matéria Pina
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Transcript of matéria Pina
A aula havia acabado mais cedo e corri para pegar o ôni-
bus. Eram 16h15, o coletivo estava inicialmente vazio e foi fá-
cil conseguir meu lugar na janela. Durante o caminho de vol-
ta para casa pensei na possibilidade de algo surpreendente
me acontecer e eu conseguir finalmente desencalhar uma
matéria para dar o pontapé inicial ao projeto de conclusão
de curso que estava empancado. Estava indo em sentido a
Boa Viagem e logo na ponte do Pina o congestionamento
era de dar dó das pessoas que estavam em pé espremidas
umas nas outras. Trânsito em Boa Viagem é normal até em
horários fora-pico, como era o caso, mas os carros simples-
mente não andavam, e isso era estranho. Dois estudantes de
O dia em que o Pina virou Bagda
i
colégio conversavam do meu lado sobre
as mais infinitas baboseiras e minha
finita paciência ia se esgotando.
Ao chegar na avenida Herculano
Bandeira os carros começaram a ser
desviados por viaturas policiais e mais
a frente havia vários ônibus vazios esta-
cionados. Algumas pessoas desistiram
de esperar e desceram para ir a pé, in-
clusive os dois camaradas do meu lado
(ufa!). Não demorei muito para desistir
e descer também. Ia provar um vestido
em uma loja onde minha avó estaria me
esperando. Para evitar mais transtornos
resolvi ir andando já que a loja ficava ali
perto.
No meio do caminho avistei uma
fumaça preta. Pensei que fosse um in-
cêndio, mas a falta de bombeiros, a pre-
sença dos carros de polícia e a gritaria
me levaram a conclusão de se tratar de
um protesto.
-Devem ser os professores, de novo,
querendo o reajuste que o Governo não
quer dar.
Fui me aproximando da fumaça.
Nenhum carro passava, a polícia se
Pensei cá comigo. As pessoas es-
tavam lutando pela liberdade da mul-
her. O fogo em pneus e a interdição
da avenida foi a forma mais eficaz de
chamar atenção da população. Nada
mais justo. Quem daria importância a
uma moradora de uma comunidade
pobre que supostamente foi presa in-
justamente? Ninguém. A não ser que
essa prisão causasse um incômodo,
direto ou indiretamente. E foi isso que
aconteceu. A via fechada, ônibus e car-
ros parados, ninguém voltava para casa.
E ali, sem ter outra opção, teriam que
dar ouvidos aos manifestantes. Logo
eles conseguiriam a entrevista dese-
jada. Não sei se ao bolar o plano dessa
manifestação eles chegaram a pensar
que essa decisão poderia ser um tiro no
pé. Dependendo da abordagem que a
imprensa utilizasse nas matérias, pode-
riam tanto conseguir o apoio da opin-
ião pública e assim a soltura da mulher,
como serem taxados de traficantes e
baderneiros . E no caso dessa história, o
segundo caso foi o que aconteceu.
Cheguei em casa sem grandes
aproximava, ouvi estouros e a multidão
gritava exibindo faixas com frases que
não conseguia ler devido a minha mio-
pia e ao meu astigmatismo. Cheguei
bem no meio da confusão e não sabia
o que fazer, se passava ou se ficava. Meu
maior medo era uma bala perdida. E eu
tinha passado o dia inteiro falando de
morte e assombração, era melhor nem
arriscar. Perguntei a uma moça que es-
tava segurando uma criança sentada
em cima de uma:
- Moça, que negócio é esse aí?
- Ah! A polícia veio ontem pegar
uma mulher que vendia droga e levou
por engano a vizinha dela. Aí eles tão
protestando.
- Ah... Mas vem cá... eles tão deix-
ando a gente passar, na moral? Tem
perigo não?
- Não, tem não, só querem entre-
vista mesmo.
- Obrigada!
Tranquilizada pela cidadã, segui o
meu caminho.
- Que drama!
Trecho da matéria do JC online“ Testemunha narra pelo twitter horas de tensão em protesto no Pina”
problemas, a não ser minha avó ter me obrigado a provar 10
mil vestidos e pondo defeitos em todos. Enfim, ao chegar em
casa, chequei as novidades mais importantes do dia dos artis-
tas. Meu companheiro de projeto, Luiz, veio logo falar comigo
para me deixar a par das novidades de sua (tentativa de enga-
tar uma) vida amorosa. No meio da conversa contei da minha
aventura. Por dentro de todas as novidades do mundo virtual,
Luiz me informou que esse era o assunto mais comentado do
Twitter e que inclusive um cara estava narrando o episódio
ao vivo.
Não sou de usar Twitter, mas havia criado um perfil espe-
cialmente para receber as fofocas em primeira mão. Fui checar
o Orkut desse garoto. Um tal de Diogo Barreto, pré-candidato
a deputado estadual pelo PMDB e recheado de amigos in-
fluentes. Ele começa assim: “Estou fechado há mais de uma
hora em frente a um protesto no Pina. Tive o carro cercado e
queimaram pneus ao meu redor”. Ele segue seu relato com:
“Consegui salvar o carro e esconder minha mãe e namorada
numa loja. Arrancaram uma árvore e fizeram uma fogueira”.
Até aí tudo bem, eis que ele começa a descrever um
cenário totalmente fora da realidade: “A manifestação segue,
a 10 metros da vitrine da loja onde estou. Por enquanto não
há violência física. Só o fato de sermos reféns”. Vale lem-
brar que ninguém o obrigou a se trancar na loja, ou seja, ele
não era refém de ninguém. Diogo continua: “Traficantes
estão usando crianças de escudo e tornando a cidade um caos.
Como está a Agamenon”.
Ele segue sua história contando a chegada da tropa de
choque, a formação de um verdadeiro “campo de batalha
urbano”, a dificuldade de respirar por causa da fumaça, até a
construção de uma barricada no fundo da loja para se prote-
gerem. O fato foi que a comunidade resolveu protestar, fechou
uma avenida ateando fogo em pneus, árvores e afins, impediu
os carros de passarem, a tropa de choque chegou para resolver
a situação, e os bombeiros para apagar o fogo e pronto.
Mas não cabe a mim analisar a postura do cidadão. Ele
tem todo o direito à liberdade de expressão. O problema de
tudo isso foi o portal JC Online divulgar uma matéria dando
voz ao Diogo Barreto, enquanto ele ainda estava trancafiado
em seu bunker e utilizando seus comentários pejorativos
O arquiteto Diogo Barretto presen-ciou o início do protesto que interdita há horas a Avenida Herculano Bandeira, no Pina, uma das principais vias de li-gação entre a Zona Norte e a Zona Sul do Recife. Em seu perfil no Twitter, Bar-retto descreve como uma guerra urbana a manifestação que se iniciou por volta das 16h40 da tarde desta quinta-feira e já entra pela noite, deixando o trânsito completamente engarrafado.”
como fontes para informar aos leitores
sobre o ocorrido.
O uso de redes sociais, Twitter e afins
como fontes é legítimo quando os da-
dos compõem a matéria, mas não como
fontes exclusivas, sem apuração dos
dois lados da história. Isso vai de encon-
tro aos princípios éticos do jornalismo,
os consumidores da informação devem
abrir os olhos e agir de maneira crítica
ao uso indiscriminado e irresponsável
dessas ferramentas. A globalização das
informações, proporcionada pelos
meios tecnológicos, facilitou o acesso
ao conhecimento e à oportunidade de
exprimir os mais diversos pensamentos.
Mas um meio de comunicação “sério”,
usar uma fonte tendenciosa e publicar
na internet como uma verdade, é in-
cabível.
Mais tarde descobri que a mulher
presa injustamente se tratava da dona
de casa Jacilene Araújo Cavalcanti, 23
anos, que foi levada à Colônia Femi-
nina do Recife e autuada por tráfico de
drogas. Não sabemos muito mais sobre
Jacilene, mas sabemos que Diogo Bar-
retto foi escoltado pela polícia e chegou
seguro em casa. Me pergunto também
se um cidadão comum, sem grandes
influências conseguiria um tratamento
VIP desse.
E no final quase todos conseguiram
o que queriam. Os manifestantes
conseguiram a entrevista, os policias
conseguiram controlar o protesto com
bombas de efeito moral e balas de tiro
de borracha e assim liberar o trânsito;
os bandidos aproveitaram o engarra-
famento para assaltar os motoristas e
o nosso pré-candidato conseguiu mais
alguns eleitores.