Matos, Raquel e Machado, Carla. Criminalidade Feminina e Construção Do Gênero

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    Anlise Psicolgica (2012), XXX (1-2): 33-47

    Criminalidade feminina e construo do gnero: Emergncia e consolidao

    das perspectivas feministas na Criminologia 1

    Raquel Matos* / Carla Machado**

    *Faculdade de Educao e Psicologia da Universidade Catlica; **Escola de Psicologia,Universidade do Minho

    Neste artigo, so analisadas as perspectivas feministas na criminologia, em particular, os discursossobre criminalidade feminina e construo do gnero. Parte-se de uma viso ampla sobre feminismose construo de conhecimento e apresenta-se uma reviso histrica da emergncia e da consolidaodas perspectivas feministas na criminologia. Discute-se em particular o argumento feminista de quea construo social do gnero pauta os percursos de vida das mulheres que transgridem, e se reflectena resposta formal e informal a essas transgresses. So analisadas as principais crticas tecidas pelasautoras feministas ao que designam de discursos tradicionais sobre mulher e crime e as propostas queapresentam de reconstruo desses discursos.

    Palavras-chave: Criminalidade feminina, Gnero, Perspectivas feministas.

    FEMINISMO(S) E CONSTRUO DE CONHECIMENTO

    A emergncia de estudos cientficos que conceptualizam a varivel gnero e lhe conferem umpapel de destaque, quer na criminologia quer noutras reas de conhecimento, indissocivel domovimento feminista. Aps uma primeira vaga, cujo incio geralmente situado na segundadcada do sculo XX, o feminismo ressurge nos anos sessenta associado a movimentossociopolticos de libertao (Messerschmidt, 1995)2. nesse contexto que jovens mulheres seindignam ao perceber que os seus companheiros de luta libertria as vm apenas como assessoras,

    quer de trabalho quer de prazer sexual. Essa indignao, associada s ideias de Simone deBeauvoir, que analisa no seu livroLe Deuxime Sexe (1952) o tratamento generalizado da Mulher

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    1 Este texto resulta da adaptao de um captulo de uma obra j publicada [Matos, R. (2008), Vidas Raras deMulheres Comuns. Percursos de vida, significaes do crime e construo da identidade em jovens reclusas.Coimbra: Editora Almedina]. A criao do texto original enquadra-se no desenvolvimento de uma tese dedoutoramento (com apoio da Fundao para a Cincia e a Tecnologia SFRH/BD/8664/2002). Para prestarhomenagem Doutora Carla Machado no poderia deixar de seleccionar um texto construdo em estreitacolaborao entre ns, naquela que foi a sua primeira orientao de doutoramento. Ao recordar a suaorientao, deixo o testemunho de uma grande lio e de um exemplo a seguir.

    2 Embora a segunda dcada do sculo XX rena maior consenso enquanto data da primeira vaga do movimentofeminista, sugere-se que esta vaga tem incio na dcada de trinta do sculo XIX com o movimento

    abolicionista no contexto norte-americano (Messerschmidt, 1995).A correspondncia relativa a este artigo dever ser enviada para: Raquel Matos, Professora Auxiliar, Faculdadede Educao e Psicologia da Universidade Catlica Portuguesa, Rua Diogo Botelho, 1327, 4169-005 Porto.E-mail: [email protected]

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    como sendo o Outro, servem de inspirao para o (re)florescer do movimento feminista (Rafter& Heidensohn, 1995).

    Perante a opresso exercida sobre a mulher na sociedade e a negligncia das questes de gneronas mais diversas reas de conhecimento, o feminismo rapidamente se torna um movimento comfortes preocupaes epistemolgicas e polticas que se prope, de forma genrica, terminar coma hegemonia masculina. Progressivamente, o significado de feminismo comea a expandir-se,deixando de corresponder apenas luta das mulheres pela igualdade. Como explicam Rafter eHeidensohn, aquilo que comeou por ser um movimento igualitrio de libertao da mulher

    expandiu para a incluso do reconhecimento do gnero como elemento bsico das estruturassociais por todo o mundo (1995, p. 4).O movimento com preocupaes epistemolgicas e polticas acaba por dar lugar a uma

    multiplicidade de perspectivas que, se por um lado apresentam ideias centrais comuns, cujoexemplo fulcral a postura crtica, de marcada oposio subjugao das mulheres e outros menos

    poderosos nas sociedades patriarcais, por outro lado se posicionam de forma divergenterelativamente a questes particulares, como a prpria conceptualizao da opresso da mulher oua posio epistemolgica assumida. No ser por acaso que nas inmeras referncias da literaturaao feminismo predominam designaes como perspectivas feministas ou feminismos emdetrimento do termofeminismo.

    PERSPECTIVAS FEMINISTAS NA CRIMINOLOGIA

    As perspectivas feministas na criminologia emergem da contestao face ausncia da mulhernos estudos da linha tradicionale face ao claro reducionismo biolgico e psicolgico patente nas

    primeiras tentativas de estudar a mulher que comete crimes. Ainda numa fase em que o termofeminismo est ausente dos textos da criminologia, diversas autoras (e.g., Heidensohn, 1968,Klein, 1976, citados por Heidensohn, 1985) tocam j os pontos-chave da crtica feminista disciplina, tecendo duras crticas aos erros fundamentais cometidos em relao mulher. Por umlado, a sua quase ausncia dos estudos criminolgicos, onde praticamente invisvel comoagressora, como vtima ou em qualquer outro tipo de relao com o sistema de justia criminal.Por outro lado, a sua presena desajustada nos estudos da criminologia, atravs da distoro das

    suas experincias transgressivas de modo a enquadr-la nos esteretipos dominantes. na segunda metade da dcada de setenta do sculo XX que, partindo das duas crticasfundamentais anteriormente descritas, se assiste a uma emergncia gradual das abordagensfeministas na criminologia. Progressivamente, cria-se na disciplina espao para a realizao deestudos que no s consideram a varivel gnero como a conceptualizam, na perspectiva feminista,de forma mais adequada.

    EMERGNCIA E CONSOLIDAO DAS ABORDAGENS FEMINISTASNA CRIMINOLOGIA

    Segundo Heidensohn (1997), a abordagem emergncia dos estudos de gnero na criminologiaimplica recuar na histria da disciplina at ao perodo da pr-histria do gnero e crime (p. 762).Este perodo corresponde aos momentos em que se realizaram por um lado ensaios vitorianossobre a vulnerabilidade da mulher para cometer crimes face sua posio social e moral (idem)

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    e, por outro lado, ensaios tericos marcados pelo reducionismo psicolgico e biolgico, bemilustrado nos trabalhos positivistas de Lombroso e Ferrero.

    Aps o perodopr-histrico dos estudos de gnero na criminologia, o seu desenvolvimentomoderno tem incio nos anos sessenta do sculo XX como um dos produtos da segunda vagafeminista. nessa altura que surgem os estudos feministas que Heidensohn (1997) designa poriniciais ou pioneiros e que consistem essencialmente na crtica aos objectos e mtodos dacriminologia tradicional ou malestream3 e na definio de um programa de trabalhos para osestudos de gnero na disciplina.

    As incurses feministas so facilitadas por mudanas fundamentais na criminologia,correspondentes emergncia do que podemos designar de discursos de transio (Matos, 2008).Se a criminologia designada de tradicional, muito centrada na etiologia do crime e nos mecanismosde controlo, sempre marginalizou a teoria e a investigao feministas, assiste-se, a partir dos anossessenta, a mudanas paradigmticas correspondentes emergncia de novas perspectivascriminolgicas, mais receptivas aos trabalhos feministas e suas influncias. Trata-se de umconjunto de movimentos tericos crticos em relao criminologia positivista, includos nadesignao lata de criminologia crtica (Machado, 2000, p. 121). Cria-se assim um cenrio maisfavorvel s incurses feministas na criminologia, apesar de, segundo Gelsthorpe (1997), s nocontexto da criminologia dos anos noventa, mais aberto e diversificado do que o contexto dosanos setenta, se tornarem possveis ligaes mais srias da criminologia ao feminismo.

    Criado um contexto mais favorvel para a emergncia das perspectivas feministas no mbitoda criminologia, as suas contestaes, interesses e movimentos iniciais acontecem sobretudo

    relativamente vitimao, em particular sexual, da mulher4. E na rea da vitimao que asabordagens feministas alcanam os maiores feitos na criminologia, com um reconhecimento dasnecessidades das vtimas (ou dos menos poderosos), impensvel na criminologia tradicional.

    Importa, contudo, referir que na fase pioneira dos estudos feministas sobre o crime, algumasabordagens se centram j na mulher transgressora, na tentativa de desconstruir o argumento

    prevalecente na criminologia tradicional de que as mulheres, absoluta e incontestavelmente,cometem menos crimes do que os homens. A preocupao feminista de desconstruo desteargumento deve-se ao facto de se considerar que ele est na base da negligncia em relao smulheres na criminologia, um dos aspectos mais criticados pelas feministas nos estudosconvencionais sobre o crime. Surgem assim diversas formas de chamada de ateno para os crimescometidos pelas mulheres, com base no argumento de que a criminalidade feminina estaria aaumentar muito mais rapidamente do que a masculina. Nos anos setenta do sculo XX, os meios

    de comunicao social apresentam inmeras histrias sobre uma nova realidade social, a newfemale criminal, associando a criminalidade feminina aos esforos para melhorar a posiopoltica e econmica da mulher. Presumivelmente inspirada pelo movimento feminista, a ofensorafeminina procuraria igualdade (social, econmica e poltica) no submundo do crime, tal comoas mulheres mais convencionais perseguiriam os seus direitos em campos mais aceitveis(Chesney-Lind, 1997)5. Ao longo da dcada de setenta, figuras associadas s instncias formaisde controlo reforam a ideia de que o movimento de emancipao da mulher teria provocado uma

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    3 Designao proposta por autoras feministas para enfatizar o carcter masculino da criminologia tradicional(mainstream).

    4 Tal deve-se, em parte, ao facto de o desenvolvimento das perspectivas feministas na criminologia incluir,para alm dos contributos de acadmicos, contributos de no acadmicos, em particular grupos de combate

    violncia contra as mulheres, exemplo importante do activismo impulsionador do movimento feminista(Rafter & Heidensohn, 1995).5 Estas ideias no constituiriam uma novidade aps a primeira tentativa de relacionar a emancipao da mulher

    com a criminalidade feminina, j na primeira vaga do movimento feminista, na segunda dcada do sculo XX.

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    onda de criminalidade feminina nunca antes vista e que, ao pretender emergir em camposdominados anteriormente pelo gnero masculino, as mulheres tambm se aproximariam doshomens na rea da criminalidade. A relao estabelecida entre os movimentos de libertao damulher e o aumento da criminalidade feminina igualmente explorada por acadmicos, incluindoautoras feministas. Exemplos incontornveis so os trabalhos de Freda Adler e Rita Simon,

    publicados em 1975, que exploram, numa perspectiva feminista, a ideia do efeito crimingeno dalibertao da mulher. Ao relanarem este debate controverso, ambas Adler e Simon acabam porser contestadas pelas prprias feministas, pelo risco que as suas ideias constituam para o

    compromisso poltico do movimento.As contribuies iniciais do feminismo na criminologia abrem caminho para uma exploso deestudos posteriores, numa fase que Heidensohn refere ser de consolidao (1997, p. 774). Apsa publicao, em 1976, da obra de Carol Smart Women, crime and criminology: A feministcritique6, ao longo de vinte e cinco anos so realizadas inmeras investigaes em diversas reasde interseco entre gnero e crime, alargando o foco da mulher vtima para a incluso da mulherque comete crimes, e tambm com a realizao de estudos sobre a participao da mulher comoagente activo nas instncias formais de controlo. Estes novos estudos sobre a mulher nacriminologia, realizados nas dcadas de oitenta e noventa do sculo XX, podem ser categorizadosem dois grandes tpicos: estudos sobre mulher e crime e estudos sobre mulher e justia(Heidensohn, 1997). Os primeiros dizem respeito investigao realizada sobre o gnero e aactividade criminal apresentando a perspectiva das mulheres sobre o seu envolvimento, quer no

    crime de um modo geral7

    (e.g, Carlen, 1988), quer em formas especficas de desvincia8

    : no trficoe consumos de drogas (e.g., Mahler, 1997), na prtica de violncia em gangs (e.g., Campbell,1984, Chesney-Lind, 1993, citados por Miller, 2001), ou na prostituio (e.g., Phoenix, 2000).Surgem tambm, nesta fase, estudos sobre criminalidade mais violenta por parte das mulheres,

    particularmente sobre terrorismo (e.g., MacDonald, 1998) ou sobre homicdio (e.g., Wilczynski,1997). O outro tpico de investigao mulher e justia refere-se experincia da mulher nossistemas de justia criminal e penal. Estes estudos incidem sobretudo no modo como a mulher quecomete crimes percepcionada e tratada pelos agentes da justia (e.g., Horn & Hollin, 1997), naexperincia feminina no sistema prisional (e.g., Carlen, 1983, 1987) e, embora de forma menosrepresentativa, na mulher enquanto agente de controlo social (e.g., Holdaway & Parker, 1998).

    Os estudos feministas marcam tambm a criminologia a nvel metodolgico. Apesar de, no seumbito, se utilizarem mltiplas metodologias de investigao, privilegiam-se aquelas que

    possibilitam s participantes dar vozs suas experincias, sem determinar a priori o significadodessas experincias ou a forma de as categorizar para posterior anlise (McDermott, 2002). Nessesentido, nos estudos enquadrados pelas perspectivas feministas utilizam-se sobretudo asetnometodologias, com destaque para a observao e para as entrevistas em profundidade enquantoestratgias de recolha de dados. Exemplos incontornveis so os trabalhos de Pat Carlen, em queno s dada voz a mulheres que cometem crimes, como estabelecida uma relao nohierrquica entre elas e a investigadora, por vezes co-autoras de trabalhos cientficos (e.g., Carlen,Hicks, ODwyer, Christina, & Tchaikovsky, 1985). A questo central reclamada pelas feministasrelativamente aos mtodos da criminologia consiste na focalizao nas experincias das mulheres,

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    6 A publicao desta obra de Carol Smart considerada um marco fundamental no reconhecimento dos desafiosfeministas criminologia.

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    Estes estudos decorrem frequentemente no contexto prisional, ou quando h j um contacto das mulheres como sistema de justia criminal.8 Os estudos focalizados em formas especficas de desvincia tendem a decorrer nos contextos espacio-

    -temporais da prpria actividade criminal.

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    permitindo a sua visibilidade. As feministas propem ainda que, no mbito da criminologia, osinvestigadores sejam mais reflexivos e questionem mais as bases epistemolgicas do conhecimento(Cain, 1990/1996).

    DISCURSOS FEMINISTAS SOBRE CRIMINALIDADE FEMININA

    FEMINISMOS E DESCONSTRUO DOS DISCURSOS SOBRE A MULHER E O CRIME

    Nos discursos tradicionais da criminologia, a mulher foi genericamente ignorada ou analisadacom base nos esteretipos de gnero inerentes ao discurso social dominante. Especificamente nocaso da mulher ofensora, as feministas tm criticado a conceptualizao da criminalidade femininacom base, por exemplo, em factores biolgicos ou em esteretipos de gnero (Brown, 1998).Diversas caractersticas que nos discursos convencionais so atribudas mulher que transgride (e.g.,irracionalidade) e aos seus crimes (e.g., especificidade) tm sido criticadas pelas feministas, que

    propem a desconstruo e reconstruo desses discursos. Analisemos algumas dessas caractersticas.

    DUPLA DESVINCIA

    A mulher que comete crimes tem sido considerada duplamente desviante, por transgredirsimultaneamente a lei e os papis de gnero convencionais. Como refere Cunha (1994), a dupladesvincia atribuda s mulheres deve-se ao facto de a transgresso da legalidade que as conduziu priso ser de uma forma ou de outra concomitante com a negao das normas que definem aconduta feminina apropriada (p. 24). Tambm Chesney-Lind (1997), numa reviso histrica sobrea mulher ofensora e o sistema de justia norte-americano, revela que inicialmente as mulheresdetidas eram consideradas mais perversas do que os homens, por agirem em contradio com asexpectativas sociais de gnero. A essas detenes estaria subjacente o princpio de que a mulherque transgride deve ser detida mais por necessitar de formao moral e proteco do que por

    constituir risco pblico (Rafter, 1990, citado por Chesney-Lind, 1997). Associadas a papisdomsticos e construdas simultnea e paradoxalmente como dependentes e responsveis pelo seuambiente familiar, as mulheres que cometem crimes tendem por um lado a ser protegidas mas, poroutro lado, a ser mais punidas pelo sistema legal (Heidensohn, 1997). Subjacente construodupla da mulher desviante estar uma viso dicotmica do feminino, constituda por dois plos:o da mulher recatada, casta, domstica e maternal e o da mulher frequentadora da esfera

    pblica, devassa, descurando as responsabilidades familiares e domsticas (Cunha, 1994, p. 24).Esta concepo dualista do gnero feminino ilustrada pela descrio que Manuela Ivone Cunhafaz do contexto da recluso feminina no Estado Novo: se por um lado as exigncias que regulama sua conduta o configuram moralmente superior ao [gnero] masculino, as mulheres tornam-se,uma vez cadas no mundo desviante, quase irredimveis (idem).

    As autoras feministas so particularmente crticas face construo de uma mulher duplamente

    desviante, chamando a ateno para as suas implicaes na experincia feminina no sistema dejustia criminal. Ao serem consideradas e tratadas como duplamente desviantes, as mulheresacabam por ser tambm duplamente punidas e por sofrer particularmente pelo estigma associado desvincia (Heidensohn, 1985). As implicaes da concepo de mulher duplamente desviante

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    devem ser consideradas em duas vertentes fundamentais: por um lado, socialmente menosesperado que uma mulher cometa crimes, o que poder ter como consequncia a maior puniode uma mulher que comete o mesmo tipo de crime que um homem. Por outro lado, se uma mulhertransgride a lei, mas assegura os papis de gnero que lhe so convencionalmente exigidos, comoa maternidade, pode ser menos punida do que uma mulher que no o faa. Os estudos da linhafeminista tm confirmado estas implicaes dos esteretipos de gnero no tratamento da mulher

    pelo sistema legal, mostrando que a adeso das mulheres aos papis familiares convencionais crucial na sua experincia no sistema judicial (e.g., Carlen, 1983). Especificamente em relao

    maternidade, um dos papis fundamentais exigidos socialmente mulher, estudos feministasmostram que a punio tende a ser maior quando a mulher que transgride a lei percebida comom me (e.g., Carlen, 1983). Como argumenta Heidensohn, as mulheres podem ser tratadas pelosistema de justia criminal de forma mais dura por serem mulheres desviantes que so desviantescomo mulheres (1987, p. 20).

    ESPECIFICIDADES DOS CRIMES FEMININOS

    Nas abordagens da criminologia tradicional, a criminalidade feminina tem sido reduzida a tiposespecficos de crime, com base em esteretipos dominantes. A caracterizao estereotipada doscrimes cometidos pelas mulheres contrasta assim com uma criminalidade masculina consideradano apenas mais frequente e violenta mas tambm muito mais diversificada. Este pressuposto temlevado a que os estudos tradicionais sobre a mulher foquem apenas determinados tipos de crime,cujas especificidades so associadas figura feminina. Por exemplo Pollak, argumentando sobreuma significativa criminalidade feminina escondida, atribui mulher sobretudo crimes como oaborto ilegal, os furtos em lojas, os furtos no domiclio por empregadas domsticas ou a

    prostituio (1961, citado por Heidensohn, 1985). Subjacentes a esta ideia da especificidade doscrimes cometidos pelas mulheres esto os argumentos das teorias positivistas da criminologia,que enfatizam os determinantes biolgicos do comportamento feminino e os esteretiposassociados ao gnero. A associao da mulher a tipos especficos de crimes contribui para amanuteno dos discursos sobre o carcter individual da transgresso feminina, negando a suaenvolvente social.

    Este argumento favorvel existncia de uma criminalidade tipicamente feminina, delimitada

    de forma clara nos tipos de crime e motivaes para a sua ocorrncia, tem sido criticado pelasautoras feministas. Podemos referir, por exemplo, Carol Smart, que destaca a distoro no estudoda criminalidade feminina desde que lanou a primeira crtica criminologia. Na sua opinio,essa distoro resulta da viso estereotipada da mulher e da rejeio de factores como a exclusosocioeconmica na anlise do desvio feminino, que tende a ser atribudo a factores de ordemindividual e no social (Smart, 1990/1996). A perspectiva distorcida sobre a suposta criminalidadetipicamente feminina acarreta implicaes negativas para a mulher, nomeadamente na formacomo esta tratada nas diversas instncias formais de controlo quando comete crimes. As autorasfeministas descrevem com preocupao a forma como a viso estereotipada da mulher desvianteconduz a prticas de tratamento inadequadas no sistema de justia criminal, reforadoras decomportamentos estereotipados, principalmente nas jovens reclusas (e.g., Carlen, 1983, 1987).

    O argumento da especificidade da criminalidade feminina tem sido desconstrudo com base

    em estudos que permitem concluir acerca da heterogeneidade nas formas de transgresso da lei porparte da mulher (e.g., Matos, 2008) e estudos que mostram o envolvimento das mulheres emactividades desviantes tradicionalmente associadas aos homens, como por exemplo actosterroristas (e.g., Iles, 1985) ou violncia emgangs (e.g., Campbell, 1984, citado por Heidensohn,

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    1987). Sugere-se, nestas abordagens, que as diferenas entre homens e mulheres residemessencialmente na frequncia e severidade e no tanto no tipo de crimes cometidos. Autorasfeministas tm tambm argumentado que, se as estatsticas mostram que as mulheres tendemmenos a reincidir e a cometer crimes considerados graves ou violentos, mais correcto atribuiressas diferenas a uma estrutura diferencial de oportunidades (com a restrio no acesso da mulhera patamares hierrquicos superiores), a diferentes formas de socializao e a um controlo socialgenderizado, do que a caractersticas inatas do(a) ofensor(a) (Heidensohn, 1987).

    IRRACIONALIDADE E HETERODETERMINAO

    A construo de uma mulher transgressora que no escolhe racionalmente cometer crimes surgenos discursos tradicionais da criminologia assente em duas ideias fundamentais: a irracionalidadeda mulher que comete crimes, inerente s suas caractersticas bio-psicolgicas, e a ausncia deautodeterminao na criminalidade feminina, associada a uma suposta coaco sobre a mulher

    para a desvincia.Segundo as autoras feministas, a mulher que comete crimes tem sido representada e tratada

    como instvel e irracional nas diversas abordagens da criminologia tradicional, que justificama criminalidade feminina pela prpria natureza biolgica da mulher (Heidensohn, 1987).Relembremos as primeiras abordagens positivistas, com a proposta da mulher criminal atvicacuja natureza biolgica justifica por si s os crimes cometidos (e.g., Lombroso & Ferrero,1895/1996), e abordagens mais recentes, igualmente justificativas do crime das mulheres com

    base em argumentos biolgicos, como por exemplo os efeitos da menstruao (e.g., Dalton, 1980,citado por Heidensohn, 1997). Estas tentativas de explicao da desvincia feminina tm emcomum a ideia da irracionalidade, excluindo qualquer hiptese de escolha racional pelo desvio por

    parte da mulher. Frequentemente, estas abordagens resultam num paradoxo, evidente quando, porum lado se justifica o desvio na mulher com base em caractersticas biolgicas ou psicolgicas quelhe so intrnsecas, mas, por outro lado, se considera pouco feminina a mulher que comete crimes.As abordagens centradas na patologizao da criminalidade feminina, que excluem o desvio namulher na ausncia de patologia, escapam a este paradoxo mas no deixam de ser um exemplo dediscurso constitutivo da mulher que no comete crimes de forma racional.

    O argumento da heterodeterminao do comportamento criminal feminino tem tambm sido

    central nos discursos convencionais sobre a mulher ofensora. Considera-se nesta perspectiva quea mulher comete crimes no por escolha sua, mas coagida por outras figuras, sobretudo masculinas,que exercem poder sobre si. Este discurso tem emergido particularmente em relao aos crimessexuais, atravs do argumento de que a mulher tende a comet-los com um parceiro e porinfluncia dele (cf., Motz, 2001); relativamente ao trfico e consumos de drogas, atravs danegao de qualquer agencialidade das mulheres (cf., Maher, 1997); e tambm no caso da

    prostituio, atravs do argumento de que as mulheres so coagidas por figuras masculinas queexercem violncia sobre elas (cf., Phoenix, 2000).

    Face aos discursos sobre a mulher que comete crimes de forma irracional e heterodeterminada,as autoras feministas tm sido particularmente crticas, insistindo na importncia de entender adesvincia feminina como um fenmeno social e no individual. A sua preocupao estende-se ats implicaes que esta concepo de desvio feminino tem no modo como a mulher que transgride

    a lei tende a ser tratada no sistema de justia. A postura de Smart a este respeito evidente, quandorefere que os responsveis pelas polticas criminais, tal como muitos criminologistas, percebema criminalidade feminina como um comportamento irracional, irresponsvel e no intencional,como um desajustamento individual a uma sociedade consensual e bem-ordenada (1977, citado

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    por Heidensohn, 1985, p. 151). Outras autoras criticam tambm as teorias tradicionais porrestringirem a compreenso da criminalidade feminina a aspectos biolgicos e psicolgicos,ignorando a realidade econmica, social e poltica das mulheres que cometem crimes (e.g.,Barcinsky, 2005). As feministas procuram ento desconstruir os discursos da irracionalidade dadesvincia feminina atravs da explorao de factores de ordem social, como por exemplo amarginalizao social e econmica das mulheres, o poder patriarcal e os dispositivos informais decontrolo do comportamento feminino.

    FEMINISMOS E RECONSTRUO DOS DISCURSOS SOBRE A MULHER E O CRIME

    Para alm da crtica e desconstruo dos discursos tradicionais sobre a criminalidade feminina,as abordagens feministas na criminologia propem a sua reconstruo atravs de discursos que tmorigem em prticas metodolgicas e posies epistemolgicas distintas. Os novos discursosemergem a partir de estudos em que as mulheres encontraram a sua prpria voz, ou observadoresapresentaram as perspectivas de mulheres que assassinaram os maridos, que se prostituem, que somembros degangs violentos, que consomem cocana ou que se envolvem em formas graves decriminalidade (Heidensohn, 1997, p. 776). Trata-se de abordagens empricas que, como referimosanteriormente, conferem varivel gnero um estatuto nuclear, e procuram dar mulher quecomete crimes um protagonismo impensvel nos estudos da linha tradicional da criminologia.

    Para alm das questes de gnero serem nucleares, outras variveis como a classe ou a etnia sotambm consideradas neste tipo de abordagem (e.g., Mack & Leiber, 2005; Worcester, 2002).

    Quanto s metodologias, tendo por objecto os processos de construo de identidades de gnero,nestes estudos assume um papel relevante a anlise dos discursos construdos pelas mulherestransgressoras, olhando para o modo como os discursos dominantes so utilizados por elas parase auto-identificarem. Para tal, recorre-se com frequncia s entrevistas em profundidade, erealizam-se observaes participantes. Por vezes os trabalhos desenvolvidos combinam asobservaes e as entrevistas em profundidade com a anlise de dados provenientes de outras fontes(e.g., documentos jurdicos). Importa ainda ressalvar que tambm se recorre complementaridadeentre dados recolhidos na comunidade e dados recolhidos em meio institucional. Alguns estudos,

    por exemplo sobre trfico e consumos de drogas, incluem simultaneamente amostras de mulheresque esto na comunidade e institucionalizadas (e.g., Sommers & Baskin, 1997). Outra questo

    pertinente diz respeito ao facto de a esmagadora maioria das abordagens sobre criminalidadefeminina e construo da identidade se centrarem em amostras reduzidas. Em sntese, embora asmetodologias utilizadas sejam diversas, a maioria dos estudos mantm caractersticas essenciaiscomuns, das quais destacamos a nfase nos discursos construdos, sobretudo pelas mulheres quetransgridem, a componente etnogrfica e a utilizao de amostras pequenas.

    (RE)CONTEXTUALIZAO DA CRIMINALIDADE FEMININA

    Os diversos estudos enquadrados pelas perspectivas feministas possibilitam a recontextuali-zao da criminalidade feminina nos discursos da criminologia. Percebe-se, desde logo, que os

    crimes cometidos por mulheres se relacionam na maioria das vezes com trfico ou consumos dedrogas (e.g., Almeda, 2003), e que estas mulheres, independentemente da idade, tendem aapresentar trajectrias de vida marcadas pela recluso ou por outro tipo de institucionalizaes(e.g., Carlen, 1987; Maher, 1997). Os contextos de origem das mulheres estudadas tendem a

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    caracterizar-se por um nvel socioeconmico desfavorecido e elas tendem a apresentar um nvelreduzido de escolaridade (e.g., Maher, 1997). Outro dado emergente neste tipo de estudos dizrespeito s diversas mudanas que, com frequncia, ocorrem na estrutura familiar das mulherestransgressoras. Estas mudanas resultam, por exemplo, de sadas de casa por parte de prestadoresde cuidados, ou de outro tipo de perdas de figuras significativas (e.g., Batchelor, 2005). Nestasabordagens constatam-se com frequncia padres de violncia nos contextos familiares de ondeas mulheres provm, sendo comuns as histrias prvias de abuso, directo ou indirecto (e.g.,Batchelor, 2005; Maher, 1997). Finalmente, os estudos revelam o frequente envolvimento criminal

    de familiares das mulheres desviantes, que apresentam tambm diversas ocorrncias jurdicas epenais (e.g., Cunha, 2002; Maher, 1997; Matos, 2008; Matos & Machado, 2007).

    (RE)SIGNIFICAES DA CRIMINALIDADE FEMININA

    No obstante a pertinncia da caracterizao anterior, as asseres sobre transgresso femininae construo de identidades de gnero, emergentes da anlise de discursos de mulheres quecometem crimes, constituem o grande contributo dos estudos de inspirao feminista para areconstruo dos discursos sobre trangsresso feminina. Estas asseres emergem dassignificaes que as protagonistas do crime lhes atribuem quando constroem discursivamente o

    seu prprio desvio.

    Constrangimentos de gnero na transgresso feminina

    Quando as mulheres do significado s suas experincias transgressivas, emerge um significadocomum que diz respeito a constrangimentos associados ao gnero feminino (e.g., Burman, Brown,& Batchelor, 2003). As circunstncias genderizadas, que na perspectiva destas mulheresconstrangem os seus percursos, actuam em diferentes contextos de vida. Dificuldades a nvellaboral, de conciliao entre vida familiar e laboral, ou diversas formas de vitimao no mbitode relaes desiguais em termos de poder, so exemplos de circunstncias que as mulheresassociam simultaneamente sua condio feminina e ao seu envolvimento no crime (e.g., Almeda,2003; Burman, Brown, & Batchelor, 2003; Carlen, 1987). Estudos recentes realizados em contexto

    portugus revelam que h constrangimentos de gnero ligados criminalidade feminina, mas naperspectiva de apenas algumas mulheres. Por exemplo, um estudo sobre trajectrias de jovensreclusas revela que, de entre quatro significaes do crime distintas, em apenas uma delas as

    jovens associam os crimes que cometem ao facto de serem mulheres (Matos, 2008).

    Racionalidade na opo pelo crime

    Contrastando com as teses da irracionalidade, estudos com o novo enquadramento reclamadopelas feministas vm chamar a ateno para o facto de, as mulheres poderem cometer crimesintencional e racionalmente. Na base das escolhas racionais da mulher pela desvincia estaroconstrangimentos quer a nvel econmico, quer a nvel da complexa interaco entre padres dedinmica familiar, estruturas sociais patriarcais e factores culturais. Como exemplo podemos

    referir os estudos de Pat Carlen, no Reino Unido, que apontam no sentido de as mulheres,independentemente dos vrios constrangimentos com que se deparam nos seus percursos de vida,optarem racionalmente e aps ponderao pela via do crime (e.g., Carlen, 1983, 1987; Carlen etal., 1985). A escolha racional da mulher transgressora tem tambm sido evidenciada em estudos

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    que se centram em tipos especficos de desvincia, como trfico e consumos de drogas (e.g.,Maher, 1997), prostituio (e.g., Oliveira, 2002; Phoenix, 2001) e crimes violentos (e.g., Batchelor,2005), ou em estudos sobre jovens reclusas (e.g., Matos, 2008). A racionalidade da criminalidadefeminina assentar na ideia de que a mulher escolhe a via do crime de entre outras opes que selhe afiguram menos razoveis.

    Em termos de perspectivao moral sobre o crime e o desvio e de auto-apresentao dasmulheres, os discursos dividem-se entre o das mulheres que referem estar comprometidas comactividades desviantes, assumindo uma identidade criminal (e.g., Batchelor, 2005; Carlen et al.,

    1985) e o discurso da condenao moral do crime, que as mulheres asseguram cometer apenas porno haver outras opes possveis (e.g., Almeda, 2003; Carlen, 1987, 1988). De assinalar que,situaes especficas estaro na base da emergncia de discursos particulares sobre o crime. Porexemplo, quando os crimes que as mulheres cometem tm como vtima um perpetrador de abuso,o significado associado ao crime de justia e de no arrependimento. Do ponto de vista dasmulheres, atravs desse tipo de actos criminais adquirem o respeito e o controlo de que foram ata privadas (e.g., Batchelor, 2005).

    Globalmente, podemos considerar que os discursos emergentes em abordagens recentes transgresso feminina, de enquadramento feminista, revelam racionalidade das mulheres quecometem crimes. Os seus discursos contrastam, contudo, com as narrativas tradicionais que ainda

    prevalecem sobre o fenmeno e tambm com a resposta tpica ao desvio feminino. Como sugerePat Carlen (2002), a resposta transgresso feminina parece continuar a situar o fenmeno nairracionalidade da mulher, mais do que nas circunstncias sociais que a rodeiam, no considerando

    que a mulher pode actuar de forma racional e activa face ao enquadramento social do seu percursode vida, que lhe desfavorvel.

    Entre a vitimao e o empreendedorismo

    Finalmente, um outro argumento das abordagens feministas que contribui para a reconstruodos discursos sobre a criminalidade feminina, diz respeito apresentao das mulheres comoempreendedoras ou como vtimas no desempenho de actividades criminais.

    Comecemos pela vitimao, que tem sido um conceito fulcral nos discursos feministas sobre amulher transgressora, muitas vezes construda como uma vtima que necessita de apoio e

    proteco. O discurso da vitimao acaba por ser amplamente utilizado nas perspectivasfeministas, atravs da conceptualizao do desvio da mulher como, pelo menos em parte, resultado

    de experincias prvias de vitimao (e.g., Carlen, 1983; Chesney-Lind, 1997), e dos sentimentosnegativos que delas resultam (e.g., Batchelor, 2005). Nas perspectivas feministas, a construodiscursiva da mulher ofensora vtima tambm sustentada por dados empricos que sugeremque a maioria das mulheres a cumprir sanes penais, sobretudo por crimes cometidos na esferadomstica, so, tambm elas, vtimas de abuso (e.g., Henning, Jones & Holdford, 2003; Swan &Snow, 2002). Estes argumentos so, no entanto, alvo de crticas e objecto de debate dentro do

    prprio movimento feminista. Snider (2003), ao estabelecer uma relao entre a conceptualizaoda desvincia feminina e o contexto da punio da mulher desviante, conclui que o discurso davitimao prvia tem um efeito triplo: patologiza, individualiza e retira poder mulher. Tambmoutras autoras criticam o discurso da transgressora vtima por este contribuir para a ideia, prximadas perspectivas positivistas, de que as mulheres que cometem crimes so de algum modo bizarrasou anormais (e.g., Batchelor, 2005). Atravs desse discurso nega-se qualquer tipo de iniciativa

    e escolha por parte das mulheres que cometem crimes.No que respeita a conceptualizao da mulher como empreendedora na actividade criminal,aps as primeiras propostas de Freda Adler e Rita Simon, em 1975, e de um renascido interesse

    pela new female criminal nos anos noventa do sculo XX, surge posteriormente, entre as

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    propostas feministas, um novo olhar para a mulher, que passa a ter mais poder e capacidade paraautonomamente escolher a via do crime entre outras alternativas possveis. Esta uma mulherresistente, com capacidade para contornar, particularmente atravs do crime as adversidades comque se depara. Segundo Chesney-Lind (1997) estamos perante uma nova verso da hiptese daemancipao da mulher, especfica dos guetos desindustrializados dos anos 90, em que no a etnia ou o gnero mas sim a posio socioeconmica que conduz a mulher a alternativas que

    passam pelo crime. Na sua opinio, a desindustrializao contribui para a desgenderizao dasrelaes e torna as mulheres mais capazes de cometer crimes violentos, tradicionalmente

    associados aos homens (Chesney-Lind, 1997). Tambm para outros autores, so mudanas sociaisque permitem que as mulheres tenham oportunidades semelhantes s dos seus pares masculinospara se envolverem em determinados tipos de crime (e.g., Baskin et al., 1993, citado por Chesney-Lind, 1997). Ainda em relao tese do empreendedorismo, a transgresso feminina por vezesconstruda pela mulher como um desafio aos papis de gnero tradicionais, atravs da procura de

    poder, violncia e transgresso, normalmente considerados desajustados vivncia feminina (e.g.,Carlen et al., 1985).

    Considerando tipos especficos de crime, e comeando pelo trfico de droga, que representauma grande fatia dos crimes que conduzem as mulheres s prises portuguesas, sugere-se quemudanas na prpria dinmica do crime facilitam a maior abertura participao das mulheres(e.g., Maher, 1997). Para alm do trfico, abordagens a outros crimes especficos sustentam aideia do empreendedorismo da mulher na actividade criminal. Sobre o envolvimento emgangs temsido referida a inadequao da representao tpica da mulher que se envolve em actos de violnciacomo inadaptada ou maltratada. Efectivamente, dados recentes reforam a ideia da racionalidadee da iniciativa subjacente ao envolvimento das mulheres emgangs, que constroem e negoceiama sua vida diria (Miller, 2001, p. 2). Estudos sobre transgressoras mais jovens, tm reveladoque estas rejeitam o rtulo de vtimas, representando-se como pessoas que se apropriam dasnormas e valores sub-culturais para, atravs da violncia, adquirirem respeito (e.g., Batchelor,2005).

    Apesar da aparente incompatibilidade de conceitos, alguns autores propem a conciliao davitimao e do empreendedorismo na anlise da transgresso feminina, sugerindo que oenvolvimento da mulher na delinquncia constitui em si mesmo uma estratgia para lidar com aviolncia de que vtima. Batchelor (2005), partindo de narrativas construdas por jovens quecometem crimes violentos, refere que estas podem ser simultaneamente consideradas vtimas, namedida em que o seu percurso contextualizado por circunstncias sociais adversas, e

    empreendedoras, pois a sua violncia emerge como uma resposta racional a essas circunstncias.A par dos discursos constitutivos da mulher transgressora surgem discursos constitutivos da

    sua punio, ou seja, o modo como a mulher que transgride a lei construda discursivamentetem implicaes no modo como se pensa que ela deve ser punida (Snider, 2003). Nos discursosfeministas, a construo da mulher que comete crimes de forma empreendedora revela-se

    paradoxal face aos objectivos das perspectivas feministas na criminologia. Ao contriburem paraa construo de uma mulher forte, resistente, consciente de si mesma e auto determinada, as

    perspectivas feministas parecem contribuir para a criao de regimes mais punitivos. Mas estano uma questo pacfica para as suas autoras, que pretendem ter um papel activo ao nvel das

    polticas de justia criminal em relao mulher. Por outro lado, construir a mulher transgressoracomo vtima represent-la e trat-la como necessitando mais de proteco do que de punio. E

    podemos considerar que reclamar como principal benefcio para as mulheres proteco e no tanto

    justia se afasta dos discursos e ideologias feministas.Entre as tentativas de dar resposta a este paradoxo, surgem propostas que apelam rejeio deuma noo nica da mulher que comete crimes, ultrapassando a dicotomia vtima inocente//criminosa resistente (Britton, 2000). Os diferentes estudos empricos realizados junto de mulheres

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    que transgridem a lei tm mostrado que os contextos dessa transgresso tendem a ser complexos. Porexemplo, a mulher que comete crimes pode apresentar uma trajectria de vida marcada por diversasformas de discriminao de gnero, e nesse sentido enquadrar-se no conceito de mulher vtima, masoptar com auto-determinao pela via do crime correspondendo representao da mulherempreendedora. Como refere Britton (2000), ambos os conceitos esto interligados, pelo que srompendo com a dicotomia vtima/resistente se poder compreender a forma dessa interligao.

    CONSIDERAES FINAIS

    Aps as primeiras abordagens sobre criminalidade feminina, no contexto da criminologiatradicional, e aps um longo percurso de transies epistemolgicas e metodolgicas no estudodo crime e das suas protagonistas, surgem na criminologia os discursos cientficos sobre a trans-gresso feminina que atendem ao gnero e que o conceptualizam como fundamental na abordagema este fenmeno. A emergncia desta nova conceptualizao da criminalidade feminina coincidecom as perspectivas feministas sobre a transgresso da mulher, sendo indissocivel do movimentofeminista em sentido lato. Como vimos, estas abordagens permitem a desconstruo dos discursostradicionais sobre feminilidade e transgresso, nomeadamente do modo estereotipado como amulher e o seu desvio tm vindo a ser representados. Possibilitam tambm a reconstruo dessesdiscursos, abrindo caminho para que a mulher que transgride a lei deixe de ser consideradaduplamente desviante e associada a crimes tipicamente femininos, resultantes da heterodetermi-nao e irracionalidade da mulher. Do ponto de vista metodolgico, h tambm um contributofundamental das perspectivas feministas, na medida em que se d voz (e poder) s mulheres nareconstruo dos discursos sobre a sua transgresso. No podemos, contudo, terminar sem olhar deforma crtica para alguns aspectos das abordagens feministas, nomeadamente a por vezes excessivacentrao no gnero, em detrimento de outras dimenses, como a etnia ou a classe social, que

    podero ser igualmente importantes na compreenso da transgresso feminina. Ou o facto de sedirigir o foco apenas para as mulheres, excluindo as experincias masculinas do mesmo modo queso excludas as femininas nas abordagens tradicionais da criminologia. Finalmente, pensamos queo compromisso poltico subjacente s abordagens feministas, quando excessivo, pode conduzir auma compreenso enviesada da transgresso da mulher. Paralelamente s crticas s perspectivasfeministas, salientamos a funo dos outros discursos cientficos construdos sobre a mulher e o

    crime, criticados pelas autoras feministas. Mesmo os tradicionais ou positivistas, que assumimoscomo os discursos que mais se afastam da nossa prpria leitura do fenmeno, so fundamentais no

    percurso at aos discursos feministas, que se afirmam e desenvolvem atravs das crticas quedirigem aos primeiros. Entre ambos, h discursos de transio (Matos, 2008), que constituemuma importante contribuio na abordagem cientfica da transgresso da mulher, pois atravs dassuas propostas de novas leituras do crime e dos seus actores (nomeadamente a passagem para umaviso do crime como normal ou ideal, ou a mudana de enfoque do crime para a reaco social) quese cria espao na criminologia para a emergncia das perspectivas mais crticas, em particular asfeministas. Estas perspectivas de transio contribuem tambm com novas propostas metodolgicas,nomeadamente as de cariz mais qualitativo e naturalista, que se desenvolvem e vm a revelarfundamentais nas abordagens mais crticas da criminalidade da mulher.

    Apesar do significativo percurso das perspectivas feministas na criminologia, ainda hoje, alguns

    olhares sobre a transgresso, feminina e masculina, a associam a factores individuais, de ordembiolgica ou psicolgica, insistindo numa leitura determinista do comportamento criminal. Nocaso feminino, esses olhares so ainda reforadores dos esteretipos de gnero, razo pela qual ahistria das perspectivas feministas na criminologia se continua a escrever.

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    In this paper, we analyze the feminist perspectives in criminology, particularly, the discourses onwomen, crime and gender. It starts with a broad view of the feminist contributes to the construction ofknowledge and then a historical review of the emergence and consolidation of feminist perspectives

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    in criminology is presented. It discusses in particular the feminist argument that the social constructionof gender has an impact on the life trajectories of women who commit crimes, and is reflected in theformal and informal response to such transgressions. Finally, it analyzes the main criticisms of feministauthors towards the traditional criminology discourses about women and crime as well as the feministproposals for the reconstruction of such discourses.

    Key-words: Feminist perspectives, Gender, Women and crime.

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