Marxismo e Emancipacao Da Mulher

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Marxismo e Emancipação da Mulher Marina Costin Fuser PUC-SP A questão da emancipação da mulher, na perspectiva marxista, está intrinsecamente ligada à questão da emancipação humana. Não se pode isolar a questão da mulher de seu contexto social, já que esta se desenvolve e se consolida segundo determinados parâmetros econômicos e sociais, envolvendo fatores tanto objetivos como subjetivos. Mas seria um equívoco pensar a emancipação humana sem compreender a necessidade histórica da emancipação específica da mulher. Quando um sistema é colocado em xeque, todos os valores engendrados pelo mesmo também o são; e uma nova gama de valores socialmente construídos substitui os antigos paradigmas e a revolução abriria caminho para modificar as bases sobre as quais se erige a sociedade. Para viabilizar esse processo, os embriões do que constituiriam esses novos valores e paradigmas precisam se sedimentar na consciência daqueles que tomam para si um projeto de transformação radical da sociedade. Trata-se de um questionamento mais profundo da vida em todos os seus aspectos da vida que se almeja transformar e no que constituiria essa transformação, do fim último ao qual se destinaria um novo projeto de sociedade. Segundo a socióloga Heleieth Saffioti, “a preocupação com o problema da mulher apresenta-se como uma constante do pensamento socialista” 1 . Os marxistas tiveram que se debruçar sobre os entraves apresentados ao processo da emancipação da mulher. Se por um lado, a igualdade de direitos constituía uma de suas metas fundamentais, eles iam além, buscando criar condições concretas para viabilizar o fim da opressão da mulher. Eis que François Maria Charles Fourier denunciou as condições miseráveis, tanto do ponto de vista material, como moral, que se proliferava no seio da burguesia nascente, apontando as mulheres como as principais vítimas dessa engrenagem. Seu projeto de sociedade apresentava como alicerce a igualdade absoluta entre homens e mulheres e por igualdade absoluta, entende a supressão das diferenças entre os sexos para além do campo jurídico, mas também no que tange aos costumes. Para ele: A evolução de uma época histórica é determinada pela relação entre o progresso da mulher e da liberdade porque relações entre o homem e a mulher, entre o fraco e o forte, fazem ressaltar nitidamente o triunfo da natureza humana sobre a bestialidade. O grau de emancipação feminina determina naturalmente a emancipação geral... 2 A idéia de igualdade entre o homem e a mulher é abraçada por Flora Tristán 3 , que também compreende a emancipação da mulher e a emancipação humana como questões inseparáveis, uma vez que a educação das mulheres abriria caminho para a libertação dos trabalhadores. Comprometida com a causa das mulheres proletárias, Tristán não consegue levar a frente o seu projeto de conformar uma União Operária, encontrando obstáculos aparentemente instransponíveis impostos pela patronal. Segundo Heleieth Saffioti: Embora o equacionamento que das idéias feministas e socialistas faz Flora Tristán seja tosco, deixando às vezes, entrever um privilegiamento da categoria sexo feminino em detrimento da classe social, constitui, inegavelmente, um refinamento da consciência proletária 4 . 1 SAFFIOTI, H.B, 1976 P-71. 2 MARX, K. s/d. 4 SAFFIOTI, H.B, 1976 P-108.

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"A questão da emancipação da mulher, na perspectiva marxista, está intrinsecamente ligada à questão da emancipação humana. Não se pode isolar a questão da mulher de seu contexto social, já que esta se desenvolve e se consolida segundo determinados parâmetros econômicos e sociais, envolvendo fatores tanto objetivos como subjetivos."

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Marxismo e Emancipação da Mulher

Marina Costin Fuser

PUC-SP

A questão da emancipação da mulher, na perspectiva marxista, está intrinsecamente ligada à questão da

emancipação humana. Não se pode isolar a questão da mulher de seu contexto social, já que esta se

desenvolve e se consolida segundo determinados parâmetros econômicos e sociais, envolvendo fatores

tanto objetivos como subjetivos. Mas seria um equívoco pensar a emancipação humana sem compreender

a necessidade histórica da emancipação específica da mulher. Quando um sistema é colocado em xeque,

todos os valores engendrados pelo mesmo também o são; e uma nova gama de valores socialmente

construídos substitui os antigos paradigmas e a revolução abriria caminho para modificar as bases sobre as

quais se erige a sociedade. Para viabilizar esse processo, os embriões do que constituiriam esses novos

valores e paradigmas precisam se sedimentar na consciência daqueles que tomam para si um projeto de

transformação radical da sociedade. Trata-se de um questionamento mais profundo da vida em todos os

seus aspectos – da vida que se almeja transformar e no que constituiria essa transformação, do fim último

ao qual se destinaria um novo projeto de sociedade.

Segundo a socióloga Heleieth Saffioti, “a preocupação com o problema da mulher apresenta-se como

uma constante do pensamento socialista” 1. Os marxistas tiveram que se debruçar sobre os entraves

apresentados ao processo da emancipação da mulher. Se por um lado, a igualdade de direitos constituía

uma de suas metas fundamentais, eles iam além, buscando criar condições concretas para viabilizar o fim

da opressão da mulher.

Eis que François Maria Charles Fourier denunciou as condições miseráveis, tanto do ponto de vista

material, como moral, que se proliferava no seio da burguesia nascente, apontando as mulheres como as

principais vítimas dessa engrenagem. Seu projeto de sociedade apresentava como alicerce a igualdade

absoluta entre homens e mulheres – e por igualdade absoluta, entende a supressão das diferenças entre os

sexos para além do campo jurídico, mas também no que tange aos costumes. Para ele:

A evolução de uma época histórica é determinada pela relação entre o progresso da mulher e da liberdade

porque relações entre o homem e a mulher, entre o fraco e o forte, fazem ressaltar nitidamente o triunfo

da natureza humana sobre a bestialidade. O grau de emancipação feminina determina naturalmente a

emancipação geral...2

A idéia de igualdade entre o homem e a mulher é abraçada por Flora Tristán3, que também compreende

a emancipação da mulher e a emancipação humana como questões inseparáveis, uma vez que a educação

das mulheres abriria caminho para a libertação dos trabalhadores. Comprometida com a causa das

mulheres proletárias, Tristán não consegue levar a frente o seu projeto de conformar uma União Operária,

encontrando obstáculos aparentemente instransponíveis impostos pela patronal. Segundo Heleieth Saffioti:

Embora o equacionamento que das idéias feministas e socialistas faz Flora Tristán seja tosco,

deixando às vezes, entrever um privilegiamento da categoria sexo feminino em detrimento da classe

social, constitui, inegavelmente, um refinamento da consciência proletária4.

1 SAFFIOTI, H.B, 1976 P-71.

2 MARX, K. s/d.

4 SAFFIOTI, H.B, 1976 P-108.

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Não obstante, seu legado fornece subsídios socialistas às mulheres na luta por seus direitos em 1848,

quando está em voga uma ebulição social que objetiva “varrer os últimos vestígios da antiga ordem

social”5. Em 1848, as idéias de Flora Tristán são assumidas por novos agentes sociais, como Jeanne

Deroine, Eugenie Niboyet e Pauline Roland, comprometidas com a emancipação da mulher na luta de

classes. Em uma análise acerca das produções teóricas e sua expressão na realidade em forma de lutas

sociais, Zuleika Alambert esboça uma crítica que aponta para algumas debilidades que se sobressaíam

nesse contexto histórico:

...Nenhuma delas sabia localizar acertadamente as raízes mais profundas das desigualdades das mulheres

e indicar o caminho mais geral de sua emancipação. Uns localizaram essas raízes na inferioridade da

instrução recebida pela mulher, outros no fato de os homens abusarem do poder que receberam de Deus;

outros ainda, talvez os mais avançados, buscaram as essas raízes na miséria material e moral do mundo

burguês. Mas essas raízes, no seu sentido mais profundo, seriam localizadas e trazidas à luz do dia, pela

primeira vez, através das elaborações teóricas de Karl Marx, Friedrich Engels e August Bebel6.

Engels assinala que o surgimento da propriedade privada constitui a raiz do patriarcalismo e do Estado

patrimonialista. A mulher passa a ser a primeira propriedade. À medida que os bens coletivos convertem-

se em propriedade privada, é selada a supremacia do homem como pater familia, a partir da substituição

da filiação feminina pela masculina e do direito hereditário materno pelo paterno. A família patriarcal

nasce com a propriedade privada e modifica toda a estrutura da sociedade gentílica. A luta pela libertação

plena da mulher, nessa perspectiva, é a luta contra a propriedade privada, no contexto de uma sociedade

dividida em classes, em que a mulher das classes subalternas é duplamente oprimida: em casa e no

trabalho.

O avanço das forças produtivas tornou o trabalho mais leve e suscetível a empregar a mão-de-obra de

mulheres e crianças, o que amplia o exército industrial de reserva, acirra a concorrência entre

trabalhadores e trabalhadoras e barateia o custo da força de trabalho. Os entraves à integração social da

mulher impostos pelo Capitalismo nascente, como assinala Heleieth Saffioti, não são orquestrados no

uníssono da uniformidade. Seu órgão regulador consiste na competição cada vez mais acirrada, em que a

mulher é usada como objeto de barganha para o rebaixamento de salários e ampliação do que Marx chama

de “exército industrial de reservas”. Trata-se de um elemento indispensável para o funcionamento do

sistema, pois o desemprego estrutural acirra a concorrência e constitui um instrumento de barganha para o

rebaixamento dos salários, de pressão para o aumento da produtividade e da decorrente extração de mais-

valia. O fantasma do desemprego assombra o trabalhador, levando-o a se sujeitar a trabalhar até o limite

de suas forças.

Saffioti observa que as oportunidades de trabalho oferecidas às mulheres “variam em função da fase de

desenvolvimento do tipo social em questão ou, em outros termos, do estágio de desenvolvimento atingido

por suas forças produtivas”7. Seu grau de desvantagem na competição pelo trabalho na sociedade

capitalista nascente permite aos capitalistas uma extração insaciável de mais-valia absoluta pela

maximização da produtividade, ampliação da jornada de trabalho e rebaixamento de salários das mulheres.

A luz das novas idéias preconizadas pelo Iluminismo e pela Revolução Francesa, as mulheres que já

haviam deixado suas marcas na História através das lutas contra os Estados absolutistas do Ocidente: eis

que surge o primeiro movimento feminista, onde francesas e britânicas tomam para si a luta pelo voto

feminino – o movimento sufragista. As idéias revolucionárias absorvem a questão de gênero e servem de

motor para o período de efervescência que se segue, colocando as mulheres na frente de batalha pela

5 Opt.cit..

6 ALAMBERT, Z, 1986 P-13.

7 SAFFIOTI, H. B, 1976 P-35-36.

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transformação da sociedade na Revolução Francesa em 1789 e já com contornos de classe na Comuna de

Paris em 1871 e na Revolução Russa em 1917. A Comuna de Paris sublinhou o protagonismo das

mulheres, à medida que estas interpuseram frente aos canhões, impedindo que as tropas de Thiers

desarmassem Paris; mas é na Revolução Russa que a dialética entre a exploração humana e a opressão da

mulher se faz sentir com mais força. Surge no seio do Partido Bolchevique uma vanguarda de mulheres

em defesa dos direitos da mulher, como Clara Zetkin, Alexandra Kollontai e Nadezhda Krupskaya, que

refletem a questão de gênero na esfera da quebra de parâmetros deflagrada pela revolução.

Em A História da Revolução Russa, Leon Trotsky coloca em evidência o protagonismo orquestrado por

esta vanguarda feminina no calor da efervescência social que culminou na eclosão da revolução russa em

outubro de 1917. Em 23 de fevereiro, passando por cima das diretrizes dos comitês de bairro que

desaconselhavam os trabalhadores a entrar em greve, frente à ameaça latente de um enfrentamento aberto,

as operárias de algumas fábricas do ramo têxtil resolveram declarar greve. A greve se alastrou por outros

setores da economia fabril, alcançando a adesão de 240.000 operários no perímetro de 48 horas. A greve

foi marcada por manifestações de mulheres operárias com consignas que clamavam por pão e refutavam a

autocracia e a guerra, sendo rapidamente incorporadas por uma quantidade massiva de trabalhadores

insatisfeitos com os imperativos e a miséria imposta pelo regime autocrático do Czar. Nas palavras de

Trotsky:

O soldado da cavalaria se eleva por cima da multidão, e seu espírito se ergue separado do grevista pelas

quatro patas da besta. Uma figura vista desde baixo aparece sempre mais ameaçadora e terrível. A

infantaria está ali mesmo, ao lado, mais próxima e acessível. A massa tenta se aproximar, olhá-la nos

olhos, envolvê-la com seu alento inflamado. A mulher operária representa um grande papel na

aproximação entre os operários e os soldados. Com maior audácia que o homem, penetra nas fileiras dos

soldados, pega os fuzis com suas mãos, implora, quase ordena: „Desviem as baionetas e venham

conosco‟. Os soldados se comovem, se envergonham, parecem inquietos, vacilam; um deles se decide: as

baionetas desaparecem, as fileiras se abrem, estremece no ar um urra entusiasta e agradecido; os soldados

se vêem cercados de gente que discute, repreende e incita: a revolução dera outro passo a frente.8.

No governo provisório de Alexandre Kerensky, as mulheres conquistaram o direito ao sufrágio, uma

demanda ainda vigente em países mais desenvolvidos, como a Inglaterra e os EUA, que só realizariam

essa proeza em 1918 e 1920, respectivamente. No campo dos direitos civis, houve muitos avanços, tal

como assinala Andrea D´Atri:

Com a revolução proletária de outubro de 1917, as mulheres soviéticas conquistaram, antes das mulheres

dos países capitalistas, o direito ao divórcio, ao aborto, à eliminação do poderio matrimonial, à igualdade

entre o matrimônio legal e o concubinato, etc. (...) Porém a conquista mais importante da revolução não

foram as leis, mas ter assentado as bases para pleno e verdadeiro acesso da mulher aos domínios culturais

e econômicos9.

Se bem a revolução russa brindou grandes conquistas no que tange às mulheres, o grau de emancipação

tem como premissa fundamental a organização de mulheres comprometidas com a luta pela igualdade

entre os sexos. Elas foram precursoras de lutas políticas no interior dos comitês de bairro, dos soviets e do

Partido Bolchevique. Não é tarefa simples transformar valores há séculos enraizados no imaginário

cultural de uma sociedade. Esse espaço tinha que ser conquistado. Nesse intuito, algumas mulheres se

destacaram e deixaram a sua contribuição na malha de produções teóricas que problematizam a

emancipação da mulher sob o prisma do marxismo.

8 TROTSKY, L, 1985.

9 D‟ATRI, A, 2008 P-92.

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Alexandra Kollontai inaugura um debate acerca das tarefas rumo à emancipação da mulher na URSS

dentro e fora do PCUS, que se desenrolaram entre 1920 e 1928. O essencial de sua obra consiste na

construção de uma nova moral baseada no reconhecimento dos direitos e da dignidade da mulher em pé de

igualdade com relação ao homem em detrimento da moral sexual da velha sociedade que relegava a

mulher à condição de escrava.

Ao examinar os efeitos da revolução russa sobre a temática da emancipação da mulher, Saffioti ressalta:

A experiência soviética demonstra que, se a libertação da mulher e a sua conseqüente integração plena na

sociedade não se realizou completamente sob o regime socialista, foi neste regime que ela atingiu o seu

maior grau. Deve-se destacar, nesse processo, que só nas sociedades de economia coletiva a maternidade

pode, efetivamente, ser considerado um encargo social·.

Dada uma escassez de recursos reais do Estado, em meio à miséria dos anos que se seguiram após a

revolução de outubro em plena guerra civil, de acordo com Trotsky, a família não pode ser abolida, pois a

emancipação da mulher era inviável no “terreno da miséria socializada10

”. A ascensão da burocracia

stalinista ao poder do Estado colocou em marcha uma guinada conservadora, que tratou de liquidar os

principais direitos conquistados pelas mulheres na revolução de outubro. Segundo D´Atri:

A partir de 1926, sob o regime de Stalin, se instituiu novamente o matrimônio civil como única união

legal. Mais tarde é abolido o direito ao aborto, junto à supressão da seção feminina do Comitê Central e

seus equivalentes nos diversos níveis de organização partidária. Em 1934, é proibida a homossexualidade

e a prostituição se converte em delito. Não respeitar a família se converte em conduta „burguesa‟ ou

„esquerdista‟ aos olhos da burocracia termidoriana11

.

O conservadorismo da burocracia liquidou os direitos e a organização das mulheres, perseguiu e

exterminou oposição, colocou sob ilegalidade os soviets12

, exaltando o papel da mulher enquanto mãe e

dona de casa, impedindo as mulheres de se organizar politicamente. Porém, houve mulheres importantes,

tanto no interior dos PC´s, como sobre bases autônomas, que travaram uma luta contra-hegemônica

exaltando a necessidade histórica da emancipação da mulher em termos marxistas. As trotskistas Natália

Sedova e Nadezhda Joffe se destacaram no combate ao stalinismo; Pen Pi Lan na China se postula contra

a opressão de Chiang Kai Shenk no decorrer do processo revolucionário chinês na década de 1940, e

depois se debruça sobre o combate à censura e à repressão desferida por Mao Tse Tung. No Brasil,

Patrícia Galvão torna-se um ícone feminista a partir da década de 1930, por sua aspiração à libertação da

mulher, em uma combinação entre o questionamento da ordem patriarcal e a centralidade da causa

operária.

No período entre as duas revoluções que fizeram ecoar pelo mundo novas formas de se pensar a

sociedade, o feminismo atravessa o oceano, chegando às Américas em grande estilo, precisamente no

coração do que viria a ser a grande potência hegemônica mundial. Esse feminismo essencialmente

europeu, que tinha como alicerce os sufragismos francês e inglês, vai de encontro com feminismo

antiescravista já presente no território estadunidense, se colocado à prova na declaração de Sêneca Falls

em 1848, que clamava pela igualdade entre os sexos e raças. A potência antagônica ao processo de

inserção e superexploração13

do trabalho feminino no norte dos EUA, que se imprime sob as bases da

divisão sexual do trabalho, pela assimetria salarial e a distinção de funções, se dá pela maneira como as

10

TROTSKY, L, 1938. P-94.

12

Estruturas de poder popular que constituíram os grandes pilares da revolução de outubro.

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mulheres passam a se organizar politicamente. Em Nova Iorque14

, em 8 de março de 1857, uma greve pela

redução da jornada de trabalho e igualdade salarial entre homens e mulheres, protagonizada por operárias

do setor têxtil, foi duramente reprimida, com o saldo de 130 mulheres queimadas vivas. O Dia

Internacional da Mulher é instituído no dia 8 de março, prestando as suas homenagens.

A questão da emancipação da mulher ganha sobressalto nos debates com o despertar dos movimentos

sociais na virada de 1960 para 1970. O maio francês em 1968 trouxe ao cenário os estudantes, que a partir

das universidades Sorbonne e Nanterre se sublevaram em recusa à forma de existência social que lhes era

imposta, despontando o despertar dos movimentos sociais, com bastante adesão do movimento operário,

repercutindo internacionalmente, inclusive no Brasil. O documentário Classe de Luta15

, realizado pelo

grupo Medvedkine, ilustra cenas do maio de 1968, acompanhando a greve da fábrica Yema e a criação de

uma delegação sindical da CGT em uma fábrica de relógios – onde predomina a força de trabalho

feminina, pois o labor exige a maleabilidade de pequenas mãos. Havia uma grande quantidade de

mulheres mobilizadas, que passavam a se sindicalizar, a despeito das resistências e dos obstáculos

impostos pela patronal e por seus próprios companheiros.

Os episódios que marcaram esse período serviram de estopim para o surgimento de novos atores sociais,

nas universidades, nas fábricas e em múltiplos ramos da sociedade. Nos EUA, nesse mesmo período

surgem o Black Power e os Black Panthers, que se levantam contra o racismo e em 1969, ganha força o

combate à violência contra homossexuais, servindo de combustível ao movimento LGBT16

.

Para as mulheres, era o momento de “rasgar os sutiãs”; o ano de 1968 nos Estados Unidos, tendo como

epicentro a Universidade de Berckley na Califórnia, foi palco de manifestações feministas; mulheres que

refutavam o moralismo da classe dominante, impregnado por um ideário machista. Eclode uma série de

manifestações, consagradas como “Revolução Sexual”, que visava subverter o status quo e rechaçar a

guerra do Vietnã. Sua repercussão adquire dimensões internacionais. Na Itália, mulheres saem às ruas em

manifestações massivas pelos direitos da mulher, tendo como eixo a luta pela legalização do aborto, que a

despeito das pressões contrárias do Vaticano, obtém êxito em 1972. Eis a segunda onda do feminismo, que

sela a insurgência de novas teorias, como o “feminismo radical”, de Shulamith Firestone, Kate Millet,

Betty Friedman, etc.

Nesse momento, a resistência às ditaduras militares na América Latina se enfrenta com a repressão

aberta aos movimentos sociais e ao movimento de massas. A luta de classes aparece no cenário brasileiro

com muita força, sobretudo no período entre 1978 e 1980 quando emerge um processo de lutas do

movimento operário, marcado por greves “selvagens”17

, ocupações de fábrica, piquetes, militância

clandestina e intensa politização, culminando na greve política de 1979, quando a luta contra a ditadura

alcançaria uma dimensão mais radicalizada e tendências revolucionárias se faziam sentir no calor dos

acontecimentos que marcaram o período. A obra de Heleieth Saffioti está munida pela subjetividade

transformadora que se alastra pela intelectualidade que se aproxima do marxismo, e deposita nesse

processo as esperanças de uma revolução social. Engajada, ela demonstra como a questão da mulher se

vincula visceralmente à questão operária, sobretudo quando mulheres são presas e torturadas pela

militância política.

Confluindo com as idéias de Saffioti, que elucidam o binômio exploração-opressão como questões

inseparáveis, Andrea D´Atri compreende que o período que se encerra em 1980 apresenta uma mudança

na subjetividade que aponta para caminhos opostos. De acordo com a autora:

14

Opt.cit. P-15.

16

Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais. 17

Greves em que trabalhadores desafiam o controle da direção sindical.

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O processo revolucionário que sacudiu o Oriente e o Ocidente simultaneamente entre 1968 e o início dos

anos 80 foi fechado mediante concessões às massas, reformas nos países centrais e por golpes contra-

revolucionários e sangrentos nos países periféricos. Para tornar isso possível as classes dominantes

contaram com a colaboração das direções do stalinismo, da social-democracia e do nacionalismo

burguês, que impuseram desvios, derrotas e traições à mobilização revolucionária e que permitiu ao

imperialismo se rearmar e, no início da década de 1980, lançar uma contra-ofensiva econômica, política

e militar contra o seu próprio proletariado, as massas semicoloniais e os Estados operários

burocratizados. Foi o início do que veio a ser chamado de a “ofensiva neoliberal”. Por meio do

“neoliberalismo” (...) a burguesia mundial tentou sair da crise estrutural que primava no sistema

capitalista nos últimos anos18

.

As lutas revolucionárias sofrem um desvio que brinda o triunfo das democracias no sistema capitalista.

Prima um crescente desvio e cooptação do movimento de mulheres à iniciativa privada, pela via de

organizações não-governamentais (ONG´s) e pela incorporação a partidos que disputam as eleições – se

fazendo valer da questão da mulher para alavancar a propaganda eleitoral e angariar mais votos entre as

cidadãs. Assim como as estruturas de trabalho, os grupos ditos feministas atomizam-se, e colocam em

relevo o predomínio de políticas afirmativas, que buscam maior inserção de mulheres ao mercado de

trabalho, nivelamento de salários e oportunidades sem questionar o sistema que oprime as mulheres nos

postos mais precários de trabalho. Cláudia Mazzei Nogueira se inspira nas transformações neoliberalismo

para compreender a mulher na atual divisão sexual do trabalho. Para ela:

Os resultados da reestruturação produtiva, no contexto da mundialização do capital, são complexos e

contraditórios, atingindo de forma bastante diferenciada a trabalhadora e o trabalhador. (...) Essa

presença feminina se dá mais no espaço dos empregos precários, em que a exploração, em grande

medida, encontra-se mais acentuada (...) na Europa, na América Latina e no Brasil. O impacto das

políticas de flexibilização do trabalho, nos termos da reestruturação produtiva, tem-se mostrado como um

grande risco para toda a classe trabalhadora, em especial para a mulher trabalhadora19

.

O processo de reestruturação produtiva decorrente da ofensiva neoliberal aponta para uma nova

dinâmica nas relações capital-trabalho, dando vazão a uma nova categoria de trabalho: o setor de

prestação de serviços. Atomizado e disperso, o trabalhador de novo tipo encontra empecilhos para a

sindicalização e a organização política. O contrato de trabalho é terceirizado e o trabalhador já não mais

possui vínculo empregatício com o local de trabalho. Cresce a rotatividade, as leis trabalhistas são

flexibilizadas, o desemprego estrutural é um elemento disciplinador, os contratos de trabalho são

temporários e a demissão já não precisa ser justificada.

No Brasil a flexibilidade da jornada de trabalho feminino é justificada pela legitimação social acerca da

compatibilização da mulher entre o núcleo familiar e o trabalho. Outra justificativa comumente aceita para

precarizar o salário feminino é a idéia de um salário complementar à renda familiar, o que com a redução

e a flexibilização de salários e o crescente desemprego, em grande medida não se sustenta, pois o trabalho

feminino deixa de ser complemento, tornando-se indispensável para garantir a subsistência familiar.

O capitalismo e a emancipação da mulher caminham em vértices opostos, já que a preservação do

sistema depende da força de trabalho feminina e de mecanismos que assegurem a sua submissão, como a

hierarquização dos salários, os contratos flexíveis, etc. A chave para se compreender a questão da mulher

está na gênese social e histórica que compreende um correlato duplo entre a exploração e a opressão da

mulher. As duas questões não podem aparecer separadas. O Sujeito transformador deve resgatar o papel

18

D‟ATRI, A, 2008 P-117/118. 19

NOGUEIRA, C. M, 2004 P-86/87.

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histórico da mulher nos processos revolucionários e nos momentos em que a sua luta se combina com a

luta pela emancipação de toda a humanidade, tanto na teoria, como na prática.

Bibliografia:

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MARX, K.. A Santa Família ou Crítica da Crítica-Crítica. .In: Sobre a Mulher. Global. s/d

NOGUEIRA, C. M. (2004). A Feminização no Mundo do Trabalho. Autores Associados. Campinas-SP

SAFFIOTI, H.B. (1976). A Mulher na Sociedade de Classes – Mito e Realidade. Vozes, São Paulo-SP

TROTSKY, L (1985). Historia de la Revolución Rusa, Sarpe, Madri.

___________ (1938). La Revolución Traicionada. Claridad, Buenos Aires.

ZETKIN, C (1934). Lênin e a Questão Sexual In: Assim foi Lênin, Moscou