que dominam e comandam; enquanto uma totalidade de forca enorme, cujos fatores par-ticulares representam forcas minimais, valores minimais. Em oposiCAo a esse apequenamento e adaptacAo do ser humane a uma utilidade especializada, e necessario urn movimento inverso, a criacAo do ser humane que sintetiza, soma e justi-fica, para quem essa maquinalizacAo da humanidade e uma condicAo previa de existencia, enquanto suporte sobre 0 qual ele possa inventar sua forma superior de ser ( ... )

    Ele precisa da rivalidade da massa, dos "nivelados", do sentimento de distancia em relacAo a eles; mantem-se sobre

    CIRCULUS VITIOSUS 15

    eles, vive deles. Essa forma superior do aristocratismo e a do porvir. Para dize-lo moralmente, essa maquinaria de con-junto, a solidariedade de todas as rodas, representa urn maxi-mum na expiora(:iio do ser humane: mas tal maquinaria supoe aqueles por causa de quem essa exploracao tern sentido. Caso contrario, ela, de fato, seria simplesmente a diminuicao de conjunto, a diminuic1io de valor do tipo humane - urn feno-meno regressivo em grande esti!o.

    Ve-se que 0 que combato e 0 otimismo economico; como se, com os gastos crescentes de todos, devesse, necessaria-mente, crescer tambem 0 ganho de todos. 0 contrilrio parece-me ser 0 caso: os gastos de todos somam-se numa perda de conjunto; 0 ser humane toma-se menor, de maneira que nao se sabe mais para que serviu esse enorme processo. Para que? Urn novo "para que" - ai esta 0 que a humanidade tern como necessario ...

    Fragmentos P6stumos, outono de 1887, (150) 10 [171'

    Em funcAo disto existe urn outro texto, intitulado Os Fortes do Porvir, que vai diretamente na linha indicada do complo:

    "0 que em parte a necessidade, em parte 0 acaso, consegui-ram aqui e ali, ou seja, as condicOes previas para a producao de uma especie mais forte, e 0 que doravante podemos com-preender e cientemente querer. Podemos criar as condicOes nas quais tal elevacao e possive!. Ate agora, a 'educacAo' tinha em vista 0 beneficio da socie-dade: nilo 0 maior beneficio do porvir, mas precisamente 0 da sociedade existente. Para ela se desejava 'instrurnentos'. Admitindo-se que a riqueza em fo,.as fosse maior, poder-se-ia pensar numa subtra9ilo de fo,.as, cujo objetivo consistisse nao no beneficio da sociedade, mas num beneficio por vir. Tal tarefa poderia ser proposta quando se compreendesse em que medida a forma atual da sociedade estaria passando por

    2 Klossowski utiliza a edicAo das Obras de Nietzsche organizada por Colli e Monti-nari, em alemlo, pela Walter de Gruyter & Co., Berlim. e em frances pela Galli-mard, Paris. A traducAo francesa ,do volume em que se acha a cita~o fieou a cargo de Henri-Alexis Baatsch e do pr6prio Klossowski (N. do 0.).

    , ,J

  • LL: , , ',' ',:,1 I ',;!

    16 PIERRE KLOSSOWSKI

    uma forte transforma91l0, para um dia niJo mais poder existir por vontade pr6pria, mas apenas como meio nas mllos de uma rR9a mals forte. o apequenamento crescente do ser humano e precisamente a for9a que impele a pensar no adestramento de uma ra9a mals forte: que encontraria justamente seu excedente em tudo aquilo que tornasse a especie apequenada cada vez mals fraca (vontade, responsabilidade, confian9a em si, poder-fixar-se-objetivos). Os meios seriam os ensinados pela hist6ria: 0 isolamento atraves de interesses de conserva91l0, contrlirios aos que hoje sllo os da media; 0 exercicio nas aprecia90es de valor contra-rias; a disUincia enquanto pathos; a livre consci!ncia em tudo o que e hoje menos estimado e mais proibido. A igualiza{:iJo do homem europeu e 0 grande processo que nllo tem de ser freado: deveria ser alnda acelerado. Com isso estllo dadas a necessidade de uma ruptura abissal, a necessidade de uma distancia, de uma hierarquia; nao a neces-sidade de retardar esse processo. Essa especie igualizada, desde que se realize, exige uma justi-/ica{:iJo: reside no fato de servir a uma especie superior, que se mantem sobre ela e s6 assim pode elevar-se a sua pr6pria tare/a. Nllo somente uma rR9a de senhores cuja tarefa se esgotaria em governar; mas uma ra9a com sua pr6pria es/era de vida, com um excedente de for9a para beleza, coragem, cultura, maneiras, ate no que ba de mals espiritual; uma ra9a ajirma-tiva que se pode conceder qualquer grande luxo ( ... ), forte 0 suficiente para nllo ter necessidade da tirania do imperativo da virtude, rica 0 suficiente para nao ter necessidade da parci-mania e do pedantismo, para alem de bem e mal; uma estufa de plantas raras e singulares".

    Fragmentos P6stumos, outono de 1887, (105) 9 (153),

    o que nllo e dito de uma maneira tllO clara quanto em outra passagem, e que, entretanto, faz parte da visllo de Nietzsche, e a n091l0 de excedente, daquilo que Nietzsche desde entllo disceme no estado atual, ou seja, que os homens do excedente, aqueles que criam a partir de agora e desde sempre 0 sentido dos valores da existencia (considera91lO muito paradoxal da parte de Nietzsche), formam uma hierar-

    CIRCULUS VITlOSUS 17

    quia, por assim dizer, oculta, para a qual trabalha a pretensa hierarquia dos dirigentes atuais. Sllo e1es os verdadeiros escravos, que assumem 0 trabalho pesado.

    Assim, para Nietzsche, a especie humana, a partir do momento em que se deve pronunciar pela prodU91l0 para se manter no nivel do homem, s6 pode faze-Io pelo absurdo de uma redU91l0 total de seus recursos morais, devida ao pr6prio trabalho. Para reverter essa condi91l0 aniquiladora do absur-do em significa9ao suprema, esta significa9ao coincidira com a total iniqiiidade.

    Coloco agora uma primeira questllo. Em que medida a desCri91l0 nietzschiana do excedente, do a mais, nllo seria apenas urn resumo nllo dialetico da n091l0 de luta de classes' e das infra-estruturas de Marx? Nietzsche desemboca em consi-dera90es sobre a economia apenas pelo vies do utilitarismo de Stuart Mill. ve na sele9llO darwiniana e nos sistemas anglo-saxoes uma forma de mentalidade gregaria reinante, que se transforma em conspira91l0 moral e que tende a tomar impos-sivel e incompreensivel sua pr6pria visllo. Sobre esse esquema se decalca seu pr6prio compla. Com certeza, ele ignora total-mente 0 itinerario do pensamento de Marx a partir da inver-Sllo da dialetica hegeliana, e se 0 tivesse conhecido, nllo teria deixado de pensar a mesma coisa.

    Nllo obstante sua concep91l0 hist6rica do senhor e do escravo, tal como a retoma do ponto de vista do que nomeia a mediocriza91l0 pela economia, a fun91l0 capital que atribui it forma91l0 do excedente concorrencial dessa mediocriza91l0 -portanto, 0 processo da rejei91lO - trazem-no, assim mesmo, ao terreno que Marx ocupa. Ambos se encontram, de certo modo, de costas urn para 0 outro. Poderiamos estabelecer urn paralelo entre 0 que Nietzsche chama de mediocriza91l0 dos individuos proporcionalmente it acumula91l0 das riquezas e it aIiena91l0 proletarizante descrita por Marx, mas desde a ori-gem a divergencia se inscreve na n091l0 de valor. A analise de Marx relativa it fun91l0 mistificadora do valor mercantil, se pode coincidir de maneira negativa com a n09ao de valor em Nietzsche, vai contra 0 que Nietzsche coloca como valor enquanto principio de toda afirma91l0, a saber, que 56 e valida a mistifica{:i1o da vida por ela mesma. Toda desmistifica91l0 coincide com uma queda, toda remistifica91l0 com uma ascen-s1l0, com a cria91l0. Uma prOdU91l0 que nllO proceder de

  • ''I" ,

    18 PIERRE KLOSSOWSKI

    uma mistifica9ao operante, permanecera sempre aquem do fato de existir. Sao os afetos que exercem a coer9ao para pro-duzir. A produCao jamais passara de uma replica dessa coer-9ao e toda divisao do trabalho dos afetos visara sempre dimi-nuir a pr6pria forca produtiva deles: para Nietzsche, uma maneira de desmistificar 0 fato de viver.

    Em suma, ai se acha exatamente 0 comentario do con-ceito, se nao do criterio, de A Vontade de Potencia. Toda dominacao deve fornecer uma criacao que transmute a vio-H!ncia pura em gozo, tanto dos que praticam a vioH!ncia - e isso no plano moral e no material, mesmo que seja apenas pelo fato de comunicar, que Nietzsche sempre identificou como urn ato violento - quanto dos que a sofrem. A explo-racao afetiva e material, em qualquer plano que seja, s6 se pratica enquanto se oferecer a necessidade de se jazer expio-rar. A necessidade de transvalorar os valores provem do fato de que os recursos morais de uma exploracao estao esgotados; ora, e preciso encontrar nos seres urn novo patamar em que 0 desejo de se fazer explorar lhes proporcione 0 beneficio de urn gozo. Uma dominacao se desmorona no momento em que desconhece esse principio de criar instrumentos de gozo que urn valor constitui. Violencia e gozo nao tern fundamento desde que a criacao desaparece. A violencia do absurdo s6 pode recair no nivel do absurdo da violencia.

    A segunda questao seria saber 0 que concerne ao com-portamento nietzschiano, encarado no contexto de nossa agi-tacao atual, isso, nao mais do ponto de vista da nocao de potencia, mas do circulo vicioso, figura de urn juizo niilista feito sobre todo agir. Lembro ainda uma vez a evolucao do pensamento do eterno retorno. Esse pensamento, tema de contemplacao, toma-se 0 instrumento de urn complo. E a partir desse estagio que se pode conceber 0 deus cfrcuio vicioso como 0 desabrochar de urn delirio. A questao que coloco aqui e a de saber se e enquanto figura delirante de urn com-portamento em reiacao a atualidade que tal comportamento pode se tomar eficaz, ou se, de uma maneira geral, todo com-portamento delirante constituiria daqui para jrente uma resis-tenda eficaz em reiafilo a uma jorfa adversa determinada. Como 0 circulo vicioso se torna 0 instrumento de urn complo enquanto dilema seletivo, ou seja: voce reconhece ou nao que seus atos nao tern nenhum sentido nem objetivo, senao na

    CIRCULUS VITlOSUS 19

    medida em que sao sempre as mesmas situa90es indefinida-mente repetidas? Aja, portanto, sem escrupulos. 0 pior, se ja nao foi atingido, nao 0 sera jamais. Ai esta 0 que introduz, com 0 terrorismo, 0 programa experimental do complo. Mas o terrorismo do pensamento do eterno retorno pode muito bern, sob essa forma, ser apenas a par6dia do terrorismo efe-tivo de nossa modernidade industrializante. 0 deus circulo vicioso, a pura simulacao da economia universal, ainda e apenas uma aparencia; mesmo que 0 pensamento do circulo fosse tambem uma par6dia, a par6dia nao deixaria de ser uma criacao delirante enquanto complo. Se 0 complo supOe atos a serem efetuados, 0 pensamento do circulo vicioso quer que estes atos, efetivamente praticados, sejam necessaria-mente a simuiacao sem fim de uma acao que a repeticao esva-zia de seu conteudo, este nao sendo jamais adquirido definiti-vamente. Qual seria, portanto, 0 agente simulador? Nada alem do pathos, que Nietzsche quer que seja a potencia simu-ladora por excelencia. 0 pensamento do eterno retorno, que abole as identidades e esvazia os atos de seu conteudo, vern, portanto, combinar-se com a preparacao de urn compld, que preve praticamente experimentacoes. Quem quer os fins, quer os meios, diz Nietzsche. Ora, a experimentacao e essen-cialmente 0 ato, 0 genero de atos que se reserva 0 privilegio de malograr. 0 fracasso de uma experiencia revela mais que seu exito. No nivel do pathos. fracasso e hito se confundem no jogo permanente das impulsoes. A experimentacao maior nao visa aqui ao exito pratico de urn compld, que se perfaz num objetivo alcan9ado, mas na pr6pria manifesta9ao de urn estado desde sempre secretamente reinante, que se procura e persegue como urn .rim pretendido. Quando Nietzsche diz: quem quer 0 fim, quer tambem os meios, fala, simultanea-mente, em dois registros: 0 da gregariedade e 0 do caso singu-lar; 0 dos individuos identicos a si mesmos e 0 do caso for-tuito; 0 do senso comum e 0 do delirio. Mas 0 que se ouve no nivel da linguagem institucional e imediatamente desmentido no nivel do pathos. 0 fim, que e aqui 0 delirio, esta inscrito nos meios; 0 fantasma, no simulacro, este ultimo se afirman-do como 0 meio de fazer reinar universalmente a coercao ate entao escondida daquele. 0 protesto anti-darwiniano, que denuncia uma falsa interpretacao da sele9ao das especies, nao tern, por si mesmo, nada de delirante, e essencialmente luci-

  • 20 PIERRE KLOSSOWSKI

    do, razoavel. Seria a sequencia que ele pretende se dar, os projetos de interven~lIo antigregarios, os criterios desta inter-ven~lIo para instituir uma especie superior, que fariam trans-formar-se em delirio 0 pensamento contemplativo do retorno, como instrumento do complo. E, no entanto, e apenas a par-tir desse estagio, no momenta mesmo em que 0 pensamento do retOrno parece renegado - renegado em seu prestigio contemplativo pelos projetos de experimenta~lIo do complo - que 0 pathos consegue perfazer sua constru~iio dita deli-rante. 0 verdadeiro motivo do complo nllo era a realiza~lIo efetiva de uma reviravolta material que, segundo 0 circulo vicioso, ja esta inscrita na fatalidade economica deste mundo; sob 0 signa do circulo vicioso, 0 complo anti-darwiniano sig-nifica 0 advento a autonomia das produr;oes inicialmente patol6gicas, enquanto condi~lIo mesma de uma reviravolta de toda rela~lIo entre as for~as sociais presentes. Assim, parece que a doutrina do circulo vicioso percorre todos os projetos emanados das primeiras conc1usoes psicol6gicas de A Von-tade de Potencia, como a desvalora~lIo pratica desses proje-tos e, no mesmo lance, como a valoriza~lIo do delirio que os engendra.

    Discussao Leopold Flam: Se nos situarmos naquilo que se pode

    chamar de tradi~lIo da filosofia, digamos, de Tales a Htilder-lin, voc@ nllo acha que seria necessario dizer que 0 fil6sofo e quem se determina a si mesmo? Ora, a autonomia como rea-

    liza~lIo de si e compreensllo do mundo elimina 0 delirio. Se-nllo, e a deriva no fascismo.

    Pierre Klossowski: NlIo posso Ihe responder nada, a nllo ser que acabo simplesmente de descrever 0 que creio ultrapas-sar a filosofia tal como voc@ a define.

    Leopold Flam: Se 0 pensador vai contra a corrente, se em sua solidllo ousa protestar, cabe a ele, parece-me, dizer que e contra 0 fantasma que voc@ descreveu. E por isso que me atrevo a dizer-lhe: sou contra 0 que voc@ disse, nllo contra voc@ ...

    Pierre Klossowski: Nada tenho a dizer sobre isso.

    r I

    I I

    L

    CIRCULUS VITIOSUS 21

    Norman Palma: Urn ponto que suscita problemas na interpreta~lIo de Klossowski e a aproxima~lIo entre Nietzsche e Marx: Para Nietzsche, esse universe da burguesia, que ele nomeia 0 do "ultimo homem", e 0 universo onde ha urn s6 rebanho e nenhum pastor; para Marx e, ao contrario, aquele onde ha a maior oposi~lIo entre 0 senhor e 0 escravo. Over-dadeiro objetivo de Nietzsche e a reestrutura~lIo, nllo a deses-

    trutura~lIo, da domina~lIo. Temo que voc@ tenha ocultado urn pouco esta oposicao ao tratar do valor e da alienacao. A partir das passagens que voc@ leu, e que sllo c1assicas na inter-preta~lIo nazista de Nietzsche, eu esperava uma exegese que justificasse a imagem de urn Nietzsche libertario.

    Pierre Klossowski: Para Nietzsche, 0 mundo nllo pode existir fora de uma coer~lIo; se 0 socialismo triunfa - e neste caso, Nietzsche 0 afirma expressamente, ele pode realizar com urn desperdicio formidavel de energia essa base de que necessitamos - e preciso esperar uma nova tensllo, porque todas as vezes, a sociedade, qualquer que seja, secretara urn excedente, urn excedente que sera sempre a dinamite que fara explodir 0 conjunto.

    Norman Palma: Se ha coincid@ncia entre Marx e Nietzs-che, nllo e ao nivel da teoria, e antes entre a exig@ncia nietzs-chiana e a praxis marxista. 0 que Nietzsche assinala como exig@ncia e a reestrutura~lIo da domina~lIo. Em todas as suas obras, de 0 Nascimento da Tragedia a 0 Anticristo eA Vonta-de de Potencia, ele repete isso, mas nllo imagina absolutamente tal reestrutura~lIo a partir de uma domina~lIo de comerciantes, ou seja, de capitalistas; para ele, s6 pode ser a obra de uma casta que nllo teria a propriedade dos meios de produ~lIo.

    Pierre Klossowski: Sim, e essa sociedade tibetana que Bataille descreveu em A Parte Maldita, onde mostra justa-mente uma casta inteiramente sustentada. Isto, de acordo com refer@ncias de Nietzsche, que podemos criticar porque se ligam a uma sociologia ultrapassada (que via na casta uma realidade estatica), mas, para alem das quais e preciso reter urn processo lucidamente observado, uma descri~lIo perti-nente da patologia humana, a despeito de uma concep~lIo estetica da hist6ria, de que Nietzsche jamais pOde desemba-

    ra~ar-se porque era geral em sua epoca. Norman Palma: Como conciliar esse carater estatico da

    casta com a vontade de pot@ncia, que quer fazer explodir

  • n

    111;1'

    22 PIERRE KLOSSOWSKI

    todas as barreiras e que voce chamou ate mesmo de delirio? Pierre Klossowski: Disse somente que a vontade de po-

    tencia apenas pode-se afirmar se tiver chances de explora~Ao, que serAo sempre dadas pela natureza humana.

    Norman Palma: Sem duvida, s6 que essa libera~Ao da pulsAo, que Nietzsche chama de vontade de potencia, para ele apenas pode e deve exercer-se na casta dominante. Se, no mundo do ultimo homem, a vontade de potencia, nAo se pode manifestar, e porque os senhores, eles pr6prios, ja nAo pas-sam de escravos.

    Pierre Klossowski: E isto. Heinz Wismann: Voce poderia situar suas explana~oes

    sobre 0 complo e a casta em rela~Ao ao projeto do circulo de Stefan George', que se pretende uma retomada, tanto poetica como politica, do nietzschianismo?

    Pierre Klossowski: 0 circulo de George me parece ja uma falsifica~Ao; existe ai urn elemento pontificante que e absolutamente inconcebivel em Nietzsche. Nietzsche teria provavelmente adotado, em rela~Ao ao grupo de George, a mesma atitude que adotou em rela~Ao a Bayreuth. Reservava-se a si pr6prio 0 segredo do histrionismo, que e precisamente o de divertir-se, de ca~oar. Quando nAo se atinge 0 nivel do pseudo, cai-se no nada, mas tanto os ritualistas do circulo de George, quanto os wagnerianos, eram incapazes do desdo-bramento que 0 histrionismo permite. Em Nietzsche, trata-se de urn atavismo da grande tradi~Ao romana ocidental: 0 sen-tido do teatro, que nao exclui 0 nfvel do divino, 0 que Georges Bataille queria tambi:m realizar, inscrevendo 0 rir nos atribu-tos de urn divino sem divindade precisa.

    Fauzia Assaad-Mikhail: Onde esta a sele~Ao no etemo retorno?

    Pierre Klossowski: Neste dilema que Nietzsche observa: "Ou voce aceita ou voce desaparece num mundo que, em rea-lidade, depende do circulus viriosus ... "

    I 0 poeta alemilo Stefan George (1868/1933) provavelmente nilo chegou a encontrar Nietzsche; nilo existe nenhum testemunho biografico nesse sentido. Contudo. a influencia do fil6sofo se fez sentir no estilo e no conteudo de suas poesias e tam-bern nos escritos de alguns daqueles que 0 circundavam, como Ernst Bertram e Kurt Hildebrandt. 0 circulo de Stefan George cultuava os her6is do espirito: Dante, Shakespeare. Goethe e via em Nietzsche 0 profeta do novo homem (Nota do Organizador).

    CIRCULUS VITIOSUS 23

    Fauzia Assaad-Mikhail: Mas, se 0 complo e uma par6-dia, 0 criterio da sel~Ao nAo e, tambem, ele mesmo par6dico?

    Pierre Klossowski: Certamente, foi 0 que eu disse ... Fauzia Assaad-Mikhail: E trata-se da diferen,a essencial

    em rela,Ao ao circulo de George! Norman Palma: Permitam-me.retomar ao problema da

    autonomia. Para Nietzsche, ele s6 pode existir entre os senho-res, entre os que dominam a dimensAo apolinea. Por outro lado, voce lembrou que Nietzsche via na experiencia socia-lista uma possibilidade de atualiza,Ao de sua exigencia. Nao queria que os senhores fossem os comerciantes; adversario da

    domina~Ao capitalista, sera que nAo sonhava com uma nova forma de domina,ao, que estaria pr6xima do que se pode chamar de "despotismo oriental", em que nao ha proprie-dade privada dos meios de produ,Ao, mas 0 controle destes por uma casta?

    Pierre Klossowski: Sua hip6tese e interessante; e urn prolongamento possivel do que eu disse, mas que pode muito bern voltar-se contra 0 que eu disse ...

    Alfred Fabre-Luce: No limite, 0 pensamento de Nietzs-che desemboca na recusa de toda politica, ou pode desembo-car em uma politica qualquer. 0 que voce disse sobre 0 his-triAo, nessa perspectiva, parece-me muito profundo e impor-tante. NAo esque~amos, entretanto, que Nietzsche tinha uma constante preocupa~Ao com a nobreza. Outros viveram a mesma atitude de uma maneira que 0 teria desagradado bas-tante. A palavra "histriAo", aqui, poderia confundir.

    Pierre Klossowski: Sua posi,ao nos leva, em todo caso, para longe de todos os dados relativos ao que se nomeou, ate aqui, "agir politicamente"; e recriar urn comportamento novo de luta e de estrategia. Parece-me que cada vez mais - e aqui recorro a Gilles Deleuze - caminhamos no sentido de uma insurrei,Ao antipsiquiatrica (infelizmente esse termo tornou-se tao comum), quero dizer, de uma especie de gozo em se tomar "objeto de investiga,ao" da parte dos psiquia-tras ou dos medicos; e, precisamente, 0 caso patologico se sentira cada vez mais a vontade, na medida em que viver, em que se impuser, desmontando a investiga,ao institucional, em

    rela~Ao a qual ele se produz. Christian Descamps: Voce falou em "comportamento

    delirante" , tomando a expressAo em sentido elogioso em rela-

  • il! .. I:: I ,I,"i II, 1'1" II!!

    ,!

    ... I iii'I,!1 IIJj!

    24 PIERRE KLOSSOWSKI

    ~ao a atualidade; pense que, a partir do que acaba de dizer, podemos compreender a crltica da cena politica tradicional, atraves disso que foi, por longo tempo, entendido como urn comportamento delirante, que pode, sem duvida, ser formu-lade em termos de exigencia, e que e, talvez, uma visao radi-calmente nova em rela~ao ao que se chamava, ate entao, de politica.

    Pierre Klossowski: Sim, talvez ... Emprego 0 termo "de-lirante" porque todo mundo sabe 0 que significa.

    Jacques Derrida: Voce poderia precisar 0 que acaba de dizer sobre 0 gozo que se experimentaria tornando-se urn objeto de investiga~ao?

    Pierre Klossowski: Enquanto 0 conhecimento conservar seu prestigio em rela~ao ao simples fato de existir, pagaremos nosso tributo ao conhecimento, mas sob a condi~ao, precisa-mente, de desmonta-lo sempre. Trata-se, se voce preferir, de uma divisao de trabalho: vivemos, nao temos que justificar nossa existencia, a sociedade se encarregara disso.

    Jacques Derrida: Mas you colocar a respeito desta pala-vra, "desmontar", a mesma questao que a respeito de "paro-diar". Voce sugeriu que a parodia podia tornar-se politica, que era, enfim, uma desmontagem ...

    Pierre Klossowski: Na medida em que "politica" signi-fica, entao, "estrategia", "comportamento".

    Jacques Derrida: Mas, pode-se parodiar de qualquer maneira? Nao se deve distinguir duas parodias, uma, que sob o pretexto de desconcerta-la, faz 0 jogo da ordem politica estabelecida (que aprecia bastante urn certo tipo de parodia, e que nela encontra sua propria confirma~ao), e outra, uma parodia que pode, efetivamente, desconstruir a ordem politica estabelecida? Existe uma parodia que marca, de fato, 0 corpo politico, por oposi9ao a uma parodia que seria uma parodia de parodia, que operaria na superficie da ordem politica, que consistiria em tumultua-la ao inves de destrui-la?

    Pierre Klossowski: Creio que, a longo prazo, nada pode resistir a essa parodia.

    Jacques Derrida: Aiguem que queira, ejetivamente, transformar uma ordem politica pode confiar a longo prazo?

    Pierre Klossowski: 0 tempo necessario e fun9ao da pres-sao exercida e a pressao depende, conseqiientemente, de urn contagio.

    CIRCULUS VITIOSUS 25

    Jean-Franfois Lyotard: Para Nietzsche, a parodia que Derrida chama de "parodia de parodia" cQnsiste em uma especie de ressentimento em rela~ao ao poder; ela nao vai mais longe, e uma posi~ao de mediocridade ou de fraqueza nas intensidades. Para distingui-la da outra, creio que 0 crite-rie de principio esta ligado as intensidades: mas nao se pode determinar, antecipadamente, qual sera a efetividade da pa-rMia; e por isso que Nietzsche afirma ser necessario experi-mentadores e artistas, nao pessoas que possuam urn projeto e tentem realiza-lo, trata-se da velha politica, mas de pessoas que vao fazer coisas ever se existe uma intensidade que pro-duz efeitos.

    Norman Palma: Isso significa voltar a "Republica" de Platao, ou. seja, ao poder dos pensadores, dos homens de ciencia, etc., que deveriam fazer experiencias com os escra-V9S, mas num'tempo em que a moral dos escravos nao tinha amda a for~a que the foi dada, de acordo com Nietzsche, pelo cristianismo. .

    Jean-Franfois Lyotard: Nao foi, absolutamente, 0 que eu disse.

    Christian Descamps: Parece que, nos Estados Unidos, urn certo numero de pessoas, que nao sao, de forma alguma, filosofos, mas que estao antes ligadas ao movimento hippie, utilizam a figura nietzschiana, principalmente sua critica dos arriere-mondes, no interior de urn projeto que creem, em todo 0 caso, politico, e que, precisamente, funciona a partir de temas de derrisao.

    Gilles Deleuze: Essa observa~ao e muito importante. Penso na questao colocada por Derrida sobre as duas paro-dias. De uma certa maneira, isso aJluiurecentemente quando, em torno de discussoes sobre 0 que conviria chamar de uma

    "justi~a popular", surgiram duas correntes. Alguns em resu-mo disseram: a justi9a popular consiste em fazer bern 0 que a justi9a burguesa faz mal; portanto, instituimos urn tribunal paralelo, julgamos 0 mesmo caso; e urn tipo de parodia que se pode definir como a copia de uma institui~ao existente, com jurados, acusadores, advogados, testemunhas, mas que se pretende melhor e mais justa, mais rigorosa que 0 modelo. Mas outros colocaram 0 problema de maneira diferente, di-zendo que uma justi9a popular, se existir, nao procedera de modo algum atraves da forma do tribunal, porque nao sera

    SSCS:-:' ! t:.~::':; '~';

    ~

    -..oil

  • '[ iI ::i

    26 PIERRE KLOSSOWSKI

    uma copia, que pretenderia ser melhor que 0 modelo; sera uma parodia de outro tipo, que pretendera, num mesmo mo-mento, derrubar a copia e 0 modelo, portanto uma justi9a que nao passa mais pela forma do tribunal. A parodia eficaz, no sentido nietzschiano ou no sentido de Klossowski, nao pretende ser co pia de urn modelo, mas, em seu ato parodico, derruba, num mesmo movimento, modelo e copia. Urn exem-plo tipico, num dominic completamente diferente, e a pop art. Podemos sempre considera-Ia como uma copia de uma copia, de uma copia, etc., mas todos sentimos que se trata de outra coisa, que, precisamente - para falar como Pierre Klossowski - impele 0 simulacro tao longe, que produz ao mesmo tempo a derrubada da copia e do modelo. E este, parece-me, 0 crite-rio da parodia eficaz no sentido com que Nietzsche a entende. Ora, creio que, mesmo politicamente, sao coisas extrema-mente concretas, por exemplo, assim no nivel atual do que poderia ser, do que seria uma "justi~a".

    Jacques Derrida: So uma palavra: 0 valor de justi9a, que voce, entretanto, conservou nos dois casos de par6dia, nao faria parte do modelo?

    Gilles Deleuze: Certamente nao, nao e 0 mesmo valor, senao a parodia continuaria sendo uma c6pia.

    Jacques Derrida: E voce que ainda fala em justi9a. Bernard Pautrat: Nesse debate sobre a justi~a popular,

    duas vias, em suma, nos sao propostas, mas 0 proprio debate se situa, de fato, no seio de uma mesma corrente politica. 0 problema e saber onde reside a maior eficacia. Sob alguns aspectos, a justi9a que conserva urn certo numero de formas it espera da revoluCao, parece-me mais eficaz, mais efetiva ao nivel da intensidade, ao nivel do combate. Perdoem-me por me deter numa questao que so se coloca entre aliados politi-cos, mas gostaria de dizer que urn seqiiestro, por exemplo, nao e uma parodia e que sua eficacia provem justamente do fato de nao ser apenas uma parodia, mas sim uma tomada de poder localizada, temporaria. Ha, talvez ai, uma copia de poder que se instala, mas creio que esta copia de urn modele tern uma certa eficacia durante urn certo periodo.

    Gilles Deleuze: Voce diz que urn seqiiestro nao e uma par6dia. Nao e uma par6dia no sentido comum, mas partia-mos todos do sentido que Klossowski da it palavra e que nao e, absolutamente, 0 sentido comum. ,No sentido de Klossowski,

    CIRCULUS VITIOSUS 27

    o seqiiestro e, com toda certeza, urn ato eminentemente paro-dico. Jean-Luc Godard, que e urn pouco nietzschiano, tam-bern mostra isso em "Tout va bien".

    Gerard Kaleka: Pode-se admitir uma psiquiatria "popu-lar", que fosse talvez parodia da psiquiatria atual e que fosse outra coisa?

    Pierre Klossowski: Isto significaria de fato misturar os pianos. Ou a psiquiatria desaparece, ou permanece; para suprimir a psiquiatria so pode haver uma antipsiquiatria. Nao digo como, nao e meu proposito agora,mas e assim que vejo as coisas.

    Eric Clemens: Gostaria de fazer uma observa9ao a Deleuze: ele se esqueceu do museu, a proposito da pop art, e remeto esse esquecimento a seu parti-pris no problema da jus-ti9a popular, parti-pris que nao e, evidentemente, nietzschia-no, mas que entrava Nietzsche.

    Hughes Labrusse: Estamos em plena parodia, e a serie dade do debate me parece comprometida. Afirmar que Nietzsche seria urn adepto da pop art nao tern sentido algum. Por outro lado, Pautrat evoca 0 socialismo. Nos nos haviamos desviado antes para a n09aO de "justi9a popular". E uma uti liza9aO muito suspeita de Nietzsche, sobretudo se pensarmos no que escreveu sobre 0 socialismo em sua forma mais gre garia ...

    Jacques Derrida: 0 que Nietzsche pensa do socialismo e problematico ...

    Hughes Labrusse: Entao, coloquemos 0 problema! Gilles Deleuze: 0 problema da justi9a e totalmente

    nietzschiano, percorre toda a sua obra. Pierre Boudot: Em todo caso, Deleuze permanece dentro

    da tematica nietzschiana quando fala de uma estrutura que destruiria ao mesmo tempo a copia e 0 modelo. E isto que Klossowski nomeia com uma palavra que me parece muito importante: "insurrei9aO". Na sociedade totalmente unifor-mizada, alguns teriam a possibilidade de se afirmar, de "sur-gir", de desmontar, conseqiientemente, pelo simples fato de serem eles mesmos. Mas percebo ai uma ambigiiidade, que e de algum modo revelada pelo que disse Deleuze, pois recusar a urn so tempo a copia e 0 modelo, e recusar a exemplaridade, mesmo se involuntaria ou "natural".

    Pierre Klossowski: Certamente. Mas nao creio, absolu-

  • 28 PIERRE KLOSSOWSKI

    tamente, que se p~r milagre 0 projeto se realizasse, Nietzsche seria tentado aver ai urn novo modelo. Ao contrario, ele transformaria em derrisao esses produtos ideais, esses tipos superiores, e nada disso resistiria urn segundo a seus sarcas-mos. E p~r is so que se trata de algo que recua ao infinito. Tal e, justamente, a virtude do delirio.

    Jean-Noel Vuarnet: Creio que poderiamos colocar aqui a questao da tese e do mito, 0 que levaria, talvez, a distinguir entre teses que sao contrateses, isto e, que visam a uma mu-dan9a imediatamente realizavel, e, p~r outro lado, a experi-menta9ao de mitos ou de fic90es reguladoras. Existe ai toda uma dimensao de utopia que excede 0 universe da tese e que esta presente mesmo na obra de Marx.

    Claude Vivien: Temo que percamos de vista 0 que era 0 ponto de partida de Pierre Klossowski, que ele nomeou a dis-solu9ao do principio de identidade. Negligenciando as conse-qiiencias desta dissolu9ao, que podem ser, as vezes, conse-qiiencias praticas, lan9amo-nos em uma serie de equivocos talvez atuais, mas que nao corresponderiam nem ao modo pelo qual Nietzsche coloca certos problemas, nem, sobre-tudo, aquele pelo qual Klossowski os recoloca ou os trans-forma. Quando falamos de insurrei9ao - enos textos de Klossowski trata-se de urn tipo de insurrei9ao bastante parti-cular, isto e, de for9as incontrolaveis no interior do proprio sujeito - as intensidades sao, justamente, 0 que dissolve 0 principio de identidade, na medida em que 0 sujeito nao pode, em caso algum, ser responsavel p~r isso. Foi dito ha pouco que, em urn universe mediocrizado, so alguns indivi-duos poderiam ser 0 que sao; mas, justamente estes, serao os que nao terao identidade. Arruinar 0 principio de identidade e, entao, ceder terreno a for9as que nao serao mais economi-zaveis - no sentido de Bataille - que serao puras for9as de gasto ou de excedente, mas de modo algum recuperaveis ...

    Hughes Labrusse: E jamais entregues ao frenesi da efi-cacia a qualquer pre90.

    Claude Vivien: E 0 contrario! Menos se e recuperavel, mais se e eficaz.

    Gilles Deleuze: Certamente a n09ao de perda de identi-dade e importante; e, quanto a esse ponto, devemos muito a Klossowski, e hit muito tempo. Mas hoje 0 que Klossowski desenvolve e a n09110 de complo. Sem duvida, ela esta ligada

    CIRCULUS VITIOSUS 29

    a precedente, mas nao e a mesma coisa. Gostaria de resumir uma parte da discussao que acaba de acontecer: Klossowski nos trazia a n09ao de complo; Alfred Fabre-Luce dizia, basi-camente: "mas, se ha complo, pode ter urn sentido politico atual?"; quanto a mim, tentava dizer: "mas sim, certamente, vivemos no interior dele, vivemos no interior deste proble-rna", e Labrusse intervinha para dizer que se trata de urn complo, que nao se deve falar que ele mesmo fica estupefato. Ha urn tema que Klossowski deslindou, creio, ao mesrno tempo que 0 da perda de identidade; eo tema da singularida-de, ja que as singularidades sao, literalmente, nao-identida-des. Urn complo, se compreendermos bern 0 pensamento de Klossowski, e uma comunidade de singularidades. E 0 ponto em que 0 problema se torna politico (em urn sentido novo ou velho, pouco importa) e: como conceber uma comunidade de singularidades? Ai esta urn tema caro a Klossowski: ele 0 per-seguiu com Fourier, Sade, ele 0 expos em La Monnaie Vi-vante'. 0 que se chama de sociedade e urna comunidade de regularidades ou, a rigor, urn certo processo seletivo que re-tern singularidades bern escolhidas e as regulariza. Geralmente ela escolhe, para falar em linguagem psiquiatrica, singulari-dades paranoicas, porque isto se ajusta ao funcionamentode uma sociedade. Mas urn complo seria uma comunidade de singularidades de urn outro tipo, que nao se deixariam regula-rizar, que entrariam em conexoes novas, que nesse sentido seriam revolucionarias. Parece-me que Pierre Klossowski fez avan90s nessa dire9ao e, a menos que traia seu pensamento, creio que 0 problema que nos colocou hoje consiste realmente em saber se e possivel conceber liames entre singularidades, cujo criterio seria finalmente 0 eterno retorno, implicando a perda de identidades, e, entretanto, nao se remetendo a ne-nhum individualismo, ao contrario, formando sociedades, grupos.

    Jean-Noel Vuarnet: Parece-me que, para Klossowski, todo pensamento revolucionario inclui algo como uma rela-9ao com 0 mitico ou com 0 metaforico. Sera que ele admitiria que uma par6dia e algo que cria fic90es reguladoras assirn

    2 Pierre Klossowski e autor de varias ensaios e obras litenuias. La Monnaie Vivante foi publicada pelas edi~Oes Eric Losfeld (N. do 0.).

  • ~IIII~ !,,:.I!!III II.'. 'I" I :fi 30 PIERRE KLOSSOWSKI como teses, numa especie de impureza, de balanceamento continuo entre a tese e a fic~lio?

    Pierre Klossowski: Podemos formular a questlio dessa maneira, se se tratar, realmente, de uma oscila9lio continua.

    Jean-Marie Benoist: Pergunto-me se a dificuldade de articular uma politica de Nietzsche a uma politica de Marx nlio provem do fato de que H!em de maneira diferente 0 livro oitavo da Republica de Platlio e, em particular, a parte que concerne it decaida da classe dos timocratas ate a tirania. Enquanto Marx iria ate 0 fim desse processo, mas encontran-do ai a dinamica, a dialetica das contradi~oes entre as classes, o que Platao nao colocara, ha, em Nietzsche, ao contrmo, um sobressalto que seria 0 complo e 0 reconduziria ao segun-do momento, que e 0 do timocrata e corresponde it vontade de potencia. De um lado, em Marx, a dinamica de classes; de outro, em Nietzsche, uma estatica de castas, ambos haurindo suas fontes, ainda que em decalagem, no livro oitavo da Republica, de Platao, mais do que no recurso a um modelo oriental de casta.

    Pierre Klossowski: Sim, mas penso que, precisamente, 0 circulo vicioso, em sua versao nietzschiana, e a maneira pela qual Nietzsche renova esta n09ao, juntando Platlio a Manu - isso tudo perdendo aqui todo peso cultural - gra~as it obsesslio pelo eterno retorno, que e 0 desdobramento de tudo que sei ou de tudo que fa90 e de tudo

  • "

    32 DANKOGRLIC

    mundo, se nao e, na arte enquanto jogo, nada senao 0 indice da ordem cosmica das coisas, entao nos encontramos no Iimiar de urn dominic que nao podera mais ser qualificado de "estetico". A ideia do eterno retorno, esse esforco artistico para pensar a estrutura artistica do mundo, abole a oposiCao entre 0 passado e 0 futuro, ou, mais exatamente, ao conferir ao passado a marca de urn porvir aberto, potencial, da, simul-taneamente, ao futuro a permanencia, a solidez, a imutabiIi-dade do passado. Entretanto, 0 eterno retorno do mesmo nao e somente uma nova dimensao do tempo, da existencia dos objetos reais e de sua determinacao espacial. Toda a coisa e e nao e nesse lugar, todo lugar desaparece e reaparece de novo, a alma supera e nega toda Iimitacao espacial assim como a temporalidade ordinaria.

    "0 minha alma, ensinei-te a dizer hoje como outrora e anti-gamente e sobre todo aqui, ali e acolil, dan~ar tua roda'."

    Em uma tal concepcao, fundada ontologicamente, a arte se despoja de todas as ideias e categorias que nao cessam de obscurecer sua essencia. Pois, para Nietzsche, 0 homem des-natura 0 mundo precisamente ao tentar apreende-Io nos con-ceitos ao edificar e construir ininterruptamente categorias quaisquer, que em seguida impoe a ele; assim imagina a estru-tura das coisas e predetermina os fundamentos da realidade inteira e da totalidade de sua experiencia. Ii por isso que 0 homem, na medida em que conhece todas as coisas de uma maneira determinada por esse sistema de categorias e em que se conforma excIusivamente a ele, separa-se da realidade e nao deixa de tornar-se estranho a ela com todo ate teorico desse genero. Somente quando 0 mundo e 0 homem juntos se fundirem numa unidade, somente quando "ontologia", "antropologia" e "estetica" se puserem a falar a mesma Iin-guagem - isto e, apenas quando 0 ser do ente apresentar-se tambem ao homem como 0 eterno retorno do mesmo - 0 homem se reencontrarti a si proprio ao mesmo tempo em que se ultrapassarti enquanto homem. Ii so entao que atravessara a ponte, e so entao que se podera elevar acima das coisas e

    2 Assim fatou Zaratustra, III, Do Grande Nostalgia.

    NIETZSCHE E 0 ETERNO RETORNO ... 33

    dos abismos e vencer 0 "espirito do peso", dancar sua roda, ser artista, jogador animado por uma eXaltacao dionisiaca, e so entao que se podera Iivrar do espirito de vinganca - pois, de quem e por que se vingaria no eterno retorno? Ele poderia, portanto, ser aquele que se eleva acima de todas as coisas, po-deria ser 0 alem-do-homem. Ai esta por que "alem-do-ho-mem" e 0 nome dado a urn ser humane que responderia a seu ser, isto e, ao eterno retorno do mesmo.

    Ora, 0 alem-do-homem de Nietzsche, p~r sua determi-naCao fundamental, nao esta, entretanto, em contradicao com 0 eterno retorno do mesmo? Atraves da ideia do alem-do-homem, Nietzsche pensa, de fato, abolir 0 passado, ja que 0 alem-do-homem e por definicao urn ser que vive no inacabado, na duraCao infinita do tempo, ele e a "flecha do porvir", ele e 0 perpetuo colocar em condiCao para 0 ainda nao-percebido, para 0 nao-real, 0 nao-existente, e portanto, tambem para 0 nao-reiteravel. 0 alem-do-homem se despoja do passado, da tradiCao, enquanto, por outro lado, pelo eterno retorno do mesmo, ja se anuncia no passado a possibi-Iidade de ser tambem para 0 futuro, de forma que 0 passado nao e aboIido, mas antes confirmado, no sentido em que se repete. Mais de uma vez, 0 proprio Nietzsche sublinha essa aparente contradiCao - aparente em relaCao ao que para Nietzsche e 0 essencial - em particular quando identifica 0 eterno retorno com 0 tempo empirico, ou em geral a realida-de empirica: por exemplo, aos elementos cuja soma e finita, e que por essa razao vern sempre a se repetir, apos urn tempo determinado. Nesse sentido, a tese do eterno retorno e verda-deiramente insustentavel - mas longe de ter uma realidade empirica, essa tese tern uma realidade transcendental especifi-camente nietzschiana. Com efeito, 0 tempo nao e pensado como urn tempo concreto historico, ou ainda menos como tempo fisico, mas como tempo essencial, como a temporali-dade do tempo, como 0 que torna possivel 0 tempo empirico, superando-o. Pois tudo 0 que se produz no tempo nao e ne-cessariamente tempo real, tudo 0 que se produz nao tern a dignidade do que determina 0 tempo como tempo, do que torna possivel 0 tempo ao conferir-Ihe sentido e faz dele 0 tempo humano. 0 acidental no tempo, que constitui simulta-neamente 0 nao-tempo no tempo e, com efeito, destruido no alem-do-homem, mas apenas para que 0 tempo se manifeste

  • I,', I ! ~ Iii :.1 I,:, 34 DANKOGRLIC mais claramente em sua pr6pria temporalidade, para que 0 ' eterno artistico possa viver, para que 0 tempo, naquilo em que e tempo para 0 homem enquanto homem possivel, isto e, para 0 alem-do-homem, seja entao abo lido em seu falso pas-sado, mas tam bern em seu futuro mentiroso - por exemplo, o do "ultimo homem" - e para que seja reconhecido, em virtude de seu passado, de seu presente e de seu futuro reais, como 0 eterno retorno do mesmo. Pois como os "ultimos homens", por exemp!o - essa impressionante e assustadora visao do "porvir", onde todo mundo pensa igual, e onde aquele que pensa de modo diferente entra voluntariamente no asilo de alienados - poderiam, ate mesmo, ser os Ii/timos, se tudo fosse urn eterno retorno do mesmo? As palavras "os ultimos" sublinham que "depois" nao ha mais nada, de modo que nada tampouco pode se repetir. Mas os ultimos homens sao urn falso porvir, urn porvir desfigurado, doentio, desumano, esse porvir que nao retorna mais, que deve desa-parecer definitivamente. Somente retorna 0 que foi uma vez, o que e e 0 que sera criado pelo alem-do-homem e para 0 alerrt-do-homem, aquele que superou 0 homem "empirico", o homem medio, 0 homem inclinado it mentira, e que enquanto artista vivera eternamente no eterno retorno. Assim nao ha contradicao essencial entre a tese do alem-do-homem e a do eterno retorno.

    o alem-do-homem e urn artista que, mesmo ap6s a morte de Deus, cria ex nihilo seu pr6prio ser e seu universo e que se diverte com todas as coisas. Homem poderoso, e livre para dominar a necessidade do mundo assumindo-a, apro-priando-se dela e confirmando-a, porque diz alegremente Sim it vida, porque "ama 0 destino" como eterno retorno. 0 alem-do-homem apenas pode suportar 0 mundo porque e artista; longe de ser despedacado pelo eterno retorno, experi-menta, ao contrario, intuitivamente, a estrutura do cosmos, esse eterno jogo a urn s6 tempo tragico e alegre, como a reali-dade natural de sua pr6pria natureza. Pois 0 artista, contanto que trabalhe realmente como artista e para a eternidade, comunica sempre 0 intemporal (empirico) e, se se certificar de que para ele ou para 0 mundo sua obra viveu apenas por urn tempo, dirao entao que nao e uma obra de arte que foi criada, mas uma pseudo-obra de arte, e que tanto 0 artista quanto 0 mundo se enganaram ao sup~r isso, pois a verda-

    NIETZSCHE E 0 ETERNO RETORNO.,. 3S

    deira arte, ou mais simplesmente a arte, jamais pode perecer; seu tempo nao passa jamais'.

    Se a arte e 0 eterno retorno, 0 elemento artistico na arte

    3 0 que DAo signifiea que a arte nilo represente tambern, empiricamente, 0 pereei vel, e mesmo instantes de dura~a.o muito curta, mas ela 0 representa Da eterni-dade, ou ainda, como se diz habitualmente, ela 0 "imortaliza" . Basta evocar. por exemplo, 0 sentimento que se experimenta di2.nte das figuras de Michelangelo no tumulo dos Medici, em Floren~a. 0 despertar. esse instante (mice fixado Da pedra para a eternidade, OU a Capela Sistina, esse simbolo da liberdade eterna do artista. pelo qual 0 mestre se vinga de sua servidio cotidiana, peio qual fala com a eioql1encia de urn profeta, enquanto se cala no mundo real das intrigas e das futi-lidades. Uma tal arte e urn instante de eternidade que nAo cessamos de reviver novamente, pois a cada dia e sem cessar, ele retorna como obra e como vivido. Ele comunica com qualquer coisa de imperecivel e nos "eleva" tambem neste mundo, libera-nos de tudo 0 Que e simplesmente cotidiano, purifica-nos da reali-dade banal. E por isto que Elie Faure podia, com razlo, escrever sua Hist6ria da Arte: "NAo vemos nada senAo 0 homem diante de seu destino. Nilo sabemos mais nada da vida Que nos circunda" (cf. t. 3, p. 79). De resto, os maiores poetas disseram, tambem eles, que esse instante fora da his-t6ria, eterno, esse instante mais intimo, pertence a ess!ncia da arte poetica, a essa lira que ninguem pode receber como urn dom, nem mesmo no instante mais ele-vado da hist6ria, nem a mulher, nem a mAe, nem 0 amigo, pois todo reallhe e estranho: Mon lime. Fen Jais don a I'Octobre et au Mai, mais jamais ne donnerai ma lyre; Je ne la cede a des mains etrangeres, ni a I'ami, ni a 10 mere, pas meme a I'epouse.

    Serguei Jessenin (Minha alma, dou-a a outubro e a maio, mas jamais darei minha lira Eu nao a cedo a mAos estranhas nem ao amigo, nem a mAe, nem mesmo a esposa.) Ai esta 0 instante da comunica~Ao com 0 imperecivel, com 0 que nao tern mais seu tempo no tempo real, com 0 que nAo tern seu espa~o no espa~o cotidiano. [vres d'espace e du firmament etoile moururent Byron et Lamartine, Victor Hugo et Shelley. Et I'espace demeura tel qu'U Jut.

    Paul Fort (Inebriados de espa~o e do firmamento estrelado morreram Byron e Lamartine, Victor Hugo e Shelley. E 0 espa~o permaneceu tal como era.) Ou ainda: Voici la nostalgie: elire so demeure dans Ie flUX et Ie reflux et n'avoir point de patrie dans Ie temps. Et voic; les voeux: des dialogues silencieux d'heures quotidiennes avec {'etemite.

    R. M. Rilke, Premiers Poemes

  • I~ II:",' :1

    36 DANKOGRLIC

    nao tern, portanto, historia'; semelhante a tenix, ela renasce a cada dia de suas cinzas, para sempre retornar de novo a si mesma.

    Mas essa dimensao do eterno, do imperecivel e tambem, em certo sentido, do transcendental, esse estado de embria-guez dionisiaca que nos eleva acima da fria aprecia~ao racio-nal da realidade, e inclusive acima da propria realidade, pa-rece estar em contradi~ao absoluta com os esfor~os constan-tes de Nietzsche, radicalmente contra toda ideia de urn alem. Para urn filosofo idealista, nao e muito dificil justificar e fun-dar essa eleva~ao ao eterno, ja que sua doutrina repousa sobre a ideia de transcendencia. Mas como "permanecer fiel a Terra", como nao fugir diante da realidade e nao reduzir a vida a uma sombra da verdadeira vida, a vida transcendental das ideias, justificando sobre 0 terreno de a~ao que the e 0 mais especifico, com a quintessencia de todas as suas preocu-

    pa~oes, isto e, com a arte, a supera~ao da realidade natural? Sera que Nietzsche nao reintroduz em sua doutrina, por urn desvio, 0 cristianismo e a transcendencia metafisica que ele

    (Eis a nostalgia: eleger sua morada no fluxa e no refluxo e Mo mais ter plltria no tempo. E eis os anseios: dh'l.logos silenciosos de hOTas cotidianas com a eternidade.)

    4 Quando dizemos que 0 elemento artistico na arte "nAo tern hist6ria". nlio pensa-mos, absolutamente. negar a evolu~ilo hist6rica de certos generos e estilos artis-ticos - do apolineo, poderiamos dizer com Nietzsche - ou neg: as transforma-cOes das tecnicas da criaclo artistica, e mesmo da tematica das preocupacOes do artista. Os diversos generos de teeniea, ou a orientacao "objetiva" divergente de certos grupes de artistas no seio de epocas determinadas oAo importam absoluta-mente para saber se hA ou nAo uma hist6ria da essencia artistica - ou, segundo Nietzsche, do dionisiaco. EntAo, por que somos, ainda hoje e de alguma forma, fascinados por essa venus ou por esse Apolo, pelos templos gregos, por vasos, pela arte do continente negro ou dos etruscos, dos egipcios ou de Bizincio, por que admiramos a for~a de Homero ou de S6fodes? A arte, desde esses tempos longinquos, nAo continuou a se desenvolver? NAo fez progressos enquanto arte, nAo teve, portanto, sua hist6ria, ou tudo isso, tudo 0 que, em realidade, se desen-volve, tudo 0 que nasce e desaparece nAo e para a arte apenas algo acidental? Hegel, em sua tentativa de conceber a evolu~Ao hist6rica do que e essencialmente artistico na arte. nAo devia chegar a mais convincente condusAo, pois uma tal

    evolu~Ao supOe tanto urn ideal em direc;Ao ao qual a arte se desenvolve, em direc;a.o ao qual progride, quanto a realiza~Ao desse ideal- nAc devia chegar a seguinte condusao bern conhecida, de que, sob todos esses aspectos, a arte e e permanece para n6s, quanto a seu supremo destino, uma realidade passada?" (Hegel, Li~"es de Estetica). Tentei esdarecer este problema: a arte tern uma hist6ria?, e encon-trar-Ihe uma resposta original em meu ensaio Kunstgeschichte und Kunst (Hist6-ria da Arte e Arte), (Kunst und Philosophie, Zagreb, 1965).

    NIETZSCHE E 0 ETERNO RETORNO ... 37

    expulsara tao apaixonadamente? Nao se trata, de novo -mesmo que sob uma forma diferente - do velho problema de Nietzsche: como elevar a arte acima da realidade cotidiana sem edificar, ao mesmo tempo, urn novo mundo transcen-dental que ja haviamos, entretanto, abandonado com as pri-meiras pressuposi~oes de toda sua filosofia? K. E. Gilbert e H. Kuhn, em sua obra A History of Esthetics, Ian~aram-se Ii

    resolu~ao dessa contradi~ao em Nietzsche, introduzindo 0 conceito de "transcendencia imanente" (cf. p. 472), mas parece-me que dessa maneira limitaram-se a fixar terminolo-gicamente urn paradoxo, sem ter-lhe encontrado resposta.

    De minha parte, penso que essa velha questao de Nietzs-che encontra justamente sua solu~ao particular no "domi-nio" da arte e, especificamente, em sua concep~ao da essencia da arte como jogo. 0 jogo e, com efeito, algo real, efetivo, dado aqui mesmo, ao mesmo tempo em que se eleva acima do mundo real, tendo seu proprio logos, seu proprio tempo e seu proprio espa~o.

    o jogo ritmico que esta contido na quintessencia do mundo, em seus fundamentos, e tam bern urn jogo eterno, 0 jogo do artista que renuncia a todo elemento empirico coti-diano. Esse extase do jogo artistico, essa embriaguez dionisiaca sagrada, todavia permanece, ao mesmo tempo e por mais longe que se possa elevar acima do real e supera-lo, como 0 eterno retorno do mesmo, como esse "trabalho de Si-sifo", 0 fundamento ontologico de todo real, 0 ser de todo ente.

    o jogo como inspira~ao artistica, como jogo criador do espirito, que obriga todas as coisas a aparecerem em sua pro-pria forma, isto e, na forma artistica, que tolera que nos sejam "caras mesmo as igrejas e os tumulos dos deuses", que riam e se rejubilem com esses "memoriais dos que outrora caluniaram 0 mundo", esse jogo que e ao mesmo tempo apelo apaixonado do eterno e roda ligeira, que e urn "jogo de dados com os deuses", e que nos Iiberta do espirito do peso _ ultrapassa toda especie de sofrimento e a vida cotidiana do homem. Nessa apologia artistica da arte, Nietzsche em ne-nhum momento nomeia, explicitis verbis, a arte OU a estetica. Em nenhuma parte de Zaratustra encontramos essas palavras e entretanto e justamente aqui - por exemplo, em quase toda a terceira parte que se acha esbo~ada - ideal e engenho-

  • lii!!JI

    :~' 'I:

    38 DANKOGRLlC

    samente a imagem mais profunda da cria~ilo artistica. Nilo silo palavras sobre a atividade criadora, e a pr6pria cria~ilo que exprime 0 "sentido do criar".

    "Se a1gum dia a mim veio urn sopro do sopro criador e dessa celeste necessidade que ainda for~a acasos a dan~ar rodas de astros; Se urn dia ri do riso do reUlmpago criador, a que sucede 0 longo trovao do ato, estrondoso mas obediente; Se urn dia na mesa dos deuses da Terra, corn os deuses joguei dados, e tremia a Terra, e se abria e cuspia rios de fogo; Pois uma mesa de deuses e a Terra, estremecendo corn novas palavras criadonis, e jogos de deuses; 6! Como nilo deveria sentir ardor pela eternidade, e com 0 nupcial anel dos aneis - 0 anel do retorno 1 Ainda nilo encontrei mulher de que quisesse filhos, senilo desta mulher que amo; pois te amo, 6 Eternidade! Pois eu te amo, 6 Eternidade!'"

    Se, portanto, vivemos a arte como artistas, como nilo teriamos a nostalgia da eternidade, como nilo desejariamos 0 eterno retorno do mesmo? A (mica mulher que ele ama, essa eternidade que e 0 "aneI dos aneis"; 0 eterno retorno do mes-mo e para ele esse sopro do espirito criador, que enquanto arte e jogo. S6 0 jogo e eterno e pode verdadeiramente ser amado como essa eternidade. Qualquer outra eternidade pen-sada como estagna~ilo real ou iIusilo ideal da metatisica crista sera objeto da nega~ilo, do 6dio, e nilo do amor.

    o eterno retorno do mesmo, que se tornou possivel pela morte de Deus e pelo alem-do-homem enquanto encarna~ilo da vontade de potencia, portanto, enquanto arte, e identico ao jogo. 0 jogo - por oposi~ilo ao trabalho (e Nietzsche de-clarou em urn de seus primeiros escritos intitulado 0 Estado Grego, que "0 trabalho e vergonhoso") - nilo pode ter outro objetivo que nilo ele mesmo; 0 jogo nilo e jogo se nilo e livre, se e serviI, se serve a urn tim exterior; se deve favorecer a alguma outra coisa alem de si mesmo, se em geral se joga por causa e em nome de alguma outra coisa. A gratuidade do jogo e seu verdadeiro objetivo. Ele e em si e para si uma eter-na impulsilo criadora, e 0 espirito inventivo, a liberdade das

    S Nietzsche, Assim falou Zaratustra, III, "Os Sete Selos".

    NIETZSCHE E 0 ETERNO RETORNO ... 39

    combina~oes, a imagina~ilo criadora. 0 jogo e como a arte: ele tern urn tim pelo qual nilo e transcendido, seu tempo e seu

    espa~o silo apenas pelo e para 0 jogo, ele vive fora do que se nomeia a "hist6ria real". 0 jogo, em sua inocencia, se cria e se destr6i constantemente a si mesmo, recome~a sem tregua, o jogo e 0 eterno retorno.

    Kant, ja ern sua tese sobre 0 prazer desinteressado, e tambem ern sua tese sobre 0 "jogo livre" - enquanto har-monia de nossas faculdades, harmonia da imagina~ao sensivel e da inteligencia - sublinhou a significa~ilo do jogo para 0 elemento artistico: "A espontaneidade no jogo das faculda-des de conhecer ( ... ) faz do conceito pensado 0 mediador da conexilo dos dominios dos conceitos da natureza com 0 con-ceito de liberdade." (Critica do Juizo, de Gruyter, BerIim, 1968, t. V, p. 197.)

    Schiller identificou precisamente esse desinteresse espe-cifico' do instinto do jogo, que designa como 0 fundamento de sua estetica. "0 homem, quando joga, pertence somente a si pr6prio, e s6 joga quando pertence a si proprio." Spencer, por sua vez, identificou de varias maneiras a arte com 0 jogo, e na verdade, ate com uma especie de luxo, de transborda-mento de for~as, de vitalidade, que tern necessidade de se des-pender sem outro objetivo que 0 de se despender. Segundo ele, so 0 inutiI e belo'.

    Em seu celebre livro Homo Ludens, J. Huizinga propos uma defini~ilo quase classica do jogo', ao escrever: "Consi-

    6 "Especifico" porque - como Heidegger justamente sublinhou (Nietzsche. t. 1, p. 102) na interpret~ilo das ideias de Kant, que nem Nietzsche. nem Schopenhauer compreenderam COrretamente .- 0 juizo de g05tO contem, entretanto, urn certo interesse. embora exclusivamente pelo estetico puro num objeto determinado, e nilo por qua/quer outra coisa, nem mesmo por sua existencia real. N6s s6 pode-mos mostrar interesse verdadeiro pelo estetico, enos concentrar no puro juizo de gosto quando nos desembara~amos de qualquer interesse pragmatico.

    7 Assim, Spencer nio considera belos os .6rga.os animais que sio necessarios ou uteis ao organismo. 0 brilho do pelo e da plumagern e belo porque nio e utH. As torres e as seteiras dos castelos fortificados foram, provavelrnente, desinteressantes e mesrno feias para os hornens da Idade Media, porque estes sabiam exatarnente para que serviam. Para n6s, elas se tornararn ornamentos porque deixaram de ser uteis, porque perderam seu carater funcional primitivo.

    S No que concerne ao conceito de jogo, cf. tambent E. Fink, Le Jeu comme Symbo/e du Monde, Paris, 1966; Roger Caillois, Les Jeuxet les Hommes, Paris, 1958. Nu-rna serie de conferencias e de escritos, Kostas Axelos cornunicou suas reflexOes sobre 0 jogo, urn de seus ternas mais irnportantes.

  • f " ... ;i 'j,1 ,; ,I, , I

    40 DANKOGRLIC

    derado em sua forma, pode-se, portanto, em poucas palavras, definir 0 jogo como uma a~ao livre que e experimentada como 'nao querendo dizer isto' e como algo que se mantem fora da vida habitual, apropriando-se entretanto inteiramente do jogador, uma a~ao que nao esta ligada a nenhum interesse material e nao traz nenhum proveito, que se desenrola no interior de urn tempo especial determinado e de urn espa~o especial determinado, que se desenrola numa ordem e segun-do regras definidas, e da origem a associa~oes que por sua vez apreciam envolver-se em misterio e que por meio de disfarces, apresentam-se como diferentes das do mundo habitual"'.

    Para Huizinga - cujo ponto de vista geral nao e, no entanto, absolutamente comparavel ao de Nietzsche - 0 jogo e, entao, uma "a~ao" se desenrolando "num tempo de-terminado", uma a~ao que reconhecemos como nao tendo esse sentido que pretende, em uma palavra, uma a~ao que se envolve em misterio e que ostenta sua posi~ao de exce~ao em

    rela~ao ao "mundo habitual". Essa ideia parece ter side pen-sada, ate 0 limite, de maneira conseqiiente nas teses de Nietzsche sobre 0 jogo, sobre a arte e 0 eterno retorno. 0 jogo e sobretudo a~ao, portanto concerne a essa dimensao humana em que 0 homem, por oposi~ao a passividade - pela qual permaneceria 0 joguete de for~as superiores - torna-se somente homem. Entretanto, em que sentido 0 tempo do jogo e determinado? Emque medida 0 jogo tern 0 carater de algo limitado? Na medida, precisamente, em que e livre do tempo dito habitual, em que vive em seu pr6prio tempo e nele se desdobra, urn tempo que e urn "tempo de exce~ao" - uma

    "exce~ao" em face do mundo habitual, 0 mundo dos interes-ses materiais e de utilidade material, 0 mundo do tempo fun-cional, do tempo em que tudo e concebido racionalmente, em que nao ha "misterio" (e 0 eterno retorno nao seria tambem urn misterio?) - em rela~ao ao tempo em que todo mundo vive apressado e em que ninguem tern mais tempo para 0 tempo verdadeiro, isto e, para 0 jogo. Limita~ao diante do outro desenrolar do tempo, aquele a que chamam de real e cotidiano, de urn tempo que nao se repete mais, mas "evolui" sem cessar no plano tecnico e social, em dire~ao a urn tempo detertninado com exatidao: em dire~ao ao paraiso no ceu ou

    9 J. Huizinga, Homo Ludens. Hamburgo, 1956, p. 20.

    NIETZSCHE E 0 ETERNO RETORNO ... 41

    nesta Terra. 0 carater de ficcao do jogo ficticio nao reside mais em seu enraizamento num alem, nao mais no fato de que e uma forma intelectual, no sentido em que se trata de uma existencia situada numa esfera irreal, inteligivel, numa esfera do puro pensamento. 0 jogo s6 e irreal e "ficticio" na medida em que se concebe como mundo "verdadeiro", como unico mundo real este aqui, 0 trabalho; desde que se com-preenda como a verdadeira vida a preocupacao cotidiana com as necessidades da vida de todo 0 dia, e nao essa "vida de exce~ao", a vida do artista. Qual sera 0 mundo mais hu-mano, e conseqiientemente mais real, 0 mundo do jogo ou 0 mundo do trabalho, 0 mundo da obsessao e das paixoes ou 0 mundo da fria rentabilidade, 0 mundo da plenitude da vida e da alegria ou 0 mundo da obediencia as normas morais, 0 mundo da embriaguez, do extase, ou 0 mundo da miseria, dos sofrimentos da ascese?

    Dionisio ou 0 Crucificado?, interroga-se Nietzsche, pouco tempo antes de perder-se na noite da aliena~ao do espi-rito. A arte ou a moral? 0 eterno retorno do mesmo ou 0 "progresso" penoso na hist6ria real? Questoes fundamentais que Nietzsche resolve sempre em favor do primeiro termo da alternativa.

    o eterno jogo do artista; 0 eterno retorno da arte s6 poderia encontrar sua expressao adequada no mundo artis-tico. Zaratustra exprime essa ideia no instante de sua mais alta inspira~ao:

    " ... Eu mesmo, perten90 as causas do eterno retorno. Retornarei com este Sol e esta Terra, como esta aguia e esta serpente - nao para uma vida nova ou uma vida melhor, ou uma vida semelhante; - eternamente retornarei para esta mesma e identica vida, no que e maior e tambem no que e menor, para de novo ensinar 0 retorno eterno de todas as coisas, - para de novo dizer a palavra do grande meio-dia da Terra e do homeIfl, para de novo anunciar aos homens 0 a1em-do-homem"lO.

    o artista continuamente retorna a sua pr6pria vida de artista, e olha com olhos de artista tanto as "pequenas como

    10 Assim falou Zaratustra, III, "0 Convalescente". 2.

  • I~'I :; ) ~'il 42 DANKOGRLIC

    as grandes coisas" - pois para ele tudo e objeto de arte - e anuncia assim 0 eterno retorno do mesmo e 0 aU:m-do-ho-memo 0 jogo do artista, seu eterno retorno como essencia e unica possibilidade de vida, eo alem-do-homem, como unica existencia autentica no mundo inautentico dos ultimos ho-mens - como a ideia do "sal da terra" - exprimem esse mundo tal como e em sua existencia real e nao em sua reali-dade mentirosa, ilus6ria, alienada das almas mediocres, ados pequenos comerciantes, dos pregadores da morte, das taran-tulas, dos "sabios" caridosos e virtuosos, "celebres" e "cul-tivados", dos falsos poetas, dos filisteus, dos santarroes no mundo dos palidos cortesaos, essas "moscas da praca pu-blica" , dos estreitos de espirito no mundo pretensamente real, que na verdade e irreal para 0 homem e para 0 cosmos, sem logos e desprovido de sentido.

    Nao e urn paradoxo 0 fato de esse pensador, que ao longo de sua vida aspirou it realidade, que tachou de envene-nadores os que se desligaram da "Terra", esse pensador que desmascarou as ilusoes morais e religiosas como cegueiras metafisicas e que, obstinadamente, saiu em guerra contra toda especie de transcendencia, nao ter encontrado na rea-lidade hist6rica seu verdadeiro apogeu humane e intelectual? Nesse sentido dirao que Nietzsche, com a recusa que opoe its conclusoes te6ricas da filosofia classica alema, permanece, no entanto - mas com os sinais invertidos - dentro do quadro desse pensamento. E ate 0 eterno retorno do mesmo, como realidade e/etiva ou hist6ria do espirito - como con-ceito antitetico ao conceito hegeliano do progresso da hist6ria na consciencia da liberdade - nao supera, por mais logica-mente que ele 0 deduza da morte de Deus e da vontade de pot en cia, esses limites caracteristicos dos sistemas especulati-vos do pensamento filos6fico do sec. XIX. E somente na arte, isto e, no eterno retorno como jogo, que Nietzsche encontrou a verdadeira dimensao nova do tempo, que nao e urn verdadeiro tempo hist6rico, mas nao mais urn tempo transcendental no sentido classico. 0 homem s6 e homem enquanto artista; sua verdadeira criacao humana tern uma significacao artistica". Mas enquanto artista, vive em seu

    11 Vanja Sutlic, fil6sofo de Zagreb, declara numa passagem onde chama a atencao para urn texto de Marx - que, como se sabe, enfatizou 0 valor duravel da arte

    NIETZSCHE E 0 ETERNO RETORNO ... 43

    tempo "artistico", no tempo do jogo que comunica com a eternidade estando ancorado na realidade, em urn tempo, conseqiientemente, que vai alem do desdobramento hist6rico porque dura eternamente, sem que seja 0 tempo do puro espi-rito, do espirito sacrossanto nao-maculado pela realidade efe-tiva, e que e antes 0 tempo real, 0 tempo "corporal", "expe-rimentado", 0 tempo pr6prio it arte e a todo 0 cosmos. .

    Nietzsche, ao conceber 0 ser e 0 vir-a-ser como jogo, como 0 eterno retorno do mesmo, ja nao se mantem no solo da metafisica europeia, ja nao esta pego em sua clausura. Entretanto, 0 jogo de Nietzsche nao e uma concepcao do ser do homem transposto ao ente em geral de maneira nao critica e subjetivista. Diriamos antes que 0 contrario se aplica a Nietzsche. 0 jogo - como excelentemente mostrou Eugen Fink - e a estrutura do universo, a estrutura c6smica e nao uma coisa parcial, "interior" ao homem, uma parte de sua esfera intima ao lade de outras coisas, ao lado do espirito, da vontade, da razao, dos sentimentos. 0 homem somente e homem em sua totalidade; ele e alem-do-homem quando, enquanto artista, joga livremente, e, fazendo isto, descobre e enuncia 0 ser do ente do universe: 0 eterno retorno do mes-mo. E s6 assim que 0 eterno retorno do mesmo torna-se 0 eterno retorno do humano verdadeiro, isto e, do homem artista.

    Ai esta 0 grande meio-dia, 0 pensamento supremo e 0 mais fundamental da concepcao artistica e filos6fica da arte em Nietzsche e de toda a obra de sua vida.

    grega, essa "infincia da humanidade" (cf. Marx/Engels, Werke, t. XIII, p. 941) _ sublinhando a verdadeira "versao do socialismo, que e a "pr6pria liberdade": "A verdadeira verslo do socialismo, oa qual a produc40, como diz Marx numa das passagens mais geniais de toda sua obra, tern urn "carater artistico". 0 que nllo signifiea tfatar-se de urn esteticismo de compensac1o, ao lado do tecnicismo fundamental, de um "humanismo estetico" como variante de uma solulYa.o social psico-higienica" (cf. Zeit und Zeitmllssigkeit, p. 357). Parece-me que nesta tese Marx, interpretado dessa forma, esta, na verdade, muito pr6ximo da de Nietzsche, com a conce~a.o da arte como eterno retorno.

  • W I'!: 'j: I

    N otas sobre 0 retorno e 0 Kapital*

    Jean-Franf:ois Lyotard

    1. A partir do momento em que nos colocamos a/alar aqui, estamos na representa9ao e na teologia. Os muros deste castelo sao as paredes do museu, isto e, 0 distanciamento em rela9ao aos afetos e 0 privilegio de desterritorialidade dos conceitos; e 0 resguardar-se, e portanto a quiescencia das intensidades, sua mise-en-scene.

    2. 0 que suscita a representa9ao e a fraqueza, a perda de intensidade, 0 resfriamento. Mesmo se suprimirmos os muros do castelo, mesmo se mantivermos estes discursos no metril, eles permanecerao corrompidos, como diz Nietzsche. A con-di9ao de representa9ao e interna ao discurso filos6fico. Existe congruencia do en/raquecimento das intensidades no discurso filos6fico, da produ9ao dos conceitos (isto e, de distancias regradas na ordem da significa9ao) e do pilr em representa-9ao. Este ultimo e antes de tudo urn par em exterioridade no interior: cena no interior do conjunto cena/sala. Wagner e isto. E isto e a teologia. E portanto 0 discurso filos6fico como discurso de descarga "secundaria", no sentido freudiano, por uma mise-en-scene representativa, que acaba sendo con-denado: Anticristo, Ecce Homo, ultimas cartas. As palavras valem como intensidades, nao como significa90es.

    3. E pouco importante e muito impertinente insistir no fato de que a representa9ao nao deixara de se reproduzir inclusive a partir do mais violento discurso de Nietzsche. Nao somente pouco importante e muito impertinente, mas /alha

    Trad.: Milton Nascimento.

    NOTAS SOBRE 0 RETORNO E 0 KAPITAL . 45

    grave em rela9ao ao que Nietzsche diz, ao que ele deseja: insistencia na clausura da representa9ao e teologia nao no tema, mas na posif:i1o. Pois e deter-se no secundario, na distancia regrada, no sistema, na discursividade, isto e, no energetico em seu ponto mais tepido, cinzento; e parar todos os momentos, as intensidades, os processos de efeitos, na tensao mfnima, e portanto, por isso mesmo, colocar-se (posi-9ao) na ordem da representa9ao que nasce desse enfraqueci-mento. E permanecer no dec/fnio, deciinio de Zaratustra des-cendo de novo, permanecer na tarde ao lado da coruja hege-Iiana.

    4. Existe uma especie de falha simultanea: duas falhas condensadas, a que existe em rela9ao a transvalora9ao ou ao Retorno, isto e ao desejo de Nietzsche, e tam bern e simulta-neamente a mesma implicada em todo discurso filos6fico e teol6gico. A fraqueza e a depressao nostaigica de ter/nao ter a presen9a, a tristeza de reconhecer/nao querer reconhecer a representa9ao, a corruP9ao do sim e do nao: e isto que pode conduzir a ler Nietzsche no seu circuito. 0 pr6prio Nietzsche, como urn /racasso, como uma experiencia de presentaf:i1o que se salda por uma nova representaf:i1o. Mais uma vez, porem, isto s6 e possivel se nos mantivermos na intensidade mediocre, no processo secundario, na energia canalizada, quiescente, na ordem do significante, no discurso filos6fico enquanto inclui todos os discursos (comum, cientifico, religioso, politico, etc.). E a mesma coisa que colocar Nietzsche no programa da agrega9aoi, isto e, no confinamento mais estreito da repre-senta9ao cultural "cultivada".

    5. Se fizermos uma teoria do eterno retorno ou da trans-valora9ao, faremos 0 mesmo: colocar-nos-emos na depres-sao, e produziremos como representa9ao algo que dela pode curar-nos. Uma depura9ao aristotelica. Urn fantasma freu-diano. Uma reconcilia9ao numa base depressiva. Uma falsa for9a, uma for9a 11 embaixo, uma for9a obscena, gesticulante, teol6gica, wagneriana.

    6. Urn discurso de intensidade maxima? E muito mais do que uma desconstruf:i1o, ela mesma e talvez simplesmente

    I A agregaca.o e urn concurso organizado peio governo frances para 0 preenchi-mento de postes de professores nos estabelecimentos de eosino secundario (Nota do Organizador).

  • '1'1 i I' II :11 46 JEAN-FRAN';:OIS LYOT ARD

    diversao degenerada_ E tambem muito mais do que um grito, pois 0 grito ainda pertence, e Nietzsche sabe disso (veja 0 6dio a Rousseau e ao romantismo), II representacao e II teologia: volta e/ou evocacao da origem, a natureza_ Contra 0 grito, Nietzsche defende sempre, ate 1888, a forma, a bela forma severa, a minucia, 0 trabalho, a reserva, 0 ciassicismo, os franceses_ Como compreender ao mesmo tempo Voltaire e 0 furor de Dioniso?

    7 _ Gilles Deleuze perguntava: entao 0 que seria uma lei-tura intensiva de Nietzsche? .,- Seguramente nao uma leitura no sentido de interpretacao, de hermeni!utica, menos ainda de acumulacao de saber_ Seria preciso partir novamente do aforismo 208 de Humano, demasiado humano onde 0 autor se transforma em cinza e onde 0 livro I: 0 que transmite a energia em sua intensidade mllxima:

    "Para 0 escritor e uma surpresa sempre renovada que seu livro continue a ter vida pr6pria desde que se desliga dele; ele tern a impressao de que teria urn inseto cuja parte se separasse para doravante seguir 0 seu pr6prio caminho_ Talvez 0 esque-ca quase por completo, talvez 0 eleve acima das opiniOes que ali colocou, talvez nem mesmo 0 compreenda mais e tenha perdido as asas com que outrora voava quando meditava nesse livro: enquanto isso, este procura seus leitores, inflama a vida, alegra, apavora, engendra novas obras, torna-se a alma de projetos e acOes - em resumo, vive como urn ser dotado de alma e entendimento e no entanto nile e urn ser hu-mano_ 0 autor tera tirado 0 melhor partido quando puder dizer na sua velhice que em seus escritos continua a viver tudo o que nele havia de pensamentos e de sentimentos portadores de vida, forca, nobreza, luzes, e que ele mesmo nile significa mais nada a nile ser a cinza enquanto 0 fogo em toda parte foi salvo e propagado_ Se considerarmos agora que toda acilo de urn ser humano, e nile somente urn livro, acaba de alguma maneira por propiciar outras acOes, resolucOes, pensamentos, que tudo 0 que acontece se encadeia indissoluvelmente a tudo o que acontecera, entAo reconheceremos que existe a verda-deira imorta/idade, a do movimento"_

    E um caso de metamorfose: "Assim como as geleiras aumentam quando, nas regiOes equatoriais, 0 sol queima com mais ardor do que antes nos mares, assim tambl:m um pensa-mento livre muito forte e em plena expansao e sinal de que

    NOTAS SOBRE 0 RETORNO E 0 !CAPITAL 47

    cresce extraordinariamente em algum lugar 0 ardor do senti-mento" (Ibid_, 232)_

    A leitura intensiva e portanto a producao de novas intensidades, diferentes_ A leitura e um momenta da meta-morfose geral, no Retorno_ 0 pr6prio livro, enquanto niJo-livro, enquanto lanca incandescencia, e simplesmente- forma metam6rfica, profundamente obsolescente. 0 autor anula-se no texto, 0 texto anula-se nos leitores. (N6s, em Nietzsche, e a regiilo onde esta metamorfose se opera.) A anulacao I: antes dissolucao, crise salutar, liquidacao, perda do quanto-a-si, do quanto-II-obra, do quanto-il-significacao - mas perda de forma alguma negativa, perda somente do ponto de vista de si, da obra, da significacao - isto 1:, da representacao e da teologia, de todas as instancias construidas na dimensao do espetaculo, isto 1:, na depressiJo. Se damos enfase II dimensilo da perda, da disso/UfiJo, I: porque ainda permanecemos na depressao teol6gica, teologia do Eu, do significante, do tra-balho rebatido sobre um sujeito. A metamorfose opera-se afirmativamente enquanto processo incessante, infinito, sem-pre em decalagem, deslocado, descentrado.

    8. 0 descentramento e 0 que I: congruente com a dife-renca. Quando 0 processo torna a passar pelos mesmos efei-tos, ele se institui, se encerra, se bloqueia em objetos e sujei-tos, dispositivos, inscricOes, quantidades e distancias regra-

    --das, em estruturas e representacOes. Se a metamorfose fosse repetitiva no sentido usual, isto 1:, simples mente regrada, se observasse regras de distiincia constante - como quando 0 aparelho fonador, pelo jogo regrado das contracOes e das oclusOes, transforma expfraCOes em fonemas -, ela seria c1ausura sistemica e representativa. 0 Retorno seria 0 per-curso da estrutura.

    9. Ve-se aqui 0 que Nietzsche e para n6s hoje. 0 Retorno regrado e 0 Kapita/. A afirmacao I: e sera a dissolucao da regra unica do Kapital, isto e, da lei do valor.

    10. 0 Kapita/ nada mais e do que producilo como con-sumo, consumo como producao, isto 1:, metamorjose sem fim e sem objetivo. Esta metamorfose de um lado opera como dissolucao das antigas instituicOes, prl:-capitalistas; de outro, como autodissolucao de suas pr6prias instituicOes, constante-mente desfeitas e refeitas. Entendo aqui por instituicao tudo o que se da como significacao estavel (politica, juridica, cul-

  • Ii:!'" .,1,

    I!!

    Iii r j'i: ';, :'i,

    48 JEAN-FRANt;:OIS LYOTARD

    turaL.), isto e, tudo 0 que repousa numa distancia regrada e da lugar it representa~ao. 0 carater interminavel da metamor-fose das coisas em hom ens, dos hom ens em coisas, dos pro-dutos em meios de produ~ao e inversamente, a economia enquanto economia niJo-polftica, e 0 Kapital que no-Io ensi-na. A modernidade enquanto uma tal dissolu~ao e profunda-mente afirmativa. Nao ha niilismo neste movimento. Existe 0 esboro do alem-do-humano ou inumano:

    "A total irresponsabiIidade do homem quanto a seu agir e a seu ser e a gota mais amarga que 0 homem de conhecimento deve engolir se habituado a considerar os titulos de nobreza de sua humanidade na responsabiIidade e no dever. Todas as suas aprecia~()es, distin~()es, avers()es tornaram-se desse modo desvalorizadas e falsificadas: seu sentimento mais pro-fundo, que e\e apresentava ao milrtir, ao her6i, devia-se a urn erro; ele nao pode mais elogiar nem censurar, pois e absurdo louvar e censurar a natureza e a necessidade ( ... ) - Pode cau-sar profundos sofrimentos dar-se conta de tudo isso, mas entao existe urn consolo: tais sofrimentos saO dores de urn parto ( ... ) Nesses homens, que sao capazes dessa tristeza -como deve haver poucos! -, e feita a primeira tentativa para a humanidade poder transformar-se de moral em sabia ( ... ). Urn habito novo, 0 de compreender, nao-amar, nao-odiar, olhar de cima, pouco a pouco cria raizes em n6s, no mesmo solo, e sera talvez em milhares de anos suficientemente pode-roso para dar a humanidade a for~a de produzir 0 homem sabio, inocente (consciente de sua inoc~ncia) tao regularmente quanto produz hoje 0 homem nao-sabio, injusto, consciente de sua culpa - isto e, 0 esbo~o necessario, nao 0 contrilrio do outro" ("Humano, demasiado humano", p. 107). 11. 0 Kapital e simultaneamente a depressao, 0 niilismo,

    e 0 cumulo da teologia. Nao porque reintroduz representa-~oes e institui~oes ja destruidas. Pois na realidade nao 0 faz. Nao pode faze-Io, mergulha a humanidade na teologia do ateismo, na teologia da a-teologia, na crenra em (a morte de) Deus. Nao reintroduz nada, mas ele mesmo repousa na lei do valor, isto e, na igualdade das partes em jogo em toda a meta-morfose, for~a de trabalho-mercadoria, mercadoria-dinheiro, din