matéria poesia

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A poesia que olha o mundo A poesia pode estar bem mais perto do que pensamos. Há algum tempo conheci em Mariana duas pessoas que eram aparentemente trabalhadores comuns. Júlio, um fisioterapeuta e Toninho, um chaveiro. Descobri que eles guardavam dentro de si uma inquietação diferente diante do mundo. Ambos eram poetas. Ver as coisas de uma outra forma os unia nessa condição. Essa visão tem a muito a ver com uma certa percepção encantada, que se permite rever tudo sob uma outra ótica, a ótica de quem faz poesia. Ao conhecer o fisioterapeuta Júlio César da Silva logo notei um certo jeito leve de viver que se refletia na alegria de seus pacientes. Ele me disse em uma entrevista, que virou uma conversa de quase 1 hora, que seu primeiro contato com a poesia foi em uma leitura cômica de um poema romântico aos 10 anos. Ainda na escola entrou para um grupo de teatro e continuou o contato com textos poéticos. Na companhia teatral descobriu e se encantou com Guimarães Rosa. “Ele faz o ordinário, de dentro do ambiente dele. E aquilo ultrapassa as fronteiras, que leva a cultura de uma forma tão bonita, tão poética e tão popular” disse Júlio. À partir desses estímulos, começou a escrever frases soltas em uma agenda e depois a juntá-las formando textos que falavam sobre as suas vivências. Essa vontade de escrever o acompanha até hoje, mas quando o perguntei se ele se considera poeta a sua resposta foi uma surpresa pra mim, disse que não. Ouvir os relatos de seus pacientes sobre suas dores interiores o movia para escrever sobre sentimentos comuns. Nada mais que o ordinário, já tão grande. Ao entrar na lojinha “Toninho Chaveiro”, próxima ao Terminal Turístico de Mariana, é possível se deparar com vários versos interessantes pregados nas parades. Foi assim que conheci a poesia do chaveiro Antônio Carlos. Em uma tarde ao som de Reflections of Life conversei um pouco com essa pessoa singular. Coincidentemente, assim como Júlio, o chaveiro bacharel em direito não se considerava poeta. Dizia escrever frases poéticas. Essa atividade de escrita começou relativamete há pouco tempo em sua vida, somente 10 anos. Toninho falava que sua inspiração vinha de muitas coisas e na maioria das vezes das mais corriqueiras. Quando alguma coisa lhe afeta ele logo pensa em como pode traduzir aquilo dentro dos seus sentimentos para o que se escreve. Munido de uma antiga Remington o amante de frases curtas aproveita o tempo de intervalo de atendimento dos clientes para criar textos. Ele falou da importância de viver as experiências da vida e de se escutar o

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A poesia que olha o mundo

A poesia pode estar bem mais perto do que pensamos. Há algum tempo conheci em Mariana duas pessoas que eram aparentemente trabalhadores comuns. Júlio, um fisioterapeuta e Toninho, um chaveiro. Descobri que eles guardavam dentro de si uma inquietação diferente diante do mundo. Ambos eram poetas. Ver as coisas de uma outra forma os unia nessa condição. Essa visão tem a muito a ver com uma certa percepção encantada, que se permite rever tudo sob uma outra ótica, a ótica de quem faz poesia.

Ao conhecer o fisioterapeuta Júlio César da Silva logo notei um certo jeito leve de viver que se refletia na alegria de seus pacientes. Ele me disse em uma entrevista, que virou uma conversa de quase 1 hora, que seu primeiro contato com a poesia foi em uma leitura cômica de um poema romântico aos 10 anos. Ainda na escola entrou para um grupo de teatro e continuou o contato com textos poéticos. Na companhia teatral descobriu e se encantou com Guimarães Rosa. “Ele faz o ordinário, de dentro do ambiente dele. E aquilo ultrapassa as fronteiras, que leva a cultura de uma forma tão bonita, tão poética e tão popular” disse Júlio.

À partir desses estímulos, começou a escrever frases soltas em uma agenda e depois a juntá-las formando textos que falavam sobre as suas vivências. Essa vontade de escrever o acompanha até hoje, mas quando o perguntei se ele se considera poeta a sua resposta foi uma surpresa pra mim, disse que não. Ouvir os relatos de seus pacientes sobre suas dores interiores o movia para escrever sobre sentimentos comuns. Nada mais que o ordinário, já tão grande.

Ao entrar na lojinha “Toninho Chaveiro”, próxima ao Terminal Turístico de Mariana, é possível se deparar com vários versos interessantes pregados nas parades. Foi assim que conheci a poesia do chaveiro Antônio Carlos. Em uma tarde ao som de Reflections of Life conversei um pouco com essa pessoa singular. Coincidentemente, assim como Júlio, o chaveiro bacharel em direito não se considerava poeta. Dizia escrever frases poéticas. Essa atividade de escrita começou relativamete há pouco tempo em sua vida, somente 10 anos.

Toninho falava que sua inspiração vinha de muitas coisas e na maioria das vezes das mais corriqueiras. Quando alguma coisa lhe afeta ele logo pensa em como pode traduzir aquilo dentro dos seus sentimentos para o que se escreve. Munido de uma antiga Remington o amante de frases curtas aproveita o tempo de intervalo de atendimento dos clientes para criar textos. Ele falou da importância de viver as experiências da vida e de se escutar o outro. “Ouvir também é um tipo de poesia silenciosa” disse o chaveiro.

Para o poeta (assim como prefere ser chamado) e professor universitário Donadon Leal a poesia chega ao escritor quando este se deixa afetar por ela. À partir daí se desenvolve um olhar sensível para o mundo. “Esse exercício que o poeta tem que fazer é o de não se deixar cair no automatismo, passar a entender que todo dia o caminho é diferente e olhar o caminho de novo” disse o aldravista. Ele também fala que a poesia pode ser encontrada em coisas minúsculas. Na ocasião da entrevista, antes de começarmos, Donadon me mostrava fotografias que havia tirado há pouco tempo de um potro mamando numa égua em pleno centro da cidade.

É no olhar atento que reside a poesia, tantas vezes já citada nesse texto. Ela vem antes da palavra, é quando o que se tem por trás dela fala por si. Para isso é necessessário se despir das vestes da racionalidade pura. As três pessoas que foram mostradas tiveram uma virtude. Certa vez Manoel de Barros escreveu sobre essa característica única a favor da poesia: “Perder a inteligência das coisas para vê-las”.

Matheus Santiago