Mastodontes na sala de espera · São Paulo: Edição do Autor, 2013. Brochura, 96 pp., 14 x 21 cm...

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Mastodontes na sala de espera

Mastodontes na sala de espera

Bruno Brum

© 2013, Bruno BrumTodos os direitos reservados. Proibida a reprodução, o armazenamento ou a

reprodução de partes deste livro por quaisquer meios, sem prévia autorização

escrita da editora.

Capa

Bruno Brum

Projeto gráfico e diagramação

Bruno Brum e Milton Fernandes

Revisão

Ana Elisa Ribeiro

Foto do autor

Tatiana Perdigão

Imagens da capa, quarta capa e página 96

Adaptação de Working sketch of the mastodon, 1801, de Rembrandt Peale

Brum, Bruno [1981-]. Mastodontes na sala de espera.

São Paulo: Edição do Autor, 2013.

Brochura, 96 pp., 14 x 21 cm

1. Poesia brasileira século XXI I. Título II. Brum, Bruno [1981-]

CDD-869.91

Sumário

Apresentação, 9

Um deles, 13

O contrarregra vê dragões contra um

fundo azul, 14

Interessante, 15

Maquinário, 16

Anotações para um mantra pessoal, 17

Ritmos variados, 18

Mapas provisórios, 19

Postais, 20

Quem tem medo do frango assado?, 24

Crônicas do homem-rã, 25

Triagem, 26

Interferências, 27

Decalcomania, 28

Braintestine, 29

Perguntas em torno de uma festa, 30

Estranhas revelações, 31

Paisagem com dublê, 32

Quatro cenas, 33

Improvável, 34

Uma possibilidade, 35

Uma impossibilidade, 36

Noventa e nove blefes, 37

Aerovias, 50

Meu ex-cachorro, 51

Discurso por ocasião de um congresso internacional de

pessoas jurídicas, 52

Outro lugar, 56

Os desertos de sal, 57

Antes, 58

Depois, 59

Cinco considerações ao invés de, 60

Contínuo, 61

O cameraman só pensa em voltar para casa, 62

Sido visto, 63

Acordado, 64

Croqui para um poema-objeto, 65

Mudou-se, 66

Composição para o ar, 67

Apenas um porco, 68

Medida, 69

Evisceração, 70

Fragmentos de um sonho, 71

Fragmentos de uma sombra , 72

Acerto, 73

Seis improvisos, 74

Dez minutos, 80

Cifra, 81

Há pouco, 82

Recorte, 83

Muitos, 84

Bruno Brum em ritmo de aventura, 85

Sobre o autor, 93

Agradecimentos, 95

9

Apresentação

Paulo Scott

Admiro essa capacidade que Bruno tem de estabelecer

um diálogo enviesado, oblíquo até, e ganhar a cumpli-

cidade do leitor, provocando-o, tirando-o do conforto

mental (tenha isso o significado que tenha), fazendo-o

pensar e, pensando, pender e duvidar. Acompanho este

livro desde os dois livros anteriores. Por isso, confirmo

(caso você não tenha lido os anteriores), atesto?, essa

voz tão própria e contemporânea que vem sendo mol-

dada sem pressa por este Bruno Brum que há tempo já

tem a maturidade para saber que riscos não correr e, por

esse motivo, corrê-los sem equipamento de proteção,

embora com todo o foco possível. Eu deveria falar (esse

fora meu impulso inicial) sobre os intricamentos inevi-

táveis entre seus livros, a originalidade que se confirma

na medida em que se confirma a identidade impossível

de falsificar, mas prefiro destacar o aguçamento no olhar

e nas usurpações imagéticas e linguísticas desse jovem

autor capaz de tirar o fôlego. Não entendo, não domino,

a técnica dos prefácios, ainda assim estou vestido es-

pecialmente com esta toga verbal e diplomática, a toga

daquele que admira e se sente desafiado mesmo depois

da leitura e da reflexão da leitura. Estou sem fôlego,

devem ser os anos (insisto: perdi seus restos inclusive

nas releituras, que foram três); Bruno diz (e cria) coisas

10

que eu queria ter dito. Nisso está minha paixão pelo po-

ema, que nada tem a ver com o autor, mas é impossível

fechar os olhos, já que presentes, e deixar de perguntar:

quando, diabos, virá mais?

Mastodontes na sala de espera

13

Um deles

Os que acreditam fazem perguntas aos que parecem

[acreditar.

Os que parecem, parecem não ouvir.

Os que ouvem permanecem calados.

Os que respondem parecem não acreditar no que dizem

os que perguntam.

Todos se parecem em silêncio.

14

O contrarregra vê dragões contra um fundo azul

O caubói sentado, folheando uma revista, inclina leve-

mente a cabeça, tomando o cuidado de não olhar para

a câmera.

O cão pastor salta sobre os latões de lixo, derruba o ban-

dido e volta para receber outro biscoito.

A multidão ergue os braços e grita um pouco mais alto

na segunda tomada.

O vento passa e volta para a hélice.

O pássaro passa e volta para a caixa de ferragens.

15

Interessante

Você mostrou.

Você acha bonito.

Você acha interessante.

E por isso acha que deve ser mostrado.

Você colocou lá

para que todos vissem

porque decerto supôs

que seria bonito,

que seria interessante

que todos vissem.

16

Maquinário

Um meridiano divide esta laranja

em dois fusos horários.

17

Anotações para um mantra pessoal

A voz que me tocou não é voz, nem me tocou.

Murilo Mendes

Som em sentido

anti-horário.

Voz de encontro

à garganta.

Boca se abrindo

ao contrário.

Pérola coberta

de cáries.

18

Ritmos variados

Sabe, meu Cachoeiro, as coisas nem

sempre saem conforme o combinado.

Nessas ocasiões, apenas me lembro

que tenho um pinto enorme e tudo

parece um pouco melhor.

Os anos se passaram e pequenas

convicções se acumularam

num canto escuro do quarto.

Todos os boleros do mundo

soando juntos deveriam fazer

algum sentido, mas não fazem.

19

Mapas provisórios

Rabiscar, ao telefone,

traços, setas, números,

glifos, siglas, mapas

provisórios.

Talvez um rostinho feliz.

Talvez uma nuvem.

Uma nuvenzinha feliz.

20

Postais

1

Olhos por perto.

Há coisas escondidas

atrás de outras coisas.

Logo adiante, mais delas.

Depois (dentro) delas, ainda outras.

21

2

Os passantes ainda não

se decidiram se vão, se ficam,

se atravessam a rua, se fazem

uma pausa para o café,

se atendem o celular.

22

3

Nessa rua não há passantes.

Estão todos parados, de bocas abertas.

Algo me passa pela cabeça.

É preciso pensar duas vezes

e continuar parado, de boca aberta.

23

4

O movimento de rotação dos cata-ventos,

as buzinas dos vendedores de algodão-doce

e o apito dos amoladores de facas

não dizem outra coisa senão que as coisas

estão exatamente onde deveriam estar.

24

Quem tem medo do frango assado?

Todos olham e enxergam o frango assado.

Todos os caminhos levam ao frango assado.

Tudo o que se vê, tudo o que se ouve,

o cheiro das ruas vem do frango assado.

O frango assado anda de um lado para o outro.

Está visivelmente confuso.

25

Crônicas do homem-rã

Seria preciso apontar diferenças

entre uma e outra coisa:

cidades, mapas, meios de transporte,

civilizações desaparecidas etc.

Ao fim, não restaria a menor dúvida

de que tudo se esclarece com

rápidos movimentos de dedos e lábios

bem-desenhados. Tudo se tornaria mais simples

e nós nos entenderíamos perfeitamente.

26

Triagem

Enquanto esperam,

se preparam para

o próximo páreo.

Algum apostador,

incrédulo, dispara:

Qual, dentre todos, o pária?

27

Interferências

Entre a sombra projetada sobre os desvãos da calçada

[e quem vem do outro

lado da rua, um ônibus.

Um ônibus trazendo setenta e cinco passageiros.

E o pior:

isso ainda não nos leva a nada.

28

Decalcomania

Tatuou um código

de barras no rabo.

Temendo complicações,

tatuou o rabo

um pouco acima do código

de barras.

29

Braintestine

30

Perguntas em torno de uma festa

Imagine-se em uma festa, dançando.

A música é do tipo A, e você dança de um jeito do tipo B.

Você estará no ritmo?

Você estará na realidade da festa?

Os outros irão querer dançar com você?

Você acha que será respeitado?

Não seria melhor ir para outra festa?

Ou você preferiria um lugar com cinco tipos de música

[tocando ao mesmo tempo?

Ou ainda um lugar onde não haja música, dança ou

[pessoas?

Que tipo de festa você costuma frequentar?

Com que tipo de gente você costuma se envolver?

Você responderia a essas perguntas com convicção?

Tem uma opinião formada sobre o assunto?

Pagaria para ver até aonde vai a curiosidade alheia?

Precisa de um tempo para pensar?

31

Estranhas revelações

Soaria irônico se eu dissesse

que Oliver, o Pato, ligou há alguns

dias fazendo estranhas revelações.

32

Paisagem com dublê

Carros passam em alta

velocidade, agitando o

mato na beira da estrada.

Recostada num Uno prata,

uma pessoa

vomita no acostamento.

Essa pessoa provavelmente

não sou eu, nem você,

nem ninguém.

33

Quatro cenas

Um homem lendo um livro constitui a primeira cena.

Um homem sentado de pijama e chinelos, sob a luz

do abajur, vermes se enroscando sobre seus pés:

outra cena1.

Um homem lendo um livro em chamas, suas mãos

também em chamas.

Um homem que ateasse fogo aos próprios olhos2.

1 Embora um pouco mais complexa, mantém-se dentro dos

limites do explicável e do real.2 A luz, aqui, já não provém de abajures, luminárias ou

qualquer outra fonte indireta, mas do fogo, já tão próximo

de tudo, da própria cena consumida sem lembranças.

34

Improvável

Alguns instantes depois

já não havia mais

o que se ver no ponto onde,

até há bem pouco, um corpo

deslizava, exceto, talvez,

as fotos que, a essa altura,

não dizem coisa alguma.

35

Uma possibilidade

O diabo se parece

com isso, imagino.

Qualquer qualidade

que se possa notar

sob um exame mais

detido, qualquer traço

que se revele à análise

mais criteriosa, passaria

aqui despercebido.

É possível que, por

capricho do olhar,

a paisagem consumisse

a si própria.

Talvez, então, se

tornasse

mais precisa

e real.

36

Uma impossibilidade

Las palabras cierran todas las puertas.

Alejandra Pizarnik

Duas portas traçadas no espaço.

Entrada e saída, dizem.

Duas portas trancadas no espaço.

Ninguém entra. Ninguém sai.

37

Noventa e nove blefes

1

Uma estratégia para se escrever um poema que, ocasio-

nalmente, pode ser considerada é a que se baseia em

imagens mais ou menos abstratas.

Digo mais ou menos porque não pretendo, neste breve

relato, levantar discussões desnecessárias nem esgotar

um assunto tão vasto e controverso.

E porque, como já foi largamente demonstrado pela ex-

periência, não há razões para se classificar esse ou aquele

corte como sendo concreto/abstrato: a ampliação abrupta

à qual são submetidos assemelha-os a eventos isolados

no tempo e no espaço, amparados apenas por conceitos e

formulações estranhos à sua natureza.

Paralelamente ao uso das imagens, é possível que se faça

uso de técnicas e recursos de outras linguagens artísticas,

tais como a música, a pintura, a dança.

38

As técnicas de montagem presentes no cinema, por

exemplo, com suas combinações ideogrâmicas de ele-

mentos visuais e sonoros, são capazes de produzir efeitos

de grande interesse para a linguagem poética.

Assim, registram-se coisas diversas: pessoas caminhando,

automóveis esparramando poças de lama, manchas de

edifícios passando rapidamente – o que se queira e o que

se tenha à mão.

O autor presenciou recentemente uma das mais es-

tranhas técnicas de filmagem. Foram filmados apenas

fotogramas isolados. Cada fotograma, ou por vezes

alguns fotogramas, focava apenas um objeto diferente.

O filme era breve, talvez vinte ou trinta segundos, mas

foi uma das mais extraordinárias experiências vividas

pelo autor.

Visto e meditado, não seria tão estranho; mas, antes, inte-

ressantíssimo e excitante.

É preciso frisar que os acontecimentos não se conservam

imóveis. É praticamente impossível mantê-los no mesmo

39

lugar o tempo suficiente para fazer qualquer registro com

a duração desejada. Mas o corte entre os planos ajuda a

produzir continuidade na sequência a que não seja possí-

vel dar duração suficiente.

A experiência foi registrada para que se pudesse usá-la

em momento oportuno. Ao final de certo tempo, o autor

concluiu que o momento não era oportuno, mas a expe-

riência, sim.

2

Se parece consigo mesmo separado em pedaços.

Dentre os vertebrados, a faca é o único que possui duas

vidas: uma em cada extremidade.

Atravesso a rua. A rua me atravessa.

Falamos as mesmas coisas de maneiras diferentes – so-

mos praticamente a mesma pessoa quando acordamos,

nunca quando dormimos –, se é que falamos de manei-

ras diferentes.

40

Sobras do lugar onde resíduo.

Nu, entre os estranhos.

Quantos zeros eram?

Borboletas & Scanias.

O coração dispara como um rifle.

A morte não vai a lugar algum.

Há muito tempo não digo uma palavra./ Há muito tempo

não ando pela rua./ Há muito tempo não sei mais o meu

nome./ Há muito tempo deixei de respirar./ Minha cabeça

agora boia/ numa panela de feijão.

Finesse & delitos light.

Tudo conta ponto contra.

41

Cuspo duas vezes no chão e já não estou só.

Entre outros truques e troças de salão, grasnam e sacole-

jam os bundalhões fofos.

Junkies em horário de pico.

Milagres sob encomenda.

Um lirismo contido. Uma comoção sem concessões. O

princípio da economia. A tragicidade seca e realística. O

cálculo preciso dos efeitos. A superposição planejada de

estilhaços. Poetas de todo o mundo: puni-vos.

Deserto de estimação.

Pássaros trincam. Carneiros explodem.

Todo mundo atrasado/ pra uma festa que nunca/

vai acontecer.

42

Dinossauro de louça.

Fezes, no plural.

Anestesistas & açougueiros.

Samba-canção no banheiro químico.

Uma velha geladeira consola três garrafas vazias.

Todos dormem./ Chaminés expelem/ o seu pólen.

Arara cult.

Lombrigas & colibris.

Doar os órgãos. Vender a alma.

Um grande poeta inglês do século passado retrasado.

43

Comete-te a ti mesmo.

Submonstro.

Barata oficial.

Consultar as horas ao dicionário.

Um anjo porco, desses que vivem de sobras.

O exílio mora ao lado.

Roupas enforcadas no varal.

Sonoridade. Rinoceronte.

A água, de longe, azul.

O azul, de perto, azul desperto.

44

Equipamentos de última geração calculam a área útil

do inferno.

Noite ácida. Chuvas a fio.

Cobra pompom.

Esquifes decorativos.

Ilha brilha. Ir abri-la.

HIV FM.

Cidades inéditas.

Signos em cativeiro.

Orla. Casas correndo. Pequenos intervalos entre. Um

susto branco.

45

Universo retroativo.

Não se sabe o que se sabe, soube. Não se sabe o que se

sabe sobre.

A questão do riso em Zacarias: uma análise fenomenológica.

Ao redor, roedores.

Alguém desvela seus sonhos: não ouço palavras, apenas

o ruído constante do sono enquanto a cidade desperta

com o afago do tráfego.

Um buraco com um abismo dentro.

Domingo de sol. Crianças e sorvetes derretendo.

Durante muitos anos/ o meu maior sonho/ era comer a

bunda/ da Mara Maravilha.// O tempo passou/ e acabei

não comendo a bunda/ da Mara Maravilha.

46

Fadas? Pernilongos.

Ando pela cidade/ fingindo estar apressado/ para que não

percebam/ que vou a lugar nenhum.

Bambis & zumbis.

Do lado de lá pra quem olha de lá.

O herói não tem cara de melhores amigos. Talvez não

esteja mesmo contente ou considere sorrisos em foto-

grafias algo um pouco forçado, meio propaganda de cre-

me dental. Ou seja, de quem acha que os dentes servem

apenas para sorrir.

As árvores sujas do Centro.

Nuvens cobiçam o azul e se dispersam.

Siga aquele mosh!

47

Conforme imaginamos, não era nada do que imaginávamos.

Aqui. Sob o céu de abril. Produzindo lixo. Engordando.

O mundo dá muitas voltas. Não consegue ir direto

ao assunto.

Os desastres são sempre os últimos a saber.

Diz que já não há mais nada que se possa ver ou tocar.

Diz que já não há mais rumos, rotas ou colisões. Diz que

na esquina alguém espera de mãos abanando.

Natureza-morta com bananas e granadas. Óleo sobre

tela, 35 x 46 cm.

Ouço sempre as mesmas músicas, vejo sempre os mes-

mos filmes: com o som bem baixo, como se dormissem.

Artigos para trapaceiros.

48

Troco o dia pela noite, a noite pelo dia e não peço di-

ferença. Troco os passos e tropeço em meus próprios

sapatos.

Aplausos dependurados no teto.

Cortar a boca fora. Engoli-la com os olhos.

Bruno Brum disse:

É por muito pouco que se escapa. É por muito pouco que se

é pego.

Ninguém precisa de poemas. Todo mundo precisa

de chupeta.

Salientamos que os espectadores devem manter-se abai-

xados, de forma a não interferir no trabalho dos fotógra-

fos e cinegrafistas.

Mastigo e cuspo, uma a uma, as sementes. E em meu

jardim florescerão serpentes.

49

O vizinho mala do 202 insiste em ouvir Djavan no do-

mingo às nove da noite. O vizinho mala do 202 sou eu.

Coisas que não existem, por exemplo.

Endereços. Adereços.

Quinta-feira, 06/01/2011: hoje o caixa eletrônico me de-

sejou um feliz aniversário.

O pensamento cessa. Transfixa uma ideia.

Não se cruza duas vezes a mesma porta.

Me viu e foi logo dizendo: Sou uma carta não lida, um

bilhete perdido na chuva. Tentei encontrar algo que eu

também pudesse ser. Um símbolo, uma imagem. Nada.

E eu, eu sou o demônio. Qualquer dúvida me liga.

50

Aerovias

Os aviões veem

a cidade inteira

de uma vez e sobre

voam as casas

pedindo atenção.

Peço a Deus

todas as noites

pelos aviões

que não têm lar.

51

Meu ex-cachorro

Meu ex-cachorro se parecia comigo.

E isso é tudo que posso dizer.

Ele se parecia comigo e eu não me parecia com

[ninguém.

Ou melhor, me parecia com ele.

Durante anos fomos felizes assim.

Mais que a ração sabor galinha com legumes,

nossa semelhança nos alimentava.

Nunca houve nada de errado nisso.

Uma dúvida sequer.

Por muito tempo essa semelhança

nos tornou um pouco melhores.

Ou simplesmente nos fez parecer

um pouco melhores, não importa.

O que importa é que meu ex-cachorro

já não se parece mais comigo.

E eu não me pareço mais com ninguém.

52

Discurso por ocasião de um congresso internacional de pessoas jurídicas

Nunca conversei com uma empresa.

As empresas estão sempre ocupadas e não costumam

falar com estranhos.

Nunca trabalhei em uma empresa.

As empresas almoçam todos os dias no self-service mais

próximo e falam diversas línguas com perfeição.

Nas empresas há pessoas que seguram copos de uísque

como se segurassem caralhos.

Nas empresas há pessoas que se masturbam no banheiro

no horário do almoço.

Trabalho na mesma empresa há muitos anos. Dormimos

na mesma cama e todas as noites ela abre as pernas

para mim.

As empresas estão sempre abertas e de bom humor.

As empresas sempre dizem bom dia, boa tarde, boa noite.

Há sempre muitas empresas à disposição quando preciso,

por isso não me preocupo.

As empresas dizem todos os dias que não devo me pre-

ocupar, mas eu já não me preocupava bem antes de elas

dizerem isso.

53

As empresas sabem todos os meus segredos, mas não os

revelam a ninguém.

As empresas sempre sabem o que fazer em qualquer

situação.

Por isso não me preocupo.

Há pessoas que insistem em discutir o sexo das empresas.

E também as que preferem não tocar no assunto.

Empresas nunca ficam sem assunto. São capazes de con-

versar durante horas sobre qualquer coisa.

Empresas nunca perdem o sentido ou a razão.

Empresas nunca se atrasam.

Todos sabem onde vivem as empresas. Elas estão sempre

abertas e de bom humor.

Trabalho na mesma empresa há muitos anos e até hoje

não sei o seu nome, função, razão social ou CNPJ, mas

não a culpo por isso.

As empresas estão sempre ocupadas, todos os dias, in-

cluindo finais de semana e feriados religiosos.

Empresas possuem bordões e usam sempre as mesmas

fantasias, como os super-heróis.

Empresas acabam e recomeçam todos os dias, como as

novelas e os seriados.

54

Trabalhei em uma empresa durante dezoito semanas e

faltei todos os dias.

Eu sei como funcionam as empresas, mesmo sem nunca

ter estado nelas.

Empresas sempre funcionam.

Há pessoas que se dedicam ao estudo do comportamento

das empresas.

Há empresas que se destacam por apostar no potencial

das pessoas.

Geri diversas empresas imaginárias na infância. Nenhu-

ma faliu.

As empresas podem ser de diversos tamanhos, como os

cães, as pizzas e as estrelas.

Todos os dias acordo cedo e caminho até a porta de uma

empresa, mas não entro.

Não tenho uma ideia clara do que possa ser uma empresa.

Algumas empresas se parecem com famílias.

Algumas famílias se parecem com empresas.

Especula-se a existência de empresas em outros planetas

do Sistema Solar.

Estima-se que fóssil com idade aproximada de cinquen-

ta mil anos possa pertencer à mais antiga empresa do

mundo.

55

Empresas sempre dizem a verdade.

Empresas nunca se divertem.

Me lembro com nitidez da primeira vez em que conheci

uma empresa.

Não costumo falar com empresas estranhas.

Nunca pisei em uma empresa.

Empresas não falam sozinhas.

Meu primeiro presente de aniversário foi uma empresa.

A maternidade onde nasci era na verdade uma empresa.

Algumas pessoas conversam com empresas como se fos-

sem pessoas.

Algumas empresas conversam com pessoas como se fos-

sem empresas.

Nunca conversei com uma empresa.

Nunca conversei com uma pessoa.

56

Outro lugar

As pessoas saem para se divertir.

Depois resolvem ir embora.

As pessoas resolvem seus problemas.

Depois precisam ir embora.

As pessoas voltam para casa.

Depois saem para se divertir.

As pessoas ficam um tempo paradas.

Depois começam a se mexer.

As pessoas sabem o que querem.

Depois não se lembram de nada.

As pessoas dizem o que pensam.

Depois permanecem caladas.

As pessoas sabem onde pisam.

Depois vão ficando para trás.

As pessoas constroem suas casas.

Depois arranjam outro lugar.

57

Os desertos de sal

A ideia era dizer algo

sobre os desertos de sal.

58

Antes

59

Depois

60

Cinco considerações ao invés de

O quadrado é o inverso do quadrado.

O círculo, o inverso do círculo.

Um rosto, círculos e quadrados sobrepostos, o inverso do

[rosto.

Nítido: seus limites nas bordas do inverso.

O inverso ao invés do inverso.

61

Contínuo

A casa, então, tornou-se apenas um lugar distante.

62

O cameraman só pensa em voltar para casa

A menina que chora cacos de vidro

apareceu mais uma vez na tevê.

Apareceu e muitos choraram com ela.

Seus olhos ainda estão inteiros,

suas lágrimas ainda estão no lugar.

A menina de vidro chora e assoa

o nariz em um lenço branco.

Apareceu e muitos sonharam com ela.

Suas lágrimas se parecem com pequenos olhos

de vidro escondidos sob suas pálpebras,

embora não sejam.

Seus olhos ainda estão no lugar,

suas lágrimas ainda estão inteiras.

A menina que chora cacos de vidro

me parece triste e assustadora.

Suas órbitas estão vazias.

Não saberia bem por onde começar

se acaso me pedissem alguma explicação.

O cameraman só pensa em voltar para casa.

Talvez eu troque de canal.

63

Sido visto

Nenhum registro

do que vi.

Nenhum vestígio

de onde estive.

O meu indício

é, insisto,

somente o fato

de ter sido

visto vivo.

64

Acordado

Dormir hoje,

acordar amanhã.

Dormir amanhã,

acordar depois.

Dormir e não

acordar mais.

Acordar e não

dormir mais.

E continuar

dormindo.

E continuar

acordado.

E depois não

continuar mais.

65

Croqui para um poema-objeto

66

Mudou-se

Mudou-se.

(Não sabia ao certo o que dizer)

Não existe o número indicado.

(quando chegasse.)

Ausente.

(Além do estoque de palavras previamente selecionadas,)

Recusado.

(alguns gestos vagos)

Endereço insuficiente.

(e o som do vento batendo)

Desconhecido.

(contra a vidraça.)

67

Composição para o ar

O fogo é mais líquido

que o sólido sólido,

no entanto não resiste

ao líquido mais sólido

que o líquido líquido

ar.

68

Apenas um porco

Na interminável tarde

de calor que mela e mata,

preso ao meu corpo tombado

sobre o carpete da sala

de onde pego, por vezes,

um suco ou um copo d’água

ao alcance das minhas patas,

sou apenas um porco

de cueca e ressaca.

69

Medida

Vivo o que se pode chamar de uma vida média.

Na escola, sempre me esforcei para alcançar a média.

No trabalho, sempre fui um funcionário médio.

Meu desempenho nos esportes nunca excedeu a média.

Fui um marido médio, um amante médio, um filho

[médio.

Sou um sujeito de mentalidade mediana.

Com alguma sorte, me mantive na média.

Tenho um fôlego de alcance médio.

Fico constrangido com a possibilidade de ultrapassar a

[média.

Nunca esperei das pessoas nada além da média.

Penso o que pensa o brasileiro médio.

Antipatizo com aqueles que pairam acima da média.

Meus medos e receios sempre estiveram dentro da

[média.

Meus sonhos de consumo nunca fugiram à média.

Meus desejos e fantasias estão todos na média.

Os meus ossos, se bem organizados, caberiam numa

[caixa de tamanho médio.

70

Evisceração

A cada dia

restar-se.

71

Fragmentos de um sonho

Noite sem fuga ou segredo. Carros trazendo suspeitos.

Corpos dobrados ao meio. Vespas em meu travesseiro.

72

Fragmentos de uma sombra

O ar, turvo, se mistura à pouca luz da sala.

Detrás da cortina ouvir o tráfego na manhã de terça-feira

e assobiar uma valsa como quem enlouquece

numa praia muito limpa, numa rua muito clara.

73

Acerto

Dog, primo torto de um outro,

Facínora, adentra o saloon

à procura de algo que lá

perdera muito tempo atrás.

(Muito se perde entre aquelas

mesas postas todos os dias.)

Não contaria com a sorte:

as boas vindas foram dadas

por um bando de vira-latas

armados até os dentes.

74

Seis improvisos

1

Amanhã, ao sair de casa para o trabalho,

pergunte à primeira mosca que encontrar

pelo caminho algo sobre a forma

e a essência das cidades decompostas.

Anote a resposta e guarde-a consigo;

poderá ser de grande serventia no futuro.

75

2

Esse mundo não é meu.

Esse mundo é dos anjos transformistas,

das crianças selvagens

e dos cachorros mancos.

76

3

Pela terceira vez tomamos o caminho errado.

Sem alarde, redesenhamos o mapa de forma a ajustar

nossa atual posição à rota pretendida.

77

4

Minhas roupas estão ficando velhas.

Meus chinelos estão ficando lentos.

Já não me lembro onde deixei meus retratos.

78

5

Nenhuma rodoviária é feliz.

79

6

Depois de fazer sumir a plateia,

o mágico transforma a si próprio

em um grande cetáceo, se senta

à beira do palco e canta para o auditório vazio.

Ao final, se emociona e chora.

80

Dez minutos

Um desconhecido

me pergunta as horas.

Faltam dez minutos.

81

Cifra

Uma época não é

necessariamente um

conjunto de dias, meses

ou anos, podendo ser

medida em horas, minutos,

segundos, o que sugere

muitas épocas em um

mesmo dia, mês ou ano,

ou mesmo em uma mesma

hora, minuto ou segundo.

Uma época não

é necessariamente

um conjunto de ideias.

82

Há pouco

Escorrendo

sob a porta,

coisas que

– pouco a pouco –

jogam fora

a si próprias.

83

Recorte

Afastar-se de um objeto qualquer

até que se possa vê-lo por inteiro.

Afastar-se mais,

até que se confundam suas formas.

Afastar-se ainda mais,

até que se torne pequeno, quase invisível.

Afastar-se, afastar-se,

até que suma por completo.

Continuar se afastando

e desaparecer lentamente.

84

Muitos

Muitos falando ao mesmo tempo.

Muitos tentando dizer alguma coisa ao mesmo tempo.

Muitos, ao que parece.

Muitos ao mesmo tempo.

85

Bruno Brum em ritmo de aventura(Cronologia de vida e obra)

No Oriente, às vezes os poetas são presos – uma espécie de

elogio, já que sugere que o autor fez algo tão real quanto um

roubo, um estupro ou uma revolução.

Hakim Bey

1981 – Nasce, em meio a forte nevasca, na madrugada

do dia 13 de janeiro, em Belo Horizonte. Intelectuais e

jornalistas promovem um ciclo de debates saudando a

chegada do jovem poeta.

1983 – Já demonstrando expressivo talento para a retóri-

ca e a oratória, destaca-se no torneio interno de tênis de

mesa do liceu onde concluiu o curso primário. É conde-

corado com a medalha de honra ao mérito oferecida pela

Associação Filatélica de Minas Gerais.

Bar do Ponto, na esquina da rua da Bahia com a avenida Afonso Pena: um dos mais frequentes refúgios do poeta.

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1984 – Decide abandonar a casa dos pais e instalar seu

ateliê na rua da Bahia, região central da capital mineira,

reduto de artistas, boêmios e prostitutas.

Posando em seu ateliê. Circa 1984.

1985 – Passa a colaborar regularmente com jornais e

revistas de todo o Brasil. Inicia a correspondência com

Torquato Neto, manifestando-lhe sua admiração.

1986 – Começa a frequentar a roda literária do Café Es-

trela, que se reúne em volta de Edgard Braga, Mário Reis

e Mário Faustino.

1987 – Em jantar oferecido em sua residência a Abgar

Renault, Emílio Moura, Waly Salomão e Augusto Frede-

rico Schmidt, lê, em primeira mão, seu primeiro poema

em prosa.

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1988 – Os irmãos Tapajoz musicam e gravam o poema

Vai que eu vou.

1989 – Presta concurso para a Reserva de Oficiais da Ma-

rinha Brasileira, classificando-se na primeira colocação.

Paul Valéry publica um epigrama na revista Le Parnasse

Contemporain, notificando o fato. No prefácio ao poema,

escreve: “…et l’infini terrible effara ton oeil bleu”.

1990 – Lê Tintoretto, Giambologna e Parmigianino. Anos

de meditação sobre a técnica do verso.

1991 – Bacharela-se e viaja para a Ásia Central. Falece

Gustavo Capanema.

1992 – Publica sua primeira Antologia Poética, com poe-

mas e manifestos escritos entre 1982 e 1992. O livro é su-

cesso de crítica e de público, esgotando a primeira edição

em pouco mais de 15 dias. “Caramba!”, exclama o autor.

O poeta com seus companheiros dos tempos da Marinha.

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1993 – Ano apontado por diversos especialistas como

o despertar da consciência mística e artística do poeta.

Contrai laços matrimoniais em cerimônia reservada para

parentes e amigos próximos.

1994 – Compõe no Alabama uma série de canções de câ-

mara com o maestro Carlos Gonzaga. Declina do Troféu

Juca Pato.

1997 – Embarca para a Europa no mês de setembro. Em

Paris, aprofunda o contato com Eilert Pilarm, iniciado

dois anos antes, e conhece outros músicos de vanguarda.

A passagem pelo Alabama rendeu, além das aventuras, inúmeras parcerias musicais.

2000 – Obtém a primeira colocação no concurso de

versos latinos sobre o tema Quae tibi, quae tali reddam

pro carmine dona?

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2002 – Publica o ensaio Conselhos aos jovens literatos,

motivo de muitas críticas e polêmicas no meio artístico.

Pierre Reverdy o acusa de plagiário e falsificador.

2005 – Levando suas experiências poéticas às últimas

consequências, considera esgotado esse caminho e passa

a estudar os fundamentos da pirotecnia.

Posando entre os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, durante evento na capital paulista. Foto originalmente

publicada na revista O Cruzeiro.

2007 – Inicia seu debate sobre cinema silencioso e

cinema sonoro, a favor do primeiro, com Mário Peixoto,

e em seguida com a maioria dos artistas brasileiros mais

em voga, e dos quais participam Mário Pedrosa e mada-

me Falconetti.

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2008 – Responde a inquérito em que é acusado de subver-

são. Em sequência, é preso embriagado em uma casa de

jogos e retoma a atividade literária.

Bruno Brum, três dias antes de seu desaparecimento: recostado numa poltrona, olha estoicamente para o nada.

2010 – É visto desacompanhado em um show do cantor

Alexander Lenard e desaparece em seguida1, praticamen-

te ignorado pelo grande público brasileiro, mas rodeado

de verdadeiro halo místico aos olhos de milhares de eu-

ropeus e pranteado por seus amigos pelo mundo afora.

1 Essa informação seria desmentida poucos meses depois, em

um blogue literário: http://saborgraxa.wordpress.com/sumico-

-nao-passou-de-um-susto/. Acesso em 06/11/2010.

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Sobre o autor

Bruno Brum nasceu em Belo Horizonte, em janeiro de

1981. É autor dos livros Mínima idéia (2004) e Cada

(2007). Tem textos publicados em diversos periódicos

brasileiros, em mídia impressa e virtual. Edita, desde

2005, o blog www.brunobrum.net.

E-mail: [email protected]

Este livro foi o vencedor do Prêmio Governo de Minas

Gerais de Literatura, na categoria Poesia, edição de 2010.

Esta edição de MASTODONTES NA SALA DE ESPERA foi composta

em Pontifex e Syntax pela br1 Design.