Marx Lógica e Política Tomo I - Ruy Fausto

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Ruy Fausto

MARX: LOGICA E POLÍTICA

Investigações para uma reconstituição do sentido da dialética

Tomo I1? edição 1983

2? edição

<< V ^ editora brasüiense \ i n X DIVIDINDO OPINIÕES MULTIPLICANDO CULTURA\ o ^ 19 8 7

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ParaBeti

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índice

Nota Introdutó ria............................................................................. 9Introdução.......................................................................................... 11

I

1. Dialética Marxista, Humanismo, Anti-humanismo................ 272. Althusserismo e Antropologismo................................ .. ............. 66

II

3. Abstração Real e Contradição: sobre o Trabalho Abstrato e oValor....................................... ........................... ......................... 89

III

4. Circulação de Mercadorias, Produção Capitalista.................. 141* * *

Apêndices

Apêndice 1: Sobre o Destino da Antropologia na Obra de Maturidade de M arx ............................................................ 227

Apêndice 2: Notas sobre o Jovem Marx........................................ 236

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Nota introdutória

A maioria dos textos deste volume, o primeiro de uma série, como indica a introdução, fo i escrita em francês e traduzida pelo autor: Embora marcados pela nossa experiência na Europa, os textos ultra

passam, entretanto, esse quadro; e eles não foram escritos só tendo em vista o público francês. Alguns textos retomam direta ou indiretamente discussões ou seminários que fizemos no Brasil e no Chile. Outros, embora redigidos em francês, na origem para que pudessem ser inseridos em trabalhos universitários, foram escritos também já com vistas a uma publicação no Brasil. Finalmente, a discussão do que se fe z e fa z no Brasil tem um lugar, embora não muito amplo neste primeiro volume. A segunda secção da introdução é um caso especial, porque analisa em parte uma situação histórica. Se o que dizemos sobre o após-68 tomando uma faixa de tempo mais ampla tem um alcance mais ou menos geral, parte das considerações se refere, como é explícito, à Europa, em particular à França, e mesmo a uma conjuntura na França (o texto foi escrito em abril de 81; entretanto, para os problemas tratados, a situação se modificou menos do que se poderia pensar).

Apesar disso, decidimos conservar tal qual a introdução, e isto pelas seguintes razões. O que nela se procura mostrar (de um modo preliminar) é a exigência e a dificuldade de, ao mesmo tempo, retomar os

problemas da dialética clássica (Hegel e Marx) e fazer a crítica da dialética clássica. Pareceu-nos que universalizaríamos melhor esse problema —nos limites das considerações parcialmente históricas de uma introdução —mostrando a sua particularização numa situação dada que pudemos explorar um pouco (que de resto é ainda a de um centro maior), do que desenvolvendo-o de uma forma geral, ou tentando mostrar como ele se apresenta no Brasil. A França representa, um pouco, um caso limite das dificuldades, ou de Um tipo delas. Conhecer esse caso é instrutivo, mesmo se os problemas, que num nível são análogos

(ou se pretende conservar sem crítica a dialética clássica, ou se quer simplesmente abandoná-la), tomam uma outra figura no Brasil (entre outras coisas, o dogmatismo da tradição é, no Brasil, provavelmente

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mais forte — mesmo se em regressão — do que o dogmatismo da ruptura).

São Paulo, outubro de 1982

Paris, novembro de 1982

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Introdução

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1. O conjunto de textos que começamos a publicar sob o títulogeral Marx: Lógica e Política contém uma análise e uma crítica domarxismo. O conjunto se organizará em torno de três eixos: um sobre o

problema da relação entre marxismo e humanismo; um sobre a lógica

deO Capital e, em geral, sobre a lógica da crítica da economia política;e um sobre o problema da relação entre marxismo e historicismo. É emtomo desses problemas, cada um dos quais tem um lugar na história daconstituição do marxismo, e na história do seu desenvolvimento, que sefez, nos últimos anos, a discussão em torno da significação filosófica domarxismo. Pretendemos retomá-los.

O plano provisório do nosso projeto geral contém çinco partes,das quais só a primeira é apresentada aqui.

Este primeiro tomo está constituído essencialmente por trabalhossobre a relação entre marxismo e humanismo ou marxismo e antropologia (“Dialética marxista, Humanismo, Anti-humanismo”, “Althus-serismo e Antropologismo”) e por ensaios sobreO Capital e em gerala crítica da economia política (“Abstração real e contradição: sobreo trabalho abstrato e o valor”, “Circulação de mercadorias, produção capitalista”); mas os ensaios sobre o antropologismo tambémtocam neste último problema.

Se o conjunto do projeto visa a análise e a crítica do marxismo —a conexão interna entre os dois momentos será melhor explicada maisadiante — este primeiro tomo fica, em geral, no primeiro momento.Esses textos são polêmicos. Eles têm como objeto leituras de Marx que

julgamos errôneas, mas que consideramos como grandes leituras ou, pelo menos, como leituras muito interessantes. Trata-se da leitura deum filósofo (e de seus discípulos), de dois economistas, e de um autorque é ao mesmo tempo filósofo, economista, teórico da política etc.Trata-se de reencontrar a dialética a partir dessas leituras, as quais,apesar das suas diferenças — e elas são muito grandes — aparecemcomo leituras do entendimento. Cremos que a maneira polêmica permite, num primeiro momento, precisar certos pontos aos quais voltaremos em forma sistemática. Dado o seu caráter, esses textos contêm,

certamente, repetições. Modificamos os originais, mas pouco: o interesse que oferecem é talvez o de levantar os mesmos problemas, a

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propósito de autores diversos. E se os textos são polêmicos, eles se pretendem ao mesmo tempo alternativos. Observemos por outro ladoque foi necessário entrar em muitos detalhes e analisar os problemas deuma maneira bastante técnica. Não acreditamos que se possa chegar a

discutir grandes temas sem passar por micrologias. A idéia de que adialética possa prescindir de uma certa tecnicidade é um mito.Aos quatro textos principais acrescentamos dois outros: o pri

meiro é de certo modo um texto germinal sobre o conjunto da problemática do humanismo e do historicismo. Nós o incluímos em razãomesmo das suas insuficiências: o seu interesse é o de representar umatentativa de pensar os problemas da dialética por meios que não vãoalém do seu limiar, e que de qualquer modo ficam aquém dela.1O segundo texto contém algumas das idéias sobre o jovem Marx, quedesenvolvemos em várias ocasiões em forma oral,2 e antecipa em es boço a parte histórica deste trabalho.Os outros tomos se organizarão do seguinte modo: o segundoconterá um ensaio sobre a relação entre marxismo e historicismo, ealguns trabalhos sobre a história e a pré-história da dialética (inclusivesobre a obra do jovem Marx), no plano da filosofia, da política e daeconomia. O terceiro conterá um texto que deveria servir de introdução, mas que se tornou longo demais, e que representa um balançocrítico do marxismo. O quarto analisará de um modo sistemático alógica da crítica da economia política de Marx (e sua relação com

Hegel). O quinto tentará tirar conclusões mais gerais, sobre o conteúdodas quais nos explicaremos em outro lugar.O título Marx: Lógica e Política remete àquilo que representa,

em certo sentido, os dois extremos do domínio dessa investigação. Masesse título (que anunciamos desde pelo menos 1975) abrevia: os extremos são, na realidade, por um lado os “fundamentos"3 lógicos da crítica da economia política, e por outro a prática política.*

(*) Agradecemos ao prof. Jean Desanti sob a direção do qual apresentamos este primeiro tomo como tese de terceiro ciclo à Universidade de Paris I. Agradecemos igualmente aos professores Hélène Vedrine e François Châtelet, que participaram também da banca. Agradecemos a François Bon, Alain Grosrichard e Franck Lahmy, que não s6 nos ajudaram a fazer a revisão do texto francês, mas que discutiram conosco, certas partes ou a totalidade, deste primeiro tomo. Paulo Eduardo Arantes também leu o texto, e agradecemos as suas observações. Agradecemos ainda a Beth Lobo, que nos ajudou no trabalho de datilografia e a quem dedicamos este primeiro tomo.

“Sobre a dialética e o marxismo” (inédito) — segunda parte da introdução— é de 1981. “Dialética Marxista, Humanismo, Anti-humanismo” (publicado pela revista Discurso, São Paulo, n? 8, 1978, sob o título “Dialética Marxista, Antropo- logismo, Anti-antropologismo”) é de 1974-75; fizemos algumas modificações no texto. “Althusserismo e Antropologismo” (publicado em francês na revista L ’Homme et la So ciété, número duplo 41-42, Paris, 1976, e em português na revista Almanaque, São Paulo, n? 4, 1977) é de 1975; acrescentamos ou modificamos algumas notas. “Abs

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2. Sobre a dialética e o marxismo — Sem desenvolvê-las comtodo rigor, julgamos útil incluir nesta introdução, de uma forma abreviada, algumas das considerações sobre a dialética e o marxismo, queretomaremos no terceiro tomo deste trabalho.

Se se quiser resumir o projeto do qual esses ensaios representam o ponto de partida, diríamos, decalcando uma expressão que não énossa, que se trata — ou gostaríamos de que se tratasse — de apresentar os “materiais para uma reconstrução da dialética”. 4

“Materiais para uma reconstrução da dialética” — supõe pelomenos duas coisas: 1) que a idéia da dialética como teoria rigorosaesteja, de certo modo, destruída; 2) que seja preciso e, em princípio,que seja possível reconstruí-la.

Primeiramente, algumas precisões sobre o objeto das considera

ções bem sumárias que vêm em seguida, bem como sobre a perspectivaque elas supõem. Nos limitaremos, propriamente, à situação e à história da dialética, sem considerar o conjunto (do pensamento francês oueuropeu) em que ela se situa, mesmo se, num certo momento, fornecessário fazer algumas incursões num domínio mais geral. Isto nãosignifica que trataremos somente daqueles que reivindicam o pensamento dialético, mas que nos referimos somente àqueles que têm, ouque acreditaram ter, uma relação essencial, positiva ou negativa comela. Por outro lado, como em certa medida independentemente da

questão do campo do objeto é necessário saber de onde se fala, ondenos situamos para falar da dialética, precisamos — sem o que demasiadas coisas ficariam incompletas e incompreensíveis — que as considerações seguintes devem ser lidas, supondo que elas provêm do“meio” do pensamento dialético, da sua interioridade.

A dialética — entendamos por isso —, a idéia da dialéticaenquanto discurso rigoroso, caiu sob os golpes do que paralelamenteao “marxismo vulgar” deveríamos chamar de “dialética vulgar” ou de“dialéticas vulgares” . Pensamos em todos aqueles discursos que empre

gam o termo “dialética” sem fazê-lo corresponder a um objeto constituído de uma maneira rigorosa. A dialética, sem dúvida, não se sabe

tração real e contradição: sobre o trabalho abstrato e o valor” (inédito em português) foi publicado em francês numa versão um pouco diferente e abreviada emCri

tiques de VÉconomie Politique, Paris, Maspero, nova série, números 2 e 3 (janeiro- março e abril-junho de 1978). "Circulação de mercadorias, produção capitalista” (inédito, com exceção de um fragmento publicado em francês no número 18, janeiro- março de 1982, nova série deCritiques de VÉconomie Politique, sob o título “Sur la forme de la valeur et le fétichisme) é de 1981. Também o segundo apêndice. — Como indicamos, só o primeiro apêndice (que é de 1968) deve ser considerado como pertencente a um universo teórico diferente do conjunto dos textos. Os demais, uma vez situados no interior do projeto global, que, entretanto, é “contraditório”, podem ser considerados como se remetessem a um corpus teórico único.

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mais o que ela é, mesmo e sobretudo se se emprega o conceito — ou se oempregava — como se se soubesse muito bem.

Mas se há crise da dialética, é preciso por um lado datá-la, e poroutro definir suas relações com o que se chama de crise do marxismo. A

crise da dialética — ou a idéia de uma crise da dialética (referimo-nossempre só aos que se situam no seu “meio”) — é anterior ao que sechama de crise do marxismo. Sem dúvida, no período anterior a 1968(é no após-68 que se situa a eclosão da chamada crise do marxismo)alguns fizeram pelo contrário a crítica do marxismo, sem questionar adialética (embora questionando a dialéticaclássica). Ê o caso de Mer-leau-Ponty nas Aventuras da Dialética, é sobretudo o caso dos pensadores de Frankfurt. Entretanto, os pensadores de Frankfurt (como oMerleau-Ponty de As Aventuras da Dialética) j5e qualquer que seja oano da publicação de suas obras, são nossos contemporâneos no sentido mais preciso. Eles pertencem ao presente mais imediato. É deSartre — do Sartre daCrítica da Razão Dialética — que é necessáriofalar, a propósito da crise da dialética sem verdadeira crise do marxismo. Sem dúvida, em Sartre há, como ponto de partida, tanto criseda dialética como crise do marxismo. E uma vez realizado o trabalhocrítico, nem o marxismo — mesmo se se lhe enxerta a “ideologia”existencial — nem a dialética serão mais questionados. Mas o marxismo estaria em crise não porque “o conteúdo dos seus enunciadosseja falso” mas porque “ele não dispõe da significação:Verdade".*' “O materialismo histórico” permanece como “a única verdade da História” , ainda que ele seja ao mesmo tempo “uma totalindeterminação da verdade”. ( Ibidem) O problema é, assim, não o da verdade domarxismo, mas o da verdade de sua verdade. O marxismo é a “filosofiado nosso tempo” e filosofia “insuperável” .(Idem, p. 29) Somente “nãose sabe o que é para um historiador marxistadizer a verdade". (Idem, p. 118) Por isso — e somente por isso — é preciso perguntar “que é aracionalidade dialética, quais são os seus limites e o seu fundamento?” .{Idem, p. 135)7

Com a eclosão da crise do marxismo, o problema se complica.É preciso dizer alguma coisa sobre o sentido dessa crise. Na realidade,ela eclode a partir de vários problemas, cujos efeitos sobre ocorpus domarxismo são diversos e de profundidade diferente. Há por um lado —no Ocidente — as mudanças do capitalismo — as novas clivagens,as novas lutas. Apesar de tudo, é provavelmente esse o aspecto em queo marxismo — que é essencialmente uma teoria crítica do capitalismo — se acha em melhor situação. As leis do capitalismo clássico são mais“negadas” do que anuladas. Há aí provavelmente Aufhebung do mar

xismo e não mais. O segundo ponto é o da nova dimensão que ganha ahistória com os novos meios de destruição. Analisaremos em detalhe osentido desse fenômeno em relação à tradição clássica: aqui, observamosapenas que não basta dizer, a esse respeito, que em lugar de passar da

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MA RX : LÔO ICA K 1’OLlTIC'A 17

pré-história à história, história que representaria a posição do homem,"ficamos na pré-história. A história do século XX remete, na realidade,à posição do homem — mas à posiçãonegativa do homem. Isto querdizer que, em certo sentido, se passou à história, mas como advento

não da vida genérica, mas damorte genérica, da destruição genérica.Passamos a alguma coisa que é ao mesmo tempo história e pré-história. Históriana pré-história. Talvez pudéssemos chamá-la deanti- história. Esse fenômeno não foi pensado, prospectivamente, pelo marxismo clássico. Mais do que isto, o que ocorreu desvia, relativamente aocurso “previsto” da pré-história, o da posição davida genérica, o da passagem à história. Há aí uma negação do marxismo que é mais fortedo que uma Aufhebung. E entretanto, em suas grandes linhas, a visãoclássica (ou muitas coisas na visão clássica) permanece válida enquantoteoria da pré-história (na sua forma primeira). É assim que o marxismose mantém como teoria de uma história — de uma pré-história —numa escala limitada. Para além de um certo limite, as leis que eleenunciou não são mais válidas. Há aqui uma mudança de escala, a ultrapassagem de um limite, ultrapassagem não “prevista” num processo(de destruição crescente) que era entretantoconhecido. Mas, em terceiro lugar, há o destino das sociedades ditas socialistas, no Leste.O drama das transições que não conduzem a nenhum lugar, isto é: queconduzem a elas mesmas. Ora, é a propósito desse fenômeno — e em bora, por um lado, ele represente, em relação à ultrapassagem de

limite analisada anteriormente, uma mudança menos radical, e em bora, por outro lado, se refira a formações quenlo poderiam ter sidoestudadas por Marx porque lhe são posteriores — é por esse fenômenoque o marxismo é mais duramente atingido. Aqui estamos, propriamente, diante de um bloqueio da pré-história. E este bloqueio da pré-história é mais grave para o marxismo do que a emergência daanti-história. Sobretudo se se pensar que esse bloqueio é o de regimes,o de um regime pelo menos, que provém de uma revolução que não erauma simples revolução burguesa ou camponesa. A esse respeito, emesmo se nos seus textos sobre a Comuna, sobretudo,9 Marx soubefalar dos perigos do Estado, ele nunca pensou na possibilidade de umaoutra saída de “progresso” (e mesmo se o comunismo é para eleempresa de liberdade) se não a passagem ao comunismo. A emergênciadas sociedades burocráticas representa para o marxismo uma negaçãoque é não só mais forte do que uma Aufhebung, mas mais fortetambém do que uma mudança de escala. Representa um corte ou umaruptura em relação a ele.10

Mas uma tal análise dos níveis da crise só pode ser feita atravésde uma retomada do problema da dialética. Só a retomada do projeto

da dialética enquanto discurso rigoroso permitiria mostrar até onde pode ir o marxismo, em que sentido e em que medida ele se rompe. Aanálise dos limites do marxismo é assim, ao mesmo tempo, investi

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da contradição. Eles nos convidam a passar a outra coisa. Poderíamos passar a outra coisa, mas gostaríamos de estar seguros de que as velhasfilosofias das essências e da contradição estão esgotadas. Ora, o quenos impressiona são as insuficiências visíveis desses mesmos, quandoeles falam da dialética. Se em alguns já não se encontram os velhosclichês — a dialética como simples continuísmo, a confusão entredialética e historicismo (ou pelo contrário: as rupturas e o anti-histo-ricismo) — eles ficam de qualquer modo aquém do manejo rigoroso danegação enquanto Aufhebung. O ponto essencial no nível lógico é queeles não se dão conta de que não pode haver oompreensão da dialética,sem o movimento do que é exprimido (posto) e do que não é exprimido(pressuposto). O manejo rigoroso da distinção entre pressuposição(discurso implícito) e posição (discurso explícito) lhes escapa. E sem

isso não há dialética. São essas insuficiências que nos fazem duvidar deum certo pós-hegelianismo e pós-marxismo, qualquer que seja, deresto, a originalidade de alguns dos seus representantes. Mas ftossemos propriamente à análise de alguns dos traços gerais do momento. Há deum certo modo ruptura do marxismo (um pouco como ocorreu comHegel no século XIX). Se o marxismo12 n&o pretendia ser nem ummoralismo nem um amoralismo, temos agora de um lado uma filosofiamoralizante (a moral está mais do que nunca em moda), por outro ladose nada nas águas de uma filosofia da irresponsabilidade.13 (Podería

mos acrescentar, talvez, que as duas tendências se revertem: comodisse alguém a propósito dos teóricos da morte do homem,14 poder-se-ia dizer que os defensores de uma filosofia da irresponsabilidade lutam muitas vezes pelos direitos do homem e, inversamente, que é incertoque os neomoralistas, bem inseridos no sistema, considerem sempreo outro (homem) “não só como um meio mas também como um fim”.)

Por outro lado, a época se caracteriza ao mesmo tempo, pelomenos em certos meios, por uma formidável pressão positivista e tecno-crática. Ex-“dialéticos” só juram pelo formalismo e pela empiría. Nesse sentido, os pensadores de Frankfurt, aos quais voltaremos logomais adiante, são mais atuais do que nunca. Aliás, hoje aparece algocomo uma caricatura do pensamento de Frankfurt: seria necessáriocomparar, por exemplo, o que dizem os pensadores de Frankfurt e oque dizem certos filósofos em moda sobre o pensamento clássico como pensamento do poder.15 No que se refere à relação com o marxismo,insistamos sobre o baixo nível da crítica: se lê ou se retém sobretudo os prefácios de Marx, esquecendo que, se é sempre desaconselhável fixar-se nos prefácios, no interior da dialética clássica os prefácios sãoimpossíveis. Hoje ocorre com os prefácios de Marx o que antigamenteacontecia com os exemplos de Hegel.Mas dizer que a dialética foi destruída ou que ela é hoje desconhecida pode parecer excessivo. Tentemos introduzir algumas preci-sões. Sem fazer história, seria preciso distinguir a situação na França

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mesmo. Esta configuração é de resto essencial — ela é mesmo a chave — para pensar a situação contemporânea.

(15) É necessário insistir sobre o dogmatismo de certos campeões do antidogmatismo. Na medida em que eles não distinguem o que é “posto” do que é “não-posto”, se se quiser o ato e a potência, toda tendência se torna realidade efetiva. Aí jaz o segredo

dos livros que põem numa mesma categoria — maldita — os pensadores ou os escritores mais diferentes. A dialética, pelo contrário, que distingue a possibilidade e a efetividade, o pressuposto e o posto, sabe registrar a presença de tal ou qual motivo inquietante nos clássicos, mas sabe também mostrar oslimites dessas tendências. (Ver Adorno e também Horkheimer, passim, a esse respeito)

(16) Ver Hans-Günther Holl “Emigration dans l’immanence”, le mouvement intellectuel de la dialectique négative”, posfácio a Theodor Adorno, Dialectique Nega

tive, trad. franc., Paris, Payot, 1978, pp. 325 e segs.(17) A ausência quase total de referências aos textos de Hegel numa obra(Lire le

Capital) que pretende mostrar o não-hegelianismo de Marx é em si mesmo um sintoma.(18) Werke, 29, op. cit ., 1963, carta de Marx a Lassale, de 22 de fevereiro de

1858, p. 550; Lettres sur le Capital, tradução, apresentação e notas por G. Badia, Paris, Ed. Sociales, 1964.(19) Por exemplo, vamos na direção contrária à de Perry Anderson emConside- rations on Western Marxism, New Left Books, 1976, cuja tônica é o esgotamento da problemática filosófica do marxismo.

(20) “Como nos relacionamos afinal com a dialética de Hegel?” (“Wie halten wir es nun mit der Hegelschen Dialektik?"). (Werke, Ergänzungsband, I, Ökonomisch

philosophische Manuskripte, (1844), op. cit.., p. 568, grifado por Marx) A analogia entre as duas situações históricas, que a citação induz, quer dizer somente: hoje como então corremos o risco de abandonar um grande pensamento, sem verdadeira crítica.

(21) “Was nun mit der Logik”.(Werke, Ergänzungsband, I, Ökonomisch-philo sophische Manuskripte, (1844), op. cit ., p. 569)

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Dialética marxista, humanismo, anti-humanismo

1

PRIMEIRA PARTE

a) A história em Marx e a “Fenomenología do Espírito” de Hegel

Para pensar o que representa em termos lógicos a idéia de umdevir do homem (do homem-sujeito) em Marx — de um hotnem-sujeito que vem à existência mas que ainda não existe — é necessário sereferir a Hegel e particularmente àFenomenología do Espírito. Comefeito, a situação do “homem” no esquema marxista da história (nodosGrundrisse, pelo menos) é análoga à situação do espírito naFenomenología do Espírito de Hegel. Trata-se de uma comparação antiga,mas que é raramente interpretada de um modo rigoroso, e o carátersuperficial das interpretações correntes é uma das razões da recusarecente de toda leitura de Marx a partir de Hegel. Vejamos em quesentido preciso se poderia dizer que o “homem” em Marx ocupa uma

posição análoga à do espírito naFenomenología do Espírito de Hegel.Do mesmo modo que no esquema marxista da história, o homem sóvem no final do que Marx denomina (ver prefácio àContribuição à Crítica da Economia Política)' “pré-história da sociedade humana”, —o espírito só se apresentaenquanto espírito no final daFenomenología. E isto mesmo do ponto de vista daconsciência filosófica} Com efeito,no início e ao longo daFenomenología, o espírito nãoé em sentidoforte, e isto tanto para a consciência comum (único aspecto que ordinariamente se reconhece) como para a consciência filosófica, emboraas duas ausências não tenham a mesma significação. No que se refere àconsciência comum, não há nenhum problema — o espírito é pura esimplesmente ausente. A consciência comum só conhece as diferentesfiguras do espírito, ela não sabe — ela só saberá no fim, quando nãoserá mais consciência comum — que a sucessão delas constitui a (pré-)história do espírito. Mas também para a consciência filosófica, o espírito está, em certo sentido, ausente. Trata-se entretanto de uma ausência que é ao mesmo tempo presença, ou de uma presença-ausente. Comefeito, para a consciência filosófica, o espírito está “lá” (e isto distinguea perspectiva da consciência filosófica da perspectiva da consciênciacomum), mas o espírito só está “lá” enquantoopinião (“afirmaçãoseca” , diz a introdução da obra)3ou, se se quiser, enquanto pressuposição. Ê que aFenomenología não é uma história (filosófica) do espírito,

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mas uma historia (filosófica) daconstituição do espirito — urna pré-his- tória do espírito, e devido a isso, oespirito só será posto no final do processo. Isto significa — primeiro ponto — que o espirito não éexprimível até que se chege ao final do processo. Isto significa — segundo ponto —

que até lá só são exprimíveis os predicados do espirito.Vejamos isto mais de perto. No nivel da pré-história ou do devir4do espírito — e isto é válido em geral para todas as noções cujo objeto tomado no nivel da sua pré-história — só se pode exprimir o espiritoexprimindo os seus predicados. A pré-história de um ser é, com efeitoa historia de seus predicados. Para dizer a pré-história de um ser só sdeve dizer os seus predicados. Ou, dizendo a coisa negativamente: todexpressão de um ser enquanto sujeito — no caso, do espirito enquantespirito — no nivel da sua pré-história, dado que ela implica a posiçãde algo que ainda não éreal, compromete o rigor do discurso, pervertea sua cientificidade. Mas no nivel da pré-história de um ser (este é o ponto central do problema) os predicados desse ser não são suasdeterminações (pelo menos no sentido corrente) — sobretudo não sãosuas determinações — porque nesse nível ele ainda está ausente enquantosujeito. Dizendo o espírito através dos predicados do espírito, não digoo espírito (através das suas determinações), ou anteseu o digp mas dizendo o seu outro. Ou, em outros termos, no nível da sua pré-his-tória, as determinações do espírito como de qualquer objeto sãonegações.Exemplifiquemos, voltando àFenomenología. Se, nos situandono início daFenomenología, nos perguntarem: que é o espírito?, será

preciso responder (e respondendo começaremos a dizer aFenomenología que é o desenvolvimento do conceito do espírito): o espírito é...a consciência sensível, o espírito é... oentendimento, o espírito é...o senhor e o escravo, o espírito é... oestoicismo5 etc. Mas em todosesses juízos, só o predicado estkposto. O “é” desses juízos não exprimeuma relação de inerência entre sujeito e predicado (o que ocorreria sese tratasse de uma história) ele exprime, pelo contrário, a “passagem”do sujeito “no” predicado, anegação do sujeito pelo predicado. Ou, sese quiser, o “é” exprimenum certo sentido uma inerência, porque setrata dos predicados do espírito (caso contrário, não os chamaríamosassim), mas essa relação de inerência, no nível de uma pré-história setransforma numa negação —“Aufhebung", não negação vulgar, porque o espírito está “lá” — do sujeito pelo predicado. O espírito é...a consciência sensível, o espírito é... o entendimento, o espírito é... osenhor e o escravo, o espírito é... o estoicismo etc. Em todos esses juízos, digo em certo sentido o espírito, porque digo o que é o espíritmas no momento em que o digo, o espírito não está mais lá, só estão oseus predicados. É a consciência sensível, o entendimento, o senhor e oescravo, o estoicismo etc., que são postos, não o espírito enquantoespírito. Somente esta leitura (que corresponde bem, numerosos texto

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o mostram, às exigências do discurso hegeliano) permite estabeleceruma relação rigorosa entre o esquema marxista da história e o hegelianismo. A leitura do devir do espírito em termos de uma mudança nointerior do ser falseia toda comparação entre Marx e Hegel (porquecompreende mal o próprio Hegel), fazendo dela uma ilustração seminteresse.

Porque, com efeito, o que ocorre com o espírito naFenomenología de Hegel — desde que ela seja lida rigorosamente — é análogo aoque se passa com o “homem” no esquema marxista de totalização dahistória. Que a história possa ser pensada como um processo de constituição do homem-sujeito6 significa que enquanto não se chegou aocomunismo, o homemnão é, ou antes, ele é, mas como significaçãomuda, não posta. Como o espírito naFenomenología, o homem não pode serdito no nível da sua pré-história. Com efeito, se para Marx ohomem só se constituirá com o socialismo, que é o homem antes dosocialismo? (A pergunta “que é o homem?” é assimnum certo sentido — diferente daquele que lhe conferem os humanistas — uma perguntaválida para o marxismo). Seria preciso responder: o homem é... o operário, o homem é... o capitalista, ou ainda, pensando em outrosmomentos da história, o homem é... o cidadão grego ou romano, ohomem é... o servo, o homem é... o senhor feudal etc.7 Como se vê,num certo sentido se pode dizer o que é o homem, antes do fim da“pré-história” , mas toda “definição” do homem só é possível, então, sese disseroutra coisa do que o homem.8 “O homem é o operário”,“o homem é o capitalista” , “o homem é o cidadão romano” , “o homemé o senhor feudal” — em todos esses juízos o “homem” passa “no” seu predicado. Só os predicados do homem — “operário", "capitalista” ,“cidadão romano”, “senhor feudal” etc. são efetivamente. O homemestá “lá”, mas só existe nos seus predicados; e estes predicados, em vezde serem determinações do sujeito “homem” (ou espécies do gênero“homem”) são de fatonegações do homem enquanto homem. O operário, o capitalista, o senhor feudal, o cidadão romano etc. existemenquanto (e porque) o homem não existe: eles não existirão mais

quando o sujeito “deles” vier à existência.

b) O homem e o capital

A afirmação segundo a qual, da perspectiva do discurso totalizante, se poderia dizer (enquanto se estiver no nível da “pré-história”)que o objeto é não o homem mas os predicados “do” homem, exigecertas precisões. Essas precisões nos obrigam a desenvolver maisamplamente o problema da reflexão (e também, como se verá, da nãoreflexão) do sujeito no predicado, no discurso marxista. Dizer que para

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a pré-história do homem o objeto do discurso marxista é não o homemmas os predicados “do” homem (para o caso do capitalismo — o operário e o capitalista) é uma afirmação aproximadamente válida, masque, para um discurso sobre estruturas — ou mais precisamente sobreas estruturas do capitalismo — como o discurso deO Capital — exigealgumas explicações. Na realidade, o discurso deO Capital tem comoobjeto central não o operário e o capitalista (o que poderia ser dito, deum modo bastante geral, do discurso sobre a luta de classes) — mas o própriocapital. Ora, que é o capital, e que representam em relação aele o operário e o capitalista? A resposta a esta questão nos conduz à

problemática do sujeito e do predicado. O capital, diz, com efeito,o Capítulo 4 (original) do Tomo I de OCapital, é sujeito. (O capital é“sujeito que domina” (übergreifendes Subjekt), “sujeito automático”(automatisches Subjekt), “sujeito de um processo” (Subjekt eines Pro- zesses), ver Werke, 23, Das Kapital, op. cit., p. 169.) O operário e ocapitalista são “suportes” desse sujeito, e num sentido (mais ontológicodo que propriamente lógico) seus predicados. (A rigor, os predicadosdo sujeito “capital” — seus “momentos” — são odinheiro e amerca- doria. O operário e o capitalista são suportes do capital, por seremsuportes do dinheiro e das mercadorias — inclusive a força de trabalho — enquanto momentos do capital.) Vejamos tudo isto mais de perto.Observemos inicialmente que se se diz que o capital é sujeito — e a

expressão “sujeito” que desaparece ou quase nas traduções deve sertomada com todo o rigor — é porque ele é um movimento autônomo,um objeto-movimento.9 O capital só aparece como sujeito se o visarmosem movimento (mas só em movimento ele é o que é). Se o movimento sedetém, só teremos os predicados (ou os momentos) do capital: o dinheiro e a mercadoria. Ora, é necessário que esta condição de sujeitodo capital seja posta no nível da expressão, seja expressa no juízo. E para exprimir o capital enquanto sujeito no juízo — eis o que nosinteressa aqui — é necessário obedecer a exigênciasinversas àquelas que

vimos se impor ao “homem” (o qual, precisamente, antes do socialismo,não é um verdadeiro sujeito). Isto é:se, dado que o homem, no capitalismo, não é um verdadeiro sujeito, em todos os juízos em que o sujeito gramatical é o homem ele deve se refletir no seu predicado —dado que no capitalismo o capital é um sujeito no sentido ontológico (pleno), é necessário, ao contrário, que a reflexão não se efetue, que o sujeito capital não passe "nos” seus predicados. Citemos o texto deMarx: “(...) Na circulação D-M-D’ (...) a mercadoria e o dinheiro sófuncionam como diferentes formas de existência do próprio valor,

o dinheiro como sua forma geral, a mercadoria como sua forma particular, por assim dizer, dissimulada. O valor passa constantemente deurna forma a outra, sem se perder nesse movimento, e se transformaassim num sujeito automático (automatisches Subjekt). Se nos detivermos nas formas fenomenais particulares, que tomam alternativamente

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o valor que se valoriza no seu curso circular(im Kreislauf seines Lebens), se chega às explicações(Erklärungen): o capital ê dinheiro, o capital é mercadoria-, mas na realidade o valor se torna aqui sujeito deum processo (Subjekt eines Prozesses), que, sob a mudança constante

das formas dinheiro e mercadoria, muda (a si mesmo) de grandeza,enquanto mais-valia se separa de si mesmo como valor primitivo, sevaloriza (a si mesmo)...” .(Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., pp. 168-169. O grifo é meu) Vê-se que nos juízos “o capital é dinheiro”, “o ca

pital é mercadoria” , o “é”não deve exprimir uma reflexão: em setratando de um sujeito no sentido ontológico pleno, o sujeito “capital”não deve passar nos predicados “mercadoria” e “dinheiro”. O capitaldeve ser posto como igual ao capital (isto é, como sujeito), ao contráriodo que ocorre com o homém antes do socialismo (isto é, quando ele nãoé sujeito), e — acrescentemos —a exemplo do que ocorre com ohomem se supusermos o socialismo (isto é, a situação em que ele setorna sujeito). (Com efeito, se, pensando no socialismo, digo “o homemé pintor”, “o homem é escritor”, “o homem é músico” etc. — “pintor”, “escritor”, “músico” etc. seriamverdadeiras determinações do sujeito homem, o qual, sendo então um verdadeiro sujeito (como ocapital no capitalismo), não se refletiria mais nos seus predicados. Deresto, mas se trata na realidade da mesma coisa, supondo o fim dadivisão do trabalho, todas essas determinações do homem deveriam, nolimite, ser atribuíveis a cada homem, assim como todas as determina

ções do capital — o dinheiro e a mercadoria — convêm a cada capital:o homem substituiria o capital enquanto “universal concreto” .)Podemos voltar agora ao nosso ponto de partida. Dizíamos: o

discurso teórico marxista em sentido estrito — o que se refere àsestruturas do capitalismo — não tem como objetivo central o operário eo capitalista, mas o capital. Lembrando que o operário e o capitalistasãosuportes do capital (e enquanto tais, num sentido — indicado —seus predicados), poder-se-ia dizer agora, sempre inserindo o discursoteórico no esquema totalizador — o discurso teórico marxista em sentido

estrito tem como objeto central não os predicados do sujeito pressu posto “homem”, mas o sujeito real “capital” , cujos predicados — su portes — reais são os predicados (negações) “do” sujeito pressuposto“homem”.

c) Marxismo, humanismo, anti-humanismo

Poderíamos resumir essas considerações, dizendo que no nível dasua “pré-história” ohomem ê e não é. Ele é, mas é somente através de“seus” predicados, que são negações. Formulação que se distanciatanto do antropologismo (posição do homem) como do antiantropolo-gismo (negação pura e simples do homem).

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Por outro lado, desenvolvendo a idéia de não posição (o que nosleva a pôr em evidencia a sua razão profunda) seria possível mostraque toda posição do homem implica umainterversão no seu contrário;isto é, o humanismo — o humanismo se caracterizando pela posição d

homem —-é na realidade um anti-humanismo (o humanismo se inter-verte em anti-humanismo), e que só a “supressão” ( Aufhebung) dohumanismo permite escapar ao “juízo” (inclusive em sentido “jurídico”) “o humanismo é um anti-humanismo” e permite assim “suprimir” tanto o humanismo como o anti-humanismo. É o que faremosagora, desenvolvendo um movimento crítico, que pretende ser umaespécie de “dedução” dos “principios” (o análogo dialético da “dedução” e dos principios) da política marxista. Voltaremos depois ao esquema totalizante.

O humanismo — entendendo por humanismo a filosofia ou a política que põe o homem, o que significa, para que a definição sejarigorosa, aquela que não só visa fins “humanos” mas que, igualmente, só aceita os meios “humanos” (isto é, a que recusa a violência — o humanismoé na realidade um anti-humanismo (ohumanismo se interverte em anti-humanismo), Porque “pôr” (setzen, poser) o homem, isto é, postular uma prática “humana” (não violência etc.) numuniverso inumano (o do capitalismo e em geral o de todo o “pré-socia-lismo”, implica aceitar — se tomar cúmplice d’ —este universo inumano. O humanismo deve pois ser rejeitado. Mas se a recusa dohumanismo significa a necessidade de aceitar a violência, e em geraalgo como um princípio “não humano” como ponto de partida (todo o

problema está na explicitação dessenão humano) — ele não implica,como se poderia pensar, conforme a representação corrente, a aceitação do anti-humanismo. Há uma saída para esta falsa alternativa.Mas vejamos primeiro porque o aníi-humanismo é igualmente inaceitável. È que se o humanismo, efetuando a posição do homem, seinverte em anti-humanismo, o anti-humanismo — que seria precisodefinir como a filosofia ou a política que pretende dispensartoda referência ao homem (tanto no nível dos meios como no nível dos fins)1 — o anti-humanismo não nos pode levar além da violência e do inumano. Ele não pode nos conduzir a nada diferente disto. Assim, seconforme os princípios da lógica do entendimento, fôssemos obrigadoa escolher entre o humanismo e o anti-humanismo,11 ficaríamos,respectivamente, entre a interversão (isto é, a contradição: a nãoviolênciaé violência, o humanoé o inumano), e uma espécie de“tautologia” (o inumano (não) é (mais do que) o inumano, a violência (não) é (mais do que) violência). A resposta que nos permitiria pensar e formular rigorosamente a relação entre meios (necessariamente) inumanos e fins humanos — e efetuar assim a passagem dos primeiros aos últimos — não pode ser, portanto, nem aresposta humanista nem a resposta anti-humanista. Mas a resposta

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que recorre à idéiaâe supressão ( Aufhebung)12 do humanismo. A política marxista não deve ser definida nem como um humanismo, nem como um anti-humanismo: ela deve ser definida e pensada em termos de supressão (Aufhebung), de negação (no sentido dialético) do humanismo. Negar dialeticamente o humanismo não quer dizer expulsar ohomem (o “humano”, a não violência) em sentido absoluto, como o faza negação vulgar aníi-humanista, mas negar a posição do homem (istoé, negá-lo conservando-o: expulsá-lo daexpressão)-, operação que setorna necessária — e isto explica o carátpr da negação — pelo fato deque, se efetuarmos a posição do homem ou do princípio “humano”,o “humano” se interverte em “inumano”. Assim,negamos o homem(a não violência etc.) para que ele não se negue a si próprio. (Se nãofosse esse o caso, não o negaríamos.) Assumimos a negação (dialética), para nãosofrer a negação (vulgar). E na medida em que a negaçãodialética contém a contradição — com efeito, se negamos o homem oconservamos ao mesmo tempo (ou se se quiser, a violência de que

partimos aqui não é a violência do anti-hümanismo que “expulsa” anão violência, mas é a violência-que-suprime-a-não-violência: que é portanto afetada de não violência13 — poderíamos dizer queassumimos a contradição para não nos contradizer. (Com efeito, se nãoassumimos a contradição, contida na negação dialética, caímos, sem oquerer ,14 na interversão: nos contradiremos em sentido vulgar.) Assim,é só recusando as teses “consistentes” (aparentemente pelo menos) —

do “humano” e do “in(anti)humano”, e enunciando a tese (dialeticamente) contraditória da “supressão”(Aufhebung) do humanismo —que se consegue escapar da contradição (vulgar) sem se refugiar na“tautologia”. E é só assim que se consegue exprimir de um modorigoroso no plano filosófico a relação contraditória entre meios nãohumanos e fins humanos, tal como se acha resolvida — em princípio pelo menos — no nível da ciência e da prática política marxistas.

d) A dialética e os discursos do entendimento

A crítica das duas falsas leituras pode também ser feita num outronível (menos interessante). Assim, pode-se mostrar através da análise docapítulo V, original, do livro primeiro deO Capital, que o “homem” nãoestá ausente do discurso teórico marxista, ainda que ele não tenha lá um papel fundante ou que não seja posto. Isto significa que a pressuposição do homem se encontra tanto no nível do discurso teórico (isto é, para o “homem” tal como ele poderia aparecer no contexto da antro pologia em sentido estrito) como no nível da(s) (finalidades da) política (para o “homem” tal como ele poderia aparecer no contexto dohumanismo.15 As análises iniciais sobre o discurso totalizante, cujonúcleo era o paralelo com aFenomenología do Espírito, englobam de

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certa maneira o conjunto desses resultados, embora elas estejam ligdas mais de perto à crítica do humanismo. Dizer — no quadro de umcomparação coma.Fenomenología — que o “homem”, considerado nonível da sua pré-história, se reflete nos seus predicados é retomaridéia de não fundação (como de não posição) acentuando a conexentre a exigência de não fundar e o movimento da história. (Em parcular a conexão entre a não fundação e a diferença pré-história/htória, pensada assim na sua matriz hegeliana e com suas implicaçõ para a teoria do juízo.) Por outro lado, no quadro da comparação coa Fenomenología já havia aparecido um movimento que tem algo emcomum com o desenvolvimento sobre a “interversão” como resultanecessário da posição — espécie de “mostração” negativa da necsidade da não posição (e sua forma era de certo modo mais geral,

aplicável ao conjunto da antropologia), a idéia de que a posição “pverte” o discurso. A comparação com&Fenomenología sintetiza assime põe num plano mais geral os diferentes aspectos da crítica do antr pologismo e do humanismo, e do antiantropologismo e do anti-humnismo. E na medida em que antropologismo (inclusive humanismo)antiantropologismo (inclusive anti-humanismo) representam, no qudro da nossa problemática, as alternativas do entendimento à dialétic poderíamos agora discutir num nível mais geral o que opõe a dialétiaos discursos do entendimento.

e) Dialética e fundação, a dialética e o tempo

Do conjunto das análises anteriores, a dialética aparece, em prmeiro lugar, como o discurso que “suprime” o ato de fundar (entedendo por “fundar” o movimento de uma fundação primeira). De faa partir dessas análises, a fundação (primeira) — esta máquina guerra da filosofia clássica — esta operação que, segundo o ide

cartesiano, deveria assegurar ao discurso um máximo de rigor e clareza, se revela como conduzindo, na realidade, ao resultado contrrio, longe de ser uma garantia do rigor do discurso, a fundação “dissolve” enquanto discurso rigoroso. Com efeito, lá onde não sujeito fundante (no universo de uma pré-história) a fundação (pmeira) não é uma operação inocente — se fundarmos, o discurso interverte no seu contrário, ou, de um modo mais geral, é conduzidose afastar do seu objeto. A fundação primeira do discursoé assim, seinterverte assim — nessas condições — na sua dissolução. A fundaçã

a sua perda.16 E se fundar é clarificar, na medida em que fundarclarificar, isto significa, ao mesmo tempo — se quisermos conservaoposição clareza-obscuridade, mas infletindo-a no sentido da dialéti —, que o máximo de clarezaé na realidade obscurecimento. Comefeito, de tudo o que dissemos resulta que um discurso só é claro,

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ponto de vista da dialética, se ele for coberto por certas “zonas desombra”.Só os discursos cujos fundamentos primeiros são de algum modo obscuros (isto ê, afetados de ‘‘negação’') são discursos efetivamente claros, em sentido dialético.

Por outro lado, se a dialética apareceu como o discurso quesuprime a fundação (primeira), esta supressão ( Aufhebung), inseridano quadro do esquema totalizante, se apresenta como uma espécie de"suspensão ” do ato de fundar à espera dotranscurso do tempo (dotempo da “pré-história”). É necessário que esse tempo transcorra paraque se possa proceder à fundação. Assim, o ato de fundar é de certomodo “posto entre parênteses”, “posto fora dç circuito”, em benefício(do transcorrer) do tempo. Ora, esse relacionamento da Aufhebung —rebatizada Ausschaltung a bem da comparação17 — com o tempo, permite enriquecer a comparação entre a dialética e os discursos doentendimento. Com efeito, se pensarmos que essa relação com o tempoé igualmente a relação com o “mundo”, poderemos dizer:se os discursos do entendimento (a filosofia transcendental em particular),

põem entre parênteses o mundo (o tempo) para proceder ao ato de fundar, a dialética põe entre parênteses o ato de fundar para se apro priar teórica e praticamente do mundo.16 Formulação que exige duas precisões. Primeiramente, como já dissemos, entendemos por fundaçãoa fundação primeira, não toda espécie de fundação: a dialética não é demodo algum estranha a toda fundação. Por outro lado, a referência à“apropriação teórica e prática do mundo” não implica considerar a

dialética como um pensamento que, enquanto pensamento teórico, temcomo “elemento” a temporalidade vivida da história: a dialética não sedistingue dos discursos do entendimento por ser (pretensamente) umafilosofia “mundana”. Seria recusar o antropologismo para cair nohistoricismo. As duas observações se encontram: para a dialética, só háverdadeira apropriação teórica do mundo se “suprimimos” o tempovivido por meio de uma fundação teórica (por um discurso do conceitoque é “anterior”, em sentido a precisar, ao discurso da consciênciahistórica): mas uma tal fundação — a única que é compatível com otempo de uma “pré-história” — sendo interior ao universo dos “predicados”, nada tem a ver, nem quanto à forma nem quanto ao conteúdo,com uma fundação transcendental.

f) Adialéticae as alternativas do entendimento

Mas se a dialética se caracteriza pela “supressão” do ato defundamentação primeira — observemos em conclusão — tal supressãoé rigorosamenteuma Aufhebung, não uma negação vulgar. O discursoque recusa pura e simplesmente a fundação primeira é tão estranho àdialética quanto o discurso que funda. Ele representa de certo modo a

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alternativacientificista do entendimento à dialética, assim como o discurso com fundamento primeiro representa sua alternativa propriamente filosófica. A primeira recusa toda espécie de totalização, enquanto a última totaliza dogmaticamente (por meio de noções postas).

Mas não sendo mais do que a efetivação do outro pólo de possibilidadesda lógica do entendimento, o discursosem fundamento primeiro égovernado pelas mesmas leis (reflexivas, remetendo à lógica da identidade) que o discurso com fundamento primeiro.

Encontramos o discurso sem fundamentação primeira, no nívelda política, na figura do anti-humanismo. No plano teórico, ele representa propriamente, nos limites da nossa problemática, o antiantropo-logismo em sentido estrito. Ora, se fizemos a crítica dos discursos comfundamento primeiro mostrando como eles sofrem uma “interversão”(ou, de um modo mais geral, como a fundação os dissolve enquantodiscursos rigorosos) — do discursosem fundamento, na única formaem que foi considerado até aqui—, a do anti-humanismo, dissemosque ele se encerra numa espécie de tautologia. Ora, se considerarmos oantiantropologismo, ou antes, um exemplo célebre de antiantropolo-gismo, poder-se-ia estabelecer uma simetria mais perfeita com a críticada forma positiva (a crítica dos discursos com fundamentação primeira): poder-se-ia mostrar —- sem dúvida, empregando o termo“interversão” em sentido mais amplo — como ocorre aqui, simetricamente, uma espécie de“interversão" do antiantropologismo em antropologismo.19 Por paradoxal que isto possa parecer — e o paradoxo é real — me refiro ao antiantropologismo althusseriano (ou aoalthusserismo considerado como antiantropologismo).20 Com efeito,nada caracteriza melhor o althusserismo — pelo menos aparentemente — do que a sua orientação antiantropologista (insistência no papel desuporte dos agentes, recusa de todo agente sujeito). Por isso na discussão sobre o althusserismo, se opuseram antropologistas e antiantro- pologistas. E entretanto, o paradoxo passou despercebido: por razõesque — poderíamos mostrar — derivam do caráter nitidamente anti-dialético do althusserismo (recusa da Aufhebung, impossibilidade deconceituar objetos-movimentos etc.), caráter que tem algo que ver coma natureza abstrata (“anti”) de sua oposição ao antropologismo, oantiantropologismo althusseriano se interverte em antropologismo. Oantropologismo é a sua verdade. Que se reflita sobre o papel privilegiado atribuído pelos althusserianos (ver, por exemplo, Balibar) aocapítulo V (original) do primeiro tomo de OCapital, onde se tratada produção em geral, e onde se introduzem as pressuposições antro pológicas. Uma análise do tratamento que dão os althusserianos a esse

ponto mostra: 1. que no althusserismo, os pressupostos antropológicosse tomam — ou, para certos textos, estão muito próximos de se transformar em — verdadeiros fundamentos antropológicos; de tal modoque o fundamento antropológico, recusado em princípio, acaba se

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introduzindo no discurso (mesmo quandoa posteriori eles pretendemnos advertir do contrário); 2. que esta “revanche” da antropologiaresulta do caráter essencialmente não dialético do pensamento althus-seriano, que é incapaz de apreender asrelações de produção num nívelque não seja o nível “não móvel” das pressuposições, do que resulta —as pressuposições passam a ocupar o lugar da verdadeirarelação de

produção — que é o próprio capital.21

SEGUNDA PARTE

a) História e posição

Retomemos a análise do discurso totalizante. Fixando-nos nanoção de “homem”, mostramos na primeira parte a significação geraldesse discurso. Procederemos agora a um duplo trabalho. Por um lado,trata-se de pôr em evidência oconjunto das noções que, particularmente no discurso.dosGrundrisse, desempenham uma função análoga:como a noção de “homem” não é a única a ter a função descrita, será preciso identificar asdiversas noções que, sempre como pressuposições, permitem abranger o conjunto do movimento histórico. Por outrolado, tratar-se-á de analisar a significação particular que poderiam

tomar essas pressuposições, conforme se considereeste ou aquele modo de produção. Explicamos. Não se trata de passar do esquema global,que utiliza pressuposições, a análises relativas a cada modo de produção que mobilizam noções postas. Um movimento como este, que narealidade estabeleceria uma anterioridade lógica do esquema global emrelação às análises particulares, dando assim às pressuposições o estatuto de fundamentos, seria contraditório com tudo o que foi dito. Pelocontrário: particularizaremos as pressuposiçõesenquanto pressuposições, isto é, tentaremos mostrar, a partir do que Marx diz sobre cadamodo de produção, que sentido diferencial tomam essas pressuposições,conforme se as considere como visando este ou aquele modo. Por exem plo, que diferença poderia haver entre um juízo do tipo “o homem é ogrego” e um juízo como “o homem é o operário”. 22 Os resultados desseduplo trabalho, e em particular os que concernem ao sentido das pressuposições para o caso do capitalismo, nos permitirão retomar asconsiderações gerais sobre a dialética.

b) Quadro das pressuposições23

No esquema da história que se encontra nosGrundrisse, a passagem da “pré-história” à “história” não representa somente o surgi-

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mento do homem (sujeito), não concerne somente ao conceito de“homem” . Tal movimento representa também o surgimento dariqueza (da verdadeira riqueza), daliberdade (da verdadeira liberdade) e, porestranho que pareça, da verdadeira“propriedade” (ou da “proprie

dade individual”) no sentido em que a noção é empregada emO Ca pital, quando Marx escreve: “Ela (a negação da propriedade capitalista, isto é, o socialismo) restabelece não a propriedade privada, massem dúvida a propriedade individual (das individuelle Eigentum), fundada(auf Grundlage) nas aquisições da era capitalista (...)” .24(A “pro priedade” entendida, conforme o uso dosGrundrisse, como conotandouma relação “viva” , fonte de gozo, entre os homens e as coisas.)25 Asnoções de “homem” , de “riqueza” , de “liberdade” e de “propriedade”(no sentido indicado) representam assim o conjunto das pressuposi

ções, ou pelo menos as mais importantes delas,26 por meio das quais seorganiza o quadro geral da história que oferecem osGrundrisse. Istosignifica, como indicamos, que o conjunto da história pode ser pensadocomo constituindo a “pré-história” do homem, mas igualmente a“pré-história” da riqueza (da verdadeira riqueza), a “pré-história” daliberdade (da verdadeira liberdade), a “pré-história” da “propriedade”(da verdadeira propriedade, ou da “propriedade individual”, no sentido indicado). E, no plano lógico, isto significa que todos os juízossobre a “pré-história” cujo sujeito, em sentido gramatical, é o homem,a riqueza, a liberdade e a “propriedade” (o homem é..., a riqueza é...,a liberdade é..., a “propriedade” é...) são juízos de reflexão, nos quaiso sujeito passa “no” predicado.

Tentemos exemplificar esses juízos, tomando na medida do possível os próprios textos de Marx.

Para a noção de “homem”, poderíamos lembrar um exemplocélebre, ainda que este exemplo não convenha de modo perfeitamenteexato ao nosso caso. Refiro-me à tese VI sobre Feuerbach: “Feuerbachresolve a essência religiosa na essênciahumana. Mas a essência humana não é um abstrato(ein Abstraktum) inerente ao indivíduo isolado (dem einzelnen Individuum). Na sua realidade efetiva, ela é oconjunto(das Ensemble) das relações sociais”. 27 Ou, resumindo: “Aessência humana — (nas traduções se encontra às vezes “o homem” emlugar de “a essência humana”) — é (...) o conjunto das relaçõessociais”. Com efeito, a tese VI só pode ter um sentido rigoroso, queescape ao humanismo, se ela for lida como um juízo de reflexão em quesó o predicado é posto. Em “a essência humana é o conjunto dasrelações sociais”, só o predicado “relações sociais” — não o sujeito“essência humana” (ou então “homem”) — é posto. “Essência humana” — ou então “homem” — se reflete em “relações sociais”.Para que a tese VI corresponda plenamente ao nosso caso, énecessário liberá-la do universo da “transição” e reinterpretá-la da perspectiva dos textos de maturidade. Com efeito, no universo discur-

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sivo da transição — ver A Ideologia Alemã que, para o problema daantropologia, é acontrapartida exata das obras de juventude (o quenão se poderia dizer das obras de maturidade) — as pressuposiçõesantropológicas funcionam só como simples pressupostos do discurso

substantivo. Elas não remetem ao mesmo tempo, como é o caso, naobra de maturidade, à possibilidade de um preenchimento progressivo,que poderia conduzi-las à posição final enquanto sujeitos. (Digamos,no universo discursivo da transição, as pressuposições só remetem aoquadro não-móvel da antropologia em sentido estrito.) Lido no contexto da transição, “o homem é o conjunto das relações sociais” sócontém assim a reflexão do sujeito “homem” no predicado “relaçõessociais”, no qual o primeiro “se” preenche; mas não o outro lado dacoisa: o movimento que deveria preencher o sujeito “homem” e fazerdele um verdadeiro Sujeito, no sentido ontológico. A possibilidadedesse movimento só aparece se reinterpretarmos a tese da perspectivada maturidade. Observemos entretanto — ponto que será retomado deum modo mais detalhado na observação abaixo — que, qualquer queseja a perspectiva de leitura (mesmo se, nos colocando do ponto de vistado universo da transição, fizermos economia do enriquecimento progressivo do sujeito), o movimento sujeito/predicado não exprime deforma alguma uma negação vulgar, um desaparecimento do sujeito no predicado, mas uma Aufhebung, uma negação que é também conservação do sujeito enquanto sujeito pressuposto.

Observação

No quadro da sua crítica do humanismo e em particular dacrítica da noção de “humanismo real”, emPourMarx, Althusser tocano problema da tese VI, e faz as seguintes considerações a esse res peito: “Qual é, com efeito, esta ‘realidade’ que deve transformar oantigo humanismo em humanismo-real? É a sociedade. A tese VI sobreFeuerbach diz mesmo que o‘homem’ não abstrato é ‘o conjunto dasrelações sociais’. Ora, se tomarmos esta expressão, literalmente, comouma definição adequada,ela não quer dizer nada. Que se tente sim plesmente dar uma explicação literal disto, e se verá que não a encontraremos, a menos que recorramos a uma perífrase deste tipo: ‘se sequiser saber qual é a realidade, não a que corresponde adequadamenteao conceito de homem ou de humanismo, mas que está indiretamenteem causa nesses conceitos, não é uma essência abstrata, mas o con

junto das relações sociais’. Esta perífrase faz aparecer imediatamenteumainadequação entre o conceito homem e a sua definição: conjuntodas relações sociais. Entre esses dois termos (homem/conjunto das

relações sociais) há sem dúvida uma relação, mas ela não é legível nadefinição,não é uma relação de definição, não é uma relação de conhecimento” (grifado sempre por Althusser). E Althusser continua:

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“Entretanto esta inadequação tem um sentido, esta relação tem umsentido: um sentido prático. Esta inadequação manifesta designa umaaçãoa realizar, um deslocamento a efetuar. Ela significa que, paraencontrar e achar a realidade à qual se alude buscando não mais o

homem abstrato mas o homem real, é necessário passar à sociedade, e pôr-se a analisar o conjunto das relações sociais. Na expressão humanismo-real, eu diria que o conceito “real” é um conceito prático, oequivalente de umsinal, de um painel indicador, que “indica” quemovimento é preciso efetuar, e em que direção, até que lugar é precisse deslocar para sè encontrar não mais no céu da abstração mas naterra real. “Por aqui, o real!” Seguimos oguia, e desembocámos nasociedade, nas relações sociais, e suas condições de possibilidade realMas é então que eclode o escandaloso paradoxo: uma vez efetuado

realmente essedeslocamento, uma vez feita a análise científica desseobjeto real, descobrimos que o conhecimento dos homens concreto(reais), isto é, o conhecimento do conjunto das relações sociais, só possível se dispensarmos completamente osserviços teóricos do conceito de homem (no sentido em que ele existia, na sua pretensão teóricmesmo antes desse deslocamento). Este conceito, com efeito, nos aparece (como) inutilizável do ponto de vista científico, não porque ele abstrato! — mas porque ele não é científico. Para pensar a realidade dsociedade, do conjunto das relações sociais, devemos efetuar umdeslo

camento radical, não só um deslocamento de lugar (do abstrato aoconcreto) mas também um deslocamento conceptual (mudamos osconceitos de base!). Os conceitos nos quais Marx pensa a realidade para a qual indicava o humanismo-real, não fazem mais intervir umúnica vez como conceitosteóricos os conceitos de homem ou de humanismo; mas outros conceitos inteiramente novos, os conceitos de modde produção, de forças de produção, de relações de produção, desuperestrutura, de ideologia etc. Eis o paradoxo: o conceito prático qunos indicava o lugar do deslocamento foi consumido no próprio deslocamento, o conceito que nos indicava o lugar da investigação está daqu por diante ausente da própria investigação” . (Althusser, “Marxismo Humanismo”, “nota complementar sobre o humanismo real”,in Pour

Marx, Paris, Maspero, 1965, pp. 254-255) O comentário desse textooferece certas dificuldades porque Althusser trata ao mesmo tempo dquestão do “humanismo real” e do problema levantado pela tese VI, oquais não são perfeitamente idênticos. Esse relacionamento já é, dresto, sintomático. Aqui nos interessa somente a tese VI. Observemoinicialmente — o que não deixa de ser saboroso: o anti-hegelianoAlthusser topa aqui com uma forma que foi estudada pela lógica deHegel. Porque aquilo que é visado pelo texto — sem que Althusseconsiga formulá-lo de Um modo satisfatório — é o juízo de reflexãoo movimento de reflexão do sujeito “no” predicado. Althusser apreende este movimento não sem acentuar, com uma certa perplexidade

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(udo o que o separa do seu próprio universo lógico: “não é uma relaçãode definição” (o que é verdade em certo sentido), “não é uma relaçãode conhecimento” (o que já vai longe demais), e ele se refere ao mesmona continuação, em termos de “escandaloso paradoxo”. Mas se, dequalquer modo, devemos reconhecer os méritos de Althusser em haverregistrado, contra as leituras ingênuas dos humanistas, o movimentosujeito/predicado que contém a tese VI — méritos que em certo sentidosão tanto maiores dado o fato de que ele não parte, muito pelo contrário, dos resultados da lógica de Hegel —, não se deve perder de vistaque, na interpretação que dá, ele paga um preço pelo seu anti-hege-lianismo. Com efeito, a interpretação que dá Althusser à tese VI só põeem evidência o lado negativo da passagem, a negação do sujeito pelo predicado, não a sua conservação enquanto sujeito-negado. Mesmo seele diz que o “homem” só desaparece enquanto conceitoteórico (ou poristo mesmo: é compreender mal as pressuposições dizer que a funçãodelas é “prática”), é evidente que ele toma a negação do “homem” natese VI como uma negação vulgar; o “homem” só indicaria o “lugar deum deslocamento”. Tal leitura é evidentemente insuficiente. Mesmo setivermos em vista o universo da transição, A Ideologia Alemã, queatribui às pressuposições o estatuto mais pobre, veremos que — pelomenos considerando o seu uso efetivo por Marx — elas têm, de qualquermodo, funções mais ricas do que as que lhes atribui Althusser. Tomá-las como “conceitos práticos”, como signos (ou sinais?) indicativos deuma ação, implica enveredar pela interpretação mais nominalista das

pressuposições. (Esta interpretação não impediu de resto que Althusserencetasse ao mesmo tempo o movimento contrário no que se refere às pressuposições do capítulo V (original) do livro I de OCapital (ver aesse respeito o final da primeira parte do nosso texto).) Assim, a análiseda tese VI, que deveria conduzir à dupla crítica do antropoíogismo e doanti-antropologismo, só desembocou na crítica justificada mas unilateral — e portanto falsa — do antropoíogismo, com o seu corolárioantinômico: a emergência do próprio antropoíogismo. Esse texto dePour Marx é exemplar na medida em que ele mostra como, levado pelasua própria problemática, a “quietude” do entendimento althusse-riano foi conduzida às vezes até os limites da “inquietude” da razãodialética, sem evidentemente perceber o abismo de que se aproximou.

Para a noção de “riqueza”, pode-se encontrar um juízo de refle-'xão, em que “riqueza” será portanto sujeito pressuposto, num outrotexto célebre, o primeiro parágrafo do capítulo primeiro do livro I de OCapital: “A riqueza das sociedades em que reina o modo de produçãocapitalista aparece como uma ‘imensa coleção de mercadorias’, amercadoria singular como a sua forma elementar” .28 Esta frase pode

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ria ser simplificada no juízo: “(No capitalismo), a riqueza é... merca-doria”, juízo no qual só o predicado “mercadoria”, não o sujeito “riqueza” , é posto.

Observação

Como para o conceito de “homem”, encontramos nos althusse-rianos urna crítica do conceito de “riqueza” , exatamente a propósito do parágrafo primeiro do livro I de OCapital. Em “A propósito do processo de exposição doCapital”, Macherey escreve, comentando esse parágrafo: “(...) Com efeito, o ponto de partida da exposição de Marxé absolutamente surpreendente, o primeiro conceito, o conceito de quetodos os outros irão ‘sair’, é o conceito de RIQUEZA. Não se trataevidentemente de uma abstração científica, mas de um conceito empírico, falsamente concreto, próximo daqueles que a Introdução nosensinou a denunciar (ver por exemplo a crítica da idéia de ‘população’)A riqueza é uma abstração empírica: é uma idéia: falsamente concreta(empírica), incompleta nela mesma (ela não tem sentido autônomo,mas só em relação a um conjunto de conceitos que ela recusa). Ariqueza é um conceito ideológico,do qual à primeira vista não se pode tirar nada. Do ponto de vista do processo de investigação (do trabalhoda investigação científica), ela constitui o pior ponto de partida. Aparentemente não é a mesma coisa para o processo de exposição, pois é partir déla que Marx apresenta os conceitos fundamentais da suateoria. Que se deve pensar desse início? — Várias observações permitem responder a essa questão: 1) Marx não pede a essa idéia mais doque ela pode efetivamente produzir. Ao conceito empírico ele aplicauma análise empírica: eledecompõe a riqueza em seuselementos, nosentido mecânico do termo (a mercadoria é a ‘forma elementar’, celular, da riqueza); a riqueza não é mais do que uma acumulaçãode mercadorias. A idéia é ‘explorada’ nos seus próprios limites: não s

pretende fazê-la dizer o que não pode dizer; 2) Esta idéia, na medidaem que nos contentamos assim em descrevê-la sem lhe acrescentarnada, sem dotá-la de um segredo que, pelo contrário, ela eliminou piedosamente, não tem necessidade de justificação: ela não diz nadaalém do que comporta a sua insuficiência. Ela é portanto um ponto de

partida, se não legítimo, pelo menos cômodo: ela é o objeto empíricoimediatamentedado, da ‘ciência econômica’. É bem nessa qualidadeque ela fornecia umquadro, por exemplo, à pesquisa de Adam Smith.Tudo se passa como se ela desempenhasse aqui o papel de uma revo-cação: entende-se habitualmente por economia política o estudo da riqueza; se partimos da idéia de riqueza, vemos que esta idéia se decom

põe... Mas evidentemente este conceito não tem valor por si mesmo: elé profundamentetransitivo, ele serve para passar a outra coisa, e em particular para recordar a ligação com o passado da investigação

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científica. Essa função evocatória montra bem que o conceito não deveo seu primeiro lugar ao seu rigor, mas pelo contrário ao seu caráterarbitrário. Ele manifesta pela sua evidente fragilidade a necessidade defalar de outra coisa, de entrar nesse difícil caminho que só avança a partir do esquecimento de tudo o que o precedeu (...)” . (Macherey, P.,“À propos du processus d’exposition duCapital” in Lire le Capital, IV,Paris, Maspero, 1973, pp. 17-18, grifado pelo autor) A exemplo do quevimos para a noção de “homem”, o althusserismo dá bem conta docaráterexterno da noção de riqueza, isto é, do “lado” da sua ausênciaou da sua negação. Mas o lado positivo, o da sua presença enquantosujeito-“negado”, só é expresso por termos totalmente imprecisos(“função evocatória”, “comodidade” etc.). O que confirma as observações anteriores (ver observação acima).

Para as noções de “liberdade” e de “propriedade”, daremos porenquanto só exemplos “artificiais”: (no capitalismo) “a liberdade é...a liberdade burguesa”, “a propriedade é... a propriedade privadacapitalista”, nos quais, só os predicados “liberdade burguesa” e “pro priedade privada capitalista” são postos.

ç) Pré capitalismo, capitalismo, socialismo

Vejamos agora de que forma se poderia particularizar estasnoções; isto é, examinemos que significações diferenciais se poderiaatribuir aos juízos de reflexão do tipo “o homem é...”, “a liberdadeé...” etc., conforme se considere este ou aquele modo de produção.

Tal análise poderia ser reduzida a dois casos: o do pré-capita-lismo (considerado em conjunto) e o do capitalismo. Com efeito, aindaque Marx analise nosGrundrisse (sobretudo no início dasFormas...)as particularidades das diversas formações pré-capitalistas — no esquema do conjunto da história que ele dá na continuação do mesmotexto, a história aparece dividida em três grandes momentos: o précapitalismo (considerado em bloco ou “representado” pela Antiguidade clássica), o capitalismo e o socialismo. Como para o socialismonão haveria mais reflexão do sujeito no predicado — porque nesse casoo homem é um verdadeiro sujeito — o nosso problema se reduz a distinguir os juízos de reflexão que têm como objeto o pré-capitalismo dos

juízos de reflexão que têm como objeto o capitalismo. Se se quiser,trata-se de mostrar a diferença — se há diferença — entre um juízocomo “o homem é o grego” ou “o homem é o cidadão romano” , e um

juízo como “o homem é o operário” ou “o homem é o capitalista” .Trata-se na realidade de projetar sobre o plano do juízo — isto é, de

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pensar como expresso no movimento do juízo — a diferença real, esta belecida no plano geral do conteúdo, entre o pré-capitalismo e o capitalismo.29 Mas o conteúdo dessa distinção, tal como a encontramos emMarx, parece à primeira vista contradizer o que dissemos sobre anão-posição do homem-sujeito no nível da “pré-história”. Com efeito,os Grundrisse, como o conjunto dos textos de Marx, distinguem o pré-capitalismo do capitalismo a partir do fato de que no primeiro afinalidade da produção é o valor de uso ou a satisfação dos indivíduos,enquanto no segundo a finalidade é a valorização do valor. Ora, projetada sobre o problema da função dos agentes, o qual por sua vez nosremete à problemática do juízo, a distinção equivale aparentemente aafirmar que no pré-capitalismo (onde a finalidade é o valor de uso e

portanto a satisfação dos agentes) os agentes sãosujeitos; enquanto nocapitalismo, onde, pelo contrário, a valorização do valor é a finalidade,

os agentes são apenassuportes. Mas como conciliar essa distinção, eem particular a idéia dos agentes-sujeitos no pré-capitalismo, com oesquema anterior nos termos do qual coincidiam o surgimento dosujeito e o fim da “pré-história”? Seria preciso restringir a não-posiçãodo sujeito ao caso exclusivo do capitalismo? Ora, examinando bem, sevê que tanto para o pré-capitalismo como para o capitalismo o“homem” é, sem dúvida, uma pressuposição, embora não o seja domesmo “modo”. Com efeito, se considerarmos um juízo como “ohomem é o cidadão romano” ou um juízo como “o homem é o operário”, é preciso sempre reconhecer a passagem do sujeito “no” predicado, pois o “homem” não é nem em um caso nem em outro umverdadeiro sujeito ontológico como no socialismo. Mas as duas reflexões não têm a mesma significação particular. Poder-se-ia exprimir deum modo muito geral essa diferença, dizendo inicialmente que, se nosdois casos, o “homem” passa “no” “seu” predicado, o predicado noqual ele se reflete é, no primeiro caso, algo assim comoum sujeito no interior do universo dos predicados, ao passo que, no segundo, o predicado é sem dúvida um predicado, mesmo em relação ao universo dos predicados. Se eu disser: “o homem é o grego” (pensando sempre naAntiguidade), “homem” passa, sem dúvida, “no” predicado “grego” eé negado por ele, assim como ele passa “no” predicado “operário” e énegado por “operário” em “o homem é o operário” : com efeito, a Antiguidade, como a época capitalista, só pertence à “pré-história” do“homem”. Mas diferentemente do predicado “operário”, que exprimerigorosamente umsuporte, o predicado “grego” exprimede certa

forma o “homem” enquanto sujeito, pois, tanto para a Antiguidadecomo para o conjunto do pré-capitalismo, os “homens” são a finalidade da produção.30 Seria necessário, entretanto, exprimir essa diferença de um modo mais preciso. Para isto examinemos os textos dosGrundrisse. Depois de ter mostrado que na Antiguidade (pré-capitalismo), “a riqueza — entendida como riqueza abstrata e objetiva —

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nunca é a finalidade da produção”, Marx escreve nas “Formas que precedem a produção capitalista”, pondo em paralelo a Antiguidade(o pré-capitalismo), o capitalismo e o socialismo: “(...) Assim, a visãoantiga, em que o homem aparece sempre como a finalidade da pro

dução — qualquer que seja a sua determinação limitada, nacional,religiosa, política — parece muito elevada diante do mundo modernoem que a produção aparece como a finalidade do homem e a riquezacomo a finalidade da produção. Mas, de fato, quando a forma burguesa limitada é retirada, que é a riquéza senão a universalidade — produzida no intercâmbio universal — das necessidades, capacidades,gozos, forças produtivas etc. dos indivíduos? O pleno desenvolvimentoda dominação humana sobre as forças naturais tanto as da assimchamada natureza como a da sua própria natureza? (...) Na economia

burguesa — e na época de produção que lhe corresponde — esta plenaelaboração (diese völlige Herausarbeitung) da interioridade humanaaparece como um completo esvaziamento(völlige Entleerung), estaobjetivação universal (universelle Vergegenständlichung) como alienação total(totale Entfremdung), a derrubada de todas as finalidadesdeterminadas unilaterais, como sacrifício da finalidade-de-si(Selbstzweck) em benefício de uma finalidade totalmente externa.Por isso, de um lado, o infantil mundo antigo aparece como superior. Por outro lado, ele o é sempre que se buscar (uma)configuração, (uma) forma

fechada, e (uma) delimitação estabelecida. Ele é satisfação de um ponto de vista limitado; enquanto o (mundo)moderno (das Moderne) deixa insatisfeito, ou quando aparece satisfeito de si, ele é vulgar (gemein)".31 Vê-se de que forma o texto distingue o mundo antigo(que, até certo ponto, representa aqui o pré-capitalismo em geral) domundo moderno (isto é, do capitalismo): como a finalidade da produção nas economias pré-capitalistas é a reprodução dos indivíduos enão a riqueza (objetiva, abstrata) pela riqueza, nelas os indivíduos sãosatisfeitos, o que permite estabelecer uma relação entre o pré-capi-

talismo e o socialismo; mas se trata de uma satisfação no interior de umcírculolimitado. Ao passo que no capitalismo temos a situação inversa:como a finalidade da produção capitalista não é a satisfação dos indivíduos mas a riqueza (objetiva, abstrata) pela riqueza, no capitalismo oindivíduo permanece insatisfeito. E, entretanto, o princípio do capitalismo é o do desenvolvimentoinfinito, da derrubada de todas as barreiras e de toda limitação; o que, por sua vez, permite aproximar ocapitalismo do socialismo. Assim, pré-capitalismo e capitalismo res pondem cada um deles a uma das exigências do socialismo — a satis

fação do indivíduo ou o desenvolvimento infinito, massacrificando aoutra.Se lermos agora esses resultados, fixando-nos nos juízos de refle

xão que têm como objeto o pré-capitalismo e o capitalismo, obteremosos seguintes resultados: se digo “o homem é o grego” (ou “a riqueza é a

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riqueza no sentido antigo”, ou “a liberdade é a liberdade antiga” etc.),o sujeito passa “no” predicado, o predicado nega o sujeito, mas istoapenas porque o predicado só satisfaz ao sujeito de um modo limitado.O predicado “grego” (“romano” etc.) nega o sujeito “homem” não porque “grego” (ou “romano”) é um não-sujeito no sentido em que“operário” e “capitalista” são não-sujeitos, mas porque este predicado,como os outros predicados análogos, encerra o sujeito “homem” numadeterminação limitada. A negação só está, aqui, nalimitação. Mas nãoé assim nos juízos “o homem é o operário” , “o homem é o capitalista”(ou “a liberdade é a liberdade burguesa”, “a riqueza é a riquezacapitalista”, “a propriedade é a propriedade privada capitalista”). Nesse caso, a negação do sujeito pelo predicado não provém de formaalguma da limitação dos predicados. O operário, o capitalista, a liberdade burguesa, a riqueza no sentido capitalista, a propriedade privadacapitalista não são a rigor expressões limitadas dos “seus” sujeitos.O princípio infinito está lá, em todas essas expressões.32 O predicadosatisfaz sem dúvida à infinidade do sujeito — ou não a afeta — e desse

ponto de vista não haveria mais negação. Mas ele só a satisfaz de formanegativa. O sujeito não encontra uma forma limitada (mas de certomodo positiva, ou negativa só enquanto limitada), mas encontra uminfinito negativo. A negação não é limitação do infinito, mas realização negativa do infinito enquanto infinito. O que significa: para o capita

lismo, os predicados dos sujeitos (pressupostos) “homem”, “riqueza”,“liberdade”, “propriedade”,conservando o princípio infinito, exprimem propriamente uma interversão (renversement) na negação deles,uma interversão em seus contrários. Aqui, rigorosamente, o homem énão-homem, a liberdade é não-liberdade, a riqueza é nâo-riqueza,a propriedade é não-propriedade. O predicado exprime a negação dosujeito: a relação entre sujeito e predicado é uma relação contraditória.

Tentemos agora exemplificar essas interversões (enquanto inter-versões) e analisar mais de perto a sua significação. É a partir de lá —

este ponto representa, de fato, o núcleo do que tínhamos a dizer nestasegunda parte — que tentaremos tirar novas conclusões relativas àdialética.

d) Á interversão

Que no capitalismo o homem se interverte em não-homem, aliberdade em não-liberdade, a riqueza em não-riqueza, a propriedadeem não-propriedade se poderia ver, primeiro, mostrando simplesmentecomo os predicados dessas determinações, para o caso do capitalismo,estão em contradição com os seus sujeitos: com efeito, a liberdade burguesa é liberdade do capital,33 a propriedade privada burguesa émenos propriedade do indivíduo sobre o capital do que propriedade do

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capital sobre ele mesmo,34 a riqueza burguesa é de fato pobreza(subjetiva),35 o homem (o operário, o capitalista) é na realidade um“não-homem”. Ou, em outros termos, no capitalismo a liberdade¥= liberdade, o homem ^ homem, a propriedade ^ propriedade, a

riqueza ^ riqueza. As identidades liberdade = liberdade, homem =homem, propriedade = propriedade, riqueza = riqueza só se produziriam no socialismo. Entretanto, nos interessa mostrar o lugar dessainterversão na própria construção deO Capital (pois ela tem um lugarlá), mostrar o lugar preciso em que ela se encontra e a significação quetoma no conjunto da apresentação do modo de produção capitalista.Para isto, será preciso examinar o que ocorre com as noções de propriedade e de liberdade (também, de certa forma, para a noção de homeme para a noção de riqueza) quando se passa das seis primeiras secçõesde OCapital à secção sétima. Com efeito, é lá que se opera a inter-versão.

e) Ainterversão emO Capital36

A interversão no livro primeiro deO Capital decorre da mudançaque se opera, quando se passa à teoria da reprodução, no que se refereà maneira de pensar o movimento do capital. Razão pela qual será preciso demorar-se nesse ponto. Até a secção sexta, o movimento do

capital aparece de uma forma descontínua, pois cada volta do capital éconsiderada independentemente da que a precede e da que a sucede,como se estivéssemos sempre na primeira volta. De tal modo que omovimento do capital estaria ainda suspenso ao seu ponto de partidarepresentado por umcontrato entre dois agenteslivres. Esses agentes seencontrariam “fortuitamente” no mercado, e obedecendo à lei da trocade equivalentes, trocariam a mercadoria força de trabalho, da qual umdeles é proprietário, por um equivalente em dinheiro de que dispõe ooutro, que é também proprietário dos meios de produção.37

Temos uma situação totalmente diferente no momento em que passamos à teoria da reprodução e da acumulação. As voltas do capitalnão serão mais consideradas como independentes umas das outras.O movimento do capital será considerado agora como um fluxo contínuo, como um processo sem interrupção; cada volta está ligada à que a precede e à que a sucede. Este relacionamento das voltas sucessivasaltera o sentido de todo o processo. Primeiramente, o caráter pretensamente contingente do encontro entre o operário e o capitalista, e portanto a pretensa liberdade do contrato entre eles são reduzidos asimples aparências. A idéia de que o operário “encontra” no mercado o

capitalista e lhe vende livremente a sua força de trabalho como qualquer vendedor vende a sua mercadoria aparece agora como uma ilusãoda circulação. Na realidade, o operário e o capitalista são constante-

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mente (re-)criados, e “reunidos” pelo próprio movimento do capital, eé assim o movimento do capital que, reproduzindo o operário enquantooperário, oobriga a vender cada vez a sua força de trabalho. E mais doque isto. A “redução a uma aparência” provocada pela continuidade

do processo não atinge apenas a liberdade do contrato: ela concerne à própria idéia de que há umatroca de equivalentes. É através da continuidade propriamente que o capital interioriza os seus pressupostos eelimina a sua dependência em relação ao seu ponto de partida. Comefeito, no momento em que se considera o capital num fluxo continuo, o valor que em forma de dinheiro é transferido para o operárioenquanto salário aparece como valor extorquidosem equivalente38 nomovimento anterior — extorquido talvez de um outro operário, mastodas as diferenças individuais desaparecem na perspectiva da acumulação que só considera a relação entre classe e classe — e por isso acompra da força de trabalho deixa de ser uma verdadeira compra: oque o capitalista dá ao operário (à classe operária) em forma de salárioé na realidade uma parte da riqueza criada pela própria classe operária. Riqueza que, ademais, é substituída por um novo produto — umnovo sobreproduto — criado sempre pela classe operária. Assim, nãohá mais equivalentes nem a rigor troca, mas apropriação sem equivalente do trabalho alheio. E isto num duplo sentido: o que a classeoperária recebe é riqueza produzida pela própria classe operária. O retorno dessa riqueza, que ela mesma criou, só se faz alienando um novo

(sobre-) produto. A riqueza produzida por uma classe é sugada continuamente pelos representantes de uma outra classe — esta é a maneira pela qual se apresenta agora o processo. Essa mudança de perspectivaque representa na realidade uma mudança de sentido, objetiva, do processo, constitui o que Marx chama de interversão da lei da apro priação ou da propriedade, interversão cujos dois momentos poderiamser resumidos da seguinte maneira: uma volta do capital ou cada voltado capital obedece à lei de apropriação ou de propriedade das economias mercantis, lei segundo a qual a apropriação dos produtos se faz pela troca de equivalentes e depende, em última instância, do trabalho próprio. Mas a repetição das voltas do capital — e portanto o cumprimento reiterado da lei de apropriação pelo trabalho e pela troca deequivalentes — interverte esta lei na lei de apropriação capitalista,apropriação sem equivalente do trabalho alheio.

Observação

Vê-se por aí que, embora em sentido diferente do das obras de juventude, a idéia de que, se não o operário, pelo menos a classe

operária “aliena oseu produto” tem, sem dúvida, um sentido rigorosoem Marx. Se os althusserianos a recusam é, entre outras razões, porqueeles são incapazes de apreender plenamente o sentido da passagem da

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secção sexta à secção sétima do livro primeiro. Tomemos por exemplo otexto de Balibar em Lire le Capital. Ë verdade que no capítulo do seutexto, consagrado à reprodução (ver E. Balibar, “Sur les conceptsfondamentaux du matérialisme historique”, em Lire le Capital II,

Paris, Maspero, 1968, pp. 152 e segs.), se fala da “redução à aparência” que se opera na secção sétima, redução que é apresentada, comrazão, como atingindo a liberdade dos contratantes, a troca de equivalentes, e em geral o conjunto da perspectiva subjetiva da produção.(“(...) a análise da reprodução faz desaparecer a aparência que repousasobre o ‘começo’ do processo de produção; a aparência do contrato‘livre’ cada vez renovado entre o operário e o capitalista. (...) A reprodução faz aparecer os ‘fios invisíveis’ que encadeiam o assalariado àclasse capitalista”. (Idem, p. 169) “(...) A reprodução faz desaparecera aparência de que a produção capitalista não faz mais do que aplicaras leis da produção mercantil, isto é, atroca de equivalentes. Cadacompra e venda da força de trabalho é uma transação dessa forma, maso movimento de conjunto da produção capitalista aparece como omovimento pelo qual a classe capitalista se apropria continuamente,sem equivalente, de urna parte do produto criado pela classe operária(...). (Idem, pp. 169-170, grifo do autor)) E, entretanto, falta nessetexto algo que é absolutamente essencial. Com efeito, Balibarnão apresenta a relação entre os dois momentos (o momento de uma volta isolada eo da reprodução) como uma relação de contradição, ou, se se quiser, ele não apresenta a passagem em termos de uma interversão. Buscar-se-á inutilmente no seu texto — o que sc explica — a apresentação da interversão das leis de apropriação em termos de contradição. O conceito que pressupõem as análises de Balibar não é o decontradição mas o deruptura oucorte. (“Essas análises são aquelas emque Marx nos mostra o movimento de passagem (mas essa passagem é uma ruptura, uma inovação radical) de um conceito de produção comoato, objetivação de um ou de vários sujeitos a um conceito da produçãosem sujeito, que determina por sua vez certas classes como suas funções

próprias” .(Idem,

p. 171, grifo do autor)) Tal apresentação da passagem é inteiramente insuficiente. Quem diz contradição (dialética) diz“tensão”, separação, mas também união entre os dois termos. Quemdiz ruptura, corte, diz “separação”: cada termo “fora” do outro. Comefeito, se a relação entre os dois momentos é uma ruptura, não podehaver posição da passagem — um corte, uma ruptura é um vazio — eque não haja posição da passagem significa que o primeiro momentoestá fora do segundo, o segundo só pode aparecer comoresultado (emsentido abstrato), quesubstitui o primeiro. Ê assim que no conjuntodos textos citados, e mesmo se o autor o evoca numa passagem, o primeiro momento desaparece; é só o segundo que está presente.39 Ora,é somente se o segundo momento, ainda que contradizendo o primeiro,o conserva como momento negado (ou, se se quiser, é somente se a

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contradição for pensada em termos de Aufhebung) que se poderá dizerque a classe operária perde oseu produto. Se for rompidatoda continuidade entre os dois momentos, mesmo acontinuidade na desconti- nuidade que caracteriza a Aufhebung, só se apreenderá aapropriação intervertida, não ainterversão da apropriação. É finalmente o únicoresultado a que chega Balibar. Erro inverso àquele em que incorre aleitura antropologista da interversão, que faz do primeiro momento o

fundamento do segundo — o que absolutamente não se supõe aqui — eda interversão não uma negação (também no sentido lógico), mas umasimples inversão real (em sentido fraco, sem implicar uma negaçãológica) do movimento fundador.

Assim, sem que se faça violência à lei de apropriação das economias mercantis em geral, pelo contrário, uma vez estabelecidas ascondições que permitem a sua manifestação mais completa — “a continuidade da ação de uma lei é certamente o contrário da sua infração” 40 — esta lei (a lei da apropriação pelo trabalho e pela troca de equivalentes) fazendo, âe certo modo, violência a si mesma, se interverte noseu contrário.41 E assim se poderia afirmar — a conclusão que nosinteressa — que, estabelecida a continuidade das voltas do capital quesupõe a teoria da acumulação, aliberdade (dos contratantes, do operário em particular) se interverte em não-liberdade (a liberdade setorna uma aparência), e a propriedade, ou antes, o princípio de pro

priedade se interverte em princípio de não-propriedade. O trabalho,fonte de propriedade, se torna, por uma interversão interna, fonte denão-propriedade, de desapropriação contínua: “(...) a lei de apropriação ou lei da propriedade privada que repousa sobre a produção demercadorias e a circulação de mercadorias se interverte (umschlagen) pela sua própria dialética interna, inevitável, no seu contrário direto.A troca de equivalentes, que aparecia como a operação primitiva, ‘girou’de tal maneira que só se troca na aparência, porque, primeiramente,mesmo a parte do capital trocada pela força de trabalho é somenteuma parte do produto do trabalho alheio apropriado sem equivalente,e, em segundo lugar, ela não só é substituída pelo seu produtor, o operário, mas deve ser substituída com um novo excedente. A relação detroca entre o capitalista e o operário torna-se assim apenas uma aparência que pertence ao processo de circulação, pura forma, que é estranha ao conteúdo, ele próprio, e não faz mais do que mistificá-lo. Acompra e venda constante da força de trabalho é a forma. O conteúdo éque o capitalista investe, cada vez, uma parte do trabalho alheio jácristalizado de que ele se apropria continuamente, contra umquantum maior de trabalho alheio vivo. Originariamente, o direito de propriedade nos aparecia como fundado no trabalho próprio. Pelo menos, era

preciso admitir essa suposição, pois só se afrontam possuidores de

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mercadorias com os mesmos direitos, o meio de apropriação da mercadoria alheia é a alienação da própria mercadoria, e esta última só podescr produzida pelo trabalho. A propriedade aparece agora do lad"» docapitalista como o direito de se apropriar do trabalho alheio não pagoou de seu produto, e do lado do trabalhador como a impossibilidade dese apropriar de seu próprio produto. A separação entre a propriedade eo trabalho se torna conseqüência necessária de uma lei que, aparentemente, parte da sua identidade” . 42

Assim, encontramos a interversão da propriedade — ou antes, dalei da propriedade fundada no trabalho — e da liberdade nos seuscontrários, expressa na própria construção deO Capital. A interversãose opera na passagem da perspectiva descontinuísta das primeirassecções à perspectiva continuísta da acumulação. A teoria de Marxacolhe a interversão na sua própria construção; o discurso de Marx sedeixa “arrastar” pela interversão, é atravessado por e la .43

Observação

A interversão da noção de “liberdade” poderia ser observadaigualmente em “escala reduzida”, nas passagens em que se fala doduplo sentido da liberdade burguesa (textos deO Capital e dosGrun- drisse sobre a acumulação primitiva, e também capítulo quatro, original, do livro I de OCapital): “Quando, por exemplo, os grandes proprietários rurais ingleses despediam ós seusretainers, que consumiam com eles o produto excedente da terra; quando os seus arrendatários expulsavam os pequenos trabalhadores agrícolas etc., com istofoi em primeiro lugar lançada no mercado de trabalho uma massa deforça de trabalho viva, uma massa que era livre em duplo sentido, livredas antigas relações de clientela ou dependência e das relações deserviço, e em segundo lugar, livre de qualquer bem, livre de toda formade existência objetiva material,livre de toda propriedade, dependendo,da venda da sua força de trabalho, ou da mendicância, da vagabundagem e do roubo, como única fonte de rendimento” . (Grundrisse, op. cit., p. 406, grifado por Marx. Trad. ingl. de M. Nicolaus,op. cit., p.507) “Para que o dinheiro se transforme em capital o possuidor dedinheiro deve assim já encontrar no mercado de trabalhe o trabalhadorlivre, livre no duplo sentido, de que enquanto pessoa livre ele dispõe desua força de trabalho como mercadoria; de que, por outro lado, ele nãotem outras mercadorias para vender; de que ele está desligado (los und ledig), livre de todas as coisas necessárias à realização efetiva da suaforça de trabalho”. (Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 183. Trad.franc. de Roy, Le Capital, livre premier, tome premier,op. cit., p. 172)Lendo tais textòs, se poderia ter a impressão de que Marx “joga” deum modo um pouco gratuito com a noção de “liberdade” , de que a sua

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linguagem é ambígua ou contraditória. Com efeito, se o emprego dotermo “liberdade” ou “liberação” a propósito da eliminação dos entraves feudais parece bem justificado, tal não seria o caso, aparentemente,do seu emprego, tendo em vista a separação, funesta para os trabalha

dores, entre o trabalhador e os meios de produção. Mas se de certaforma Marx “joga” efetivamente com a noção de “liberdade”, esse“jogo” nada tem de gratuito, e tem, pelo contrário, uma significaçãoteórica profunda. Trata-se exatamente da interversão. Empregando otermo “liberdade” não só para designar o lado positivo mas também

para designar o lado negativo —a separação entre o trabalhador e osmodos de produção, Marx “cai” efetivamente numa contradição: o su

jeito “ l i b e r d a d e ” é contradito pelo predicado “a separação entre otrabalhadore os meios de produção”, que nada tem a ver com averdadeira l i b e r d a d e . Mas, exprimindo-se desse modo, mantendo a idéia del i b e r d a d e e lhe dando um conteúdo (um predicado) que contradiz aidéia de liberdade, ele não faz senão reproduzir no nível da expressão acontradição real da liberdade burguesa, ele não faz mais do que pôr enquanto contradição — única maneira de se exprimir, plenamentesatisfatória do ponto de vista da dialética — a contradição real quecontém a liberdade burguesa.

E para mostrar a importância atribuída por Marx à interversão

na sua crítica da economia política, seria preciso lembrar que, quandoele mostra os limites da economia clássica, limites que são ao mesmotempo ideológicos e teóricos, ele chama a atenção exatamente para ofato de que, se a economia clássica foi bem longe na análise da produção capitalista, se ela chega, embora de uma forma inadequada, até a própria idéia da mais-valia, a economia clássica — na figura do seurepresentante mais ousado, Ricardo — não pensou,não poderia ter chegado a pensar essa interversão: “O lucro é somente uma formasecundária, derivada, e transformada da mais-valia, a forma burguesa,em que desapareceram os traços de sua origem. O próprio Ricardonunca compreendeu isto, porque ele 1) fala sempre só da partilha deum quantum acabado, não da posição originária dessa diferença; 2) porque a compreensão (disto) o obrigaria a ver queentre o capital e o trabalho se estabelece uma relação totalmente diferente da da troca; e ele não podia ver que o sistema burguês dos equivalentes se interverte em apropriação sem equivalente e se baseia nela”.44 “Estas incom- preensões de Ricardo provêm evidentemente de queele mesmo não tinha clareza sobre o processo (nicht klar über den Prozess war), nem

podia ter enquanto burguês (noch sein kônnte ais Burgeois). Com

preender esse processo equivale a afirmar que o capital é não só, como pensa Smith, disposição(Kommando) sobre o trabalho alheio, no sentido em que todo valor de troca o é, porque ele dá ao seu possuidor

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poder de compra, mas também que ele é o poder de se apropriar dotrabalho alheiosem troca, sem equivalente, mas sob a aparência daIroca”.45 Assim, a economia clássica, que pensou a mais-valia comodiferença entre o “valor do trabalho” e o valor do produto do tra

balho, só a concebia entretanto como resultado de um livre contratoentre possuidores de mercadorias, e nunca como uma expropriaçãocontínua, sem troca, de uma classe por outra. Fixemos esse resultado para a discussão final.

Mostramos assim a diferença que separa os juízos que envolvemus noções de “homem”, de “liberdade”, de “riqueza” e de “propriedade”, conforme eles se refiram ao pré-capitalismo ou ao capitalismo. Nos dois casos essas noções são pressuposições, mas a sua relação como predicado não é especificamente a mesma. Para o socialismo, já

dissemos, estas noções são, pelo contrário, noções postas: supondo osocialismo, o “homem”, a “riqueza”, a “liberdade” e a “propriedade”(no sentido indicado) não passam mais “nos” seus predicados, mas semantêm iguais a elas mesmas, e os predicados as determinam efetivamente como sujeitos. Seria útil talvez citar algumas passagens deMarx e de Engels a propósito do socialismo, para que o leitor pense noempregonão-reflexivo dos termos como “homem”, “liberdade” etc.,em oposição ao emprego reflexivo que vimos até aqui: “Ariqueza real(der wirkíiche Reichtum) da sociedade e a possibilidade de uma am pliação constante do seu processo de reprodução depende assim não dagrandeza do sobretrabalho, mas de sua produtividade e da maior oumenor abundância das condições de produção em que ele se realiza. Narealidade, o reino daliberdade só começa quando cessa o trabalhodeterminado pela carência e pela finalidade externa; esse (reino) reside, pois, pela (própria) natureza da coisa para além da esfera da produção propriamente material (...). Aliberdade nessa esfera só podeconsistir em que ohomem socializado(der vergesellschaftete Mensch), os produtores associados regem racionalmente este seu intercâmbiomaterial com a natureza, o submetem ao seu controle social, em vez deser dominados por ele como por um poder cego; realizam-no com omenor gasto de força e nas condições mais adequadas e mais dignas desua natureza humana(ihrer menschlichen Natur). Mas isto continuasendo um reino da necessidade(Notwendigkeit). Para além dele começa o desenvolvimento humano de forças, que se toma por seu próprio fim (Selbstzweck ), o verdadeiro reino daliberdade, que entretanto só pode florescer com base naquele reino da necessidade. A redução da jornada dê trábalho é sua condição fundamental”.(Werke, 25,

Das Kapital, I, op. cit., p. 828. Ver Le Capital, livre troisième, tometroisième, (VIII) trad. franc. de Mme. C. Cohen-Solal e G. Badia, pp.198-199) “Apropriando-se do conjunto dos meios de produção sociais,

para utilizá-los socialmente conforme um plano, a sociedade elimina aescravização dos homens aos seus próprios meios de produção, (que

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existiu) até aqui. Ê evidente que a sociedade não pode seliberar, semque cada indivíduo sejaliberado. O velho modo de produção deve poisser revolucionado a fundo, e sobretudo a velha divisão do trabalho devedesaparecer (...)”. (Werke, 20, Engels, Anti-Dühring, op. cit., 1962, p. 273. Ver Anti-Dühring, trad. franc. de E. Bottigelli, Êd. Sociales,1973, p. 331)46 Observemos, para responder a eventuais críticas, quequando se afirma que no socialismo o “homem”, a “liberdade” etc. setornam verdadeiros sujeitos, não se quer dizer com isto que, na hipótese do socialismo, todos os problemas se reduzem ao problema do“homem”. É um pouco o argumento que utiliza Althusser em “Marxismo e Humanismo” (ver Althusser,Pour Marx, Paris, Maspero,1965, p. 246) para desacreditar toda idéia de homem sujeito. Dizer queo homem será — ou seria — sujeito não significa afirmar que todos os problemas teóricos específicos se deslocarão em direção à questão geraldo “homem” ou que toda questão prática será absorvida pela problemática dos fins. Para todo pensamento realista, é bem evidente que o“particular”, no que se refere à teoria, e os meios, no que concerne à

prática, não perderão o seu peso específico. Mas, ao contrário do quese passa antes do socialismo, na hipótese do socialismo todo problemateórico que tenha como objeto tais ou tais homens fará aparecer a suacondição desujeitos, e não mais de suportes;47 todo problema prático a propósito dos meios fará aparecer — ao contrário do que ocorre, antesdo socialismo, para o problema revolucionário — anão-contradição dos meios em relação aos fins. Nem negação do homem pelos seus predicados, nem contradição entre meios e fins, é tudo o que quer dizera idéia do surgimento do homem-sujeito.

TERCEIRA PARTE

a) Retorno à dialética: “supressão” e “interversSo”

Tentemos agora, à luz das análises anteriores, retomar os resultados obtidos no final da primeira parte, no que se refere à naturezado discurso dialético e à sua diferença em relação aos discursos doentendimento.

Das análises do final da primeira parte resultava, sobretudo, aidéia dasupressão (Àufhebung), como exigência do discurso dialético,

tanto no nível teórico em sentido estrito como no nível da política. Emoposição aos discursos do entendimento, que oscilam entre a afirmação — a posição plena — dos princípios primeiros e sua negação abstrata, eque por isso mesmo não escapam à má dialética da interversão (quando

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cies não se refugiam na “tautologia”),48 o pensamento dialético su prime esses princípios — os nega e os afirma ao mesmo tempo —, o quelho permite evitar a interversão sem se refugiar na “tautologia”. Assim,o pensamento dialético aparecia nessas análises, como se caracterizando sobretudo pela operação de “supressão” dos princípios primeiros, operação que lhe permitia dominar a contradição.

Ora, nesta segunda parte encontramos algo que parece ser oinverso de uma supressão. Com efeito, o que acabamos de ver é como adialéticaopera a interversão de certas noções como “liberdade” , “pro priedade” , ..., na análise do capitalismo, isto é, como o pensamentodialético se deixa interverter, quando ele introduz essas noções. E istoem oposição ao pensamento não-dialético que, pelo contrário,bloqueia a interversão. (Lembremos o exemplo de Ricardo e da economia clássica em geral, incapaz de ultrapassar o limiar dialético da interversãoda lei de apropriação.) Assim, a dialética que aparecia inicialmentecomo o pensamento da supressão — supressão cuja função era exatamente a de impedir a interversão — se apresenta agora como o discurso“da” interversão.

Como dar conta desta diferença?Ora, se a examinarmos de perto, veremos que a oposição é apa

rente. Trata-se com efeito de dois movimentos complementares, cujadiferença se deve à diversidade do nível em que se situa o discurso.Essa diversidade consistegrosso modo no seguinte: num caso, havía

mos considerado, tanto para a Teoria em sentido estrito como para a política, a relação do discurso dialético com os “princípios antropológicos”. Nesse caso, quer se trate do discurso de OCapital ou da política, é preciso suprimir os princípios (antropológicos) para não cair nainterversão. (Se ponho o humanismo, em política, caio no anti-huma-nismo, se ponho o discurso antropológico na Teoria, perco os predicados “do” homem, ou antes, o sujeito real desses predicados.)

Ocorre outra coisa quando se trata não de definir a relação comos “princípios” antropológicos, mas de estudar a maneira pela qual adialética dá conta do seu objeto ou o desenvolve.49 Quando se trata daapresentação da estrutura (econômica) do capitalismo — estrutura quecontém momentos ou estratos contraditórios — o pensamento dialéticonão aparece mais suprimindo para não cair na interversão, mas aocontrário, como o pensamento que dá livre curso à interversão, que sedeixa levar por ela. Assim, nesse nível, o único trabalho que merece serchamado de dialético, e portanto pode ser considerado científico, éaquele que é capaz de mostrar como noções do tipo “homem”, “liberdade”, “propriedade”, “riqueza”, consideradas como determinaçõesdo capitalismo, são afetadas de negação, e por isso se intervertem emseus contrários. Tais são as condições da racionalidade dialética em ume outro caso.Se o pensamento dialético é assim, por um lado, o pensamento que suprime para não cair na interversão, ele é igualmente o

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que, em outro nível, aceita a interversão, para não cristalizar como positivo o que contém o negativo. O discurso do entendimento é, pelocontrário, o que caisem o querer na interversão, e o quecristaliza noções cuja única racionalidade — enquanto determinações, consideradas no nível do desenvolvimento do objeto — é a de ser “interver-síveis”.

b) Dialética e ideologia

Mas se observará que o conteúdo dos princípios que, na primeira parte, havíamos mostrado como princípios que deviam ser “suprimidos”, coincide com o das noções que, nas análises finais, apareceram como noções a interverter. Num caso como no outro, se trata danoção de “homem” e das noções de mesmo nível — “liberdade”,“riqueza” , “propriedade” . 50 Os princípios que a dialética suprime eque o entendimento põe, e as determinações que a dialética interverte eque' o entendimento cristaliza têm assim um mesmo conteúdo: “homem”, “riqueza” etc. São as mesmas noções que, num nível, a dialética suprime para não cair na interversão e, no outro, “deixa interverter” , apresentando o seu conteúdo contraditório. E chegando a esse ponto se poderá dar mais um passo na análise.Observar-se-á que as noções em questão são as noções (básicas) constitutivas da ideologia do capitalismo. Com efeito, a ideologia do capitalismo se constrói com

noções como “homem”, “liberdade”, “riqueza” (pensemos na economia clássica), “propriedade”. O que significa que a partição quefizemos até aqui entre a dialética e os discursos do entendimento étambém uma partiçãoentre um pensamento não ideológico e um

pensamento ideológico.Si Pondo os princípios ou bloqueando a interversão das determinações contraditórias, o discurso do entendimento seconfigura como um discurso ideológico; suprimindo os princípios, ouintervertendo as determinações contraditórias do objeto, a dialética“suprime” a ideologia. O que nos conduz às definições: odiscurso não-ideológico (dialético) é o que só põe 0 ser-negado {“suprimido") das noções “ideológicas", no nível dos princípios; ou que libera o conteúdo negativo delas no nível da apresentação do objeto. O discurso ideológico é, pelo contrário, o que põe essas noções no nível dos

princípios, ou o que bloqueia a interversão delas no nível da apresentação do objeto. Observemos, nessas definições, que é pelasupressão (.Aufhebung) das noções em questão, não pela sua negação abstrata,que a dialética se distingue da ideologia. Não é a simples utilizaçãodessas noções que configura um discurso como ideológico. Essa utilização é legítima, e mais do que isto — ao contrário do que pretendemos althusserianos —ela é necessária para que haja supressão da ideologia. Assim como dissemos que a negação abstrata dos discursos do

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entendimento só eonduz a uma variante dos discursos do entendimento, é preciso dizer quea negação abstrata do discurso ou das determinações ideológicas só conduz a uma outra forma de ideologia.52A razão dialética, que suprime as duas alternativas do entendimento,

julga tanto a primeira como esta última forma de ideologia. Nota sobre a significação histórico-política das ideologiashumanista e anti-humanista53

O humanismo é em política — e também em Teoria — oreformismo, em particular o reformismo na sua forma clássica. Poder-se-iamostrar que as diversas variedades de “humanismo revolucionário”não são a rigor “humanismos”. O anti-humanismo — sempre enquanto paramarxismo — não é uma figura política perfeitamente definida. Mas ostalinismo, em particular nas suas fases esquerdistas, poderia em certa medida representá-lo.

O reformismo põe o homem (a não-violência etc.), mas o fazendono interior de um universo não-humano (de violência etc.: o universodo capitalismo), o homem passa “no” seu contrário: a não-violência doreformismoé violência, cumplicidade com a violência do capitalismo. No stalinismo, particularmente em algumas das suas fases, se tem pelocontrário aviolência abstrata, o não-humano no sentido do anít-huma-nismo. A violência abstrata do stalinismo — pensemos na coletivizaçãoforçada dos anos 30 por exemplo — afasta ou compromete a realizaçãodo que deveria ser a finalidade da violência revolucionária: o nascimento do universo da não-violência. A violência do stalinismo secristaliza em violência, é violência que só implica violência (tautologia). Masse poderia mostrar que, como para o caso do humanismo (reformismo),no anti-humanismo (stalinismo), há igualmenteinterversão. Comefeito, além do fato de que este anti-humanismo se apresenta como umhumanismo — lembremos o célebre “o homem é o capital mais precioso”, de Stalin — é preciso observar: a recusa abstrata do homemque opera o stalinismo vai de par com uma ideologização — no sentidotécnico dado ao termo: interversão “em si” — que atinge, na versãostalinista, os próprios conceitos do discurso marxista.54 Na ideologiastalinista, a negação abstrata da liberdade, a negação abstrata da não-violência — que justamente caracterizam essa ideologia — vêm de parcom uma perda de identidade dos conceitos do discurso político marxista, como “revolução”, “proletariado” etc. Assim como na ideologia burguesa e reformista “o homem” não é igual ao homem — o “homem” se interverte em não-homem —, a “liberdade” não é igual à

(*) Aqui, mais do que era qualquer outro lugar, é preciso insistir que a perspectiva do texto é marxista clássica. Sobre seus limites, ver a Introdução.

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MARX: LOGICA E POLÍTICA 59

do processo de produção social a própria sociedade, isto é, o próprio homem nas suas relações sociais”. (Marx,Grundrisse der Kritik der Politischen Okonomie, Berlim, Dietz, 1953, p. 600. Ver tradução inglesa de M. Nicolaus, Penguin-New Left Review, 1973, p. 712)

(7) Poder-se-ia dizer, em certo sentido, que a matriz de todos esses juízos é a tese VI sobre Feuerbach (tese cuja interpretação foi sempre controvertida; ver, por exemplo, Althusser): “(...) a essência humana (= o homem) é o conjunto das relações sociais”. Com efeito, para que a tese VI ganhe uma significação rigorosa, é necessário que ela seja lida como um juízo em que o sujeito passa "no” predicado. Em “o homem é o conjunto das relações sociais”, o sujeito “homem” passa, se reflete, no predicado “relações sociais”. Só o predicado “relações sociais”, não o sujeito “hompm”, está posto. Mas o "homem” está lá, como sujeito pressuposto. Entretanto, como o mostraremos na segunda parte, retomando em detalhe a análise da tese VI, é somente se a interpretarmos da perspectiva da obra de maturidade (destacando-a do universo da “transição”) que a tese VI será estritamente conforme aos nossos exemplos.

(8) Poder-se-ia pensar que não fizemos aqui mais do que substituir a pergunta “que é homem?” peia pergunta “quem é homem?” (a qual, de qualquer modo, teria como resposta um juízo em que o predicado nega o sujeito). Mas isto não é inteiramente verdade, ou só é verdade se considerarmos uma resposta isolada, ou algumas respostas isoladas, “o homem é o operário”, por exemplo, ou “o homem é o cidadão romano” etc. Mas se tomarmos o conjunto das respostas que se poderia dar à pergunta, se considerarmos o conjunto da história, as respostas, com seus desenvolvimentos, constituem a apre

sentação do conceito de homem, que é a única definição possível do homem no nível da sua “pré-história"-, assim como a apresentação do espírito pelos seus predicados na Fenomenología é a única definição possível do espírito.

(9) Sobre o capital-movimento ver J. A. Giannotti, As Origens da Dialética do Trabalho, particularmente o prefácio da versão francesa, Paris, Aubier, 1971. Nessa obra se encontra também a distinção pressuposição/posição, mas em geral em forma

diferente da que utilizo aqui. (Lá se considera o “homem” (pressuposto) como ontolo- gicamente vazio, aqui como susceptível (em si) de um preenchimento progressivo, que torna possível a posição final.)

(10) Tal recusa — para certos anti-humanismos paramarxistas pelo menos — se explica pelo pressentimento dos problemas que levanta uma formulação rigorosa da relação contraditória entre meios "inumanos” e fins humanos. Eles recusam toda referência ao homem para fugir das dificuldades — na realidade para fugir da dialética — dessa formulação.

<11) Algo como um “a-humanismo” — a única terceira resposta que o entendimento poderia admitir — não seria tampouco uma solução. Com efeito, se tanto o humanismo como o anti-humanismo são insustentáveis pelas razões indicadas, não se trata entretanto, como já vimos, de se manter fora do problema do homem.

(12) Para a justificação da tradução de Aufhebung por “supressão”, ver neste tomo “Circulação de Mercadorias, Produção Capitalista”, nota 24.(13) Do ponto de vista prático, isto implica recusar toda forma de violência que

poderia “expulsar” os fins não violentos, isto é, que poderia bloquear, pelo seu caráter abstrato, o surgimento do universo da não violência.

(14) Precisão que, como se verá, não é supérflua.(15) A diferença entre a antropologia em sentido estrito e o humanismo está,

a rigor, no fato de que, na primeira, embora o “homem” seja visado como sujeito, ele não é tomado, entretanto, como sujeito em sentido forte, como “homem humanizado”, o que ocorre no segundo. Por isso, toda universalização no primeiro caso só desemboca na generalidade abstrata, ao passo que, no segundo, o homem éuniversalidade concreta.

E na medida em que discutir se o homem é ou não sujeito, mas sem introduzir a idéia do “homem humanizado”, implica visar (ilusoriamente ou não) o “homem” atual, não o homem do futuro, a problemática do antropologismo e do antiantropologismo concerne ao discurso teórico (em parte também a política) mas não ao problema dos fins da política.

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Ocorre o inverso com a problemática do humanismo e do anti-humanismo. — O parágrafo “o homem e o capital” articula a problemática do humanismo com o discurso posto dos textos teóricos (portanto com os textos em que se põe o capital, não com aqueles em que se pressupõe o homem; é a estes últimos que nos referimos agora).

(16) Isto significa, particularizando, para os dois níveis em que se coloca o pro

blema da relação entre marxismo e a fundação antropológica: a) para o nivel do humanismo: a política que se funda no homemê na realidade a política do não (do anti) homem. S6 a política que “suprime” o homem pode alcançar, de certo modo, o homem; b) para o nível da antropologia em sentido estrito (o paralelismo com o caso anterior não é perfeito pelas razões indicadas anteriormente, ver “o homem e o capital”): todo discurso teórico fundado no homem perde o “homem”, isto é, os predicados do homem ou o sujeito real que substitui o homem. Só os discursos teóricos que “suprimem” o homem podem alcançá-lo.

(17) Ausschaltung = desligamento ( mise hors circuit). Para comparar a dialética com os discursos do entendimento designamos assim a Aufhebung por meio dos termos- chave das filosofias transcendentais.

(18) Cf. as considerações sobre a relação entre Hegel e Husserl emi. Desanti, Phénomenologie et Praxis, París, Éd. Sociales, 1963, pp. 23-37.(19) O que mostra ainda uma vez — este é o objetivo deste parágrafo — o

parentesco que existe entre as duas respostas, abstratas, do entendimento.(20) Mais do que como anti-humanismo.(21) Ver a esse respeito, neste tomo, “Althusserismo e Antropologismo”.(22) Será talvez o caso de insistir que nos situamos na perspectiva hegeliana da

interpretação da lógica. Por isso, nossas análises, sobre o juízo, por exemplo, têm como objeto tanto a forma como o conteúdo, ou antes, o conteúdo tal como ele se reflete na forma. Que a lógica dialética, diga-se de passagem, é não só “coisa interessante”, como todos concordam em afirmar de um modo indulgente, mas também coisa rigorosa, é algo

que a desmonetização de noções como "dialética”, “supressão” etc. pelòs marxismos vulgares obriga a demonstrar.(23) Referimo-nos às pressuposições que representam — ou podem representar

— “sujeitos” (pressupostos) no nível da pré-história, e que são postos no fim da “pré-história” como universais concretos; e não às pressuposições do capítulo V do livro I de OCapital, simples universais abstratos. Ou antes, como certas pressuposições, como por exemplo “homem”, podem servir tanto para um caso como para o outro, não nos referimos às pressuposições no sentido dos universais abstratos do capítulo V. Ver sobre tudo isto a primeira parte do nosso texto.

(24) Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit ., p. 791. Trad. franc. de Roy, Le Capital, livre premier, tome troisième, Paris, Éd. Sociales, 1950, p. 205.

(25) Para este emprego da noção de “propriedade", ou antes, para um emprego que, como se verá, é, sob um aspecto, idêntico, ver sobretudo as passagens dosGrun- drisse (“Formas que precedem a produção capitalista”) consagradas à propriedade pré- capitalista: Grundrisse, op. cit., pp. 391-396. Trad. ingl. de Martin Nicolaus,Grun- drisse, op. cit., pp. 491-496.

(26) Entre essas pressuposições, poder-se-ia mencionar também, por exemplo, a noção de “igualdade”.

(27) Werke, Thesen iiber Feuerbach, 3, op. cit., p. 534, grifado por Marx. Marx-Engels, Études Philosophiques, Paris, Êd. Sociales, 1951, p. 63.

(28) Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 49. Trad. franc. de Roy, Le Capital, livre premier, tome premier, op. cit., 1969, p. 51.

(29) Seria preciso justificar melhor o sentido desse procedimento, que poderia parecer gratuito ou tautológico. A leitura dessas diferenças no nível (formal) do juízo fará aparecer determinações que não se apresentavam no plano da análise do conteúdo? Isto é, o fato de refletir essas diferenças no plano do juízo acrescenta alguma coisa à análise? E, se a resposta for negativa, qual o interesse e a justificação dessa projeção? Na realidade, enquanto no caso geral a diferença formal (em sentido dialético), ligada

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“trabalho primitivo", decalcando intencionalmente a economia clássica —, trabalho que seria a fonte inicial do capital em dinheiro e em meios de produção. Ê assim pondo entre

parênteses toda consideração de ordem histórica que Marx irá demonstrar o que se trata de demonstrar aqui, a saber, que a apropriação capitalista não se fundamenta no trabalho (próprio) nem pode ser legitimada por ele.

(38) Com efeito, no momento em que a libedade dos contratantes se torna uma aparência — o que resulta da repetição do processo — a mais-valia aparece como o valor extorquido, e não pago, e não mais como o produto do uso de uma mercadoria obtida pela troca. Assim a perspectiva de leitura do processo se desloca do ato inicial que pertence à circulação para o momento da produção; deslocamento cujas conseqüências se revelam, propriamente, no início da terceira volta do capital, quando a mais-valia (II) obtida tem como pressuposição um encontro entre o operário e o capitalista que não pode ter mais o caráter de um livre contrato.

(39) Tal privilégio abstrato do segundo momento — que representaria o lado “anfi-antropologista” — não impede que Balibar caia no antropologismo, nesse mesmo capítulo consagrado à reprodução. (Na realidade, ele cai na generalidade abstrata, mas

toda generalidade abstrata é antropologizante.) Assim, ele considera a análise da reprodução simples “ como análise das condições gerais de forma de toda reprodução", (Idem, p. 163, grifo do autor) Assim, ele afirma que a análise da reprodução simples permite “formular um novo conceito filosófico da produção em geral”.(Idem, p. 171) Assim, depois de ter mostrado a reprodução das relações sociais pelo movimento do capital, ele diz que um processo análogo ocorre, em qualquer modo de produção; "Cada modo de produção reproduz incessantemente as relações sociais de produção que o seu funcionamento pressupõe”.(Idem, p. 174) Isto de forma alguma é verdade. Com efeito, a reprodução capitalista é coisa diferente da reprodução em geral, não a sua especificação. O escravo, por exemplo, não é reposto formalmente (enquanto escravo) por cada circuito da produção, como é o caso do operário. Diferentemente do trabalho assalariado, a re

lação de escravidão — para tomar esse exemplo — é instaurada previamente, e não constituída pelo próprio movimento da re-produção. O escravo é reproduzido fisicamente na (dentro da) condição de escravo.

Chegamos assim, de novo, à conclusão a que havíamos sido conduzidos anteriormente. Se o examinarmos de perto, o antiantropologismo althusseriano se revela algo como a antinomia — que diríamos transcendental — do antropologismo e do antiantropologismo, a qual condena o sujeito a um movimento infinito de um termo ao outro. Antinomia que a razão dialética resolve pelo método que consiste em pôr em movimento— mas finalmente os reunindo, o que suprime a má infinidade — os dois termos contraditórios.

(40) Le Capital, livre premier, tome troisième (III), trad. franc. de Roy, Éd. Sociales, p. 25. O texto é uma variante do original alemão. VerWerke, 23, Das Kapital, I, op. cit ., p. 611.

(41) Observemos que para que a interversão se opere não é necessário supor a reprodução em escala ampliada. Basta supor a reprodução simples. Ou, em outros termos: a interversão não concerne somente à mais-valia acumulada — diretamente acumulada, como veremos — e portanto somente a relação entre os capitalistas e os operários contratados com o capital adicional. Após um certo número de voltas, ela atinge também o capital primitivo. Que a reprodução simples baste para operar a interversão, se explica pelas razões seguintes: na representação corrente da reprodução simples, se supõe que o capitalista consome a totalidade da mais-valia e guarda sempre o

seu capital primitivo. Mas não é isso o que ocorre efetivamente. Se não se quiser supor que o capitalista vive imediatamente às custas (do trabalho não pago) do operário — poís a partir da segunda ou mais exatamente da terceira volta, pelas razões indicadas, que remetem a condições que não se alteram se se tratar da reprodução simples, a mais-valia é valor extorquido sem equivalente — é preciso admitir que, o que o capitalista consome como rendimento, não é a (totalidade da) mais-valia, mas umvalor equivalente à totalidade da mais-valia, que é na realidade descontado do seu capital primitivo. Ele não

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(48) Lembro as análises anteriores: em conformidade com os princípios da lógica“reflexiva” , o entendimento oscila entre o humanismo (o aníropologismo) e anti-huma-nismo (o antiantropoiogismo). Mas o humanismo se interverte em aníi-humanismo;o anti-humanismo, quando não sofre a interversão inversa, fica encerrado na tautologíavazia do anti-humanismo.

(49) Esta localização das esferas respectivas da "supressão” e da “interversão” no discurso dialético é imprecisa. Ela segue —ela não faz maís doque seguir — o movimento do nosso texto. Com efeito, a primeiraparte, onde se tratouda supressão,tinha sido construída em torno do eixodas “duas” antropologías;a segunda,em que se introduziu a interversão, está centrada na passagemà teoria da reprodução.As conclusões relativas âs duas operações do discurso dialético se atêm a este esquema: a supressão se situaria no nível da conexão com os discursos antropológicos (tanto no plano da Teoria como no plano da política), a interversão se situaria no nível da apresentação (do desenvolvimento) das leis contraditórias do objeto. Entretanto, há uma dificuldade relativa ao primeiro ponto, que se reflete no conjunto do plano. Como havíamos observadoe discutido no início(ver primeira parte, “ohomem e ocapital”), o paralelo entre as duas antro pologías nãodeixa de apresentar certas dificuldades.É só na política — onde elà

representaalgo assim comoo princípio da violência revolucionária — quea supressão do homem é constitutiva. (Ver primeira parte, c) No nível da Teoria, se encontramos sem dúvida um discurso antropológico não fundante,e nesse sentido “suprimido”, não se poderia dizer que (mesmo) a negação desse discurso tenha uma função constitutiva. O “princípio” cuja negação é constitutiva na Teoria são exatamente as leis da circulação simples. (Por outro lado, a negação é, como vimos, de outro tipo; trata-seda interversão. Há também outras diferenças não analisadas aqui.) Seriamos assim tentados a pôr entre parênteses, na primeira parte, tudo o que se refere à antropologia teórica; e a ler a segunda de um modo um pouco mais amplo do que o texto sugere. Do que resultaria, para a compreensão do conjunto: a primeira parte, ondesetrata da supressão, teria por objeto a lógica da política marxista (os textos dosGrun- drisse, obra de síntese, interviriam aí “envolvendo” a política): a segunda parte, em que se trata da interversão, apresentaria, pelo contrário, a lógica da Teoria (as referências aos Grundrisse iluminariam então a obra teórica). E isto nos levaria a concluir, no que se refere ao problema em discussão: a interversão caracterizaria, essencialmente, o movimento da apresentação da Teoria; a supressão caracterizaria, essencialmente, a articulação da política. É provavelmente a essa forma de apresentação e a esse resultado que seremos afinal conduzidos. Entretanto, nos limites deste texto, concluiremos conforme o esquema seguido, sem reinterpretá-lo. Isto, por um lado, devido ao fato de que, se o relacionamento das duas antropologías nos obriga a fazer certas ‘‘torções” na exposição, ele tem, não obstante, certo poder explicativo. (Ele torna mais clara, a seu modo, a diferença entre a dialética e os discursos do entendimento.) Por outro lado, porque, se nos quisermos liberar de toda dependência em relação à questão da antropologia, apresentando a dialética tomando diretamente como referência a relação entre a Teoria e

a política, será preciso apresentar uma e outra de um modo muito mais detalhado e mais completo do que fizemos aqui.

(50) Mesmo se nas análises da primeira parte só introduzimos a noção de “homem”, é evidente que as outras noções fazem parte também do universo do antropologismo e do humanismo, que se trata de "suprimir”,

(51) Só com o intuito de evitar confusões, observemos que se emprega aqui o termo "ideologia” no sentido que lhe dá Marx, não no que ele toma em Althusser. De um modo muito esquemático: em Marx, um discurso ideológico denota um discurso que remete a certas formas de consciência histórica e que é antes de mais nada, e necessariamente, mistificante. Em Althusser, um discurso ideológico denota um discurso que remete a um sistema de representações que se encontra emqualquer formação — uma sociedade sem classes, por exemplo, teria também de direito a sua ideologia — discurso que é necessariamente (não “mistificante”, mus) a-científico. — Se o movimento do texto não é suficientemente claro, eis aqui esquematicamente os seus momentos. Trabalhamos

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MARX: LÖGICA E POLITICA 65

até aqui com a distinção entre, de um lado, o discurso dialético, e, de outro, os discursos do entendimento, nas suas duas formas opostas-complementares. Ora, examinando as noções constitutivas do discurso do entendimento (em uma de suas formas), percebemos que elas compõem o universo da ideologia burguesa (clássica). O que foi dito da diferença entre o discurso dialético e os discursos do entendimento (suas operações lógicas

características etc.) deve ser aplicável à diferença entre um discurso ideológico e um discurso não-ideológico. Somos assim conduzidos a definir a ideologia — coisa que talvez nSo seja sem interesse — em termos das suas operações lógicas constitutivas.

(52) Para a justificação desta última afirmação ou, antes, para uma justificação que não seja uma simples retomada das análises anteriores, ver a nota final.

(53) Cf. a crítica do humanismo e do anti-humanismo, na primeira parte deste texto. Evidentemente, não fazemos aqui mais do que esboçar, sob a forma de uma nota final, o tema da significação histórico-política do humanismo e do anti-humanismo (enquanto paramarxismos), tema que desenvolveremos em outro lugar.

(54) Aqui são os conceitos do discurso marxista, isto é, é o próprio discurso "substantivo” que se interverte, não as noções pressupostas. De resto, esta interversão, que é uma interversão “em si”, isto é, que não passa pela consciência do sujeito do discurso, se produz numa esfera do discurso marxista, indicada em seguida, em que a interversão só pode ser ideologizante.

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Althusserismo e antropologismo2

A tese de um antropologismo althusseriano é suficienteme paradoxal para que se imponha uma justificação. Se falamos de “deslizamento” do althusserismo no antropologismo (“deslizamencuja necessidade deveria ser buscada no caráter não dialético do pemento althusseriano), é preciso explicar em detalhe o seu mecanis

Para fazê-lo, analisaremos inicialmente o texto de BalibarSobre os conceitos fundamentais do materialismo histórico. (Em Ler o Capital) 1Examinaremos em seguida, de um modo mais conciso, os célebtextos sobre a prática no artigo de AlthusserSobre a dialética materialista. (EmPour Marx)2

A) BALIBAR

O quadro de invariantes

Retomemos inicialmente o texto de Balibar.Partindo da idéia de que existe em Marx “uma teoria geral

história”3e de que no centro desta teoria está o conceito de modo produção, Balibar se propõe, antes de mais nada, “reconstituir” noção.4 Como, para ele, todo modo de produção pode ser penscomo “um sistema de formas que representa um estado da variaçãde um conjunto de elementos, para reconstituir a noção de modo

produção seria necessário, antes de mais nada, identificar os elemecomuns a todos os modos. Ele faz, assim, o inventário dos elemenque se encontram em todos estes sistemas de formas. Estes elemensão, em primeira instância, três: “1) o trabalhador (a força de

balho); 2) os meios de produção (...); 3) o não-trabalhador queapropria do sobretrabalho”.6 Mas é acombinação desses elementosque torna possível ou que constitui os diferentes modos, e esta comnação se faz sempre segundo duasrelações (relations) que também podem ser consideradas como “elementos” : a relação de propriedade7e a chamada relação deapropriação real (a “apropriação real materialdos meios de produção pelo produtor no processo de trabalho”).8

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MARX: LÖGICA E POLITICA 67

acordo com a iorma particular que assumem estas duas relações, oucomo diz também Balibar, conforme “os valores exclusivos” 9— uniâoou separação — que podem tomar estas relações, obteremos diferentesconfigurações. Assim, para o modo de produção (especificamente)capitalista — se tomarmos como termos o produtor e os meios de produção — obteremos umadupla separação: por um lado, o trabalhador não é proprietário dos meios de produção; por outro lado —devido ao caráter do processo material de trabalho: nesse modo osmeios de trabalho são máquinas e não instrumentos manuais — o tra balhador está separado, também do ponto de vista material, dos meiosde produção.

Significado antropológico do quadro de invariantes.Primeiro motivo do “deslizamento”: o ideal da teoria geral

O quadro de invariantes e a sua particularização, a “dupla separação” entre o trabalhador e os meios de produção — configuração,que, como acabamos de ver, toma, para o capitalismo, o esquema dasduas relações —, é uma referência constante no texto de Balibar. Ele oretoma várias vezes na continuação, praticamente a propósito da discussão de cada problema (sobretrabalho, fetichismo, passagem de ummodo de produção a outro etc.).10 Para saber que função tem o quadrode invariantes, leiamos o texto seguinte: “A periodização, pensada

como periodização dos próprios modos de produção, como modos puros (dans leur pureté), dá forma, inicialmente, à teoria da história.Assim, a maioria das indicações em que Marx reúne os elementos dasua definição são indicaçõescomparativas. Mas por trás dessa terminologia 4®scritiva (os homens não produzem do mesmo modo nosdiversos modos de produção históricos, o capitalismo não contém em sia natureza universal das relações econômicas) se indica oque toma

possível as comparações no nível das estruturas, a procura dasdeterminações invariantes (dos ‘caracteres comuns’) da ‘produção em geral’,que nãoexiste historicamente, mas da qual todos os modos de produção representam variações” . (Cf. Introdução de 1857 àContribuição à Crítica da Economia Política) n A destacar nesse texto: “a procura dasdeterminações invariantes” (= o quadro dos invariantes) (é) “oque toma possível as comparações no nível das estruturas”. Leiamos aindaum outro texto, que se segue à exposição da passagem da manufatura àgrande indústria: “Antes de enunciar as conseqüências ulteriores que podemos tirar desta análise (da passagem da manufatura à grandeindústria) é necessário mostrar comoela depende inteiramente doscritérios de diferenciação das formas que estão contidos na definição do

processo de trabalho”.12(A definição do processo de trabalho contémos elementos do quadro.) A destacar aqui “ela depende inteiramente” .

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68 RUY FAUSTO

Por outro lado, como se para acentuar a importância do seuesquema, Balibar se refere à “dificuldade (que teria encontrado) (...)Marx em pensar a distinção entre as duas relações” , 13 “a sua dificuldade, patente nas hesitações do vocabulário dasFormas anteriores...,

em isolar as duas relações (...)” . 14 Dificuldade que o seu texto (o deBalibar) teria sido capaz de superar.Mas analisemos mais de perto o sentido do esquema geral. Que

significam logicamente o quadro dos invariantes e o esquema da duplseparação, ou mais exatamente, qual é o caráter do discurso — e portanto das noções — que os exprimem? Se os examinamos um poucoveremos que se trata de um discurso — e de noções — cuja natureza essencialmente antropológica. De fato, os termos que as duas relaçõeunem — em primeiro lugar “trabalhador” e “meios de produção”(“objeto de trabalho”, “meio de trabalho”),15 são noções de caráterantropológico. (Que elas sejam antropológicas — se é necessário prova — se revela não só na suageneralidade, mas também no fato de queelas exprimem o processo de produção de um modosubjetivo. A generalidade — aqui, pelo menos — é subjetivizante. “Trabalhador”,“produtor” não só exprimem os agentes da produção (como a própri produção) em forma geral, mas os exprimem também comosujeitos.)16 Tais noções se encontram, bem entendido, emO Capital, mas emMarx, elas funcionam somente como pressuposições.17 O lugar delas éo capítulo V (original) do livro I de OCapital.18 Se algumas delas sãoutilizadas no capítulo primeiro,19 é somentea posteriori, no capítulo V,depois de ter introduzido as noções de capital, de força de trabalhode mais-valia (além das noções essenciais à apresentação da circulaçãosimples) que Marx apresentará e definirá estas noções. Mas ele o faránum discurso mais fraco, que deve ser lido como instaurando duasvezes uma descontinuidade — no início e no fim — com o discursosubstantivo.20

Assim, sob a forma do quadro dos invariantes, as noções antro pológicas parecem assumir em Balibar uma dignidade teórica que elanão têm em Marx. E se se perguntar quais as razões que explicam umtal “deslizamento” no antropologismo, a resposta é bem evidente. Elaresidem na necessidade de fundamentar o marxismo numa teoria geralnecessidade conforme à tradição clássica pré-hegeliana. É a concepçãclássica do rigor em termos de uma fundação em noções primeiras, concepção inseparável da idéia clássica de uma universalidade dodomínio das leis da ciência, que serve de base a esse procedimentoÉ a dependência em relação a este ideal de ciência (dependência que s

manifesta aqui pelo papel atribuído ao discurso geral),21 que conduesse projeto de reconstituição do discurso deO Capital — o qual, entreoutros resultados, deveria proteger o marxismo de toda leitura antropologista — a abrir a porta (é o menos que se poderia dizer) ao antro pologismo.

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As precisoes de Balibar: “visar” (“meinen”) e “pôr” (“setzen”)

Essa apresentação do caráter antropológico do quadro de invariantes seria suficiente para a critica do texto, se o autor, pressentindoalgumas das dificuldades do quadro, não voltasse, páginas adiante,a discutir seu sentido. Na realidade, ele volta à questão do quadro dosinvariantes, e é no nível dessa retomada que o problema do sentidogeral do texto se coloca de forma mais aguda. É necessário assim examiná-la em detalhe.

Logo depois da apresentação do quadro, Balibar observa já, emforma de explicação, “que não se trata de umacombinatória em sentido estrito” ,22 e isto porque os fatores mudam de natureza ao se com binar. Mas é só mais adiante que ele retoma efetivamente o problema.

O texto é longo, mas é preciso citá-lo pelo menos em parte: “A definição de todo modo de produção como umacombinação de elementos(sempre os mesmos) que são apenas virtuais fora do seu relacionamentonum modo determinado, a possibilidade de proceder nessa base à periodização dos modos de produção, segundo um princípio devariação das combinações, merece, em si mesmo, atenção. (...) (...)”.A “combinação” analisada por Marx é sem dúvida um sistema derelações “sincrónicas” obtido por variação. Entretanto, esta ciênciadas combinações não é umacombinatória, na qual só mudam o lugardos fatores e a sua relação, mas não a sua natureza, que é não sósubordinada ao sistema global, mas tambémindiferente. Pode-se assimfazer abstração dele, e procederdiretamente à formalização dos sistemas. Sugere-se então a possibilidade de uma ciênciaa priori dos modosde produção, de uma ciência dos modos de produção possíveis, realizados ou não na história real-concreta, por força do acaso ou pelaeficácia de um princípio do melhor. Ora, se o materialismo histórico’autoriza a previsão, e mesmo a reconstituição dos modos de produção“virtuais” (como se poderia chamar o “modo de produção mercantilsimples”), os quais, não tendo sido nunca dominantes na história, sóexistiram deformados, é de um outro modo que daremos conta disto,mais adiante, com base nas modificações de um modo de produçãoexistente. Isto suporia que os “fatores” da combinação são os própriosconceitos que enumerei, que esses conceitos designamdiretamente oselementos de uma construção, os átomos de uma história. Na realidade, como já disse de um modo muito geral, esses conceitos designamsó mediatamente os elementos da construção: é preciso passar poraquilo que denominei “análise diferencial das formas” para determinar as formas históricas que tomam a força de trabalho, a propriedade,a “apropriação real” etc. Estes conceitos designam somente o que

poderíamos chamar de pertinência da análise histórica. Ê esse caráterda combinação, portanto, uma pseudo-combinatória, que explica por-

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O núcleo da “anflbolia”: a noção de relação de produção.Segundo motivo do deslizamento: o “horror” do movimento

No fundo, o núcleo da “anfibolia” se situa na noção de “relaçãode produção” (rapport de production). Mais precisamente, na idéiaque faz Balibar do que seja uma “relação”, na expressão “relação de produção” . Examinemos esse ponto em detalhe, comparando Balibar eMarx.

Como vimos, a construção teórica de Balibar tem como centro aidéia de que a estrutura de todos os modos de produção remete a duasrelações (relations) que “unem” (positiva ou negativamente) o trabalhador e os meios de produção (ou antes, o trabalhador, os meios de produção e o não-trabalhador). A noção de “rapport” (rapport de production, relação de produção)27 — quando ela não é empregada

como equivalente a “relation” — remete à articulação das duas relações: “a relação (rapport) dessas duas relações (relations) e sua interdependência”.28 Como, deste modo, a relação de produção é constituída a partir das duas relações (quando ela não lhes é simplesmenteidentificada), para saber a que remete o termo relação(“rapport”) emBalibar, é preciso examinar primeiramente o que significam as relações(“relations”). (Ê verdade que mais adiante Balibar tenta fazer umaapresentação “sintética” da “relação”(“rapport”)-, mas, a exemplo doque fizemos anteriormente, antes de chegar a isso, é preciso considerara relação(“rapport”) tal como aparece no início, tal como devemos pensá-la nos termos da apresentação inicial.)29

Em que sentido estas relações são chamadas de “relações”(“relations”)? Somos obrigados a responder: no sentido usual da palavra,no sentido de que elas unem, de que elas estabelecem um “vínculo”entre certos elementos. A “relação”(“rapport”) (de produção), queexprime uma operação análoga em segundo grau, seria algo assimcomo um vínculo entre vínculos.

Ora, que é para Marx uma “relação de produção”(“Produk- tionsverhàltnis”)? Ou antes, fazendo a pergunta de um modo ao mesmotempo mais correto e mais fecundo, que é para Marx uma relaçãocapitalista de produção? Para responder a esta questão, poderíamoscomeçar perguntandoquais são no capitalismo as “relações de produção”; quais são, pois — o que não é sem importância — elas seexprimem porconceitos. Ora, como dizem numerosos textos, as relações capitalistas de produção são ocapital e o trabalho assalariado,20os quais são considerados, às vezes, como expressões diferentes de umamesma relação.31 Por outro lado, ele diz que o capital é “a categoriadominante, a relação de produção determinante”.32 Razão pela qual,dizer o que é, para Marx, uma relação capitalista de produção significaexplicitar a natureza do capital enquanto objeto. Para isto, tomemosinicialmente o texto dosGrundrisse já citado em nota: “(O capital) é

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evidentemente uma “relação” (Verhältnis) e só pode ser uma relação de produção (Produktionsverhältnis)”.33 Que quer dizer no texto “relação”, de que natureza é este objeto que Marx designa freqüentemente pela expressão “relação-(de)-capital”(Kapitalverhältnis)?34 Já

havíamos dado a resposta no texto, mas uma passagem dosGrundrisse o diz de uma maneira muito elara, relacionando a noção de “relaçãocom a noção de“processo”: “(...) se dissermos que o capital é valor detroca que produz um lucro, ou pelo menos, que é utilizado com vistas produção de lucro, o capital já é pressuposto à sua própria explictação, pois o lucro é relação determinada do capital a si mesmo. Ocapital não é nenhuma relação (Verhältnis) simples, mas um processo, em cujos diferentes momentos ele é sempre capital”.35 A noção de“relação” remete, assim, à noção de “processo”. E é nesse sentido

não no sentido vulgar que, para Marx, o capital não é uma relaçãsimples, mas uma relação complexa. Mas é o caráter de processo, ou mais exatamente, de processo-sujeito, que assegura a anterioridade da relação sobre os termos. Ê somente se ela for posta como processo- sujeito que será posta como anterior aos termos. Ora, no texto deBalibar, a “relação de produção” (na qual ele não reconhece o própricapital) é, como vimos, uma coisa bem diferente de um movimento.36se no capítulo do seu texto consagrado à reprodução, o moviment“entrará em cena”, tratar-se-á não do movimento-sujeito, de um

coisa-movimento, mas de uma coisa (um sistema de relações no sentidusual) que-se-põe-em-movimento.37 Nessas condições, inútil explicara posteriori que a relação é anterior aos termos.38 Tais explicações nosdizem, sem dúvida, que a coisadeve ser assim, mas isto não quer dizerque ela tenha sido efetivamente posta assim. No nível da posição a“relação de produção” aparece como segunda, não como primeira, emrelação aos termos.

Assim, o “deslizamento” em direção às pressuposições (= “deslzamento” no antropologismo) o qual havíamos apresentado como rsultado de um ideal linear de ciência, aparece aqui como fruto drecusa do movimento. O entendimento tem horror do movimento — dmovimento-sujeito, este “irracional” (não do movimento em geral39) —como a natureza teria horror do vazio.

Síntese dos dois motivos. Retomada do problema da generalidade

Vê-se, assim, que o distanciamento em relação à dialética quetentamos reconstituir aqui poderia ser compreendido tanto como resutado da fidelidade do teórico a um ideal clássico de “dedução” (visíveao que parece, no nível da posição), ideal que faz do ponto de vistageral o fundamento do seu discurso; como da impossibilidade em quele se encontra (também inscrita no seu ideal teórico, mas se manife

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funda no valor de uso ou no valor de troca). Na realidade, se para distinguir os modos alguém disser que num modo tais elementos estãoseparados, tais estão unidos etc., ele não dirá nada sobre a finalidadedesse modo, ou mais exatamente, ele não efetuará a posição da finalidade desse modo. (Sem dúvida, a disposição dos elementos pode serindicativa da finalidade, mas, com isto, Balibar não faz outra coisasenão pressupor o que é da ordem da posição (a finalidade), assimcomo — nós vimos — num movimento inverso, complementar, ele“põe” o que deve ser pressuposto.)

Em Marx se dá o contrário. Tomemos asFormas que precedem a produção capitalista. Ainda que nasFormas... se fale muito das pressuposições — mas justamente elas aparecem como pressuposições43 —a linha divisória é a questão do motivo determinante, da finalidadeinterna dos diferentes modos. Ê assim que Marx volta constantemente — “do mesmo modo” que Balibar retoma sempre a “dupla separação” — ao fato de que, no capitalismo, o motivo determinante é a valorização (a produção de (sobre)-valor), enquanto que nos outros modos,o motivo determinante, a finalidade é, pelo contrário, a produção dovalor de uso.44 Ora, eis o essencial: o valor de uso e o valor (ou a suaforma fenomenal, o valor de troca) não são espécies de um gênero,eles sãocontrários .4SE isto significa:não há nenhum gênero que possa subsumi-los.46 “Quando Wagner diz que não há lá nenhuma teoriageral do valor, do seu ponto de vista(‘Sinn’) ele tem perfeitamenterazão, pois ele entende por teoria geral do valor, raciocinações(‘Spintisieren’) sobre a palavra ‘valor’, o que lhe permite perseverar naconfusão, tradicional dos professores alemães entre ‘valor de uso’ e‘valor’, porque os dois (termos) têm em comum a palavra valor” .47Assim, é fazendo domotivo determinante, da finalidade, o eixo divisório, que a generalidade fundante é quebrada. É pela posição da finalidade interna dos modos que o discurso sobre o conjunto dos modos de produção se torna coisa totalmente diferente de um discurso geral: umdiscurso de dispersão, em que só asdiferenças são postas, ficando pressuposto osistema das identidades .48

B) ALTHUSSER

InterversSo análoga em “Sobre a dialética materialista de Althusser”

Para completar e confirmar esta análise dos caminhos que conduzem os althusserianos ao antropologismo, examinaremos, mais rapidamente, os famosos textos de Althusser consagrados à prática emSobre a dialética materialista (emPour Marx).*9 Encontraremos lá um

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movimento (uma interversão) que é mais ou menos análogo ao queacabamos de examinar. E ainda mais nítido.

Como se sabe, trata-se aí de esboçar o projeto de uma fundamentação do materialismo histórico numa teoria geral das práticas, teoria

que os althusserianos identificam ao materialismo dialético.50 Paraisto, Althusser é levado a apresentar diversas definições gerais —■inicialmente a definição geral (no duplo sentido: compreendendo os diferentes tipos e as diferentes formas históricas) — de prática, e emseguida as definições gerais (no segundo sentido somente) das diversas práticas específicas, as práticas política, teórica, ideológica.51 Ora,como para o quadro dos invariantes de Balibar, se examinarmos bemessas definições reconheceremos sem dificuldade, e de um modo aindamais claro, a matriz antropológica. Por outro lado, e aqui de umaforma um pouco diversa, encontraremos também os traços de umesforço igualmente inútil para escapar do antropologismo.

O antropologismo do texto

Como o fizemos a propósito de Balibar, e ainda que isto nosobrigue a certas repetições, separemos os dois níveis. Leiamos inicialmente esse texto destacando simplesmente a sua matriz antropológica,e deixando de lado, por enquanto, a análise de um certo número de

determinações que deveriam evitar o perigo de uma queda no antropologismo. Nós sublinhamos os termos antropológicos:“Por prática em geral entenderemos todo processo de transfor

mação de umamatéria-prima dada determinada, em um produto determinado, transformação efetuada por umtrabalho humano determinado, utilizando meios (de ‘produção’) determinados. Em toda prática concebida desse modo, o momento (ou o elemento) determinantedo processo não é nem amatéria-prima, nem o produto, mas a práticaem sentido estrito: o momento do próprio trabalho de transformação,que emprega, numa estrutura específica,homens, meios e um métodotécnico de utilização dos meios. Esta definição geral da prática incluiem si a possibilidade da particularidade: existem práticas diferentes,realmente distintas, embora pertencendo a uma mesma totalidadecomplexa. A ‘prática social’, unidade complexa das práticas, que existe numa sociedade determinada, comporta assim um número elevadode práticas distintas. Esta unidade complexa da ‘prática social’ éestruturada, veremos como, de modo que a prática determinante emúltima análise é a prática de transformação danatureza (matéria-

prima) dada, em produtos de uso pela atividade doshomens existentes,trabalhando com o emprego metodicamente regulado de meios de produção determinados, no quadro de relações de produção determinadas. Além da produção, a prática social comporta outros níveis

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essenciais: a prática política — que nos partidos marxistas não é maiespontânea mas organizada com base na teoria científica do materialismo histórico e que transforma a suamatéria-prima: as relaçõessociais, em um produto determinado (novas relações sociais); a prática

ideológica (a ideologia, seja ela religiosa, política, moral, jurídica ouartística, transforma também o seu objeto: a ‘consciência’ doshomens); e enfim a prática teórica” . 52 Observemos, nesse texto — que para muitos foi uma das referências fundamentais na luta contra oantropologismo — a presença constante e nada acidental de termoscomohomens, natureza, produto, matéria-prima,53 todos os quais sãode extração antropológica. Esses termos, que reaparecem na continuação do texto,54 exprimem os agentes como sujeitos (“homens” , poexemplo), e os objetos comonatureza (enquanto objetos antropológico-

naturais: “natureza”, “matéria-prima”, “produto”). Ainda uma vez,se reconhece sem dificuldade em tudo isto a descrição do processo detrabalho no capítulo V (original) do livro í deO Capital. Na realidade,o que Àlthusser faz aqui é “importar” as noções antropológicas docapítulo V a outros domínios da “produção” (política, ideologia, teoria), e generalizá-las na Produção (no sentido duplamente geral). Dessoperação, da qual no máximo se poderia esperar como resultadonovos discursos pressupostos (cujo interesse seria duvidoso), ele quer obternada menos do que a Teoria geral das práticas, que ele identifica

ao materialismo dialético, e que se destinaria assim a fundamentar o“materialismo histórico” .55 E tudo isto em nome de uma leitura que s pretende acima de tudo antiantropologista! (O paradoxo não é, entretanto, já vimos, um “engano” (subjetivo) de Àlthusser.)

A “correção” do antropologismo

E, entretanto, como Balibar, Althusser sente ou antes pressente a

dificuldade, e como Balibar (ainda que de outro modo e em um outrolugar) — mas de uma forma igualmente inoperante — ele tenta evitá-la. Balibar introduz na seqüência um certo número de consideraçõesque visam limitar o alcance do esquema inicial. Althusser faz a mesmacoisa, mas no nível das próprias definições.56 Porém os resultados sãoanálogos. Só que o paradoxo se apresenta aqui de um modo a tal pontoimediato que é ainda mais difícil percebê-lo. No texto de Althusser a“precisão” é representada simplesmente pelo atributo “determinado”(uma vez, “específico”) —■atributo aparentemente inocente — que el

vincula à maioria das noções contidas nas definições. Releiamos o textoacentuando as “precisões”, pondo assim em destaque esse segundoextrato lógico: “Por prática em geral, entenderemos todo processo detransformação de uma matéria-prima dadadeterminada em um produtodeterminado, transformação efetuada por um trabalho humano

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nada, produto determinado — o que não tem pouca importância paradar a ilusão de um“setzen" — não faz mais do que exprimir a exas peração do teórico diante da cilada que lhe arma a linguagem (a sualinguagem, a sua apresentação), cilada que, por razões que remontamà essência mesma do seu ideal de ciência, ele é incapaz de evitar.59

Vê-se assim — retomando o primeiro motivo do “deslizamento”de Balibar — como o projeto de fundamentar o materialismo históriconuma teoria geral é o caminho mais seguro, apesar, ou antes, por causadas boas intenções antiantropológicas — na direção do antropolo-gismo, seu contrário.

* # #

Concluamos esta análise da relação entre o althusserismo e o

antropologismo.Inicialmente, observando o que há de ilusório em toda crítica doalthusserismo feita em nome do antropologismo. Tais críticas sãoinsustentáveis não só porque o marxismo não é um antropologismo,mas porque o althusserismo não é estranho ao antropologismo.

Mas, sobretudo, observemos: esta análise não deve ser entendidacomo levando ao resultado de que o althusserismo é um antropologismo. Ou antes, ela não levasó a isto. Com efeito, a análise não nega ocaráter antiantropologista do pensamento althusseriano, pelo contrário, ela deveria confirmá-lo. O althusserismo contém os dois momentos, e a relação entre eles não é contingente: o althusserismo é umantropologismo, porque ele é um antiantropologismo. O caráter nãodialético da sua oposição ao antropologismo (e que se reflete na ex pressão “anti” (-antropologismo), torna necessária a interversão doantiantropologismo em seu contrário.

Observemos, por outro lado, que esse movimento de opostoabstrato a oposto abstrato tem provavelmente uma significação maisgeral. Além do fato de que ele se manifesta em outros aspectos do problema do althusserismo (nós o mostraremos a propósito da crítica

do historicismo), ele deve se encontrar também em outras filosofias dosujeito e do anti-sujeito. E por aí ele nos põe talvez no caminho de umaapresentação rigorosa do pensamento dialético, como o pensamentoque “suprime” esses extremos, para escapar da interversão(“renver- sement”). Mas se tal generalização (que faria aparecer“en creux” —sobre uma base suficientemente ampla — a dialética) é a finalidadeúltima deste trabalho, ela ultrapassa os limites do presente texto. Fiquemos por aqui.

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NOTAS

(1) E. Balibar, “Sur les concepts fondamentaux du matérialisme historique”, in L. Althusser e E. Balibar, Lire Le Capital, París, Maspero, 2? ed., 1968, tomo II, pp. 79-226. Principalmente no que se refere ao texto de Balibar, esta 2? edição apresenta certas diferenças em relação à primeira. S6 nos serviremos aqui da 2? edição.

(2) L. Althusser, “Sur la dialectique matérialiste (De l’inegalité des origines)”,in PourMarx, Paris, Maspero, 1968, pp. 163-224.

(3) E. Balibar, "Sur les concepts fondamentaux du matérialisme historique”,in op. cit., tomo II, p. 79.

(4) Verídem, II, p. 90.(5) Idem, II, p. 93.(6) Idem, II, pp. 94-95.(7) Idem, II, p. 95.(8) Idem, II, p. 95. Por enquanto, digamos simplesmente que a relação de apro

priação — seguimos por ora a apresentação de Balibar — se refere ao nível material: à relação material que se estabelece no processo de trabalho, entre o trabalhador e os meios de produção, em particular os meios de trabalho, enquanto que a relação de propriedade se situa no nível formal.

(9) Idem, II, p. 95.(10) Ver Ídem II, pp. 105, 109-110, 132, 142, 146, 157, 166, 204, 219, ...(11) Idem, II, p. 90, ri. 1, grifado por Balibar.(12) Idem, II, p. 135, grifado sucessivamente por nós e por Balibar.(13) Idem, II, p. 98.(14) Idem, II, p. 99. “Marx confunde constantemente (as duas separações) num

único conceito, o da separação entre o trabalho e as condições de trabalho.”(Ibidem)(15) Estas duas últimas noções, que especificam a noção de “meios de produção”

aparecem na segunda apresentação do quadro (idem, II, p. 98), que é a seguinte:“1. Trabalhador2. Meios de produção

— 1. objeto de trabalho— 2. meio de trabalho

. 3. Não-trabalhadorA. Relação de propriedadeB. Relação de apropriação real ou material”.Nessa segunda apresentação, desaparece a referência à “força de trabalho” —

“o trabalhador (a força de trabalho)” — que havíamos encontrado na primeira. A noção de “força de trabalho”, se tomada no nível geral e antropológico, é uma noção do mesmo tipo que as de “trabalhador” e “meios de produção”. Se, pelo contrário, a considerarmos no interior do capitalismo, ela é de uma outra ordem, e “quebra” por isso mesmo o quadro geral dos invariantes. Esta talvez a razão pela qual ela teve de desaparecer.

(16) No sentido da antropologia stricto sensu, não no sentido do humanismo (o “homem humanizado”). Conviria precisar essa distinção: se se pode falar de antropologia, em sentido geral, a propósito de todo discurso fundado em noções que exprimem os agentes como sujeitos (e — poderíamos acrescentar — que exprimem os objetos como

natureza), seria necessário distinguir o discurso humanista (em que o sujeito fundante é uma universalidade concreta: o homem humanizado, o homem plenamente constituído) do discurso antropologista em sentido estrito (em que o sujeito é umauniversalidade

abstrata: o homem ou os homens — mas também o trabalhador em geral etc. — sem outro redobramento). Nos limites deste texto, só nos referiremos à antropologia (e ao antropologismo) em sentido estrito. Sobre a distinção, ver também o texto anterior, n. 15.

(17) Sobre a noção de “pressuposição” , ver as análises dé J. A. Giannotti em As origens da dialética do trabalho, sobretudo a edição francesa, Paris, Aubier, 1971. (No que se refere ao seu ponto de partida — e qualquer que seja o entrecruzamento.

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já antigo, das duas linhas de pesquisa — o nosso texto deve certamente alguma coisa ao livro de Giannotti. Observe-se, entretanto, que utilizaremos aqui duas distinções envolvendo a noção de posição. Trata-se inicialmente da distinção — análoga à que se encontra em As origens da dialética do trabalho, a qual foi preciso retomar, de início — entre noções pressupostas e noções postas (distinção que separa as noções- gerais de caráter não conceituai e sem papel fundante, dos conceitos que exprimem cada modo de

produção). Porém, mais adiante, se trata da distinção — queè de uma outra ordem — entre “visar” ( meinen) e “pôr” (setzen), pela qual se separa algo como as intenções não preenchidas de um discurso, e o discurso efetivo.)

(18) Como toda exposição antropológica, a exposição do capítulo V é subjetivi- zante. Esta é a razão pela qual, ao retomar a análise do capitalismo, Marx poderá se referir — em textos que lêem o capitalismo sobre o fundo (ou o horizonte) do discurso antropológico — a uma inversão (característica do capitalismo) da relação entre o trabalhador e os meios de produção: “Não é mais o trabalhador que utiliza os meios de produção, são os meios de produção que utilizam o trabalhador” .(Werke, 23, Das Kapital,\, Berlim, Dietz, 1972, p. 329; Marx,Oeuvres, Économie I, Paris, Bibliothèque

de ia Plêiade, Gallimard, 1965, p. 846). “(...) estainterversão (Verkehrung), mesmo deslocamento (Verrückung) da relação entre o trabalho morto e o trabalho vivo, que é própria da produção capitalista e que a caracteriza (...)”. (Werke, 23, Das Kapital, op. ci t. , p. 329;Oeuvres, Économie I, op. cit ., p. 847. Grifo nosso)

(19) Ver, por exemplo,Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit ., p. 54; Oeuvres, op. cit., p. 567: “A força produtiva do trabalho é determinada por diversas circunstâncias, entre outras (...) pela extensão e a eficácia dos meios de produção (...)”. (Grifo nosso)

(20) Quanto à noção de “não-trabalhador” é, sobretudo, às noções que exprimem as duas relações — “propriedade", “apropriação” (ainda não analisadas), elas são sem dúvida de um nível diferente das que examinamos. Nenhuma delas se encontra na parte antropológica do capítulo V, e pelo menos as duas últimas não são em si mesmas propriamente antropológicas. Mas se elas não são, propriamente, antropológicas, elas dependem das noções antropológicas e são marcadas por estas. Na realidade, essas relações, que Balibar considera também como "elementos”, são construídas a partir das noções de “trabalhador” e de “meios de produção”. A “propriedade" (e a "não-proprie- dade”) são “laços” que unem (ou separam) “trabalhador” e “meios de produção”. Não há assim descontinuidade entre, de um lado, a noçâo de “propriedade”, e de outro, as de “trabalhador” e de "meios de produção”, como será o caso, como veremos, para o conceito de “capital” em relação a estas últimas. (No que se refere à noção de “não- trabalhador”, forma negativa de “trabalhador”, a dependência é imediatamente visível.)

(21) Sem dúvida, os clássicos fizeram a crítica do conhecimento fundado na “generalidade”. Mas diante da “revolução hegeliana" isto é secundário. Criticando o ideal de fundação na “generalidade”, eles permaneceram fiéis à idéia, que ele contém, de uma ciência de domínio universal fundada em noções primeiras. Esta é a razão pela qual se pode dizer, apesar de tudo, que o ideal da generalidade reconduz ao universo dos clássicos.

(22) E. Balibar, “Sur les concepts fondamentaux du matérialisme historique”, in op. c it ., tomo II, p. 100, grifo do autor.

(23) Idem, II, pp. 112-114, grifo do autor. Mais adiante, ele escreve, no mesmo sentido: “Possuímos o conceito teórico do modo de produção, e mais precisamente o possuímos sob a forma do conhecimento de um modo de produção particular, pois, como vimos, o conceito só existe especificado”. ( Idem, II, p. 153)

(24) As precisões de Balibar visam antes de mais nada se distanciar da apresentação estruturalista, isto é, responder à imputação de “estruturalismo” habitualmente lançada contra o althusserismo. Mas por um movimento que, no nível negativo das

justificações, é análogo àquele que estamos reconstituindo, estas garantias (ilusórias) em relação ao estruturalismo tomam também o valor de garantias (ilusórias) em relação ao antropologismo.

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(25) Ainda que seja um sintoma importante, o “lugar” não é em si mesmooessencial.

(26) Observemos, por outro lado, que não é em todos os casos que o meinen (visar)contraria o setzen (pôr). Às vezes ele o confirma, como nos textos citados anteriormente.(Idem, II, pp. 90 e 135)

(27) Vendem, II, pp. 123 e 126-127.(28) Idem, II, p. 98.(29) Observemos, desde já, para evitar toda confusão, que o método de Balibar

queconsiste em introduzir precisões na determinação inicial coincide somente na apa rência com o método de apresentação de Marx, que consiste — mostraremos em detalhe em outrolugar — em enriquecer progressivamente as noções por meio de negações sucessivas. Digamos, de um modo geral, que, como para a dialética a negação não é um defeito,mas uma condição de inteligibilidade, Marx assume as negações sucessivas da apresentação(que, no essencial, reproduzem as negações, as contradições do real). Nos althusserianos, pelo contrário, as negações aparecem como um defeito do método, como um malmenor, e devem ser apresentadas meio ocultas ou sob a forma de precisões (de correções).Também para evitar confusões, observemos que essas diferenças de método

não sedevem evidentemente ao fato de que Marx faz ciência e os althusserianos, filosofia (epistemología). A ruptura entre o marxismo e o althusserismo atravessa tanto a ciência comoa filosofia.

(30) “Após o desenvolvimento anterior, é supérfluo provar de novo como a relação do capital e do trabalhador assalariado determina o caráter total do modo de produção.Os agentes principais desse modo de produção mesmo, o capitalista e o trabalhador assalariado, são, enquanto tais, apenas corporificações (Verkörperungen), personificaçõesdo capital e do trabalho assalariado; caracteres sociais determinados que o processo social de produção imprime aos indivíduos; produtos dessas relações de produção sociais, determinadas(bestimmten gesellschaftlichen Produktionsverhältnisse).'' (Werke, 25, Das Kapital, III, op. cit., pp. 886-887;Oeuvres, Économie II, op. cit.,1968, p. 1478, grifo nosso) Sobre o capital, relação de produção: “Aqui o capital é compreendido ¿corretamente como relação de produção (Produktionsverhältnis)". (Wer ke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, op. cit., p. 232; Théories sur la Plus-valie, publicado sob a responsabilidade de G. Badia, tome III, Paris, Éd, Sociales, Í976, p. 278, grifo nosso) E finalmente: “(O capital) é evidentemente uma relação (Verhältnis) e sí 5 pode ser uma relação de produção” (Produktionsverhältnis). (Grundrisse, Dietz, 1953, p. 413; Manuscrits de 1857-1858, (Grundrisse) publicado sob a responsabilidade de J.-P. Lefebvre, I, Paris, Êd. Sociales, p. 452, grifado por Marx)

(31) “O trabalho enquanto trabalho assalariadoe as condições de trabalho enquantocapital — portanto propriedade do capitalista; elas são proprietárias delas mesmasno capitalista, no qual elas se personificam, e cuja propriedade sobre elas é a propriedade delas sobre elas mesmas diante do trabalho — são expressões de uma

mesmarelação, a partir de seus pólos distintos”.(Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, op. cit., p. 482;Théories sur la plus-valie, op. cit., III, p. 578-579)(32) “Mas no modo de produção capitalista, e no capital que constitui a sua

categoria dominante, a sua relação de produção determinante (“ihr herrschende Kategorie, ihr bestimmendes Produktionsverhältnis”), esse mundo encantado e invertido se desenvolve ainda mais”.(Werke, 25, Das Kapital, III, op. cit., p. 835; Oeuvres, Économie II, op. cit ., p. 1435, grifo nosso)

(33) Grundrisse, op. cit., p. 413; Manuscrits de 1857-1858, op. cit., I, p. 452, grifadopor Marx.

(34) Por exemplo: “Assim D’ aparece como uma soma de valor que exprime a relação-(de)-capital (Kapitalverhältnis) diferenciada em si, se distinguindo em si funcionalmente(conceitualmente)”.(Werke, 24, Das Kapital, II, op. cit., p. 50, grifo nosso) “M’ enquanto relação-(de)-capital (Kapitalverhältnis) é aqui o ponto de partida, e enquanto tal, age deum modo determinante sobre a totalidade do circuito (...)”. (Idem, p. 97, grifo nosso) A tradução francesa do livro II deO Capital das Éditions

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Sociales traduz sempre “Kapitalverhältnis” por“relation capitaliste" (ver, para os nossos exemplos, Marx, Le Capital, Paris, Êd. Sociales, 1960, tomo IV, respectivamente pp. 46 e 87), o que é evidentemente incorreto. Coisa semelhante na edição das obras d Marx da Bibliothéque de la Pléiade (dirigida por M. Rubel), a propósito de uma outra ocorrência era Marx, do termo “ Kapitalverhältnis” (tomo outro exemplo, porque os textos das duas edições não coincidem). O texto alemão diz: “Es tritt die dem Kapital- Verhältnis immanente Mystifikation ein”. (Marx, Resultate des unmittelbaren Pro

duktionsprozesses, Frankfurt, Verlag Neue Kritik, 1969-70, p. 47, grifado por Marx) E a tradução: “Intervient également la mystification inhérente au capitalisme". (Marx, Oeuvres, Économie II, p. 366,Subordination formelle et réelle du travail au capital, grifo nosso) Uma nota de Rubel indica o conceito original, e tenta justificar assim a tradução “2. (Capitalisme) terme que nous mettons pour Kapitalverhältnis. Marx ne semble pas avoir empiOyé le mot Kapitalismus avant 1870”. (Marx,Oeuvres, II, op. cit., p. 1661, n. 2 à p. 366) Maso problema não remete evidentemente à cronologia do vocabulário nem os dois termos são equivalentes. As traduções defeituosas da expressão “Kapitaverhältnis” denotam a dificuldade dos tradutores em compreender que o capital é ele mesmo a Relação, resultado a que só se pode chegar, evidentemente, se se compreender que é uma relação para Marx.

(35) Grundrisse, op. cit., p. 170; Manuscrits de 1857-1858 (Grundrisse), I, op. cit ., p. 198, grifo nosso. Citemos ainda um texto muito claro do livro II de OCapital : “O capital enquanto valor que se valoriza não contém somente relações de classe(Klassen - Verhältnisse), um caráter social determinado(einen bestimmten gesellschaftlichen Cha rakter) que repousa sobre a existência do trabalho enquanto trabalho assalariado. Ele é um movimento (Es ist eine Bewegung), um processo circular(Kreislaufsprozess) que por sua vez contém três formas diferentes do processo circular. Por isso, só se pode apreendê- lo como movimento e não como uma coisa em repouso (Es kann daher nur als Bewegu

und nicht als ruhendes Ding begriffen werden). Aqueles que consideram a autonom zação do valor como urna pura abstração esquecem que o movimento do capital ind trial é esta abstração em ato (“diese Abstraktion in actu ist”). O valor percorre aqui formas diversas, movimentos diversos, nos quais ele se conserva e ao mesmo tempo valoriza, aumenta”.(Werke, 24, Das Kapital, II, op. cit., p. 109; Le Capital, livre II, tomo I (IV), trad. franc. de E. Cogniot, Paris, Éd. Sociales, 1960, p. 97, grifo nosso Observemos que nos textos do livro II, citados anteriormente, onde se encontra a expressão “relação-(de)-capital” (“Àapiía/verAa/íms), a noção de “relação” remete sempre à idéia de "processo”. Trata-se sempre de mostrar que cada momento do capital (da relação-capital), para ser pensado, enquanto tal (enquanto momento do capital) deve remeter a uma “história”, no sentido da temporalidade econômica. Cada momento refere um momento passado — é memória retrospectiva de um momento anterior do processo, ou remete a um momento futuro — é memória prospectiva. A dissociação entr a noção de relação (rapport ou relation) e a noção, ou a idéia, de processo é característica das leituras do entendimento.

(36) Na parte do seu texto consagrada à acumulação primitiva, o capital (junto com o trabalho livre) é apresentado como sendo ele mesmo um dos elementos qu “entram na estrutura capitalista”.(Idem, II, p. 187) Mas dado o contexto, isto não permite avançar na solução do problema. Com efeito não é propriamente na análise da acumulação primitiva — onde só se trata da formação das pressuposições do capitalismo— que o capital poderia aparecer sob a forma do movimento. Poder-se-ia, assim observar: se lá onde se deveria tratar do capital, Balibar põe as pressuposições do capital, lá onde se trata das pressuposições — embora pensando sempre (e aqui com razão nas pressuposições — ele fala do “capital”. Ele diz por outro lado(idem, II, p. 165) que o capital é a “forma de conjunto da produção”, fórmula que também não faz avançar muito a solução do problema.

(37) Ele escreve, por exemplo: “Assim, a análise da reprodução parece pôr em movimento, propriamente, o que até aqui só fora vistoem forma estática (...)”. (Idem, II, p. 159, grifo nosso) Isto significaria que a diferença entre as seis primeiras

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secções do livro I de OCapital (ou, mais exatamente, as secções de dois a seis) e a secção sétima, que trata da reprodução e da acumulação, representariam uma passagem do ponto de vista estático ao ponto de vista dinâmico. Ora, não se trata disto. Na obra de Marx, o capital é considerado sempre em movimento, porque ele é movimento. A diferença entre as primeiras secções e a secção sétima reside no fato de que, nas primeiras, o movimento depende ainda de certas pressuposições, enquanto que na análise da reprodução estas são apresentadas como sendo postas pelo próprio capital. Trata-se assim de uma passagem que é interior ao movimento. Observemos que esta queda na distinção não dialética entre o “estático” e o “dinâmico” é tanto mais surpreendente em Balibar, porque ela é criticada num outro ponto do seu texto.

(38) Ele dirá, por exemplo: “Não é (...) a definição da classe capitalista ou da classe dos proletários que precede a da relação social de produção, mas,inversamente, é a definição da relação social de produção que implica uma função de ‘suporte’ definida como uma classe”.(Idem, II, p. 123) Aqui se trata mais exatamente da relação social de produção (da relação entre as classes) do que da relação de produção: mas a anterioridade da primeira em relação aos termos só é pensável se apreendermos a anterioridade da relação de produção propriamente dita.

(39) Diga-se de passagem, é substituindo o problema do movimento-sujeito pelo

problema do movimento em geral que as leituras vulgares falseiam o sentido profundo da dialética.(40) Se apresentarmos os dois motivos em forma negativa, diremos que o distan

ciamento é fruto, por um lado, da incapacidade do entendimento de apreender o “específico” como sendo anterior ao geral na ordem da posição; por outro lado, da sua incapacidade de apreender o movimento como sujeito. Se apresentarmos os dois motivos em forma positiva, diremos que o distanciamento deriva, por um lado, de uma (pretensa) exigência de fundar o particular no geral, e por outro, de uma (pretensa) exigência de apreender o movimento como predicado de um sujeito.

(41) Ver a esse respeito a nota 10.(42) A “dupla separação", a forma pela qual ele apresenta a estrutura capita

lista, não é mais do que a expressão formal e generalizante da dupla subordinação do

trabalho ao capital. (Aliás, Balibar o reconhece, mas como sempre somente a posteriori. Ver idem II, p. 219: “(...) não é uma das duas (relações) que é ‘subsumida’ à outra, é o trabalho que é subsumido ao capital (...)” — observação que se apresenta como um resultado mas que, se for levada a sério, contradiz, apesar das aparências, tudo qüe ele tinha dito (feito) anteriormente.) Observemos que, se a noção de “separação” caracteriza bem o que se passa no nível das pressuposições — (o célebre texto do livro II de OCapital, onde se fala das “combinações”, texto sobre o qual os althusserianos fizeram um barulho excessivo, sem tê-lo lido bem, diz: “No caso de que nos ocupamos, o ponto de

partida é dado pela separação entre o trabalhador livre e os seus meios de produção”. (Werke, 24, Das Kapital, II, op. cit., p. 42; Le Capital, livre II, tome I (IV), op. cit., grifo nosso)) — ela é segunda, e em certo sentido diz o contrário do que se passa no interior da relação, tanto no que se refere ao nível formal quanto no que concerne

ao nível material. Com efeito, no que se refere ao nível formal: no interior da relação, o operário continua evidentemente “separado” dos meios de produção (ele é não-proprie- tário destes últimos), mas o que é propriamente substantivo é a subordinação (formal) do trabalho ao capital — os termos não são mais os mesmos, mas a sua relação afeta a dos suportes —, o fato de que o trabalho é submetido ao capital, e isto implica (também para os suportes) mais exatamente algo como uma “reunião”. Do mesmo, no que se refere ao lado material: sob um aspecto não há mais separação mas reunião (material) entre o operário e os meios de produção (o operário está ligado a esses meios como um apêndice (Anhängsel)', sob um outro aspecto, há emergência de uma separação, a que se dá entre o operário e o seu trabalho (separação que constitui o tema importante da alienação no livro I de OCapital)', mas, a menos que se queira atribuir um papel fundante a isto (“deslizando” ainda vez no antropologismo), é necessário tomar essa separação como

alguma coisa que é segunda em relação à subordinação do trabalho ao capital. Obser-

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vemos, para terminar com o “deslizamento” subordinação/separação, que a análise de Balibar não faz totalmente abstração da interioridade do processo (a relação material tal como ele a descreve só existe no interior do processo), mas ele confunde os dois níveis, ele projeta a exterioridade (as pressuposições) na interioridade, ou lê a interioridade sob a forma da exterioridade (a subordinação se torna, assim, separação). Daí a opacidade do

seu texto (para todo leitor de Marx, pelo menos), opacidade que, na realidade, está ausente do texto de Marx. As "dificuldades” que Balibar encontra no texto de Marx são o resultado necessário de uma tentativa de leitura “analítica” (no sentido em que se fala de “razão analítica”) de um texto dialético. E é essa tentativa de reduzir a “não- clareza” (dialética) à clareza cartesiana (ou em todo caso clássica) que explica a “não- clareza” (no sentido corrente, pejorativo: a opacidade) do texto de Balibar.

(43) O termo “pressuposição” ("Voraussetzung”) que, diga-se de passagem, existe nos althusserianos, mas do qual eles não tiram todas as implicações, é mencionado quase em cada parágrafo das Formas... Ver, Grundrisse, op. c/f., p. 375, linhas 7, 11, 18, 41; p. 376, linhas 8, 16, 31; p. 378, linha 5; p. 379, linhas 11, 19, 29 etc. etc.

(44) “Nas duas formas (pequena propriedade e comuna oriental) os indivíduos não se relacionam como trabalhadores, mas como proprietários — e membros de uma comunidade, que ao mesmo tempo trabalham. A finalidade (Zweck) desse trabalho não é a criação de valor — ainda que eles possam fazer trabalho excedente (Surplus- arbeit, não Mehrarbeit) para trocar por produtos alheios(fremde), isto é, por produtos excedentes (Surplusprodukte); mas a sua finalidade (Zweck) é a manutenção do indivíduo (.. .) .”(Grundrisse, op. cit., p. 375, Manuscrits de 1857-1858..., 1, op. cit. , p. 411, grifo nosso) “Aqui se trata propriamente do seguinte: em todas essas formas em que a propriedade da terra e a agricultura constituem a base da ordem econômica, e onde portanto a produção de valores de uso é a finalidade econômica (ökonomischer Zweck), a reprodução do indivíduo no interior de relações determinadas com a sua comuna é dada (...).”(Grundrisse, op. cit., p. 384; Manuscrits de 1857-1858..., op. cit., I, p. 421, grifo nosso) “Assim, a concepção antiga — em que o homem, qualquer que seja a limitação nacional, religiosa, política da sua determinação, aparece sempre como a finalidade (Zweck) da produção — aparece sempre como muito elevada diante do mundo moderno, em que a produção aparece como a finalidade (Zweck) do homem, e a riqueza como a

finalidade (Zweck) da produção." (Grundrisse, op. cit., p. 387; Manuscrits de 1857- 1858..., op. cit., I, p. 424, grifo nosso) “A finalidade (Zweck) de todas essas comunidades é a manutenção, isto é, a reprodução dos indivíduos (...).”(Grundrisse, op. cit., p. 393;

Manuscrits de 1857-1858..., op. cit., I, p. 431, grifo nosso) etc.(45) Por exemplo: “A primeira peculiaridade que salta aos olhos quando consi

deramos a forma equivalente é a seguinte: o valor de uso se torna a forma fenomenal do

seu contrário (Gegenteil), o valor.” (Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 70;Oeuvres, Économie I, op. cit., p. 586, grifo nosso)(46) Na introdução à edição francesa da Garnier-Flammarion do Livro I de

O Capital, Althusser ataca o emprego por Marx da expressão “valor de uso”. Marx deveria ter dito “utilidade social” (ver Le Capital, livro I, Paris, Garnier-Flammarion,1969, p. 22, “Avertissement...”). Ora, é de propósito e muito provavelmente por uma razão profunda que Marx conservou a expressão “valor de uso” para designar algo que é um contrário do “valor”. Se Marx denomina “valor de..." (valor de uso) o contrário do valor, é porque, contra toda lógica da identidade, ele quer “pôr” no próprio nível da expressão a contradição real entre os dois termos. Um procedimento que não faz outra coisa senão satisfazer a certas exigências de rigor do discurso dialético, aparece assim aos

defensores do entendimento como uma imperfeição de linguagem.(47) Werke, 19, “Randglossen zu Adolphe Wagners ‘Lehrbuch der Politischen Ökonomie”, op. c it., p. 358, grifo nosso. Mas se a expressão “esses dois termos” tem “em comum a palavra valor”, permite esclarecer a idéia de um “valor” geral subsumente, ela nos parece insuficiente, porque corre o risco de ir longe demais no sentido inverso. Com efeito, na medida em que, embora sendo universalidade negada (e não particularizada pelos valores de uso), o valor é por isso mesmouniversalidade negada, a relação entre os

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MARX: LÓGICA E POLÍTICA 85

dois conceitos (que não é de subsunção mas de contrariedade) ultrapassa a de uma simples homonímia. Ver a esse respeito o ensaio seguinte, II, 1.

(48) Observemos que se só nos referimos aqui à descontinuidade entre o modo de produção capitalista e todos os outros é porque é ela que representa um problema no texto de Balibar. Mas há outras descontinuidades. Na realidade, o discurso sobre o conjunto dos modos (a “teoria” dos modos de produção) é constituída por uma série de descontinuidades, que remetem finalmente a diferenças de “sentido” entre os modos (ou séries de modos). E essas diferenças se manifestam pela alternativa entre a presença e a ausência de um conceito (não por variações em combinações que uniriam os mesmos elementos). Assim, a descontinuidade entre o socialismo (tal como o concebia Marx) e o conjunto dos outros modos (com exceção das comunidades primitivas) se institui pela diferença entre modos em que reina a exploração e um modo em que toda exploração está excluída. Esta diferença de sentido (onde já entra uma alternativa do tipo indicado) se exprime, entre outras coisas, pela presença ou a ausência do sobretrabalho ( Mehr- arbeit). Com efeito, Marx não dirá no livro I de OCapital que no socialismo o sobretrabalho (Mehrarbeit) é utilizado socialmente etc.; ele dirá que não há sobretrabalho (Mehrarbeit). (Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 552; Oeuvres, Économie I, op. cit., p. 1023) Os althusserianos dirão talvez que eles conhecem essa descontinuidade. Não são eles os campeões da descontinuidade? E entretanto: se no que se refere ao socialismo é impossível comentar o texto de Balibar (que não diz nada ou quase nada sobre isso) pode-se mostrar que, em outros textos, dos althusserianos, a descontinuidade entre o socialismo e os outros modos de produção é claramente anulada. Assim, no texto de Althusser, Théorie, pratique théorique et formation théorique. Idéologie et lutte idéologique, texto criticado por Rancière emSur la Théorie de l'idéologie (1969, republicado em La leçon d ’Althusser, Paris, Gallimard, 1974), as “representações coletivas” de uma sociedade socialista são subsumidas de direito, ao lado das dos outros modos de produção — contrariamente ao que se encontra em Marx — à noção geral de “ideologia”. Em Althusser, elas seriam assim de direito, algo como “um estado de variação” da Ideologia, assim como em Balibar cada modo de produção é um estado de variação (da dupla relação) do Sistema de Elementos. Ver sobre esse texto de Althusser a crítica de Rancière(op. cit., pp. 227 e segs.), crítica que a esse respeito é paralela à que fazemos aqui.

(49) L. Althusser, “Sur la dialectique matérialiste (De l’inégalité des origines)”,in Pour Marx, Paris, Maspero, 1965, pp. 163 e segs.

(50) “Chamaremos de Teoria (maiúscula) a teoria geral, isto é, a Teoria da prática em geral, ela mesma elaborada a partir da teoria das práticas existentes (das ciências), que transformam em ‘conhecimentos’ (verdades científicas) o produto ideológico das práticas ‘empíricas’ (a atividade concreta dos homens) existentes. Esta Teoria é a dialética materialista que se confunde com o materialismo dialético.”(Idem, p. 169, grifado pelo autor) “(...) Mas enunciando essa tese, Lenin faz mais do que ele diz: lembrando a prática marxista a necessidade da teoria que a fundamente, ele enuncia um

fato, uma tese, que interessa à Teoria, isto é, à teoria da prática em geral: a dialética materialista.”(Ibidem)(51) Ver idem, p. 167; examinaremos em seguida esses textos.(52) Idem, pp. 167-168, grifo nosso.(53) Porque o althusserismo — no qual só se vê, usualmente, um antiantropo-

logismo — deu uma grande importância à noção de "matéria-prima” (sobre isto, há textos saborosos nos epígonos) fica difícil lembrar que a noção de matéria-prima é de essência antropológica. E, entretanto, já que a noção serve como as outras, à descrição geral e material do processo de trabalho, não há nenhuma razão para pô-lo em dúvida.

(54) Ver, por exemplo, o emprego da expressão “atividade concreta dos homens” emidem, p. 169, texto citado anteriormente em nota. Outro exemplo na p. 188. — Sem dúvida, do simples fato de que Althusser emprega termos como “homens” etc., não se

pode concluir que ele “deslize” no antropologismo. Dir-se-ia que “polemizamos” . Mas o problema não reside simplesmente no fato de que ele empregue tais termos, mas sim que

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ele o faça — ou antes, que ele seja obrigado a fazê-lo — num texto que, mesmo como primeiro esboço, deveria servir à fundamentação do materialismo histórico. Ê esse pro

jeto de fundamentação — que náo é de modo algum inocente, e cuja necessidade não é de modo algum evidente —• que torna necessário o recurso a algo que se configura como urna queda no universo discursivo do antropologismo.

(55) Sem dúvida, Althusser apresenta essas definições só como “aproximações prévias” ( aproximations préalables). (Idem, p. 167) Mas o que ele considera como aproximativo e prévio é evidentemente a forma (em sentido fraco, o desenvolvimento etc.) destas definições, não o próprio procedimento teórico (o projeto de uma fundamentação do materialismo histórico numa Teoria geral das práticas).

(56) Havíamos observado a propósito de Balibar que o lugar das “advertências” não é em si mesmo o essencial.

(57) Idem, pp. 167-168.(58) Geral, pelo menos em um dos sentidos indicados, suficiente para a nossa

argumentação.(59) Poder-se-ia objetar que em certas passagens da Introdução de 57 encontra-se

também a repetição do termo “determinado” (ver, por exemplo,Grundrisse, op. cit. , p. 20; Manuscrits de 1857-1858..., op. cit., I, p. 34): “Uma produção determinada determina pois um consumo, uma distribuição, uma troca determinadas, e relações determinadas que esses diferentes momentos têm entre si”). Na realidade, se se compreender bem o caráter da Introdução de 57, e também o significado do destino que Marx finalmente lhe deu, o texto não faz senão reforçar a nossa argumentação. Escrevendo a Introdução de 57, Marx estava às voltas com um problema — cuja matriz é a problemática hegeliana em tomo da impossibilidade de escrever introduções — que poderia formular-se da seguinte maneira: como escrever uma introdução geral à crítica da economia sem cair numa fundação antropológica? E mais radicalmente: em que medida é possível um discurso geral sobre a economia? Problema que é análogo àquele que os althusserianos pressentem. A Introdução de 57 era na origem uma tentativa de resolver essa dificuldade, de responder a essas questões. Mas precisamente, diferentemente do que se supõe em geral, mais do que uma introdução, a Introdução de 57 é na realidade uma antiintrodução: mais do que introduzir determinações positivas, ela visa mostrar tudo o que não se pode dizer aquém da apresentação (seria possível mostrar isto em detalhe). Mas finalmente, no próprio espírito do conteúdo dessa Introdução, mesmo uma antiintrodução pareceu a Marx um projeto ambíguo. Com efeito, ela corria o risco de ser (mal) compreendida como sendo simplesmente uma introdução positiva. (E é assim que ela foi compreendida e que ela continua a sê-lo, com a publicação póstuma do texto.) Ê bem provavelmente a razão pela qual Marx decidiu finalmente eliminá-la: a antiintrodução acabou assim por se devorar a si mesma. Sua eliminação

realiza sua tese: não há apresentação fora da apresentação. Eis o sentido profundo da desaparição da Introdução de 57 do texto daCrítica... A maneira pela qual Marx encaminhou o problema, já inscrita na solução de que ele parte que é uma solução negativa, diverge assim do caminho escolhido (em parte malgré eux) pelos althusserianos: o de um bloqueio numa quase-antropología cujos conceitos gerais têm a nostalgia da determinação.

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Abstração real e contradição: sobre o trabalho abstrato e o valor

3

Introdução

Este íexto se propõe estudar o teor lógico dos conceitos de tra balho abstrato e de valor, isto é, analisar os seus “fundamentos” e assuas “implicações” lógicas, e em particular mostrar como otipo de

abstração que se constitui nesses conceitos assim como a‘‘posição ” histórica deles estão ligados a umalógica da contradição. Esse trabalhose fará em conexão com a crítica de certos textos, em particular de umartigo de Cornelius Castoriadis, “Valeur, Êgalité, Justice, Politique: deMarx à Aristote et d’Aristote à nous” , publicado na revistaTextures (emais recentementeem Les Carrefours du Labyrinthe) .1

De alguns anos para cá, é cada vez mais freqüente, sobretudoentre os sociólogos e economistas marxistas, uma concepção da abstração que constitui o trabalho abstrato e o valor, que rompe com ainterpretação dada por certas leituras tradicionais. Ao contrário dessasleituras vulgares, que identificavam ingenuamente trabalho abstrato etrabalhoem geral, o que ou nos remete ao nível fisiológico (o trabalhoabstrato como gasto fisiológico de músculos, nervos etc.) ou nos condena a uma subjetivação do conceito (o trabalho abstrato como arepresentação abstrata do trabalho em geral), esses autores consideram comrazão o trabalho abstrato, e o valor, como uma abstração (social) real.Essas leituras críticas, que de resto recusam tanto o subjetivismo psicologista das leituras vulgares como o subjetivismo logicista dosalthusserianos,2não vão entretanto, na maioria dos casos, até o fim docaminho. Elas não explicitam bem a idéia de abstração real, em particular a do trabalho abstrato, elas não conseguem situar satisfatoriamente o lugar “estrutural” ou histórico dela,3 nem precisar o seu teor,distinguindo-a bem de outras abstrações. Sem que façamos referênciasexpressas a elas — trata-se de resto de uma corrente bem difusa — essatendência, naquilo que ela traz como naquilo que ela deixa em aberto,nos fornecerá de certo modo um ponto de referência histórico. Desenvolveremos os problemas a partir de lá. Como, entretanto, por um ladotudo isto é mal conhecido e como, por outro lado, alguma coisa das

leituras tradicionais reaparece nos textos que são nosso ponto de partida como naqueles que criticamos, consagraremos a nota seguinteàquelas leituras.4

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Antecipando-nos a propósito da ordem de exposição, é difícseparar o problema da abstração objetiva do problema do espaço hisrico ocupado pelo trabalho abstrato e o valor — as duas questões qnos propomos desenvolver. Tentamos de qualquer modo desenvolvê-

em duas partes distintas, ambas se referindo, mas desigualmente, trabalho abstrato e ao valor, ambas por outro lado ao mesmo tempexpositivas e críticas — mas uma centrada na questão da abstração eoutra na do espaço histórico. Essas duas partes constituirão as secçõII e III; julgamos necessário, por outro lado, precedê-las de uma expcação crítica (secção I) sobre os principais problemas relativos à noçde trabalho abstrato, tanto os que têm uma incidência lógica dire(nesse caso, trata-se de fornecer os materiais para o desenvolvimen posterior) como aqueles cujo interesse lógico não é imediato (nesse ca percorremos as diferentes questões tentando apenas contribuir coalguns elementos para o debate). Essas indicações revelam os limitdesse texto, limites que o próprio desenvolvimento e as consideraçõfinais devem justificar. Observemos ainda que os temas aqui tratadsão mais ou menos inseparáveis do problema do sentido da apresetação deO Capital e de outras questões, como a da forma do valor,do fetichismo etc. Para não estender demais esse texto, e coirio volremos a tratar pelo menos de alguns desses pontos, reduziremos mínimo as intromissões inevitáveis nesses temas.

I. A ABSTRAÇÃO REAL (TRABALHO ABSTRATO, VALOR):SOBRE O CONCEITO DE TRABALHO ABSTRATO

A abstração do trabalho é para Marx uma abstração real; istestá escrito literalmente no seguinte texto do capítulo I daContribuição à Crítica da Economia Política: “Para medir os valores de uso das

mercadorias pelo tempo de trabalho que elas contêm, é preciso que diferentes trabalhos, eles próprios, sejam reduzidos a um trabalho ndiferenciado, uniforme, simples, em resumo a um trabalho que sequalitativamente o mesmo e só se diferencie quantitativamente. Esredução aparece como uma abstração, mas é uma abstração que realiza todos os dias no processo de produção social. A resolução todas as mercadorias em tempo de trabalho não é uma abstração manem ao mesmo tempo menos real(keine grõssere Abstraktion aber (...)keine minder reellé) do que a resolução em ar de todos os corpos orgânicos”.5Mas a partir daí se propõem vários problemas, alguns dos qureabrem de certo modo o dossiê das leituras vulgares. Qual é a relaçque existe entre a idéia de abstração real e a idéia de generalidade (poembora sabendo que a primeira não se confunde com asimples generalidade, não é menos verdade que a idéia de generalidade não esausente)? E a partir daí se propõe de novo a questão: como pensar

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pressuposta à (posição) deste. A realidade social faz com que valha oque era apenas uma realidade natural. E que a abstração do trabalhoem sentido fisiológico não pode constituir o trabalho abstrato, é visível pelo fato de que lhe falta o momento dasingularidade. A identidade do

trabalho no nível fisiológico é a unidade dos trabalhos (fisiológicamente) idênticos. Cada trabalho considerado no nível fisiológico éidêntico ao outro, mas cada um é um trabalho (e além disso trabalhode alguém). Com efeito, seria impossível dizer que só existe, lá, um tra balho, a menos que se os tome no nível da representação. Ora, essaunidade pode (e deve) ser atribuída ao trabalho abstrato. Ele é umaunidade (mesmo se, como diz Marx, esta unidade está “constituída porinúmeras forças de trabalho individuais”. Aqui a pluralidade é segunda). E é precisamente estaunidade que retira aos seus agentes a

condição de sujeitos: “O trabalho que é assim medido pelo tempo nãoaparece, de fato, como trabalho de sujeitos diferentes(Arbeit verschie- dener Subjekte) mas os diferentes indivíduos que trabalham(die vers- chiedenen arbeitenden Individúen) aparecem antes como órgãos dotrabalho”. (Werke, 13, Zur Kritik.. ., op. cit . , p. 18,Contribution à la Critique..., op. cit . , p. 10, grifado por Marx)10 É de resto esta inversãodo papel dos agentes que permite compreender em que sentido (rigoroso) se diz que o trabalho abstrato é “social” e o trabalho concreto“individual”, distinção que poderia parecer insustentável, pois o tra balho considerado como trabalho concreto está também imerso nosocial. Mas ele é trabalho dos indivíduos, no sentido de que nesse nívelos agentes não são órgãos do trabalho (trata-se do trabalho concretonos limites da circulação simples).

2. O trabalho abstrato como o valor comporta determinida(Bestimmtheiten) que interessam a qualidade, e uma determinidadeque interessa a quantidade.11 Mas os dois tipos de determinidades nãose justapõem simplesmente no sentido de que as duas são constitutivasdo objeto. Como veremos mais adiante, só haverá trabalho abstrato sese operar uma redução ao mesmo tempo qualitativa e quantitativa.Quaisquer que sejam as diferenças entre os textos, de um modo geralMarx põe primeiro as determinidades da qualidade do trabalho abstrato (trabalho igual, social, simples),12 e em seguida somente a determinidade da quantidade (trabalho socialmente necessário); mas issodeve ser entendido como se a determinidade que interessa a quantidade

já estivesse lá, no objeto, embora não estivesse posta. Por outro lado, é preciso distinguir a quantidade (como quantidade não determinada) doquantum de valor. Ê nessa direção que se deve ler o texto do capítulo 1

da primeira edição de OCapital, que diz: “A grandeza de valor(Wertgròsse) é as duas (coisas) valor em geral(Wert überhaupt) e valormedido quantitativamente(quantitativ gessessener Wert)” 13 — o quesignifica: o valor “em geral” contém tanto a qualidade como a quanti-

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(lade, mas não oquantum medido. O erro dos clássicos vai no sentidoinverso ao daquele que criticamos: eles sacrificam a qualidade à quantidade, mas os dois erros têm um fundo comum. — À noção detrabalho socialmente necessário como a noção de trabalho simples sãocriticadas por Castoriadis (depois de outros autores). A propósito doconceito de trabalho socialmente necessário, ele ataca sobretudo anoção de “trabalho médio” (depois de ter mostrado que estaseria aúnica alternativa para a interpretação do conceito). O trabalho socialmente necessário nãoé, entretanto, necessariamente o trabalho médio,mas o trabalho que se impõe socialmente. É nointerior dessa forma,que se impõe, que se estabelecem as médias.14 For outro lado, o“privilégio” atribuído ao trabalho simples assim como a redução dotrabalho complexo ao trabalho simples podem parecer insustentáveis.15 O privilégio'do trabalho simples parece se fundar num dadoestatístico: o peso numérico desse tipo de trabalho no capitalismo (doséculo XIX). Se Marx se reporta efetivamente a dados estatísticos, nãosão estes, como simples dados, que legitimam o papel do trabalhosimples na teoria. O privilégio do trabalho simples está ligado a umadeterminação essencial ao sistema (ao sistema plenamente desenvolvido). Na realidade, o trabalho simples é posto ou criado pela grandeindústria (com a qual se passa ao capitalismo em sentido específico).16É o capitalismo em sentido específico que constitui o trabalho simples(o capitalismo manufatureiro já havia “simplificado” o trabalho). Nas

outras formações, ou o trabalho simples era secundário — a produçãomedieval urbana, por exemplo, é a do virtuose — ou ela não era posta pelo sistema, o que significa que o trabalho simples fora do capitalismoé coisa diversa do trabalho simples como categoria do capitalismo;conforme o que Marx diz sobre a cooperação no capitalismo e nas civilizações antigas. Quanto à questão da redução, problema que é semdúvida complexo, eis aqui o que nos parece representar a melhor direção: é necessáriocortar a hierarquia das forças de trabalho (cada umadas quais produz mais ou menos valor) do processo de constituição

dessas forças. Isto é, é precisorenunciar a pensar que há uma espéciede transferência do valor gasto na criação dessas forças qualificadas para os produtos do uso dessas forças — não por causa das dificuldadesda mensuração, mas por razões teóricas: com isto se poria em cheque ateoria do valor, e isto, mesmo se há correspondência (ou uma certacorrespondência) entre o tempo que se gasta para produzir uma forçaqualificada e a potência aumentada de produzir valor que ela adquireatravés dele. Mas que se siga este caminho ou um outro, a redução nãoimplica um círculo vicioso. Segundo os críticos, é finalmente pelo mercado 17 que se opera a redução. Fundar-se-ia a teoria do valor atravésdaquilo que ela deveria fundar. Na realidade, quaisquer que sejam os problemas da redução do trabalho complexo ao trabalho simples —e o que representa um problema correntemente não é nem esta redução

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em sentido qualitativo nem mesmo esta redução em sentido quantativo (mesmo se a partir de lá ela vem a ser questionada),18 mas primeiro lugar a possibilidade de efetuar uma medida exata da reduçindependentemente dos valores (os críticos diriam dós preços) cristzados nas mercadorias —, quaisquer que sejam os problemas, n parece que é disto que depende a legitimação da teoria do valor. teoria se justifica pela necessidade de fundar o valor (ver a continução), fundação que só se pode fazer pelo trabalho. Ora, se se de pensar o valor em termos de trabalho — e istonão depende de reduçãodos trabalhos, mas na realidade oexige —, toda redução dos valoresdos produtos do trabalho deve aparecer como fundada numa reduçdo trabalho complexo ao trabalho simples. Mesmo se se quises

pensar a coisa como um círculo, não se trataria de um círculo vicioEm resumo: seria preciso formular a “multiplicação” do trabalho um modo mais rigoroso (introduzindo cortes,19 o que não nos aproxinem nos afasta de uma mensuração exata, mas o problema maimportante não está lá) e seria preciso, por outro lado, rever a questdo que está em jogo nos problemas, o que não parece ser o que supõos críticos.

3. Ã abstração do trabalho corresponde a abstração va

mercadorias enquanto valores são trabalho objetivado (vergegenständliche Arbeit), trabalho cristalizado. E se no valor a abstração se objetiva,20 no dinheiro ela o exterioriza: o dinheiro é o “ser-aí”(Dasein), a forma de existência imediata do valor.21 Mas evidentemente não éno dinheiro que a abstração é real, assim como, de um modo mageral, não é somente na troca que a abstração trabalho é real. Masdeveria dizer que a troca pressupõe (no sentido corrente de “é primeem relação a”) o trabalho abstrato, ou se deveria dizer o contráriQuestão que propõe Castoriadis: “Marx diz, mais ou menos por to parte, que as diferentes determinações do valor pressupõem a tromas ele diz também ocontrário: ‘O produto do trabalho adquire aforma mercadoria desde que oseu Valor adquire a forma do valor detroca, oposta à sua forma natural (. ..) ’ ” . (Oeuvres, Économie I, p. 593,Castoriadis,art. cit . , p. 17, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit ., p.264, grifado por Castoriadis) A dificuldade nesse ponto pode ser resvida por uma leitura rigorosa do capítulo 2 de OCapital: Marx escreveque, no início mesmo da troca — digamos, por ocasião da prime

troca — os produtos (trata-se ainda de produtos, não de mercadoriasnão se tomam mercadorias (isto é, não adquirem a determinação fmal do valor de troca) senãoa partir do momento em que se opera atroca. (E, na medida em que, uma vez alienados, eles não serão mmercadorias, seu ser mercadoria tem nesse caso uma existência potual, um pouco como ocogito cartesiano antes das provas da existênciade Deus.) Os produtos somente são mercadorias antes da troca, quan

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a produção já se faz tendo em vista a troca: “A troca imediata dos produtos tem por um lado a forma da expressão simples do valor, e poroutro lado ainda não a tem. Aquela forma era x mercadoria A = ymercadoria B. A forma da troca imediata de produtos: x objetos de usoA = y objetos de uso B. As coisas ( Dinge) A e B não são aqui merca

dorias antes da troca, mas sô se tornam mercadorias através dela”.('Werke, 23, Das Kapital, I, p. 102;Oeuvres, Êconomie I, p. 623)Se temos pois sucessivamente o trabalhoabstrato, o valor como

trabalho objetivado (portanto como objetivaçáo — em sentido estrito — da abstração do trabalho), odinheiro como oser-aí da mercadoriaenquanto valor e portanto como o ser-aí daabstração do trabalho —mas é preciso introduzir descontinuidades nesse movimento trabalhoabstrato/valor/dinheiro —, tem-se com o capital (e há aqui umadescontinuidáde de uma outra ordem, uma interversão) aabstração- sujeito. A abstração reaparece assim em diferentes momentos da arti

culação real e da apresentação desta articulação. Mas se se devemostrar assim o desenvolvimento que vai da abstração do trabalho aocapital — movimento que é escandido por descontinuidades — é preciso por outro lado explorar um outro movimento — o que vai, ou iria,da abstração do trabalho ao vivido dos agentes. Este é o problema quelevantam textos como aquele, bem conhecido, da introdução de 1857. 22 Nesse texto, Marx distingue o trabalho abstrato no nível da “categoria”do trabalho abstrato na realidade efetiva (Wirklichkeit ), trabalho abstrato que é “praticamente verdadeiro”(praktisch wahr). Este últimocorresponde a uma situação em que os indivíduos passam com facilidade de um trabalho a outro, e em que a forma “particular do tra balho” não coincide mais (o termo éverwachsen: aderir, soldar) comeles. Dessa “verdade prática” do trabalho abstrato, Marx diz inicialmente que “se a encontra na sua forma mais desenvolvida”, mas emseguida simplesmente que só se encontra na forma de existência maismoderna da sociedade burguesa — os Estados Unidos. Esse texto,citado freqüentemente, levanta mais de um problema e parece contradizer tudo o que dissemos. Com efeito, se se interpretar a diferençaentre existir na categoria e existir naWirklichkeit em termos da oposição pensamento/realidade como se faz habitualmente (traduzindoWirklichkeit por “realidade”), chegar-se-á a estes resultados: o trabalho abstrato só existiria na realidade nos Estados Unidos, e por outrolado ele seria constituído como objeto real, pela mobilidade do trabalhador e pelo vivido que lhe corresponde (a indiferença do trabalhadorem relação ao trabalho determinado). Ora, fora a limitação inadmissível do campo do trabalho abstrato no capitalismo (só os Estados Unidos) que haveria aí, é preciso observar o seguinte (para dizer a coisa emtermos lógicos): a mobilidade do trabalhador não realiza o universal queéao mesmo tempo singular, o universal só é aqui umasucessão de singularidades ou de particularidades. Quanto à experiência da indiferença

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em relação ao trabalho determinado, se através dela se realiza efetivamente uma síntese, trata-se entretanto de uma síntese na ordem do vivido; ora, qualquer que seja o papel do vivido emO Capital, papel que semdúvida não se poderia subestimar, o vivido, entretanto,nunca é consti

tutivo. Mas todas essas dificuldades são reduzidas se lembrarmos que aWirklichkeit não é simplesmente o real ou a realidade, mas arealidade efetiva. Ora, a realidade efetiva(Wirklichkeit) não é coextensiva àordem do real, ela designa o momento daaparição da essência; é assimque Marx dirá freqüentemente a propósito dos conceitos desenvolvidosno livro III (lucro etc.), conceitos que correspondemhaparição da essência, que eles pertencem àWirklichkeit. Para dar apenas um exemplo:“Mas na realidade efetiva(Wirklichkeit), isto é, no mundo fenomenal(Erscheinungswelt), a coisa se inverte”.(Werke, 25, Das Kapital, III,

p. 57; cf.Oeuvres, Êconomie II, p. 895, em queWirklichkeit é traduzida por “realidade”) A diferença entre a categoria e a realidadeefetiva remete assim não à oposição pensamento/realidade, mas àdiferença entre a realidade só no nível da essência e a realidade que semanifesta também no fenômeno (“(...) unidade que se tornou imediatada essência e a existência ou do interior e o exterior” , é assim que Hegeldefine aWirklichkeit ria Pequena Lógica).23 A mobilidade do trabalhador e a experiência vivida que lhe corresponde são pois a reflexão dacategoria no plano da realidade fenomenal e do vivido. Essa reflexão

não é, sem dúvida, exterior ao objeto, mas uma realização imperfeitada reflexão não exclui a realidade do objeto no nível da essência.24E, a propósito da experiência vivida que corresponde à abstração dotrabalho, observemos que não se deve confundir essa experiência daabstração do trabalho (esse nível do vivido: a indiferença em relação aotrabalho) com a experiência da alienação descrita nos textos sobre agrande indústria. Na realidade, se o trabalho abstrato só existe nocapitalismo (voltaremos a isto na secção III), ele é entretanto categoriada circulação simples (e, no nível da circulação simples, se trata sem

dúvida do capitalismo, mas do capitalismo enquanto objeto “negado”).E se não se pode confundir as duas ordens de categorias (mesmo seambas, mas com “posições” — negação, posição — diferentes corres pondem ao capitalismo),25 também não se pode confundir o sentidodessas duas determinações do vivido. “Embora a forma do trabalhoassalariado seja decisiva para a configuração(Gestalt) do conjunto do processo e para o próprio modo específico da produção, não é o tra balho assalariado (que é) determinante do valor. Na determinação dovalor se trata do tempo de trabalho social em geral (...). A forma

determinada em que o tempo de trabalho social se impõe como determinante no valor das mercadorias está ligada, é verdade, com a formado trabalho como trabalho assalariado com a forma correspondentedos meios de produção enquanto capital, na medida em que só sobreesta base(Basis) a produção de mercadorias se toma forma geral da

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produção” . (Werke, 25, Das Kapital, III, p. 889;Oeuvres, ÉconomieII, p. 1480) “Na medida em que o trabalho é criador de valor e seapresente no valor das mercadorias, ele não tem nada a ver com adivisão desse valor entre as diferentes categorias. Na medida em que eletem o caráter social específico do trabalho assalariado, ele não é criador de valor”.(Werke, 25, Das Kapital, III, p. 831;Oeuvres, Économie II, p. 1431)26 Se o trabalho abstrato não pode ser confundidocom o trabalho assalariado, embora só haja trabalho abstrato quandohá trabalho assalariado, o vivido que corresponde à primeira determinação deve ser distinguido do vivido que corresponde à segunda.

II. A ABSTRAÇÃO REAL (TRABALHO ABSTRATO, VALOR):PROBLEMAS LÓGICOS FUNDAMENTAIS

1. Contrariedade, substância

Seria necessário, agora, explorar mais a fundo essas análises. Nósnos fixaremos inicialmente em dois problemas: o do emprego da noçãode substância a propósito do trabalho abstrato (ver textos) e tudo queisto implica, e o uso da noção de contrariedade para designar a relação entre o trabalho abstrato e o trabalho concreto, assim como arelação entre o valor de uso e o valor. Começaremos pela questão dacontrariedade.

Marx diz do trabalho que ele é o contrário(Gegenteil) ou ocontrário imediato(ummittelbares Gegenteil) ou o oposto(Gegensatz) do trabalho concreto;27e do valor ele diz que este é o contrário do valorde uso.28Os críticos põem em dúvida o rigor dessa determinação.29 Elaseria efetivamente rigorosa? Percebe-se imediatamente que dizer que otrabalho abstrato é o contrário (ou o contrário imediato) do trabalhoconcreto (e que o valor é o contrário do valor de uso) não tem muitosentidose não se pensar o trabalho e o valor como universais concretos.

Se não se introduzir a universalidade concreta, como legitimar a idéiade oposição? Em primeiro lugar, no que se refere às leituras vulgares,se o trabalho abstrato só é o gênero dos trabalhos concretos, não se poderia falar de oposição nem de contrariedade. O gênero não é ocontrário da espécie: ele apenas subsume a espécie, e não se poderiaafirmar que esta subsunção constitui uma relação de contrariedade.Mas deixemos de lado essas leituras. Se não se supuser que o trabalhoabstrato é o gênero dos trabalhos concretos, se suporá talvez que elessão simplesmente dois objetosdiferentes, talvez mesmo dois objetosdiferentes no conceito (entendido em sentido subjetivo), a noção dediferença excluindo de qualquer modo toda idéia de oposição: “A contradição entre os termos que não é mesmo uma contradição entre

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conceitos, mas umadiferença, uma ruptura no tratamento dos conceitos, pertence propriamente(en propre) ao processo de exposição enão remete em nada a um processo real (P. Macherey, Lire leCapital, IV, Maspero, 1973, p. 27, grifo nosso) E mesmo que se

suponha que a diferença é real, enquanto o objeto não for pensadcomo universal singular (universal concreto) mas como um singular oum particular, ele comporta diferença mas não contrariedade: “Umoutra característica das substâncias é que elas não têm nenhum contrário. Com efeito, se se considerar a substância primeira, qual poderser o seu contrário, por exemplo, para o homem individual ou para animal individual? Com efeito, eles não têm nenhum contrário; tam

bém não há contrário nem para o homem nem para o animal”. (Aritóteles, Organon, Categories, I, cap. 5, 3b, 24, trad. Tricot, Paris,Vrin, pp. 15-16)30Tudo muda, se se pensar o trabalho abstrato (e tam bém o valor) como universal concreto, isto é, como um objeto qucontém ao mesmo tempo a universalidade e a singularidade. Nesscaso, e nesse caso somente, se poderá falar rigorosamente decontrariedade. Vejamos isto mais de perto. Para simplificar, tomemos arelação entre dinheiro e mercadoria (em que se reflete, como vimos,mesma oposição). Poder-se-ia dizer que o dinheiro e a mercadoria sãsimplesmente coisasdiferentesl Não. Diferentes, simplesmente, são por exemplo mercadorias quaisquer, umas em relação às outras: a teem relação ao casaco, para retomar o exemplo clássico (e isto somenenquanto uma não funcionar como expressão de valor da outra). Mas relação entre o dinheiro e a mercadoria há mais do que isto: há entre dois uma espécie detensão. Eles se atraem mutuamente, cada um delesrepele a si próprio, mas por isso mesmo eles podem entrar em conflito(nas crises). E como justificar logicamente a afirmação de que se tradecontrários? Eles são contrários porque por um lado um é o gênero dooutro: o dinheiro é a mercadoria geral ou universal;32 mas porque amesmo tempo esse gênero existeao lado das espécies e dos indivíduosque o compõem: o dinheiro é também uma mercadoria. Ê essa dupcondição de gênero e de indivíduo, de indivíduo-gênero, que faz dcoisa social dinheiro ocontrário de cada mercadoria. É pois essa duplacondição que constitui objetivamente a tensão entre os dois objetos permite falar legitimamente de contrariedade ou de oposição entre ele(Observemos de passagem que, se Marx utiliza uma terminologia qunão elimina a expressão do gênero:trabalho abstrato, valor — oposto avalor deuso — etc., o que mereceu a censura de Althusser,33 que não

compreendeu o porquê dessa terminologia, — é porque ele quer expmir que o gênero está “lá”, embora como universal singular.) Estcoincidência entre o universal e o individual, Marx a assinala clarmente nos textos citados (“o animal ao lado do leão” etc.): é como seuniversal invadisse o particular, de onde a tensão, que estaria ausense se tratasse só do gênero ou só do indivíduo. Mas o entendimento (q

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não apreende esta coincidência) não vê na relação (mercadoria/dinheiro, por exemplo) mais do que uma diferença. Como escrevia Hegel:“Na oposição, o diferente, de um modo geral, não tem somente diantedeleum outro mas oseu outro. A consciência comum considera os(termos) diferentes como indiferentes um em relação ao outro. Diz-se

assim: ‘Eu sou um homem e em volta de mim há ar, água, animais e oOutro em geral’. Todas as coisas caem umas fora das outras. A finalidade da filosofia é, pelo contrário, banir a indiferença e reconhecer anecessidade das coisas de tal maneira que o Outro aparece como diantedo seu Outro”.34

Porém, mais grave do que o emprego da noção de contradição parece ser o fato de que Marx faz do trabalho umasubstância. Casto-riadis observa: “O que esses objetos possuem em comum, além da suautilidade ou valor de uso — que não poderia, segundo Marx, fundarrelações de troca quantitativamente determinadas — é (o fato de)serem ‘produtos do trabalho humano’.Ê pois o trabalho que eles‘contêm’ queé esta substância/essência comum (...)”. E em nota: “Aatribuição universal se torna assim substância. Passa-se de: a única

propriedade comum a todos esses objetos (fora o seu valor de uso), é(o fato de) serem produtos do trabalho humano, a:existe uma substância da qual esses produtos são ‘cristais’. A generalidadedeve ter umfundamento substancial” , (Castoriadis,art. cit . , p. 6, nota 4, Les Carre-

fours du Labyrinthe, p. 252, grifado por Castoriadis) Esta substan-cialização distingue Marx dos clássicos, mas para Castoriadis não representa, muito pelo contrário, um progresso: “A questão proposta pelaeconomia clássica: porque os objetos trocados o são em tal proporção enão em outra, Marx a reformula à sua maneira, numa formulação que jácontém ou predetermina, a resposta: ‘Qual é o igual/idêntico(das Gleiche), isto é, a substância comum(die gemeinschaftliche Substanz), que representa a casa para o leito na expressão de valor do leito?’ Ele areformula à sua maneira própria: o valor trabalho dos clássicos, deSmith e de Ricardo, não invoca a categoria da ‘substância’ e, se sedescobrisse lá a palavra, seria sem dúvida num uso inocente. Que asmercadorias são trocadas na proporção do trabalho que custa a sua produção, isto quer dizer para os clássicos: se alguém me propusessetrocar um produto que me custou dez horas de trabalho contra um dosseus produtos cuja fabricação só me custaria nove horas de trabalho, eurecusaria sua proposta; e, mediante a concorrência, a relação entretempos ‘médios’ de trabalho respectivos regulará a relação das quantidades trocadas. O ‘valor-trabalho’ é assim, antes das imensas (e insu peráveis) complicações que criam as diferenças entre os trabalhos individuais, o ‘capital’, a ‘terra’, o ‘tempo’ etc., uma questão de bom sensoe mesmo uma tautologiasimples: quem daria dez para obter nove?”(Castoriadis,art. cit., p. 7, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p.

253, grifado por Castoriadis) Assim, Marx retoma o problema para lheI N S T I T U TOC U LT U R A L B R A S I LALFMANHAJ N S T I T U10 GOE THE - R IO OE JANE I R OAv. Graça Aranha ,4<6 - 9Õ An dar -224 1862

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dar um sentido metafísico: “Marx reformula a questão à sua própriamaneira — que a situa de imediato no terreno da tautologiametafísica". (Ibidem, grifado por Castoriadis) “O primeiro capítulo deO Capital é metafísico”. ( Ibidem) Assim, substancializando o trabalhoabstrato, Marx se perde numa metafísica da economia política. O quemuitos outros já disseram. Por exemplo, Joan Robinson (e Eatwell):“A afirmação segundo a qual somente o trabalho produz valor émetafísica. Seu único conteúdo lógico é uma definição: o trabalho

produz valor, e o valor é o que o trabalho produz (...)” . (Joan Robinsone John Eatwell, As Introduction to Modem Economics, Londres,McGraw-Hill, 1973, 1. I, cap. 2, §5a) Assim como faz Castoriadis, seimputa a Marx um pensamento metafísico e tautológico: a teoria dovalor se reduz a umatautologia metafísica.35

Examinemos agora mais de perto o uso que faz Marx do conceitode substância e as acusações de “metafísico” lançadas contra ele.Reconstituamos em primeiro lugar a crítica que Marx faz aos clássicosa esse respeito. Marx critica os clássicos — Ricardo em particular —

por só ter visto o lado quantitativo do trabalho abstrato, ou por ter vistoo lado quantitativo só de uma maneira fraca.36 Isto é, de não tê-lo pensado como “coisa social” .37 Por trás doquantum de tempo de tra balho, é necessário evidentemente pensar uma qualidade, e essa qualidade é preciso tomá-la em sentido forte. O que permite pensar osagentes comosuportes da relação valor e do trabalho abstrato, que sãologicamente os verdadeiros pontos de partida. A incapacidade de pensar o trabalho abstrato como “coisa social” (como substância) impedeque os clássicos se liberem de todo antropologismo na sua visada dosagentes. E mais do que isto, como já vimos, há uma relação entre aconcepção do trabalho abstrato enquanto substância e a do capitalenquanto sujeito (valor que se valoriza, movimento-sujeito).38 Inca pazes de pensar o trabalho abstrato enquanto substância, os clássicostambém não chegam a pensar o capital como movimento-sujeito (asubstância que se tornou sujeito) e caem numa representação naturalizante e portanto mistificante do capital. É necessário fazer do trabalhoabstrato uma coisa-social substância — porque o valor não é umquantum que os agentes estabelecem subjetivamente (esta perspectiva subjetiva está também, de resto, na descrição de Castoriadis), mas algo quese impõe socialmente, e que é ao mesmo tempo qualidade e quantidade, para chegar a uma definição do capital em termos de movimento-sujeito.39 Observemos que a noção de substância remete a duasou, se se quiser, a três determinações. Em primeiro lugar, Marx querdizer com isso que o trabalho é coisa social, ele tem aespessura, o peso da coisa. A idéia de substância remete àousia aristotélica. Mas coisassociais são também o valor, o capital etc. Aqui intervém o segundosentido ou a segunda determinação: a substância é coisa em forma detrabalho, em forma fluida, pois se trata de uma substância que ainda

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não se cristalizou; se no primeiro caso se pensa em Aristóteles e numacerta tradição filosófica, aqui se é conduzido ao universo das ciênciasnaturais.40 Por outro lado,substância se opõe asujeito (a substânciatrabalho abstrato ao sujeito capital, a substância que se tomou sujeito);aqui a referência é Hegel, que passou por sua vez por Aristóteles.41Sobre a primeira determinação, é necessário observar ainda, em conexão com o que havíamos dito anteriormente: Marx reúne num mesmoobjetocomo determinações do mesmo nível os dois sentidos (principais)da ousia aristotélica; daí resulta a possibilidade — não aristotélica —de que a substância comporte contrários. Mas Marx não cairia com istona “metafísica”? Falar de substância não é voltar a uma tradiçãometafísica, retomar noções aristotélicas, reintroduzir um universo emque há forças? Eis aqui o essencial sobre esse ponto: que Marx concebea realidade (social) como um universo habitado por “coisas” e “for

ças”42 é um fato. Mas por que supor que isto representa um elementonegativo, um pecado mortal do seu discurso?43 Os que afirmam qüeMarx é metafísico crêem em geral que a resposta de Marx a uma críticacomo essa seria defensiva: ele diria que o seu discurso não tem nada demetafísico, que ele é científico no sentido corrente etc. Na realidade, aidéia de que é um defeito para um discurso ter alguma coisa de “metafísico” está subjacente a toda esta argumentação. É assim que marxistas como Sweezy tentam responder da seguinte maneira: a idéia detrabalho abstrato nada tem de misterioso, ela corresponde ao sentidoque todos lhe dão etc. Isto é, tenta-se justificar o discurso de Marx pelosenso comum. Ora, a resposta que Marx daria —a resposta que ele dá,

pois o argumento já se encontra, por exemplo, em Bailey44 — é totalmente diversa. Por um lado, ele reconhece que o seu discurso tem algode metafísico. Mas a metafísica do seu discurso é a reprodução dametafísica do real. Ê o real, o capitalismo que é em certo sentidometafísico, e o discurso quase metafísico é por isso o verdadeiro discurso científico, assim como o discurso claro da “ciência” se tornanesse caso inadequado.45 Marx sempre insistiu no fato de que porexemplo a mercadoria tem algo de misterioso, que ela é um objeto sensível supra-sensível etc. Para apreender esse tipo muito particular deobjeto, é necessário um discurso que se ajuste a ele, isto é, um discursoque ponha essas abstrações objetivas como elas são efetivamente: comocoisas sociais que reduzem os agentes a suportes. Nesse sentido há umacerta ingenuidade em toda essa argumentação. Poder-se-ia dizer pelomenos que ela se situa aquém de uma compreensão profunda daquiloque representa o discurso de Marx (“objetivamente” e nas intenções deMarx). E para que não se tenha dúvidas sobre isto, citemos dois textos(um deles se refere também aos universais concretos, as duas questões

estão ligadas), textos em que Marx se explica sobre o caráter “metafísico” do seu discurso, a propósito do mesmo argumento, empregadocontra os clássicos por Bailey: “No interior da relação de valor e da

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expressão de valor que está incluída nela o abstrato universal (das Abstrakt Allgemeine) não vale como propriedade do concreto, do sensível efetivo (Sinnlich-Wirklichen), mas pelo contrário osensível-con- creto (só vale) como pura (blosse) forma fenomenal ou forma de reali

zação efetiva(Verwirklichungsform) determinada do abstrato universal(des Abstrakt-Allgemeinen). Por exemplo, otrabalho do alfaiate queestá contido noequivalente casaco não possui, no interior da expressãode valor da tela, a propriedade geral de ser também trabalho humano.Pelo contrário.Ser trabalho humano vale como suaessência, ser tra

balho do alfaiate (só vale) como forma fenomenal ou forma de reali zação efetiva determinada desta sua essência (...) (...). Estainterversão pela qual o sensível-concreto (das Sinnlich-Konkrete) só vale comoforma fenomenal do abstrato-universal (des Abstrakt'Allgemeinen),

em vez de o abstrato universal valer, pelo contrário, como propriedadedo concreto, (tal interversão) caracteriza a expressão de valor, ela tornaao mesmo tempo difícil a sua compreensão. Se eu disser: o direitoromano e o direito alemão são ambos direitos, isto é evidente. Mas se, pelo contrário, eu disser: o direito, este abstrato ( Abstraktum), serealiza efetivamente no direito romano e no direito alemão, o contexto(Zusammenhang) torna-se então místico”. I6 Como se vê — contra a posição que tinha na juventude — vera Santa Família — Marx aceitaassumir esse discurso “místico” (pois o seu tratamento da forma dovalordiz o objeto na forma indicada, que ele considera como mística).E se ele assume assim o “misticismo” , ele o justifica da seguintemaneira num texto que infelizmente é pouco conhecido: “Isto mostra portanto que overbal observer 47 compreendeu tão pouco quanto Baileyalguma coisa do valor ou da essência do dinheiro quando trata aautonomização do valor comouma invenção escolástica (eine scholas- tische Erfindung) dos economistas. Essa autonomização aparece aindamais no capital que, por um lado pode ser chamado valor em processo(prozessiender Wert) — e portanto como o valor só existe (de um modo)autônomo no dinheiro —, pode ser chamado dinheiro em processo( prozessierendes Geld) — (ele, o capital) que percorre uma série de

processos nos quais ele se conserva, sai de si e volta a si aumentado(in vergrõssertem Umfang). Que o paradoxo da realidade efetiva (Para- doxon der Wirklichkeit) se exprime assim em paradoxos da linguagem(Sprachparadoxen), que contradizem o senso comum, o que os vulgares (Vulgarians) pensam e acreditam dizer (mean and believe to talk of), isto é evidente. As contradições que nascem do fato de que, sobre a base da produção de mercadorias, o trabalho privado se apresentecomo social, geral, que as relações pessoais se apresentam como relações entre coisas(von Dingen) e como coisas ( Dinge) — essas contradições (Widersprüche) residem na coisa(Sache) não na expressão verbal (in dem Sprachlichen Ausdruck) da coisa(Sache)” . 48

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2. Posição e determinação

Mas nada mostra melhor que os “fundamentos” do tipo deobjeto que temos no trabalho abstrato (e no valor) e a incompreensãodo seu caráter por parte dos críticos do que o desenvolvimento do problema do trabalho abstrato e do valor que se encontra no último parágrafo do capítulo 1 de ÓCapital (“O caráter de fetiche da mercadoria e seu segredo) assim como as leituras de que ele foi objeto.49Comecemos recapitulando o texto. Depois de ter observado que enquanto valor a mercadoria se apresenta como um objeto misterioso,Marx se pergunta de onde vem esse caráter misterioso da mercadoria,que será precisamente a origem do fetichismo. Esse mistério, respondeMarx, não pode provir do conteúdo das determinações do valor, asaber, nem daabstração do trabalho, pois em todas as sociedades otrabalho considerado abstratamente oferece interesse, nem dotempo de trabalho, por razões mais ou menos idênticas, nem da forma social (geral) do trabalho. Esse caráter misterioso só pode vir da própriaforma mercadoria. (Aqui, “forma”, diga-se de passagem, não é aforma fenomenal, como por exemplo na forma do valor, mas forma nosentido de forma social específica oposta ao conteúdo antropológicogeral.) E para mostrar que o caráter misterioso vem da forma mercadoria, Marx compara a produção de mercadorias com outras formas de produção. Assim, ele se referirá sucessivamente a Robinson isolado nasua ilha, ao feudalismo, à “indústria patriarcal de uma família campo

nesa” e ao socialismo. Em cada um desses casos, ele mostrará o papeldo trabalho em geral, e o do tempo de trabalho, seja na planificação da produção, seja na distribuição, seja nos dois ao mesmo tempo. Porexemplo, Robinson faz o planejamento do seu tempo, no comunismo asociedade o faz (e como se trata da primeira fase do comunismo, otempo desempenha também üm papel na distribuição), em todos oscasos, o trabalho considerado, fazendo-se abstração da sua particularidade, desempenha um papel etc. Toda essa variação tem evidentemente por objeto mostrar a diferença, sobre o fundo de uma identidade — mas é a diferença que é primeira, não a identidade —, entre todasessas formas e a produção mercantil-capitalista.50 Trata-se de mostrarque nessas formas, apesar de tudo, não há nem trabalho abstrato nemvalor, e que ao contrário do que se passa na produção mercantil,a forma social é a forma imediata do produto.51 Vejamos agora o queos críticos escrevem sobre isto. Depois de ter feito as observações quecomentamos sobre o caráter metafísico do pensamento de Marx, edepois de ter analisado a dificuldade em situar o valor na história (oque será objeto da secçãoIII deste texto), Castoriadis escreve: “O valor

já estava lá, a partir do momento(dès) em que houve troca. Mas hásempre troca, onde há sociedade — inclusive no ‘comunismo primitivo’: o feiticeiro fornece suas encantações e recebe uma parte da caça.

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contidas todas as determinações essenciais do valor».(Werke> 23> Das K ap i t a l l o p ca.,, p. 91; ver Dognin, Les “Sentiers escarpés... ”, op. cit., p. 2221 Nessa frase se resume toda a yificuidade. Ê que é isocompreende-la da segumte maneira: aí es^ão contidas todas as deter.mmaçoes essenciais do valor,menos a phsição_Este é 0 sentido doconjunto do texto: mostrar que em todos c)S outros modos as determi.naçoes do valor, isto e, as determinações do seu conteúdo (tempo dera . _ ° ’ ,a s raÇao 0 ra a^ ° ) estão Presentes, mas que falta a

posição objetiva dessas determinações: equando f aita a posição, não ha valor nem trabalho abstrato. O valor nã(, existe nem no C0munism0(nem no caso de Robmson, nem na família patriarcal, nem na IdadeMedia nem em nenhum dos casos em que não hát r o c a . 5 2 A análise éassim diferencial, em sentido forte: primeiro as diferenças (as identi.

dades são pressupostas). E por que o etro dos críticoSj esses doiscríticos que vem de horizontes tão diferentes? Isto também é {ácU deexplicar E que a logica do texto de Marx vai contra a tradi âo filo.sofica, digamos kantiana, da qual _ a desbeito> em rte lo mendas suas respectivas intenções - eles são tributários> cada um à suamaneira. Com efeito, no texto de Marx, há al de escandaloso: Marx supoeque a posição da coisa - e a posição da coisa é a existência (social) da coisa - e essencial para que ela seja 0 é_Para 0valor (tempo de trabalho, trabalho coino ge„eralidade abstrata),

seja valor (ou o trabalho abstrato” seja o lrabalho abstrato), é essencial que, alem dessas determinações, hajaW á o > ou essas deter.mmaçoes sejam determinações postas, socialmente existentes. Nosocialismo, no caso de Robmson etc., as determin ões essenciais dovalor estão dadas, mas falta a posição objetiva dessas determinações, porque em todos esses casos elas só existem como repreSentação - nacabeça de Robmson dos planificadores (ou como resultado dessarepresentação, mas não comocoisas sociais) F,taé a ra7an miaiem nenhum dos dois casos, se trata de valo! nem de trabalho abstí ato;

Isto e evidentemente escandaloso e vai coiltra toda uma tradi ão de pensamento cujo melhor representante é sSm dúvida Kant. Eis 0 queescreve Kant sobre a relação determinação/existência num texto bemcelebre daCritica da Razao Pura-. “Ser não é evidentemente um predicado real(kein reales Pradikat), isto é, um conceito de alcoisa(von irgend etwas) que se possa a c r e s ^ ^ ao conceito de umacoisa(emes Dmges). E simplesmente a posi ão (Es ist bloss die Poú. tion) de uma coisa ou decertas determinações nelas mesmas{an sich selbst). Em seu uso logico, ele não é senão a có la de um juízo Se

eu tomar o sujeito (Deus) com todos os seus predicados (entre os quaisesta mcluida a onipotência) e se eu disser: I)eus é> ou há um Deus> eunao pon o (setzen) nen um predicado ao ;0nceito de Deus, mas eu ponho(setzen) o sujeito em si mesmo(an sia, sdbst)> com todos os seus predicados, e ao mesmo tempo, com efeito 0 objeto que corresponde

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a.o meu conceito. Os dois devem conter exatamente a mesma coisa; e pelo fato de que (pela expressão: ele é) eu concebo o seu objeto comoabsolutamente dado, nada mais se pode acrescentar ao conceito queexprime simplesmente a sua possibilidade. E assim o real não contém

nada mais do que o simples possível. Cem talers reais não contêm nadamais do que cem talers possíveis. Pois como os talers possíveis exprimem o conceito e os talers reais o objeto e a sua posição (Position) em simesmo, se este contivesse mais do que aquele, meu conceito nãoexprimiria o objeto inteiro, e em conseqüência, não seria tampouco oconceito adequado dele. Mas, no que se refere ao estado da minhafortuna, há mais com cem talers reais do que só com o seu conceito (istoé, só com a sua possibilidade). Com efeito, o objeto na realidade nãoestá simplesmente contido de uma maneira analítica no meu conceito,

mas se acrescenta sinteticamente ao meu conceito (que é uma determinação do meu estado), sem que os cem talers concebidos sejam demodo algum aumentados por esse ser situado fora do meu conceito.Quando eu concebo uma coisa, quaisquer que sejam e por numerososque sejam os predicados por meio dos quais eu a concebo (mesmo nadeterminação completa), o fato de que eu acrescento que esta coisa é nãoacrescenta nada à coisa”. (Kant,Kritik der Reinen Vernunft, “Die tranzendentale Dialektik. Von der Unmöglichkeit eines ontologischen Beweises vom Dasein Gottes”, Hamburgo, Felix Meiner, 1956, pp.

572-573;Critique de la Raison Pure, trad. Barni revista por P. Archam- bault, Garnier-Flamarion, 1976, pp. 478-479) Vê-se que em Kant é preciso separar as determinações de um conceito e a sua existência ou asua posição, sendo a posição exterior às suas determinações. ParaHegel e Marx, pelo contrário, o conjunto das determinações não esgotao conceito. Mesmo plenamente determinado, o conceito não é ele próprio se não for posto. Ora, essa relação é impensável tanto paraBalibar como para Castoriadis.

Digressão: dialética marxista e argumento ontológico

Vê-se aí em que sentido a dialética reabilita o argumento ontológico, e em particular em que sentido a dialética materialista a reabilita. Sabe-se que Hegel fez a crítica da crítica kantiana do argumentoontológico. Esta crítica hegeliana que precisamente se referia ao pro blema da relação determinação/posição se fazia entretanto no interiorde um universo que se poderia chamar de idealista.53 Isto é, se Hegel pensa a posição como fazendo parte da essência do conceito, se poderiadizer que ele faz com que se esvaia por esse movimento mesmo a diferença entre sujeito e objeto. De um ponto de vista materialista, o argumento ontológico (ou antes, o movimento que lhe serve de base, a inclusão da posição no conceito) toma um outro sentido. A passagem da es

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sência à existência não faz desaparecer a diferença entre sujeito e objeto.O valor ou o trabalho abstrato como categorias objetivas não se confundem com os seus análogos no pensamento desses objetos. Fica-se no interior do materialismo; e entretanto, esse materialismo não é o materialismo vulgar, porque nele se concede a parte do idealismo, porque nele seguarda o momento do idealismo. E isto num duplo sentido, ou para osdois idealismos, istoé, se guarda tanto o momento do idealismo objetivocomo o do ideaüsmo subjetivo. O idealismo objetivo, pois se reconheceque, de certo modo, o real “pensa”, isto é, o real põe, efetua o ato deabstrair. O idealismo subjetivo, pois se reconhece que o sujeito pode passar pelo pensamento à existência (à posição), que ele pode pôr osuniversais como universais objetivos. Mas esta “existência” só é evidentemente o análogo da existência no real — ela é o real refletido no

pensamento. (Para o nominalismo, entretanto, mesmo esta “existência”, isto é, a posição, deve ser recusada.) Vê-se assim que o problemada distinção rigorosa entre os dois materialismos, o vulgar e o dialético(ver o que dizem sobre isto os manuais...), tem aqui uma saída.54

III. O ESPAÇO HISTÓRICO DAS CATEGORIAS(VALOR, TRABALHO ABSTRATO)

O conjunto das análises anteriores nos mostrou qual a natureza

da abstração que constitui o trabalho abstrato e o valor. Elas nos permitiram ao mesmo tempo esclarecer uma parte dos problemas que propõe sua existência como abstrações reais. Mas há um ponto que permanece obscuro, e o seu esclarecimento é essencial para que o con junto das implicações do nosso objeto se torne inteligível, o do espaçohistórico do valor e do trabalho abstrato. Em qual ou quais épocas,se pode dizer que há trabalho abstrato e valor? O trabalho abstrato e ovalor são categorias que só valem para o capitalismo? Problema que,na realidade, é um pouco menos simples do que se poderia pensar à primeira vista. Se nas secções anteriores se tocou nessa questão, foi só para o caso mais fácil, o das sociedades ou formações em que não hátroca. Lá evidentemente se deve excluir de imediato o trabalho abstratoe o valor. Mas, se há troca, a coisa é mais complexa.

O problema do espaço histórico do valor, com todas as suasimplicações para o problema da abstração, já aparece claramente nacrítica que Engels faz ao economista Conrad Schmidt, assim como nasreservas que suscitou a crítica de Engels. Essa discussão pode nos servircomo ponto de partida. Embora reconhecendo o interesse teórico doconceito de valor, Schmidt tinha escrito num artigo sobre o livro III

deO Capital, e depois numa carta a Engels, que o valor não é mais doque umahipótese ou uma ficção teórica.55 E isto porque, no interior docapitalismo, as trocas, inclusive as que interessam os meios de produ-

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ção e a força de trabalho, se fazem não conforme o valor mas conformeos preços de produção.56 A essas observações de Schmidt, Engels res ponde 57 que o valor é na realidade muito mais do que isto: “A meu ver,esta concepção (a de Schmidt, RF) não é, absolutamente, pertinente.Para a produção capitalista, a lei do valor tem uma significação que é,de longe, maior e mais determinada do que a de uma simples hipótese,sem falar da de uma ficção mesmo necessária” . 58Para sustentar a suaresposta, Engels começa citando um texto do livro III deO Capital, emque Marx escreve que a anterioridade do valor sobre os preços de

produção é válida não só teoricamente (theoretisch) mas também historicamente (historisch).59 Ele traça em seguida um quadro da evoluçãodas trocas nas épocas pré-capitalistas e termina afirmando que a lei dovalor é válida de forma geralantes do capitalismo, e por outro lado,que ela tem uma validade econômica geralsó até a emergência docapitalismo: “Em resumo, a lei do valor de Marx é válida de formageral(gilt allgemein), na medida em que as leis econômicas podemsê-lo, para todo o período da produção simples de mercadorias, portanto até o momento(bis zur Zeit) em que esta última sofreu umamodificação(Modification) pela emergência(Eintritt) da forma de produção capitalista. Até lá, os preços gravitam em tomo dos valoresdeterminados pela lei de Marx e oscilam em torno desses valores, demodo que quanto mais plenamente se desenvolve(je voller... zur Ent

faltung kommt) a produção simples de mercadorias, mais os preçosmédios (que se estabelecem) no interior de períodos mais longos nãointerrompidos por nenhuma perturbação exterior violenta coincidem,dentro de margens aproximáveis, com os seus valores. A lei do valor deMarx tem pois uma validade econômica geral (ökonomisch-allgemeine Gültigkeit) por um período que vai do início da troca, que transforma produtos em mercadorias, até o século XV da nossa era. Mas a troca demercadorias data de uma época anterior a toda história escrita, a qualnos conduz no Egito pelo menos a três mil e quinhentos e talvez a cincomil anos, na Babilônia a quatro mil e talvez a seis mil anos antes denossa era; a lei do valor reinou(geherrscht) durante um período decinco a sete mil anos. Admire-se agora a profundidade do sr. Loria,que diz(nennt) do valor que teve uma validade geral e direta(allgemein und direkt) durante esse tempo,(que é) um valor pelo qual as mercadorias não são nem nunca serão vendidas, (e um valor) com o qualnenhum economista que tenha uma centelha de bom senso(einen Funken gesunden Verstand) se ocupará jamais!” 60Esta resposta de Engelsé hoje criticada quase unanimemente61e questionada pelas duas razõesseguintes: primeiro, parece bem evidente que, para Marx, a lei do valoré válida para o capitalismo;62segundo, não se pode aceitar sem mais —é o mínimo que se pode dizer — que a lei do valor, segundo Marx,é válida antes do capitalismo. Há, pois, dois problemas no texto deEngels. Por um lado, devemos nos perguntar: em que medida se

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lesen) da própria forma do valor, porque a sociedade grega repousavasobre o trabalho escravo, e em conseqüência tinha como base natural adesigualdade dos homens e de suas forças de trabalho. O segredo daexpressão de valor, a igualdade e a equi-valência(die Gleichheit und gleiche Gültigkeit) de todos os trabalhos, porque e enquanto são trabalho humano em geral, só podem ser decifradas quando o conceito deigualdade humana já possua a solidez de um preconceito popular. Masisto só é possível(erst mòglich) numa sociedade em que a forma dasmercadorias (Warenform) é a forma geral dos produtos do trabalho, eassim a relação dos homens entre si enquanto possuidores de mercadorias é a relação social dominante. O gênio de Aristóteles brilha precisamente nisto, que na expressão de valor das mercadorias eletenha descoberto uma relação de igualdade. Só a limitação(Schranke, barreira) histórica da sociedade em que ele vivia impediu que ele

descobrisse em que consiste ‘na realidade’ essa relação de igualdade” .65Esse texto levanta sem dúvida um problema. Qual o sentido exato destacrítica? Em que medida se poderia dizer que a limitação histórica dasociedade em que ele vivia impediu que ele visse alguma coisa? SeAristóteles não alcançou os conceitos de valor e de trabalho abstrato,não seria porque ele não existiam? Nesse caso, nada a criticar; não se poderia falar, aparentemente, de barreiras impostas à sua consciência.Ou então é necessário supor que o objeto estivesse lá. Mas poder-se-iadizer que o valor existe efetivamente antes do capitalismo? Uma leitura

rigorosa do texto parece, pois, nos conduzir a um impasse. Ê a esseimpasse que se prende Castoriadis: “Aristóteles não via a ‘identidade/igualdade’ dos trabalhos humanos porque era impedida pelos preconceitos da sua época (ou pela ausência do ‘preconceito popular’ daigualdade); ou então ele não via o que estava lá mas nãoaparecia ainda; ou então ele não via porquenão havia nada para ver, porque aigualdade dos trabalhos humanos, na medida em que ela ‘existe’, foicriada no e pelo capitalismo? A antinomia que divide perpetuamente o pensamento de Marx entre a idéia de uma produção histórica das categorias sociais (e do pensamento) e a idéia de uma ‘racionalidade’última do processo histórico(portanto da ‘productibilidade’racional dessas categorias umas a partir das outras, (e) portanto finalmente dasua ‘a-temporalidade’) se revela de novo aqui. Se a Antiguidade ‘tinhacomo base natural a desigualdade dos homens e de sua força de tra balho’, se portanto o trabalho nãoera homogêneo, Aristóteles tinharazão em dizer o que eleera e em dizer o que elenão era; eleerraria (il aurait eu tort) se, por um milagre da adivinhação histórica, tivesse ditoque o trabalho era o que ele só viria a ser dois mil anos mais tarde. Que

pode significar a idéia de que Aristóteles era limitado pelo ‘estado

particular da sociedade em que vivia’, senão quehavia algo para ver eque Aristóteles, esse ‘gigante do pensamento’, não podia ver, por causadesse ‘estado particular’? Mas, na realidade, que haveria, pois, para

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ver? Nada. Esta fantasmagoria real, esseconstructum histórico de uma pseudo-homogeneidadeefetiva dos indivíduos e dos trabalhos é umainstituição e criação do capitalismo, um ‘produto’ do capitalismo mediante o qual o capitalismose produz — e que Marx, preso ao ‘estado particular’ da sociedade em que vive, transforma uma vez em duas emdeterminação universal, trans-histórica, em Substância Trabalho” .66Pouco antes, Castoriadis escreve de uma maneira mais geral: “Naeconomia e por ela, a abstração da quantidade, a pura repetição/cumulação do absolutamente homogêneo se toma efetiva, realidademais real do que o real./ Masque ‘economia’? Constantemente, Marxoscila entre estas posições: a economia capitalista — toda economia, doinício ao fim da história. De um extremo ao outro da sua obra, Marxdiz ao mesmo tempo e sucessivamente:/ — ‘a economia capitalistatransforma efetivamente, e pela primeira vez na história, os homens eseus trabalhos heterogêneos no Mesmo homogêneo e mensurável e faz com que seja, pela primeira vez, esta coisa: o Trabalho Simples Abstrato, que não tem nenhuma outra determinação pertinente senão o‘tempo’ (de relógio)’;/ — ‘a economia capitalistadá a aparência do

Mesmo ao que é essencialmente heterogêneo: os indivíduos e os seustrabalhos, mediante a produção de mercadorias e a transformação da

própria força de trabalho em mercadoria, portanto (da) sua reificação(Verdinglichung)”, 67 A crítica do texto de Marx sobre Aristóteles nosremete pois ao primeiro problema, o da existência do valor (e do tra

balho abstrato) nas sociedades pré-capitalistas. Veremos que Castoriadis levanta também o segundo problema, o do valor e do trabalho abstrato no capitalismo.

Inicialmente, tentemos responder na base dos textos. Para Marx,0 valor e o trabalho abstrato existem antes do capitalismo? A respostade Marx, para o trabalho abstrato, se encontra naContribuição àCrítica da Economia Política: “Steuart (trata-se de James Steuart,economista do século XVII — RF) sabia naturalmente muito bem quetambém nas épocas pré-burguesas o produto se reveste da forma mercadoria e a mercadoria da forma dinheiro, mas ele prova em detalheque a mercadoria enquanto forma fundamental elementar da riqueza,e a alienação enquanto forma dominante da apropriação, só pertencemao período da produção burguesa e que, portanto, ocaráter do trabalho que põe o valor de troca é especificamente burguês (der Cha- rakter der Tauschwert setzenden Arbeit spezifisch bürgerlich ist)" .6li Otexto se refere ao trabalho abstrato. Pode-se dizer a mesma coisa dovalor? Sim. Com efeito, Marx escreve no capítulo 5 do livro III deO Capital: “Se o valor das mercadorias é determinado pelo tempo de

trabalho necessário que elas contêm, e não pelo tempo de trabalho emgeral (überhaupt) que elas contêm, é o capital(so ist es das Kapital) que realiza pela primeira vez(erst realisiert) esta determinação, e que aomesmo tempo reduz constantemente o tempo de trabalho socialmente

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necessário à produção de uma mercadoria” .69 E no capítulo 7 do livroIII ele escreve ainda: “É o capital comercial, que pela primeira vez(zuersí) determina os preços das mercadorias mais ou menos pelos seusvalores (. ..)” . 70 E entretanto, há aí um problema. É que Marx fala bastante freqüentemente de valor (ou pelo menos de valores), tendo emvista sociedades pré-capitalistasem que há troca.11Assim, por exem plo, quando, nos capítulo 1 e 2 do livro I e também no capítulo 10(original) do livro III, ele introduz referências “históricas” (onde setrata de trocas entre comunidades primitivas),72 ele fala de valor, semque se trate evidentemente do capitalismo.73 Como explicar essasocorrências? Segundo Castoriadis, haveria em Marx umaoscilação entre diversas respostas: o valor existia antes do capitalismo, o valornão existia, o valor existia mas não aparecia. Marx teria sido incapazde dar uma resposta unívoca ao problema, sendo a prova disto a presença das três respostas em lugares diferentes da sua obra. O queCastoriadis diz não é sem verdade,enquanto ele afirma simplesmente que se pode encontrar em Marx passagens em que ele emprega o termovalor a propósito do pré-capitalismo e passagens em que ele diz que sóhá valor no capitalismo. O problema é o de saber se há aí umaoscilação, se não se trataria antes (radicalizando) de umacontradição-, e de saberse uma resposta contraditória é necessariamente uma má resposta. Ora, por radical que ele seja de outros pontos de vista, Castoriadis pressupõe como todo mundo (ele não chega mesmo a propor o problema) que um discurso, para ter pretensão à verdade e à validadeuniversais, deve ser ou se apresentar como não contraditório. Ê pelomenos o que se extrai de sua crítica.E entretanto a solução do problema se acha na própria resposta contraditória: se o objeto é ele próprio contraditório — e veremos que é disto que se trata — é a res posta contraditória que é a resposta racional. O que significa:a abertura que se busca, a porta de saída, está no próprio obstáculo que se erige diante de nós. Basta pôr a contradição — em lugar de fugir dela — para que se a domine (e portanto se resolva o problema). No que serefere ao nosso problema, isso significa que antes do capitalismo ovalor não é, mas que ao mesmo tempo ele ê. Antes do capitalismo, ovalor não é, porque não há tempo de trabalho socialmente necessário.Isto significa que o tempo de trabalho constitutivo do valor não é postona própria produção (não há um tempo social que tenha uma forçacoercitiva no nível da produção) e que oquantum de valor (ou antes, de“valor”) pelo qual as mercadorias são trocadas se constitui no nível dastrocas (essequantum não corresponde a cada tempo individual, masele não é senão umaresultante desses tempos individuais). E entretanto, do que acabamos de dizer resulta que antes do capitalismo asmercadorias já se trocavam segundo proporções que correspondiam aotempo (ou aos tempos) gasto(s) na sua produção. Portanto, em certosentido, o valor ou os valores já existiam. Ou, se se quiser, se se deveria

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dizer, pelas razões expostas, que o valor não existia, deve-se dizertambém que “alguma coisa” como o valor já existia.74 Mas não secairia com isso numa resposta antinómica, como quer Castoriadis? Não, essa contradição é objetiva e ela é pois pensável na e pela contradição.

O valor antes do capitalismo tem um estatuto análogo ao de umser qualquer no nível da sua pré-história. No nível da sua pré-história,um ser não existe enquanto sujeito; uma pré-história é exatamente ahistória do seu surgimento enquanto sujeito. Existem entretanto, nonível da pré-história, certas determinaçõesque exprimem mas que ao mesmo tempo não exprimem esse ser, isto é, existem certas determinações que exprimem este ser (ausente enquanto sujeito) em formanegativa, em formacontraditória. No decorrer de sua pré-história,deve-se dizer de um ser que ele é... tal ou qual coisa, mas tal ou qualcoisa não exprime esse ser enquanto tal, exprime antes a suanegação. É assim que, no que se refere ao valor, se deveria dizer que antes docapitalismo o valor é... a cristalização do tempo de trabalho em geral, portanto que em certo sentido o valor “é” . Mas como a determinação“cristalização do tempo de trabalho em geral” não convém ao valor,não é a determinação “do” valor, não é a “sua” determinação senãosendo a sua negação, o valor enquanto tal não existe. É pois bemevidente que temos aí umacontradição que pertence ao próprio objeto,a qual só se pode dominar pondo o objeto de forma contraditória.E, com efeito, quando Marx se ocupa de um objeto no nível da sua pré-história, encontra-se a contradição (ou uma expressão quase-con-traditória). Por exemplo, quando Marx examina o momento do nascimento da mercadoria, quando ele examina esse momento que, historicamente, é o do encontro entre duas comunidades, ele escreve: “Ointercâmbio imediato de produtos tem, por um lado, a forma daexpressão simples do valor e, por outro lado, ainda não a tem” .75 Que o pensamento de um objeto na sua pré-história só pode se exprimir pelacontradição é o que já se encontra precisamente em Aristóteles. Éassim que ele escreve em Da Geração e da Corrupção: “Para resumirnosso pensamento, diremos agora que num sentido há geração a partirdealguma coisa que não é, mas que em outro sentido a geração ocorrea partir dealguma coisa que é. Com efeito, do que existe em potênciamas não existe em ato deve em primeiro lugar se poder dizer que existedas duas maneiras que acabamos de indicar”.76 De resto, é evidentemente à teoria aristotélica da mudança que remonta a distinção cujoesquecimento fez correr muita tinta, distinção que conduz aos problemas da dialética. Poder-se-ia mesmo dizer, embora isto corra o perigode contrariar as exigências do senso comum, que pelo menos uma partedos problemas propostos pelos althusserianos (a propósito do “ho

mem” , por exemplo) já tem uma resposta em Aristóteles.77 E isto permite também sair da aporia imputada a Marx por Castoriadis a

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propósito do texto de Marx sobre Aristóteles: ou Marx teria tentadoexplicar por que Aristóteles não vê algo que ainda não existia, demarche que parece dificilmente se justificar, ou Marx teria suposto que ovalor existia antes do capitalismo, o que também não parece justifi

cável. 78 A análise que acabamos de fazer dá a resposta ao problema.Os limites da consciência de Aristóteles são os limites do seu objeto. Elenão chega a exprimir a substância do valor, pois esta substância,embora estando “lá” (e é por isso que, segundo Marx, Aristóteleschega até a exprimir a exigência de “algo comum”), não estava aindaconstituído enquanto tal. O valor está somente pressuposto (e não posto) — ele é e não é —tanto na realidade da cidade grega como no pensamento de Aristóteles.79

2. Valor e capitalismo. Contradição

Mas se Castoriadis denuncia uma pretensa oscilação de Marx noque se refere ao problema da existência do valor antes do capitalismo,oscilação que se manifestaria por uma aporia no texto do capítulo 1 a propósito de Aristóteles, a sua argumentação se desenvolve pela imputação de uma antinomia mais geral, que recobre tanto a possibilidadedo valor na Antiguidade como a do valorno capitalismo. O valor,

impossível no pré-eapitalismo, onde faltam certas condições necessárias à sua existência (condições que entretanto se encontram no capitalismo) é igualmente impossível no capitalismo, onde inversamentefaltam condições igualmente necessárias (que se encontram, entretanto, no pré-capitalismo): “Para que a lei do valor se aplique, énecessário quenão haja capital, pois a existência do capital acarreta(nas condições postas) uma taxa de lucroigual entre ramos — e portanto o desvio entre ‘valores’ e ‘preços’ (...). Então a ‘lei do valor-trabalho’ valeria lá onde há troca mas ainda não capital — isto é,

sob ‘a simples produção de mercadorias’? Mas a simples produção demercadorias não permite, sociológicae economicamente, definir umtempo de trabalho socialmente necessário, ‘para a produção de um produto’ — nem dizer que os ‘valores de troca’ (as proporções segundo asquais os produtos são trocados) são regidos por esses tempos. Não há, nointerior de cada ramo, o grau de concorrência entre produtores que igualizariaefetivamente os tempos de trabalho exigidos para tal produto;nem, menos ainda, tal concorrência existeentre ramos. Para que a leido valor-trabalho se aplique a uma economia de simples produção de

mercadorias(grosso modo, uma economia artesanal de intercâmbio),seria preciso, por exemplo, que os sapateiros do sábado se tornassemalfaiates segunda-feira, se eles constataram no mercado do domingoque a ‘taxa de câmbio’ calçados/roupas é favorável aos alfaiates edesfavorável a eles. Em resumo, quandouma parte das condições de

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validade da ‘lei do valor’ estão dadas na forma da concorrência etc., seestá em plena produção capitalista desenvolvida que implicaipsofacto o intercâmbio não segundo os ‘valores’, mas segundo os ‘preços de produção’. E quando o intercâmbio ainda não está submetido às leis docapital e da perequação da taxa de lucro, na simples produção de

mercadorias, não é possível definir um ‘tempo de trabalho socialmentenecessário’médio, pois a mediação essencial para a dominação efetivade um tempo médio como esse, a ‘concorrência’ de tipo capitalista, nãoestá lá. Quando é que vale então a ‘lei do valor-trabalho’? Numsentido, nunca, sob nenhum grupo de condições sociais e históricasefetivas ou que possam ser construídas de maneira coerente. Numoutro sentido, sempre, desde sempre e no sempre(dans le toujours). Pois ela resulta da posição dessa Substância, o Trabalho, que está lá doinício ao fim da história humana e se ‘cristaliza’ em produtos — que podem ou não ser ‘trocados’, e trocados segundo tal ou qual modo;esses modos concernem à Forma do valor que não se poderia confundircom o Valor — como não se poderia confundir o corpo H 20 com o gelo,a água ou o vapor de água’ ’. 80

Vê-se em que situação se encontra a teoria do valor segundoCastoriadis. Para o pré-capitalismo, a lei do valor não pode ter validade — Castoriadis o diz com razão — porque lhe falta o trabalho socialmente necessário. Mas, quando se poderá falar de trabalho socialmente necessário, isto é, nas condições do capitalismo, as trocas sefarão nãp segundo o valor, mas segundo os preços de produção. Tudo

se passa pois como se a lei do valor escapasse sempre às condições que atomariam “passível de ser construída (constructible) (...) de uma maneira coerente” .81 Já vimos o que se refere à primeira parte do argumento. Deve-se dizer que não há valor antes do capitalismo, mas queao mesmo tempo o valor está “lá”, pressuposto (porque na sua pré-história). Falta a segunda parte. O problema se coloca aqui da seguintemaneira: com que direito se poderia falar de valor e de lei do valor nocapitalismo, se as trocas se fazem aqui não segundo o valor massegundo os preços de produção?

Não podemos entrar aqui evidentemente nos detalhes das discussões sobre o problema da transformação dos valores em preços de produção. O que nos interessa é somente precisar o sentido lógico geralda transformação, sentido, de resto, pelo qual se passa em geral muitorapidamente (para não dizer mais).

Ao longo dos dois primeiros livros deO Capital, Marx supõe que,se fizermos abstração das oscilações do mercado, as mercadorias setrocam segundo os seus valores, isto é, os preços pelos quais elas sãotrocadas correspondem aos seus valores. Isto deveria valer também (e arigor somente) para os produtos do capital. Para realizar o valor dasmercadorias produzidas e portanto para realizar a mais-valia que elas

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contêm, os capitalistas devem vendê-las, e esta venda deveria ser feitaà primeira vista, conforme à relação de sua grandeza de valor. Mas aíse coloca o problema que aparece no início do livro III: se as mercadorias são vendidas segundo os seus valores, capitais idênticos não

produziriam o mesmo lucro. Ê que das duas partes de que se compõe ocapital, a parte investida em matérias-primas e auxiliares, instrumentos de trabalho etc., isto é, em meios de produção, e a parte investida em força de trabalho, só a última cria valor e portanto mais-valia, já que a primeira só transmite o valor dos elementos em que éinvestida. Ora, conforme a parte variável (a que é empregada nacompra da força de trabalho) de um mesmo capital global seja maiorou menor, portanto conforme a sua composição orgânica82 (capitalconstante/capital variável) seja maior ou menor, este capital produzirá

mais ou menos mais-valia, isto é, lucro. Ora, é bem razoável pensar, e ésem dúvida o que se passa na realidade efetiva, que capitais iguaisdevem produzir o mesmo lucro. Com efeito, para o capitalistaindividual, pouco importa que a porção variável do seu capital seja maiorou menor. Tudo se passa como se todas as partes do capital produzissem (e igualmente) lucro.. Ora, como conciliar este dado, que é aomesmo tempo uma espécie de exigência da racionalidade do sistema,com a lei do valor, a qual estabelece a necessidade da equivalência dostempos de trabalho no intercâmbio de mercadorias? Se as mercadoriassão trocadas segundo os seus valores, os capitais de composição mais baixa, isto é, aqueles em que v é mais elevado, obterão um lucro proporcionalmente superior (para uma mesma taxa de mais-valia) porque ésomente esta parte que produz valor e portanto mais-valia, e porque se pela troca, se obtém o equivalente do valor das mercadorias produzidas, a uma quantidade superior (quanto ao valor) de força de trabalho (para uma mesma taxa de mais-valia) deve corresponder umamassa de mais-valia (portanto de lucro) mais elevada. Tudo se passa pois — e é dessa forma que Marx coloca o problema — como se estivéssemos diante de um impasse.Ou se conserva a lei do valor, caso em que a exigência de que os mesmos capitais produzam o mesmo lucro (.supondo as mesmas condições menos a composição) não pode ser satisfeita, ou então se conserva o princípio da igualdade do lucro, mas é

preciso então abandonar a lei do valor. E é bem nesses termos queMarx se exprime a esse respeito: “Se um capital que se compõe em porcentagem de 90c + 10v, para um mesmo grau de exploração dotrabalho, produzisse tanta mais-valia ou lucro como um capital que secompõe de 10c + 90v, seria evidente (sonnenklar ) quea mais-valia e

portanto o valor em geral deveriam ter uma outra fonte totalmente (idiferente) do trabalho, e que com isto cairia toda base racional da economia política (Jede rationelle Grundlage der politischen Okonomie wegfiele)”.83 Se capitais de composição diferente, supondo em tudoo mais as mesmas condições, produzem a mesma massa de mais-valia,

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“o valor e a mais-valia deveriam ser coisa diferente (etwas andres) dotrabalho cristalizado”.84

Ora, ocorre que a suposição — no que se refere ao lucro, mas atéaqui o lucro é considerado como quantitativamente igual à mais-valia — que acarretaria conseqüências tão importunas para a teoriadeve ser assumida: “(•••)não há dúvida alguma de que na realidade efetiva,se se fizer abstração de diferenças inessenciais, acidentais e que secompensam umas às outras,a diversidade das taxas médias de lucro

para os diferentes ramos da indústria não existe nem poderia existir sem suprimir todo o sistema da produção capitalista” . 85 De onde sedeveria concluir: “Parece pois que a teoria do valor é aqui incompatível com o movimento real-efetivo, incompatível com os fenômenos fatuais da produção, e que se deve em conseqüência renunciar de uma maneirageral (überhaupt) à compreensão (begreifen) desses últimos” .86

Assim fica-se diante do que se apresenta como uma aporia.Deve-se manter a lei da igualdade dos lucros, com o que se abandonaria a lei do valor e com ela “toda base racional da economia política” , ou, pelo contrário, se deve conservar a lei do valor, caso emque, aparentemente, não se teria outra alternativa se não a de recusar aigualdade dos lucros para capitais de mesma grandeza? Deve-se abandonar a teoria do valor — é, sem dúvida, o que se pergunta Marx — e“renunciar à compreensão dos fenômenos”? Ou se deve recusar osfenômenos (se as coisas são assim, tanto pior para as coisas...) paraguardar a teoria do valor? Marx não poderia acentuar mais a gravidade

da parada.Ora, esse dilema a economia política já havia encontrado. Ediante dele, poderíamos dizer (mesmo se uma dessas respostas consistea rigor em suprimi-lo) que ela havia seguidoou o primeiro,ou o segundo caminho.

O primeiro caminho, que poderíamos também caracterizar comoo que guarda o fundamento para sacrificar o fenômeno, como aqueleque tenta guardar as duas teses opostassem tomar consciência do seu caráter contraditório, é representado pelos clássicos Smith e Ricardo.87A propósito de Smith: “A observação da concorrência — dos fenômenos da produção — mostra que capitais de mesma grandeza produzem em média(on average) o mesmo lucro, ou que, dada a taxamédia de lucro (average rate of profit) (e taxa média de lucro nãosignifica mais do que isto), a massa do lucro depende da grandeza docapital investido./ A. Smith registra esse fato(fact ). Este não lhe criavanenhum escrúpulo de consciência no que se refere à sua conexão com ateoria do valor que ele estabelecera, e tanto menos porque ao lado dasua teoria por assim dizer esotérica ele havia proposto outras (teorias)diferentes e poderia se lembrar, à vontade, ora de uma ora de outra” .88A propósito de Ricardo: “(...) Ricardo foi o primeiro a chamar aatenção (sobre o fato de) que capitais de mesma grandeza não são

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lucro e a mais-valia são (os pontos) da oposição (Gegensatz) de Mal-thus. Malthus não desenreda essas contradições e quiproquós mas osaceita de Ricardo, para, apoiado nessa confusão, derrubar a lei fundamental do valor de Ricardo, e extrair conseqüências agradáveis aosseus protetores(protectors).92(...). ” Ricardo pressente a diferença entre

valores e preços de custo (Kostpreisen)93e exprime a contradição paradeterminados casos, ainda que comoexceções à lei segundo a qualcapitais de composição orgânica desigual (...) produzem a mais-valia(surplus values) (...) (...)./ Ora, como vimos, utiliza isto para negar alei do valor de Ricardo./ Torrens parte, logo no início do seu escrito,desse achado de Ricardo; de nenhum modo para resolver o problema,mas para expressar (ausprechen) o “fenômeno” como a lei do fenômeno. “(...) Capitais iguais ou, em outros termos,quantidades iguais de trabalho acumulado porão em movimento freqüentemente quantidades diferentes de trabalho imediato', mas isso não altera em nada acoisa”.94 “O mérito nessa frase não consiste em que Torrens registrede novo simplesmente o fenômeno (Erscheinung), sem explicá-lo, masque ele (...) determine a diferença como sendo a de que capitais iguais

põem em movimento massas diferentes de trabalho vivo. (...) (...) Omérito de Torrens é assim o de ter se exprimido desse modo(dass er dieser Ausdruck hat). O que é que ele conclui disto? Que aqui, na produção capitalista, tem lugar uma interversão(Umschlag) da lei dovalor. Isto é, que a lei do valor que é abstraída da produção capitalistacontradiz os seus fenômenos.95 E o que ele põe no lugar (dela)?

Absolutamente nada, além da expressão verbal grosseira, não pensadado fenômeno(rohen gedankenlosen sprachlichen Ausdruck des Phänomens), que se trata de explicar” .96

Citamos extensamente os textos dasTeorias... para mostrar comoencontramos a antinomia, exposta na história da economia política. Asduas teses opostas estão representadas, uma pela economia clássica e aoutra pelos seus críticos que não são ainda, ou não são inteiramenteainda, críticos vulgares. A maneira pela qual Marx vai resolver estaantinomia corresponde, no plano da crítica da economia política, à solução dada por Hegel às antinomias da tradição filosófica.

A resposta de Marx pode ser expressa, por um lado, como sendoaquela que conserva tanto a essência como o fenômeno, em oposiçãoàqueles que conservam ou a essência (Smith, Ricardo), ou o fenômeno(Malthus, Torrens); por outro lado, e mais profundamente, comoaquela que consiste em pôr a contradição, em oposição àqueles que oua sofrem sem tomar consciência dela (Smith, Ricardo), ou então arecusam (Malthus, Torrens). Marx se instala na contradição. A contradição em sentido vulgar é aqui “suprimida” e não negada. Porque é acontradição, que se tomou contradição posta, que “abre” o caminhoque vai da essência ao fenômeno. Mas por isto mesmo, seria insuficiente dizer simplesmente que a resposta franqueia o caminho que

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conduz da essência ao fenômeno; correríamos o risco de interpretaressa resposta de uma maneira clássica. Sendo o caminho da essência àaparência, do simples ao complexo, ainda aqui um caminho contraditório, ele se abre fechando-se. O que significa: se a solução do

problema reside, como se sabe, no conceito de preço de produção — asmercadorias são vendidas não segundo os seus valores (c + v + pl),mas segundo os seus preços de produção (c + v) (= preço de custo) +lucro médio, estabelecendo uma partilha do conjunto da mais-valiasegundo a grandeza dos capitais, é preciso acentuar o que existe deescandaloso nesta resposta,exatamente aquilo de que Engels procurava fugir. Com efeito, se o fenômeno é um nível97 do real, e é necessário consjderá-lo assim, a lei do valor só é conservada ao preço danegação. O valor é negado no nível do fenômeno. E, na medida em

que, como vimos, não se pode dizer que a lei do valor tenha chegado aexistir antes do capitalismo, se deverá concluir queé só quando o valor não é mais que o valor é, ou que o valor só é quando ele não é. E acrescentando esse resultado ao do primeiro parágrafo (“valor” e pré-capi-talismo) diremos:se enquanto o valor não é (pré-capitalismo), ele de certo modo é, ele não será plenamente (capitalismo) se não quando de certo modo ele não será (existirá) mais. E, se se duvidar ainda do fatode que Marx tem consciência do caráter contraditório da sua respostae, mais do que isto, de que ele tem consciência de que a posição da

contradição constituia originalidade de sua resposta diante da economia política, citemos um último texto. No parágrafo 1 do capítulo 21do livro I, parágrafo cujo título “Interversão das leis de apropriação da

produção de mercadorias em leis da apropriação capitalista” , já dizmuito sobre o método de Marx,98 ele escreve a propósito do problemada passagem da circulação simples de mercadorias à produção capitalista: “Dizer que a interposição do trabalho assalariado falseia(fãlscht )a produção de mercadorias quer dizer que, se a produção de mercadorias quiser se manter não falseada (unfálscht ), ela não pode se

desenvolver” . 99 Texto que é preciso ler, de acordo com o conjunto docapítulo que descreve uma interversão (Umschlag), sem atenuar o seusentido: é só quando as leis da produção das mercadorias são “falseadas” (isto é, são negadas) que elassão plenamente. Que pensar, nessascondições, de uma crítica que consiste em descobrir uma contradiçãonesse movimento?

Conclusão

Vemos assim que, para os dois níveis em que se coloca o pro blema do espaço histórico do valor, não é recuando diante dos argumentos críticos da lógica da identidade mas, pelo contrário, radicalizando (objetivando) esses argumentos até que eles se voltem contra alógica da identidade que se encontra uma saída. Do mesmo modo, para

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a questão da “metafísica” de Marx tratada nas primeiras partes, vimosque não é submetendo o discurso deO Capital às exigências do sentidocomum mas, pelo contrário, radicalizando (objetivando) o caráter“metafísico” desse discurso até que ele questione o sentido comum quese obtém a resposta.

O mérito de Castoriadis — além do fato, mas é uma conseqüência, de ter compreendido o peso objetivo de que estão investidos osconceitos de Marx — é o de ter desdobrado, e para os dois níveis emque o problema se propõe, e ainda que na forma subjetiva da antinomia, as contradições que contém o discurso deO Capital — coisa deque, se deve dizer, a maioria dos marxistas é incapaz. Dir-se-ia que asua crítica realiza o trabalho importante de reconstituir os fios de quese tece a contradição em Marx, o que significa — resultado importante,a despeito dele — mostrara irredutibilidade do discurso de Marx a toda lógica da identidade. Até ai, Castoriadis vai muito mais longe doque os marxistas que através de soluções de emergencia (ou pelo silêncio, o esquecimento meio consciente meio inconsciente etc.) procuram ocultar a sua perplexidade diante das dificuldades que levantamtanto o livro I como o livro III deO Capital. Mas ele se detém naantinomia.100 Ele não vê onde o movimento de oposto a oposto, o maumovimento infinito de oposto a oposto poderia encontrar um ponto de parada. Ou, o que vem a dar no mesmo, como esse ponto é acontradição: diante da alternativa entre conservar a identidade como “critério” fazendo com que as contradições apareçam como uma má

“antinómica”, e objetivar a “antinómica em dialética” pondo emcheque o ponto de vista fixo da identidade, ele prefere seguir o primeirocaminho. Se em lugar de questionar a “antinómica” de Marx, ba-seando-se na lógica tradicional, que ele utiliza ingenuamente como leisda razão imediatamente evidentes, ele tivesse duvidado um momentoda validade dessa lógica e tivesse suposto que um pensamento queaparecia então como dialético pode ser rigoroso nãoainda que contraditório mas porque contraditório, Castoriadis teria atingido o objetivo e“acabado” a sua crítica. Mas ele não foi até aí. E os seus limites sãoem última instância os dos althusserianos: os althusserianos — que querem“salvar” Marx —subjetivizam os conceitos deO Capital, para poderassimexpulsar a contradição', Castoriadis, que quer “derrubar” Marx,objetiviza (com razão) os conceitos, paradescobrir lá a contradição. O horror da contradição lhes é, pois, comum; assim como — vimos —eles se encontram na (falsa) leitura do parágrafo 4 do capítulo 1 sobre ofetichismo,101 separando determinação e posição. E se detendo diantedo problema que é ao mesmo tempo o mais fácil (porque a resposta jáestá “lá”) e o mais difícil (porque ela não parece, absolutamente, umaresposta), Castoriadis faz com que as antinomias se lhe sobrevenham.

É ele o pensador “das” antinomias. É a sua leitura que oscila (diantedo objeto), não o próprio objeto. Ele segue assim em sentido inverso —

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volta clássica que se conhece bem desde História e Consciência de Classe — o caminho que conduz de Kant a Hegel. A crítica da dialéticadesemboca na dialética transcendental.

E para que não haja. engano sobre o sentido da nossa crítica, precisemos que não se trata absolutamente de dizer que a dialética é aúltima palavra ou que ela está acima de toda crítica. O que queremosdizer é simplesmente que toda crítica deO Capital que não toma a sérioa dialética como discurso da contradição só pode conduzir a urnaregressão. É esta regressão, estavolta aquém de Marx que está emquestão, não o projeto de ir além, o qual, pelo contrário, é a tarefa detodos nós. (Caso contrário, essa “defesa” de Marx, como seria o caso a propósito de qualquer outro pensador, só poderia ser urna demarchereacionária.) Para satisfazer as condições que poderiam validar a suacrítica, Castoriadis deveria ter dito: Marx propõe a contradição como

solução; entretanto, esta solução não é boa por tais ou tais razões. Nesse caso, poder-se-ia dizer pelo menos que a sua crítica partia deonde se deveria partir, que ela visava bem o seu objeto. Ora, não é istoo que ele fez. Ele denunciou “ingenuamente” as oscilações de Marx (oque —■insistimos — revela tanto o nível de compreensão da lógica deO Capital, que ele alcançou, como os limites dessa compreensão). E ésó se ele tivesse feito isto que a sua postura crítica, a de uma espécie devencedor (por exemplo, quando ele se refere a “esta phronesis quefaltará a Hegel e ao seu principal herdeiro”)102 poderia ter um início de

justificação.103E, para concluir, digamos que as insuficiências que se encontramem Castoriadis — provavelmente o melhor crítico de Marx — as reen

contramosem última análise, mas com muito menos talento, em todosos críticos atuais do marxismo na França. Eles não têm uma compreensão suficientemente profunda da dialética. Ou, se se quiser, eles nãolevam a sério a idéia de dialética. Sua leitura de Marx se faz geralmenteseja com uma “grille” althusseriana, seja com uma “grille” vulgar oueclética qualquer, mas é sempre ou um Marx continuísta, finalista, ouentão sistemático no pior sentido da palavra que aparece — um Marx,

insistimos, que não é reconhecível por todos aqueles que têm uma relação que não seja escolar com a dialética. Conduzidas nesses termos,essas leituras só podem conduzir a críticas que focalizam mal o seuobjeto — é o mínimo que se poderia dizer — e que, em conseqüência,conduzem a superações bem derrisórias.

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NOTAS

(1) Textures, n? 12-13, 1975, 7? ano, nova série, Braine-l’Alleud (Bélgica) (republicado em Les Carrefours du Labyrinthe, París, Seuil, 1978). Cremos nílo ser necessário

insistir sobre o interesse dos trabalhos de Castoriadis. Entre os críticos de Marx, Castoriadis e seus amigos são a nosso ver os mais interessantes. No que se refere aO Capital, &crítica de Castoriadis tem, entre outros, o interesse de resumir de uma forma bastante rigorosa a maioria dos argumentos utilizados em geral contra OCapital, desde há muito. Só trataremos aqui de um texto de Castoriadis (e mesmo de menos do que isto: de uma parte de um texto), mas trata-se de um texto que oferece um interesse particular.

Além do texto de Castoriadis e de algumas referências a um texto antigo de Claude Lefort (que apareceu nosCahiers Internationaux de Sociologie nos anos cinqüenta (republicado em Les Formes de VHistoire)), nós nos ocuparemos um pouco, mas só um pouco, dos althusserianos. Veremos no final em que medida a crítica do althus- sçrismo pode ser útil para a crítica de Castoriadis.

(2) Os althusserianos escapam (aqui) da “generalização” , mas recusam ao mesmo tempo a abstração real: para eles, o trabalho abstrato é sem dúvida algo bem diverso da generalidade trabalho, ele tem a unidade do conceito; mas esta unidade« a redução que ela pressupõe s6 ocorreriam no nível do pensamento (o conceito é entendido à maneira subjetiva da tradição reflexiva). Razão pela qual pode-se dizer que os althusserianos substituem um subjetivismo psicologizante (ou um naturalismo) por um subjetivismo logicista do conceito, no sentido reflexivo do termo.

(3) Poderíamos, com efeito, fazer mais ou menos a mesma crítica a propósito do que encontramos aí no que se refere à questão do espaço histórico ocupado pelo trabalho abstrato e o valor, problema que será tratado na terceira secção deste texto.

(4) Nota sobre as leituras vulgares do trabalho abstrato. As leituras vulgares

interpretavam a abstração que constitui o trabalho abstrato e o valor como se se tratasse de uma simples generalização: nos trabalhos (concretos) do carpinteiro, do construtor, do fiandeiro etc. far-se-ia abstração do que é próprio a cada um deles, da particularidade de cada trabalho, e se obteria assim, generalizando os resíduos, a noção de trabalho abstrato. Esta interpretação nos condena à alternativa: ou o trabalho abstrato não é senão uma construção subjetiva (só haveria no real diferentes trabalhos específicos: constrói-se pelo pensamento, através do procedimento clássico da generalização, a noção de trabalho abstrato, de trabalho em geral); ou esta generalidade é real, mas nesse caso— se o trabalho abstrato não é senão uma simples generalidade, obtida ignorando as particularidades dos trabalhos — esta realidade só poderia ser constituída pelas características fisiológicas comuns a todos os trabalhos. Os textos de Marx (voltaremos a eles)

em que se trata da questão do gasto de músculos, de nervos etc. não nos reconduzem a isto, apesar das aparências. Na realidade, o trabalho abstrato não é nem uma construção do espírito, embora o espírito a reproduza, nem uma generalidade fisiológica: é o movimento da abstração que se opera no próprio real. A produção de mercadorias opera, ela própria, a abstração: ela — e não nós, que nos limitamos a reproduzi-la — opera a redução (e o termo “redução” ao qual Marx volta já é sintomático) do concreto ao abstrato. A esse respeito, verem geral os marxistas (ou dialéticos) de língua alemã, começando pelos clássicos: Lukács, Adorno, E entre os textos recentes em que se trata da abstração real, além de Colletti, citado freqüentemente, mas que só dá uma visão muito geral do problema, ver J. A. Giannotti, sobretudo a introdução dasOrigens da Dialética do Trabalho (Origines de la Dialectique du Travail, Paris, Aubier, 1971). Vão também no

sentido do que chamamos de leituras vulgares — esse ponto merece talvez uma atenção especial, pois se continua a tropeçar nisto —, os que, na linha de Bòhm-Bawerk, duvidam da legitimidade do movimento do § 1 do capítulo 1 do livro I de OCapital, pelo qual se passa do valor de troca ao valor. (Werke, 23, Das Kapital I, op. cit., pp. 51-52; ver trad. franc. do cap. 1 do livro I de OCapital em Paul-Dominique Dognin, Les "Sen- tiers Escarpes" de Karl Marx, Paris, Êd. du Cerf, 1977, tomo I, pp. 175-176) Bohm-

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Bawerk, e, depois dele, vários outros criticam Marx por ter confundido “a abstração do gênero e a abstração das formas específicas nas quais o gênero se manifesta" (E. von Böhm-Bawerk, Karl Marx and the Close ofhis System, Ed. P. Sweezy — com a resposta de Hilferding e um artigo de Bortkiewics —, A. Kelly, Clifton, N. J., reed. 1975 (1949), p. 74), isto é, não ter visto que se poderia igualmente passar aovalor de uso em geral

(o que significaria fundar o valor de troca no valor de uso). “As formas particulares sob as quais os valores de uso das mercadorias podem aparecer — que elas sirvam como alimento, como abrigo, como roupa, isto sem dúvida é posto de lado, mas o valor de uso enquanto tal da mercadoria nunca é posto de lado.”(Ibidem) Tal argumento só pode ser empregado por aqueles que lêem o movimento de que se trata no quadro(“grille") da passagem de uma espécie a um gênero, isto é, por aqueles que não compreenderam que mais do que uma generalização (voltaremos a isto) trata-se aí de uma redução, de uma mudança de registro. A passagem do valor de uso específico ao valor de uso em geral generaliza simplesmente, mas não reduz o universo dos valores de uso, o que se trata de fazer aqui. (A resposta de Hilferding a Böhm-Bawerk — diga-se de passagem — é bem insuficiente. Por não ter uma concepção bem rigorosa da natureza da

abstração que constitui o trabalho abstrato, Hilferding desliza freqüentemente na idéia de simples generalização (ver Böhm-Bawerk’s Criticism of Marx, no volume citado, editado por Sweezy, por exemplo, p. 131) — e como conceber o valor como a simples generalidade dos valores de uso é algo imediatamente e grosseiramente falso — Hilferding tenta separar o tipo de abstração do valor da que se encontra no trabalho abstrato. (Ver ibidem) Na realidade, quando, pelo contrário, Böhm-Bawerk tenta aproximar de direito (pois ele supõe que Marx comete o erro de não o haver feito) a abstração do trabalho abstrato e a do valor, ele paradoxalmente tem razão: as duas abstrações são análogas, mas por uma razão oposta à que ele dá: tanto num caso como no outro, trata-se de algo mais que de uma simples generalização. A última versão do argumento de Böhm-Bawerk, que remonta de resto a uma obra anterior do mesmo Böhm-Bawerk,

encontramo-la no volume II, “Notes explicatives et critiques”, de Les "Sentiers Escarpes ” de Karl Marx de P.-D. Dognin, op. cit ., II, p. 21. Em apoio à sua tese, Dognin cita um texto de 1903 de G. B. Shaw.) Como afirma Hegel, “é da maior importância, tanto para o conhecimento como também para o nosso comportamento prático, que aquilo que é simplesmente comum(das bloss Gemeinschaftliche) não seja confundido com o que é verdadeiramente geral, universal(mit dem wahrhaft Allgemeinen, dem Universellen)”. (Hegel, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften in Grundrisse (1830), Erster Teil, Die Wissenschaft der Logik..., § 163, Zusatz I,in Werke, 8, Berlim, Suhrkamp, p. 312; Encyclopédie des Sciences Philosophiques, I, La Science de la Logique, ed. Bernard Bourgeois, Paris, Vrin, 1970, § 163, adition I, p. 592)

(5) Werke, 13, Zur Kritik der politischen Ökonomie, op. cit ., p. 18;Contribution

à la Critique de l'Économie Politique, trad. franc, de M. Husson e G. Badia, Paris, Éd. Sociales, 1957, p. 10. Esse texto é citado por J. A. Giannotti, op. cit., p. 16, e também por Helmut Reichelt, Zur logischen Struktur des Kapitalbegriffs bei Karl Marx, Frankfurt am Main, Europäischen Verlagsanstalt, 1973 (1? ed., 1970), p. 153.

(6) Os termos alemães allgemein, Allgemeinheit são traduzidos geralmente, em seu uso filosófico, hegeliano em particular, por “universal”, “universalidade”. Mas eles significam também “geral”, “generalidade”. Como vimos acima, Hegel emprega tambémUniversell, para designar o “verdadeiro universal”, em oposição a gemeinschaftlich , o que é simplesmente comum. A expressão “as abstrações objetivas põem a universalidade” de certo modo faz um curto-circuito, pois quer dizer “nas abstrações objetivas a generalidade é posta e enquanto tal se torna universalidade”. Voltaremos a isto.

(7) Marx deixou três versões diferentes do capítulo 1 (ou pelo menos de partes do capítulo 1 de OCapital ): a da primeira edição (1867), o apêndice da primeira edição sobre a forma do valor (que Marx acrescentou após uma troca de cartas com Engels, quando o livro I estava no prelo), e o texto definitivo, o que dá Engels na quarta edição (1890) e que, para o capítulo 1, segundo os prefácios de Engels à terceira e à quarta edições, corresponde, com poucas diferenças, à segunda e à terceira edições.

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Se se acrescentar a versão francesa feita por J. Roy e revista por Marx, mas que, como se sabe, difere bastante do original, tem-se quatro versões. Se se acrescentar ainda o capítulo 1 daContribuição ó Crítica da Economia Política, que é um texto paralelo, e também o fragmento sobre o valor que se encontra nosGrundrisse (op. cit., p. 763;

Manuscrits de 1857-1858 ("Grundrisse") II, op. cit., p. 375), teríamos seis versões diferentes. Essas diferentes versões são essencialmente complementares: se se trabalhar sobre o conjunto desses textos, é possível resolver a maioria dos problemas que eles levantam. O texto da primeira edição e o do apêndice, assim como o texto definitivo (do capítulo 1) foram traduzidos e apresentados numa edição bilíngüe (salvo para o último) por Paul-Dominique Dognin, Les "Senders Escarpés" de Karl Marx, op. cit., tomo I. O tomo II contém “notas explicativas e críticas” às quais, a despeito da erudição do autor, faríamos reservas. (Ver nota 4).

(8) Marx, “Ware und Geld”(Das Kapital, I, Erste Aufgabe, 1867, 1. Buch, Kapitel 1)in Marx-Engels,Studienausgabe, II, "Politische Ökonomie”, Frankfurt am Main, Fischer, 1966, p. 234; Paul-Dominique Dognin, Les "Sentiers Escarpés" de Karl

Marx, I, op. cit., p. 73. Grifo nosso.(9) Castoriadis: “(...) a duas páginas de distância, o trabalho (abstrato) é, alter

nadamente, ‘gasto produtivo do cérebro, dos músculos...’ etc., ou ‘gasto,em sentido fisiológico, de força humana,e, nessa condição (à ce titre) de trabalho humano igual, forma o Valor das mercadorias’ e ‘unidade social... (que) só se pode manifestar nas transações sociais'. Esta abstração é pois ‘fisiológica’ ou ‘social’ — ou essa distinção não cabe? Os nervos e. os músculos são ‘forma de aparição’ do social — ou o social é ‘expressão’ e ‘apresentação’ dos nervos e dos músculos?”. (Castoriadis, art. cit., pp. 16-19; Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 263, grifado por Castoriadis) Encontra- se o mesmo motivo critico no artigo sobre a alienação como conceito sociológico publicado por Claude Lefort, nos anos cinqüenta, nosCahiers Intemationaux de Sociologie (e retomado em Les Formes de l'Histoire)\ “É que Marx cede, nesse caso, a uma interpretação naturalista do trabalho, que vicia a sua descrição do trabalho social. Essa interpretação se dá a perceber em duas ocasiões, pelo menos; por um ladoquando ele

fundamenta a determinação do valor sobre o gasto do cérebro humano, por outro lado quando ele confunde a forma particular do trabalho e a sua forma natural: nessa perspectiva, o modo de trabalho capitalista só pode com efeito ocultar o real ou aparecer como ‘sobrenatural’.” (Claude Lefort, “L’Aliénation comme Concept Sociologique”,C. I. S., vol. XVIII, cahier double, nouvelle série, 2ème. année, Paris, P. U. F., 1955, p. 48, grifo nosso, republicado em Les formes de I'Histoire, essais d ’anthropologie

politique, Paris, Gallimard, 1978; voltaremos ao texto também sobre a última parte do argumento.)

(10) Ver tradução francesa de M. Husson e G. Badia, op. cit., p. 10. Tanto essa tradução como a de Maximilien Rubel e L. Evrard(Critique de 1’Économie Politique, in Marx,Oeuvres, Economie, I, op. cit., p. 281) traduzem tantoSubjekte como Individuen por “indivíduo”, o que é incorreto: enfraquece-se o texto, se a condição de sujeito não for posta — a posição está no texto de Marx — no nível da expressão.(11) Aqui não fizemos mais do que esboçar a análise da relação entre qualidade e quantidade do valor, a qual remete sobretudo a capítulos sobre a quantidade e a medida da lógica do ser de Hegel.

(12) A determinidade da simplicidade do trabalho, segundo um texto dasTeo rias... é uma determinidade da qualidade. Ela permite entretanto pensar o trabalho complexo como potência do trabalho simples, e teoricamente, estabelecer uma relação quantitativa entre os dois. Mas diferentemente da relação entre um trabalho que se efetua segundo o tempo de trabalho socialmente necessário e um trabalho cuja efetivação vai além ou fica aquém dele, essa relação, embora permita, ou deva permitir, como o último, o estabelecimento de uma relação quantitativa entre os dois termos (o trabalho complexo potência n do simples) se estabelece entre dois termos qualitativamente diferentes (“simples”', “complexo”), o que não é o caso (se nos ativermos ao conceito) para dois trabalhos (ambos simples) de igual rendimento. Sobre essa relação

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entre quantidade e qualidade, verWerke, 26, 3,Theorien über den Mehrwert, op. cit., p. 133;Théories sur la Plus-value, III, op. cit., p. 160.

(13) “Ware und Geld”(Das Kapital, Erste Auflage, 1867, 1. Buch, Kapitei 1),in Studienausgabe, II, op. cit. , p. 226; Dognin, Les "Sentiers Escarpés" de Karl Marx, I, op. cit ., p. 51.

(14) Castoriadis escreve a esse respeito: “Faiar de tempo de trabalho socialmente necessário implica que se sabe o que significa ‘socialmente necessário’. Ora, entre as múltiplas significações dessa expressão nenhuma se sustenta, tratando-se da economia capitalista. Pode ser considerado como ‘socialmente necessário’ o tempo exigido pelo (trabalho efetuado na) empresa mais eficaz (...) Pode ser considerado, pelo contrário, como ‘socialmente necessário’ o tempo exigido pela empresa menos eficaz (...). Finalmente, pode ser considerado como ‘socialmente necessário’ o tempo médio consagrado à produção do produto levando em conta todas as empresas do ramo considerado. A primeira interpretação pode ser eliminada, pois ela cónduz a resultados irreais e incoerentes. (...) a segunda interpretação (...) faz com que não subsista nada da ‘lei do valor’ e conduz em linha reta à concepção neoclássica do lucro como “quase- renda’ diferencial(...). Portanto, para ter uma ‘teoria do valor-trabalho’, sobra somente

a terceira interpretação: o tempo ‘socialmente necessário' é o tempo médio. Mas esse tempo médio é uma abstração vazia, simples resultado de uma operação aritmética fictícia que não tem nenhuma efetividade e nenhuma eficácia no funcionamento real da economia: não existe nenhuma razão real ou lógica para que o valor de um produto seja determinado pelo resultado de uma divisão que ninguém fez nem poderia fazer. Para que esse fantasma adquira um pouco de carne, é necessário supor que as empresas que trabalham nas condições ‘médias’ constituem a maioria esmagadora das empresas do ramo considerado. Isto não é e nunca foi o que ocorreu na realidade do capitalismo”. (Castoriadis, art. cit., pp. 10-11; Les Carrefours du Labyrinthe, pp. 256-257) Sem pretender entrar no conteúdo econômico do problema, observemos que para Marx, se o trabalho socialmente necessário não corresponde nem ao tempo máximo (o da empresa menos eficaz) nem ao tempo mínimo (o da empresa mais eficaz), ele também não corresponde, necessariamente, ao tempo médio exigido para a produção da mercadoria (considerando o conjunto das empresas do ramo em questão, pondere-se ou não segundo a quantidade das unidades produzidas). O trabalho socialmente necessário corresponde ao tempo que se impõe socialmente determinando o valor — isto é, em primeira instância, os preços. (Isto parece uma tautologia, mas na realidade não é; isto quer dizer: há um certo tempo social que aparece de forma mais ou menos modificada nos preços das mercadorias.) O tempo de produção de certas empresas ou grupos de empresas se situam em geral num nível intermediário de produtividade, eles não produzem necessariamente conforme o nível médio. Na realidade, as empresas que não produzem segundo o tempo de trabalho socialmente necessário — que elas produzam consumindo mais tempo ou menos tempo — sãoexcluídas dessa determinação (objetiva) do valor (o que só no caso de uma distribuição perfeitamente regular nos conduziria a médias), e é no interior das empresas dominantes que se estabelecem as médias que são portanto uma determinação segunda. (A fortiori, esta é a função das médias para o caso do trabalho simples.) Quanto à idéia de que as empresas que produzem segundo o tempo de trabalho socialmente necessário devem constituir “a maioria esmagadora”, ela decorre da interpretação em termos de simples médias. A correção não é secundária porque ela questiona o pretenso papel das médias em Marx. Através das análises da última parte, veremos que o simples jogo das médias convém mal à análise do capitalismo (e que em certo sentido, para mercados limitados, sem dúvida, poderia mesmo convir melhor ao pré-capitalismo). Ora, se pensarmos a constituição do valor não como uma questão de médias mas como constituição de uma coisa social objetivada por um tempo que se impõe como o tempo social, a crítica em termos

de “abstração vazia, simples resultado de uma operação aritmética fictícia (...)”, “resultado de uma divisão que ninguém fez nem poderia fazer”, perde, ao que parece, muito de sua força. Sobre a questão das empresas que trabalham com uma produti-

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vidade superior e em particular da questão da diferença entre “valor individual” e valor (Castoriadis, art. cit., p. 10, nota 8; Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 256) observemos que Castoriadis sugere que se trata de uma espécie de deslizamento ( glisse-

ment): “Certas fórmulas do livro III de OCapital ‘traem’ Marx a esse respeito (...)”. (Ibidem) Ora, seria preciso observar sobre isto: 1) que o problema é bastante desenvolvido no capítulo 10, original (trad, francesa capítulo 12, “A produção da mais-valia relativa”, “a mais-valia relativa”) da quarta secção do livro I, capítulo que não se aborda, como seria de se esperar, nas observações de Castoriadis sobre esse assunto; 2) que a diferença entre valor individual e valor (sobre essa terminologia contraditória ver mais adiante) longe de ser um deslizamento é plenamente assumido por Marx (ver capítulo 10, original) e desempenha um papel essencial para a sua apresentação do movimento geral da concorrência (qualquer que seja a opinião que se possa ter sobre esta apresentação).

(15) Castoriadis: “No mundo dos fenômenos, quase todos os trabalhos efetivos são complexos ou qualificados (pouco importa o grau desta ‘qualificação’ ou a sua extensão; basta, para que haja problema, que alguns trabalhos que pertençam à ‘base’

da economia o sejam). Ora, diz Marx, o trabalho complexo (ou qualificado) ‘não é senão uma potência(potenziert) do trabalho simples (...)'. Como sabemos disto? Por postulado metafísico e ao mesmo tempo fisiológico”. (Castoriadis, art. cit., pp. 13-14;

Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 260, grifado por Castoriadis) “Como podemos operar a ‘redução’ do trabalho complexo a trabalho simples?” “A experiência mostra, diz Marx, que essa redução se faz constantemente.” “Mas o que se faz na experiência nunca é mais do que uma redução de fato: e ela não pode ser considerada sem círculo vicioso, como se traduzisse uma comensurabilidade de direito, substancial/ essencial, das diversas variedades de trabalho. A redução que se faz na experiência não é redução de todos os trabalhos a trabalho simples; ela é ‘redução’ de todos os trabalhos a

dinheiro (ou a um outro ‘equivalente geral’ ou numerário socialmente instituído),

o que não é absolutamente a mesma coisa, o que já sabíamos sem ‘teoria do valor’, o que ‘a teoria do valor’ deveria explicar — em vez de se basear nisso para existir como teoria.” (Castoriadis, art. cit., pp. 14-15; Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 261, grifado por Castoriadis)

(16) O capitalismo em sentido específico representa o momento mais elevado de um processo que já é uma história (não uma pré-história) do capital. Mas as análises do início deO Capital supõem precisamente um capitalismo plenamente desenvolvido, supõem o valor, o trabalho abstrato nas condições de um capitalismo plenamente desenvolvido, mas pondo entre parênteses a categoria do capital. Assim não há contradição entre assumir aqui o capitalismo no sentido mais pleno(pregnant) e afastar do

trabalho abstrato as determinações do trabalho assalariado, como faremos mais adiante. Ou antes, há contradição, mas é a contradição assumida pelo método de apresentação deO Capital. Ver a esse respeito o ensaio seguinte. Historicamente, a constituição do valor como do trabalho abstrato se faz de quantidade à qualidade: as determinidades da qualidade só se consumam(achèvent) com o capitalismo da grande indústria, quando se passa de um trabalho já simplificado (e já equalizado pelo tempo) ao trabalho simples.

(17) O argumento já se encontra em Bõhm-Bawerk. Ver Bõhm-Bawerk, Karl Marx and the Close of his System, op. cit., pp. 81-86.

(18) Para evitar confusões, lembremos que, como vimos, o problema da redução do trabalho complexo ao trabalho simples deve ser distinguido do problema do trabalho socialmente necessário.

(19) Voltaremos eventualmente ao problema. Os tradutores da resposta de Hilferding a Bõhm-Bawerk dão uma indicação interessante sobre uma divergência, a esse respeito, entre o texto que Engels dá na quarta edição de OCapital e o texto original de Marx. Ver Hilferding, Bõhm-Bawerk Criticism of Marx, trad, de E. e C. Paul no volume editado por Sweezy, op. cit., pp. 143-144, nota dos tradutores. A nota é

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introduzida no nível da resposta de Hilferding a Böhm-Bawerk a respeito do problema da redução.

(20) Por exemplo: “Os valores de uso são imediatamente meios de vida. Mas, inversamente, esses meios de vida são eles próprios produtos de vida social, resultado de um gasto de força vital humana, (são) trabalho objetivado (vergegenständlichte

Arbeit). Enquanto materialização ( Materiatur) do trabalho social todas as mercadorias são cristalização da mesma unidade”.(Werke, 13, Zur Kritik..., op. cit., p. 16, Con tribution à la Critique de l ’Économie Politique, op. cit., p. 8, grifado por Marx)

(21) “Portanto, no ser-aí(Dasein) da mercadoria enquanto dinheiro não se deve somente ressaltar que no dinheiro as mercadorias se dão uma medida determinada da sua grandeza de valor — exprimindo todas o seu valor no valor de uso da mesma mercadoria — mas que elas se apresentam todas como ser-aí do trabalho social, abstratamente geral (der gesellschaftlichen, abstrakt allgemeinen Arbeit), forma na qual elas possuem todas a mesma configuração; elas aparecem todas como aencarnação imediata do trabalho

social; e enquanto tais, elas têm todas a eficácia(alie (...) die Wirkung (...) haben) do ser-aí(Dasein) do trabalho social, elas são imediatamente trocáveis — na proporção da sua grandeza de valor contra todas as outras mercadorias (...).”(Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, 3, op. cit., pp. 133-134;Théories sur la plus-value, III, op. cit., p. 161, grifo nosso) “Na apresentação da mercadoria enquanto dinheiro não está contido somente (o fato de) que as diferentes grandezas de valor das mercadorias são medidas pela apresentação do valor delas no valor de uso de uma mercadoria exclusiva; mas ao mesmo tempo que elas se apresentam todas sob uma forma na qual elas existem enquantoencarnação (Verkörperung) do trabalho social, e em conseqüência são trocáveis contra cada uma das outras mercadorias (que lhes são) tradu- zíveis à vontade em qualquer outro valor de uso.”(Werke, 26, 3, Theorien über den

Mehrwert, 3, op. cit., p. 128; Théories sur la plus-value, III, op. cit., p. 154, grifo nosso) “Esta transformação dos trabalhos dos indivíduos privados contidos nas mercadorias em trabalho social igual e, em conseqüência, em trabalho apresentável em todos os valores de uso, trocável em todos, esse lado qualitativo da coisa, que está contido na apresentação do valor de troca enquanto dinheiro, não é desenvolvido por Ricardo.

Esta circunstância — a necessidade de apresentar o trabalho contido nelas como trabalho social igual, isto é, como dinheiro — não é vista por Ricardo.”(Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, 3, op. cit ., p. 128; Théories sur la plus-value, III, op.

cit ., p. 155, grifo nosso) Ver também sobre esse pontoWerke, 26, 2,Theorien über den Mehrwert, 2, op. cit ., 1967, p. 505;Théories sur la plus-value, II, Paris, Éd. Sociales,1975, p. 601. No“Materialen zur Rekonstruktion der Marxschen Werttheorie”, 2, in Gesellschaft, Beiträge zur Marxschen Theorie, 3, H. G. Backhaus acentua com razão a ligação entre a teoria do valor e a teoria do dinheiro, ligação que freqüentemente se perde de vista. Ele se baseia, entre outros, em textos como este: “O valor da mercadoria enquanto base(Grundlage) permanece importante, porque o dinheiro só pode ser

desenvolvido conceitualmente a partir desse fundamento(Fundament) e o preço segundo o seu conceito geral só é em primeiro lugar o valor em forma-dinheiro(Geld form)". (Werke, 25, Das Kapital, III, op. cit., p. 203;Oeuvres, Économie II, op. cit., p. 984)

(22) “A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma social na qual os indivíduos passam com facilidade de um trabalho a outro e na qual a espécie determinada de trabalho é para eles acidental e portanto indiferente. Aqui o trabalho se tornou não só categoria(Kategorie) mas na realidade efetiva (Wirklichket) um meio de criar a riqueza em geral, e enquanto determinação cessou de coincidir(verwachsen zu sein) com os indivíduos numa particularidade(in einer Beson

derheit). Tal situação se dá (da maneira) mas desenvolvida(ist am entwickelsteh) na forma de existência mais moderna da sociedade burguesa — os Estados Unidos. Assim, só(erst) aqui a abstração da categoria ‘trabalho’, ‘trabalho em geral’, trabalho sans phrase, o ponto de partida da economia moderna, se torna verdadeira praticamente(praktisch wahr). Assim, a abstração mais simples, a que a economia moderna

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dá (um lugar de) ponta(an die Spitze stellt) e que exprime uma relação ( Beziehung) muito antiga (uralte) e válida para todas as formas sociais, sò aparece entretanto nessa abstração (como) praticamente verdadeira, como categoria da sociedade mais moderna.” (Grundrisse, op. cit., p. 25, Einleitung) Ver “Introduction à la Critique de

l’Économie Politique”in Contribution à la Critique de l'Économie Politique, trad. franc, de M. Husson e G. Badia, p. 168. Husson e Badia traduzemWirklichkeit por "réalité” simplesmente e não por "realidade efetiva". O problema que contém a frase final, a da validade eventual das categorias em questão fora do capitalismo, será discutido a partir de outros textos na secção III deste ensaio.

(23) Hegel, Encyclopédie de sciences philosophiques, t. I, La Science de la Lo gique, trad. Bourgeois, op. cit., § 142, p. 393.

( 24) Esses dois momentos são pois interiores a uma história e não definem a ruptura de uma pré-história a uma história. Sobre esta diferença ver a secção III deste ensaio.

(25) Não há contradição — ou antes é uma contradição assumida e justificada — em explicitar a simplicidade do trabalho fazendo intervir o capitalismo da grande

indústria, e dizer ao mesmo tempo que o trabalho abstrato corresponde ao nível dos conceitos da circulação simples. Ver a esse respeito a nota 16, e o ensaio seguinte.(26) E ainda “(...) Quando nos fixamos no trabalho como criador de valor, não

o consideramos na sua configuração concreta enquanto condição da produção, mas numa determinidade social que é distinta do trabalho assalariado”. (Werke, 25, Das ¡Capital, III, op. cit., p. 831;Oeuvres, Économie II, op. cit., p. 1431).

(27) “O trabalho privado ( Privatarbeit) deve assim se apresentar imediatamente como o seu contrário (Gegenteil) como trabalho social; esse trabalho transformado (verwandelte Arbeit) é enquanto seu contrário imediato(ihr unmittelbares Gegenteil) trabalho abstrato geral, que portanto se apresenta também num equivalente geral.” (Werke, 26, 3,Tkeorien über den Mejirwert, 3, op. cit., p. 133; Théories sur la Plus-

value, III, op. cit., pp. 160-161, grifado por Marx) Num outro texto Marx fala de contrariedade e de contradição: "A autonomização do valor de troca das mercadorias em dinheiro é ela mesma o produto do processo de troca, do desenvolvimento das contradições (Widerspruche) entre o valor de uso e o valor de troca contido na mercadoria e a contradição(Widerspruch) não menos contida nela, a saber que o trabalho determinado, particular do indivíduo privado deve se apresentar no seu contrário (Gegenteil), trabalho igual, necessário, geral, e, nessa forma, social".(Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, 3, p. 128;Théories sur la Plus-value, III, op. cit., p. 154, grifo nosso) Num outro texto, Marx distingue a oposição da “contradição absoluta” (absoluter Widerspruch) que designa a “ruptura” da oposição: “Na crise, a oposição (Gegensatz) entre a mercadoria e a sua configuração-valor, o dinheiro, se eleva até a

contradição absoluta (bis zum absoluten Widerspruch)”. (Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 152, grifo nosso;Oeuvres, Économie I, op. cit., p. 681, mas nessa versão que é a de Roy tem-se simplesmente "esta contradição rompe(éclate) no momento das crises...”) Pensamos a oposição valor/valor de uso e trabalho abstrato/trabalho concreto em termos de contrariedade; sendo a “contradição” aqui a ruptura dessa oposição.

(28) "A oposição interna(innere Gegensatz) entre valor de uso e valor envolvida na mercadoria é, assim, apresentada através de uma oposição externa, isto é, pela relação entre duas mercadorias, na qual uma mercadoria, aquela cujo valor deve ser expresso, só vale imediatamente como valor de uso, e a outra, pelo contrário, aquelaem que o valor é expresso, só vale imediatamente como valor de troca. A forma simples do

valor é assim a forma fenomenal simples da oposição, que ela contém, entre valor de uso e valor.”(Werke, 23, Das Kapital, I, pp. 75-76; Dognin, Les "Sentiers Escar pés”... , I, op. cit., p. 75, grifado por Marx, salvo “oposição”) “A ampliação e o aprofundamento históricos da troca desenvolvem a oposição entre valor de uso e valor que dormita (den schlummemden Gegensatz) na natureza da mercadoria.”(Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 102;Oeuvres, Économie I, op. cit., pp. 622-623, grifo nosso)

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(29) Os althusserianos criticaram a idéia de que há uma oposição entre valor e valor de uso, no quadro de urna critica da idéia de contradição. Ver texto citado mais adiante. Na primeira edição de Lire Le Capital, Macherey terminava mesmo o seu texto se perguntando se, apesar das dificuldades de uma generalização a partir “destas poucas páginas”, não conviria perguntar-se em que medida existe emO Capital uma lógica da contradição. (Pierre Macherey, “A propos du processus d’exposition du Capital”, in L. Althusser, J. Rancière, P. Macherey, Lire Le Capital , I, Maspero, 1967 (1965), p. 256)

(30) Em Aristóteles a substância primeira é o indivíduo. As substâncias segundas, o gênero e as espécies. Como aqui e anteriormente eu cito Aristóteles, e como no texto de Castoriadis se trata da leitura que Marx faz de Aristóteles, preciso que as citações terão sempre como único objeto ajudar a compreender as categorias deO Capital (inclusive no nível do discurso de Marx sobre Aristóteles), mas que não se discutirá aqui o problema de saber se a leitura que Marx faz de Aristóteles (particularmente de certo texto da Ética a Nicômaco, referidos no artigo de Castoriadis) é rigorosa.

(31) Falamos aqui de conflito. Poderíamos empregar também otermocontradiçâo, embora (aqui) em sentido secundário. Sobre a contradição, ver a secção III deste ensaio.(32) Ver a citação de Verri por Marx: “O dinheiro é a mercadoria universal”.

(Verri, Meditazioni sulla economia política; Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 104, nota 44; ver trad. Roy, 1, I, t. I, op. cit. p. 100, n. 23)

(33) Ver Althusser, “Avertissement aux lecteurs du livre I du Capital",inLe Capi tal, 1. I, Paris, Garnier-Flammarion, 1969, p. 22. Ver a nota 46 do ensaio anterior.

(34) Hegel, Enzyclopàdie der philosophischen Wissenschàften im Grundrisse (1830), Erster Teil, Die Wissenschaft der Logik..., § 119, Zusatz 1,in Hegel, Werke, op. cit., p. 246. Encyclopédie des Sciences Philosophiques, I, La Science de la Logique, § 119, addendum 1, trad. B. Bourgeois, op. cit., p. 554, grifado no texto.

(35) Ver também a esse respeito, entre outros, o texto freqüentemente citado de Schumpeter sobre a relação entre Marx e Ricardo. Evidentemente esta reiteração da critica não prova nada: nem contra nem a favor.

(36) “O erro de Ricardo é que ele só se ocupa da grandeza de valor. Em conseqüência, ele só tem em vista oquantum relativo de trabalho que apresentam as diferentes mercadorias, que elas contêm encarnado nelas enquanto valores. Mas o trabalho contido nelas deve ser apresentado como trabalho social, como trabalho iñdividual alienado (entausserte).” (Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, 3, op. cit., p. 128; Théories sur la Plus-value, III, op. cit., pp. 154-155, grifado por Marx) “Encontram-se, entretanto, passagens isoladas, em Ricardo, em que ele salienta diretamente que a quantidade do trabalho contido numa mercadoria só (é) a medida de sua gran

deza de valor, das diferenças de grandeza do seu valor, porque o trabalho é aquilo em

que as diferentes mercadorias sãoiguais, sua unidade, sua substância, o fundamento interno de seu valor. O que ele deixou de pesquisar é somente em que forma determinada o trabalho é isto.”(Werke, 23, 3,Theorien über den Mehrwert, 3, op. cit., p. 135; Théories sur la Plus-value, III, op. cit., p. 163, grifado por Marx)

(37) “Todas as mercadorias podem ser resolvidas em trabalho(labour) como sua unidade. O que Ricardo não investiga, é a formaespecífica em que o trabalho (labour) se apresenta como unidade das mercadorias. Por isso, ele não compreende o dinheiro. Por isso, a transformação da mercadoria em dinheiro aparece nele como algo puramente formal, e não (como algo) que penetre o âmago da produção capitalista. Mas ele diz somente isto: só porque o trabalho é a únidade das mercadorias, só porque elas são somente apresentações da mesma unidade, o trabalho (labour) é a sua medida (mesure). Ele é medida delas somente porque é sua substância enquanto valores.” (Werke, 26, 3,Theorien über den Mehrwert, 3, op. cit., p. 136; Théories sur la Plus- value, III, op. cit., p. 163, grifado por Marx)

(38) Ver a esse respeito “Dialética Marxista, Humanismo, Anti-humanismo” e “Circulação de Mercadorias, Produção Capitalista”, neste tomo.

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(49) Como dissemos, não desenvolveremos aqui uma discussão sobre o problema do fetichismo. Trata-se antes de analisar o estatuto do trabalho abstrato e do valor (ou antes, trata-se de mostrar como o seu caráter se revela) noquadro do texto célebre de Marx sobre o fetichismo.

(50) A rigor, a produção capitalista enquanto produção de mercadorias.(51) Como já vimos, em “L’aliénation comme concept sociologique”.(Cahiers

internationaux de Sociologie, art. cit.) Lefort critica Marx, a propósito desse ponto, por confundir “a forma particular do trabalho e sua forma natural”, (p. 48) “Entretanto, não tem nenhum sentido definir um trabalho natural em si, ou considerar que a particularidade é mais natural do que a generalidade.” ( Ibidem) O alcance dessa crítica é duvidoso. Marx quer dizer que a forma social — isto é, a forma que devem tomar os produtos do trabalho para servir socialmente, para serem consumidos por outrem — é, nas sociedades não capitalistas-mercantis, a forma imediata, a forma natural. Seria uma ilusão ou uma confusão dizer que a forma imediata — isto é, a forma sensível, o objeto com todas as suas propriedades sensíveis — é a forma natural, em oposição à forma “reduzida”, em que suas propriedades desaparecem? A crítica é compreensível (mas não justificável) se se supuser que o trabalho abstrato é não a forma reduzida, mas simplesmente a forma geral; nesse caso, com efeito, por que supor que a utilidade particular é mais concreta do que a utilidade em geral? Mas, como vimos, não se trata (só) disto em Marx.

(52) Quando há troca, a coisa é mais complicada; nós a discutiremos na secção III. Digamos desde já que a troca só é, entretanto, condição necessária, não condição suficiente para a existência do valor e do trabalho abstrato.

(53) Hegel retoma várias vezes na sua obra a questão do argumento ontológico. Como se sabe, ele critica Kant por ter — entre outras coisas — tomado como exemplo algo, os cem talers, que é não um conceito mas uma representação.

(54) No que se refere à possibilidade de conciliar abstração real e materialismo, as idéias desse desenvolvimento final não são essencialmente diferentes das de J. A. Giannotti na introdução dasOrigens da Dialética do Trabalho: "Ê nessa perspectiva que tentaremos mostrar que o texto fundamental sobre o qual se baseia a interpretação de Althusser permite uma outra leitura, para indicar em seguida como se pode admitir que o universal concreto faz parte da realidade, sem cair por isso no idealismo ou no empirismo (...). Contra Althusser, afirmamos que uma tal reflexão é possível unicamente porque tem lugar, na própria realidade, um processo de constituição categorial, oposto ao devir do fenômeno, processo que configura a essência de um modo de produção determinado, e em conseqüência de uma forma de sociabilidade. A essência faz parte de cada momento do concreto, sem entretanto esgotar todas essas dimensões; de tal modo que o discurso se torna científico só quando reproduz a ordem dessa constituição ontológica (...). A mesma coisa pode ocorrer com a categoria marxista quando se descobre um processo de abstração real que opera para além da investigação científica. É a única maneira de conservar o materialismo da doutrina. Entendida assim, a abstração não seria semelhante à operação que retira o ouro da ganga, e o seu produto, o conceito, não resultando de um processo exterior ao objeto, será o próprio objeto na medida em que se situa o objeto primitivo no nível da realidade social”. (Giannotti, op. cit., pp. 11, 14 e 15, grifado pelo autor, trad. nossa) A idéia de abstração real é de algum modo uma constante do pensamento marxista (ou em geral dialético) de língua alemã: Luckács sem dúvida (em História e Consciência de Classe sobretudo, mas a idéia de reificação não deixa de levantar algumas dificuldades que examinaremos em outro lugar), e sobretudo Adorno, para citar só os maiores (no que concerne a Adorno, ver, por exemplo, as citações que faz dele Backhaus: “O princípio da equivalência do trabalho social faz da sociedade um abstrato e o mais real (efetivo) precisamente como Hegel o ensina do conceito enfático do conceito”, Drei Studien zu

Hegel, Frankfurt, 1963, p. 32; citado por Backhaus, “Materialíen zur Rekonstruktion der Marxschen Werttheorie”, 1,in Gesellschaft..., 1, op. cit. , p. 64). “O valor de troca diante do valor de uso, (algo) puramente pensado(ein bloss Gedachtes) reina sobre

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a necessidade humana (Der Positivismusstreit in der deutschen Soziologie, Neuwied, 1969, p. 94; citado por Backhaus, “Materialien...”, I, op. cit., p. 64)

Observemos que, num apêndice à sua tese de doutoramento, Marx faz uma referência explícita ao argumento ontológico e tenta reabilitá-lo, mas num contexto que, se ultrapassa sem dúvida o universo feuerbachiano, tem ainda alguma coisa de subjetivo. É de qualquer modo interessante citar esse texto de juventude: "O antigo Molloch não reinou? O Apoio de Delfos não era uma força efetivamente real na vida dos gregos? Aqui, também a crítica de Kant não procede(heisst... nicht). Se alguém supõe (sich vorstellt) possuir cem talers, se essa representação não for para ele uma representação qualquer, subjetiva, se ele acredita nela, os cem talers imaginados têm para ele o mesmo valor que cem talers efetivamente reais. Por exemplo, ele contrairá dívidas com base(auf) da sua imaginação, ela terá eficácia (wirken) do mesmo modo (wie) que o conjunto da humanidade contraiu dívidas com base nos seus deuses. Pelo contrário, o exemplo de Kant poderia fortalecer o argumento ontológico.Talers efetivamente reais têm a mesma existência que deuses imaginados. Um taler real tem existência em algum lugar que não seja a representação, ainda que uma representação universal ou antes social dos homens? Introduza papel-moeda num país em que não se conhece esse uso do papel, e todos rirão da sua representação subjetiva. Venha com os seus deuses a um país em que estão em curso ( gelten) outros deuses, e lhe provarão que você sofre de imaginações e de abstrações (...)”.(Werke, Ergänzungsband, “Anmerkungen zur Doktordissertation”, “Anhang”, op. cit ., p. 370, grifado por Marx, ver “Dissertation, Appendice”,in Marx, Différence de la Philosophie de la Nature chez

Démocrite et Epicure, trad. franc., introdução e notas por Jacques Ponnier, Ducros, Bordeaux, 1970, p. 285, 6)

(55) A referência ao valor enquanto hipótese se encontra, segundo Engels, num artigo de Schmidt sobre o livro III de OCapital, publicado naSozialpolitisches Cen tralblatt (Berlim) de 25 de fevereiro de 1895 (n? 22). A referência à ficção, sempre segundo Engels, está numa carta de Schmidt a Engels. As respostas de Engels a Schmidt se encontram emWerke, 39, op. cit., 1973, pp. 430-434 (carta de Engels a Schmidt de 12 de março de 1895) e p. 46 (carta de Engels a Schmidt de 6 de abril de 1895). Engels retoma o problema e desenvolve a sua posição em “Ergänzung und Nachtrag zum III, Buche des ‘Kapital’, I. Wertgesetz und Profitrate",Werke, 25,

op. cit., pp. 904 e segs.; trad. franc. “Supplément (complément e supplément au livre III du Capital)'', 1895,in Le Capital, 1. III, t. I (VI), trad. de Mme. C. Cohen-Solal e Gilbert Badia, Ed. Sociales, 1957, pp. 30 e segs.

(56) O valor do conjunto das mercadorias produzidas por um setor de produção, supondo uma rotação do capital circulante, é igual a c + v + pl, em que c é o capital constante consumido, v o capital variável e pl a mais-valia. O preço de produção do conjunto das mercadorias é igual a c + v (soma que aparece como preço de custo) + p, o lucro médio (sendo este último igual ao produto da totalidade do capital investido — e não somente a parte consumida — pela taxa média de lucro). Voltaremos a isso.

(57) Engels dá uma primeira resposta, que se vale da distância entre o conceito e a realidade, na carta de 12 de março de 1895.(Werke, 39, op. cit., pp. 430-434) Na carta de 6 de abril de 1895(idem, p. 461) ele anuncia uma retomada do problema.

(58) Werke, 25, op. cit. “Ergänzung und Nachtrag...”, p. 904; ver Le Capital, 1. III, t. I (VI), “Supplément”, op. cit ., pp. 30-31.

(59) Werke, 25, Das Kapital, III, op. cit., p. 186; Le Capital, 1. HI, t. I (VI), p. 193; Oeuvres, Économie II, op. cit., pp. 969-970. Texto citado adiante, na nota 73.

(60) Werke, 25, op. cit., “Ergänzung und Nachtrag...”, p. 909; Le Capital, 1. III, t. I (VI), “Supplément”, op. cit., p. 35.(61) Ver por exemplo: L. Althusser, “L’objet duCapital", in L. Althusser e E.

Balibar, Lire Le Capital, I, Maspero, 1968, pp. 97-100; Carlo Benetti, Claude Bertho- mieu e Jean Cartelier, Économie Classique/Économie vulgaire, Presses Universitaires de Grenoble-Maspero, 1975, p. 98 (resenha do texto de Hilferding sobre Böhm-Ba-

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werk); Pierre Salama, “À nouveau sur la transformation des valeurs en prix de production”, in Cahiers d ’Économie Politique, 3, Actes du Colloque Sraffa, Amiens, P.U.F.,1976, p. 86.

(62) Ê verdade que, antes do capitalismo, a lei do valor téria, segundo Engels, uma validade geral e direta, o que deixaria em aberto a possibilidade de uma validade

indireta... Mas primeiro, o inicio do texto diz simplesmente que a lei é válidaem geral até a emergência do capitalismo, o que parece, sem dúvida, excluí-la deste, e por outro lado, toda a argumentação de Engels se constrói e se funda no pré-capitalismo, como se o espaço deste último fosse por excelência o da lei do valor.

(63) E, caso a análise confirme que há efetivamente erro por parte de Engels, se proporia também a questão: por que finalmente o velho Engels se engana, ele que, afinal de contas, conhecia bem o problema?

(64) Castoriadis, art. cit., pp. 20 e segs. ; Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit.,p. 267.

(65) Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., pp. 73-74. Ver Dognin, Les "Sentiers Escarpés"..., I, op. cit., pp. 201-202.

(66) Castoriadis, art. cit., pp. 20-21; Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 267, grifado por Castoriadis.(67) Castoriadis, art. cit., pp. 18-19, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit.,

pp. 265-266, grifado por Castoriadis.(68) Werke, 13, Zur Kritik derpolitischen Okonomie, op. cit., p. 44;Contribu

tion à la Critique de l ’Économie Politique, trad. de Maurice Husson et Gilbert Badia, Ed. Sociales, 1957, p. 35.

(69) Werke, 25, Das Kapital, III, op. cit., p. 97; Le Capital, 1. III, t. I (VI), op. cit., p. 105. O texto diz que só o capital realiza(realisiert) a determinação do valor. Mas ele diz ao mesmo tempo que a determinação do valor é não o tempo de trabalho em gérai, mas o tempo de trabalho socialmente necessário. E o valor nâo é se essa determinação não for realizada.

(70) Werke, 25, Das Kapital, III, op. cit., p. 298;Oeuvres, Économie II, op. cit., pp. 1061-1062.(71) Para as sociedades em que não há troca, ver a secção II deste trabalho, em

que comentamos o parágrafo 4 sobre o fetichismo do capítulo 1 de OCapital, em particular a comparação que Marx estabelece entre por um lado o capitalismo, e por outro, diferentes formas não capitalistas. Como vimos, é por erro que Castoriadis pode falar de valor a propósito desse caso.

(72) A análise dos capítulos 1 e 2 do livro I é de ordem lógica, mas ela está entrecortada por desenvolvimentos históricos.

(73) “A troca de mercadorias começa lá onde terminam as comunidades, nos seus pontos de contato com comunidades estrangeiras ou com membros de comuni

dades estrangeiras (...). Sua relação de troca quantitativa é de inicio totalmente acidental. Elas são trocáveis através de ato de vontade daqueles que as possuem ( Besitzer), (ato de vontade que consiste em) aliená-las reciprocamente. Entretanto, a necessidade de objetos de uso estrangeiros se fixa progressivamente. A repetição constante da troca faz dela um processo social regular. Com o correr do tempo, pelo menos uma parte dos produtos do trabalho deve ser produzida intencionalmente com vistas à troca. A partir desse momento se consolida, por um lado, a separação entre a utilidade das coisas para a necessidade ( Bedarf) imediata e sua utilidade para a troca. Seu valor de uso se separa do seu valor de troca. Por outro lado, a relação quantitativa em que elas se trocam se torna dependente da sua própria produção. O hábito as fixa como grandezas de valor ( Wertgròssen). (...)(...) Uma circulação em que os possuidores de mercadorias trocam e comparam os seus próprios artigos com diversos outros artigos nunca se encontra, sem que diversas mercadorias de diversos possuidores de mercadorias, no interior da sua circulação (Verkehr) sejam comparadas comovalores com uma e mesma terceira espécie de mercadorias.”(Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., pp. 102-103;Oeuvres, Économie, I, op. cit., pp. 623-624, grifo nosso) “Independentemente(abgesehen), pois,

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MARX: LÖGICA E POLÍTICA 135

da dominação dos preços e do movimento dos preços pela lei do valor, é, pois, inteiramente apropriado considerar os valores das mercadorias não só teoricamente mas também historicamente como anteriores(das prius) aos preços de produção. Isto vale para as situações em que os meios de produção pertencem ao trabalhador, e esta situação se encontra tanto no mundo antigo quanto no mundo moderno, para o (caso do) camponês que possui a terra e a trabalha por si mesmo, como para o (caso do) artesão. Isto concorda também com a nossa opinião, emitida anteriormente, de que o desenvolvimento dos produtos em mercadorias surge através da troca entre diferentes comunidades, e não entre os membros de uma e mesma comuna. Como para essa situação originária, isto vale para situações posteriores, fundadas na escravidão e na servidão, e para a organização corporativa do trabalho artesanal, enquanto os meios de produção imobilizados em cada ramo de produção só podem ser transferidos com dificuldade de uma esfera a outra e que, no interior de certos limites, as diferentes esferas da produção se relacionam umas às outras como países estrangeiros ou comunidades comunistas. / Para que os preços pelos quais se trocam entre si as mercadorias correspondam aproximadamente aos seusvalores, é necessário somente 1) que a troca entre diferentes mercadorias deixe de ser puramente acidental ou ocasional; 2) que, na

medida em que consideramos a troca direta de mercadorias, estas mercadorias sejam produzidas de um lado e do outro em quantidades relativas que correspondam aproximadamente às necessidades recíprocas, (coisa) a que leva a experiência da venda, e o que brota assim como resultado do próprio intercâmbio contínuo; e 3) na medida em que falamos de venda, nenhum monopólio natural ou artificial possibilite a uma das partes contratantes vender acima dovalor ou a force a vender abaixo dele.”(Werke, 25, Das Kapital , III, op. cit., pp. 186-187, Le Capital, 1. III, t. I (VI), op. cit., pp. 193-194;Oeuvres, Economie, II, op. cit ., pp. 969-970, grifo nosso) E o início desse texto que Engels cita.

(74) A resposta que consiste em dizer que antes do capitalismo há forma do valor, expressão do valor (valor de troca), mas não valor, não é incorreta, mas ela não permite responder, a nosso ver, a todos os problemas que levantam os textos.

(75) Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit ., p. 102;Oeuvres, Economie, I, op. cit., texto citado anteriormente.

(76) Aristóteles, De la Génération et de la Corruption, I, 317 b, 15, trad. franc. de Charles Mugler, Les Belles Lettres, Paris, 1966, p. 11, grifo nosso.

(77) Descrevendo em Le Temps retrouvé o que ele chama de maturação (matu- ration), a do ser-escritor do narrador, Proust se exprime igualmente por uma contra dição: “E compreendi que todos aqueles materiais da obra literária eram a minha vida passada; compreendi que eles não tinham vindo a mim, nos prazeres frívolos, na preguiça, na ternura, na dor, armazenados por mim, sem que eu adivinhasse mais o seu destino, a sua própria sobrevivência, do que a semente ao pôr de reserva todos os

alimentos que alimentarão a planta. Como a semente, eu poderia morrer quando a planta se tivesse desenvolvido, e eu me encontrava tendo vivido para ela sem o saber, sem que a minha vida parecesse jamais ter de entrar em contato com aqueles livros que eu gostaria de escrever e para os quais, quando outrora me sentava à minha mesa, não encontrava assunto. Assim, toda a minha vida até o dia de hoje poderia e não poderia

ser resumida sob esse título: uma'vocação. Ela não poderia ser no sentido de que a literatura não havia desempenhado nenhum papel na minha vida. Ela poderia ser porque esta vida, as lembranças de suas tristezas, de suas alegrias, formavam uma reserva semelhante a esse albúmen que está contido no óvulo das plantas e do qual este obtém seu alimento para se transformar em semente, nesse tempo em que se ignora ainda que o embrião de uma planta se desenvolve, o qual é entretanto o lugar de fenômenos químicos e respiratórios secretos mas muito ativos. Assim a minha vida se relacionava com aquilo que levaria à sua maturação”. (Proust, Â la Recherche du Temps perdu, Le Temps retrouvé, Paris, Gallimard, 1964, p. 262, trad. nossa, grifo nosso)

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MARX: LOGICA E POLITICA 137

substituem aparece (erscheint) por é (est); a primeira expressão não só se encontra no texto, como convém melhor em se tratando de uma história.

(80) Castoriadis, art. cit., pp. 12-13, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., pp. 259-260.

(81) Ibidem.(82) A rigor, a sua composição de valor.(83) Werke, 25, Das Kapital III, op. cit., p. 158, Le Capital, 1. III, t. I (VI),

op. cit., p. 166, grifo nosso.(84) Ibidem.(85) Werke, 25, Das Kapital III, op. cit., p. 162, Le Capital, 1. III, t. I (VI), op.

cit., p. 170;Oeuvres, Économie II, op. cit., p. 945, grifo nosso.(86) Ibidem.(87) Se eles conservam lado a lado a essência e o fenômeno, a essência, pelo fato

mesmo de ser essência, prevalece sobrei o fenômeno. De resto, cotno veremos mais adiante, Ricardo encara às vezes os desvios deste último em relação à primeira como exceções a ela.

(88) Werke, 26, 3,Theorien über den Mehrwert, op. cit., p. 64; Théories sur la

Plus-value III, op. cit., p. 77, grifado por Marx.(89) Werke, 26, 3,Theorien über den Mehrwert, op. cit., p. 65; Théories sur la Plus-value, III, op. cit., p. 78, grifado por Marx. Como explicam os editores, diferentemente do que ele faz emO Capital, Marx emprega às vezes, nasTeorias sobre a

Mais-valia, o termo Kostpreis ou Kostenpreis (preço de custo) no sentido de preço de produção. (VerWerke, 26, 3,Theorien... III, op. cit., pp. 593-594, n. 6 dos editores) Este parece ser o caso no texto.

(90) Werke, 26, 2,Theorien über den Mehrwert, op. cit., p. 171; Théories sur la Plus-value, II, op. cit., p. 194, grifado por Marx.

(91) “No caso, esse termo deve ser entendido (...) no sentido de preço de produção.” (Nota 6 dos editores,Werke, 26, 3, Theorien..., III, op. cit., p. 593, "Anmer- kungen”)

(92) Werke, 26, 3,Theorien über den Mehrwert, op. cit., p. 8; Théories sur la Plus-value, III, op. cit., p. 9.(93) Também aqui Kostpreis parece querer dizer preço de produção.(94) Torrens, grifado por Marx. A continuação é de Marx.(95) Poderíamos dizer que, até aqui, Marx está de acordo com Torrens. Ver

mais adiante.(96) Werke, 26, 3,Theorien über den Mehrwert, III, op. cit ., pp. 66-68;Théo

ries sur la Plus-value, III, op. cit ., p. 81.(97) Isto não contradiz o que foi dito sobre o fenômeno (a propósito do trabalho

abstrato) na primeira parte deste texto. Trata-se aqui de um fenômeno que é categorial (o lucro) e não simplesmente da ordem do vivido como a experiência da indiferença do trabalho. De um modo mais geral, observemos que temos aqui uma aparição negada da essência, enquanto que na primeira parte, onde se tratava da circulação simples, a essência ainda não aparecia.

(98) Aqui analisamos o problema da relação (lógica) entre formas históricas, a saber, a produção de mercadorias ou os “bolsôes mercantis” no pré-capitalismo, e o capitalismo. No texto de Marx, se trata da passagem da produção simples como aparência do sistema, ao capitalismo enquanto capitalismo (à sua essência), problema de que tratamos no primeiro e sobretudo no quarto ensaio. Mas o texto de Marx, que citamos, serve também para o problema da relação (lógica) entre formas históricas.

(99) Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 613;Oeuvres, Économie, I, op. cit., p. 1090.

(100) “Veremos, resumidamente, que essas operações são ‘na verdade’ impossíveis, que o Valor e a Substância (como de resto a sua grandeza), longe de ser “determinados”, são antes nebulosas de enigmas, e que esta situação está profundamente firmada no caráter antinómico do pensamento de Marx.” (Castoriadis, art. cit ., pp.

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9-10, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 256, grifo nosso) “Um Valor e qualqu outra coisa Só poderia ‘adquirir’ tal forma particular se ele já estivesse lá. O paradoxo, a antinomia do pensamento de Marx é que esse Trabalho que modifica tudo e modifica constantemente, ele próprio, é ao mesmo tempo pensado sob a catego Substância/essência(Castoriadis, art. cit., p. 17, Les Carrefours du Labyrinthe

op. cit., p. 264, grifo nosso).“A antinomia que perpetuamente divide o pensament Marx entre a idéia de uma ‘produção histórica’ das categorias sociais (e do pensam e a idéia de uma ‘racionalidade’ última do processo histórico (. ..) se deaqui.” (Castoriadis, art. cit., p. 20, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 267grifo nosso)

(101) Ver a esse respeito a segunda parte deste texto.(102) Castoriadis, art. cit., p. 21, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p.

268.(103) Dir-se-á talvez que seria preciso analisar igualmente os outros text

Castoriadis, em particular aqueles em que ele faz a crítica da idéia clássica de t Chegaremos lá. Mas observemos desde já que o que ele diz sobre a relação entre e política em Marx é sumário, e tem o defeito de projetar o pensamento de Ma tradição clássica.

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Circulação de mercadorias, produção capitalista

4

Marchands, Salariat et Capitalistes, de C. Benetti e J. Cartelier,1se apresenta como “um esboço dos princípios gerais da teoria da mercadoria, da relação salarial e do capital” (p. 7), esboço que pretendeser umadémarche original em relação à economia clássica, à economianeoclássica e à crítica da economia política de Marx. Nosso texto nãoterá por objeto — ou por objeto imediato — nem as teses positivas dolivro, nem o conjunto dos desenvolvimentos críticos que visam essasalternativas, mas somente os que se referem à obra de Marx. Entretanto, nossos resultados devem ter conseqüências para a apreciação doconjunto da obra. Por outro lado, precisamos que, embora o ponto de partida e o final sejam a crítica do livro de Benetti e Cartelier, julgamosoportuno dar um desenvolvimento maior a vários pontos relativos àobra de Marx. Apresentamos, assim, os nossos próprios resultados, aosquais voltaremos em outro lugar, em forma mais sistemática.

Se a crítica da leitura de Marx a que procedem Benetti e Cartelier pode incidir sobre a apreciação do conjunto do livro, é por um ladodevido à relação que eles reconhecem existir entre as suas análises positivas e os seus movimentos críticos, e por outro lado em razão do lugarque ocupa no livro a crítica de Marx. Com efeito, para Benetti e Cartelier, há um elo entre as suas teses críticas e as suas teses positivas.Pelo menos no que se refere ao ponto de partida, são as primeiras que

justificam essas últimas. Com efeito, eles afirmam a sua “atual incapacidade de fundamentar senão negativamente” o seu “ponto de partida”(p. 15); a escolha das hipóteses de que partem não se explicaria “tanto

pela sua evidência, pelo menos aparente, do que por uma tomada de posição crítica em relação à teoria econômica (...)” . ( Ibidem) Nessascondições, uma crítica de suas críticas poderia ter, ao que parece, umalcance considerável. E tanto mais em se tratando da crítica de Marx,

já que Marx ocupa certamente, no livro, um lugar privilegiado. Marx é“o autor que mais contribuiu para esclarecer as diversas questões ligadas à abordagem econômica da sociedade”, (p. 139) E se “as res postas que ele dá aos problemas são inaceitáveis” (ibidem) (mas elessupõem uma não univocidade do seu pensamento: haveria também um“bom” lado de Marx) a sua obra tem, de qualquer modo, para os doisautores, “um papel primordial” , (p. 8)

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Os problemas que serão tratados aqui são, em geral, de naturezalógica, o que, diga-se de passagem, deveria justificar que um não economista ouse comentar um livro de economia de uma tecnicidade considerável. Mas é preciso se entender sobre o termo “lógica” . Num passo

na terceira parte (pp. 142-143) Benetti e Cartelier se recusam a sus pender a análise do seu objeto, a forma do valor em beneficio de umadiscussão prévia sobre o método. Concordamos com eles nessa recusaem admitir uma questão prévia de método, só que a desenvolveríamosdiferentemente. Em certo sentido, seria preciso ir ainda mais longe. Ométodo é ele próprio interior ao objeto, ele é um momento deste. Porisso mesmo, não se tratará aqui de epistemología, como se costumadizer, entendendo a expressão, como se deve entender, como uma ex

pressão que designa uma teoria subjetiva da ciência. Tratar-se-á, narealidade, de lógica, entendendo-a como uma teoria da ciência que é aomesmo tempo uma teoría do objeto. Por outro lado, pensando numoutro passo do livro, gostaríamos de dizer alguma coisa sobre o queestá em jogo atualmente, inclusive para uma tomada de posição emrelação a ele, quando, na análise da obra de Marx, se discutem pro blemas lógicos. A propósito do trabalho abstrato, os dois autoresescrevem (p. 165) “que a questão não é discutir uma enésima vez osdiversos aspectos dessa abstração” , o que leva a pensar que, para eles,a discussão pelo menos de certos problemas que têm implicaçõeslógicas se esgota ou perde o interesse. A esse respeito diríamos que estaríamos de novo de acordo com eles, Se se tratasse de escrever o que jáfoi escrito a propósito desse tipo de problema. Mas não estamos deacordo se, da abundância dos textos sobre certos problemas, eles concluem que os problemas já estão resolvidos ou que se trata de falsos problemas. Na realidade, é somente num desses dois casos que sedeveria abandonar a questão. Ora, se aparentemente essa alternativa éverdadeira, só se trata de uma aparência. Pelo contrário, estamosconvencidos de que, por um lado, esses problemas não são falsos pro blemas (e a esse respeito, em geral, todos estaríamos provavelmente de

acordo); mais do que isto, de que a discussão dessas questões, apesarde tudo o que se escreveu a respeito, começa apenas a ser feita deum modo, digamos, pertinente. Insistimos nisso, porque, do fracassodas duas tendências clássicas de leitura de Marx, as únicas pelomenos que foram reconhecidas na França, o humanismo e o historicismo, por um lado, o anti-humanismo e o anti-historicismo, poroutro — tendências que são na realidade complementares, comoo mostramos em outro lugar2 —, chegou-se à crença bem ilusóriae bem perigosa (para a compreensão científica, bem entendido!)

de que é preciso abandonar esse tipo de questão. Chegou-se a umasituação em que aquele que tenta dizer coisas novas sobre esses problemas é raramente lido, porque... por que já se ouviu tanto falardisso!

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Mas se, de um modo geral, não faremos aqui mais do que umaespécie de reconstrução da apresentação deO Capital, de maneira amostrar as dificuldades da leitura de Benetti e Cartelier, tentaremostambém mostrar, no fim do texto, embora limitadamente, em que direções uma crítica deO Capital ou um desenvolvimento crítico das tesesde O Capital poderia, a nosso ver, ter bom resultado. Na realidade,as indicações que daremos a esse respeito parecem convergir pelomenos em termos gerais com as idéias expressas em certos passos dotexto de Benetti e Cartelier, passos que indicam o que parece ser oobjetivo final de suas investigações críticas. Mas esses passos ficammais ou menos marginais, no livro, porque eles estão muito menosligados aos desenvolvimentos críticos principais do que pensam os doisautores. Qualquer que seja a importância da reconstrução da crítica

marxista clássica da economia política, cremos que a articulação comesse segundo registro cujo horizonte é a superação do discurso clássicoé indispensável, tanto no quadro da crítica do livro de Benetti e Cartelier, quanto como perspectiva geral.

Nossas considerações se desenvolverão em torno de dois centrosde problemas que em parte se cruzam: primeiramente, em tomo dateoria da circulação de mercadorias, isto é, em torno de questões que sesituam nointerior da secção I, sobre a mercadoria e o dinheiro, do livroI de OCapital-, em segundo lugar, em tomo de problemas que concernem, em primeiro lugar, à relação entre a secção I e a secção II, masque de fato se relacionam com o conjunto da construção do livro I e, emcerta medida, com o conjunto da apresentação deO Capital. Serãoesses os objetos das duas partes deste texto.

Os resultados aos quais chegaremos, assim como, de um modogeral, os problemas que serão discutidos aqui, têm algo em comumcom o texto anterior. Retomaremos alguns pontos desse texto, que têmuma relação direta com as questões que propõe a obra aqui examinada — para desenvolvê-los ou completá-los.

I. MERCADORIA E DINHEIRO

a) O ponto de partidaPara Benetti e Cartelier é ilusório fazer da mercadoria o ponto de

partida da apresentação, como o faz Marx depois de ter fixado o seuobjeto geral, “as sociedades em que domina o modo de produçãocapitalista” . No livro deles, a apresentação, que para eles é uma dedu

ção, começa por uma “primeira hipótese” pela qual são introduzidas por um lado aseparação como vínculo entre os elementos da sociedade,no caso, o que eles chamarão mais adiante de “sociedade mercantil”, por outro lado a moeda, “primeiro objeto social” (p. 17), “expressão da

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separação” (p. 12); “(...) a sociedade é dada e o vínculo entre os seuselementos é a separação, cuja expressão é a unidade de conta comum”(p. 12) Um começo como esse questiona na realidade não só o procedimento que consiste em fazer da mercadoria o primeiro objeto da apresentação, mas também o conjunto do trajeto que vai da mercadoria aodinheiro, inclusive e principalmente a análise da forma do valor. Paraanalisar a legitimidade dessa crítica, explicitada na terceira parte dolivro, consagrada a Marx, é preciso retomar e explicitar o procedimento de Marx.

Em primeiro lugar, precisamos resumidamente (e por enquantosuperficialmente, porque essa questão será tratada na segunda partedeste texto) qual é o objeto da secção I de OCapital, ponto que éraramente bem compreendido. O objeto da secção I é a teoria dacirculação simples enquantoaparência do modo de produção capitalista. Assim, a secção I trata da circulação de mercadorias e, entretanto, a teoria da circulação de mercadorias põe os fundamentos quenos remetem à produção. Por sua parte, Benetti e Cartelier querem, na primeira parte do seu texto, fazer a teoria da “sociedade mercantil” .3Isto levanta problemas importantes aos quais voltaremos. Observemossomente, por enquanto, já que a teoria deles se apresenta como umaalternativa à primeira secção (pelo menos, a crítica da primeira secçãodeveria nos conduzir à maneira deles de “deduzir”) — e qualquer queseja a diferença entre os objetos respectivos das duas teorias — que élegítimo criticar o seu procedimento, como já o justificamos para o casogeral, a partir do que eles escrevem sobre a primeira secção deO Ca

pital. De resto, se deve considerar essa diferença que, precisamente,não é percebida pelos dois autores, como uma das fontes das dificuldades do texto.

O objeto da secção I de OCapital é, pois, a teoria da circulaçãosimples, enquanto aparência do modo de produção capitalista. Nonível dessa aparência, é preciso começar pelo objeto mais simples.Reduzida à maior simplicidade, esta aparência revelaria, digamos, doitipos de objetos — as mercadorias e o dinheiro4—, os quais poderiamservir como ponto de partida. Marx escolheu as mercadorias e não odinheiro como ponto de partida, e aquém das mercadorias, ele escolheu a mercadoria individual. Por que ele não começa pelo dinheiro? No que se refere à forma do valor, Benetti e Cartelier supõem que aapresentação de Marx se explica pela “evidência de que a moeda(monnaie) é mercadoria”, (p. 143) Essa deve ser também a opiniãodeles quanto às razões que levaram Marx a começar o conjunto daapresentação pela mercadoria. Voltaremos ainda sobre essa maneirade exprimir a relação que existe em Marx entre mercadoria e dinheiroPor enquanto, observemos somente que o que pressupõe o início de OCapital no que se refere ao dinheiro (na medida em que é possível precisar tal pressuposição) é menos do que isto. A pressuposição é antes

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MARX: LÓGICA E POLITICA 145

de que o dinheiroaparece como algo mais complexo do que a mercadoria. Com efeito, no plano da experiência imediata, o dinheiro —o dinheiro metálico5 — se apresenta como um objeto que tem algosemelhante à mercadoria, mas ao mesmo tempo como diferente dela, pois precisamente ela se apresenta como moeda e não como mercadoria. Sendo dinheiro, uma moeda de ouro é, ao mesmo tempo, umobjeto de ouro, como um objeto útil qualquer. Menos do que isso:mesmo se ela não se confunde com uma mercadoria, uma moeda deouro se revela com um “fundo” de mercadoria. Essa aparência de sernão simplesmente uma mercadoria, mas algo mais do que uma mercadoria, é suficiente para que o dinheiro seja excluído como ponto de partida. E isto porque não podemos dizer que a mercadoria — a mercadoria individual, veremos depois a relação entre duas mercadorias —leva consigo “vestígios” do dinheiro. Sendo o objeto mais simples, amercadoria será, pois, o ponto de partida; e por razões idênticasàquelas que acabamos de desenvolver, é de se crer que se encontraráuma passagem que conduza da mercadoria ao dinheiro. As pressuposições implícitas e o ponto de partida são sem dúvida algo “dado”(un donné),6 como é de resto o caso em qualquer apresentação dialética,a qual não deve começar nem por princípios ou fundamentos dedutivos, nem por verdades empíricas. Mas tais dados serão desenvolvidos,mais do que isto, serão “negados” ,7 o que não quer dizer que elessejam pontos de partida provisórios.8 A apresentação dialética é passagem da aparência à essência, mas a aparência permanece como apa

rência,

b) Valor de uso, trabalho concreto, divisão do trabalho

Entre o início deO Capital e a análise da forma do valor, isto é, adialética que conduz da mercadoria — ou das mercadorias — ao dinheiro, se situa o lugar em que são introduzidas as noções de valor deuso, valor de troca, valor, trabalho abstrato, trabalho concreto, divisãosocial do trabalho. Ê preciso primeiro se deter nesses conceitos. Começaremos por valor de uso, trabalho concreto, divisão social do trabalhoe o que até aqui não foi em geral suficientemente desenvolvido, a relação entre matéria e forma emO Capital.9

Benetti e Cartelier questionam a relação estabelecida por Marxentre o trabalho concreto e o trabalho abstrato, e em particular oestatuto que ele atribui ao trabalho concreto. Suas observações sesituam no contexto da crítica da forma do valor (nota 1 da terceira parte do livro), e será necessário voltar a elas quando tratarmos daforma do valor. Mas devem introduzir desde já essa discussão, namedida em que ela diz respeito a conceitos anteriores à análise daforma do valor.

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MARX: LOGICA E POLITICA 147

ficada) E entretanto, se voltamos ao sistema de formas, o valor de usosó aparece comosuporte material, o que significa que ele representará,no interior do sistema de formas, o lado damaterialidade. Em outrostermos, há um movimento que, do capitalismo,14 nos conduz a umuniverso antropológico pressuposto — primeira “negação” —; e desseuniverso antropológico — segunda “negação” — nos reconduz aocapitalismo. Esse movimento é passagem da forma (não ainda explicitada enquanto forma) à matéria, depois volta à forma: mas no interior dessa forma, que ela própria se separa como forma e matéria, ovalor de uso ocupa o lado da matéria. Se se quiser completar estaanálise da relação matéria e forma (nos limites dos dois primeiros parágrafos do capítulo primeiro) seria preciso acrescentar dois pontos.Por um lado, em direção regressiva, seria preciso observar que, se aformá social se desdobra em matéria e forma, do lado da matéria ou do

conteúdo15 — isto é, do lado das determinações antropológicas gerais(que são postas como a matéria da forma no interior do modo de produção considerado) — haverá também desdobramento. Assim, a propósito do trabalho concreto, Marx escreverá que “na sua produção‘o homem’ só pode ‘proceder como a própria natureza, isto é, sómodificar as formas da matéria (die Formen der Stoffe)' ”. (W.23, K.I, p. 57; Dognin,op. cit., pp. 182-183, trad. nossa) E portanto, mesmo sea produção do homem é análoga à da natureza, “se se retirar os (...)trabalhos úteis (...), resta sempre um substrato material (eira Materielles Substrat) que é dado por natureza (von Natur vorhanden ist) sem intervenção do homem”. (W.23, K.I, p. 57; Dognin,op. cit., pp. 182-183)16 Por outro lado, em direção progressiva, mas aqui adiferença é antes entre forma e conteúdo17 (Gehalt ou Inhalt), seria preciso dizer ainda que a forma, em sentido estrito, isto é, a formano interior da forma, se desdobra ela própria em forma (forma fenomenal, aparência) e conteúdo, isto é, essência ou fundamento. Assim,após as distinções já efetuadas, será preciso distinguir o valor de troca,forma fenomenal (Erscheinungsform) do valor, do valor seu conteúdo{Gehalt).

Os pontos mais importantes para a nossa discussão são, entretanto, as duas primeiras divisões, forma e matéria enquanto diferençaque separa o capitalismo do universo antropológico geral, e forma ematéria como diferença interior ao capitalismo. O que foi dito acima a propósito do valor de uso (na sua relação com o valor) pode ser dito,mudando pouca coisa, a propósito do trabalho concreto como dadivisão social do trabalho (relativamente ao trabalho abstrato). Comefeito, a que remete finalmente a crítica de Benetti e Cartelier? O pro blema deles é que lhes parece difícil que o trabalho concreto seja

reconhecido como “social” — o universo do “social”, isto é, daquiloque é socialmente reconhecido, correspondendo evidentemente ao universo das formas em oposição ao conteúdo antropológico — se a

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mente por isso que essa determinação “material” é um momento daforma —, no sentido de que o trabalho considerado enquanto trabalhoconcreto, se apresenta como conjunto de trabalhos privados e independentes uns dos outros. Ê o que escreve Marx no texto da primeiraedição deO Capital, citado por Benetti e Cartelier: “(...) os valores deuso (...) só são mercadorias porque eles são produtos de trabalhos privados independentes uns dos outros, trabalhos privados que, entretanto, dependem materialmente (stofflich) uns dos outros enquantomembros particulares, ainda que autônomos, do sistema natural eespontâneo (naturwüchsig) da divisão do trabalho. Eles estão, pois,socialmente ligados precisamente pela suadistinção, pela suautilidade

particular”. (Dognin,op. cit., p. 83, grifado por Marx, salvo “materialmente” e “socialmente ligados”, que nós grifamos) Que os trabalhos sejam aqui “trabalhos privados independentes” e ao mesmo tempo

“socialmente ligados” pode parecer estranho (e finalmente todo o pro blema está lá). Mas isto quer dizer que embora ligados — materialmente ligados — eles não perdem entretanto as condições de trabalho-dos-indivíduos, de trabalho de sujeitos.

Mas que os trabalhos satisfaçam a “uma necessidade socialdeterminada” (W.23, K.I, p. 87; Dognin,op. cit., p. 218), que elesfaçam parte do sistema da divisão do trabalho — e eles fazem parte naqualidade de trabalhos concretos — não é suficiente para que os seus

produtos se tornem efetivamente produtos-para-outrem, para que elesmesmos sejamefetivamente trabalhos-para-outrem. Para isto é necessário que à determinação social material se acrescente a determinaçãoformal — que entretanto ainverte. Com efeito, é somente sob a formada abstração (nova determinação social que seopõe à anterior)26 que o

produto do trabalho pode efetivamente passar para as mãos de outrem.Mas no interior dessa nova determinação, o trabalho não aparecerámais como trabalhos-privados-dos indivíduos (os indivíduos serão “negados”, transformando-se em suportes), e os trabalhos (concretos)tornar-se-ão trabalho (abstrato). Da “socialidade” 27 externa e materialse passará à “socialidade” intema, formal, que&contradiz.

Outra coisa ocorre com os modos não capitalistas ou não mercantis. Nesse caso, igualmente, a posição da determinação geral é“negação”, que nos introduz no interior de um sistema de formassociais.28 Mas, no interior do sistema de formas, não há mais desdo

bramento entre matéria e forma, ou esse desdobramento toma um sentido completamente diferente. Nos modos de produção não mercantis,a determinação material não se abre a nenhuma determinação socialdistinta de — e oposta a — uma determinação formal em sentidoestrito.29 Não haverá mais a dualidade trabalhos privados indepen

dentes, ligados de um modo externo (e com significação subjetiva/trabalho abstrato), isto é, a dualidade entre o fato de pertencer aosistema da divisão do trabalho e a condição-de-trabalho-efetivamente-

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para-outrem: “a forma natural do trabalho,30 sua particularidade (...)é aqui a sua forma imediatamente social”. (W.23, K.I, p. 91; Dognin,op. cit., p. 223)

Ora, é essa oposição entre as duas determinações sociais do

trabalho no interior do capitalismo e da produção de mercadorias queBenetti e Cartelier apreendem — é o mérito deles — como contraditória. Só que eles apreendem essa contradição como contradiçãosubjetiva do pensamento de Marx. No fundo, o sentido da sua crítica mostrar que Marx afirma queo social não é o social. E com efeito, se éassim, não seria melhor dar um nome diferente a cada urna das duasdeterminações (denominando-as pelos seus predicados) de modo aevitar a contradição? Mas se Marx diz duas vezes “social” (exprimindo, com isto, aquilo que é ao mesmo tempo sujeito da matéria e da

forma) é porque “socialidade material” e “socialidade formal” não sãoaqui determinações simplesmente complementares, mas determinaçõeopostas. Se, por exemplo, por ocasião de uma crise, objetos que servem para satisfazer necessidades sociais (portanto objetos já sociais) não stomam objetos efetivamente sociais (não podem efetivar-se como objetos-para-outrem) é porque no capitalismo (ou na produção de mercadorias) o social pode excluir o social, ou o social contradiz o social.Tudo o que Marx faz é apresentar essa realidade contraditória comocontraditória. Benetti e Cartelier acharam isto — e com razão —

contraditório e obscuro. Mas a contradição e a obscuridade só sãodefeitos lógicos quando a realidade é clara e não-contraditória. Casocontrário, são elas — e não a identidade e a clareza — que representama boa causa da racionalidade lógica.

c) Valor de troca, valor, trabalho abstratoCompletemos a análise com algumas considerações sobre o valor,

o valor de troca e o trabalho abstrato. Não faremos mais, aqui, do que

completar as idéias desenvolvidas no texto anterior. Se a mercadoria évalor de uso, ela é igualmente valor de troca. E o valor de troca é umadeterminação que supõe que uma relação se estabeleça entre pelomenos duas mercadorias. Para que a expressão de valor de uma mercadoria em outras mercadorias seja possível, é necessário que suaforma sensível seja reduzida a algo comum. Esse movimento queconduz ao valor como fundamento do valor de troca e ao trabalho comosubstância do valor não é uma generalização, mas umaredução. Razão

pela qual o valor de usoem geral não poderia servir como denominador

comum. Só se teria com isto uma generalização que de resto nosconduziria a uma teoria subjetiva do valor. O movimento de redução éilustrado por Marx, tanto emO Capital como nasTeorias sobre a mais-valia, através de exemplos tirados da matemática. Nos textos dasTeorias sobre a mais-valia, textos em que ele faz a crítica de Bailey,

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a analogia, introduzida por Bailey, paraquestionar a necessidade e a possibilidade de uma redução dos valores de troca ao valor é o dadistância entre dois objetos. Contra Bailey, para o qual a distância nãoé mais do que uma relação — “uma coisa (não) pode estar distanteem si sem referência a uma outra”31 — Marx mostra que se “a dis

tância é (...) uma relação” entre duas coisas, ela é “ao mesmo tempo”“algo diferente dessa relação entre essas duas coisas”. E mais: que adistância entre duas coisas supõe “algo de ‘intrínseco’, alguma ‘pro priedade’ das próprias coisas que as toma capazes de estar distantesumas das outras”. “Qual a distância entre a sílaba A e a mesa?”Pertencer ao espaço será a unidade de duas coisas mensuráveis e a suaigualizaçãosub specie spatii será a condição para medir a sua distância para distingui-las “como pontos diferentes do espaço” .32 A analogiatem o interesse de mostrar a necessidade da passagem da relação(constituída pelo valor de troca) ao fundamento da relação, à suacondição de possibilidade objetiva, passagem que nada tem a ver comuma simples generalização; ela tem também o interesse de mostrar quese passa aí de um universo qualitativamente diverso a um universo semqualidade ou de qualidade homogênea. A segunda analogia, que seencontra emO Capital33 (encontramo-lo também nasTeorias..., aindano quadro da discussão com Bailey34 em forma um pouco diferente) serefere (ao que toma possível) a determinação da superfície dos polígonos. “Para determinar e comparar a superfície de todas as figurasretilíneas se as resolve em triângulos. O próprio triângulo é reduzido auma expressão completamente diferente da sua figura (Figur ) visível —o semiproduto da sua base pela sua altura” .35 O interesse dessailustração, na qual se passa da figura geométrica à expressão algébrica,é o fato de que toda referência a um espaço — mesmo um espaçointeligível — desaparece no ponto de chegada. Entretanto, tantoquanto o espaço geométrico, uma expressão algébrica é evidentementeuma coisa bem diferente de uma determinação social objetiva como ovalor. O resultado essencial que se deve extrair desses dois exemplos éde que a passagem do valor de troca ao valor é uma redução de umaforma de manifestação36 ao seu fundamento, redução que é ao mesmo

tempo a de um universo de objetos qualitativamente diversos a umuniverso de objetos sem diversidade qualitativa.37Mas a redução dos valores de troca ao valor é ao mesmo tempo

constituição do conceito de trabalho abstrato, como substância dovalor. A importância que Marx dava a esse conceito cuja apresentaçãoele considerava como uma de suas contribuições fundamentais é bemconhecida. “O melhor no meu livro é: 1. (sobre este repousatoda acompreensão dos facts (fatos) oduplo caráter do trabalho posto emevidência (hervorgehobene) desde o primeiro capítulo, conforme ele seexprime em valor de uso ou em valor de troca (... )” .38 “(...) os trêselementos fundamentalmente novos do livro: (...) 2. (...) uma coisa

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simples (das Einfache) escapou a (todos) os economistas sem exceção,é que se a mercadoria tem o duplo (caráter) de valor de uso e de valorde troca, o trabalho representado na mercadoria deve também terduplo caráter, enquanto que a simples análise do trabalhosem frase (sansphrase) como em Smith, Ricardo etc. se choca sempre com coisasinexplicáveis (auf Unerklärliches). Este é na realidade todo o segredoda concepção crítica” .39 Mas nessas condições, interessa precisar quala natureza do descobrimento de Marx, qual o caráter da sua contri

buição em relação ao discurso da economia clássica.O descobrimento de Marx representa na realidade uma posição (isto é, passagem à ordem do discurso explícito) daquilo queestava pressuposto (o que existia somente em forma implícita: o que estava e não estava) nos economistas clássicos: “No que se refere ao valor em geral, a economia política clássica em nenhum lugar distinguede um modo expresso (iausdrücklich) e com uma consciência clara (mit klaren Bewustsein) otrabalho tal como ele se apresenta no valor, do mesmo trabalho, talcomo ele se apresenta no valor de uso do seu produto. Naturalmente,ela estabelece de fato a diferença(sie macht (...) den Unterschied tatsächlich) já que ela considera o trabalho ora quantitativamente, oraqualitativamente. Mas não lhe ocorre (aber es fällt ihr nicht ein) queuma diferença puramente quantitativa dos trabalhos pressupõe (vo-raussetzt) uma unidade qualitativa, (ou sua) igualdade, ou sua reduçãoao trabalho humano (como) abstrato (abstrakt menschliche Arbeit)". (W.23, K.I, p. 94, n. 31; Dognin,op. cit., p. 226, n. 31, grifo nosso) A diferença existia pois, mas não “de modo expresso”, mas somente “de fa to”: a diferença quantitativa expressa pelos clássicos a "pressupõe”. Mas se aquilo que édito não vai tão longe quanto aquilo que évisado ou, o que dá no mesmo, se há conteúdos visados (pressupostos)que não são expressos (postos),a pressuposição é às vezes posta a despeito do teórico — exprimindo em parte pelo menos, o que o próprio sujeito não quer dizer (e que entretanto ele visa). Esta espéciede autoposição do próprio discurso em face ao discurso do sujeito (com

a sua partição entre o que é visado e o que é posto), Marx a encontraem Benjamin Franklin: “Um dos primeiros economistas que após William Petty penetrou a natureza do valor, o célebre Franklin escreve:‘Dado que o comércio não é absolutamente nada senão a troca de umtrabalho contra um outro trabalho, é em trabalho que se avaliará damaneira mais justa o valor de todas as coisas’ ”.(The Works of B. Franklin etc., editedby Sparks, Boston, 1836, vol. II, p. 267) Franklinnão se dá conta(ist sich nicht bewusst) que avaliando “em trabalho” ovalor de todas as coisas, ele faz abstração da diferença(Verschie

denheit) dos trabalhos — e os reduz assim a trabalho humano igual.O que ele não sabe, ele entretanto o diz. Ele fala primeiro “de um‘trabalho’ sem mais(ohne weitere Bezeichnung) como sendo a substância do valor de todas as coisas”. (W.23, K.I, p. 65, n. 17, grifo

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nosso)O discurso põe aqui o que é simplesmente visado pelo sujeito: mas como para o sujeito o conceito é simplesmente visado mas não posto, poderíamos dizer queessa posição do discurso, ela própria é para o sujeito uma posiçãonão visada. O que ele (o sujeito) pressupõe ele não põe, e o que ele põe, a saber, a própria posição, ele não

pressupõe.Que o descobrimento de Marx seja “somente” a posição de um

conceito anteriormente pressuposto não é sem importância, pois istomostratudo o que significa a explicitação de um conceito implícito —esta operação aparentemente banal — na realidade a posição do queera pressuposto, no interior da lógica dialética.**

d) A forma do valor

Podemos passar agora à análise da forma do valor, questão que éobjeto de um longo desenvolvimento crítico no livro de Benetti e Carte-lier. Será necessário examiná-la em detalhe, tanto no que concerne aotexto de Marx como no que se refere ao dos seus críticos.

Inicialmente, é necessário se perguntar de que se trata. Já indicamos como se chega à análise da forma do valor: depois de ter passadodo valor de troca ao valor (redução da forma fenomenal ao fundamento), volta-se ao valor de troca, forma (fenomenal) do valor. Aanálise da forma do valor nos permite passar do valor de troca tal comoele aparece na relação entre duas mercadorias, à forma dinheiro.Trata-se, pois, de fato, como o assinalam de resto os dois autores(p. 151) — mas eles supõem, sem razão, que uma outra interpretaçãotambém seria possível —, de uma gênese do dinheiro. Esta gênese élógica41 e não histórica em seu sentido e sua finalidade gerais; eentretanto alguns de seus momentos são mais ou menos susceptíveisde um rebatimento “histórico”, de uma representação no tempo. Masas referências “históricas” (isto é, temporais) que se poderia encon

trar aí aparecemsobre o fundo

de uma análise lógica, como um discurso paralelo e de certo modo pressuposto.Já explicamos, a propósito do ponto de partida, por que é

necessário começar pela mercadoria e não pelo dinheiro. Formulemos, entretanto, ainda uma objeção (que poderia situar-se tanto noinício da apresentação como no nível da forma do valor). Mesmo sehá razões para começar pela mercadoria e não pelo dinheiro, o fatode se situar aquém do dinheiro, no nível de uma realidade que parececontradizer mesmo aaparência de produção de mercadorias nãolevantaria um problema? Quaisquer que sejam as razões, qual é alegitimidade desse recuo em relação à própria aparência de produçãode mercadorias? Não cairíamos com isso na “fábula da troca” ?42

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A afirmação de que a relação que constitui a forma simples do valor não ésimétrica não deixa de levantar problemas. Aparentemente ela vai contra ostextos em que Marx escreve que a expressão da forma simples inclui a expressão inversa: “A equação: 20 varas de tela = 1 casaco, ou 20 varas de tela valem1 casaco, inclui (schliesst... ein) a equação idêntica: 1 casaco = 20 varas detela, ou 1 casaco vale 20 varas de tela”. (Dognin,op. cit., p. 63, texto da primeira edição deO Capital, grifado por Marx) “A bem dizer, a expressão 20varas de tela = 1 casaco ou 20 varas de tela valem 1 casaco inclui (schliesst... ein) também a relação inversa: 1 casaco = 20 varas de tela ou: 1 casaco vale20 varas de tela”. (W.23, K.I, p. 63; Dognin,op. cit., p. 119, apêndice à primeira edição deO Capital) E entretanto, Marx acrescenta no texto doapêndice: “É porém necessárioinverter a equação paraexprimir relativamenteo valor do casaco, e urna vez feito isto, é a tela que se tornaequivalente, emlugar do casaco. Amesma mercadoria,na mesma expressão de valor, não pode

pois se apresentar (auftreten) simultaneamente nas duas formas. Estas antes seexcluem(schliessen... aus) comodois polos”. (Dognin,op. cit., p. 117, grifado por Marx) “Pensemos ( Denken) urna troca (Tauschhandel) entre o produtorda tela A e o produtor do casaco B. Antes de se chegar a um acordo sobre atransação(sie Handels einig werden) A declara:20 varas de tela valem 2 casacos (20 varas de tela = 2 casacos), enquanto B declara:1 casaco vale 22 varas de tela (1 casaco — 22 varas de tela). Após regatear muito tempo, eleschegam afinal a um acordo. A declara:20 varas de tela valem um casaco, e B:um casaco vale 20 varas de tela. Nesse caso,as duas mercadorias, a tela e ocasaco, se achamsimultaneamente na forma relativa e na forma equivalente.Mas, note-se bem, isto só vale para duas pessoas diferentes e em duas expressões de valor que apenas surgem simultaneamente. Para A — e porque,segundo ele, a iniciativa parteda sua mercadoria — asua tela se encontra naforma relativa do valor, enquanto quea mercadoria do outro, o casaco, se achana forma equivalente. E inversamente, do ponto de vista de B. Na mesma expressão de valor, a mesma mercadoria nunca possui portanto,simultanea- mente, as duas formas, nem mesmo nesse caso”. (Dognin,op. cit., p. 117,grifado por Marx) Na quarta edição deO Capital, encontramos igualmente:“Mas me é entretanto necessário inverter a equação para exprimir relativamente o valor do casaco, e urna vez que eu o tenha feito, é a tela que se tomaequivalente em lugar do casaco. A mesma mercadoria, na mesma expressão devalor, não pode, pois, se apresentar (austreten) simultaneamente nas duasformas.Estas últimas antes se excluem (schliessen... aus) como dois pólos". (W.23, K.I, p. 63; Dognin,op. cit., pp. 189-190, grifo nosso)48 Vemos que“incluir” (einschliessen) se torna “excluir” (ausschliessen), se consideramos amesma expressão de valor. O que é que isto quer dizer? Isto quer dizer duascoisas que se excluem do ponto de vista da lógica formal: 1) que as duasexpressões são contraditórias; 2) que se pode (entretanto)49 passar de urna aoutra sem tornar falsa a primeira. É que a operação que permite passar da primeira expressão à segunda — operação que como o seu análogo em lógicaformal (a implicação) é em geral passagem de uma determinaçãoimplícita auma determinaçãoexplícita — não é uma implicação, mas a posição de urnadeterminação pressuposta. O quesignifica, por um lado, que a operação não éde ordem simplesmente analítica (como se poderia dizer em geral da implicação e das operações formais), mas, como escreve na Grande Lógica (a

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discutidas no parágrafo anterior (c). Trata-se da questão do papel quetem o valor de uso na análise da forma do valor. No desenvolvimentoanterior sobre o valor de uso, nos detivemos no momento em que ovalor de uso era só osuporte material do valor. Esta era a funçãoespecífica do valor de uso na qualidade de determinação material nointerior da forma social. Com a análise da forma do valor — a gênesedo dinheiro — o valor de uso passa da sua função de suporte à funçãode material em que se expressa o valor (sempre enquanto determinação material no interior da forma). Com efeito, se há uma não-simetria na expressão do valor, isto se deve ao fato de que os valoresde uso das duas mercadorias não têm a mesma função.

Se o valor de uso da mercadoria A continua sendo simplesmenteo suporte do valor de A, o valor de uso da mercadoria B, emboracontinuando a ser o suporte do valor da mercadoria B, se toma, na

relação entre A e B, omaterial no qual se exprime o valor de A. Elase toma a encarnação sensível do valor de A. Com efeito, a não-simetria não diz senão que, na expressão do valor, o valor não aparecedo mesmo modo para cada uma das duas mercadorias. O valor de Aapareceno valor de uso de B, qualitativamente e quantitativamente.O valor de B é também expresso, porque só umamercadoria podeservir de espelho de valor (para uma outra). Mas ela só aparece qualitativamente, e pelo fato de servir como espelho, como forma equivalente, para uma outra mercadoria.

Esta re-posição do valor de uso — tanto aqui, no nível da análise da forma do valor, como na continuação do texto deO Capital —é um dos alvos principais de crítica de Benetti e Cartelier: “(...) aforma simples que Marx toma como ponto de partida implica (...)que o equivalente não pode ser senãouma expressão material do valor da outra mercadoria”. Marx apresenta o problema assim: “Para fixara tela como pura expressão coisificada do trabalho humano,é preciso

fazer abstração de tudo aquilo que faz dela realmente (wirklich, efetivamente) uma coisa (Ding). A objetividade do trabalho humano, queé ele próprio abstrato (...)é necessariamente uma objetividade abstrata,

uma coisa do pensamento(Gedankending).

É assim que o tecidodo linho se toma uma fantasmagoria ( Himgespint ). Mas as mercadorias sãocoisas (Sachen). O que elas são, elas devem ser à maneira dascoisas(sachlich), ou mostrá-las nas suas próprias relações de coisas((Dognin) p. 53 (texto da primeira edição deO Capital))’’. (Benetti eCartelier, p. 144) “Nesse texto — continuam Benetti e Cartelier — jáse vê, em forma sintética, o deslizamento necessário que impõe aMarx o seu mau ponto de partida, a saber, a forma I. Marx dirá quenão há um átomo de matéria (natural, Naturstoff — RF) que penetreno seu (...) (da mercadoria)'(...) valor (...) que (...) os valores dasmercadorias só têm uma realidade puramente social. (XeCapital (Plêiade I), p. 576)”. (Benetti e Cartelier, p. 144) “Ora, escrevem

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ainda Benetti e Cartelier, as relações materiais, isto é, objetivasociais, são anunciadas aqui como sendo relações entre coisas e mesmo tempo entre valores”. ( Ibidem) “O deslizamento se sitúa evidentemente sobre o termo ‘material’, que significa ao mesmo tempsocial, objetivo e materialidade física da coisa. De onde o deslizamento: a objetividade é atribuída a essa materialidade física. Eoutros termos: a objetividade do valor é puramente abstrata, ela natem a ver com a materialidade física. Por que então, para se exprimela teria necessidade de uma materialidade física? Por que o ‘corpdo equivalente seria necessário e suficiente para objetivar o valo Nesse nível, a resposta pode ser encontrada na identificação entrematerialidade e a objetividade: 3 m de tecido, porque tecido e 3 mtêm uma objetividade socialmente reconhecida”, (pp. 144-145, gfado por Benetti e Cartelier) E a partir daí os dois autores tentammostrar que, se Marx faz a crítica da “aparência falsa” que consisem pensar que a forma equivalente provém do valor enquanto t(isto é, nós observamos, do valor de uso considerado independentmente da produção de mercadorias), a maneira pela qual Marapresenta a expressão do valor (fazendo do valor o material emque ele se exprime) reforçaria na realidade uma falsa aparência“Fica visível imediatamente que esse tipo de falsa aparência é a coseqüência lógicanecessária da objetividadeatribuída por Marx ao cor po do casaco” , (p. 145, grifado por Benetti e Cartelier) Em outros termos, Marx pretende fazer a crítica do fetichismo, mas nrealidade ele próprio fetichiza. Esse tema do fetichismo de Marx —que não é particular à crítica de Benetti e Cartelier60 — reaparecemais adiante.

Reencontramos aqui num nivel ulterior da apresentação o pro blema que foi discutido a propósito do valor de uso e do trabalhconcreto. Para não voltar ao que já foi explicado tentaremos aqui, pum lado, apreender a forma específica que o problema toma nes ponto, e, por outro lado, generalizá-lo em certa medida, aproveitano enriquecimento que lhe advém dessa nova forma.

Aqui como anteriormente, Benetti e Cartelier parecem surpreedidos com o papel que tem o valor de uso, e em geral a “matéria”, crítica da economia política, de Marx. Tudo se passa como se, paeles, esse papel não fosse legítimo. Em outros termos, tudo se pascomo se para eles o procedimento de Marx, do ponto de vista d próprio Marx (segundo a interpretação deles) só pudesse ser válido tivesse como objeto apenas as formas, isto é, se pusesse sempre entre parênteses a camada “material” . Ora, a esse respeito, seria precidizer em primeiro lugar, começando a análise pelo nivel que não sem dúvida o mais profundo, o da atitude consciente de Marx, quMarx se explicou bem sobre o papel que tem na sua crítica o valor uso. Ele escreve, efetivamente, nas notas sobre o manual de A. Wa

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ner: “Por outro lado, ovir obscurus não viu que já na análise damercadoria o meu texto não se limita ao duplo modo ( Doppelweise) em que ela se apresenta, mas se vai adiante imediatamente até que,nesse ser duplo ( Doppelsein) da mercadoria se apresenta o duplo(Zweifacher) caráter do trabalho, de que ela é o produto: o trabalhoútil, os modos concretos (den konkreten Modi) dos trabalhos quecriam valores de uso, e otrabalho abstrato, otrabalho enquanto gasto de força de trabalho, qualquer que seja a forma ‘útil* pela qual ela égasta (sobre o que mais adiante se baseia a apresentação do processode produção); que no desenvolvimento da forma do valor da mercadoria, e em última instância, da sua forma dinheiro, portanto dodinheiro, o valor de uma mercadoria se apresenta novalor de uso, istoé, na forma natural da outra mercadoria, que a própriamais-valia édeduzida de umvalor de uso ‘específico’ da força de trabalho, o qual

pertence exclusivamente a esta última etc. etc.; que, em conseqüência, ovalor de uso tem no meu texto um papel muito mais importante do que (aquele que ele desempenhou) até aqui na economia". (W.19,1969, pp. 370-371, grifado por Marx, trad. nossa;Oeuvres, EconomieII, op. cit., p. 1545) Essas considerações poderiam ser complementadas pelos textos dasTeorias... em que se trata da importância dovalor de uso no interior da crítica da economia política.61 Nada pareceria mais estranho a Marx do que a idéia de uma crítica da economia política puramente “formal” , purificada de toda referência à camadamaterial. Na realidade, ele acredita que o papel que nela tem a matéria é uma das originalidades do seu procedimentoTomado em forma objetiva, o problema aparece como idênticoàquele que foi discutido anteriormente, mas se apresentando agoraem nível “superior”: aqui não só aparece o desdobramento do socialnos opostos matéria e forma, mas também — contradição desenvolvida — a matéria se torna fenômeno (forma fenomenal) da forma, seucontrário. O valor de uso que era suporte do valor toma-se agoramaterial em que este se exprime. É afinal este cruzamento de contrários que Benetti e Cartelier, com razão, põem em evidência. ,E, aindauma vez, isto lhes parece — com razão — escandaloso. Marx separoude maneira mais estrita a matéria da forma, o concreto do abstrato, eeis que ele afirma que um dos opostos se tomou a forma fenomenaldo outro! Anteriormente um “social” que parecia antes “antropológico” devia coexistir com um “social” que lhe era oposto. Agora é preciso ainda que um dos opostos sirva para exprimir o outro! Aparentemente, tentando unir termos opostos, não fazemos mais doque nos entranhar na contradição.E se trata disso mesmo. O deslizamento da objetividade na materialidade nada mais é do que are-posição (aqui uma segunda posição) da matéria — oposta à forma

— enquantomaterial para a expressão da forma.62 E esse movimentoé “contraditório” no sentido de que ele reúne pela relação essência/

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aparência termos definidos anteriormente como sendo rigorosamentecontrarios. Mas que esse movimento é “contraditório” é o próprioMarx que o diz: “A primeira particularidade que chama a atenção(auffàllt) quando se considera a forma equivalente é a seguinte: ovalor de uso se toma forma fenomenal do seucontrário (Gegenteil),o valor”. (W. 23, K.I, p. 70; Dognin, p. 198, grifo nosso) “(...) Urnasegunda particularidade da forma equivalente: o trabalho concreto setorna forma fenomenal do seucontrário (Gegenteil), do trabalho humano em abstrato(abstrakt menschlicher Arbeit)". (W.23, K.I, p.73; Dognin, p. 201, grifos nossos) E Marx chega a descrever essemovimento como um “quiproquó”: “A forma natural da mercadoriase torna forma do valor. Mas note-se bem, essequiproquó só se produz para uma mercadoria B (...) no interior da relação de valor (...)”.(W.23, K.I, p. 71; Dognin, p. 198) Ainda uma vez o “quiproquó” do

sujeito não é mais do que a reprodução de um “quiproquó” dascoisas. São as coisas que se entranham em determinações “contraditórias”. O discurso dialético as segue, apenas.

Quanto à imputação de uma queda na falsa aparência, isto é,no fetichismo, digamos por enquanto que é confundir a expressão daforma na matéria com a idéia de que a forma está dada na matériaenquanto matéria. Mas seria melhor desenvolver as considerações deBenetti e Cartelier sobre esse ponto, quando chegarmos à forma dinheiro.

Passemos agora às formas II e III. Forma II: z mercadorias A= v mercadorias B ou v mercadorias C ou w mercadorias D ou xmercadorias E ou = etc. É aqui que Benetti e Cartelier introduzirão atese segundo a qual a expressão do valor (na forma II, mas a observação valeria também para a forma I) é puramente subjetiva. Daí,eles passam à afirmação segundo a qual, a propósito dessas formas,não se poderia nem mesmo falar de valor. Analisemos em detalhe osseus argumentos. A crítica desses argumentos será útil também para pensar a passagem de II a III.

Eles escrevem: “O valor de A só está representado, na forma II,tio sentido preciso seguinte: o do poder de compra de A em termos deuma série de mercadorias diferentes. Mas nesse caso o ‘valor’ de Aassim exposto só pode ser interpretado como valor ‘individual’, isto é,não social, que só tem significação para o proprietário de A. Estefato, o de que a forma II, em vez de expor o valor de A, exprime umadas primeiras noções smithianas de riqueza (o valor subjetivo de troca,isto é, para ‘aquele que possui’), é reconhecido explicitamente, em bora em forma atenuada, por Marx, no ‘Apêndice’ (Dognin) p. 163,quando ele opõe a exclusão da forma II à exclusão da forma III”.(Benetti e Cartelier, p. 147) Seguem-se duas citações, das quais asegunda é truncada: Citemos o texto de Marx de um modo mais com-

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pleto: “( ...) Na forma desenvolvida do valor (forma II)uma mercadoria exclui todas as outras para nelas exprimir o seu próprio valor.Esta exclusão pode ser um processo puramente subjetivo, obra, porexemplo, do possuidor da tela, quando ele avalia em muitas outras

mercadorias o valor da sua. Pelo contrário, uma mercadoria só seencontra na forma equivalente geral (forma III) porque e na medidaem que,enquanto equivalente, ela própria é excluída por todas as outras mercadorias, k exclusão é aqui um processo subjetivo que nãodepende da mercadoria excluída”. (Dognin,op. cit . , p. 163, grifado por Marx) Esse texto deve ser interpretado a partir de certas passagens do capítulo 2 do livro I deO Capital, “O processo de troca”.Com efeito, no capítulo 2, Marx escreve que, “na troca imediata dos produtos, cada mercadoria émeio de troca imediato para o seu possuidor, mas (ela não é) equivalente para o seu possuidor senão enquanto ela é valor de uso para ele”. (W.23, K.I, p. 103;Oeuvres, Economie I,op. cit., p. 634, grifo nosso) “Para ele (para o possuidorda mercadoria) ela tem imediatamentesomente o valor de uso de ser suporte do valor de troca e portanto de sermeio de troca". (W.23,K.I, p. 100;Oeuvres, Economie I,op. cit., p. 621, grifo nosso) Vê-seo que isto significa: para o possuidor de uma mercadoria que quertrocá-la, ela funciona subjetivamente como equivalente geral, ela temsubjetivamente a forma de permutabilidade imediata (no sentido deque ele quer que ela seja aceita por qualquer possuidor de mercadorias cuja mercadoria lhe seja um valor de uso). Assim, se a mercadoria A se acha na formarelativa em relação à mercadoria B (relaçãox mercadorias A valem y mercadorias B, que é a relação assumida peloagente A), essa mesma mercadoria A,em relação ao agente A, estásubjetivamente na forma equivalente, ou recebe adeterminação doequivalente.63 Oequivalente subjetivo é assim inverso em relação à

forma objetiva: ele se acha do lado em que, objetivamente, se encontra a forma relativa .M O texto do apêndice à primeira edição deO Capital, citado por Benetti e Cartelier, vai no sentido dos textos do

capítulo 2; só que o seu objeto é a forma II. Mas a idéia de umafunção equivalente subjetiva vale para qualquer forma anterior ao dinheiro. Na forma II ela ganha toda a sua importância, pelo fato deque, como veremos, é a partir daí que a passagem à forma III setoma plenamente inteligível. Por outro lado, o texto do apêndiceacentua a noção deexclusão. A exclusão, isto é, a partição do campodas mercadorias entre, por um lado, as mercadorias particulares e,

por outro, a mercadoria geral, partição que é condição para a constituição do equivalente geral objetivo, está lá, mas como atosubjetivo do echangista A (e por isso é a mercadoria A, não a mercadoria B,que funciona como equivalente — subjetivo).65 E é a essa subjetividade da exclusão que remete em última instância a frase final dotexto, a qual se refere à exclusão objetiva (que depende dasoutras

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mercadorias) distinguindo-a implicitamente da exclusão subjetiva quesó depende da mercadoria excluída (o que quer dizer, aqui, dessamercadoria na sua relação com o seu possuidor). Nada há, portantode mais estranho ao texto do apêndice do que a idéia de que a forma

II, como igualmente a forma I, represente uma expressão subjetiva dvalor. Esta tese, Benetti e Cartelier tentam aliás justificar ou confirmar (pois eles pensam havê-la mostrado através de sua leitura daforma II), servindo-se de outros textos de Marx. Somos obrigados aretomar esses textos. “Mudanças essenciais — escrevem Benetti eCartelier, p. 148, — citando Marx (ou pelo menos supondo fazê-lo por ora é, pois, do Marx na versão que dão os dois autores de que strata) — mudanças essenciais ocorrem na passagem da forma II àforma III, e não tanto na passagem da forma I à forma II” (nota dos

autores:) “tradução modificada”. (Benetti e Cartelier, p. 148, o textoremete a Dognin,op. cit., p. 165) E eles continuam: “A razão disto éque ( (nova citação de Marx)) ‘esta forma é a primeira que relacionentre si as mercadorias enquanto valores. (OCapital (Plêiade I), p.598) e que () citação de Marx)) ‘o valor delas obtém em conseqüência sua forma fenomenal adequada enquantovalor de troca’ (Dognin, p. 73)” . “Esta forma — continuam Benetti e Carteüer — é pois a‘forma social’ ((Dognin) p. 77) das mercadorias. /O que confirma adúvidas que emitimos no que se refere à utilização da noção de valor

propósito das formas I e II” . (Benetti e Cartelier, p. 148) Inicialmente, mesmo se não se trata do ponto mais importante, corrijamos tradução da passagem de Marx citada no início do texto. Os doisautores modificaram — e modificaram mal — a tradução de DogninEla é correta: “Na passagem da.forma I à forma II, e da forma II àforma III, ocorrem mudanças essenciais”. (Dognin,op. cit., p. 165)66Mas o ponto mais importante vem em seguida. Em primeiro lugar,a segunda citação de Marx (“esta forma é a primeira...”) é feita a partir da tradução de Roy. Ora, Roy omite um termo que é, na realidade, essencial. O texto alemão diz: “Erst diese Form bezieht dahewirklich die Waren aufeinander als Werte (...)”. (W.23, K.I, p. 80,grifo nosso) O que se traduz por: “Somente esta forma põeefetivamente (ou: esta forma é a primeira a pôr efetivamente) em relaçãoas mercadorias enquanto valores”. (A versão de Dognin — por queeles deixaram de lado, aqui, esta versão? — traduz “wirklich” por“realmente” (réellement) (ver Dognin, p. 210), o que não é a melhortradução, mas é de qualquer modo melhor do que a omissão.) AWirklichkeit designa na lógica de Hegel — vimos em outro lugar a

propósito de um outro problema — não a realidade ( Realität) mas arealidade efetiva, “unidade da essência e da existência”.67 O textonão quer dizer que antes da forma II os objetos postos em relação nãsão valores (por isso mesmo ele os chama “mercadorias”), nem mesmque não haja lá umarelação entre valores, mas somente que essa

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relação não tem por enquanto umarealidade efetiva. Mas deixemosde lado por ora a questão de realidade darelação, isto é, a questão desaber se há e em que sentido há na expressão não só valor mastambémvalor de troca, embora seja este no fundo o único ponto quemereceria alguma explicação. Mostremos simplesmente, por ora, quea idéia de que não haveria valor deve ser absolutamente rejeitada.Isto aparece claramente se passarmos à terceira passagem de Marx(“o valor deles obtém em conseqüência...”) citada de um modo truncado por Benetti e Cartelier. Citemos a frase inteira: “É somentenessa expressãounitária do valor relativo que elas aparecem todasumas às outras como valores, e que o valor delas obtém em conseqüência a sua forma fenomenal adequada (ou correspondente,ents-

prechende — RF),enquanto valor de troca”. (Dognin, p. 73, grifado por Marx) Vemos, pois, que o que é novo é aaparição adequada dovalor, não o próprio valor, que é dado evidentemente desde o início.Portanto, se há dúvida ela só pode incidir sobre a questão da presençado valor de troca, o que remete ao problema da interpretação daexpressão “forma fenomenal adequada”. Na realidade, o própriovalor de troca também está presente, desde o início. A dialética daforma do valor não é gênese do valor de troca, mas gênese dodinheiro. Ela édesenvolvimento (no sentido definido anteriormente) dovalor de troca. Ao contrário do que ocorre para o dinheiro, o valor detroca está presente enquanto valor de troca desde o início, emboranão de uma forma adequada. O problema é aqui, como vemos, o da

aparição de uma aparição. Que o valor não tenha a sua forma fenomenal adequada quer dizer quea forma fenomenal está, sem dúvida, lá, mas sem se manifestar de uma maneira apropriada. Tal é o sentido da “realidade efetiva” da expressão do valor, ou de sua presença“verdadeira” , como dirá um outro texto.68

Examinemos agora a passagem da forma II à forma III. Ao passar da forma I à forma II, o valor de uma mercadoria não seexprimiria maissimplesmente numa mercadoria B, mas em váriasmercadorias B, C, D etc. Através disso, iremos, pois, da unidade (eda simplicidade) à pluralidade. Para chegar à forma geral (forma III)a partir da forma II, é precisovoltar à simplicidade, mas se tratará deuma simplicidade que contém nela própria a pluralidade. Deveríamosobter:

u mercadorias B =v mercadorias C =w mercadorias D =x mercadorias E =

z mercadorias A

Mas os valores de uso concretos (que até aqui — na versão daquarta edição — figurama posteriori entre parênteses) são agora

postos, substituindo as expressões “algébricas”:

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20 varas de tela

“1 roupa =10 libras de chá =40 libras de café =1 quarta de trigo —

2 onças de ouro =1/2 tonelada de ferro =x mercadorias A =etc. mercadorias.

(W.23, K.I, p. 79; Dognin, p. 208) .Essa passagem é um dos pontos mais difíceis da análise da

forma do valor. Como se sabe, já a partir da primeira edição deO Capital (na qual ele inseriu um apêndice no último momento) Marxforneceu versões sucessivas e diferentes da análise da forma do valor.

Comecemos pela versão da quarta edição deO Capital. A passagemda II à III é apresentada aí a partir dos “defeitos” da forma desenvolvida (forma II). E esses defeitos são de três ordens: por um lado,a cadeia das expressões relativas pode ser sempre prolongada (podem-se supor sempre novas espécies de mercadorias); em segundo lugar,na forma II, a variedade qualitativa não foi eliminada, pois a expressão de valor se faz através de diferentes valores de uso; em terceirolugar, é possível e é necessário (“como isto deve ocorrer”)69 que setenha várias seqüências em lugar de uma só exprimindo o valor rela

tivo de cada uma das mercadorias. Os dois primeiros defeitos representam “insuficiências” da forma II: ela não é simples, e ela não éfechada. O terceiro defeito é, se se pode dizer, mais grave: com a sériede seqüências, não só teríamos uma série sempre aberta, mas cadamembro da série — cada seqüência — excluiria o outro.70 Nenhumauniversalização (que ultrapassasse os limites de cada encadeamento)

poderia ocorrer, a menos que a inversão viesse negar tanto a diversidade dos membros da seqüência como a da série das seqüências.71Para passar à forma geral, seria necessário, pois, que não houvesse mais

do que um equivalente; a forma do valor das mercadorias será então“simples e comum, portanto geral” (W.23, K.I, p. 79; Dognin, p.209), o que ao mesmo tempo simplificará a expressão relativa (no equivalente) na seqüência considerada e evitará a multiplicação de seqüências. Uma mercadoria se tornará pois equivalentegeral: “(...) ao lado(...) dos leões, dos tigres, das lebres e de todos os outros animais (efetivamente) reais (...) existirá, ademais, o animal, a encarnaçãoindividual de todo o reino animal”. (Dognin, p. 73, texto da primeira edição, grifo nosso) Em outros termos, a forma geral será ao mesmo

tempo universal e individual, isto é, ela será umuniversal concreto. Mas como efetuar — e como legitimar — essa passagem? A maneiramais imediata de efetuá-la seria fixar simplesmente uma das formasequivalente particular como equivalente geral. Mas não seria umamaneira satisfatória de efetuar a passagem, porque desse modo nada

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mostra por que tal equivalente particular se torna equivalente geral. Na realidade, o movimento se faz pelainversão dos termos. A mercadoria que se encontrava na forma relativa (em II), se tomará equivalente geral. É a maneira mais satisfatória. Sua justificativa se achanos textos que examinamos antes e que introduzem a idéia de umequivalente subjetivo. Exprimindo o valor de sua mercadoria A nasmercadorias B, C, D etc. (forma II), o possuidor da mercadoria Afaz, subjetivamente ou de um modo puramente subjetivo, com que asua mercadoria A valha enquanto equivalente geral. Ela aparece parao agente A como sendo permutável com todas as outras mercadorias.Com a forma relativa desenvolvida, temos pois, ao mesmo tempo,subjetivamente, a forma equivalente geral. A inversão é assim justificada de um modo mais estrito, porque aparece aí o que liga a formaII à forma III. Se a forma II contém de maneira subjetiva a forma III,

basta pôr objetivamente a primeira — pela inversão da expressão — para obter a segunda.72

Mas o problema é saber quais são a significação e o valor dacrítica de Benetti e Cartelier a propósito desse ponto. Na realidade,é como se para eles o único desenvolvimento pensável fosse a generalização das seqüências. Com efeito, na medida em que eles não conhecem ou não reconhecem o processo de constituição do universalconcreto, só restaria esse caminho. Ora, se supondo umasucessão deseqüências esta via nos conduz, como vimos — tomando-a como umaalternativa à universalização concreta e não como uma forma de

“transição” —, a perder a universalização; supondo asimultaneidade, ela conduz à eliminação de toda expressão do valor (mas não do próprio valor, como eles supõem). Ê esta possibilidade de uma eliminação de toda expressão do valor que Marx considera nos textos citados — e isto para mostrar a necessidade de um outro caminho. Mastentemos representar de um modo mais preciso a significação lógicada generalização das seqüências, nos dois casos em que ela poderia seapresentar.

“Cada possuidor de mercadorias — escreve Marx no texto docapítulo II citado em parte por Benetti e Cartelier — só quer alienar asua mercadoria contra uma outra cujo valor de uso satisfaça a suanecessidade. Nessa medida(sofern), a troca só é para ele um processoindividual. Por outro lado, ele quer realizar a sua mercadoria comovalor em qualquer outra mercadoria do mesmo valor que lhe agrade(ihm beliebigen) quer a sua mercadoria tenha ou não tenha valor parao possuidor da outra mercadoria. Nessa medida(sofem) a troca é para ele um processo social geral. Mas o mesmo processo não podeser simultaneamente (gleichzeitig) para todos os possuidores de mercadorias somente individual e ao mesmo tempo somente social geral”.(W.23, K.I, p. 101,Oeuvres, Économie I,op. cit., pp. 621-622, grifonosso) Para cada agente o processo de troca é, pois, ao mesmo tempo so-

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ciai e individual, isto é, ele é “venda” , realização do valor da sua mercadoria (processo social) e “compra”, aquisição de uma mercadoria deoutrem cujo valor de uso deve satisfazer a sua necessidade (processoindividual). Esses dois pólos poderiam distribuir-se entre os dois agen

tes — esta é a pergunta a que responde o texto — isto é, a operação poderia ser apenas uma compra (processo individual) para um dosagentes e não ser senão uma venda (processo social) para o outroagente? Sim, com a aparição do dinheiro (ou de um equivalente geralobjetivo consolidado). O agente que dispõe de dinheiro compra (processo individual), o que dispõe de mercadoria vende (processo social).Mas “antes” da constituição do dinheiro ou de um equivalente objetivegeral consolidado — no nível da forma II desenvolvida (série de seqüências) ou ainda no nível da inversão desta, não poderiam os pólos

distribuir-se entre os agentes? Evidentemente, é preciso distinguiraqui os dois casos, a multiplicação das seqüências em forma sucessiva, e a multiplicação das seqüências com simultaneidade. Se váriasmercadorias se tomamsucessivamente equivalente geral subjetivo (oque com a inversão se tomará o equivalente geral objetivo), temos decerto modo uma polarização, antes da emergência do dinheiro ou deum equivalente geral objetivo consolidado: em cada momento do processo (isto é, enquanto a sua mercadoria funciona como equivalentegeral) cada agente só realiza um processo individual (e os outros sóum processo social); embora para o conjunto dos momentos, dado o“rodízio” do equivalente geral, o processo seja para todos social eindividual. Razão pela qual, no texto anterior, desenvolvendo a im possibilidade de que o processo para cada agente seja somente individual ou somente social (antes de haver equivalente geral objetivoconsolidado), Marx emprega o termo “simultaneamente”. Se se supuser que o conjunto das seqüências é simultâneo, toda expressão dovalor se torna impossível. “Consideremos mais de perto a questão —escreve Marx na continuação do texto — para cada possuidor demercadorias, toda mercadoria extema vale assim como equivalente particular da sua mercadoria,73 e portanto a sua mercadoria valecomo equivalente geral de todas as outras. Mas como todos os agentesfazem a mesma coisa, nenhuma mercadoria é equivalente geral e asmercadorias também não possuem nenhuma forma relativa geral dovalor, na qual elas se põem como iguais(gleichsetzen) e se comparamenquanto grandezas de valor. Em conseqüência elas não se situam(stehen) mais em geralumas em relação às outras enquanto mercadorias, mas somente enquanto produtos ou valores de uso”. (W.23,K.I, p. 101;Oeuvres, Économie I,op. cit., p. 622, grifo nosso) Nãohaveria mais expressão do valor, por falta de mercadoria que se encontrasse na forma equivalente. E como a expressão do valor não éuma relação reflexiva, a mercadoria também não pode se exprimir elamesma.74

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Resta-nos apenas a passagem da forma geral à forma dinheiro.Benetti e Cartelier falarão, à propósito dessa passagem, de “golpe(.coup de forcé) final” (p. 151) e denunciam de novo a “falsa aparência” (p. 145), isto é, imputam a Marx uma queda no fetichismo.De que se trata, na realidade nessa última passagem? A passagem àforma IV tem um caráter particular. Poderíamos dizer que, até aqui,as mudanças eram de ordemsintática, elas interessavam a relaçãoentre os termos; agora a mudança é de naturezasemântica, ela interessa à própria natureza do objeto. Aqui se retoma de novo a materialidade. Sem dúvida, desde o início da análise da forma do valor,a matéria (o valor de uso) já era, como vimos, material para a expressão do valor. Mas se tratava de um materialqualquer (ou, na formaII, de vários materiais quaisquer). Com a forma III, passar-se-á aum material determinado. Mas com a forma IV ter-se-á um materialcon

gruente às exigências da forma. Pois os diversos materiais não sãoigualmente úteis para esta nova determinação do valor de uso — essevalor de uso formal75 que deve adquirir uma mercadoria para setornar dinheiro. Graças às suas características (homogeneidade, dura bilidade), certos valores de uso servem melhor do que outros para estafunção. A forma dinheiro em constituição, que se tornou equivalentegeral, “busca” uma matéria ou as matérias que melhor convêm àssuas necessidades enquanto forma. Esta matéria adequada é o ouro(ou o ouro e a prata). Com efeito, há uma congruência (Kongruenz)76entre as qualidades naturais do ouro e a função formal da moeda. Adistância entre, por um lado, esse resultado, que nada mais faz doque mostrar a apropriação, pela forma, de uma materialidade que lheé adequada, e por outro lado um discurse 'etichista, que supõe queesta materialidade temnaturalmente tal forma é indicada pelo duploenunciado daContribuição à Crítica da Economia Política, retomado por O Capital: “Embora o ouro e a prata77 não sejam naturalmente(von Natur) dinheiro, o dinheiro é naturalmente(yon Natur) ouro e prata” .78 Que significa esse resultado, que Benetti e Cartelier citam(p. 145), para denunciar uma queda na aparência falsa? Para com preendê-lo, é preciso retomar as observações anteriores sobre o “juízode reflexão” e o que o distingue dos juízos de inerência ou de inclusão. No texto que examinamos, comparam-se dois enunciados (parasimplificar, supomos que o ouro é o único valor de uso que devetomar a forma dinheiro):

O ouro é dinheiro.O dinheiro é ouro.Esses dois enunciados não são ambos verdadeiros, se se supuser

que eles têm um mesmo caráter lógico; ambos só serão verdadeiros seforem de natureza lógica diversa. Para que o primeiro enunciado seja

verdadeiro, ele deve ser lido como um juízo de reflexão, no sentidoanteriormente definido: o sujeito “ouro” não é posto, mas somente

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pressuposto. Este sujeito, simples sujeito gramatical, “passa no” predicado posto “dinheiro”. Ou, o que dá no mesmo, há “negação”tanto no plano do discurso como no plano do real, entre o sujeito e <“seu” predicado. Passando do sujeito “ouro” ao predicado “dinheiro”,

passa-se com efeito do universo antropológico geral ao universo que ésó das sociedades em que existe dinheiro.Uma falsa leitura desse juízo de reflexão, como se se tratasse de um juízo de inerência, nos conduziria a supor uma continuidade entre os dois termos: cairíamos no fetichismo. Com efeito, a leitura fetichista consiste precisamenteem interpretar esse juízo como um enunciado de inerência, em que osujeito “ouro” seria um verdadeiro sujeito em que, em conseqüência,o predicado exprimiria uma determinação desse sujeito. Considerandoo sujeito pressuposto “ouro” como um sujeito posto, se fetichiza a

relação, porque se faz assim do predicado “dinheiro” a qualidade,que só pode ser natural, do sujeito “ouro”. O segundo enunciado é, pelo contrário, um juízo de inerência. Ele significa: uma vez dada amoeda, esta tem como matéria (como forma material) adequada oouro — e não um boi, papel etc. Embora todos esses valores de uso possam servir como equivalente geral — o enunciado não exclui essa possibilidade — ele afirma que é o ouro a matéria congruente aoequivalente geral e que por isso se tornadinheiro. O predicado “ouro”é assim um verdadeiro predicado do sujeito “dinheiro”. Se do ouro ao

dinheiro só se passa através de uma descontinuidade, de uma “negação” , do dinheiro se passa sem “negação” . Dizendo: “o dinheiro éouro”, não faço mais do que exprimir o movimento pelo qual umaforma social “atrai” para si a materialidade que lhe é adequada. Eaqui também há possibilidade de uma falsa leitura do enunciado —mas falsa leitura inversa à anterior — a que consistiria em transformar o juízo de inerência em juízo de reflexão: a moeda seria umasimples pressuposição e enquanto tal “passaria no” ouro. Essa falsaleitura nos conduziria, como a falsa leitura anterior, a uma forma

ilusória de pensar a relação. Mas essa forma ilusória não seria mais ofetichismo. Se a transformação do juízo de reflexão em juízo de inerência instaura, no primeiro caso, uma leitura fetichista,a transformação do segundo enunciado — que é um juízo de inerência — em

juízo de reflexão ( “o dinheiro é... ouro”) nos levaria a cair no erro inverso que poderíamos chamar de "antifetichismo” ou de "convencionalismo”. No primeiro caso, o ouro se torna naturalmente dinheiro,no segundo o dinheiro só se toma convencionalmente (por convenção)ouro. Dois erros diferentes. Com efeito, contrariamente à sua versão

vulgar que como sempre só considera um lado, a crítica do fetichismoem Marx é apenas um dos lados de uma dupla crítica. Ã crítica dofetichismo (naturalização — não posição material das relações sociaiscoisificadas) corresponde o outro lado a crítica do convencionalismoou do “antifetichismo” (abstrato) (redução da objetividade social ao

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estatuto de signo arbitrário, recusa teórica de toda coisificação dosocial).79 Somos conduzidos assim a exprimir pela forma do juízo — e portanto em termos de uma teoria da proposição — o conceito defetichismo, ou antes, o da dupla ilusão ideológica fetichismo/convencionalismo, tal como ela aparece emO Capital.

e) Â forma do valor(cont.)

Benetti e Cartelier propõem ainda uma “segunda interpretação” daanálise da forma do valor, “demonstração recíproca” que seguirá urna vía“regressiva” e que deveria mostrar “com precisão” “o ponto em que se tro peça” e “fomecer preciosas indicações para a solução do problema, (pp.151-152)

“Tomemos como ponto de partida x mercadorias A = y mercadorias B,chamada forma I. A construção dessa forma se baseia em duas hipóteses queconvém explicitar desde já: a forma representa urna troca (efetiva), o que,utilizados os símbolos precedentes, se exprime por:

x(A) 5 y(B) (p. 152)O sentido desses dois signos (que os autores haviam introduzidona p.

143) já foi indicado( =s> significa “é expresso como valor relativo” e -*“é equivalente a”). Essa forma de que se parte na “segunda interpretação” nãoé, evidentemente, de Marx. A forma de Marx, Benetti e Cartelier a haviamrepresentado por

x(A) Z y (B) (p. 143)Esta última forma (a de Marx) se lê: xmercadorias A valemy merca-

dorias B, o que quer dizer: a mercadoria A é expressa como valor relativo, ou seacha na forma relativa, a mercadoria B se acha na forma equivalente. A forma pela qual Benetti e Cartelier começam a “segunda interpretação” (Hl) querdizer, pelo contrário, “o valor da mercadoria A é expresso como valor relativo”(ou a mercadoria A se acha na forma relativa)ea mercadoria A se acha (aínda) na forma equivalente (observar a posição das flechas nas duas fórmulas).

Que é que autoriza os dois autores a começar por aí — a escrever A é oequivalente de B e não o inverso? Se nos lembrarmos dos argumentos que elesintroduziram anteriormente, a resposta só pode ser esta: o que os autoriza acomeçar por aí é o fato de que em Marx a mercadoria A é um equivalentesubjetivo (mas puramente subjetivo, só para o agente A e não objetivamente)da mercadoria B. Esse equivalente subjetivo se torna aqui o equivalente pura esimplesmente. Mas o que é que autoriza esse deslizamento? O deslizamento éautorizado pelo fato de que eles não partem evidentemente da expressão — daexpressão objetiva — do valor, mas simplesmente, como eles mesmo dizem, deurna troca efetiva. Se se partir da troca efetiva (e não da expressão objetiva quea precede) não há mais expressão do valor, ou toda expressão do valor só podeser subjetiva. Com efeito, a troca em potência é o lugar da expressão objetiva,enquanto a troca efetiva (isolada do momento anterior) só comporta expressõessubjetivas. A troca efetiva, considerada em si mesma, só introduz uma equivalência "rasa” entre as duas mercadorias. Liquida-se assim o conjunto do problema no ponto de partida. Mas continuemos. A hipótese 1 dos dois

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autores,se se supuser que se trata de uma troca entre duas mercadorias, implica, evidentemente, na medida em que se pôs entre parênteses a expressãoobjetiva do valor — e diferentemente do que ocorre com a forma I de Marx —que a relação ésimétrica. Se a mercadoria A é “equivalente” (na realidadesubjetiva) de B (o que significa: o agente Aquer realizar o valor de suamercadoria) e “forma relativa” em relação a B (o que significa aqui: o agente Aexprime em B o valor da sua mercadoria, mas que é preciso apresentar aquicomo a expressão do sujeito na troca), é preciso dizer também e ao mesmotempo que a mercadoria B é ao mesmo tempo forma equivalente e formarelativa em relação à mercadoria A. (O agente B querrealizar o valor da suamercadoria B e, por outro lado, exprime em A o valor da sua mercadoria.) Mastudo isso, se se trata de um intercâmbioentre duas mercadorias. Se for outrocaso, isto é, se se introduzir o dinheiro, essa simetria desaparece. Ã parte as pressuposições anteriores, é pois supondo que se trata de duas mercadorias(hipótese que suprimirão mais adiante) que eles se permitem passar à segundahipótese: “H2: a relação construída com base na hipótese 1 é reflexiva, o que seexprime por:

x(A) | y(B)” (p. 152) Na realidade, o que eles exprimem aí não é a reflexividade da primeira

relação (a qual se escreveria x (A)% x (A)), mas a sua simetria. Mas elesacrescentam: “ou como habitualmente

x(A) = y(B)” (Ibidem)Antes de continuar, analisemos mais de perto a forma a que eles chega

ram (H2) comparando-a com Hl e com a forma I de Marx. Isto é importante para a compreensão e a crítica do que vem depois.Comecemos pela forma I de Marx. Na forma I de Marx x (A) = y (B)

(em que “ = ” quer dizer “exprime o seu valor em”), se tem uma relação a Rb,que é na realidade uma relação dupla, e que iríamos decompor da seguintemaneira, utilizando os signos anteriores:

RI => , A está na forma relativa em relação a BR2 «- , B está na forma equivalente em relação a A. No ponto de partida deles (Hl), tinha-se, pelo contrário:RI => , A está na forma relativa em relação a BR3 -> , A está na forma equivalente (trata-se na realidade do equivalente subjetivo) em relação a B.Agora, em H2, que se escrevex(A) £ y (B) ou x(A) = y (B)

temos as relações seguintes:RI => , A está na forma relativa em relação a B.R2 +- , B está na forma equivalente em relação a A.R3 -* , A está na forma equivalente em relação a B.R4 <= , B está na forma relativa em relação a A.Temos aí, pois, as quatro relações, a saber, as duas relações contidas na

forma I de Marx (RI e R2) mais uma que foi introduzida em Hl, a sãber,R3 (a outra relação introduzida em Hl já estava na forma I de Marx), maisuma nova relação R4.

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Eles escrevem em seguida: “A sucessão das formas se apresenta então d»seguinte maneira: como desenvolvimento da forma I. Reescrevamo-la:

x(A) «5* (B) em que x: ^ ey: ” (p. 152)80O que é que se tem aí? Na realidade, temos, como anteriormente, as

quatro relações distinguidas acima, só que elas estão agrupadas de um mododiferente, a saber, distinguindo a relação dupla que eles chamam x, e a relaçãodupla que eles chamam y. Ora, o que representam essas duas relações duplas?

x, «í , é a relação dupla que se encontra na forma I de Marx, a quecontém RI e R2.

y, $ , é uma outra relação dupla, que contém precisamente o que nãose encontra na forma de Marx, isto é, o que eles acrescentaram à forma deMarx, a saber, R3 (dado já em Hl) e R4 (dado em H2).

A última expressão, em que figuram a relação x (RI e R2) e a relaçãoy (R4 e R3), permite pois separar oque está na análise de Marx e o que eles

acrescentaram a ela, que é o que permite estabelecer asimetria da relação.Mas por que efetuar tal separação? Ela foi efetuada para que eles pudessem, em seguida, examinar as duas vias: a de Marx, para mostrar (comargumentos erróneos que já criticamos) que eles chegam a um impasse; e a dasua hipótese provisória (Hl e H2), para mostrar que ela conduz também a umimpasse. Nesse momento, eles reinterpretarão a hipótese que serve como pontode partida (Hl), introduzindo o dinheiro, o que eliminará H2 (que estabelece asimetria). E eles acreditam ter chegado com isso à solução — “solução” que,não menos do que a hipótese provisória (Hl e H2), representa na realidade aliquidação do problema. Assim se explica a razão do conjunto do trajeto.Trata-se de introduzir a simetria na forma I de Marx, para mostrar que com aintrodução da simetria (hipótese provisória, Hl e H2) como sem ela (caminhode Marx, lido à maneira deles), a análise da forma do valor é impossível.

Chegamos à parte final da sua critica:“A forma II é obtida generalizando a reláção X, abstração feita do

momento (o momento da forma II) de Y.81 Obtém-se:x(A) ^ y (B)

^ z(Q ” (p. 152)Como ler essa forma?82 Ela indica que A se toma equivalente geral de B e

de C. Como justificar essa forma? Trata-se ainda uma vez da confusão entreequivalente objetivo e equivalente subjetivo. Aqui ela remete diretamente àinterpretação que eles dão da forma II (p. 147), interpretação que já criticamos: os únicos equivalentesobjetivos que aí temos são os equivalentes particulares B, C etc. A é um equivalente geralsubjetivo que só existe para oagente

A. O equivalente geral — o equivalente geral objetivo — só aparecerá na figuraseguinte. O que não os impede de escrever em seguida: “Segundo Marx, aforma II tem como resultado a supressão da troca realizada na forma I(Não há necessariamente troca realizada na forma I e esta forma não é absolutamente suprimida na forma II, segundo Marx — RF): passa-se do valor ao‘valor subjetivo’ (vimos que Marx de forma alguma diz isso — RF) pois todasas mercadorias são ‘equivalentes’ para A (sim, mas por que isso nos faz

passar ao ‘valor subjetivo’? — RF)”.“Marx estabelece então a condição central: pode-se restabelecer o valor,

perdido na forma II (...).” ( Ibidem) (Em II não se perdeu nem o valor nem a

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forma do valor, nem portanto a forma equivalente do valor, não se pnada, salvo em certo sentido (pois se “suprimiu”, não se perdeu) a fsimples que se tomou forma desenvolvida e que reaparecerá em III mas cuniversal concreto — RF.) “Só se pode restabelecer o valor perdido na fo pela reinversão desta última. E ele (Marx) mostra que essa reinversão é sível.” ( Ibidem) [Marx não mostra, em lugar algum uma tal impossibilidnem mesmo na primeira versão da análise da forma do valor, como já camos — RF.]

O resto já conhecemos e já criticamos: a forma III só poderia ser o por “generalização”, da generalização resultaria a redução das merca“a simples produtos”, “o equivalente geral” só poderia, pois, "se encontconjunto definido pelos processos”, haveria em todo esse desenvolviment“contradição (lógica)”, istoé, uma contradição vulgar. Todas essas afirmsão falsas.83 O que não os impede de concluir: “Tal é a demonstraçMarx”. (p. 153) O mínimo que se pode dizer, evidentemente, é que esta né ademonstração de Marx, mas a “demonstração” de Benetti e Cartelier.

Assim, eliminados tanto (a versão deles d’) a apresentação de Marx a hipótese da simetria introduzida por H2, mas preparada pela leitumesmo tempo abstrata e subjetiva (precisamente porque se parte de umaefetiva) de Hl, abre-se a via que permite retomar o ponto de partida: “Qefeito de H2? A resposta é simples: através de H2 se atribui ao equivalenta qualidade de ser uma mercadoria, um dos n processos de trabalho. A cdição aparece claramente: a teoria das formas demonstra que o equivgeral não pode ser uma mercadoria; H2 deve pois ser suprimido. A foé então perfeitamente clara (seu mistério desaparece), x (A) é uma merce y (B) é a moeda que não deve ser um processo de trabalho. A generald’[a] F[orma| I mostra que a moeda deve ser exterior aos n proces(p. 154) Em lugar de reler Hl como expressão objetiva e não subjetiva dado valor na relação entre duas mercadorias, eles substituem a relação mdoria/mercadoria pela relação mercadoria/dinheiro. Isto não é evidentea solução do problema, mas como eles próprios dizem, “a supressão da qela mesma”, (p. 155)84 Seguem-se tentativas de criticar a análise da forvalor, a gênese lógica do dinheiro, recorrendo a outros textos de Maçx, texque “é introduzida a moeda” (p. 158) através de outras operações; a sa introdução de “bônus de horas” que seriam trocados pelas mercadorilugar do dinheiro, e a operação pela qual o produtor de ouro lança na circa sua mercadoria que já é aceita socialmente como dinheiro. Dois casos enão pode haver gênese: o primeiro porque não há nem haverá dinheisegundo porque o dinheiro já está lá.

Para terminar esse ponto, tentemos extrair conclusões gesobre o conjunto dessa crítica da análise da forma do valor. O eles chamam de “segunda interpretação” contém as três hipóteseseles consideram: de fato, esta retoma o núcleo da primeira inte

tação (pondo H2 entre parênteses, e interpretando Hl como relassimétrica) o qual, supondo a interpretação subjetiva, conduz àsolução da expressão; a isto se acrescentam duas outras hipótesesum lado, a de uma simetria (e em geral do caráter da equivalênci

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sentido corrente) da relação inicial, concebida como relação entreduas mercadorias, hipótese que eles mostram sem dificuldade quetambém conduz a um impasse; por outro lado, a resposta que é finalmente a deles — a de que a relação inicial é uma relação entre merca

doria e dinheiro — portanto a introdução de imediato do dinheiro —resposta que constitui na opinião deles mesmos a supressão do pro blema.

Ê preciso mostrar a significação profunda do conjunto desse procedimento — mostrar a diferença entre o que eles fazem e o quefaz Marx. Para isso, consideraremos somente as duas últimas res postas: a hipótese de um ponto de partida numa relação simétricaentre mercadorias e a hipótese de um ponto de partida no dinheiro,isto é, na relação mercadoria/dinheiro. (A primeira hipótese — assi

metria e subjetivização da relação — é finalmente menos interessante porque ela é ambígua e repousa de fato em erros de leitura.) Comovimos, esses dois pontos de partida eliminam ambos a possibilidadede uma gênese do dinheiro mas por razões inversas. No primeiro, porque não se pode sair do ponto de partida, o desenvolvimento é propriamentebloqueado. No segundo, porque esse ponto de partida éna realidade um ponto de chegada, o desenvolvimento éimediatamente acabado. Esses dois pontos que são na realidade, no primeirocaso, um ponto de partida, e no segundo um ponto de partida que éao mesmo tempo um ponto de chegada, iremos compará-los com o ponto de partida e o ponto de chegada da gênese do dinheiro emMarx. Mais exatamente: iremos comparar o primeiro e o segundo pontos (na medida em que esse último pode ser pensado como um ponto de partida) com o ponto de partida de Marx. E iremos comparar o segundo ponto (na medida em que ele pode ser pensado comoum ponto de chegada) com o ponto de chegada de Marx. Essas com parações mostrarão a significação profunda do que está em jogo.

Os dois pontos de partida propostos pelos autores nos põemdiante da seguinte alternativa: ou se começa por uma relação que é

pura e simplesmente uma relação entre duas mercadorias (e portantoem que o dinheiro está absolutamente ausente), ou se começa poruma relação que põe um diante do outro, mercadoria e dinheiro (e portanto em que o dinheiro está absolutamente presente); ou o dinheiro está pura e simplesmente presente, ou o dinheiro está pura esimplesmente ausente. Ora, como vimos, o ponto de partida de Marx,que é o único que possibilita a gênese do dinheiro, não coincide nemcom a primeira nem com a segunda dessas alternativas. Com efeito,esse ponto de partida não consiste nem em afirmar a ausência pura e

simples do dinheiro (caso em que a gênese é impossível porque se ficasempre no ponto de partida), nem em afirmar a sua presença pura esimples (caso em que a gênese também é impossível porque, inversamente, já se chegou ao ponto de chegada). Na hipótese de Marx,

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tem-se as duas coisas ao mesmo tempo: o dinheiro está e não está láCom efeito, na forma I de Marx temos algo como a presença da ausência do dinheiro. Ou mais simplesmente: temos aí não o dinheironem a sua ausência, mas, como vimos, ogerme do dinheiro.85 Como

vimos também, poderíamos exprimir esse ponto de partida de Mar pelo juízo de reflexão: “O dinheiro é... mercadoria” , isto é, “o dnheiro é... a mercadoria que se encontra na forma equivalente”, juízem que o sujeito “dinheiro” passa no “seu” predicado “mercadoriaque é o único termo posto. Isto quer dizer também que, nesse pontde partida, um dos termos (a mercadoria que se acha na forma relativa) é pura e simplesmente uma mercadoria, e o outro termo (amercadoria que se acha na forma equivalente) é uma mercadoriafetada pelo “dinheiro” (entre aspas — isto é, pela pressuposiçã(prospectiva) do dinheiro, a qual representa a forma equivalente)

A crítica do ponto de partida de Marx e, em geral, da sua análise da forma do valor pelos dois autores, consiste pois emreduzir essacontradição inicial, contradição dialética (pois nela ocorre uma Auf- hebung), único ponto de partida capaz de pôr em marcha esta gênesee, em forma geral qualquer gênese. O devir — vir a ser a partir dnão ser — só é possível se esse não-ser não for nem ser nem ausênc pura e simples do ser. O procedimento dos dois autores significa pois, por um lado se situaraquém da contradição, na tautologia:a mercadoria é a mercadoria. Nesse caso, a identidade não passa

não pode passar a nenhuma outra determinação. (Poder-se-ia pensaesse bloqueio como um juízo de reflexão, mas cujo predicado é próprio sujeito, à maneira pela qual Hegel pensa a identidade: mercadoria é... mercadoria.) Por outro lado, o procedimento dos doautores significa situar-se além da contradição, na não-contradiçãoa mercadoria não é o dinheiro ou o dinheiro não é a mercadoria. Sno primeiro caso é propriamente a identidade que substitui a contrdição, no segundo é a não-contradição que substitui a contradição

No primeiro caso, A = A, no segundo A # B. O procedimento dodois autores representa, pois, uma afirmação da lógica da identidade da não-contradição em face da dialética. Ê no fundo, no plano ddiscurso econômico, uma tentativa que se inscreve numa longa tradção de crítica da contradição e de justificação do princípio de identidadou o ser ou não-ser. Mas no ponto de partida da sua gênese, o dnheiro “participa” tanto do ser como do não-ser.

Mas a segunda alternativa considerada é também úm ponto dchegada. Comparemo-la desse ponto de vista com o ponto de chegadde Marx. As diferenças se revelam análogas às que encontramos pao ponto de partida. O ponto de chegada (que não é tal coisa por fal

de ponto de partida) dos dois autores é, pois, que a mercadoria nãoo dinheiro e que o dinheiro não é a mercadoria. No que se refere a ponto de chega, devemos nos fixar antes sobre o segundo juízo

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o dinheiro não é mercadoria. Precisamente, eles denunciarão em Marxa tese segundo a qual “o dinheiro é mercadoria”, tese que seria aorigem das dificuldades.86 Entretanto, não é verdade que para Marxo dinheiro é mercadoria, pelo menos se ficarmos lá. Para Marx odinheiro é e não é mercadoria. Gom efeito, se no ponto de partida odinheiro era e não era ao mesmo tempo a mercadoria que tomava aforma equivalente, no ponto de chegada, inversamente, a mercadoriaestá e não está no dinheiro. Ou, em outros termos, se o ponto de partida poderia ser expresso pelo juízo de reflexão: “o dinheiro é...mercadoria”, ou o dinheiro passava “no” seu predicado, único termo

posto, aqui é preciso dizer “a mercadoria é .. . dinheiro” , a mercadoria, apenas pressuposta (se a considerarmos, bem entendido, enquanto momento do dinheiro, pois a mercadoria se mantém de restocomo mercadoria) passa no dinheiro, o único termo que é posto nesse juízo. O dinheiro é aqui “negado” como a mercadoria o é no início, sóque no primeiro caso o dinheiro era uma pressuposição prospectiva,a mercadoria é aqui uma pressuposição retrospectiva. Ou, se se quiser, lá o dinheiro eragerme, ser na sua pré-história (lógica) que existia na mercadoria, aqui a mercadoria — tal como ela existe no dinheiro — ématerial, ser na sua pós-história (lógica), sobre o qual é posto o dinheiro.

Vê-se que, como para o ponto de partida, a resposta dos doisautores no que se refere ao ponto de chegada ou enquanto ponto dechegada, significa um esvaziamento da contradição em benefício dalógica da identidade. Observar-se-á, entretanto, que como acontece àsvezes coni os críticos sérios da dialética, Benetti e Cartelier são levados, sem o querer, a uma resposta contraditória,mas sob forma subjetiva de um paradoxo. “O ouro só é mercadoria enquanto ex-mercadoria!” exclamam os dois autores na página 156. Se se inter pretar o “ex” (“ ex-mercadoria”) não como se ele remetesse a um passado terminado mas a um passado presente enquanto passado termi

nado, teríamos aí uma boa formulação da relação contraditória mercadoria/dinheiro. Mas essa leitura significaria que passamos da antinomia à contradição, o que só poderia ser feito pela posição da antinomia.

Conclusão

Podemos, agora, concluir essa primeira parte. Conforme o quevimos, a crítica dos dois autores se apresenta em geral como uma

tentativa de “reduzir" a dialética pelas formas da lógica do entendimento. Digamos que há vários momentos no seu procedimento: elesdescobrem contradições em Marx (isto é o mais importante); eles asrecusam (como contradições vulgares) em nome da identidade; elesdescobrem, ou crêem descobrir, leituras ou textos de Marx que permi-

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tiriam evitar a contradição; propõem a sua própria alternativa, nãodialética, que pretende basear-se mais ou menos em certos textos deMarx; finalmente, sem querer, e em forma de paradoxo, são levados pelo menos uma vez a dizer a contradição.

Mas precisemos de que forma essa redução se apresenta atéaqui. Nesta primeira parte vimos a lógica da identidade abordar os problemas interiores à teoria da circulação simples. O obstáculo contrao qual eles se chocaram foi omovimento de constituição, a gênese (no caso, a gênese do dinheiro), movimento contraditório que se conclui pela constituição de umuniversal concreto. Como veremos, estanão é a única maneira pela qual se manifesta a contradição.

Por outro lado, a crítica dos dois autores aparece como umatentativa de questionar a materialidade na apresentação deO Capital. Esse questionamento da relação forma/matéria em Marx — questio

namento que, como vimos, supõe uma concepção puramente “formal”da apresentação deO Capital — incidiu, na primeira parte, sobre a passagem do valor de uso enquanto suporte do valor ao valor de usoenquanto material em que o valor se encarna (valor de uso formal).Mas, como veremos, o problema da matéria pode se apresentar tam bém sob outra forma. Observemos, para concluir, que esses'dois pro blemas: contradição, relação matéria e forma estão ligados: a relaçãoentre forma e matéria na apresentação deO Capital é uma relação de“negação” e de contradição. Voltaremos a isso tudo, de forma maisgeral, nas conclusões finais.

II. CIRCULAÇÃO SIMPLES, PRODUÇÃO CAPITALISTA

Na primeira parte, tentamos analisar os problemas que se situamno interior da circulação simples, e interessam o trabalho concreto e otrabalho abstrato, o valor de uso e o valor, a forma do valor, o dinheiroetc. O objeto dessa segunda parte será, primeiramente, a questão dosentido geral da circulação simples, a qual contém a da relação entre acirculação simples e a teoria do capital. Em segundo lugar, o objetoserá a teoria do capital, e num duplo sentido: por um lado, analisaremos o sentido geral da apresentação da teoria do capital (sobretudomas não exclusivamente no livro I de OCapital) — discutiremos aí,inversamente, a relação produção capitalista, circulação simples — e por outro lado nos deteremos sobre um certo número de pontos precisos (capital constante, no que se refere ao livro I; ciclo do capital,esquemas de reprodução, no que concerne aos livros II e III). Como na primeira parte, o desenvolvimento será ao mesmo tempo crítico e alternativo. Alguns pontos nos remetem direta ou indiretamente a problemasinteriores à circulação simples; será preciso às vezes, para completar aanálise, retomar o objeto da primeira parte.

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PRIMEIRA SECÇÃO

a) Introdução

A relação entre a circulação simples e a produção capitalistaé um tema central do livro de Benetti e CarteÚer. Como a propósito de outros pontos, eles propõem uma solução que tem como contra partida a critica das respostas anteriores, entre as quais a respostade Marx.

“(...) a passagem da mercadoria ao capital (é) um problema nãoresolvido.” 87 Acreditamos pelo contrário que, bem compreendida, a

resposta de Marx é efetivamente uma solução, senão a solução. Nessesentido não estaríamos de acordo com essa formulação. Entretanto,estamos totalmente de acordo com ela, no sentido de que seria difícildizer que a resposta de Marx foi, até aqui, bem compreendida. Dir-se-ia antes, que, a esse respeito, ainda não se resolveu de uma formarigorosa o problema do sentido da resposta de Marx. O que vemem seguida representa uma tentativa de resolver este último pro blema.

Já assinalamos o que constitui uma dificuldade preliminar. Aformulação que Benetti e Cartelier dão ao problema é em certa medidadiferente da que se extrai da leitura de OCapital. Eles falam, porexemplo, de “sociedade mercantil”. O que poderia dar a impressão deque o problema deles é outro, o que implicaria: não se poderia com parar a resposta deles com a de OCapital. Mas são eles próprios quecomparam as duas soluções. A diversidade aparente dos problemasdecorre na realidade da diversidade das soluções a um mesmo pro blema, ou mais exatamente, das dificuldades da solução que eles propõem (para a leitura deO Capital e para o problema mesmo), comoeste parágrafo o mostrará.

“Esse capítulo se propõe contribuir para o debate ininterrom- pido desde a origem da economia política sobre as relações entreos conceitos de mercadoria e de capital. O problema não foi sem pre exposto de um modo explícito; ele foi geralmente obscurecido pela evidência com que ocapitalismo se apresentava como sociedade mercantil de um tipo particular." (p. 132, grifo nosso) Eis aí o queconstituiria, para os nossos autores, tanto a característica como o pe

cado da interpretação tradicional: o capitalismo seriauma espécie do gênero “sociedade mercantil”. À relação entre a sociedade mercantil eo capitalismo seria uma relação degênero a espécie. No interior dessaorientação geral, eles distinguem a tendência neoclássica88 da tendência clássica, e no interior desta última duas abordagens diferentes: deum lado a de Ricardo-Torrens-Sraffa, mas “a análise crítica” permi-

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tiria mostrar que é só no que se refere ao seu projeto89 que os trêsautores iriam nessa direção; a outra abordagem clássica seria a deMarx e Smith. “O ponto de partida é aqui a teoria da mercadoria,e se passa à noção de capital pela adjunção de uma mercadoria suplementar: o trabalho assalariado em Smith e a força de trabalho emMarx.” (p. 133)90 “(...) mas aconcepção do capitalismo como sociedademercantil de tipo particular é incorreta.” (p. 136) Ã relação de gênero aespécie que supõe que a relação “entre proprietários de meios de produção e assalariados” (p. 135) é uma relação mercantil — é um intercâmbio de mercadorias — eles opõem a tese de que a “sociedademercantil” e o capitalismo são duas espécies de um mesmo gênero —“a sociedade monetária” (p. 136): “A proposição de que a força detrabalho é uma mercadoria ‘não tem significação’ (p. 112) Em Mar- chands, Salariats et Capitalistes, se propõem três hipóteses: Hl, que

estabelece a relação monetária; H2, que estabelece a relação “mercantil” (isto é, entre agentes de circulação simples); e H’2, que estabelece arelação de tipo capitalista. “(...) a teoria da mercadoria e a.teoria docapital têm uma hipótese comum, Hl: as formas sociais, objeto dasduas teorias, são monetárias, isto é, correspondem a um tipo particularde vínculo social, que definimos como separação.91 A partir dessa basecomum, mostramos que duas formas sociais alternativas podem serdescritas segundo as modalidades da separação igualitária, isto é, emque o modo da separação consiste numa relação entre elementos separados: tal é o conteúdo da nossa hipótese H2;92 não igualitária, isto é,em que o modo da separação consiste numa relação entre elementosseparados e não separados, portanto declarados: é o conteúdo da nossahipótese H’2.93 Compreende-se então que é possível elaborar a teoriado capital como uma extensão da teoria da mercadoria, pois H2 e H’2se excluem.” (p. 135) Em lugar de uma relação de gênero a espécie cujovínculo seria a relação mercantil, a troca de mercadorias, haveria umarelação de espécie a espécie, sendo o elemento comum a presença dodinheiro. Haveria, pois, um elemento comum entre a “sociedade mercantil” e o capitalismo (o que quer dizer que não seria correto separá-los completamente) mas este elemento — que é o dinheiro e não amercadoria — os situaria num mesmo plano de generalidade, comoespécies do gênero “sociedade monetária” .

Mas seria verdade que a tradição concebe a relação entre à“sociedade mercantil” e o capitalismo como uma relação de particularização? Mais precisamente, a passagem da mercadoria ao capital, emMarx, que se efetuaria pela adjunção de uma mercadoria particular,a força de trabalho, estabelece uma relação de gênero a espécie? Este éo problema que examinaremos, começando pela questão do sentido dacirculação simples emO Capital.

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primeira vez essa determinação (,..).”96 Esses textos mostram que nãoé verdade que, para Marx, o trabalho abstrato e o valor existemenquanto tais antes do capitalismo, mesmo se não desenvolvidos (isto é,sem desenvolvimento mas já no interior de umahistória). Para Marx,

fora do capitalismo trabalho abstrato e valor não existemenquanto tais (isto é, eles só poderiam existir como existem as coisas no interior deuma pré-história: elas existem e não existem). Como pensar então umateoria que tem por objetooutra coisa do que o capitalismo e queintroduz determinações que enquanto tais (isto é, não só como determinações desenvolvidas mas enquanto determinações simplesmenteconstituídas) só podem existir no capitalismo? Os que recusam a tesede que o objeto da secção I não é o capitalismo têm portanto razõessólidas para fazê-lo. Assumamos essas razões: a secção I de OCapital teria, pois, como objeto o capitalismo. Ora, já vimos que é precisorejeitar essa tese, por razões que são igualmente sólidas.Se considerarmos o movimento de "redução ao absurdo” de cada tese, somos assim conduzidos de um oposto ao outro num movimento infinito —um mau infinito — incessante. Esse movimentoantinómico que aparece se se fizer a crítica das duas teses opostas, surge na experiênciavivida de todos aqueles que tentam pensar rigorosamente a questão doobjeto da secção I: chega-se a uma resposta, se a expõe, e as razões quea fundamentam parecem satisfatórias. Mas num outro momento, des-cobre-se de repente que se está expondo a tese oposta. E é esta última

que aparece agora como bem fundada. Ê só num terceiro momento quese dá conta de que se está expondo a tese oposta à que se defenderaantes, e que apresentara títulos de igual validade. Aqui, a dúvida( Zweifeln) — como dizia Hegel — se toma desespero (Verzweiflung).Poderíamos nos refugiar num terceiro termo? Seria o caso, sem pro blema, se se tratasse de uma oposição, digamos, entre contrários. Masaqui opomos capitalismo a não-capitalismo, a oposição é entre contraditórios. Dever-se-ià pôr entre parênteses o princípio do terceiro excluído, como fazem certos lógicos, e supor que além da posição de umdos dois contraditórios, e a da contradição que só poderia nos conduziraparentemente à dissolução do discurso enquanto discurso rigoroso,haveria ainda uma outra possibilidade? Sem discutir a validade daslógicas sem terceiro excluído, pode-se dizer queaqui, um terceiro (quenão seja a contradição) não é, de modo algum, pensável. Qual seriaesse objeto social que não se situa nem no capitalismo nem fora dele? £afinal a descoberta dessa antinomia que constitui ou deve constituir onúcleo do procedimento de Benetti e Cartelier. Por vias que não sãoexatamente as que seguimos aqui, eles adivinharam o caráter contraditório da relação. E este é certamente um bom resultado, quaisquer quesejam as conclusões que eles tiram disso e o procedimento que elas instauram. Outros, marxistas demais ou antimarxistas demais para levara sério a apresentação deO Capital e se deter nela, não perceberam

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coisa alguma. Mas entre as vias fechadas que constituem o impasselógico, há uma que não exploramos suficientemente. E que nós nãoexploramos porque se trata daquela que aparentemente não merecianem mesmo exame, aquela que menos do que uma via fechada, seapresentava como o próprio fechamento . Por isso mesmo é como umdado imediatamente evidente que afirmamos que a contradição nosconduziria à dissolução do discurso (pelo menos na sua pretensão àverdade). E entretanto, é esse enunciado, imediatamente evidente, quese releva como o menos sólido. Como para o problema que vimos notexto anterior, a saída está no próprio fechamento.97 Para sair docírculo antinômico do mau infinito, é preciso, não buscar outras terras porque não há outras terras,98 mas seinstalar nesse círculo. Operaçãoque é assim a mais difícil, porque ela é a mais fácil. Em vez de fugir daantinomia, é preciso assumi-la, isto é, pô-la. A antinomia posta é a contradição. Deve-se dizer, portanto, que oobjeto da secção I é e não é o ca

pitalismo, ela se refere e não se refere ao capitalismo, eis a resposta.Mas uma tal resposta deve ser precisada. A resposta aos proble

mas que levantaO Capital não está sempre na contradição, embora acontradição represente a determinação fundamental. A articulação dotodo é contraditória. Mas por um lado a contradição não exclui aidentidade.99 Por outro lado, e sobretudo quando se diz que a solução

está na contradição, é preciso explicar o conteúdo particular da relação, mais do que isso, é precisodescobrir de dentro e na sua particularidade o conteúdo da relação, que de certo modo, se revela depoiscomo contraditório. (Senão correríamos o risco de cair no formalismo dacontradição, ou pelo menos, de parecer ter caído nela.)

Deve-se retomar agora a tese de que partimos, tese que diz que oobjeto da secção primeira é a circulação simples, e que a circulaçãosimples é a aparência do modo de produção capitalista. A circulaçãosimples é a aparência do modo de produção capitalista: isto significa

que, considerado num nível puramente fenomenal, o sistema nos revelaum conjunto de intercâmbios que tomados em si mesmos se apresentam como simples intercâmbios de mercadorias.100 Mas o problemaé difícil porque a circulação simples não trata só da aparência, entendida como circulação simples. A análise da secção I tem como objetonão só o intercâmbio de mercadorias, ela se interroga, e sobretudo,sobre os fundamentos desse intercâmbio. Temos assim a aparência e ofundamento dessa aparência. Entretanto os fundamentos são introduzidos aqui só como fundamentosdessa aparência. Não que eles desa

parecerão quando se passar à teoria do capital, mas eles sofrerão umaoperação fundamental. No momento, eles são portanto só os fundamentos da aparência. Por outro lado, mas isso é uma conseqüência,esses fundamentos são congruentes à aparência. Sem dúvida, o valor detroca aparecia como algo que é a tal ponto mutável que deveria sesubtrair a toda determinação, e os fundamentos estabelecem uma

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determinação. Mas de qualquer modo, fundamento e aparência seapresentam aqui como termos que têm uma relação de homogeneidade. Esse todo homogêneo constituído pelo fundamento e a aparênciaconstitui a produção simples de mercadorias, momento da produção

capitalista.101 Com efeito, essa totalidade homogênea fundamento - aparência que constitui a produção simples de mercadorias é ela pró pria aaparência do modo de produção capitalista. O sistemaaparece como um sistema que obedece às leis gerais da produção simples, istoé, ele aparece como se a sua finalidade fosse não a valorização do valor,mas a satisfação das necessidades. Por outro lado, e em conseqüência,a apropriação das mercadorias aparece não como resultado da exploração do trabalho deoutrem, mas direta ou indiretamente, comoresultado e conseqüência do trabalho próprio.

Tudo isto significa que a produção simples de mercadorias, que éum momento da produção capitalista, está na realidadeem contradição com as leis essenciais do sistema. Esta aparência do sistema,momento dele, remete a leis que sãoopostas às leis do capitalismo. Eentretanto trata-se, sem dúvida, de leis docapitalismo. As leis daessência “negam” , na realidade, esta aparência, quando a aparência seinterverte no seu contrário, quando se passa, quando ela passa, àessência. A aparência só existe no sistema (no conjunto do sistema, nosistema enquanto totalidade) enquantoaparência “negada (A mesmacoisa vale para a essência no nível da aparência — lá, ela é essência“negada” — mas é a essência e não a aparência que determina ocapitalismo enquanto capitalismo.)

Ora, a teoria que apresenta a secção I é precisamente a teoriadessa aparência, que é “negada”. Mas na secção I, porque se está no ponto de partida, põe-seentre parênteses essa “negação”. A aparência “negada ” pelo sistema é, aqui, posta. O que é negativo ou, antes,“negado” no sistema aparece aqui em forma positiva. Com isto, já setem a resposta ao problema de saber se a secçãoI tem por objeto ocapitalismo. Ela tem por objeto o capitalismo no sentido de que elatrata da aparência do capitalismo, aparência que, como vimos, é ela

própria unidade de uma essência e de uma aparência. Mas a secçãoI nãotem por objeto o capitalismo,no sentido de que ela põe o que o capitalismo nega, de que ela apresenta como positivo o que no capitalismo é “negativo”. Se se quiser, a teoria da produção simples emO Capital é a“negação de uma negação”. Este ser-“negado” do capitalismo que é asua aparência aparece aqui como um ser positivo: a “negação” que oafeta é, aqui, “negada”. O objeto da secçãoI de OCapital é pois decerto modo o capitalismo com os sinais invertidos, mas “sinais invertidos” remete aqui menos à operação de “negar” o que é positivo102do que a de pôr o que na realidade está “negado ”.

Ê pois em razão da dificuldade que oferece a idéia de que acontradição é pensável e o próprio pensar da contradição (mais preci-

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samente: desta contradição), que o caráter da secção I é tão malcompreendido. A partir desses resultados já poderíamos criticar aleitura de Marx que fazem os dois autores, e a partir de lá, a soluçãoque propõem ao problema da relação entre a circulação simples e a

produção capitalista. Mas examinaremos antes (no próximo item) arelação também a partir do outro lado, o que faltava fazer, isto é, a passagem ou as passagens da produção simples à produção capitalistaenquanto essência. E para terminar este parágrafo faremos duas observações.

A solução que propusemos para a definição do estatuto da circulação simples tem certa analogia com a solução que comporta um problemainterior à circulação simples que deixamos em suspenso na primeira parte desse texto.103 Perguntáramos qual era exatamente oestatuto dos momentos da pré-história lógica do dinheiro, postos nodecorrer da análise da forma do valor. Mais precisamente, o problemaera o de saber se esses momentos estão dados no objeto, que é aqui acirculação simples (enquanto momento do capitalismo) ou se eles eramoutra coisa: ou momentos de uma construção puramente teórica, ouobjetos dados numa situação historicamente anterior ao aparecimentodo dinheiro. Na realidade, nenhuma das duas respostas é satisfatória(nem a primeira, nem a segunda nas suas duas alternativas). Poder-

se-ia dizer que aí ocorre a mesma coisa que para o estatuto da circulação simples. Por um lado, a existência enquanto tal dos momentos dodinheiro (por exemplo da forma simples ou da forma desenvolvida) não

pode ser admitida, pois uma vez constituído o dinheiro — e na circulação simples como momento da produção capitalista e mesmo bemantes, o dinheiro já está constituído — esses momentos não existemmais enquanto tais, enquanto expressõesimediatas do valor dasmercadorias . Se há dinheiro, não há forma simples nem forma desenvolvida dovalor no que se refere à expressão imediata do valor das mercado

rias,104 pois então o dinheiro é o único a exprimir imediatamente ovalor das mercadorias, assumindo a expressão, desse modo, a forma preço. Mas a outra solução também não é satisfatória. Se essas formasnão existem, como justificar essa distância em relação ao objeto, isto é,à circulação simples (distância análoga ao recuo em relação à produçãocapitalista no problema discutido anteriormente)? Com efeito, comodissemos, se esses momentos não existem, ou se trata de uma construção que só existe no pensamento, ou se trata da visada de um objetohistórico anterior à circulação simples tal como ela se dá no capitalismo

e mesmo antes. Nesse último caso, voltaríamos à troca; no outro, a umdiscurso do conceito em sentido subjetivo (mesmo se logicista e não psicologista). Ora, a despeito do que dizem os althusserianos, se odiscurso dialético é um discurso do conceito, ele o é no sentido em que o“conceito” designa um objeto que existe no pensamento como narealidade.105 E quanto à regressão à troca, a queda na “fábula da

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troca” ,106 é difícil ver como a teoria da circulação simples enquantomomento do capitalismo poderia começar pela descrição de um objetoanterior à aparição do dinheiro. Ora, a solução é até certo pontoanáloga, sem ser idêntica, à do problema anterior: os momentos do

dinheiro existem e não existem no dinheiro, e portanto na circulação simples. Na realidade, esses momentos existem exatamente enquanto momentos do dinheiro, porque o dinheiro é universal concreto, comovimos, síntese do momento da simplicidade (forma I) com o momentoda pluralidade (forma II): eles só existem na forma dinheiro comodeterminações “negadas”, e não como determinações postas. Eles nãoexistem em forma positiva. Ora, a teoria (no caso a da gênese lógica dodinheiro) os põe enquanto determinações positivas. Assim, a posiçãodessas determinações corresponde e não corresponde, ao mesmo tempo,a objetos reais: corresponde, porque esses objetos (fazendo abstraçãodo “sinal” de que eles estão afetados) existem no real; não corresponde,no sentido de que as determinações só existem como determinações“negadas”, sendo que a posição (entendamos: a posição positiva)dessas determinações só é dada na teoria.107

A segunda observação é de ordem mais geral: o problema darelação entre circulação simples e produção capitalista enquanto capitalista, não deve ser confundido com o da análise das relações entre asformações mercantis que poderiam existir antes do capitalismo e ocapitalismo. Aqui se trata da relação entre a análise da secção I e ateoria do capital, ou se se quiser, no que se refere ao objeto, da relaçãoentre a circulação simples enquanto momento do capitalismo e a produção capitalista na sua essência. O outro problema o discutimosno texto anterior.108

c) Da circulação simples ao capitalExaminemos, agora,& passagem da circulação simples ao capital

tal como ela se opera quando se passa da secção I à secção II do livro I.Como veremos, só se tem aí uma primeira passagem. Ou, se se quiser,a passagem da circulação simples à produção capitalista enquanto produção capitalista não é ai plenamente realizada. Devemos estudar, pois, o alcance e os limites dessa passagem.

De um modo geral, deve-se dizer que o que se modifica, ao passarda circulação simples à produção capitalista enquanto produção capitalista, é a finalidade do processo que se encontra no objeto. Noslimites da circulação simples — ou da produção simples de mercadorias (fundamento da circulação simples em sentido estrito) enquantomomento da produção capitalista — a finalidade da produção e dacirculação é ovalor de uso, isto é, a satisfação das necessidades. Na produção capitalista enquanto prod. ção capitalista — que é a essênciada qual a produção simples é a aparência — a produção que visa o

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valor de uso se revela na realidade como produção que visa a valorização do valor. O valor de uso enquanto finalidade é a aparência“negada” pela (valorização do) valor, que representa a finalidade naordem da essência. A segunda finalidade “nega” a primeira. A seqüência M—D—M que caracteriza a aparência se inverte na seqüênciaD—M—D, ou mais precisamente, D—M—D’; não se visa mais obteruma mercadoria através do dinheiro, visa-se o aumento do dinheiroatravés da mercadoria. Mas é preciso analisar mais de perto o sentidodessa inversão.

Eis o essencial. Na circulação simples, o sujeito (e se deve entender aqui “sujeito” de uma forma limitada, pois nesse nível não háSujeito, como processo autônomo) — o sujeito é inicialmente a mercadoria. É na mercadoria que descobrimos a determinação valor de uso,e em seguida a determinação valor e a sua expressão na aparência,o valor de troca. Valor de uso e valor (com sua forma fenomenal)existem, pois, na circulação simples, inicialmente como determinaçõesda mercadoria. Isto não contradiz nem a idéia de que o valor é umfundamento (Grund ) — o fundamento do valor de troca — nem que asubstância do valor é o trabalho. Esse fundamento é fundamento queexiste na mercadoria; e que ele tenha sua substância (mas não suaexistência, ela mesma) no trabalho, não elimina o fato de que amercadoria permanece como o sujeito, do qual o valor é uma determinação. Podemos dizer, portanto, em primeiro lugar, que na circulaçãosimples “a mercadoria é Valor” (entendendo esse juízo como um juízode inerência). A mercadoria tem a determinação valor. Podemos dizer, por outro lado, que a “mercadoria é (também) valor de uso” , ela temcomo determinação o valor de uso. Da mercadoria, passa-se em seguida ao dinheiro, pelo movimento analisado anteriormente. Mas se odinheiro “nega” a mercadoria, a mercadoria — como vimos — permanece de resto mercadoria. Temos assim, no final da gênese do dinheiro,e também no final do desenvolvimento das formas do dinheiro, tanto odinheiro (que é mercadoria “negada”) como a mercadoria enquantomercadoria. Ora, não menos do que a mercadoria, o dinheiro temcomo determinação o valor (é o preço que não convém ao dinheiro).Pode-se dizer: “o dinheiro é valor”, enunciado que deve ser compreendido igualmente como um juízo de inerência. Por outro lado, o dinheirotem valor de uso: mas, como vimos também, o valor de uso do dinheiroé um valor de uso formal, o de ser útil para as funções de dinheiro.109De qualquer modo, pode-se dizer: “o dinheiro tem valor de uso”.

Mas se a mercadoria e o dinheiro permanecem sendo os sujeitosda circulação simples, a mercadoria é primeira em relação ao dinheiro,o que quer dizer que o valor de uso material é primeiro em relação aovalor de uso formal. O valor de uso formal é simplesmente intermediário, a mediação que permite a realização do valor de uso material.Ou, em outros termos, o dinheiro é apenas o mediador que, através da

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realização do valor, permite a realização do valor de uso que é afinalidade de todo o processo. (Ê só nas últimas formas do dinheiro queele vai aparecer como fim, mas trata-se aí de uma espécie de negaçãoda circulação simples no interior da circulação simples.)

Essa anterioridade da mercadoria em relação ao dinheiro apareceno fato de que, no movimento das trocas mercadoria/dinheiro, a relação entre a mercadoria e o dinheiro continua sendo uma relação ex-tema. Não há nenhum Sujeito autonomizado que estabeleça relaçõesinternas entre os termos. Enquanto só se tem relações externas, o dinheiro, encarnação material do valor, é apenas o mediador para arealização do valor de uso das mercadorias (pela mediação da realização dos seus valores).

Quando passamos da circulação simples à produção capitalista

enquanto produção capitalista, os juízos anteriores que têm por objetoo valor se inverterão. Não diremos mais que “a mercadoria é valor” eque “o dinheiro é valor”. Diremos agora “o valor é mercadoria”,“o valor é dinheiro”. O valor, que era predicado, torna-se aqui sujeito.Poder-se-ia acrescentar ainda que, agora, o dinheiro será primeiro emrelação à mercadoria. Mas isso não diz tudo o que se modifica na passagem da circulação simples à produção capitalista enquanto produção capitalista. Isto não diz nem mesmo o essencial. É que se o valorse torna sujeito, ele não se toma sujeito na forma em que a mercadoriae o dinheiro o eram, na forma do sujeito inerte ou do sujeito substancial. No nível da circulação simples todas essas determinações sóexistem em forma substancial. O próprio valor é somente trabalhoabstrato cristalizado (e se, enquanto trabalho ele não é inerte, eletambém não tem valor, pois o valor é trabalhocristalizado).

A passagem da circulação simples à produção capitalista enquanto produção capitalista representa, pois, em primeiro lugar a passagem do valor do nível da substância (do nível de relativa inércia) ao deSujeito, entendendo por “Sujeito” não somente a determinação primeira de que as outras são predicados, mas um processo autônomo,

um movimento que se autonomizou e se transformou numa força social.Isto quer dizer que a relação entre a mercadoria e o dinheiro natroca não é mais exterior, cada troca faz parte de uma cadeiainterna detrocas, que se autonomizou tomando-se assim capital. É a partir distoque se deve pensar a inversão valor/mercadoria e valor/dinheiro. Nãose trata simplesmente de fazer do valor o sujeito inerte da determinaçãomercadoria ou da determinação dinheiro. Enquanto objeto inerte, ovalor só pode ser um predicado. Ele só vem a ser sujeito, vindo a serSujeito. É como movimento autonomizado que ele vem a ser o sujeitodas determinações dinheiro e mercadoria. Assim, dir-se-á agora maisexatamente: “o capital é mercadoria”, “o capital é dinheiro”. E se nacirculação simples a mercadoria era uma determinação primeira emrelação ao dinheiro, agora é o dinheiro enquanto determinação do

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capital que é anterior à mercadoria enquanto determinação do capital.O dinheiro, encarnação material do valor é a “forma de existênciageral” do valor no movimento D—M—D’, a “mercadoria (é) a suaforma particular e, por assim dizer disfarçada(verkleidet)”. (W.23,K.I, p. 168;Oeuvres, Économie, I,op. cit., p. 700) Os juízos “o capitalé mercadoria”, “o capital é dinheiro” não são juízos de reflexão,enquanto o capital se mantém enquanto capital. Eles só o serão se omovimento se interromper, com o que o capital se tomará mercadoriaou dinheiro. Teremos então os juízos de reflexão “o capital é ... mercadoria” , “o capital é ... dinheiro” .110 Mas os juízos “o capital é mercadoria” e “o capital é dinheiro” (supondo a identidade capital = ca pital, isto é, a continuação do movimento)também não são, por outro lado, rigorosamente, juízos de inerência. Eles têm em comum com os

juízos de inerência o fato de não haver aí reflexão no predicado. Mas se trata na realidade de um juízo de um terceiro tipo, que poderíamos chamar de juízo do Sujeito. Não faremos aqui, de uma maneira detalhada, a teoria desses diferentes tipos de juízos. Digamos simplesmenteque a diferença em relação aos juízos de inerência (do tipo “o dinheiroé ouro” ou “a mercadoria é valor” ou “o dinheiro é meio de circulação”) reside no fato de que, aqui, o próprio Sujeito é constituído poruma relação denegação entre os predicados. O capital só é capital pelomovimento pelo qual a mercadoria “nega” o dinheiro e o dinheiro

“nega” a mercadoria. Enquanto que para o julgamento de inerência,cujo sujeito é inerte (embora constituído) a negação de um predicado pelo outro, quando ela ocorre (por exemplo: certas funções do dinheiroexcluem outras), embora dada, não é, ela própria, constitutiva dosujeito. O sujeito recebe diversas determinações que se “negam”. Ao passo que no capital o sujeito só é sujeito — ou antes Sujeito — pelanegação (contínua) das determinações.

Entretanto, com a passagem da secção I à secção II do livro I, sóchegamos à primeira negação da circulação simples. Alguma coisa da

circulação simples se mantém aí. Isto será mais bem explicado quandotratarmos da segunda negação. Mas já podemos fazer as seguintesobservações: 1) até chegar à teoria da reprodução, o movimento docapital tem pressuposições que são pressuposiçõesexternas, a saber, ofato de que há por um lado alguém que dispõe de meios de produção ede dinheiro, e, por outro, alguém que só dispõe da sua força de tra balho; 2) no mesmo sentido, até a secção VII, sobre a reprodução — eembora no momento em que é introduzida a noção de capital, ele sejaapresentado como um movimento incessante — os movimentos circu

lares do capital são isolados uns dos outros. Eles são apresentados, nostextos teóricos, como voltas independentes umas das outras, e mediati-zadas por um (novo) contrato entre capitalista e operário.

Ora, esses dois elementos, o fato de que as pressuposições semantêm externas e o fato de que os sucessivos movimentos circulares111

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do capital sejam considerados ainda como sendo interrompidos por umcontrato de trabalho» têm como conseqüência que algumas das leis dacirculação simples, a saber, o princípio do intercâmbio de equivalentes,e (princípio que é a base desse último) o princípio da apropriação dos

produtos pelo próprio trabalho, não são “negados” ,mesmo se já se inverteu a finalidade geral do processo.Cem efeito, se se considerar cada volta isoladamente — a coisa

muda se considerarmos as voltas ligadas por um movimento contínuo112 — o intercâmbio entre o proprietário dos meios de produção e o proprietário de força de trabalho — intercâmbio que se revelará entretanto momento do movimento deO Capital — é umatroca de equivalentes. O operário fornece uma mercadoria — a força de trabalho —que nas condições normais supostas é alienada por uma soma querepresenta o seu valor. Temos aí uma troca de equivalentes, quaisquerque sejam as conseqüências desse intercâmbio. Sem dúvida, partimosde uma situação que parece diferente da de uma troca comum. Comefeito, para que essa troca seja possível, é preciso que haja uma espéciede dissimetria entre os dois agentes: um deles deve possuir meios de

produção e dinheiro, e o outro não. Mas essa dissimetria não põe emcheque o caráter de troca de equivalentes da operação (considerada nonível em que se a considera). Com efeito, os meios de produção (ou aausência deles) não entram na operação, ela mesma, que consiste emtrocar força de trabalho contra dinheiro. Por outro lado, se se quiser

introduzir a dissimetria, nada nos impede pensar que ela resulta dacircunstância de que um dos agentes trabalhou mais do que o outro.Como não sabemos nada das origens da situação, é possível que um dosagentes disponha de meios de produção porque ele trabalhou umnúmero maior de horas do que o outro. Em outros termos, fora o fatode que os meios de produção são afinal exteriores à operação, a sua presença de um lado e a sua ausência de outro poderiam, de qualquermodo, ser explicadas pelo princípio daapropriação pelo trabalho pró

prio. Assim, a troca de equivalentes e as leis de apropriação pelotrabalho próprio não são postas em cheque pela simples inversão dafinalidade do processo (e pela constituição do capital como Sujeito),enquanto as pressuposições permanecerem externas, e enquanto omovimento não for pensado na forma de um movimento descontínuo,interrompido no final de cada volta pelo contrato entre os dois agentes.

d) A reproduçãoMas tudo o que vimos até aqui representa apenas a primeira

negação. Há uma segunda negação, bastante mal conhecida, que sesitua no nível da passagem da secção VI à secção VII deO Capital.113Poderíamos apresentar essa segunda negação em momentos sucessivos.Em primeiro lugar, se em lugar de considerar as voltas do capital como

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voltas isoladas, interrompidas por contratos, se as considerar em continuidade — e é justamente isto o que caracteriza a passagem da noçãode produção à de reprodução — a relação entre capitalista e operárionão aparecerá mais como um ato livre que decorre da vontade dosagentes, como os atos da circulação simples. Se se supuser a continuidade do movimento — e basta supô-la nos limites da reproduçãosimples — a segunda venda da força de trabalho aparece como um atoforçado, pois o operário, como o capitalista, em condições normais érecriado pelo próprio movimento da reprodução. E a mais-valia obtida(a que o capitalitsta obtém no final da segunda volta do capital) aparecerá como o resultado desse ato forçado. Assim, se se supuser acontinuidade do movimento, mais precisamente, o fato de que o movimento recria constantemente o capitalista e o operário, o contrato livreque permite a troca de equivalentes aparece como coisa bem diferentede um contrato livre. O contrato é agora a aparência de um ato que nãoé mais de liberdade. Entretanto, esse ato forçado tem ainda algumacoisa de uma troca de equivalentes. Sem dúvida, se o ato não é maislivre, não se pode mais considerá-lo como resultado de um contrato, enesse sentido não há mais, a rigor, intercâmbio de mercadorias. Emlugar da troca, deve-se dizer que háapropriação. E por isso mesmo,não se deve mais comparar salário e força de trabalho, isto é, umamercadoria e uma soma de dinheiro que corresponde ao valor dessamercadoria, deve-se comparar o valor em dinheiro que é transferido aooperário com ovalor que ele produz. Ora, uma parte do valor que ele produz e que é apropriado é de qualquer modo compensado pelo fatode que há uma transferência de uma soma de dinheiro, que representao mesmo valor, das mãos do capitalista às mãos do operário. É amais-valia que aparece rigorosamente como trabalho extorquido, istoé, apropriado como todo valor criado, mas não compensado por umdesembolso correspondente por parte do capitalista. Ora, para evitarque toda legitimidade da operação (em termos das leis da circulaçãosimples) desapareça imediatamente (com a circunstância de que amais-valia é agora, rigorosamente, trabalho extorquido), é precisosupor que tudo se passa como se o capitalista contraísse dívidas emrelação ao operário. E para que se possa “registrar” essas dívidas, é preciso supor que o capitalista não tem direito à totalidade do capitalvariável que é constantemente recriado. O capitalista terá direito sem pre a esse capital reconstituídomenos a mais-valia que, em cada volta,ele se atribuiu.114 O que significa: para que o processo não percaimediatamente todo tipo de legitimidade (legitimidade que, sem dúvida, só pode ser estabelecida a partir da circulação simples), é precisosupor que cada vez que o capitalista desembolsa o capital variável eleestá desembolsando de fato o seu capital primitivo115 e não um capitalque foi (re)criado pelo operário (pois todo o valor criado pelo operárioresulta do trabalho forçado)-, e que no capital variável primitivo se

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fizeram descontos sucessivos correspondentes â mais-valia. obtida. Nessas condições, embora sendo uma apropriação e não uma troca, aalienação da força de trabalho ainda é, entretanto, uma apropriaçãocompensada por um. valor equivalente. A mais-valia apropriada édeduzida do capital variável primitivo.116 Mas essa compensação chegaao limite — este é o movimento seguinte, na realidade o mais importante — quando a totalidade da mais-valia apropriada vem a ser equivalente ao capitai variável primitivo.117 Eníão, não há mais capital primitivo que possa substituir a mais-valia, e a totalidade do valor produzido pelo operário aparece como trabalho simplesmente apro priado sem compensação. Restaria entretanto o capital constante.Enquanto a mais-valia apropriada não corresponde ainda à totalidadedo capital investido mas somente ao capital variável, essa apropriaçãoforçada e sem compensação tem sempre por base uma soma inicial,que o capitalista adquiriu, talvez através do próprio trabalho. A apro priação pelo trabalho próprio e pelo intercâmbio de equivalentes poderia, pois, ser ainda a base inicial dessa situação em que não há maisequivalência e em que há uma outra lei de apropriação. Esta última possibilidade desaparece, ela mesma, no momento em que a totalidadeda mais-valia apropriada equivale ao conjunto do capital. A partirdesse momento, “nenhum átomo de valor do seu capital primitivo continua a existir”. (W.23, K.í, p. 595;Oeuvres, Êconomie I,op. cit., p. 1071) Consuma-se então a negação da lei de apropriação da circu

lação simples, e do seu fundamento, a troca de equivalentes. A lei daapropriação pelo trabalho próprio e o intercâmbio de equivalentes setransforma na lei de apropriação sem troca do trabalho de outrem.118Ê o que Marx denomina “interversão das leis da propriedade da produção de mercadorias em leis da apropriação capitalista” . (W.23,K.I, p. 605;Oeuvres, Êconomie I,op. cit., p. 1081) E o que há deimportante nessa interversão — e é por isso que há rigorosamenteinterversão — e que a inversão se faz pela própria aplicação das leis dacirculação simples. “Por muito que o modo de apropriação capitalista pareça assim ferir as leis originais da produção de mercadorias, ele nãodecorre de forma alguma da violação dessas leis, mas, pelo contrário,da aplicação delas.” (W.23, K.I, p, 610;Oeuvres, Êconomie I,op. cit.,

p. 1081) “ Somente lá onde o trabalho assalariado é a sua base(Basis), a produção de mercadorias se impõe ao conjunto da sociedade; mas é sólá também que ela desenvolve todas as suas potencialidades ocultas. Dizer que a interposição do trabalho assalariado falseia a produção de mercadorias significa que se a produção de mercadorias não quiser ser falseada, ela não pode se desenvolver. Na medida mesmo em que segundoas suas próprias leis imanentes ela se ‘aperfeiçoa’ ( fortbildet ) em produção capitalista, nessa mesma medida as leis de propriedade da produçãode mercadorias se intervertem (umschlagen) em leis da apropriação ca pitalista.” (W.23, K.I, p. 613;Oeuvres, Êconomie I,op. cit., p. 1090)

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e) Retomo á crítica

Voltemos agora ao texto de Benetti e Cartelier. Vimos que eles su põem que, para Marx, a relação entre a produção simples de mercadorias e a produção capitalista enquanto produção capitalista é uma relação de particularização, representando a produção capitalista um tipo particular de produção de mercadorias. Insatisfeitos com essa (pretensa)resposta de Marx, eles propõem um outro esquema em que, para usar asua linguagem, a “sociedade mercantil” e “sociedade capitalista” (p.70) (ou “o modo de produção salarial”, p. 190), representam “duasformas sociais alternativas” (p. 135) que têm em comum a característica de serem ambas “sociedade(s) monetária(s)”. (p. 136) Ê a alternativa deles à tese em que os “(sujeitos) capitalistas são concebidoscomo uma especificação” (p. 53) dos sujeitos mercantis.Mas por que essas duas respostas (essa falsa leitura de Marx eessa alternativa a essa falsa leitura)?119 Se para eles a relação que Marxestabelece entre a circulação simples e a produção capitalista aparececomo uma relação de particularização, isto se deve ao fato de que eles percebem que, em Marx, a produção capitalista tem suas leis e determinações primeiras — podemos dizer leis e determinações gerais — nacirculação simples. Ê o fato de que as leis da produção simples funcionam como princípios para o capitalismo (deixamos de lado por enquanto o “sinal” desses princípios) que faz com que a relação seja pensada como uma relação de particularização.

Se, em segundo lugar, eles não estão contentes com essa resposta,é porque eles se dão conta de que em Marx (e de fato) há uma relaçãode oposição, podemos dizer de contradição, entre “produção simplesde mercadorias” e “produção capitalista”. Mesmo se os dois termostêm algo em comum, ao mesmo tempo um é a negação do outro. Ora, parece irracional supor que a relação entre esses dois termos possa serao mesmo tempo uma relação de princípios e conseqüências (introduzindo um novo tipo de mercadoria) e uma relação de oposto a oposto emesmo de contraditório a contraditório. Se os termos são contraditórios, exclui-se que um possa fornecer princípios ao outro. Eis aí aessência da sua crítica.

Como se vê, as bases do argumento são pertinentes: há efetivamente uma relação de princípios e conseqüências, e é totalmente certo(embora os marxistas, em geral, não o digam) que a relação é decontraditório a contraditório. A dificuldade da resposta deles não está, pois, nessas bases, que são válidas, mesmo se eles as exprimem de ummodo incorreto (“particularização”), mas no fato de que, para eles, sedeve evidentemente excluir a possibilidade de uma relação que seja aomesmo tempo de princípios e conseqüências e de contraditório a contraditório: uma relação de fundação (na realidade de “fundação”) queseja ao mesmo tempo uma relação de contradição.

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Mas é esta resposta contraditória que é, como vimos, a respostade Marx. E dizer que a relação entre “produção de mercadorias” e“produção capitalista” é ao mesmo tempo de princípio a conseqüênciae de contraditório a contraditório exclui tanto a idéia de particulari

zação como a de que os dois termos se relacionam como uma espécie auma outra espécie. Na realidade, a relação é de “negação”. E “negação” significa aqui não só que no segundo termo o primeiro é ao mesmtempo negado e consérvado, mas que no segundo termo ele é ao mesmtempo plenamente realizado e negado. De fato, a produção capitalistaenquanto produção capitalista é a realização plena das leis da “produção simples de mercadorias”; é só quando ela passa às leis do capitalque a produção de mercadorias ganha toda a sua extensão e intensidade. E entretanto as leis da produção capitalista enquanto produçãocapitalista contradizem as leis da produção simples de mercadorias. A produção simples de mercadorias, ela própria, como vimos, unidade duma essência e de uma aparência, se torna, por um lado, a aparênciacuja essência é constituída pelas leis do capitalismo enquanto capitalismo. Por outro lado, ela continua fornecendo os princípios para ocapitalismo (a lei do valor em primeiro lugar) mas esses princípios sãoagora princípios “negados”, princípios que só são válidos supondo queles, ou suas conseqüências, se intervertem no seu contrário. Paraapresentar o capital, será assim necessário partir das leis da circulaçãosimples e depois contradizê-las, porque essas leis se contradizem a s

mesmas.Vemos com isto em que limites poder-se-ia falar de generalidadea propósito da circulação simples: ela é mais geral se se quiser dizercom isto que ela é mais simples. Mas o desenvolvimento da generalidade, nesse sentido, não é a particularidade. É a complexidade. Mas acomplexidade não somente como desenvolvimento da simplicidade. Sfosse esse o caso, passaríamos do esquema das classes ao esquemaclássico da passagem do simples ao complexo. A novidade da dialéticaé que o complexo vem a ser ocontraditório do simples.

(Se passarmos da relação lógica tal como ela aparecem emO Ca pital ao problema da relação entre formações históricas, a respostatambém não será encontrada nos pares gênero/espécie ou espécie/espécie. As formas mercantis anteriores ao capitalismo não estão parao capitalismo como o geral ao particular. Eles se contradizem e elestambém não estão entre si como a espécie à espécie porque o que os lignão é um caráter geral, um é o desenvolvimento do outro. A relação ainda de “negação” ou de pressuposição. Mas se emO Capital o primeiro termo é a pressuposição lógica do segundo, aqui ele será a pressuposição histórica: isto implica diferenças que indicamos ante

riormente (ver nota 108). Se a consideramos nesse nível, vemos claramente que a produção de mercadorias só se realiza negativamente. Elsó é idêntica a si própria se ela não for desenvolvida, e ela só pode s

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desenvolver negando-se a si própria. E vemos por aí em que sentido ocapitalismo pode ser considerado por sua vez como a forma geral da produção de mercadorias: ele é o universal concreto da produção demercadorias, o particular — o único particular — que realiza plenamente, mas por isso mesmo contraditoriamente, as leis da produção demercadorias. Nesse sentido, poder-se-ia dizer também que a relaçãoentre produção de mercadorias e produção capitalista é ao mesmotempo de espécie a espécie e de espécie a gênero. O capitalismo é aespécie que se toma gênero e que por isso “nega” as outras — no caso aoutra espécie: a produção simples.)

O que se deve assinalar ainda é que as determinações contraditórias em relação à “produção simples de mercadorias” que os dois autoresencontram na produção capitalista são de uma maneira bastante precisaaquelas que o próprio Marx apresenta no nível da segunda negação, da teoria da reprodução. É assim que eles insistirão sobre o fatode que a relação salarial não representa um intercâmbio de mercadorias, que a força de trabalho não é uma mercadoria, que a circulação do capital contradiz o princípio de equivalência: “Define-secom isto a modalidade da repartição do valor em salário e mais-valia.Essa repartição não pode ser interpretada como relação de intercâmbio entre assalariado e capitalista (...). Não há aí nenhumaequivalência, portanto nenhum intercâmbio de mercadoria”, (p. 173, grifado pelos autores) “As condições que produzem o trabalho assalariado, postas em evidência por Marx, bem longe de serem compatíveis com a sociedade mercantil, a contradizem e tomam auto-contraditória a identificação do modo de produção capitalista comuma sociedade mercantil em que a força de trabalho seria mercadoria.” (p. 190) “Marx, na secção II do livro I de OCapital levanta o problema da mais-valia como sendo o doincremento de valor de umcapital cuja circulação é regulada, entretanto, pelo princípio da equivalência. Essa contradição não pode ser superada, como o mostram assoluções que Marx apresenta (...).” (p. 168, grifado pelos autores)E entretanto, buscar-se-á em vão em Marchands, Salariat et Capita- listes uma análise da reprodução enquanto ela interverte as relaçõesde apropriação.120

SEGUNDA SECÇÃO

Examinaremos agora certos problemas ligados à teoria do capital, problemas que se relacionam aliás freqüentemente com a questãodo vínculo com a circulação simples. Trata-se em geral de questões bastante técnicas, e que se situam, muito mais do que os pontosanteriores, no interior do âmbito da economia. Aqui, mais ainda do

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que em outros lugares, tratar-se-á não de teorizar sobre o conteúdomesmo das noções, no caso o capital constante, os ciclos etc., mas demostrar que a crítica que fazem os dois autores ao desenvolvimento queMarx dá a esses conceitos fica aquém do seu objeto. Estas considera

ções deveriam ser retomadas num nível propriamente econômico.a) Sobre o capitel constante; sobre a constituição do valor

dos meios de produçãoO primeiro problema é o da determinação do valor dos elementos

do capital constante.121 Ele remete a uma crítica à economia clássicaque aparece em vários momentos deO Capital.122 Neles Marx questiona um ponto, relativo ao capital constante, da teoria da reproduçãode Adam Smith.

Se o valor é trabalho cristalizado,123 a determinação do valor deuma mercadoria exige aparentemente que se possa “alcançar” o trabalho que o produziu (ou um trabalho que possa representá-lo). Ora, seconsiderarmos o produto anual, digamos de um ramo, que é constituído por c + v + pl, no que se refere a uma parte do valor do produto(o que constitui o produto valor) —- (v + pl) — pode-se facilmenteremontar ao trabalho, porque se trata do trabalho que foi realizado noano em que, propriamente, foi feito esse produto. O mesmo não se dáno que se refere ac, e é lá que aparece o problema. Para que o valor

que corresponde a c possa ser determinado, seria necessário, pelomenos aparentemente, que se pudesse remontar até o trabalho que o produziu ou até um trabalho que possa representá-lo. Esse trabalhonão o encontramos no ano considerado, pelo menos no ramo considerado, porque o valor que corresponde a c, como é sempre o caso para a

parte do valor total de uma mercadoria que corresponde ao valor dosmeios de produção consumidos na sua produção, é um valor que nãofoi criado no momento da produção dessa mercadoria, mas que foisimplesmente transferido. Ora, como “alcançar” o trabalho de que seoriginam esses meios de produção (ou um trabalho correspondente)?Aparentemente só haveria duas possibilidades. Em primeiro lugar, poder-se-ia supor que o valor de c foi criado simultaneamente mas nãono ramo considerado (ou então que se encontraria um trabalho análogonum outro ramo): tratar-se-ia pois de trabalho produzido no decorrerdo anonum outro ramo. Ê a esta solução (pensável se se tratar de umtrabalho análogo) que deveria remeter a idéia de Adam Smith segundoa qual a decomposição do produto anual (na linguagem de Marx emc + v + pl) só seria válida para o capital individual; no nível do capitalsocial, o produto c + v + pl se reduziria a v + pl. E isto porque c se

decompõe igualmente em c + v + pl, até que não se tenha mais do quev + pl. Ora, Marx rejeita formalmente tal redução: “(.. .) todo o pesodesse argumento está na expressão ‘e assim por diante’(usw) que nos

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remete de Pôncio a Pilatos [sem nos deixar entrever o capitalista nasmãos do qual o capital constante, isto é, o valor dos meios de produçãodesapareceria finalmente].124 Na realidade, Adam Smith interrompe asua pesquisa lá precisamente onde começa a dificuldade”. (W.23, K.I, p. 616;Oeuvres, Économie I,op. cit., p. 1094) A outra possibilidadeseria uma solução histórica: seria preciso determinar o trabalho passado qúe criou os meios de produção que entram, no ano que se considera, como parte do valor do produto (mas não do produto-valor). Ora,essa solução também não seria satisfatória. Por um lado, Marx insisteno fato de que a determinação do valor se faz considerando as condições atuais da produção e não as condições passadas (mas vimos que,se nos limitarmos à atualidade, só poderemos determinar a partecriada durante o ano); por outro lado, o recurso ao passado nosconduziria a uma regressão infinita, análoga à que se constitui, comovimos, para o presente, no argumento de Smith (ou então ela noslevaria a nos deter, sem completar a regressão, no início do capitalismo, que começa com meios de produção legados por modos de produção anteriores). Como determinar então o valor de c no produtoc + v + pl?

É a esta dificuldade que nos remete aparentemente a crítica dosdois autores. “O primeiro procedimento (para a determinação do valorde c; um primeiro procedimento é eliminado imediatamente comotautológico — RF) (...) deve ser examinado segundo as duas modalidades alternativas: temporal e simultânea. / Seja a primeira eventualidade. Ela implica que o valor transmitido é histórico e que ele nãodepende, pois, do valor dos mesmos meios de produção produzidos no

período. Mas este valor histórico só pode ser determinado se conhecermos o valor transmitido pelos meios de produção do penúltimo

período etc. (a observação segundo a qual o valor histórico é conhecidono mercado leva a concluir que hoje ocorre o mesmo e que em conseqüência o problema discutido é sem interesse...). Assim, se é conduzido progressivamente a uma regressão infinita (o mercado de maçãsno tempo de Adão e Eva, retomando a expressão de Schumpeter).”(pp. 175-176, grifo dos autores) E ainda: ‘’Marx rejeita aliás essainterpretação, revelando bem através disso que o que conta é o argumento da produção em valor (...). / Seja pois a segunda eventualidade.Aqui o argumento para um ramo particular não vai longe(tourne court ): o valor atual do algodão que entra nos fios depende das condições da produção do algodão. Assim, para cada ramo tomado isoladamente o problema é insolúvel. (...) (...) / Uma vez afastados os períodos anteriores, aparece a seguinte proposição inaceitável: emborao valor seja tempo de trabalho e embora o sistema de produção constitua um todo fechado, ovalor produzido é superior à quantidade de trabalho consumido no sistema. (...) a imagem que Marx nos dá daformação do valor” é “contraditória (...)”. (p. 176, grifo dos autores)

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Em resumo, se se supuser que o conhecimento do preço dosmeios de produção utilizados não nos dá o conhecimento do seu valor,este só pode ser determinado se se remontar até o seu fundamento. Essefundamento se acha ou no passado, ou no presente, isto é, nos outros

ramos. Ora, se mostra que nem através de uma regressão histórica,nem recorrendo aos outros ramos, se pode chegar a esse fundamento.O resultado seria o seguinte: “(...) ou (...) se deve reconhecer que osmeios de produção não têm valor enquanto tais (...) ou (...) (...) se deveabandonar a teoria do valor” , (p. 177)

Vejamos isto tudo mais de perto. Ê preciso distinguir dois níveisdo problema. Por um lado o doquantum de valor contido no capitalconstante. Essequantum de valor é dado pelo trabalho contemporâneoexecutado nos outros ramos, pois são as condições atuais que decidemquanto valor contêm os meios de produção. Sem dúvida, esse deslocamento de um ramo a outro nos envolve numa regressão: os outrosramos utilizam capital constante, o valor desse capital constante édeterminado num outro ramo e assim por diante. Como mostra Marxcontra Smith, a regressão é infinita: nunca se reduz inteiramente ocapital constante ao trabalho. Mas se não se o reduz inteiramente, a parte não reduzida diminui cada vez mais. Podemos, nesse sentido,efetuar uma “passagem ao limite”, operação que é tanto mais fácil de

justificar em se tratanto simplesmente doquantum e trabalho, e não do próprio trabalho (se se tratasse do próprio trabalho, como veremos,uma passagem ao limite seria pensável, mas somente sob outras condições). Tudo isto se refere aoquantum de trabalho que está contidonos meios de produção, não ao próprio trabalho (concreto e abstrato)de que se originam esses meios. Ora, esse trabalho é efetivamentetrabalho anterior, trabalho que foi realizado nos períodos anteriores(ver a esse respeito o livro II deO Capital, passim). No que se refere aesse lado qualitativo do trabalho efetivo a que remetem os meios de produção, como se propõe o problema?

Como vimos anteriormente, o trabalho não é pura e simplesmente o fundamento do capital. O trabalho é o fundamento “negado” .Em outros termos, todo o raciocínio dos dois autores supõe, comosempre, uma apresentação linear, um movimento sem descontinuidadeque nos conduz do trabalho (ou, se se quiser, do trabalho e do valor) aocapital. Nesse caso, o trabalho seria necessário, em princípio, aindaque a regressão fosse possível. Mas se o trabalho não é o fundamentodo capital, mas o fundamento “negado” do capital, isto é, se há“negação” no movimento que nos conduz de um ao outro, o problemase propõe de um outro modo. Que haja “negação”, isto significa que ocapital depende e não depende ao mesmo tempo do trabalho (a “negação” é ao mesmo tempo posição e negação, continuidade e descon

tinuidade). Isto quer dizer que o capital pressupõe o trabalho:125o capital não é pensável sem o trabalho, mas ao mesmo tempo o capital

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é um novo ponto de partida, o capital não é trabalho acumulado. O poiito de partida posto não é mais o trabalho mas o próprio capital.Acreditamos que é exatamente isto que fornece a solução teórica àaporia do capital constante. Por um lado, o valor do capital constantedeve ser pensado em termos de trabalho. Por outro lado, é impossívelremontar ao trabalho de que ele é a cristalização. O trabalho queorigina o valor do capital constante é simplesmente pressuposto. Eé impossível passar da pressuposição à posição. Mas isso não representa uma dificuldade da teoria. Seria uma dificuldade (talvez solúvelmas que exigiria uma outra resposta) se a teoria fosse concebida deuma maneira linear. Mas se se supuser uma relação de “negação”entre os princípios e as conseqüências, a resposta é perfeitamente pen-sável e “coerente”. E esta é, a nosso ver, a tese subjacente à crítica deSmith (e de Ricardo) por Marx, crítica que ele retoma muitas vezes.

Em resumo, cremos que as dificuldades sobre as quais se constróia aporia são as seguintes: por um lado os dois autores não distinguem olado doquantum de trabalho (que não deve ser confundido com aquantidade indeterminada que fica do outro lado) do lado do própriotrabalho que é o das condições reais da produção dos meios de produção. Em segundo lugar, eles concebem a relação entre o capital e otrabalho como uma relação de continuidade (ou então de desconti-nuidade: é a solução deles), sem pensar que a relação é contraditória:deve-se e não se deve voltar aos princípios.

Mas do problema do capital constante passamos a um problemaanálogo, que eles também levantam, mas que se situa no nível da circulação simples.126 E o da determinação do valor do trabalho morto,do valor dos meios de produção no nível da circulação simples. Adificuldade é formulada em termos análogos: “De duas coisas uma:i

— ou se admite que Mv representa um valor formado simultaneamentea 1, isso contradiz o princípio que estabelecer que o valor novo resulta

do trabalho novo 1; Mv é ao mesmo tempo um valor novo (contemporâneo de 1) e é distinto de 1portanto inexplicável; / ou então se admiteque Mv provém de um período anterior (transmissão do valor pelodesgaste dos meios de produção), mas isso contradiz o princípio daavaliação dos objetos (...). / Disto se deve concluir que ovalor não

preexiste à sua formação (.. .)” . (p. 108, grifo dos autores)Se a dificuldade é análoga, a solução do problema não pode sê-lo,

pois estamos aqui no nível da circulação simples. A resposta deve ser aseguinte. Em primeiro lugar — e até aqui a solução coincide com a

solução anterior — deve-se distinguir o problema doquantum detrabalho do problema do próprio trabalho, que é também o da origemdo valor contido nos meios de produção. Oquantum de valor, e portanto oquantum de trabalho, é dado pelos ramos contemporâneos que produzem esse meio de produção. Também nesse caso há regressãoinfinita mas com redução progressiva da parte não reduzida. E neces

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sário efetuar, como no caso anterior, uma passagem ao limite. Mas noque se refere ao lado da qualidade (que é também o da quantidadeindeterminada, mas não doquantum) e da origem efetiva do valorcontido nos meios de produção,a resposta dada ao problema anterior

não convém mais. De fato, a impossibilidade de efetuar a redução noque se refere ao passado — a regressão ao trabalho efetivo — nãorepresentava uma dificuldade porque o capital não é trabalho acumulado. Isto é, porque há descontinuidade (ou antes, “negação” —continuidade e descontinuidade) entre trabalho e capital. Ora, aqui oargumento não vale mais. A contradição não é mais uma resposta. Éefetivamente de trabalho acumulado que se trata agora. A regressãodeveria se impor. E para que ela pudesse chegar ao fim, seria necessário efetuar aqui uma passagem ao limite no nível qualitativo, comofizemos para os ramos contemporâneos no nível quantitativo, no quese refere ao capital. Seria a maneira de remontar do trabalho acumulado ao trabalho vivo que lhe deu origem.

Ora, justamente porque a regressão (com a passagem ao limite)é, aqui, necessária, o problema não se coloca mais. Com efeito, no níveldo capital era preciso distinguir claramente o trabalho vivo, o únicoque produz mais-valia, do trabalho morto que não a produz: essadiferença se cristaliza nos conceitos de capital constante e de capitalvariável, que é preciso, sobretudo, distinguir. Quando o problema setorna simplesmente o da diferença entre trabalho acumulado e traba

lho vivo, a diferença é simplesmente a do momento em que o trabalhofoi realizado. Eis a razão pela qual Marx elimina pura e simplesmentea questão da determinação do valor dos meios de produção no nível dacirculação simples. O cálculo — se fosse preciso fazê-lo, mas nãoesqueçamos de que a circulação simples é um momento do modo de produção capitalista e não um outro modo de produção — deveria serfeito com passagem ao limite, a partir dos ramos contemporâneos.Quanto à origem — a que se deveria chegar através de uma regressãohistórica e uma passagem ao limite — ela perde todo o interesse. Parafundar o valor, pode-se simplesmente supor que os meios de produçãosão iguais a zero, como é o caso na secção I. Se é verdade que acontradição não é mais, aqui, a solução, o problema não se colocamais, aparentemente, ou não se coloca mais do mesmo modo.

b) Sobre o» ciclos do capital e os esquemas de reproduçio

Para terminar, e antes de passar às conclusões, examinaremos a críticaque os dois autores fazem (na nota 5 da terceira parte) à maneira pela qualMarx trata dos ciclos do capital e da reprodução no livro II deO Capital.

De certo modo, essa crítica resume todo o resto. Para respondê-la, retomaremos a apresentação deO Capital, que havíamos interrompido. Mas examinemos antes, de um modo geral, o teor da crítica.

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O núcleo dela é o papel que tem em Marx o ciclo do capital-mercadoria.Como se sabe, Marx considera esta forma como a que permite a passagem dociclo individual à reprodução social, cujo objeto ê o capital social. As observações criticas vão no seguinte sentido: Marx construiria a noção de capital

social (ver p. 196) apoiando-se no ciclo do capital-mercadoria. Tal socializaçãorepresentaria na realidade uma “socialização pelo capital constante” tal como“a do ciclo III (ciclo do capital-mercadoria)”. (p. 199) Isto nos remeteria aos

problemas anteriores relativos ao capital constante. Mas ao mesmo tempo ò privilégio do ciclo do capital-mercadoria nos remete à circulação simples.“Ora, a socialização pelo capital constante, que, repitamos, é a do ciclo III,é inteiramenteindependente da relação salarial, como Marx o mostrou, aliás,nas Teorias sobre a mais-valia, t. I. Poder-se-ia tratar, no máximo, de umasocialização de produtores separados. Mas esta representação também não éaceitável na medida em que a noção de capital constantecontradiz a noção devalor de uso socialmente constituído, que é precisamente uma das bases dateoria das mercadorias, e portanto da socialização de produtores separados.”(p. 199, grifo dos autores) Isto nos remeteria, assim, de uma forma ambígua,em parte ao capital constante, em parte à circulação simples, de qualquerforma à mercadoria. E essa redução à mercadoria, na medida em que “a noçãode valor de uso não é elaborada” (p. 196) — retomada das criticas iniciais sobreo valor de uso em Marx — nos remeteria, na realidade, “às coisas”.(Ibidem) Em outros termos, cairíamos ainda uma vez no fetichismo.

Os pontos que devemos discutir são portanto: 1) se há — e em quesentido há — passagem ao capital, isto é, totalização pela introdução do ciclodo capital-mercadoria; 2) se essa socialização se faz pelo capital constante eque dificuldades poderiam resultar disso; 3) se o ciclo do capital-mercadorianos reconduz à circulação simples (se se quiser, a relação entre, por um lado,a análise dos ciclos e da reprodução social e, por outro, a da circulaçãosimples); 4) se o privilégio do ciclo do capital-mercadoria nos conduz, atravésda mercadoria, à coisa, isto é, se ele nos leva a cair no fetichismo.

Para analisar esses diferentes pontos, procederemos da seguinte maneira.Começaremos retomando a apresentação de OCapital, que havíamos interrompido. Ela permitirá mostrar qual é o momento ou quais são os momentos eas formas de socialização do capital, nos livres I e II (com uma indicação sobreo livro III), assim como o sentido geral, o lugar, da teoria dos ciclos. Isto permitirá responder ao primeiro ponto. Em seguida examinaremos mais de perto os ciclos, em particular o ciclo do capital-mercadoria, tanto no texto deO Capital como no dos seus críticos. Com isso, trataremos dos pontos 2 a 4.

Interrompemos a apresentação deO Capital na teoria da reprodução, secção VII do livro primeiro. Não retomaremos a análise dareprodução no livro I, a qual nas suas implicações sobre o sentido geraldo processo representa o ponto cego do livro que examinamos. Interessa-nos insistir somente num ponto, sobre o qual passamos, aliás, bem depressa. A teoria da reprodução na secção sétima não representasomente o momento em que as pressuposições são postas pelo própriosistema e em que se estabelece a continuidade do movimento. Trata-setambém do momento na teoria da produção, em queos capitais indi-

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viduais são totalizados e se tomam capital social. Há aí, portanto, uma primeira socialização do capital que não é analisada pelos dois críticos.Ao passar do livro I ao livro II, somos conduzidos da teoria da produção à teoria da circulação. Como Marx explica no início do livroII ,127 ele só tratou da circulação no livro I na medida em que isso eranecessário para apresentar a produção (assim, por exemplo, ele tratano livro I da compra e venda da força de trabalho). Podemos dizer queno livro II se dá o contrário: ele só trata da produção na medida em queisso é indispensável para expor a circulação. Na realidade, a teoria da produção é pressuposta no livro II, assim como a teoria da cir.culação é pressuposta (mas em sentido prospectivo e não retrospectivo) no livro I.Isto é importante para mostrar o domínio e os limites — os limites nosinteressam particularmente — das análises do livro II. São análises quese situam no plano da circulação: não menos mas também não mais do

que isto. Ao passar ao livro II — segundo ponto a assinalar, que temrelação direta com a discussão — Marx começa analisando o ciclo doscapitaisindividuais. O que quer dizer que ao passar do üvro I ao livroII sevolta da totalidade (que havia sido constituída na secção VII nonível da produção) à (re)consideração do capital individual (mas .agorano plano da circulação). Isto é, no final da análise dos ciclos, precisamente através da introdução do ciclo do capital-mercadoria — porrazões que analisaremos em seguida — somos reconduzidos à totali-zação. O ciclo do capital-mercadoria representa na realidade algocomo um momento de transição entre a análise do capital individual e a

análise do capital social. Importante aqui é que estamos diante de umanova “socialização” . Em outros termos, há emO Capital várias “socializações” do capital, em diferentes níveis da análise. E a essas duas“socializações”, devemos acrescentar ainda aquela que se dá no livroIII. Sem dúvida, no livro III, a totalização é de um outro nível: passa-se não do capital individual ao capital social, mas de uma socialização parcial (há portanto destotalização dos dois grandes setores da produção aos ramos). Tal é a socialização que se faz pela constituição da taxageral de lucro e dos preços de produção. Temos aí uma terceira totalização que, de qualquer modo, se segue a um retorno (não ao capitalindividual mas aos ramos da produção).Podemos, agora, analisar mais de perto o objeto em tomo doqual se organiza a crítica, o ciclo do capital-mercadoria. Marx distingue três ciclos do capital, o ciclo do capital-dinheiro, o ciclo docapital produtivo e o ciclo do capital-mercadoria. O primeiro começacom o dinheiro (D), o segundo com o capital produtivo (P) no processode produção, e o terceiro com a mercadoria (M’ e não M). Marx explica por que o ciclo do capital-mercadoria não começa com M: “M’ enquanto M aparece no ciclo de um capital industrial isolado não comoforma desse capital, mas como forma de um outro capital industrial,na medida em que os meios de produção são produto deste último. O

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MARX: LOGICA E POLITICA 203

ato D — M (isto é, D — Mp) do primeiro capital é, para este segundocapital, M’ — D’ (W.24, K.II, p. 92; Le Capital, 1. II, t. I (IV),op. cit., p. 82) Isto significa afinal que M pertence ao outro capital. Ou

que, para o primeiro capital —■ se todos os momentos do capital sãomomentos de um processo —, o momento M do capital considerado émenos do que um momento evanescente: quando ele se torna momentodo capital considerado, ele representa, na realidade, os componentesmateriais ou objetivos do capital produtivo. Se se quiser começar pelamercadoria, deve-se pois começar por M \ Temos assim esses três pontos de partida que, segundo Marx, remetem respectivamente aosmercantilistas, aos clássicos e a Quesnay. (Ver W.24, K.II, p. 103;

Le Capital, 1. II, 1.1 (IV),op. cit., p. 92)Mas o ciclo do capitai-mercadoria deve ser considerado “não sócomo uma forma de movimento comum a todos os capitais industriais

individuais mas ao mesmo tempo como a forma de movimento da somados capitais individuais e portanto a forma de movimento do capitaltotal da classe capitalista, um movimento de tal ordem, que o movimento de cada capital industrial individual aparece no interior delesomente como movimento parcial, que está entrelaçado com outro, e écondicionado por ele”. (W.24, K.II, p. 101; Le Capital, 1. II, t. I (IV),op. cit., p. 90) Mas por que essa fornia — que pode ser tambémconsiderada como forma individual128 aparece como representativa doconjunto do movimento do capital? Na realidade, poder-se-ia suporque o ciclo do capital-dinheiro seria mais representativo (pois ele indicamelhor a finalidade do movimento) ou que o ciclo do capital produtivoé mais representativo (porque ele enfatiza o lugar em que se dá avalorização). Mas não é assim. A forma que poderia aparecer comosendo a menos representativa é que permite passar ao capital social.

Vejamos por que razões. Há de fato três razões que é preciso distinguir.Primeiramente, M’ é o único ponto de partida que pressupõe umcapital anterior.129 O capitai-mercadoria é na realidade o único que pressupõe um movimento anterior do capital. Como vimos, o ciclo do capitai-mercadoria nãocomeça com M mas com MV O signo indica que se trata de umamercadoria que contém um valor primitivo mais um sobrevalor. M \ no qual ocapital se apresenta em forma inerte e na forma de uma mercadoria, portantotambém e em primeiro lugar (se comparado com o dinheiro) na forma de umvalor de uso, é entretanto forma que indica uma história (no sentido lógico-econômico), um passado (no interior da temporalidade lógico-econômica) queé um passadocapitalista. M’ indica de certo modo amemória de um capital. Não é o caso em D nem em P, os quais não pressupõem necessariamente umcapital. M’ pressupõe, portanto, uma produção capitalista anterior e é assim afigura mais indicada para servir como ponto de partida para o processo atualde reprodução. Com M’se corta esse processo (o que é necessário fazer para pensar a reprodução de um ano)sem cortá-lo verdadeiramente (porque se pressupõe o passado). Em “M” se tem o corte, no signo “ a continuidade,

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que pela própria forma pela qual é indicada é continuidade “negada”. M’ no permiteinterromper sem irromper a cadeia dos processos de reproduçãoanuais. Assegura-se o caráter capitalista do passado, o futuro (sempre nosentido lógico-econômico) ser k construído como processo capitalista.

Mas há mais do que isto. O ciclo do capital-mercadoria é o único quedesde o inicio do ciclo faz com que apareça nas mãos de um outro (que se devsupor como sendo um outro capitalista) a figura que define o ciclo, o capitamercadoria. O que significa — o que para os ciclos I e II só ocorre no final dciclo — que ele pressupõe outros ciclos do capital-mercadoria: “D’, enquan ponto final (Schlusspunkt ) em I, enquanto forma transformada de M’ (M’ —D’), pressupõe D nas mãos do comprador, como algo que existe fora do cicD... D’ e que é atraído para o interior desse ciclo e que se torna sua forma fin pela venda de M’. Do mesmo modo, em II o P final pressupõe T e Mp (Mcomo algo que existe fora dele e que lhe é incorporado enquanto forma fin pelo ato D — M.130 Mas abstração feita do último termo, nem o ciclo dcapital-dinheiro individual pressupõe a existência ( Dasein) do capital-dinheiroem geral, nem o ciclo do capital produtivo individual pressupõe, no seu cicla existência do ciclo do capital produtivo. Em I, D pode ser o primeircapital-dinheiro e, em II, P pode ser ó primeiro capital produtivo que sapresenta na cena da história. Mas em III (...) M é duas vezes pressuposto fo

Tdo ciclo. Uma vez no ciclo M’ — D’ — M [ * , esse M, na medida em quMpse compõe de Mp, é mercadoria nas mãos do vendedor; ele próprio é capitamercadoria, na medida em que é produto de um processo de produção captalista; e mesmo se ele não for, aparece como capital-mercadoria nas mãos dcomerciante.131 Uma outra vez, no segundo m em m — d —- m, onde, dmesmo modo, ele deve (muss) estar presente como mercadoria para poderser comprado”. (W. 24, K. II, p. 99; Le Capital, 1. II, t. II (IV),op. cit., pp.88-89) O texto já nos introduz ao terceiro ponto, que determina o privilégio capital-mercadoria: o fato de que a circulação da mais-valia está incluída nelExaminaremos esse ponto em seguida. Por enquanto, vejamos aqui o que srefere, em geral, à conexão dos ciclos estabelecida pelo capital-mercadoriEsta conexão se faz através do capital constante, como afirmam os dois autres? Observemos, para evitar confusões, que a noção de capital constante coma de capital variável só vale para o capital produtivo. A noção de capitamercadoria só inclui a distinção entre capital constante e capital variávenquantocomponentes do produto-mercadoria. Mas é verdade queem parte aconexão se faz pelo capital constante, pois o primeiro M que é encontrado n percurso é, como diz o texto, constituído por elementos do capital constantTudo o que se pode dizer a esse respeito, pelo menos por enquanto, é, em primeiro lugar, que essa conexão só levanta um problema, se supusermos que própria noção de capital constante é problemática, o que tentamos anteriomente questionar. Em segundo lugar, a conexão não se faz somente através dcapital constante, porque ela se efetua também através de m, que n|o componente do capital produtivo e representa a mais-valia consumida comrendimento (a totalidade da mais-valia, se se supuser a reprodução simples,em qualquer caso uma parte dela).132 Isto nos conduz ao terceiro ponto. Seciclo do capital-mercadoria é um ciclo privilegiado é também porque ele inclnão só o ciclo M mas também o ciclo m.133 Com efeito, se se partir de M’ se

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necessário desenvolver tanto o ciclo de M como o ciclo de m, decomposição quenão fazemos em I (pois ele termina com D’) e pela qual se passa, no ciclo II,sem que entretanto seja necessário aí seguir os dois processos, pois se partiu deP, e se trata de voltar a esse ponto de partida.. Os dois autores comentam esse ponto nos seguintes termos: “A conseqüência imediata dessa concepção é,como vimos, (”) que M \ enquanto capital-mercadoria, entra na circulação juntamente com a mais-valia(”) de onde se segue que (”) o capital-mercadoriaé a única forma na qual a circulação da mais-valia é inseparável da circulaçãodo capital primitivo”. (Plêiade, II, pp. 540-541) “Daí resulta que a noção decapital social será elaborada tomando como ponto de partida precisamenteo que representa um obstáculo para esta elaboração, o ciclo III, que é ‘o único’que exclui a concepção de uma qualquerautonomização da circulação da mais-valia relativamente à circulação das mercadorias”, (p. 196, gçifo dosautores)134 E eles concluem: “A primeira série de operações tem, pois, comocondição de possibilidade umadupla redução: —do capital social à mercadoria (pois nada se autonomiza em relação a esta última, que continua sendo anoção exclusiva que comanda o movimento; í3S / — da mercadoria às coisas(pois não é elaborada a noção de valor de uso)”, (p. 196, grifo dos autores)

Vemos — analisando a cadeia de argumentos em sentido inverso — qualé o ponto de chegada da crítica que fazem os dois autores: a afirmação de que,em virtude do privilégio do capital-mercadoria, há redução do capital à merca-doria(“(...) o ciclo III s6 representa um sistema de produção de “mercadorias por meio de mercadorias’ ” . (p. 197) Isto deveria significar uma “recaída” nacirculação simples (“só se poderia (...) tratar, no máximo, de uma socializaçãode produtores separados” (p. 199); “(...) a socialização pelo capital constanteque (...) é a do ciclo III é totalmenteindependente da relação salarial”. (p. 199, grifo dos autores)). Mas dada a presença da “noção de capital constante” que“contradiz a noção de valor de uso socialmente constituí do (...) umadas bases da teoria da mercadoria (...)” (p. 199), ter-se-ia na realidade “umavolta ao sistema de Ricardo-Sraffa" (p. 199, sempre grifado pelos autores),com algumas diferenças. Por outro lado, essa redução à mercadoria representaainda uma vez cair nas “coisas”, isto é, uma espécie de fetichização do capital.E tudo isto por causa da noção de capital-mercadoria:“A noção de capital- mercadoria se revela assim uma contradição nos termos”, (p. 199, grifo dosautores)

O ciclo III representaria um obstáculo para a elaboração do capitalsocial, porque nele a circulação da mais-valia não pode ser autonomizada emrelação à circulação das mercadorias. O que é que eles querem dizer com isto?Se eles querem dizer que no ciclo III a mais-valia não se separa do capital,há simplesmente mal-entendido: “inseparável” quer dizer aqui não que nãohaja bifurcação entre os dois circuitos, mas sim que é necessário “seguir” osdois. Ê a reprodução total — que se introduz aqui — que os torna inseparáveis,no sentido de que os dois são interiores ao processo total (que só é posto em

III). Ou então eles querem dizer que a mais-valia se separa mas que ela seconfunde (totalmente, se se supuser a reprodução simples) com a circulaçãosimples de mercadorias? Efetivamente ela se confunde, masé justamente isto que permite a passagem do capital individual ao capital total. Em outrostermos, o que permite a totalização — não é evidente que os dois autores tenhamentendido isto — é, fora a conexão direta dos capitais que se estabelece através

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— stricto sensu — oferece uma representação extremamente pobre dodesenvolvimento do capitalismo, não por causa de uma abstraçãoexcessiva, mas antes por causa da sua incapacidade ‘congênita’ emligar a revolução (bouleversement ) contínua das técnicas, que é o seuobjeto, à modificação perpétua dos valores de uso produzidos. O‘desenvolvimento das forças produtivas’ remete à ‘técnica’, a modificação dos bens-salários à ‘história das necessidades’, necessariamenteconstituído independentemente da teoria da mais-valia relativa queimplica que já foram identificados os bens que entram direta ouindiretamente na reprodução da força de trabalho. / As afirmações,constantemente repetidas, sobre a existência de uma ligação entre esseselementos estão condenadas a permanecer estéreis enquanto o conceitoque permite pensar a unidade da produção da mais-valia e da modificação incessante dos valores de uso não for obtido. Nessa direção ateoria da mais-valia relativa faz figura de obstáculo(pierre d'achop

pement)-, sua crítica é pois necessária”, (p. 189)Essa crítica, embora introduzida a propósito do papel da noção

de mais-valia relativa, tem evidentemente uma significação mais geral.E há nela algo importante. A idéia de que falta à teoria de Marx umateoria das necessidâdes. E igualmente uma teoria das técnicas, precisando uma teoria da produção da ciência com vistas a suas aplicaçõestécnicas. Impossível desenvolver esses pontos nos limites deste texto. Nós nos limitaremos aqui às observações seguintes: no quadro da teoriade Marx, há certamente textos importantes (sobretudo nosGrundrisse) sobre as necessidades. Mas, aparentemente, essencialmente por causadas próprias características do capitalismo no século XIX, não há umateoria da produção das necessidades. Ë que no capitalismo clássico osvalores de uso têm ainda muita coisa em comum com os valores de usotais como eles apareciam nos períodos pré-capitalistas. Ê só no capitalismo do século XX e especialmente no capitalismo dos últimos trintaanos que se entra numa fase em que há produção de necessidades, emsentido próprio, e em que há um setor da produção (?) que não produznem meios de produção (setor I) nem meios de consumo (setor II) masque produz consumidores (setor III?). E com isto, o valor de uso setomaum movimento infinito, como o capital no capitalismo clássico.Por outro lado, não mais “para além” mas “aquém” da produção, hásetores de produção da ciência, com vistas às suas aplicações técnicas.Ora, isso é igualmente novo em relação ao esquema clássico (apesar decertos textos dosGrundrisse) pois emO Capital a ciência aparece comoalgo gratuito, nas mãos do capitalista. Ela aparece no mesmo plano dasforças naturais de que se pode dispor livremente.140 Sem dúvida, nosdois casos, não é certo que vamos na direção das observações de Benettie Cartelier, senão de um modo muito geral. Pode ser mesmo que adireção que indicamos reforce “o economismo no pensamento marxista” .141 De qualquer modo, é necessário pôr em evidência as obser

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vações do texto sobre as técnicas e as necessidades, porque elas remetem às grandes transformações que ocorreram na passagem do capitalismo do século XIX aos capitalismos do século XX, e portanto aquestões que são fundamentais. Mas como dissemos no início, tai

observações não têm uma relação rigorosa, a despeito do que pensamos autores, com a crítica geral a que submetem a apresentação dacrítica da economia política. Não é recusando a dialética mas adesenvolvendo e aprofundando (uma dialética talvez modificada) — pensemos no valor de uso como movimento infinito: um exemplode umnovo objeto com estruturadialética, entretanto — que se chegará a pensar rigorosamente os problemas novos que colocam as sociedades capitalistas contemporâneas.

Conclusão

No final da primeira parte resumimos os pontos para os quaisconvergem as dificuldades de Marchands, Salariat et Capitalistes. Dissemos que elas apontam por um lado para o problema da contradição por outro lado para o da relação matéria/forma (os dois pontos estãligados, porque a relação entre matéria e forma é contraditória).

Na primeira parte, os dois problemas se apresentavam da seguinte maneira. Para o primeiro: o processo contraditório não apreen

dido era o dagênese, o da pré-história — no caso, da gênese do dinheiro; ao mesmo tempo, como esta gênese (lógica) se concluía pelconstituição de um universal concreto, era também ouniversal concreto o que se perdia. No que se refere ao segundo ponto (forma ematéria) o problema se situava também no nível do dinheiro. Ele aparecia como dificuldade na apreensão daencarnação material da form a (no dinheiro e já nas formas do valor anteriores ao dinheiro).

Na segunda parte, os dois pontos se apresentam diferentementeO processo contraditório que lhes escapa não é o da gênese nem o dconstituição do universal concreto (como último termo da gênese), mao processo de constituição de um sujeito. Não a passagem de um“pré-ser” a um ser, mas de um ser-substância a um ser-sujeito. Pooutro lado, escapa a maneira pela qual esse Sujeito, esse ser autonomizado, nega progressivamente toda relação com a sua realidade subtancial — as “negações” sucessivas nas apresentação deO Capital. Acrescente-se, ainda quanto ao primeiro ponto, que na segunda parte problema se situa no nível da relação geral essência/aparência, já quecirculação simples é a aparência da produção capitalista enquanto produção capitalista; enquanto que na primeira ele se situa no nível d

aparência — que se desdobrava por sua vez em essência e aparênciaQuanto ao segundo problema (matéria/forma), vimos que é a apariçãda forma que se tomou Sujeito na matéria (não a simples encarnaçã

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material da forma), que representava um problema. O deslocamento é paralelo.

Se se quiser agora definir de um modo mais geral os dois pontos,deve-se dizer o seguinte:

1) Problema da contradição. Digamos que o procedimento deBenetti e Cartelier significa substituir a Aufhebung pela negação vulgar. Essa substituição se faz aproximadamente pelo seguinte movimento: como se pensa a apresentação de Marx como apresentaçãolinear, a descoberta da contradição é solidária da imputação da contradição vulgar e portanto de um deslizamento dos próprios críticos nacontradição vulgar. Para evitá-la, se corta: estabelece-se uma negaçãoque não é “negação” dialética. Isto é verdade para a gênese do dinheiroe em geral para a relação mercadoria/dinheiro: supõe-se que, paraMarx, o dinheiro é uma mercadoria (continuidade); descobrem-se asdeterminações do dinheiro que contradizem as da mercadoria (contradição dialética pensada como contradição vulgar); formula-se umateoria em que o dinheiro e mercadoria se excluem (descontinuidade),a negação dialética se torna negação vulgar. Isto é verdade também para a relação entre circulação simples e produção capitalista enquanto produção capitalista: supõe-se que a circulação simples é para Marx o princípio — no sentido do entendimento — da produção capitalista(continuidade); descobrem-se determinações desta última que contradizem as da circulação simples (contradição); formula-se uma teoriaem que circulação simples e produção capitalista estão cortadas umada outra, ou ligadas somente pelo vínculo “abstrato” do dinheiro(descontinuidade). Por outro lado, como vimos, se roça a contradição.

2) Matéria e Forma. O problema gira em torno do fetichismo oudos opostos fetichismo/antifetichismo abstrato (formalismo). O movimento é o seguinte. Concepção puramente formal do que deveria ser aapresentação de Marx: para a primeira parte, não há (não deve haver)dinheiro-mercadoria. Para a segunda não há capital-mercadoria (formalismo); descoberta do papel do valor de uso, o qual é denunciadocomo se representasse uma queda no fetichismo (primeira parte: falsaaparência da teoru do dinheiro em Marx; segunda parte: deslizamentodo capital à mercadoria e da mercadoria à coisa (fetichismo)). O resultado, no nível do discurso dos dois autores, é mais difícil de precisar.Ele passa mais diretamçnte pelas suas teses positivas. A resposta deles parece ter alguma coisa dos dois extremos: às vezes eles esvaziam asformas da matéria (ver a sua teoria do dinheiro), eles vão com isso nosentido de um antifetichismo (abstrato);142 por outro lado, talvez porisso mesmo, se não há fetichismo neles, coisa de que não estamoscertos, há de qualquer modo coisificação, pois o capital-processo setoma coisa inerte, seja ele pensado ou não como uma relação.

Como já insistimos sobre o que o livro tem de positivo, no que serefere à crítica de Marx, a saber, o fato de ter “posto o dedo” na

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contradição, além do iato de ter indicado alguns problemas importantes a desenvolver, terminamos com algumas considerações gerais, sobrea relação entre a crítica de Benetti e Cartelier e outras leituras de Marx

No fundo, o procedimento dos dois autores no nível da economia

tem parentesco com a leitura althusseriana no nível da filosofia. Amesma recusa da contradição (tudo é construído para evitá-la) a qualconduz a um esquema descontinuísta. Um resultado é comum às duasdémarches: a recusa do capítulo primeiro do livro I de OCapital, assimcomo a impossibilidade de ler (de ler corretamente, no caso dos althusserianos, de ler simplesmente, para Benetti e Cartelier) a passagem àreprodução — por acaso os dois lugares privilegiados da dialética nolivro I de OCapital. Mas em relação aos althusserianos, eles têm provavelmente diferenças que não desenvolvemos (além do fato, finalmente secundário, de que eles se apresentam como críticos de Marx, eos outros não). A crítica de Benetti e Cartelier tem também algumacoisa em comum com a de Castoriadis, examinada no texto anterior.Relativamente à de Castoriadis, a leitura deles é menos rigorosa e vamenos longe na apresentação (na sua relação imediata a Marx). Masela é mais geral, o domínio das contradições é mais vasto.143 Mas,quaisquer que sejam de resto os méritos do texto, ele se situa, logicamente, aquém da dialética clássica. Seria preciso ir além dela.

NOTAS

(1) Paris, Maspero, 1980.(2) Ver neste tomo, para o problema do humanismo e da antropologia, “Dialé

tica Marxista, Humanismo, Anti-humanismo” e "Althusserismo e Antropologismo”.(3) Ver Marchands, Salariat e t Capitalistes, pp. 131, 132, 136, 190.(4) Para discutir melhor a critica de Benetti e Cartelier, nos distanciamos em

alguma medida, provisoriamente, da dêmarche de Marx, supondo que tanto a mercadoria como o dinheiro poderiam servir como ponto de partida. Com o mesmo espírito, a continuação vai no sentido de uma fenomenologia do dinheiro: ela não visa ainda a teoria do dinheiro em OCapital.

(5) Para Benetti e Cartelier é da moeda metálica e não das formas mais complexas de moeda que é preciso fazer a teoria, (ver p. 52)

(6) Ver p. 146 do livro de Benetti e Cartelier.(7) Como veremos, esse “negar” corresponde à “negação” hegeliana.(8) Com uma exceção, que veremos mais adiante.(9) Depois de ter tentado esclarecer a noção de “criação” em Marx, A. Ber-

thoud escreve em nota emTravail productif e Productivité du Travail chez Marx (Maspero, 1974): “(...) para dar uma resposta, seria necessário fazer o inventário, no

texto alemão da primeira secção de OCapital, do emprego e das relações dos termos forma, matéria, substância e representação... Ignoramos se esse trabalho já foi feito”, (pp. 78-79, n. 12)

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MARX: LÓGICA E POLITICA 211(10) Texto de Marx em Paul-Dominique Dognin, Les "Sentiers Escarpes" de

Karl Marx, París, Ed. da Cerf, 1977, t. I, p. 82, grifado por Marx. Citado por Benetti e Cartelier, p. 149, que grifam “independentes” e “materialmente”.

(11) Cortamos aqui a citação: o resto se refere mais particularmente à análise da forma do valor.

(12) Trata-se sempre do modo de produção capitalista no nivel da teoría de sua aparência.

(13) Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 50. (AbreviaremosWerke por W e Kapital por K)

(14) Ver nota 12.(15) Como veremos, essas duas noções não são idênticas. Mas nesse nível pre

ciso, parece correto dizer uma coisa e outra.(16) Aqui se reencontra a distinção aristotélica entre a matéria enquanto subs

trato e a forma que nela se imprime.(17) VerW.23, K.I, p. 51.(18) “Não se vê realmente como tudo isto pode ser admitido. De duas coisas

uma — ou os trabalhos privados estãosocialmente unidos, e portanto sãoreconhecidos, por causa da sua diversidade, e portanto do seu caráter concreto; ou então eles o são por sua abstração.” (B. e C., p. 149, grifado pelos autores, texto já citado)

(19) “Como se pode conceber que as coisas sejam enquanto tais socialmente úteis, portanto já sociais, antes que elas tenham sua forma social?” ( Ib idem, texto já citado)

(20) “Enquanto formador de valores de uso, enquanto trabalho útil, o trabalho é uma condição de existência do homem independente de todas as formas sociais, uma necessidade natural eterna, para mediar, proporcionar (vermitteln ) o metabolismo entre o homem e a natureza, e assim a vida humana.” (W.23, K.I, p. 57) “No conjunto dos valores de uso ou corpos de mercadorias de espécies diferentes aparece um conjunto

de trabalhos úteis igualmente múltiplos e diferentes conforme o gênero, a espécie, a subespécie, a variedade — uma divisão social do trabalho. Esta é a condição de existência da produção de mercadorias, ainda que uma produção de mercadorias não seja, inversamente, condição de existência de uma divisão social do trabalho.” (W.23, K.I, p. 56)

(21) Grundlage (que traduzimos, como Labarrière e Jarczyk, por “base”) se distingue deGrund, “fundamento". “O fundamento é primeiro fundamento absoluto, no qual a essência é primeiro comobase (Grundlage) em geral para a relação-fundamental (...).” Hegel,Wissenschaft der Logik, publicado por Georg Lasson, zweiter Teil, Hamburgo, Felix Meiner, 1963, Erster Band, Zweites Buch: “Die Lehre vom Wesen”, pp. 64-65;Science de la Logique,

premier tome, deuxième livre, “La doctrine

de l’essence”, tradução, apresentação, notas de J.-P. Labarrière e Gwendoline Jarczyk, Aubier Montaigne, 1976, p. 91, grifado por Hegel. Labarrière e Jarczyk comentam do seguinte modo esta distinção: “oGrund deve ser distinguido daGrundlage, ‘base’ inerte da realidade, fundamento sem poder de diferenciação”.(Idem, p. 88, final da nota 1) A tradução Roy do livro I de OCapital também verteGrundlage por “base”.

(22) W.23, K.I, p. 371;Oeuvres, Êconomie I, edição estabelecida e anotada por Maximilian Rubel, Bibliothéque de la Pléiade, Gallimard, 1965, p. 892.

(23) Esta questão remete a um ponto que será discutido mais adiante. Ver também a esse respeito “Dialética Marxista, Humanismo, Anti-humanismo”, neste tomo.

(24) “Suprimir” traduz a Aufhebung hegeliana. Preferimos esse termo ao neologismo“sursumer” (“sobressumir”) utilizado por Labarrière e Jarczyk em sua tradução da Ciencia da Lógica. “Sursumer" nos parece “clarificar” de um modo importuno o movimento contraditório contido na Aufhebung-, e tem também o inconveniente de ter parentesco com “subsumir”, termo que pertence mais à tradição da filosofia transcen- tal. O inconveniente que oferece a tradução por “suprimir” está no fato de que ela não exprime o lado afirmativo (assim como “ultrapassar”(dépasser) — e em certo sentido

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“sobressumir” (“ sursumer”) — não exprime o lado negativo). Mas justamente somos obrigados a pensar ao mesmo tempo, contraditoriamente, esse lado positivo. O erro na leitura dominante não é o de acentuar a descontinuidade, mas pelo contrário, o de acentuar a continuidade (o lado positivo e não o lado negativo); a tradução por “suprimir” nos parece pois preferível e menos perigosa do que aquelas quevio em sentido

oposto e que oferecem o perigo de nos fazer esquecer a contradição. Tornar “claro” o discurso hegeliano é sempre uma operação perigosa, na medida em que a “clareza” não é uma determinação desse discurso.

(25) Se a idéia de que uma determinação material possa fazer parte da forma em geral ainda parece estranha, lembremos a expressão “forma mercadoria”. A forma mercadoria tem duas determinações, uma das quais é material.

(26) “A partir desse instante, os trabalhos privados dos produtores obtêm de fato um duplo caráter social.” (W.23, K.I, p. 87; Dognin, p. 218) Mas com a segunda determinação eles serão “negados” enquanto trabalhos privados. O segundo texto de Marx citado por Benetti e Cartelier: “(...) a forma social é (...) uma forma distinta das formas naturais dos trabalhos úteis reais, forma que lhes é estranha e forma abstrata (...)” (Dognin, pp. 84-85, grifado por Marx) se refere evidentemente à situação existente na produção de mercadorias; “(...) como vimos, a mercadoria exclui por natureza a forma imediata da trocabilidade geral (...)”. ( Ibidem) Ele não se refere a toda forma social, como a citação truncada do texto poderia sugerir.

(27) O termo é de Marx: “A medida da ‘socialidade’ (Gesellschaftlichkeit) deve ser obtida da natureza das relações próprias a cada modo de produção e não das representações que lhe são estranhas”. (Dognin, pp. 84-85, primeira edição deO Ca

pita l)(28) “Finalmente, desde que os homens trabalham uns para os outros, de um

modo qualquer, seu trabalho adquire também uma forma social.” (W.23, K.I, p. 86; Dognin, p. 216)

(29) Bem entendido, pode-se distinguir nesses modos uma certa divisão do tra

balho concebida em termos puramente técnicos e um conjunto de necessidades, e opor tudo isto às formas sociais em sentido estrito. Teríamos assim uma camada material distinta do sistema de formas propriamente dito, isto é, do conjunto das relações sociais que se urdem sobre a base técnica. Mas precisamente, para o caso do capitalismo e da produção de mercadorias, o momento material aparece como distinto não só enquanto configuração técnica e conjunto de necessidades — e é por isto que o momento material é aqui, rigorosamente, um momento distinto na forma — ele se abre para um sistema de relaçõesque entretanto só constituía a “socialidade" externa do sistema. (Se se quiser obter um puro sistema de necessidades ou a simples base técnica do modo de produção capitalista ou simplesmente da produção de mercadoria, é necessário fazer abstração de um duplo sistema de relações.) Aqui aparece de um modo majs profundoo que mostramos anteriormente. Tampouco quanto os “elementos” da produção (com os quais os álthusserianos quiseram‘construir sua teoria dos modos), as noções de matéria e de forma, que têm entretanto uma pertinência dialética bem superior, não nos permitem construir nenhuma teoria geral em sentido próprio. Conforme o modo considerado, matéria e forma querem dizer essencialmente outra coisa. A particularidade quebra a generalidade e mostra que ela é de fato “negação”, assim como seu outro não é mais do que “pressuposição”.

(30) Não se trata entretanto de generalidade antropológica, mas de forma natural tal como ela é “posta” em um modo (diferente do modo capitalista-mercantil).

(31) W.26, 3,Theorien über den Mehrwert, op. cit., p. 140; Théories sur Ia Plus-value, III, op. cit., p. 169. Esses textos foram objeto de análise recente. Nós os comentamos desde meados dos anos 70 nos nossos seminários na Universidade de

Paris VIII.(32) W. 26, 3,Theorien über den Mehrwert,.3, op. cit., p. 141;Théories sur la Plus-value, III, op. cit., p. 170.

(33) Ver W.23, K.I, p. 51; Dognin, p. 176.

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(34) Ver W.26, 3,Theorien über den Mehrwert, 3, op. cit., p. 141;Théories sur laPlus-value, III, op. cit., p. 170.

(35) W.23, K.I, p. 51; Dognin, p. 176.(36) A expressão "(redução a) algo comum (ein Gemeines)” que se encontra em

0 Capital reforçou algumas vezes a inflexão ilusória da redução à generalização.(37) Poder-se-ia dizer nesse sentido que a passagem da forma fenomenal ao fundamento pode se exprimir não só em termos de conteúdo e forma como o indicamos, mas tem também implicações para a relação matéria e forma. Com efeito, através desta redução se passa da forma (no sentido duplamente específico), o valor de troca (e entretanto forma expressa pela matéria) à forma pura (o valor). A continuação desse desenvolvimento nos reconduzirá à forma expressa pela matéria (o valor de troca). A passagem do fenômeno ao fundamento é pois "purificação” da forma. Mas purificação à qual sucede a reposição do ponto de partida: esta forma “impura” que é o valor de troca reaparece para ser analisada.

(38) W.31, Briefe..., Berlim, Dietz, 1965, p. 326, carta de Marx a Engels de 24 de agosto de 1867; Lettres sur le Capital apresentadas e anotadas por Gilbert Badia, trad. G. Badia, J. Chabbert e P. Meier, Paris, Êd. Sociales, 1964, p. 174, grifado por Marx.

(39) W.32, Briefe..., Berlim, Dietz, 1965, p. 11, carta de Marx a Engels de 8 de janeiro de 1868; Lettres sur le Capital, op. cit., p. 195, grifo nosso.

(40) É essa não posição do trabalho abstrato nos clássicos que visam Benetti e Cartelier quando eles escrevem que havia aí um "lugar (. ..) vazio” (p. 166). Mas para Benetti e Cartelier o lugar “está vazio porque ele foi esvaziado” e é necessário preenchê- lo não pelo trabalho abstrato mas pelo dinheiro.

(41) “Lógica” não quer dizer existente somente como objeto do pensamento. Com isso, queremos dizer somente que a realidade que corresponde ao objeto não é “histórica”, entendendo por “histórica” uma existência que se apresenta como sucessão de formas no tempo. Voltaremos ao caso particular do problema da existência real do momento do dinheiro.

(42) Ver a esse respeito o texto da contracapa do livro de Benetti e Cartelier.(43) Ver a esse respeito, neste tomo, “Dialética Marxista, Humanismo, Anti-

humanismo”.(44) O problema é posto por Benetti e Cartelier, pp. 142-143.(45) Embora ele não esteja aindainteiramente objetivado, ou ainda que esta

objetividade passe ainda pelos sujeitos. Há também um lado puramente subjetivo da expressão que desempenha um papel na dialética da forma do valor, mas que não se confunde de forma alguma com o lado objetivo. Ver mais adiante.

(46) A expressão, não o ato de exprimir.(47) Ver a esse respeito, R. Blanché, Introduction à la Logique contemporaine, A. Colin, 1960, p. 190.

(48) No texto da primeira edição de OCapital, Marx é muito menos explicito: “Esta distinção (entre as duas formas: relativa e equivalente — RF) é obscurecida por uma propriedade característica da expressão do valor relativo em sua forma simples ou primeira. A equação: 20 varas de tela = 1 casaco ou 20 varas de tela valem 1 casaco inclui de um modo manifesto esta equação idêntica:1 casaco = 20 varas de tela ou1 casaco vale 20 varas de tela. A expressão de valor relativo da tela, em que figura o casaco como equivalente, contém assiminversamente ( rückbezüglich) a expressão de valor relativo do casaco, na qual a tela figura como equivalente”. (Dognin, pp. 62-63, grifado por Marx) As versões posteriores desenvolvem pois consideravelmente esse ponto, que no texto da primeira edição pode levar muito mais facilmente a interpretações errôneas.

(49) Este “pode” (“pode-se passar”) é também um “deve”. O problema não se resolve pela distinção entre a assimetria (a implicação da negação da inversa) e a simples não-simetria (o fato de que a primeira expressão não implica a inversa). Não se

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MARX: LOGICA E POLITICA 215

subjetiva. A redução ao valor “na nossa cabeça” se segue à redução real (mas a expressão do valor está nesse caso ausente).

(55) Na lógica de Hegel, a identidade enquanto proposição de identidade é representada por A = A, expressão em que figura o signo da igualdade. Hegel mostrará, entretanto, o movimento da reflexão do sujeito no predicado que aí se encontra: “Na forma da proposição na qual a identidade é expressa se encontra, pois, mais do que a identidade simples, abstrata; o que aí se encontra é esse movimento puro da reflexão no qual o outro só entra em cena como aparência, como desaparecer imediato (...)”. (Wissenschaft der Logik, Zweiter Teil, op. cit., p. 31, Science de la Logique, op. c it ., pp. 35 e 41)

(56) “A expressão de valor relativa simples era o germe do quai se desenvolveu a forma equivalente geral da tela.” (Dognin, pp. 86-87, texto da primeira edição de O Capital, grifo nosso)

(57) A relação de inerência é aquela que se encontra na forma clássica da proposição entendida em compreensão, mas mais rigorosamente numa proposição singular do tipo “Sócrates é mortal”. (Ver R. Blanché, Introduction à la Logique contem

poraine, op. cit ., pp. 127-128) Por outro lado, os lógicos distinguem a relação de perti nência da relação da inclusão: a inclusão “é reflexiva, não simétrica, transitiva, enquanto que” a pertinência “é irreflexiva, assimétrica, intransitiva (...)”. (Blanché, op.

cit., p. 177) Blanché(idem, pp. 178 e 181) faz corresponder a inerência (em compreensão) à pertinência (em extensão). No que se refere a Marx, chamaremos de “juízo de inerência” (ver mais adiante) um juízo do tipo “o dinheiro é ouro", no qual, como veremos, se tem uma relação assimétrica, sem que haja entretanto reflexão do sujeito no predicado.

(58) A proposição seria, na realidade, “o dinheiro é a mercadoria que se acha na forma equivalente simples”. Nós simplificamos.

(59) Esta denominação, que já havíamos utilizado (ver neste tomo “Dialética Marxista, Humanismo, Anti-humanismo), se inspira evidentemente em Hegel, mas não corresponde exatamente aoUrteil der Reflexion (juízo da reflexão) do capítulo sobre o juízo da lógica do conceito. (VerWissenschaft der Logik, op. cit., II, p. 286)

(60) Reencontramo-lo em Castoriadis. Com efeito, mesmo se Castoriadis aceita a idéia de que há “fantasmagorias” objetivas no capitalismo — ele é levado a fazer a mesma crítica porque supõe que Marx projeta as categorias do capitalismo no passado: “Aristóteles não ‘fetichiza’ (n’est pas dans le ‘fetichisme’) — e é Marx que nesse ponto paradoxalmente fetichiza (l’est)”. (C. Castoriadis, “Valeur, égalité, justice, politique: de Marx à Aristote et d’Aristote à nous”, art. cit ., p. 47, Les Carrefours du Labyrinthe,

op. cit ., p. 295, grifado por Castoriadis)(61) Para dar apenas um exemplo, Marx escreve a propósito da produção dos

meios de produção, cujo resultado é um valor de uso que pode constituir um elemento do capital. "Trata-se aqui unicamente do gênero de valor de uso no qual o trabalho se apresenta, (trata-se de saber) se ele pode entrar de novo como condição da produção na esfera da produção capitalista à qual pertence o sobreproduto ( surplus produce). Temos aqui de novo um exemplo da importância da determinação do valor de uso para as

determinações econômicas formais’’. (W.26, 2, Theorien iiber den Mehrwert, 2, op. cit. , p. 489;Théories sur la Plus-value, II, op. cit ., p. 583, grifado por Marx)

(62) A diferença entre a objetividade social puramente abstrata e a objetividade social posta na matéria aparece no texto citado por Benetti e Cartelier na p. 144 (Dognin, pp. 52-53), na diferença entre Ding e wirklich(es) Ding (coisa e coisa efetiva) mas também na diferença entre Ding e Sache. O valor é uma coisa(Ding), no sentido de uma objetividade essencial, forma pura do fundamento. Para “fixá-la” nessa forma “é preciso fazer abstração de tudo o que faz dela efetivamente uma coisa(wirklich zum

Ding macht)” . (Dognin, pp. 52-53) Marx escreve mesmo que o valor é umGedanken- ding (uma coisa do pensamento), e um Himgespint (uma fantasmagoria). Isto não quer dizer que o valor só existe no pensamento, mas que o valor é algo abstrato, e puramente abstrato, no nível do fundamento. Ou se se quiser: o valor é uma coisa do pensamento e

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uma fantasmagoría. Mas o real “pensa” (ou fantasma): “(A) objetividade do trabalho humano que é ele mesmo abstrato (...) é (...) objetividade abstrata”. ( Ibidem) Na expressão do valor, a objetividade abstrata se exprime como coisa(sachlich). Se o texto diz: “As mercadorias são coisas(Sachen). O que elas são, elas devem sê-lo à maneira das coisas(Sachlich)", — isto quer dizer: as mercadorias se apresentam como valores de uso. Sem dúvida, elas não são somente valores de uso, mas esta é a sua única forma imediatamenteefetiva. A efetivação ulterior (que se faz para além da mercadoria individual) de tudo aquilo que elas são, e portanto também da sua determinação formal só se pode fazer por aí: o valor deve aparecer no valor de uso.

(63) Sem dúvida, Marx não escreve que o valor de uso da mercadoria A se torna material para a expressão do valor. Mas a determinação do valor de uso enquanto valor de uso (que é também posto no interior do modo) é aqui, “suprimida”. Tem-se apenas a determinação de suporte do valor. Se essa forma da trocabilidade imediata não corresponde perfeitamente à forma objetiva (a que se efetua para A pela mercadoria B), em que o valor de uso se torna material, é que, precisamente, se trata de uma forma

subjetiva da trocabilidade imediata.(64) Isto vale igualmente para a forma relativa. Na medida em que o valor de

uso (enquanto valor de uso) da mercadoria B que interessa ao agente A, ela é para ele portanto subjetivamente, na forma relativa (a forma que corresponde à mercadoria no interior da expressão do valor, em oposição à forma equivalente que prefigura o dinheiro). Essa determinação subjetiva da forma relativa se acha, pois, do lado em que objetivamente se acha a forma equivalente.

(65) Se Marx escreve que a exclusão é puramente subjetiva é porque, como já indicamos antes do dinheiro, a própria exclusão objetiva passa ainda pelos sujeitos, ou ainda não está inteiramente objetivada.

(66) “Es findenwesentliche Veränderungen statt beim Uebergang von Form I zu Form II, von Form II zu Form III.” (Dognin, p. 164, grifado por Marx)

(67) Ver Hegel,Wissenschaft der Logik, Zweiter Teil, op. cit., p. 156,Science de la Logique, trad. Labarrière e Jarczyk, op. cit., premier tome, deuxième livre, “La doctrine de l’essence”, p. 227.

(68) O problema aqui é o da presença do valor e do valor de troca, no inicio da análise da forma do valor. Poder-se-ia propor também o problema da presença do valor e do valor de troca no inicio de OCapital. Lá se trata da mercadoria isolada. A merca- doria isolada tem valor, sem dúvida, mas se não a pusermos em relação com uma outra mercadoria, não pode haver aí valor de troca. A coisa se complica, pelo fato de que Marx se exprime, precisamente, da maneira contrária: ele fala, no início, de valor de troca e não de valor. Mais adiante isto é corrigido (é o único ponto em que, aparentemente, a apresentação de OCapital corrige, isto é, aceita — mas só para este ponto, insistimos — algo como uma apresentação provisória, forma em princípio estranha à apresentação dialética). Com efeito, para a mercadoriaisolada (einzeln, individual) o valor de troca está ausente, ele não está presente mesmo enquanto forma fenomenal (o valor de troca depende precisamente da relação entre pelo menos duas mercadorias). Marx foi obrigado a seguir esse caminho que não é inteiramente satisfatório para poder começar ao mesmo tempo pela forma elementar que é a mercadoriaindividual e pela

aparência que é o valor de troca e não o valor. Para evitar toda instância provisória seria preciso aceitar, no início, ou a presença do fundamento, isto é, do valor, ou o da

multiplicidade das mercadorias, mas as duas alternativas levantam, por sua vez, problemas; elas não são satisfatórias, na medida em que em cada um dos casos, um “mais complexo” seria dado de imediato. A solução foi pois a de começar pela mercadoria isolada mas com o valor de troca, e corrigir em seguida o uso desta última expressão: “Se no inicio desse capitulo dissemos, da maneira usual: a mercadoria é valor de uso e

valor de troca, isto, falando rigorosamente, era falso”. (W.23, K.I, p. 75; Dognin, p. 203) Para o conjunto do problema do valor na teoria da circulação simples, ver a segunda parte deste texto.

(69) Ver W.23, K.I, p. 78; Dognin, p. 207.

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MARX: LÖGICA E POLITICA 217

(70) Ibidem.(71) Portanto, nao haverá universalização, se se tomar a multiplicação das se

qüências como alternativa para o caminho que seguirá Marx: o da inversão da forma II. Fora a inversão que interrompe de vez a multiplicação das seqüências, pode-se

supor também, como faz o texto da primeira edição (ver mais adiante) tanto a multiplicação das seqüências como (depois) uma inversão de cada uma delas. Com isto se teria equivalentes gerais ou um equivalente geral não consolidado (em cada momento). Adiante, examinaremos em detalhe as conseqüências dà hipótese geral aqui excluída: a de uma consideração simultânea e não sucessiva das seqüências.

(72) Observemos que nessa inversão, não só cada um dos termos da “equivalência” muda de posição (e de função), mas um dos termos muda também as suas relações internas: o "ou” que liga os membros do primeiro termo na primeira expressão foi omitido na segunda, o que significa que ele se torna um “e”. Isto quer dizer que todas as mercadorias exprimem agora simultaneamente o seu valor. O que significa logicamente esta passagem? Se quisermos pensar essa diferença na sua relação com a lógica formal, seria preciso dizer: o “ou” da primeira forma é uma relação que não se confunde nem com o “ou” alternativo ou disjuntivo, nem perfeitamente com a conjunção, mesmo se Marx se refere à forma II como a uma “soma de expressões”. (Dognin, p. 153) Digamos que esse “ou” é uma espécie de conjunção que, pelo fato de que a expressão, embora não seja subjetiva, não está inteiramente objetivada, é afetada pela alternativa. Por outro lado, como já vimos, o conjunto da expressão está agora posta em objetos determinados. Com essa posição, se entra num novo “registro”, cujas conseqüências aparecerão na passagem de III a IV.

(73) Até aí a representação subjetiva do agente corresponde à expressão objetiva do valor da sua mercadoria.

(74) Essa diferença entre o conjunto das seqüências considerado como uma sucessão, na qual cada mercadoria representa por sua vez o equivalente geral — configuração que representa uma forma de transição (ao equivalente geral segundo a quarta edição, e a forma dinheiro segundo a primeira) — e o conjunto das seqüências considerado em simultaneidade, poderia ser representado logicamente pela diferença respectivamente entre uma relação de alternativa entre as seqüências e uma relação de con

junção (para a justificação da representação da relação entre os termos da forma II por um signo duplo de alternativa e de conjunção, ver a nota 72):

Forma II: (xA = yZ)*(xA = bm)* (xA = cL) etc.Forma lia (forma II desenvolvida, multiplicação das seqüências em sucessão)[(xA = yZ) * (xA = bM) ? (xA = cL) etc.] w [(yZ = xA) * (yZ = bM) *(yZ = cL)] w [(cL = xA)» (cL = yZ) * (cL = bM) etc.] W*etc.Forma Ilb (forma desenvolvida, multiplicação das seqüências em simultanei

dade):[(xA = yZ) * (xA = bM) * (xA = cL) etc.] . [(yZ = xA) * (yZ = bM)1?(yZ = cL) etc.] . [(cL = xA)» (cL = yZ) » (cL = bM) etc.] . etc.O processo só conduziria à dissolução de toda expressão do valor se se passasse

de uma relação de alternativa entre as seqüências (forma lia) a uma relação de con junção (forma Ilb). Mas enquanto se ficar na alternativa (forma Ha) a forma geral não está solidificada. Com a passagem à forma III (a qual, se se considerar lia, se opera a partir do primeiro membro de Ha) todos os membros ligados pela alternativa, em lia) salvo o primeiro que precisamente é invertido, são pois eliminados.

(75) Ver W.23, K.l, p. 104;Oeuvres, Êconomie I, op. cit., p. 326.(76) Ver. W.23, K.l, p. 104; cf. Oeuvres, Êconomie I, op. cit., p. 625: Kon-

gruenz é traduzido aí por “1’accord et 1’analogie”.(77) Marx supõe aqui duas formas monetárias.(78) W.23, K.l, p. 104;Oeuvres, Êconomie, I, op. cit., p. 625. O enunciado “os

metais (.. .) são por natureza ouro” é de Galiani. Ver a nota ao texto.(79) Ver a esse respeito as últimas páginas do capítulo II do livro I de O

Capital. Pode se consultar a esse respeito o artigo de N. Geras, “Essence and Appea-

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rence: aspects of fetischism in Marx’s Capital”, New Left Rewiew, Londres, n? 65, jan.-fev. 1971.(Les Temps Modernes, n? 304, nov. 1971)

(80) A flecha sobre x e a flecha sobre y, na primeira expressão, representam, aparentemente, as duas relações duplas e inversas x (RI e R2) e y (R4 e R3), tais como elas são definidas nas duas últimas expressões. Elas não designam, aparentemente, relações de equivalência como no início.(81) X e Y aparecem em maiúsculas: trata-se entretanto das relações x e y.

(82) As flechas indicam aparentemente não simplesmente a relação de equivalência mas a relaçãp duplà x, isto é, a que contém RI e R2. Mas é a relação R2 que nos interessa aqui, pois é R2 que representa um problema.

(83) Mesmo a segunda. Vimos que se se generalizar em lugar de passar ao universal concreto, é a forma do valor não o próprio valor que se perde.

(84) É sempre possível descobrir que uma questão é uma falsa questão. Mas para isso é necessário compreender bem o sentido e o sentido das operações que poderiam conduzir à sua solução.

(85) Ver a nota 56 deste texto.(86) Ver Benetti e Cartelier, p. 143.(87) “I. A passagem da mercadoria ao capital: um problema não resolvido.”

(p. 132)(88) “Na teoria neoclássica, a passagem (da mercadoria ao capital) é efetuada

pela generalização da teoria da troca de mercadorias como troca dos fatores de produção e como capitalização para troca dos fatores de produção duráveis.” (p. 133)

(89) Benetti e Cartelier escrevem que particularmente Ricardo e Sraffa estão persuadidos de que elaboram uma teoria dos preços, (p. 84) A abordagem Ricardo- Torrens-Sraffa implicaria excluir “todo ponto de intersecção entre as noções de mercadoria e de capital”, (p. 134)

(90) “Tradicionalmente, a extensão da teoria da mercadoria consiste na adição de uma hipótese suplementar (existência do trabalho assalariado) a fim de produzir a

noção de capital. Supõe-se então resolvido, sem o haver proposto, o problema da relação entre os sujeitos mercantis e capitalistas, sendo estes últimos concebidos como uma especificação dos primeiros.” (p. 53) “Na teoria marxista tradicional, o modo de produção capitalista só difere da sociedade mercantil pela extensão das relações mercantis a uma mercadoria suplementar.” (p. 190)

(91) Hl é enunciado da seguinte maneira: “Hl: a sociedade é dada e a ligação entre os seus elementos é a separação, cuja expressão é a unidade de conta comum”. (P. 12)

(92) H2 se enuncia da seguinte maneira: “O modo de existência da separação é a ruptura entre o privado e o social”, (p. 14)

(93) H’2 se enuncia do seguinte modo: “(...): o modo de separação é a relação salarial”.

(94) Não fazemos aqui a história da leitura da secção I. Não seria sem interesse fazê-la.

(95) W.13, Zur K ri tik..., op. cit., p. 44;Contribution à la critique de 1'Écono- mie Politique, trad. franc. de Maurice Husson e Gilbert Badia, op. cit ., p. 35, grifo nosso.

(96) W.25, K.III, op. cit., p. 97; Le Capital, livro III, tomo I (VI), op. cit ., p. 105, grifo nosso.

(97) Observemos que os dois problemas não se confundem: no texto anterior trata-se (em termos filosóficos) do problema da relação entre essência e fenômeno-, aqui se trata do problema da relação essência e aparência.

(98) Não há outras terras, para pensar o discurso de OCapital. Há evidente

mente outras saídas — estamos vendo uma — se se tratar de abandonar o universo de O Capital. Mas o mínimo que se pode dizer é que ela só aparece como necessária se no fechamento só se viu fechamento. Ou, por outras palavras, se não se ousou discutir o princípio segundo o qual a contradição é irracionalidade.

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(99) Não podemos desenvolver esse problema aqui. Seria necessário pensar primeiro o papel da identidade na dialética hegeliana, e em seguida, o que já é outra coisa, o papel da identidade na dialética de Marx. A questão do lugar da identidade parece essencial para pensar a relação entre as duas dialéticas. Voltaremos a isso em outro lugar.

(100) Como veremos, esta aparência comporta de resto instâncias diferentes que podem não ser simples aparência.

(101) Essas considerações visam mostrar a insuficiência da tese que se encontra em certos autores, segundo a qual na secção primeira se tem a teoria da circulação simples e não a teoria da produção simples. Esta tese resulta da dificuldade que oferece pensar como momento do capitalismo a noção de produção simples, o que tentamos fazer.

(102) Que ela seja a “negação” de algo positivo é também verdade, só que o capital é posto entre parênteses na circulação simples. Mas é antes pelo outro lado que a circulação simples deve ser caracterizada, porque o outro lado — a posição de um ente “negado” — diz não o que é pressuposto, mas o que é posto na circulação simples.

(103) Ver primeira parte,I, “d) A forma do valor”.(104) Dizemos expressãoimediata do valor dasmercadorias, porque por um lado o dinheiro tem sua forma relativa desenvolvida (forma que não é forma-preço) no conjunto das outras mercadorias. E que, por outro lado, através do dinheiro toda mercadoria exprimeindiretamente o seu valor em todas as outras mercadorias.

(105) O que não quer dizer que objeto e sujeito se confundem. Ver a esse respeito “Abstração real e contradição: ...” (segunda parte, excurso).

(106) Ver a nota 42 deste texto.(107) As soluções dos dois problemas não são idênticas porque no problema

geral (circulação simples/produção capitalista), a forma “negada” é a aparência da forma que nega, o que não é o caso, rigorosamente, para a relação entre os momentos do dinheiro e o dinheiro.

(108) Ver “Abstração real e contradição: ...” (terceira parte). Uma comparação entre esses dois problemas tem interesse. Observar-se-á, como mostramos no texto anterior, que a resposta ao problema da existência do valor nos “bolsões” mercantis anteriores ao capitalismo é contraditória: lá o valor não existe, mas em certo sentido existe; quanto à produção capitalista, deve-se dizer que lá ele está absolutamente ausente. Para o problema da relação circulação simples/produção capitalista enquanto produção capitalista, temos, pelo contrário: o valor está lá absolutamente (na circulação simples), enquanto que a produção capitalista, como acabamos de ver, está e não está.

(109) O dinheiro conserva o valor de uso material mas como valor de uso (material) “negado”. Marx parece escrever que no dinheiro ao valor de uso material se acrescenta o valor de uso formal (ver W.23, K.I, p. 104;Oeuvres, Économie I, p. 626), o que poderia levar à suposição de que os dois valores de uso subsistem, no dinheiro, enquanto determinações positivas. Mas na realidade ele se refere não ao dinheiro mas à mercadoria-dinheiro(Geldware), isto é, ao dinheiro considerado em continuidade com a forma que ele “nega”, a mercadoria. Se se pensar o dinheiro como “mercadoria- dinheiro”, a determinação própria à mercadoria — o valor de uso material — não está “negado” (o que seria o caso se se visasse simplesmente o dinheiro) mas aparece ao lado da determinação própria do dinheiro, o valor de uso formal. “O valor de uso da mercadoria-dinheiro(Geldware) se desdobra. Ao lado do seu valor de uso particular enquanto mercadoria — o ouro, por exemplo, serve para preencher dentes ocos, como matéria-prima para artigos de luxo etc. — ela recebe um valor de uso formal que nasce de sua função social específica.” (W.23, K.I, p. 104;Oeuvres, Économie I, op. cit., p. 626)

(110) “Se se fixar as formas particulares de manifestação (...) obter-se-á as explicações(erhält man die Erklärungen): o capital é dinheiro, o capital é mercadoria.” (W.23, K.I, p. 169;Oeuvres, Économie I, op. cit., p. 700)

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222 RUY FAUSTO

(136) “Examinemos a circulação dessas 30 £ , que se separa do circuito do capital, embora ela tenha nela o seu ponto de partida: 400 libras de fios (M' = parte de sobreproduto) ... 30 £ (D) ... 30£(M = meios de subsistência). Trata-se pois de um caso de circulação simples de mercadorias, em que o dinheiro funciona só como moeda. Sua finalidade é o consumo individual e é revelador da estupidez dos economistas vulgares o fato de que eles apresentam esta circulação da parte do sobreproduto consumido como rendimento como circulação caracteristica do próprio capital, quando na realidade o seu motivo determinante é a valorização do valor, o valor de troca e não o valor de uso.”(Oeuvres, Êconomie II, p. 534, grifo nosso) E mais acima: “As 30 £ consumidas como rendimento se incorporam à circulação geral tanto quanto as outras 30£; mas em vez de entrar no circuito do capital, elas, pelo contrário, escapam dele”. (Oeuvres, Êconomie II, p. 533) Ainda: “A circulação da mais-valia constitui aqui ela própria um momento na circulação do capital. E só depois do ato M’ — D’ que os dois elementos se separam: daqui por diante dividido em D + A D, D' pode percorrer dois circuitos diferentes, um dos quais entra na circulação geral das mercadorias saindo do circuito próprio ao capital, enquanto que o outro constitui uma fase deste último". (Oeuvres, Êconomie II, p. 540, grifo nosso. Esse texto, como os dois anteriores, não existe nasWerke, e foi portanto traduzido do francês) Ver também W.24, K.II, p. 97;

Le Capital, 1. II, t. I (IV), p. 87; e W.24, K.II, pp. 74-75; Le Capital, 1. II, t. I (IV), pp. 65-66.

(137) “(...) a análise que Marx apresenta na quinta secção, se despojada do ‘fetichismo do capital real’ é amplamente compatível com a que foi apresentada na primeira parte dessa obra.” (p. 204) Trata-se de um texto da nota 6 de Benetti e Cartelier, sobre o crédito, a qual não comentamos aqui. Citamo-la por causa da presença — a propósito de Marx — do termo “fetichismo”.

(138) Numa nota da p. 196, Benetti e Cartelier escrevem: “Marx parece consciente dessa redução, mas não a supera (Citação de Marx, damos a versão das £d. Sociales utilizada por Benetti e Cartelier)”. “Concentrando a atenção sobre esta figura

(fixiert man (...) dieseFigur) (o ciclo III), tem-se a impressão de que todos os elementos do processo de produção provêm da circulação das mercadorias e só consistem em mercadorias. Esta concepção estreita(einseitige) não leva em conta(überzieht, néglige) os elementos do processo de produção que são independentes dos elementos de merca- doria (Warenelementen)”. ((Le Capital), 1. II, t. I, p. 92 (ver W. 24, K. II, p. 103)) “De que elementos se trata?" — perguntam Benetti e Cartelier. "Sem dúvida não da própria ‘força de trabalho’ (que), segundo Marx (é) mercadoria (...).” (Benetti e Cartelier, p. 196, n. 2) A resposta a esta questão se encontra, entretanto, em Marx: "Urna vez consumado o ato e-Mp, as mercadorias (Mp) deixam de ser mercadorias e se tornam um dos modos de existência do capital industrial, na sua forma funcional de P, capital produtivo”. (W.24, K.II, pp. 113-114; Le Capital, 1. II, t. I (IV), p. 102, grifo nosso) E ainda: “(...) a força de trabalho só é mercadoria nas mãos do seu vendedor, o trabalhador assalariado (...)”. (W.24, K.II, p. 42; Le Capital, 1. II, t. I (IV), op. cit., p. 38) Os meios de produção podem ser mercadorias nas mãos do comprador, mas eles não o são no interior do processo de produção. No processo produtivo, eles são capital— numa de suas formas, o capital produtivo, e capital produtivo em processo — sem

ser mercadorias nem dinheiro, sem ter a forma mercadoria nem a forma dinheiro. Benetti e Cartelier esqueceram simplesmente o capital produtivo, que no processo de produção é uma terceira forma., diferente da mercadoria e do dinheiro. Mas a idéia — que é justamente a de Marx — de um momento do capital em que este não é nem mercadoria nem dinheiro se justifica logicamente? Acreditamos que aqui também a solução tem algo a ver com a relação contraditória entre o capital e os seus “antecedentes” lógicos. Se o dinheiro e a mercadoria fbssem antecedentes fundantes do capital,

seria difícil pensar que este último poderia se desfazer deles, ainda que num momento apenas do seu processo circulai.E outro o caso, se esses antecedentes (que se tornaram formas de existência) são na realidade pressuposições, isto é, princípios "negados". A possibilidade de que eles sejam efetivamente “negados” parece pensável. O capital

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como capital produtivo não é nem mercadoria nem dinheiro. Ele se apresenta só como valor de uso e é sempre valor, pois o capital é valor que se tornou Sujeito. Tem-se capital (valor-capital e forma de existência valor de uso) sem ser nem mercadoria nem dinheiro.

(139) Sobre a importância do valor de uso para a reprodução, ver a nota 61.(140) “(. .. ) Com a ciência se passa o mesmo que com as forças naturais. Uma

vez descoberta, a lei do desvio da agulha imantada nü circulo de ação de uma corrente elétrica, ou da produção do magnetismo no ferro em torno do qual circula uma corrente elétrica n&o custa um vintém." (W.23, K.I, p. 407;Oeuvres, Economie I, op. cit ., p. 931)

(141) O que não será um pecado se o “economismo" está nas coisas. Lembremos a esse respeito um texto de Horkheimer, que é pouco suspeito de economismo, a propósito do conceito (em sentido objetivo e subjetivo) de “dependência do cultural em relação ao econômico” nas condições do capitalismo contemporâneo: “Com a aniquilação do individuo tipico, ele (esse conceito) deve ser compreendido como se (de uma maneira) mais vulgarmente materialista do que antes. As explicações dos fenômenos sociais se tornam mais simples e ao mesmo tempo mais complicadas”. (Max Horkheimer, Traditionelle und kritische Theorie, artigo com o mesmo título, Frankfurt, Fischer, 1968, p. 52.Théorie traditionelle et Théorie critique, Gallimard, 1974, p. 73, grifo nosso)

(142) Ver a esse respeito o final da primeira parte. Seria preciso insistir sobre a importância da critica do convencionalismo, isto é, da critica do “antifetichismo” abstrato para a análise do capitalismo contemporâneo. Com efeito, tudo se passa como se a aderência das relações formais de produção às relações materiais se tivesse tornado mais estreita do que pensavam os clássicos. Tal é a significação da discussão atual sobre as implicações que têm imediatamente os meios de produção sobre a exploração e a opressão. Nesse sentido, toda exigência de “esvaziamento” da matéria a propósito da teoria de Marx corre o risco de ir no sentido oposto ao das exigências criticas atuais.(143) Talvez fosse interessante comparar Benetti-Cartelier, Castoriadis e Althusser, no ponto em que cada um à sua maneira “roça” a dialética (exprimindo malgré lui e de maneira subjetiva a contradição): Althusser nas suas considerações, em Pour Marx, sobre a Tese VI sobre Feuerbach “A essência humana é (...) o conjunto das relações sociais” (ver “Marxismo, Humanismo, Anti-humanismo”, segunda parte). Castoriadis insistindo sobre as antinomias de Marx. (Ver “Abstração real e contradição...”, terceira parte), Benetti e Cartelier, quando escrevem: “O ouro só é mercadoria enquanto ex-mercadoria", (texto citado)

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Sobre o destino da antropologia na obra de maturidade de Marx (1968)*

1

1. Este texto não pretende fazer uma crítica geral do althusse-rismo, mas desenvolver em forma esquemática, e como um programa de discussão, dois problemas que a leitura da obra de Althusser pro põe: 1) Qual o destino da antropologia na obra de maturidade?;2) Qual a relação entre a obra histórica e política de Marx, e a teoria deO Capital? A discussão do primeiro problema pressupõe uma concordância de princípio com a crítica althusseriana do humanismo. Não setrata de uma volta às leituras continuístas tradicionais, mas de umatentativa de pensarem continuidade a descontinuidade lógica indiscutível que existe entre o “jovem” e o “velho” Marx. (Essa continuidade na descontinuidade1será pensada também lógica e não historicamente.) Na discussão do segundo problema, por sua vez, se admitirá avalidade regional de algumas das teses da crítica de Althusser ao historicismo. Assim, nos dois casos, questionaremos os limites de um tra

balho crítico, cuja validade em princípio (ou para uma certa região doobjeto, pelo menos) não será contestada. — Por outro lado ver-se-á — oque não é imediatamente evidente — quecada uma daquelas questõesdesemboca nosdois problemas correlatos do humanismo e do historicismo. Através destes, as duas interrogações imbricam-se e iluminam-se reciprocamente: a questão dos “dois” Marx esclarece a da organização geral do saber marxista e vice-versa. Embora não linearmente,iremos da primeira à segunda interrogação; sob um aspecto, entretanto, articulamos desde o início as duas perspectivas, pois começaremos por uma reconstituição da estrutura geral do espaço do saber naobra de juventude.

2. Além de funcionar como fundamento teórico da crítica daeconomia (a rigor fundamento de um fundamento, a noção de “trabalho alienado”), o discurso antropológico, ou, mais especificamente, asnoções de “homem” e de “essência humana” representam na obra de juventude uma espécie de “fundamento prático” da política.2 (Ver, aesse respeito, L. Althusser,Pour Marx (“Marxisme et Humanisme”, pp. 229-230) Poderíamos distinguir, na obra do jovem Marx, pelomenos dois modelos de utilização de noções como “homem” ou “essência humana” como fundamentos da prática: o da Introdução à Crítica da Filosofia do Direito, de Hegel, e o dos Manuscritos de 44, ao qual

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série deexperimentos. (Certamente se pode introduzir descontinuidadenessa interiorização — a introdução dessa descontinuidade marca aliása originalidade epistemológica da obra de Debray —; mas assim comotoda continuidade, no plano da teoria (lógica), é derivada de umadescontinuidade que a torna possível, aqui toda descontinuidade só poderá nascer na continuidade de uma memória.) O discurso históricoe tático-estratégico não depende apenas da teoria deO Capital, que lhefornece os princípios;depende também de um passado, que é um passado prático.

Se os discursos histórico-práticos não são simples aplicações dateoria nem ideologias, conviria analisar mais de perto a sua natureza.Aqui me limito a fazer duas observações: esses discursos não satisfazemcertamente à exigência althusseriana de que “o conhecimento da história não seja mais histórico do que é açucarado o conhecimento doaçúcar”.(Lire Le Capital, I, p. 132) O horizonte temático que eles

propõem é, pelo contrário, comandado pelo ritmo do tempo histórico.Citando Lenin: “Não foi a dedução lógica, mas o desenvolvimento realdos acontecimentos, a experiência viva dos anos 1848 e 1851, que oconduziu (a Marx) aesta maneira de colocar o problema. Até que ponto Marx se atém rigorosamente à base efetiva daexperiência histórica, vê-se levando em conta que, em 1852, Marxnão coloca ainda o

problema concreto de saber por que coisa se vai substituir esta máquina do Estado que deve ser destruída. Aexperiência não fornecia ainda os materiais para este problema, quea História pôs na ordem do dia mais tarde, em 1871...”. (Lenin,Obras escolhidas, ed. em espanhol, III, p. 224, “O Estado e a Revolução”, grifos nossos) — Emsegundo lugar, os discursos histórico-políticos recolocam o problemadas relações entre Marx e Hegel. Para dar mais um exemplo (que serelaciona com o texto de Lenin): tradicionalmente se estabelece umahomología entre o lugar que ocupa o socialismo ou o comunismo emMarx e a posição do saber absoluto naFenomenología do Espírito deHegel. A homología é, talvez, menos superficial do que hoje se costumasupor. E ela estabeleceria uma convergência, entre Hegel e Marx, nadefinição das condições de possibilidade do conhecimento do futuro;no caso, do futuro “distante” . NaFenomenología (e para asduas consciências, o que muitas vezes se perde de vista), atematização plena dpsaber absoluto — correlato do que seria a sua transformação em fundamento — éimpossível enquanto não se chegar ao final do itineráriofenomenológico, A meio caminho daFenomenología, ela perverteria acientificidade (ou quase cientificidade) do discurso, e o transformariaem opinião .16 Impensável como discurso pleno, o saber absoluto estádado, entretanto, como horizonte. A essencialidade desse horizonte évariável com o estágio do itinerário fenomenológico em que a consciência se encontra; sua capacidade de iluminar o presente (assim comoa possibilidade, correspondente, de que ele mesmo seja tematizado)

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aumenta, em geral, à medida que nos aproximamos do objetivo últimMas dentro desses limites, a visada do absoluto é uma dimensão necesária. E esses limites são homólogos aos que condicionam a validade

justificação do discurso sobre o socialismo: com o mesmo “gradientetemporal, o discurso que tematiza plenamente o socialismo não podser científico (nem portanto revolucionário), o que não o incorporacomo perfil do objetivo final não pode serrevolucionário (nem portantocientífico). Sob esse aspecto, ainda que se admitam as observações dAlthusser, segundo as quais as categorias hegelianas tomam impossív“toda antecipação consciente do desenvolvimento do conceito, todsaber que visa ao futuro” ( Lire Le Capital, I, p. 118) é indiscutível quefoi possível extrair de Hegel uma teoria desta antecipação.19

5. Restaria colocar o problema das relações entre os dishistórico e político, e a teoria deO Capital. Aqui é certamente válida acrítica ao historicismo: não há entre o tempo histórico e a teoria lógicacontinuidade que ele supõe; mas os dois articulam-se através de certolaços que é preciso definir, a partir de uma análise do espaço objetivda teoria. Para o discurso histórico-político definimos dois pontos qusão as suas referências extremas:20 umsolo histórico que tem como umde seus níveis a consciência atual do proletariado; um horizonte reprsentado pelo objetivo último, o socialismo. Esses dois pontos que, nobra política, se dispõem — diríamos — horizontalmente, vão-se refltir verticalmente em O Capital. O primeiro desses pontos se reflete,fora do espaço propriamente lógico, nos textos em que Marx descreveexperiência do proletariado. Nesses textos, os que tratam da luta pelimitação da jornada de trabalho, principalmente a experiência vividdo proletariado que, entendida como um transcendental, tinha um

papel fundante na antropologia da juventude, reaparece na superfícdo discurso, como “reflexo” histórico (verticalmente, um horizonte) duma realidade estrutural. A luta pela limitação da jornada de trabalhé, de resto, lida e criticada como umaexperiência (ver, por exemplo,

os textos em que Marx critica determinadas ações ou atitudes dos prletários ingleses). Mas se o primeiro limite do discurso político se reflefora do espaço lógico, o segundo, o horizonte do socialismo, se refleno interior desse espaço, comohorizonte de significação (verticalmentecomo o solo primeiro, mas não fundante, das significações). De fato,leitura que Marx faz do capitalismo é uma reconstituição de suas lesobre o fundo de um universo de referência que o transcende. Paralém dos níveis da aparência e da essência (distinção que, para OCapital, deve ser explicitada mas não abandonada) há um decifra-mento mais profundo, em que a essência mesma da estrutura capitlista aparece como um objeto opaco. Esta justaposição das estruturaobjetivas e de um horizonte (não um fundamento) significativo que ilumina, parece ser o segredo dos chamados textos antropológico

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deO Capital, nos quais o althusserismo enxerga apenas sobrevivênciasde uma fase anterior. Eles representam, na verdade, acifra da historicidade deO Capital, no interior do seu espaço lógico, e estabelecem aarticulação desse espaço com o tempo histórico: Enquanto, na obra da

juventude, o lógico e o histórico (o espaço de uma filosofia da história)se articulavam pelocentro do espaço lógico, já que o fundamentoteórico era, ao mesmo tempo, um fundamento prático, aqui a articulação faz-se pela periferia, se dá nos limites do espaço lógico, onde sesitua a “antropologia”. Do jovem ao velho Marx temos, assim, não odesaparecimento de um discurso mas a sua descentração (que dequalquer modoé essencial). Não ter definido com rigor esse deslocamento — o que tornou possível interpretá-lo, do ponto de vista lógico —, não obstante as referências às “sobrevivências históricas” , ou porisso mesmo, como um desaparecimento puro e simples, é talvez a insuficiência maior do althusserismo.

NOTAS

(*) Sobre o sentido e o lugar desse texto, ver a introdução. O texto tinha sido ligeiramente modificado em 1972, por ocasião de sua primeira publicação na América Latina, emCuadernos de la Realidad Nacional, Universidade Católica de Chile, Santiago, n? 14, outubro de 1972. Reproduzimos aqui essa versão de 1972, com bem raras adições, assinaladas por parênteses.

(1) A expressão, usada num contexto um pouco diferente, é, se não me engano, de J. Rancière, L ’idée critique chez le jeune Marx (inédito).

(2) Elas representam um princípio prático, porque são o ponto de partida logicamente necessário da crítica de toda ação e da ação ela mesma. Parecem merecer o nome de “fundamento”, fundamento prático, porque, ao contrário do que ocorrerá com os "princípios da ação” na obra da maturidade, são princípios primeiros. Como se verá, elas não pressupõem nenhuma real interiorização histórica. A história não fornece mais do que as condições para a sua eclosão e exteriorização. — Esta posição em face da história justificaria também (numa linha terminológica aproximadamente hegeliana) a denominação "transcendental”, que mais adiante se lhes dará.

(3) Nos Manuscritos, os fundamentos práticos se apresentam, assim, em distintos níveis de consciência. Mas pelas razões expostas, essa distinção de níveis (cujo hegelianismo é mais aparente do que real) nao compromete a natureza a-histórica ou trans-histórica dos princípios.

(4) Enquanto visadas “práticas”, na critica (teórica) da economia política, o objeto é essencialmente a natureza humana na sua forma atual.(5) “O comunismo põe o positivo como negação da negação, ele é, pois, o momento real (wirkliche) da emancipação e da retomada de si do homem, momento

necessário para o desenvolvimento próximo da História. O comunismo é a forma necessária e o princípio energético do futuro próximo, mas o comunismo não é, enquanto tal, o objetivo do desenvolvimento humano — a forma da sociedade humana”(Manus-

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critos de 44, trad. franc. de Bottigelli, p. 99; original, Ed. Rororo,Texte zu Methode undPraxisII, p. 86) grifos nossos.

(6) “Para abolir a idéia da propriedade privada, o comunismo pensado basta interamente. Para abolir a propriedade privada real, é necessária uma ação comunista rea

A história a trará e este, num movimento que, em pensamento, já sabemos que se

suprime a si mesmo, passará na realidade por um processo muito rude emuito extenso. Mas devemos considerar como um progresso real que, desde o inicio, tenhamos adqurido urna consciencia tanto da limitação como do objetivo do movimento histórico, e urna consciencia que o ultrapassa” (idem, Bottigeili, p. 107; Rororo, p. 93), grifosnossos. .

(7) E em que o Sujeito (filosófico) é, portanto, o principio motor.(8) Essa caractejfeação do Sujeito é parcial. Como se verá indiretamente, a

fusão na obra de maturidade entre o teórico e o dirigente só é essencial (como o papde Sujeito que se atribui ao partido só é válido) para certo tipo de discurso. — Ateoria do partido está fora dos limites deste texto.

(9) A mí:sr¡!." coisa ocorrerá no que se refere aos capitalistas. Nos Manuscritos, a associação dos capitalistas, por nascer de um universo de dispersão, tem alguma coide um pacto. Em O Capital, ela nasce do soló aglutinador do processo de equalizaçãoda taxa de lucro.

(10) Plenamente tematizável enquanto discurso filosófico. Não há utopia política na obra de juventude de Marx. A “plenitude” da tematização deve ser entendidrelativamente ao discurso sobre o futuro imediato. (Ver nota 11)

(11) A visada do Sujeito nao tem mais comocentro de referência o futuro longínquo (antropologia) mas o futuro “próximo” (tática e estratégia). Esta visada dfuturo próximo prolonga por sua vez uma retrospecção histórica.

(12) Sobretodo porque ele privilegia a questão(dateoría marxista da história e da política, em detrimento da questão) mais geral doconhecimento histórico-político e deseus níveis, no interior do marxismo.

(13) As indicações dos althusserianos sobre a teoria da prática inspiram-se emQue Fazer?. (Ver a esse respeito o artigo de Jean-Paul Dollé “Du gauchisme à l’huma-nisme socialiste”in Les Temps Modemesv abril de 66). Ã medida que aquele textoserviu a urna crítica do hegelianismo, deixamos para o final desse tópico, onde stratará de Hegel, as referências a respeito. — A simples possibilidade de uma teoria história e de uma teoria da prática — convém observar — não é em si mesma umargumento em fávor do althusserismo; é aliás na região dessas teorias que se situa estexto. O que importa é o tipo de relação que elas estabelecem entre o discurso teórico portanto tambény entre elas mesmas e a História). Conviria precisar: a teoria da hitória a que me ifefiro só pode ser uma teoria filosófica do conhecimentohistórico daHistória, do mesmo nivel da teoria filosófica da (sobre a) teoria“pura" da história queoferece OCapital, e a distinguir das teorias científicas correspondentes (“puras” ouhistóricas) e dos discursos histórico-(políticos) concretos. Algo a respeito, em formmuito sucinta, na continuação do texto. Em geral, trato só de dois níveis: o da teor“pura” de OCapital e o dos discursos concretos.

(14) A rigor haveria uma terceira hipótese: a de que eles seriam “materiais”semi-elabórados para uma “história”(Lire Le Capital, I, p. 147, cito sempre a primeira edição). Essa caracterização, mesmo se verdadeira, não poderia, entretantoeludir o problema da natureza do discurso histórico marxista.

(15) Essa crítica não se confunde com a crítica de essência reflexiva (não hegeliana) que faz o Sujeito nos Manuscritos.

(16) Continuidade que não exclui a descontinuidade.(17) Ver sobretudo emO Estado e a Revolução o uso que se faz da noção de

experiência. — Ã noção deexperiência corresponde a noção complementar detarefa, que conviria analisar mais de perto.(18) Ver Prefácio (ou antes, a Introdução) àFenomenología.

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(19) A propósito, caberia uma referência às famosas teses deQue Fazer? sobre a introdução, de fora do proletariado, da consciência revolucionária, à medida que os althusserianos as utilizam para mostrar o caráter radicalmente anti-hegeliano da teoria marxista da prática. Uma discussão mais profunda dependeria de uma análise prévia do tipo de conhecimento — bem diverso do de O Estado e a Revolução — que nos oferece esse livro. — Resumidamente: a questão das relações entre a consciência “econômica” e a consciência política (revolucionária) deveria ser distinguida mais rigorosamente do problema das relações entre teoria e prática revolucionária. Os dois problemas não são evidentemente idênticos nem mesmo convergentes. Uma observação sobre cada um deles: 1) Se de fato a recusa em admitir a possibilidade de uma passagem espontânea da consciência econômica à consciência política implica o abandono de qualquer esquema finalista, a relação entre os dois níveis — já que a luta econômica se integra numa prática política que a incorpora e a modifica (a “supera”?) — émais hegeliana do que espinosista. 2) Conforme o que se diz no texto, o problema da relação teoria-prática não parece solúvel, se não se distinguirem no marxismo diferentes formas de conhecimento, e também de teoricidade. A relação com a prática de uma teoria como a da revolução permanente de Trotski, por exemplo, sua “historicidade”, não se confunde com a da teoria de0 Capital. Só a primeira é epistemológicamente inseparável de certaséxperiências do proletariado. Sobre as duas questões subsiste o problema histórico de saber até que ponto as teses deQue Fazer?, ou a interpretação que usualmente se lhes dá, correspondem ao que se poderia considerar como a posição leninista. Lenin cerca de certas reservas o emprego de algumas de suas fórmulas. (Ver Lenin,Obras Escolhidas, esp. I, 215,Que Faire?, ed. franc. Seuil, p. 135) Segundo Trotski — em sua biografia de Stalin, Cap. III — Lenin teria abandonado mais tarde as teses deQue Fazer?, que Trotski reputa “unilaterais e portanto falsas”.

(20) À medida que os discursos histórico-políticos pressupõem uma intèrioriza- ção em profundidade, a história atual não é certamente o seu limite extremo. Mas ela o é, não obstante, no sentido de que, enquanto campo da prática, só ela representa, a rigor, o solo dç cada discurso prático.

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Notas sobre o jovem Marx12

A obra do jovem Marx ficou um pouco esquecida depois da crítica althusseriana e também da crise do althusserismo. Ela ofereceentretanto, um interesse considerável. Por um lado, ela se sitúa certamente aquém do marxismo, mas ao mesmo tempo — pelo menos noque se refere a alguns dos textos do jovem Marx, e de uma forma que

não é simples —, ela nos conduz além do marxismo. Nós nos limitaremos aqui a alguns pontos sobretudo históricos.

a) Sobte osManuscritos de 1844O que é preciso ressaltar, a propósito dos Manuscritos de 1844,

é que, se por um lado eles representam um discursodiferente de O Ca pital, nem por isso eles se situam no interior de um universo simplesmente antropológico ou humanista. Na realidade, passou-se muitorapidamente do continuismo entre o jovem Marx e o velho Marx à idéide um jovem Marx essencialmente feuerbachiano.2

Õ discurso dos Manuscritos não se confunde com o de OCapital. Mas daí não se deve concluir que só se trata de um discurso moralizante e antropológico.

Em pHmeiro lugar, é preciso dizer que os Manuscritos... representam mais umaantropologia negativa do que uma antropologia positiva — o que já é diferente. O fundamento antropológico nos Manuscritos é menos o homem do que ohomem alienado. Isto não nosremete ao velho Marx, mas representa uma diferença importante em

relação à antropologia feuerbachiana. Diríamos que para passar dos Manuscritos ao universo do velho Marx, é necessário pôr {setzen) a “negação” do homemenquanto "negação”, ou, se se quiser, é preciso “negar” o próprio homem “negado”: isto representa sem dúvidauma mudança fundamental. Mas o que se perde de vista, freqüentemente, é a idéia de que o homem “negado” está nos Manuscritos com oque isto significa: nos Manuscritos temos sem dúvida o homem: antro

pologia, mas “negado” , antropologianegativa.Essanegação da antropologia no interior da antropologia — uma

outra maneira de dizer a mesma coisa — se efetiva na crítica daantropologia (ou do antropologismo) de Feuerbach a partir de Hegelà qual corresponde uma espécie de reabilitação da racionalidade da

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economia política a partir de Hegel igualmente. Os que nos apresentamum jovem Marx só feuerbachiano no essencial3esquecem vários textos para justificar as suas teses, como se o universo dos Manuscritos de 44 fosse idêntico ao das notas sobre James Mill, escritas entretanto, provavelmente, muito pouco tempo antes dos Manuscritos .4

Assim, se de Feuerbach ao jovem Marx se passa da antropologia positiva à antropologia negativa, essa operação é solidária de umacrítica da antropologia de Feuerbach a partir de Hegel, de uma espéciede reabilitação da economia política a partir de Hegel. Vejamos maisde perto esses dois pontos, que estão ligados um ao outro.

A crítica da antropologia feuerbachiana se faz pela introdução daidéia de que a história do homem não é uma verdadeira história, masumahistória natural do homem, uma história da gênese do homem.Se se ler esta operação de um modo vulgar, como em geral é o caso,ela aparece como uma banal “historicização” do homem. Na realidade, uma operação como esta põe em cheque — num primeiro momento — a antropologia. Com efeito,se se afirma que a história não é mais do que pré-história do homem, o homem não está lá: perde-se então o direito de falar do homem. Tal é a contradição dos Manuscritos. Mas eles não vão mais longe, e supõem que aantropologia negativa é uma resposta a esta dificuldade. Deve-se observar, no planohistórico, que a idéia da história enquanto história natural deve muitoa Moses Hess (ver, entre outras coisas, “Über das Geldwesen”in Hess,Philosophische und Sozialistische Schriften, Berlim, Akademie Verlag,1961, pp. 39 e segs. E um texto em que ele discute precisamente essadiferença: “Fortschritt und Entwicklung”, p. 281 da mesma coletânea).

Eis aqui os principais textos dos Manuscritos sobre o problema.Esses textos são bem conhecidos, mas se reflete pouco sobre as suasimplicações (implicações que, sé não estão postas nos Manuscritos, estão “lá” como implicações pressupostas): “Mas considerando a negação da negação — segundo a relação positiva que existe nela, como overdadeiro e único positivo, segundo a relação negativa que se encontranela, como o único ato verdadeiro e ato de manifestação de si (Selbstbetätigung)i de todo ser, Hegel só encontrou a expressãoabstrata, lógica, especulativa para o movimento da história, a qual ainda não éhistória efetivamente real do homem enquanto sujeito pressuposto,mas somenteato de engendramento (Erzeugungsakt), história do nascimento (Entstehungsgeschichte) do homem”.5 “E como tudo o que énatural deve nascer, o homem tem também o seu ato de nascimento,a história, que entretanto é para ele uma história conhecida(gewusste) e por isso enquanto ato de nascimento, ato de nascimento que sesuprime conscientemente (mit Bewusstsein). A história é a verdadeirahistória natural do homem”.6 “Mas como para o homem socialistatoda a assim chamada história universal nada màis é do que o engen-

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dramento do homem pelo trabalho humano, do que o devir da natureza para o homem, ele tem assim a prova intuitiva, irrefutável, da suanascença através de si mesmo, do seu processo denascimento.''1Essestextos representam uma espécie de ruptura com a antropologia, mas

que finalmente vai se resolver em antropologianegativa. Se a históriasó é historia do nascimento do homem, com que direito se pode tomar ohomem como fundamento — mesmo se ele é o homem “negado”?Adorno já observava que o espirito hegeliano tal como o retomamos Manuscritos8 representava o trabalho social, o que significa: oespirito hegeliano aparece nos Manuscritos como uma determinaçãoqye põe em cheque a idéia de urna historia que seria historiado homem.9

Mas o hegelianismo dos Manuscritos aparece ao mesmo tempo(trata-se de uma outra face da mesma coisa) como uma espécie dereabilitação da racionalidade da economia política. Nos últimos tem pos, insistiu-se a tal ponto sobre o moralismo dos Manuscritos que aleitura de certos textos se tornou impossível. E entretanto se lê nos

Manuscritos-. “Assim, o senhor Michel Chevalier acusa Ricardo defazer abstração da moral. Mas Ricardo deixa a economia política falara sua própria língua. Se ela não fala moralmente isto não é culpa deRicardo. M. Chevalier faz abstração da economia política, na medidaem que ele moraliza, mas ele abstrai necessária e efetivamente damoral, na medida em que faz economia política. A relação da econo

mia política com a moral, se por outro lado ela não for arbitrária,acidental e em conseqüência não fundada e não científica, se ela nãofor exibida pela aparência, mas (ao contrário) se for visada comoessencial, só pode ser, sem dúvida, a relação das leis da economia política com a moral; se ela não se verifica — ou antes, se o contrário severifica — que pode (fazer) Ricardo? De resto a oposição entre aeconomia política e a moral é também só umaaparência, fi assimcomo ela é uma oposição, de novo ela não é nenhuma. A economia políticaexprime à sua maneara as leis morais” .10 “Grande progresso de Ricardo, Mili etc. diante de Smith e Say, que eles declarem a existência(Dasein) do homem — a maior ou menor produtividade humana damercadoria — comoindiferente e mesmo prejudicial. (Que) a verdadeira finalidade da produção seja não quantos operários um capitalmantém, mas quanto juro ele produz, a soma das economias anuais.Foi igualmente um grande e conseqüente progresso da economia política inglesa moderna, que ela — que eleva o trabalho (fazendo dele)o princípioúnico da economia política — tenha explicado ao mesmotempo com plena clareza a relaçãoinversa (que existe) entre o salário (do trabalho) e o juro do capital, e que o capitalista em regra(geral)só possa ganhar pela redução do salário e vice-versa. Que não aexploração (übervorteilen) do consumidor, mas a exploração recíprocado capitalista e do operário seja a relaçãonormal.”11Eis aí um texto

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um pouco difícil de ser lido se se supuser que os Manuscritos representam pura e simplesmente um discurso humanista. E ainda: “Não sóo cinismo da economia política cresce relativamente de Smith — passando por Say — até Ricardo, Mili etc., na medida em que as conseqüências da indústria ( Industrie) aparecem (vordie Augen treten) aosúltimos (como) mais desenvolvidas e mais cheias de contradição, mastambém positivamente eles vão sempre e conscientemente mais longedo que os seus predecessores na alienação em relação ao homem, massomente porque sua ciência se desenvolve de um modo mais conseqüente e mais verdadeiro. Fazendo da propriedade privada, na suaconfiguração ativa, o sujeito, e fazendo ao mesmo tempo do homem aessência e do homem como não-essência (Unwesen) a essência, a contradição da realidade efetiva corresponde assim plenamente à essênciacheia de contradição que eles reconheceram como princípio. Longe derefutá-lo, arealidade dilacerada{Die zerrissene Wirklichkeit) da indústria confirma o princípio em si dilacerado da ciência deles. Comefeito, o princípio deles é o princípio desse dilaceramento” .12 No movimento desse último texto, estamos realmente no limite extremo daantropologia (negativa). A contradição do sujeito aparece como verdade porque o real é contraditório. Se a não-essência se tornou essênciano objeto, o discurso da não-essência é o discurso da essência. A pressu posição do homem já está “lá” , mas como pressuposição pressuposta, porque na realidade o homem é posto mesmo se sob uma formanegativa.Só falta pôr como pressuposição esta pressuposição pressu posta do homem.

É bem evidente que se um discurso como esse não se confundecom o de OCapital, ele é coisa bem diferente do discurso feuerba-chiano. E ele dá lugar, negativamente — embora negando estas condições pois ele se cristaliza, por um lado pelo menos, em antropologia negativa —, para um discurso como o de OCapital, em que o homem éefetivamente “negado”. O reconhecimento da irracionalidade da economia como discurso irracional de uma realidade irracional (portantocomo discurso racional pois adequado ao real) é evidentemente acontrapartida dos movimentos que descrevemos anteriormente. O discurso do não-homem — mas que finalmente, ou por um lado, aparececomo discurso do homem-negado (daantropologia negativa) — ganhalegitimidade, e aparece como um discurso quase-crítico.

Essas mutações na relação com a antropologia e com o discursoeconômico aparecem finalmente, num plano mais geral, nos textossobre a passagem do pensamento ao ser, sobre o argumento ontológico.

Sabemos que Feuerbach aceitava a posição de Kant a propósito desse problema.13 No jovem Marx, odinheiro aparece como aquilo que permite a passagem do pensamento ao ser. Por exemplo: “Ademanda (demande) existe também para aquele que não tem dinheiro, mas a suademanda é uma pura essência(Wesen) da representação, que não tem

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esta universalidade é posta, aqui, pela contradição ou pela negação:“(...) o Estado cristão consumado (vollendete) não é assim o chamadoEstadocristão, o que reconhece o cristianismo como sua base, comoreligião de Estado e se comporta de maneira exclusiva em relação àsoutras religiões; é antes o Estadoateu, o Estadodemocrático (...)”.“A forma acabada (Vollendung) do Estado cristão é o Estado que sereconhece como Estado e faz abstração da religião de seus membros.” 15

Na “Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel,Introdução”, há um movimento que não deixa de ter analogia com oque acabamos de descrever. Poderíamos enunciá-lo da seguinte forma:o Estado mais atrasado é (em certo sentido) o Estado mais avançado (porque, como se sabe, o texto anuncia a possibilidade da revolução na

Alemanha por causa do atraso da Alemanha). “Que se considere em primeiro lugaros governos alemães, e se constatará que eles são impulsionados pelas circunstâncias, pela situação da Alemanha, pelo lugarem que se situa (Standpunkt ) a cultura alemã, e finalmente pelo instinto feliz que lhes é próprio de combinar osdefeitos civilizados domundo político (Staatswelt) moderno, cujas vantagens não possuímos,com osdefeitos bárbaros do antigo regime, de que gozamos em plenamedida(in vollem Masse), e assim a Alemanha deve participar cadavez mais se não na razão (Verstand) pelo menos na desrazão (Unver-

stand) também das formações políticas (Staatsbildungen) que se situam além do seustatu quo. (...) (...) Assim como no Panteón romanose encontravam osdeuses de todas as nações, no Santo Império Romano Germânico se encontram os pecados de todas as formas deEstado. (...) (...) A Alemanha enquanto defeito do presente político constituído num mundo próprio não poderá derrubar as barreirasespecificamente alemãs sem derrubar as barreiras do presente político./ Não é a revoluçãoradical que constitui um sonho utópico para aAlemanha, não é a emancipação (em forma)geral humana (allgemein

menschliche Emanzipation), mas antes a revolução parcial,somente política, a revolução que deixa subsistir os pilares da casa.” 16Aqui a contradição se situa no nível do tempo: o recuo histórico

aparece coincidindo com um salto no futuro. Tem-se uma representação do tempo que rompe com a representação “aufklãrer ” de Feuer-

bach. Mas não desenvolveremos aqui o movimento geral do texto nem asua relação com a “Questão Judaica” .

c) Sobre aCrítica do Direito do Estado de HegelO sentido geral da crítica que Marx faz de Hegel nesse texto é

bem conhecido. Trata-se de questionar o que, parafraseando umaexpressão célebre, poderíamos chamar de “lógica do objeto qualquer”.Trata-se, em resumo — sempre num primeiro plano — de umk críticado formalismo dialético. Uma crítica que, observemos, em termos

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mística” . Marx continua: “Precisamente porque Hegel parte dos predicados da determinação geral em vez de partir doEns real (reellen Ens) (hypokeimenon, Sujeito) e que sem dúvida é preciso que haja umsuporte desta determinação, a idéia mística se torna esse suporte.Ê este o dualismo: que Hegel não considere o universal como a essênciareal do real-finito, isto é, do existente (Existierenden), ou que ele nãoconsidere oens real efetivamente (wirkliche) como overdadeiro sujeito do infinito”. Do que decorre para a “soberania”: “É assim que asoberania, a essência do Estado, considerada de inicio como uma essência autônoma, se objetiviza. Então, se compreende, este algo objetivo(dies Objektive) deve se tomar de novo sujeito. Mas esse sujeito apareceentão como uma autopersonificação da soberania, ao passo que asoberania nada mais é o do que o espirito objetivado dos sujeitos doEstado” .20

Vemos que Marx critica Hegel porque este supõe a existência deum sujeito autônomo de que os indivíduos são portadores. O que,guardadas outras diferenças, ele mesmo suporia mais tarde, ao escreverO Capital. Analisada mais de perto, aCrítica do Direito do Estado de Hegel aparece assim não (ou não só) como a crítica do formalismodialético, mas como a crítica da própria dialética. Crítica do pensa

mento que estabelece a posição de abstrações reais que se tomam autônomas. Vimos que mesmo os Manuscritos, pelo menos em geral, nãochegam a pensar o Sujeito, o capital; eles ficam no nível da abstraçãodinheiro.

A Crítica do Direito do Estado de Hegel aparece assim de umaforma bem diferente daquela que ela revela quando não se aprofunda aanálise da crítica do formalismo dialético.

Entretanto, também no velho Marx se encontra uma crítica doformalismo dialético. Apesar da diferença fundamental que separa adialética deO Capital do discurso daCrítica do Direito do Estado de

Hegel (diferença para a qual aponta o aspecto que foi desenvolvido nos parágrafos anteriores) não se poderia relacionar as duas críticas doformalismo? Ê um problema a ser estudado. Problema que não é semimportância para analisar a relação Marx-Hegel. O que não significaque se deva pensar essa relação a partir da obra de juventude: a obra de

juventude nos ajuda a pensá-la por caminhos indiretos. De qualquermodo, poderíamos lembrar aqui os textos em que o “velho” Marx faz a

crítica do formalismo dialético. Nós nos limitamos aqui a alguns dessestextos. Por um lado, no posfácio àContribuição à Crítica da Economia Política (Introdução de 57), fazendo a crítica de todo discurso geralsobre a produção, a circulação e a distribuição (na realidade, é esse osentido desse texto, em geral mal compreendido), Marx escreve: “Nadamais simples então, para um hegeliano, do que pôr(setzen) a produçãoe o consumo como idênticos”.21 A crítica pode parecer injusta porque adialética hegeliana (contra Schelling) visa assimilar efetivamente o

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conteúdo particular da coisa. E entretanto, é possível que,apesar dela mesma, ele tenha caído num formalismo como este. Nesse sentidotexto poderia se justificar. A crítica não vale contra a dialética heliana considerada para si, mas ela é talvez válida para a dialéhegeliana consideradaem si. Num texto deO Capital (livro III), depoisde ter feito a crítica do desenvolvimento da propriedade privadFilosofia do Direito de Hegel, Marx escreve: “E uma confissão extradinariamente ingénua ‘do conceito’ e prova que o conceito que deinício comete o erro (Schnitzer ) de considerar como absoluta umrepresentação jurídica totalmente determinada, e pertencente à sodade civil burguesa, da propriedade privada, não compreende ‘ndas figuras efetivamente reais dessa propriedade (...)” .22 Nesse thá sem dúvida uma crítica do conteúdo da concepção hegelian propriedade fundiária (conteúdo que não discutimos aqui). Mamesmo tempo, a referência irônica ao “conceito” insinua uma crde forma: o “conceito” não compreende nada do que é efetivamereal. O “conceito” deixa escapar o real. A crítica do formalidialético desponta aqui. É possível encontrar outros textos na obrMarx que vão no mesmo sentido. Determinar que forma toma a crdo formalismo dialético em Marx, crítica do formalismo dialético em nome da dialética — porque formalismo e dialética se excluemsi, mas não para si23 — é o caminho para mostrar rigorosamendiferença entre as duas dialéticas. O que sem dúvida não foi feitoaqui.

A relação entre os diferentes aspectos da obra do jovem Ma análise das diferenças entre essas obras, a faremos no tomo II dtrabalho. Tentaremos também analisar de uma maneira mais profuesse grande laboratório de pensamento que é a obra do jovem M(a expressão é, parece, de Althusser), laboratório que opera na tambémsobre a antropologia, e do qual sai não o universo deO Capital, mas o da “negação” da antropologia: “negação” que entreta

está posta não como “negação”, mas como o seu contrário (pelo mem geral) como homem-“negado”. A obra do jovem Marx é primmente antropologia, em segundo lugar antropologia negativa, olimite é a “negação” antropologia.

(1) Sobre esse texto, ver a introdução. Como indicamos na introdução, volvimento dessas idéias sobre o jovem Marx, já feito oralmente em várias ocasiões, no tomo II deste trabalho. Esse desenvolvimento fará parte de uma análise da pré

NOTAS

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contemporâneo, as relações de produção, se se pode dizer assim, passam pelo interiorda subjetividade (de uma maneira que não é a da determinação simples da subjetividade dos agentes enquantosuportes). Â insuficiência dos Manuscritos é a de fundar pela subjetividade. Ora, se é verdade que Giannotti critica somente a antropologifundante e não toda antropologia (mas aqui não se trata desse problema, mas de umoutro que é mais atual), ele não acentua o interesse e a modernidade de uma tematização — mesmo se com uma fundação subjetiva — (mais desenvolvida do que notextos de maturidade) da subjetividade. O resultado é uma critica um pouco clássicdemais, que (desse ponto de vista) corre o risco de levar a crer — o queé absolutamentefalso atualmente — que a determinação do sistema se faz somente por uma subjetvidade externa (ou externa relativamente à nova forma), a que é definida pela funçãde suporte, e não interiormente, pelas necessidades etc. (Pensar-se-ia, por exemplodessa perspectiva, que os grandes improdutivos estão ligados ao sistema simplesment porque eles recebem uma parte da inais-valia, o que não é verdade. Eles estão ligadosele por suas necessidades, por seus desejos etc.) Isto, que é fundamental para a críticcontemporânea, é em certo sentido mais visível — porque os Manuscritos tematizammais o nível subjetivo — partindo dos Manuscritos do que de OCapital. Embora, num

outro sentido, isto seja mais visível a partir de OCapital: O Capital dá os fundamentosobjetivos dessa subjetividade que, entretanto, se tornouela própria objetiva.As três observações críticas que fazemos ao livro e em geral aos textos de

Giannotti estão ligadas. N6s nos explicaremos em outro lugar sobre o seu encadeament Não acreditamos que seja necessário, para terminar, insistir sobre os méritos do livro dGiannotti, assinalados no início. Ver também o artigo referido, em Discurso, n? 13,1983.

(4) VerWerke, Ergänzungsband, Erster Teil, Dietz, 1968, pp. 445 e segs.(5) W., Ergänzungsband, Erster Teil,op. eit., p. 570; Manuscrits de 1844,

trad. franc., apresentação e notas de E. Bottigelli, p. 128, grifado por Marx.(6) W., Ergänzungsband,op. cit., p. 579; Manuscrits de 1844, op. cit., p. 138.(7) W., Ergänzungsband, Erster Teil,op. cit., p. 546; Manuscrits de 1844, op.

cit., p. 99.(8) Ver Theodor W. Adorno,Trois Êtudes sur Hegel, trad. franc. pelo semi

nário de tradução do Collège de Philosophie, Paris, Payot, 1979, pp. 25-26.(9) Nos seus cursos na Ecole des Hautes Êtudes de Paris nos anos 60, Marcus

atacava a crítica de Hegel pelo jovem Marx, no que se refere a esta frase — “Q únictrabalho que Hegel conhece e reconhece é o trabalhoabstrato espiritual". (W., Ergänzungsband,op. cit., Erster Teil, p. 574; Manuscrits de 1844, op. cit ., p. 133, grifado por Marx) E entretanto: “O trabalho teórico, cada dia me convenço um pouco mairealiza (bringt... zustande) mais coisas no mundo do que o trabalho prático; uma vezrevolucionado o reino da representação, a realidade efetiva não se sustém mais(hält nicht an)". (Hegel, carta a Niethamer de 28.10,08, Briefe..., I, Leipzig, ed. K. Hegel,

1887, p. 194, citado por Karl Löwith, De Hegel à Nietzsche, trad. franc. de R. Lau-reillard, Paris, Gallimard, 1969, p. 62, n. 3)(10) W., Ergänzungsband, Erster Teil,op. cit., p. 551; Manuscrits de 1844, op.

cit., pp. 104-105, grifado por Marx.(11) W., Ergänzungsband, Erster Teil,op. cit., p. 524; Manuscrits de 1844,

op. cit., p. 73 A tradução de Bottigelli atenua a distância do texto em relação a toda antropologia positiva.

(12) W. Ergänzungsband, Erster Teil,op. cit., p. 531; Manuscrits de 1844, op. cit., p. 81, grifado por Marx.

(13) Por exemplo: “Como se sabe, Kant afirmou, na sua crítica da existência(Dasein) de Deus, que não se pode provar racionalmente a existência(Dasein) de Deus.Kant não mereceria, por isso, o reproche que lhe faz Hegel. Pelo contrário, Kant tinh plenamente razão: de um conceito não posso deduzir a existência(Existenz)". (L.Feuerbach, Das Wesen des Christentums, Stuttgart, Reclam, 1971, p. 306, trad. franc.de J.-P. Osier com a colaboração de J.-P. Grossein, Paris, 1968, p. 349)

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(14) W., Ergânzungsband, ErsterTeil, op. cit., pp. 565-566; Manuscrits..., op. cit., p. 122, grifado por Marx. Lembremos também do texto “alógica (é) o dinheiro do espírito (...)”. (W., Ergânzungsband, op. cit., p. 571, Manuscrits de 1844, op. cit., p. 130) Todo o problema do equilíbrio “instável” dos Manuscritos está nesta frase. A crítica do dinheiro é paralela à da lógica: as duas abstrações se correspondem etc. Eis aí uma primeira direção, a mais imediata, para a interpretação. Mas, ao mesmo tempo, essa lógica paralela ao dinheiro não seria a mais apta para pensar o dinheiro (não seria a lógica do dinheiro)? Reflexões como esta não estão sem dúvida no texto dos Manuscritos-, mas elas não estão absolutamente ausentes. Na realidade, elas estão pressupostas.