Marxismo, Direito e Sociedade - 1

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Textos >> Marxismo, Direito e Sociedade, parte 1 parte 2 >> Marxismo, Direito e Sociedade Debate entre Olavo de Carvalho e Alaor Caffé Alves Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 19 de novembro de 2003. Recebi várias transcrições deste debate, mas reproduzo aqui apenas uma delas, a de Alessandro Cota e Bruno Yoshio Mori, que me pareceu a mais completa. Agradeço a eles e também aos autores das demais, que me serviram para corrigir a presente versão em alguns pontos, ainda que sem fazer uma revisão em regra. Alguns pontos brevemente mencionados neste debate receberam depois uma explicação mais detalhada nos artigos “A natureza do marxismo”, ‘marxismo esotérico” e “Diferenças específicas”, publicados no Jornal da Tarde de São Paulo. – O. de C. MEDIADOR : Estamos recebendo dois grandes nomes da intelectualidade brasileira. À minha esquerda, o prof. Alaor Caffé Alves, muito conhecido por nós estudantes por nos levar à crítica do Direito e do Estado e a olhar para dentro as relações sociais e enxergar a sua autêntica expressão. À direita,

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Marxismo, Direito e Sociedade

Debate entre Olavo de Carvalho e Alaor Caffé AlvesFaculdade de Direito da Universidade de São Paulo,

19 de novembro de 2003.

Recebi várias transcrições deste debate, mas reproduzo aquiapenas uma delas, a de Alessandro Cota e Bruno Yoshio Mori,que me pareceu a mais completa. Agradeço a eles e tambémaos autores das demais, que me serviram para corrigir a

presente versão em alguns pontos, ainda que sem fazer umarevisão em regra.

Alguns pontos brevemente mencionados neste debatereceberam depois uma explicação mais detalhada nos artigos“A natureza do marxismo”, ‘marxismo esotérico” e “Diferençasespecíficas”, publicados no Jornal da Tarde de São Paulo. – O.

de C.

MEDIADOR : Estamos recebendo dois grandes nomes daintelectualidade brasileira. À minha esquerda, o prof. AlaorCaffé Alves, muito conhecido por nós estudantes por nos levar àcrítica do Direito e do Estado e a olhar para dentro as relaçõessociais e enxergar a sua autêntica expressão. À direita,

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apresento o polêmico filósofo Olavo de Carvalho; tido pelacrítica como um dos luminares do pensamento brasileiro, éautor de O Jardim das Aflições , entre outros livros, e traz hoje,à Sala dos Estudantes, sua defesa da interioridade humanacontra a tirania da autoridade coletiva, fazendo deste espaçopúblico, mais uma vez, um centro privilegiado de discussãoacadêmica. Um marxista contra um liberal. A iniciar pelo prof.Alaor, teremos trinta minutos para cada debatedor mais quinzeminutos para as réplicas; em seguida, abriremos às perguntas.Prof. Alaor e Olavo de Carvalho, neste debate da realidadeeconômica, política e social de nosso tempo, tomando por baseo marxismo, qual função cabe ao Direito na sociedade? E noseu entendimento, quais as conseqüências de se pensar oDireito desta forma? Com a palavra, o prof. Alaor Caffé Alves.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Boa tarde a vocês todos, meus alunos, e aoprof. Olavo de Carvalho. Em meia hora evidentemente não dápara dizer quase nada a respeito do pensamento jurídico, eespecialmente do pensamento jurídico calcado na perspectivade uma metodologia singular, que é a metodologia marxista. Jádigo inicialmente que não sou um marxista no sentidotradicional do termo, mas tenho meu namoro com relação acertas questões, e a certas questões metodológicas, que seexprimem ao longo da vida do pensamento teórico marxista,desde Marx até hoje. É claro que, com as idas e vindashistóricas, problemas graves, inclusive de situaçõesrelacionadas com frustrações políticas extraordinariamenteimportantes, tudo isso nos dá um grau de perplexidade. Mas,por outro lado, nos permite ver algumas coisas importantes. Eusimplesmente tive de escolher – porque meia hora é tão pouco– alguma coisa estratégica relacionada com o Direito, asociedade e a perspectiva marxista, que é uma perspectiva queno século XX teve um domínio muito grande, especialmente naordem política, embora não daquela forma que desejávamosque fosse. O marxismo teve distorções profundas no esquemapolítico e social, enveredou nações inteiras por caminhos quenão são efetivamente (ou não eram efetivamente) marxistas, oupelo menos na conclusão do ideal desse pensador queconhecemos, que é Marx. De qualquer forma, influiu muito avida do século XX, e a nós cabe apenas uma perspectiva umpouco mais elementar, porque vamos tratar apenas de uma

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parte da sociedade e sob uma certa ótica, que é a jurídica. Marxnunca tratou do Direito. Na verdade, Marx foi um economistados clássicos. Atuou de uma forma muito singular no plano dopensamento teórico da economia, estabelecendo seusprincípios, enfim, aquilo que ele julgava adequado para explicara sociedade em que ele vivia. Muitas das explicações de Marx jánão valem mais, em função da historicidade dessas mesmasexpli cações. Então, é claro, temos de dar o devido valor eentender que isso não significa absolutamente compreenderMarx sob o ponto de vista dogmático, mas sim o que ele podenos fornecer, nos dar, nos oferecer para entender um pouco,especificamente, o problema social; e aqui, no nosso caso, oproblema jurídico.

Para colocar a questão muito rapidamente, muitoestrategicamente, no ponto de possível discussão, nós temos delevar em conta as características do Direito exatamente dentroda perspectiva e da posição que postulava Marx naquela época,o século XIX, já numa dimensão estrutural social; precisamosentender o que significa a chamada estrutura social, se elacomporta ou não previsibilidade, se admite ou não aspossibilidades de um conhecimento razoável do ser humano, aponto de prever as condições objetivas de sua vida social. Nósencontramos várias ciências sob o ângulo da previsão, como asociologia, como a própria economia, mas a questão é saber sea história pode ser prevista. Essa é uma questão importante,porque o próprio homem é considerado como ser produto dahistória e de sua socialidade. Se o ser humano é um produtosocial, a par da situação individual em que ele se apresentatambém como ser biológico – ele também tem a suaindividualidade singular, biológica, psicológica –, aqui tambémse indaga sobre a forma social que toma essa expressãobiológica e psicológica. Até que ponto a socialidade determinaas dimensões de vontade, os valores humanos, as crenças? Emque sentido isso ocorre?

O próprio Direito é uma expressão social, pois é um fenômenosocial e, sendo um fenômeno social, tem de ser estudado desdede certos critérios que permitem caracterizar uma certaregularidade no Direito. É por isso que temos de considerar queo Direito pode ser um saber científico. Muitos não o admitem

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como um saber científico, e sim como um saber apenas prático;alguns levam em conta se é possível um saber prático ou se háapenas um conjunto de propostas gerais que não têm umafundamentação científica adequada para verificação de suavalidade, de sua verdade. Tudo isso é um problema complicado,pois se trata da metodologia do saber jurídico, focada naperspectiva da metodologia de Marx. Existem teóricos juristassobre esse assunto. Por exemplo, na própria União Soviética,nós temos um grande teórico jurista, que sofreu os impactos daditadura de Stalin: Pashukanis, um grande pensador que,atendendo às premissas, enfim, às diretrizes postuladas pelametodologia marxista, pela visão marxista do mundo, acaboudando­nos uma visão interessante, que depois ele mesmotransforma; ele mesmo altera seu ponto de vista, dá umavirada, e acaba morto em 1937 na União Soviética. É claro queoutros filósofos existem: mais atualmente, temos os filósofosjuristas como Ceromi [?], grande pensador italiano, ligadotambém à perspectiva marxista, e também Atienza, um grandepensador ligado às questões da ordem do método marxista doDireito. Também temos o namoro feito por Norberto Bobbiorelacionado com a questão do Direito; mas ele é um neoliberal,mas de uma forma um tanto diferente daquelas relativas aosneoliberais do século XIX e mesmo do século XX.

Dadas essas condições gerais, o que quero mostrar a vocês é oseguinte: como é que vamos tratar o Direito dentro de umaperspectiva não positivista? Uma delas é a marxista. O conceitode direito no sentido positivista, como vocês sabem, decorreexatamente de uma posição e definição da lei como sendoaquela que deve definir as condições e as específicas diretrizesjurídicas de uma sociedade. A sociedade deve ser produzida doponto de vista econômico, mas também do ponto de vistajurídico mediante as posturas legais ou legislativas. O grandeproblema é saber como esta referência positivada do Direito sedeu. Há, claro, explicações, inclusive contrapondo opositivismo ao jusnaturalismo, que são muito interessantes –mas não vamos perder tempo agora em defini­los, porque émuito complicado e precisaríamos de mais tempo –,explicações estas que não têm normalmente, por definição, aprodução do espírito humano senão mediante a confissão dereflexões filosóficas ou reflexões dentro do âmbito ideal do

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Direito. Por exemplo, a perspectiva idealista ou a perspectivanão­materialista corresponde ao fato de que há um espírito,espírito este que não significa o de cada um de nós, mas oconjunto dos espíritos, que na verdade são as ações culturaisdos homens, particularmente, que formam o espírito que emúltima instância exprime aquilo que a história deve nos dar,vale dizer, o espírito na busca da liberdade. Esta postura éjustamente hegeliana: a busca da liberdade produzpraticamente a vida social. O Estado mesmo é uma expressãodesse mesmo espírito. Essa visão é extremamente criticadapelos marxistas, que acham que a espiritualidade tem por baseuma estrutura social calcada na visão da produção da vidasocial, na produção da vida material. Se não houver a idéia daprodução da vida material da sociedade, nós não temos a idéiamais clara do próprio espírito; a espiritualidade estádinamicamente relacionada à materialidade. Claro que nãoexiste um espírito isolado, solitário, como não caberia existir amatéria solitária. A matéria, para Karl Marx, não é jamais amatéria bruta, nem aquela matéria opaca; não é materialidadedos físicos gregos clássicos, a busca de um “ em si ”, de umasubstância material no mundo. Para Karl Marx, a matéria épostulada em função da produção da vida social humana.Materialidade, portanto, é algo que é prenhe de espiritualidade,de certo modo; há uma relação dialética entre o processo depelo qual os homens agem no mundo e transformam o mundo;e nesse processo de transformação do mundo, os homens,progressivamente, vão transformando­se a si mesmos. É isso oque acontece.

Portanto, esta visão inaugura a idéia de processualidade,exatamente o oposto da visão positivista do Direito. Vocêspodem ver, por exemplo, o caso de Kelsen, que trabalha umavisão fundamentalmente estática, ou, vale dizer, muitoabstrata. Para ele, o Direito é substancialmente norma e é umaestrutura de sentido. A norma como estrutura de sentido nãoserá estudada do ponto de vista de sua gênese e nem de seusfins, porque gênese e fins da norma são questões de outrasciências e não do próprio Direito. O Direito, em suaessencialidade, se exprime pela norma abstrata, por um dever­ser postulado segundo uma estrutura de coação, que é definidapelo próprio Estado. Então, um dever­ser , para Kelsen, é

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fundamental, e ele separa fundamentalmente o dever­ser doser. Evidentemente, essa postura não é aceita pela perspectivamarxista, porque o ser e o dever­ser se compõem numa relaçãodialética. Não é fácil compreender isto. É difícil. Na visãokelseniana, portanto na linha neokantiana, se faz diferençaprofunda e séria entre ser e dever­ser: o ser determina o dever­ser , isto é, ele é condição para o dever­ser. Ou seja, Kelsenaceita que a sociedade deve existir necessariamente para queexista o Direito, para que exista o dever­ser, a norma; mas odever­ser não tem por fundamento o ser, ou seja, a relaçãosocial, a sociedade, e sim tem por fundamento um outro dever­ser, e este outro tem por fundamento um outro mais, até umdever­ser fundamental, que ele chama de norma fundamental.Portanto, para ele, a relação do dever­ser com o ser éabsolutamente separada, não existe uma comunhão entre umae outra a não ser pela condição necessária – não a condição perquam , pela qual, mas a condição necessária pela qual se deveter uma ordem. É claro que não há Direito sem sociedade, comisto ele concorda. Kelsen era um homem extremamente ladino,profundo, grande pensador do Direito; mas tem uma visãoformalizada. O Direito como estrutura de sentido organiza avontade; o Direito, embora tendo como causa a vontadehumana, porque já não pode mais ter causa divina (desde queDeus está morto, segundo Nietzsche), então não há mais essapostura de direito teologal, como também não há a idéia dodireito natural, um direito que estabelecesse uma relação diretaentre o ser e o dever­ser , em que o próprio ser é dever­ser.Como já não se admite isso, a única forma de se admitir oDireito é aquele imposto pelos homens. A forma de impô­loimplica uma relativização do Direito, e esta relativização doDireito imposto pelo homem (porque o homem é um sercircunstanciado, histórico, condicionado por situaçõessingulares) evidentemente tem de ter alguma segurança arespeito do que ele faz, especialmente, no plano do Direitomoderno. Para isso, Kelsen não pode aceitar senão a linguagemdo discurso jurídico. É por isso que a positivação do Direitomoderno é fundamental, porque é uma das formas pela qual sedá a garantia de uma certa estabilidade da forma como se diz oDireito. Diz através da lei, a lei é a positivação do Direitomediante formas escritas; por isso a codificação do sistema,

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porque antes não havia esta codificação tão expressiva, mas apartir do século XVII, a codificação se torna cada vez maispresente, e no século XIX é praticamente universalizada. ODireito é um direito escrito, e enquanto direito escrito, temestrutura de sentido, é um direito que tem de ser interpretado.Vejam vocês, portanto, que a estrutura econômica se tornamuito complexa, determina a necessidade de os homensregistrarem o Direito necessariamente, sem o que o Direito nãopode ser devidamente interpretado e aplicado adequadamente.

Mas tudo isso define uma situação de positividade que de certomodo extrai as possibilidades materiais do próprio Direito.Esquece­se Kelsen dos fundamentos sociais, das estruturassociais; daí o problema de que no positivismo se faz umaseparação entre Direito como norma positivada e justiça,moralidade e ética jurídica. Estas questões são muitos distintas.O próprio Kelsen aceita perfeitamente essa postura e diz que oDireito é isto. É claro que esta visão é formalizada, portanto,uma visão estática do Direito, melhor ainda, uma visãouniversal do Direito. De certo modo se diz o seguinte: a normajurídica, como jurídica que é, que dá a essencialidade àcompreensão do Direito, é igual no sistema capitalista,socialista, comunista, feudal, clássico: a norma é sempre anorma, é sempre o dever­ser . É por isso que ele, então,essencializa o Direito na norma e, de certo modo, ele segue umpouco o caminho platônico: as próprias experiências, asingularidade, a história, a factualidade, as circunstâncias, issopassa a ser como que, digamos, alguma coisa esmaecida domundo, como que sombras da caverna. O que importafundamentalmente para essencializar o Direito é a norma; anorma é uma estrutura de sentido, e sentido da vontade, e nãoa vontade é a norma. Vejam a diferença entre a posturamarxista e a postura kelseniana, que é a expressão máxima,mais avançada, mais ampliada do sistema do positivismojurídico que é dominante em todo o sistema capitalista; fora,evidentemente, os sistemas jurídicos calcados na perspectivateológica que como nós temos ainda em vários países domundo que a adotam, mas os países mais avançados têm estalinha muito consagrada da positividade, portanto a linha dalegalidade.

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Ora, isso tudo só pode ser explicado a partir da idéia daprocessualidade, que é uma idéia dialética. Por isso eu façosempre uma diferenciação entre o processo e o produto. A idéiaé normalmente separar o resultado do processo, então ficacomplicado porque ficamos apenas com o resultado. Emtermos operacionais e práticos dá para usar o resultado muitobem de forma instrumental, e como dizia Habermas, ainstrumentalidade racional permite que se manipule oresultado, mas esse resultado não será legitimamentecompreendido e entendido cientificamente se não se atenderpara o processo pelo qual o resultado é resultado. Então, háuma processualidade no mundo e buscar o processo pelo qualalguma coisa é feita é melhor do que buscar a coisa feita por simesma; buscar o processo pelo qual o homem se desenvolve émelhor para entender o próprio homem, aqui e agora. Por isso,o homem tem de ter a expressão do passado. Ele tem aexpressão do passado, mas tem sua negatividade; porque ohomem não é o passado, ele supera esse passado. Uma visãoum tanto quanto hegeliana, mas a possibilidade de que ohomem supere o passado é a afirmação do passado e, aomesmo tempo, sua negação. Ele se afirma, tanto quanto umadulto afirma a criança que foi, mas não é a criança que foi,portanto, a nega. Você vê que esta relação dialética é complexa,e isso existe no plano do Direito.

Quando vamos examinar esta categoria da processualidade, nóstemos então de projetar a sociedade nesse processo. Daí se vê oseguinte: a sociedade, como se dá? Em que termos a sociedadeentra como processo? É um problema que eu sempre levo emconta: ela é uma produção puramente espiritual, é umaprodução material, ou é material e espiritual ao mesmo tempo?Parece que é conjugada. Ela não é puramente espiritual, não éapenas a história do espírito humano que define o homem;também não é uma materialidade pura e simplesmente,naquela concepção mecanicista e substancialista da matéria;mas é uma relação, uma dinâmica entre espiritualidade ematerialidade. Até que muitas vezes se pergunta: mas qual é ofundamental nisto? Os marxistas consideram que, em últimainstância, a dimensão material (naquele sentido dito por Marx,não no sentido da matéria bruta, mas no sentido da produção,ou seja, da matéria enquanto produção do homem, portanto) é

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claro que tem história. Se examinarmos antropologicamente,vê­se que os homens não produziram sempre aquilo queproduzem hoje; produziram de forma muito diferente,produziam outras coisas, em modos diferentes de produção. Asformas sociais para produção são diferentes, as relações que oshomens guardam entre si são diferentes nos diversosmomentos históricos. Então, você vê que, efetivamente, existeum problema que deve ser visualizado pelo teórico do Direitopara saber até que ponto o próprio Direito é uma resultantedeste processo.

O ponto de vista marxista tem algumas colocaçõesinteressantes. Eu vou dar um exemplo bem específico paravocês entenderem o que eu quero dizer. No sistema feudal, asrelações produtivas eram muito singelas; era uma economiamais natural, mais de subsistência; o valor de usopredominava; não havia valor de troca expressivo; a moeda nãocorria muito; os feudos centralizavam o sistema econômico.Havia, portanto, uma atuação política, ou seja, o exercício daforça, porque a politicidade também tem em seu centro apossibilidade do exercício da força; isso havia, inclusivemisturado com a relação econômica. A relação econômica era aprodução feita pelos homens e a relação social destes homenspara a produção. Mas a relação social se compunha, ao mesmotempo, de uma dimensão econômica, pela qual se exercia umpoder para transformar o mundo; e isto implica,evidentemente, utilizar a força produtiva, a mão­de­obra e osmecanismos que existem para fazê­lo, mas existia também umaatuação política, uma força política para esse exercício. Então,sabe­se que numa época escravista, como a época feudal, asrelações entre os homens para produzir não eram as mesmasdas épocas modernas, da época que chamamos burguesa oucapitalista, da época mercantil. É uma época diferente porque oexercício da força sobre o trabalho é praticamente muitopresente. Portanto, o econômico e o político se viam de talmaneira misturados, de tal maneira acoplados, de tal maneiraferidos em sua integridade, que o agente econômico era omesmo agente político. O senhor feudal era ao mesmo tempoagente econômico, agente cultural e agente político: ele exerciaa força, ele inclusive trazia a mão­de­obra à força para otrabalho se fosse preciso. Existia também outro elemento que é

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a ideologia, que evitava a expressão clara desta forma deexplorar os homens nesse processo. Quando isto ocorre, temosuma dimensão econômica muito própria que traduz uma formapolítica específica da época medieval. Quando entretanto – eaqui vem a tese marxista – há uma evolução desse processoprodutivo, vale dizer, a dimensão tecnológica, a condiçãomaterial da produção, vale dizer, a tecnologia (isto também éuma visão tecnológica de certo modo, que foi muito discutida eé muito discutida ainda hoje), quando a tecnologia avança pelasinvenções que o homem vai desenvolvendo através do seutrabalho, da sua atuação direta com o mundo, buscando novasformas de cultivar o mundo, inventando várias coisas como omoinho de vento, a roda dentada, enfim, sistemas novos dearticulação do poder, é claro que isto vai implicar uma maiorquantidade de produto. A produção começa a se expandir, a sedesenvolver, e há um conflito entre o desenvolvimentoprodutivo (a produção) e os limites do sistema feudal. Valedizer, tudo era feito para o senhor basicamente, e depois, naexpansão, era muito complicado fazer com que a venda dessasmercadorias (elas passam a ser mercadorias) se estendessepara todo conjunto de feudos, quando os próprios feudosestavam impondo certas situações de restrição dessa produção.Dizem os marxistas que aí existe um conflito singular entreuma força produtiva típica singular feudal e a força nascente,que seria exatamente essa dimensão calcada na perspectiva deuma nova classe, que é a classe dos burgueses. Abre­se,portanto, um período de crise em que forma e matéria, forma econteúdo, entram em crise e aí vem uma nova fase: o homemcomeça a precisar de uma nova forma de produção. Era precisodistribuir a mercadoria; para fazê­lo, é preciso que todosganhem dinheiro, que ganhem recursos para que possamconsumir a mercadoria do mercado. Mas como seria possívelfazer isso se as relações eram tipicamente ou servis ouescravistas? Impossível, porque não se podia distribuirrecursos; para isso, era preciso criar novas formas, como aforma da moeda (a monetarização da economia), o salário (oassalariato se inicia neste processo). É evidente que nestemomento tudo passa a ser diferente: o sistema econômico nãomais é garantido em função de uma relação de imposição sobreo trabalho, mas era preciso fazer com que o trabalho passasse a

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ter agora uma outra dimensão, a dimensão de liberdade. Erapreciso ser livre das peias do feudalismo, livre das peias doexercício sobre instrumentos de produção elementares, fazercom que a força do trabalho pudesse ela mesma ser autônoma,e portanto vendável. Então, é o momento em que aparece avenda na força do trabalho, e esta venda forma o mercado, omercado de trabalho, onde as mercadorias passam a circular,entre as quais, a própria força do trabalho. É claro que, nessecaso, a relação entre o capital e a força do trabalho não é umarelação de imposição, como acontecia no sistema anterior. Nãohavia capital no sistema anterior, mas havia uma imposiçãosobre o trabalho, pela força do senhor feudal ou doescravizador. Agora não: ela se universaliza na sociedade deuma forma completamente diferente, é preciso que os homensestabeleçam relações entre si de forma mercantil, de troca, e atroca pressupõe, basicamente, proprietários. Todos têm que serproprietários: os proprietários do capital (do salário) e osproprietários correspondentes. Então, esses proprietários docapital tinham o salário e, do outro lado a força de trabalhodava a capacidade de trabalho e recebia o salário; com essesalário formavam o mercado e com isso então expandia­se aprodução.

Claro, daí começam o quê? Figuras interessantes, como a figurado contrato, que se universaliza nesta época. Então, é somentecom o aparecimento de uma nova forma de produção que seuniversaliza a figura do contrato juridicamente. A figura docontrato pressupõe pessoas contratantes, logo, pessoasjurídicas. Há que haver portanto, a universalização das pessoasjurídicas. Há necessidade de que as pessoas sejamproprietários, porque elas só podem trocar coisas de quetenham posse em disponibilidade. Aqui vocês vêem, portanto, aliberdade: como é possível contratar sem liberdade? O supostoé a liberdade; o suposto é a igualdade. Vocês vêem, portanto,que as figuras jurídicas formuladas no direito civilespecialmente (isso depois transcende para o direito público)acabam resultando de um processo de movimento das forçasprodutivas, da capacidade material dos homens, que determinaformas diferentes. Não vejam, portanto, o contratosimplesmente como a figuração de algo abstrato situado nocosmos. Não: primeiro existem as relações de troca, depois elas

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vão para o código para ser reguladas de forma detalhada,singular, e garantidas.

Vejam vocês, nessas poucas palavras, simplesmente, o queaflora nesta estrutura de pensamento. É uma estrutura depensamento que propõe uma dimensão muito singular, muitointeressante, que deve ser objeto de exploração. Não quer dizerque ela seja a única – cuidado com isso! Ela deve ser objeto daexpansão metodológica porque ela nos dá algumas basesinteressantíssimas para explicar um pouco melhor os própriosinstitutos jurídicos. Aqui vocês vêem apenas um momentoestratégico e singelo: a possibilidade de utilizar umametodologia nova, interessante; não é nova sob o ponto de vistajurídico, não é tão universal, mas pode nos dar umconhecimento um tanto quanto mais seguro, principalmentedos processos pelos quais os institutos chegam a ser institutosjurídicos. É isto basicamente.

MEDIADOR : Neste momento passo a palavra a Olavo deCarvalho.

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