Masculinidades Na Perspectiva de Gênero
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RESUMO
MASCULINIDADES NA PERSPECTIVA DE GNERO: TENSES, DESAFIOS E POSSIBILIDADESJorge LyraUFPE; Instituto [email protected] MedradoUFPE; Instituto PAPAI [email protected]
Nossa proposta para este Congresso situa-se em consonncia com produes recentes que buscam resgatar a importncia das contribuies do Feminismo, as quais se vm perdendo ao longo da histria, com o uso indiscriminado e despolitizado do conceito de gnero, ou seja, com seus usos e abusos (IZQUIERDO, 1994). Consideramos que nos ltimos trinta anos, em que os estudos de gnero se consolidaram na produo acadmica ocidental, foram produzidos trabalhos, especialmente no campo das Cincias Humanas e Sociais, que discutem os homens e o masculino como faces malditas das relaes que geram desigualdades sociais e subordinam as mulheres (MEDRADO; LYRA, 2008). Assim, postulamos a necessidade de sistematizao crtica desse debate, especialmente no que se refere ao trabalho voltado aos homens e s masculinidades no campo da sade e dos direitos reprodutivos, em particular no contexto das polticas pblicas. Observamos que no campo de Gnero e sade, as produes sobre homens e masculinidades, como objeto de estudo propriamente dito, tm incio na dcada de 1990, a partir de trabalhos elaborados de maneira ainda pouco sistemtica, com concentrao em autores especficos e sem necessariamente se desdobrar em uma discusso terica, epistemolgica, poltica e tica ampla e consistente sobre o tema (LYRA, 2008). Nesta apresentao iremos dialogar principalmente com as reflexes de Juan Guillermo Figueroa-Perea (2004), uma das principais referncias no debate sobre os homens no campo dos direitos reprodutivos na Amrica Latina. Esse autor tem desenvolvido na ltima dcada uma profunda sistematizao e reflexo crtica sobre essa temtica. Sua rica contribuio nos auxilia a compreender como os discursos das polticas produzem concepes de masculinidades e de homens e definem posies a serem ocupadas pelos sujeitos. Nesse sentido, investigar sobre masculinidades significa no apenas apreender e analisar os signos e significados culturais disponveis sobre o masculino, mas tambm discutir preconceitos e esteretipos e repensar a possibilidade de construir outras verses e sentidos. Situa-se, portanto, nos usos e efeitos que orientam os jogos de discursos e prticas, ou mais precisamente prticas discursivas, que tendem a transformar diversidade em desigualdade.
Palavra chave: Gnero e sade. Feminismo. Homens. Direitos sexuais e reprodutivos. Polticas pblicas.
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MASCULINIDADES NA PERSPECTIVA DE GNERO: TENSES, DESAFIOS E POSSIBILIDADESJorge LyraUFPE; Instituto [email protected] MedradoUFPE; Instituto PAPAI [email protected]
Na literatura analisada com a finalidade de formular o marco referencial
destas reflexes, recortamos os estudos que adotam uma concepo feminista de
gnero construo social engendrando e legitimando poder masculino , para
investigar o lugar dos homens no campo das polticas de direitos reprodutivos.1 O
ponto de partida que no h uma nica masculinidade, apesar de existirem formas
hegemnicas e subordinadas a ela. Tais formas baseiam-se nas posies de poder
social dos homens, mas so assumidas de modo complexo por homens particulares,
que tambm desenvolvem relaes diversas com outras masculinidades.
Essa busca de clareza nos argumentos no fruto apenas de um exerccio
retrico, mas, principalmente, de acreditar e defender que as discusses sobre os
homens e as masculinidades, de forma crtica, so resultados dos desafios e
avanos dos debates cientficos e polticos originalmente produzidos pelo movimento
feminista e pelo movimento em defesa da diversidade sexual.2 Quando se pretende
(re)fazer perguntas ao campo do conhecimento, ainda fortemente sexista e
androcntrico, tanto como (re)significar relaes sociais de poder e desconstruir o
machismo institucionalizado, que se expressa cotidianamente em nossa sociedade,
necessrio adotar essa matriz analtica e de compreenso tico-conceitual.
1 Para a construo desta matriz, tomamos por base especialmente as produes de Arilha (1999, 2005); Arilha, Unbehaum e Medrado (1998); Figueroa-Perea (1998b, 2003, 2004); Lyra (1997); Medrado (1997); Medrado, Lyra, Nascimento e Adrio (2000); Vale de Almeida (1995, 1996).2 Sobre esse aspecto, recomendamos a leitura de Cceres (2000); Connell (1995a); Medrado (1997); Parker e Gagnon (1995); Vance (1995).
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nesse sentido que as questes, aparentemente bvias, que Rodrigo Parrini
(2006), antroplogo chileno, apresenta em seu texto intitulado Existe la
masculinidad? Sobre un dispositivo de saber/poder so muito interessantes, pois
problematizam os princpios que norteiam o prprio campo. O elemento principal
dessas consideraes propostas pelo autor trazer baila uma forte crtica aos
estudos autnomos da masculinidade. No seu entendimento, e de acordo com o que
aqui defendemos, esse campo de estudos autnomos sobre masculinidades um
espao atrasado e em muitos sentidos reacionrio quando comparado aos estudos
de gnero, feminismo e teorias queer3, principalmente em funo da definio do
seu objeto de estudo, e tambm com vago aprofundamento terico e com pouca
solidez na reviso histrica.
Segundo esse autor, considerar a masculinidade e os homens objetos
especficos dos estudos da masculinidade acarreta conseqncias tericas e
polticas srias. Politicamente, refora o binarismo que atualmente tem sido
fortemente criticado pelas teorias feministas e, mais recentemente, pelas teorias
queer. Teoricamente, ao trabalhar a partir de uma diviso ingnua da
masculinidade/feminilidade, no incorpora as severas crticas das polticas de
identidade, a complexificao do estudo da subjetividade e a centralidade das
reflexes sobre as relaes de poder que configuram os objetos que se relacionam
diretamente a sexo, a gnero ou a ambos (PARRINI, 2006).
Juan Guillermo Figueroa-Perea (2004), uma das principais referncias no
debate sobre os homens no campo dos direitos reprodutivos na Amrica Latina, tem
3 Segundo Nadia Pino (2007), os estudos queer emergem na dcada de 1980 como uma corrente terica que coloca em xeque as formas correntes de compreender as identidades sociais. Descendendo teoricamente dos estudos gays e lsbicos, da teoria feminista, da sociologia do desvio norte-americana e do ps-estruturalismo francs, a teoria queer surge em um momento de reavaliao crtica da poltica de identidades. Dentre seus tericos destacamos Eve Kosofsky Sedgwick, Teresa de Lauretis, David Halperin, Judith Butler, Steve Seidman, Michael Warner, Beatriz Preciado, Judith Halberstan. Alm dos considerados precursores como Michel Foucault, Joan Scott e Gayle Rubin.
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desenvolvido na ltima dcada uma profunda sistematizao e reflexo crtica sobre
esse tema. Diversos autores brasileiros, entre eles Pedro Paulo Oliveira (2000) e
Rosely Costa (2002), tambm tm elencado crticas sobre os estudos da
masculinidade.
Na abertura do II Seminrio Internacional Homens, Sexualidade e
Reproduo organizado pelo Instituto PAPAI, Ncleo Fages, Grupo Pegapacap e
NEPO-UNICAMP , em Recife, Figueroa-Perea (2004) fez uma conferncia
intitulada La representacin social de los varones en estudios sobre masculinidad y
reproduccin: un muestrario de reflexiones4 Nesta conferncia, ele explicita suas
referncias analticas e compartilha quais so as dimenses que sugere trabalhar
para repensar criticamente o que se nomeia de estudos sobre masculinidade, que o
prprio autor prefere chamar de estudos sobre os homens e as relaes de poder
entre os gneros.5
A rica contribuio de Figueroa-Perea (2004), descrita mais detalhadamente a
seguir, auxilia a compreender como os discursos das polticas produzem
concepes de masculinidades e de homens e definem posies a serem ocupadas
pelos sujeitos. Nesse sentido, investigar sobre masculinidades significa no apenas
apreender e analisar os signos e significados culturais disponveis sobre o
masculino, mas tambm discutir preconceitos e esteretipos e repensar a
possibilidade de construir outras verses e sentidos. Situa-se, portanto, nos usos e
efeitos que orientam os jogos de discursos e prticas, ou mais precisamente prticas
discursivas, que tendem a transformar diversidade em desigualdade.
Por certo, ao longo da histria, as mulheres tm sido alvo de injustias sociais
de ordens variadas e, por mais conquistas que tenham alcanado, ainda est 4 O texto foi publicado no livro Homens: tempos, prticas e vozes, organizado por Medrado; Franch; Lyra; Brito, 2004.5 Vale salientar que no assumimos aqui gnero a partir da relao entre dois. A dimenso de poder entre gneros sobre a qual fala Figueroa-Perea (2004) ultrapassa uma leitura binria.
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distante de se poder falar sobre uma efetiva eqidade de gnero (GREGORI, 1989;
SAFIOTI, 2001). Por outro lado, muitos homens em condies sociais (a)diversas
tambm enfrentam, cotidianamente, a impossibilidade e a obrigao de responder
ao modelo hegemnico de masculinidade .
Poder-se-ia ler a afirmativa acima como um posicionamento vitimrio. Porm,
a resistncia em perceber as relaes de poder como jogos, e no como estados,
pode, por outro lado, inviabilizar a percepo de caminhos de transformao,
mantendo conseqentemente os lugares de mulher-vtima e homem-algoz como
estveis e imutveis (GREGORI, 2003). Como bem destaca Medrado (1996), a
dominao dos homens sobre as mulheres e sobre o feminino no possui autoria
nica, mas uma constelao de autores, que inclui, alm dos homens, a mdia, a
educao, os sistemas de sade, a religio, as mulheres e as prprias polticas
pblicas. Em outras palavras, partimos da perspectiva de que o poder coletivo dos
homens no construdo apenas nas formas como os homens o interiorizam,
individualizam e reforam, mas tambm nas instituies sociais.
Na seqncia, sintetizamos alguns pontos que consideramos importantes
para caracterizar esse campo de investigao em constante ebulio, tambm
produtor de discursos, de modos de saber e de fazer e de sujeitos.
Refletindo sobre os estudos sobre homens e masculinidades no campo da
Sade e Direitos Sexuais e Reprodutivos, Figueroa-Perea (2004) prope as
seguintes questes, que sero exploradas a seguir:
a. Que temas tm sido objeto de pesquisas?b. Como se investigam os diferentes temas?c. Que concepes de homem orientam estes estudos?d. Qual o ponto de vista que se adota na formulao do conhecimento? e. Quais so as sugestes de temas para futuras pesquisas?
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f. Que novos discursos, novas palavras esto sendo inventados pelo campo?
g. O que se quer com estes estudos sobre masculinidades?h. Que categorias analticas so usadas?i. H desconfianas do conhecimento produzido sobre os homens?A partir da pergunta Que temas tm sido objeto de pesquisa no decorrer do
tempo?, Figueroa-Perea (2004) identifica os temas que tm sido trabalhados
exaustivamente e outros que surgiram apenas mais recentemente, e mesmo assim
com dificuldades. Problematiza, tambm, por que alguns temas no so
trabalhados. Segundo o autor, h nesse campo um maior foco nos estudos sobre
sexualidade, sade e violncia, em detrimento de discusses sobre reproduo,
gerando uma produo ainda incipiente do ponto de vista do aprofundamente
terico-metodolgico e epistemolgico. Uma possvel justificativa trazida por esse
autor o interesse em fazer intervenes em situaes diversas, contando com
recursos disponveis, mas que, em busca de resultados rpidos, no possibilita um
acmulo e aprofundamento das compreenses sobre os fenmenos (MINELLO
MARTIN, 2002). Essa questo dos recursos tambm apontada por Rosely Costa
(2002), quando afirma que os estudos sobre masculinidades emergiram a partir do
incentivo de agncias financiadoras nacionais e internacionais, que, devido s
preocupaes com o controle de natalidade nos pases em desenvolvimento,
visavam um maior conhecimento dos homens.
Ao refletir sobre como se investigam os diferentes temas, Figueroa-Perea
(2004) ressalta que necessrio no apenas atentar para os temas emergentes no
campo, mas observar especialmente como tm sido feitas essas investigaes. Em
suas anlises, ele destaca que algumas pesquisas sobre masculinidades tomam os
homens como nicos interlocutores, sem fazer nenhum aluso aos argumentos ou
narrativas de mulheres. Algumas at fazem referncias a homens e mulheres, mas
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suas anlises muitas vezes se baseiam, nica e exclusivamente, em diferenas
comportamentais (genticas, hormonais etc.), tomadas a partir de uma abordagem
tipificadora. Em outros estudos, considera-se que as pesquisas que tm mulheres
como interloutoras j contemplam muitas informaes sobre os homens e que,
portanto, essas informaes podem ser analisadas, sem necessariamente gerar a
necessidade de incluir anlises a partir de depoimentos dos homens.
Embora Figueroa-Perea (2004), de forma proposital, no cite diretamente
muitos autores ou obras, preferindo falar em tendncias e movimentos, possvel
perceber claramente essa dinmica, que no parece constituir necessariamente
grupos em disputa, mas procedimentos comuns nas obras, inclusive de mesmos
autores ou autoras. Observam-se nesses exemplos, trazidos pelo autor, alguns
problemas na produo de conhecimento desse campo. Em linhas gerais, revelam a
presena de sexismos, to criticados pelo Feminismo, expressos a partir da postura
binria e da no-adoo da perspectiva relacional; naturalizam as diferenas
sexuais, a partir da mera tipificao de comportamentos tidos como masculinos e
femininos; apresentam tenses entre visibilidade/invisibilidade dos sujeitos e
mostram anlises fundamentadas em informaes indiretas.
Outra importante questo oriunda do debate sobre o fazer cientfico
apresentado por Figueroa-Perea (2004) refere-se a como devemos abordar o tema
das masculinidades (e outros objetos de pesquisas em gnero): de forma indutiva ou
dedutiva? Ou seja, qual o ponto de vista que se adota na formulao do
conhecimento? Parte-se do que os homens fazem, buscam-se certas diferenas (e
semelhanas) com as mulheres (e com os prprios homens) e tenta-se entender a
origem e o significado destas diferencas e semelhancas ou, a partir de uma
determinada concepo terica de masculinidade, vai-se a campo procurando
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comprov-la dedutivamente na prtica? Na compreenso do autor, a qual
compartilhamos, fundamental explicitar de que lugar e de que modo se interpreta a
masculinidade: uma condio, uma essncia, uma caracterstica ou um privilgio?
Continuando esse processo de caracterizao e anlise do campo, Figueroa-
Perea (2004), alm de mapear que procedimentos metodolgicos tm sido
empregados nos estudos de masculinidades, chama ateno tambm para
entendermos que concepes de homens orientam estes estudos. Ele organiza
essas concepes em pelo menos cinco perspectivas: satanizao dos homens,
homens como vtimas6, auto-flagelao, desigualdades de gnero patriarcais e
uma leitura que contextualiza as normas sociais. Mais adiante, traremos um maior
detalhamento formulado pelo autor.
Reconhecendo que o exerccio de anlise da produo terica sobre um tema
fundamental para identificar equvocos, revisar caminhos e tambm perceber os
avanos, Figueroa-Perea (2004) questiona essa literatura a partir da pergunta:
Quais so as sugestes de temas para futuras pesquisas? Uma das caractersticas
que se aponta em vrios estudos a dimenso do poder em suas diferentes
modalidades, no apenas com o fim de identific-lo, o que na sua acepo seria
uma leitura eminentente dedutiva, mas de questionar como os indivduos concretos
processam o exerccio do poder, como o reproduzem e tambm como o
transgridem, ou seja, questionam e transformam em relaes mais democrticas.
Neste estudo trilhamos esse caminho, tomando como referncia as relaes
de gnero e, portanto, de poder. Todavia, seguimos noutra direo, concebendo as
relaes de poder como um princpio organizador da nossa sociedade, que constitui
e expressa relaes de gnero em vrios mbitos. O recorte aqui proposto assume
6 Essa caracterstica de considerar os homens como vitimas tambm foi discutida e criticada por Marion Quadros, (2006), Pedro Paulo Oliveira (2000) e Rosely Costa (2002).
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o compromisso de analisar o contexto de polticas pblicas com o intuito de produzir
novas ou simplesmente outras perguntas endereadas a esse campo.
Figueroa-Perea (2004) prope que se criem, se inventem palavras para que
novas/outras realidades passem a existir. Com esse esprito ele segue sua leitura
panormica das produes sobre masculinidades perguntando: Que novos
discursos, novas palavras esto sendo inventadas pelo campo? Aqui, faz referncia
ao uso recorrente em pesquisas do conceito de masculinidade hegemnica, que tem
como anttese as masculinidades subordinadas ou subalternas. O uso da expresso
masculinidade hegemnica tornou-se quase lugar-comum nas pesquisas sobre
homens e masculinidades, entretanto, este mesmo autor questiona o carter a-
histrico e universal dessa construo.
Algumas vezes, segundo o autor, corre-se o risco, ao se empregar a
expresso masculinidade hegemnica, de materializar (ou substantivar) um jogo ou
processo de poder, que produz leituras binrias, sem reconhecer a dimenso
relacional de gnero.
Nesse contexto, outras expresses que emergem no mbito dos estudos
sobre masculinidades so postas em xeque. Por exemplo, na literatura,
especialmente aquela produzida no contexto da psicologia clnica, que toma por
base informaes obtidas com homens atendidos em consultrios privados,7 utiliza-
se comumente a expresso crise da masculinidade, mas observa-se que poucos
homens se reconhecem nessa situao. Coloca-se assim a pergunta feita por Pedro
Paulo Oliveira (2000): que homens esto em crise? E acrescentamos: seria a crise
da masculinidade ou to somente alguns homens em crise?
O que se quer com estes estudos sobre masculinidades? Esta outra
intrigante indagao que Figueroa-Perea (2004) faz a esse campo de estudos e
7 Scrates Nolasco (1993, 1995, 2001) e Luiz Cuschnir (2002), por exemplo.
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pesquisas. Tendo em vista que as perguntas de pesquisas orientam as perspectivas
analticas no desenvolvimento de estudos sobre a populao masculina, o autor
destaca que as pesquisas nesse campo vo desde propostas unilaterais de
interveno e modificao de atitudes at processos mais sistemticos, que buscam
historiar comportamentos e mapear mltiplas causas de suas modalidades,
adotando uma perspectiva mais construcionista.
Esse segundo movimento pode ser levado a cabo tendo como ponto de
partida a perspectiva de gnero, mas tambm pode adotar uma leitura parcial, seja a
partir de um olhar voltado aos homens ou exclusivamente s mulheres. De acordo
com a anlise de Figueroa-Perea (2004), esta deciso passa pela delimitao de
como se entende o prprio campo: 1) estudos sobre masculinidade; 2) estudos
sobre homens e relaes de gnero; ou 3) estudos de gnero sobre os homens.
A postura adotada neste texto de que se est produzindo reflexes sobre
masculinidades, a partir do enfoque de gnero, orientado por uma perspectiva
feminista, entendendo a necessidade da adoo de uma abordagem conceitual
politicamente orientada perspectiva feminista aqui entendida como um campo
terico e poltico, uma filosofia de vida, um modelo societrio, uma forma de ver o
mundo, em ltima instncia, originrio e propulsor das reflexes sobre os homens.
Para dar conta de analisar o desigual exerccio de poder entre homens e
mulheres, assim como a dupla moralidade a partir da qual se nomeiam e se
produzem as prticas de uns e de outras, precisamos perguntar: Que categorias
analticas so usadas? Que tipo de categoria adotada na construo do objeto de
estudo? Figueroa-Perea (2004) identifica quatro categorias privilgios,
necessidades, direito e mal-estar , analisando-as a partir de suas diversas
concepes, usos e crticas.
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A constatao dos privilgios dos homens numa sociedade orientada pela
ordem de gnero tem, segundo Figueroa-Perea (2004), gerado importantes
contribuies analticas. Porm, tomada de forma acrtica, a categoria analtica
privilgio impede o reconhecimento de que o exerccio do poder pelos homens pode
trazer efeitos negativos associados (ou desvantagens) como conseqncia.
Outra categoria aponta para as necessidades dos homens, baseando-se no
necessariamente em demandas, mas em anlises de condies de produo e
vetores de (im)possibilidades trazidos pela di-viso sexual do mundo. A esse
respeito, Margareth Arilha, em sua tese de doutorado, questiona: por que no se
constri socialmente uma real escuta para as vulnerabilidades e necessidades dos
homens, quando se fala de gnero? E vai alm: O que que gnero est
tematizando, quando fala das mulheres, e o que est tematizando quando fala dos
homens? (ARILHA, 2005, p. 13).
Para alm das necessidades, Figueroa-Perea (2004) traz direitos como outra
categoria analtica que se vem legitimando, embora de forma ainda muito tmida.
Direito pode ser entendido como condio humana, todavia, preciso incluir nesta
anlise as condies de diferenas e desigualdades de gnero, para tornar mais
complexo o seu entendimento. Na sociedade em que vivemos, direito pode ser
entendido como algo inerente condio masculina: os homens j so os sujeitos
dos direitos e, portanto, falar nos homens seria invariavelmente falar em posio de
direito. S a partir de uma anlise crtica desta noo genrica possvel qualificar
seu uso com capacidade de transformao.
Arilha (2005) ressalta iniciativas que, na ltima dcada, comearam a ganhar
visibilidade e apontam para campos de direito (especialmente o campo dos direitos
reprodutivos) em que os homens (ou, pelo menos, uma parte deles) parecem no
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ocupar posies definitivas de direito. Porm, como alerta a autora, tem-se
observado que o processo de insero dos homens no debate sobre direitos
reprodutivos tem sido feito de maneira ainda muito tmida, incipiente, quando
comparado ao que ocorreu com as mulheres, h pelo menos trs dcadas, no
campo da sexualidade, reproduo e dos direitos das mulheres, de forma mais
ampla. Vale assinalar que isto ocorre tambm em funo das situaes de
dominao ainda vigentes em nossa sociedade (QUADROS, 2004a).
Figueroa-Perea (2004, p. 20) reconhece que h uma confuso entre direito e
privilgio na medida em que se defende que se as mulheres tivessem os mesmos
privilgios dos homens, se avanaria na busca pela igualdade ou ao menos se
diminuiria a desigualdade. Todavia, segundo este autor, esquece-se que muitos
privilgios de gnero foram legitimados privando dos direitos as mulheres, sendo
necessrio, a seu ver, democratizar os espaos de negociao mais do que buscar
se igualar em privilgios.
De todo modo, como contraponto do direito, a expresso mais recorrente no
campo da sade reprodutiva, especialmente (mas no exclusivamente) nos (e a
partir dos) documentos resultantes de conferncias internacionais, quando se faz
referncia aos homens, a responsabilidade, conceito especialmente trabalhado por
Arilha em sua dissertao de mestrado (1999), e posteriormente analisado em sua
tese de doutorado (2005), como no trecho a seguir:
O eixo central do trabalho desenvolvido naquele momento [referindo-se dissertao de mestrado] foi justamente uma crtica noo de responsabilidade usada pelo texto da Conferncia do Cairo, mostrando sua essncia normativa, operando com uma viso cristalizada [...], contribuindo para sedimentar o esteretipo de que homens em geral [...] so irresponsveis, devendo ser capturados por polticas especiais e educados para se tornarem responsveis. Se, por um lado, o trabalho era inovador e ousado na medida em que apontava para uma viso crtica da abordagem do masculino na
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Conferncia, no foi possvel, naquele momento, seguir adiante e aprofundar um eixo que parece promissor [...]. (ARILHA, 2005, p. 14).
Baseada, ento, em Scott, J. (1995), Arilha (2005) ratifica que, em sua
perspectiva, gnero uma das primeiras maneiras de dar significado s relaes de
poder, ou que gnero um primeiro campo por meio do qual o poder articulado.
Segundo ela, no se tem dado ateno especial a essa segunda parte da definio
de Scott. Para a autora, se gnero tambm uma forma de estar no mundo, como
conceito orientador de anlises, seria necessrio investigar melhor suas
possibilidades de problematizar o mal-estar masculino (ARILHA, 2005, p. 14).
Nessa mesma direo, Figueroa-Perea (2004) introduz sua ltima categoria, o
mal-estar (ou, como o autor prefere, no plural: malestares, em castelhano).
Segundo o autor, preciso ter cuidado para no cair numa perspectiva maniquesta
a partir de um olhar unidirecional. fundamental complexificar nossas anlises,
investigando em que medida os sujeitos considerados vitimizadores (agressores,
detentores do poder) lidam com as situaes nas quais eles exercem o poder, ou
lhes permitido ou promovido esse exerccio; e, mais alm, se a conscientizao
destes homens, ou sua responsabilizao sobre esse processo, capaz de
ressignificar seu posicionamento nas relaes de poder.
A ltima pergunta apresentada por Figueroa-Perea (2004) em seu exerccio
de reviso panormica (por el momento, como ele mesmo chamou ateno) refere-
se s dvidas e incertezas que existem no campo de estudos sobre os homens: H
desconfianas do conhecimento produzido sobre os homens? Como esse campo de
estudos de modo geral tem se desenvolvido com o intuito de discutir certezas e
verdades que se atribuem a quase metade da populao, colocar em suspeio os
prprios cnones at ento existentes leva a uma postura, a princpio, de negao e
de ressalva.
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[...] histrias pessoais e sociais definem e condicionam expectativas, preconceitos e pressupostos carregados de valor [...] levando a que se duvide da informao obtida com a populao de estudo, em particular quando esta no coincide com os pressupostos e os marcos interpretativos em que se baseia [...]. (FIGUEROA-PEREA, 2004, p. 20, traduo nossa).
A origem destas desconfianas pode ser atribuda s cinco concepes sobre
homens anteriormente mencionadas (e agora mais bem exploradas), que Figueroa-
Perea (2004) condensou a partir da sistematizao da anlise da literatura latino-
americana referente temtica, a saber: satanizao dos homens, vitimizao,
autoflagelao, leitura patriarcal e leitura contextualizada de normas sociais. O autor
chama ateno para uma postura maniquesta nas trs primeiras vertentes, em
virtude do pressuposto de uma busca por definir e encontrar quem so as boas e os
maus (FIGUEROA-PEREA, 2004, p. 18), mantendo polaridades que pouco
contribuem ou avanam na compreenso da complexidade das propostas tericas e
polticas das relaes de gnero, balizadas no feminismo.
A primeira ele define como a que sataniza os homens. Os homens so o
motivo, origem e causa; responsveis e executores das desigualdades de gnero,
eles so vistos como vitimizadores.8 Uma vertente oposta a que reconhece os
homens como vtimas, entendendo que eles tambm sofrem as conseqncias dos
condicionantes de gnero e, portanto, no so totalmente responsveis pelo que
fazem, e sim resultado das influncias de gnero. Em seguida, o autor nomeia o
processo de autoflagelao, no qual os homens se consideram culpados dos
problemas enfrentados pelas mulheres por sua prpria condio de homem.9 No seu
entendimento, muitas vezes usam discursos politicamente corretos e renegam
qualquer possibilidade de ter direitos (FLOOD, 1997).
8 Digby (1998) citado por Figueroa-Perea (2004) como obra que adota essa perspectiva.9 Entre essas obras, Figueroa-Perea (2004) cita Oliveira, Bilac e Muszkat (2000).
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O autor observa caractersticas da perspectiva de gnero nas duas ltimas
concepes, contudo, com aportes diferentes de anlise. Na quarta, os homens so
entendidos a partir da perspectiva das desigualdades de gnero inscritas pelo
patriarcado, que fundamentam os processos de desigualdades de gnero de forma
global. Esta abordagem constata formalmente que o sistema patriarcal
multidimensional e, por fim, tem formas de controle e de reproduo to complexas
que termina por paralisar qualquer possibilidade e intento de transformao.10
A quinta noo, que adota uma leitura que historiciza as normas sociais, se
prope a definir, problematizar e desconstruir as influncias sociais em contextos
especficos.11 Parte-se da idia de que, se os homens tomarem conscincia das
relaes de poder, torna-se possvel transform-las e reconstru-las. Figueroa-Perea
(2004) se filia mais a esta ltima vertente, na medida em que ela possibilita, a partir
de um olhar de gnero, decodificar e desconstruir normas.
Acrescentamos nesta proposta a necessidade de uma anlise que incorpore,
nas proposies de transformao, o contexto macro-estrutural no qual estas
normas so (foram) construdas e mantidas, pois no acreditamos em mudanas
efetivas apenas no plano individual dos valores e da cultura. Equidade de gnero s
ser conquistada com justia social.
Em ltima anlise, na viso de Figueroa-Perea, as trs primeiras concepes
de homens produzidas nesse campo so marcadas por um discurso descritivo-
maniquesta que busca com suas interpretaes uma diviso das pessoas em boas
e ms, para ser mais preciso em boas e maus (FIGUEROA-PEREA, 2004, p. 17).
O segundo grupo emprega leituras analtico-reflexivas, mas suas concepes se
diferenciam nos modelos explicativos: uma est fundamentada na teoria do
10 Neste conjunto, Figueroa-Perea (2004) identifica os trabalhos de Hernndez (1995); Valds e Olavarra (1998).11 Aqui, Figueroa-Perea faz referncia ao trabalho de Parker (1998).
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patriarcado, formulando explicaes mais globais, e a outra enfoca suas anlises em
contextos especficos. Segundo Figueroa-Perea, o problema destas concepes a
prioristicas que elas podem enviesar as anlises dos resultados, gerando a
reafirmao constante de conceitos e do prprio modelo explicativo, restringindo a
criatividade analtica e a anlise sobre mudanas.
Diante dessa anlise crtica sobre o estado da arte de estudos e pesquisas
sobre homens e masculinidades, especialmente no contexto da sexualidade e
reproduo, ratificamos que preciso romper com modelos explicativos que, via de
regra, reafirmam a diferena e que nos permitem somente explicar como ou por que
as coisas assim so, mas que no apontam contradies, fissuras, rupturas,
brechas, frestas... que nos permitam visualizar caminhos de transformao
progressiva e efetiva. Apostamos na necessidade de abrir espao para novas
construes tericas que resgatem o carter plural, polissmico e crtico das leituras
feministas.
Referncias
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