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MATRÍCULAS ABERTAS: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DAS CAMPANHAS PUBLICITÁRIAS DE ESCOLAS DA REDE PRIVADA DE PORTO ALEGRE/RS Fernanda Longo UFRGS Julia Milani Reis UFRGS 1. Matrículas Abertas: abrindo os trabalhos “25% dos usuários de Listerine são empreendedores, e você?”. Essa propaganda, veiculada nos rótulos de um enxaguante bucal no Brasil em 2017, certamente abre os trabalhos para começarmos a delinear de que lugar estamos falando neste artigo. Em suas produções, Bauman (2001) nos mostrou que, desde o final do século XX, vivemos uma transição entre aquilo que ele chamou de Modernidade Sólida para a então denominada Modernidade Líquida. A Modernidade Sólida, repleta de metanarrativas e certezas, não se esvai, mas dá espaço para a Modernidade Líquida que assume a liquidez, a incerteza, a impermanência. Esse deslocamento, observado e registrado por Bauman (2008), provocou alguns efeitos na sociedade contemporânea, dentre eles a mudança enfoque de uma sociedade de produtores para uma sociedade de consumidores. Nessa sociedade de consumidores, onde é deslocada a centralidade da fábrica - produção - para a empresa - inovação, criação - destacam-se, entre as atividades mais importantes “a pesquisa e o desenvolvimento, a comunicação e o marketing, a concepção e o design(SARAIVA; VEIGA-NETO, 2009, p. 189). Nesse contexto, a produção não deixa de existir, mas o ciclo se inverte e a venda se torna a priori. Esses deslocamentos, apesar de não serem tema central deste artigo, merecem esse destaque inicial à medida que compreendemos, a partir dos estudos de Michel Foucault, que o sujeito inserido nesse contexto é, também, subjetivado e produzido por essa lógica da Modernidade Líquida, do neoliberalismo. Como destaca Lopes e Rech (2013, p. 214) “o que o neoliberalismo quer é produzir, pelo estímulo ao desejo de comprar e consumir e pela promoção da competitividade, sujeitos que saibam jogar os jogos de livre-mercado”. Iniciamos os trabalhos, então, com as matrículas abertas para aquele sujeito, já destacado e mostrado como exemplo no enxaguante bucal, o sujeito empreendedor. No curso de 1979, O Nascimento da Biopolítica, Michel Foucault (2008) se debruça sobre alguns conceitos, dentre eles o capitalismo. Sobre esse curso, Gros (2011) esquematiza algumas formas

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MATRÍCULAS ABERTAS: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DAS CAMPANHAS

PUBLICITÁRIAS DE ESCOLAS DA REDE PRIVADA DE PORTO ALEGRE/RS

Fernanda Longo – UFRGS

Julia Milani Reis – UFRGS

1. Matrículas Abertas: abrindo os trabalhos

“25% dos usuários de Listerine são empreendedores, e você?”. Essa propaganda,

veiculada nos rótulos de um enxaguante bucal no Brasil em 2017, certamente abre os trabalhos

para começarmos a delinear de que lugar estamos falando neste artigo. Em suas produções,

Bauman (2001) nos mostrou que, desde o final do século XX, vivemos uma transição entre

aquilo que ele chamou de Modernidade Sólida para a então denominada Modernidade Líquida.

A Modernidade Sólida, repleta de metanarrativas e certezas, não se esvai, mas dá espaço para

a Modernidade Líquida que assume a liquidez, a incerteza, a impermanência. Esse

deslocamento, observado e registrado por Bauman (2008), provocou alguns efeitos na

sociedade contemporânea, dentre eles a mudança enfoque de uma sociedade de produtores para

uma sociedade de consumidores.

Nessa sociedade de consumidores, onde é deslocada a centralidade da fábrica - produção

- para a empresa - inovação, criação - destacam-se, entre as atividades mais importantes “a

pesquisa e o desenvolvimento, a comunicação e o marketing, a concepção e o design”

(SARAIVA; VEIGA-NETO, 2009, p. 189). Nesse contexto, a produção não deixa de existir,

mas o ciclo se inverte e a venda se torna a priori. Esses deslocamentos, apesar de não serem

tema central deste artigo, merecem esse destaque inicial à medida que compreendemos, a partir

dos estudos de Michel Foucault, que o sujeito inserido nesse contexto é, também, subjetivado

e produzido por essa lógica da Modernidade Líquida, do neoliberalismo. Como destaca Lopes

e Rech (2013, p. 214) “o que o neoliberalismo quer é produzir, pelo estímulo ao desejo de

comprar e consumir e pela promoção da competitividade, sujeitos que saibam jogar os jogos de

livre-mercado”.

Iniciamos os trabalhos, então, com as matrículas abertas para aquele sujeito, já

destacado e mostrado como exemplo no enxaguante bucal, o sujeito empreendedor. No curso

de 1979, O Nascimento da Biopolítica, Michel Foucault (2008) se debruça sobre alguns

conceitos, dentre eles o capitalismo. Sobre esse curso, Gros (2011) esquematiza algumas formas

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de capitalismo estudadas pelo autor e, entre elas, para esse estudo, destacamos o capitalismo

empresarial/gestor que compreende que a produção empresarial está na organização e no

planejamento estratégico de ações, ou seja, nessa lógica, o enfoque parece deixar de ser o

trabalho para se concentrar nas dinâmicas humanas. Pensar sobre as formas de capitalismo,

também se torna produtivo nesse estudo no momento em que compreendemos, como enfatiza

Lopes e Rech (2013, p. 218), que os “sujeitos são inventados para cada tipo de sociedade

produzida de acordo com as demandas e as necessidades de cada tempo”. Mas, então, quem é

esse sujeito empreendedor? Como ele é inventado e produzido? A que demandas ele responde?

Como já destacamos, entendemos que a subordinação do produto em relação à venda,

coloca o marketing e a comunicação em papel de destaque na produção desses sujeitos, a

medida que faz circular verdades que subjetivam novas formas de ser na contemporaneidade.

Alguns dos usuários de Listerine, por exemplo, já são empreendedores e, como a propaganda

sugestiona, os que ainda não são já podem ou devem desejar ser. Nesta esteira, concordamos

com Lopes e Rech (2013, p. 218) ao salientar que nessa forma de capitalismo em que empresa

e mercado servem para gerir a vida, “a educação se torna um solo fértil para a produção de

sujeitos qualificados dentro da lógica empreendedora”. Dessa forma, podemos pensar que o

marketing e a educação se aliam no sentido de produzir uma sociedade conforme as demandas

desse tempo da Modernidade Líquida, do neoliberalismo, da empresa, do consumo.

Nesse sentido, frente ao papel de destaque do marketing e da escola na produção de

sujeitos, neste ensaio debruçamos nosso olhar sobre as propagandas produzidas por instituições

escolares com a intenção de captar alunos e famílias novas a partir de suas propostas de ensino.

Mais do que isso, nos colocamos a pensar sobre como essas propagandas atuam na produção e

na circulação de determinadas verdades sobre o sujeito. Para isso, buscamos refletir sobre os

ditos narrados nas campanhas de matrícula veiculadas por algumas escolas da rede privada de

Porto Alegre/RS nos principais meios de comunicação como internet, televisão e rádio. Foram

selecionados os sites e os vídeos institucionais de cinco escolas que, nos últimos anos, têm

ganhado maior visibilidade nos meios de comunicação devido ao seu investimento em

marketing e ao seu destaque em prêmios. A análise do material orientou-se pela análise do

discurso, a partir dos estudos de Michel Foucault e seus comentadores, na tentativa de descrever

que verdades estão sendo postas em circulação nos discursos das campanhas publicitárias das

escolas particulares em questão e de que forma estas verdades podem subjetivar modos de ser

na contemporaneidade.

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2. Não perca sua vaga, faça já sua matrícula: entre narrativas, discurso, pedagogias

culturais e as escolas privadas

Para pensar sobre isso, abrimos os trabalhos tentando delinear de qual lugar falamos. Já

nos primeiros passos dessa escrita, assumimos uma seleção de lentes teóricas dos Estudos

Culturais e dos estudos foucaultianos para entender e enxergar essa realidade contemporânea.

Costa (2003) nos ajudou a pensar ao afirmar que as realidades são inventadas pelas narrativas

que se tem das coisas, dos objetos e que estas coisas não estão em um plano prontas para serem

alcançadas. Ela afirma que “tudo aquilo a que a modernidade nos ensinou chamar de realidade

não seria mais do que histórias, relatos que têm nos contado como as coisas são. Esses relatos,

ao narrarem as coisas, criam as próprias coisas; eles inventam as realidades” (COSTA, 2003,

s.p.). Sendo assim, passamos a olhar para esse material de marketing veiculado por algumas

escolas privadas como relatos, como narrativas que, ao narrar o projeto pedagógico e os motivos

pelos quais as famílias deveriam optar por aquela instituição no momento de matrícula de seus

filhos, forjam realidades e produzem verdades sobre as formas de ser na sociedade.

Pensar a ideia de que textos culturais regem nossas vidas é possível, também, a partir

dos estudos do filósofo Michel Foucault, que nos ensina que nossa vida está inscrita em uma

ordem discursiva, que diz o que se deve querer, o que se deve sentir, o que se deve fazer e o

que se deve narrar. Foucault, mesmo sem intenção de delinear uma metodologia, nos empresta

seu olhar e seu método para analisar de que forma as narrativas das campanhas de matrícula,

vídeos institucionais e slogans1 fazem emergir verdades que delineiam as características dos

modos de ser sujeito aluno e/ou sujeito professor no sistema neoliberal. Além disso, é

importante ressaltar que as redes discursivas focos de estudo neste ensaio estão imbricadas em

relações de poder, pois quem tem o poder de narrar o outro, em função de um estatuto de

verdade, é quem cria as identidades e quem regula os modos de ser e de agir na

contemporaneidade. Mais uma vez aí percebemos o papel de destaque da escola na produção

de verdades e na construção de identidades, visto que, ao atuar historicamente como instituição

principal na formação dos sujeitos, também tem o poder de narrar o outro. Para Foucault (2004,

p.13), a ideia de verdade remete a uma produção discursiva capaz de constituir nossa maneira

1 Slogan é uma frase curta, de efeito e de fácil memorização que se caracterizam, acima de tudo, pela brevidade,

impacto, comunicação imediata e destinam-se afixar na mente a associação entre uma marca e um argumento

persuasivo capaz de fazer as pessoas se lembrarem de uma empresa, produto ou serviço (GOMES, 2011).

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de ser e agir na atualidade, é o “conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro

do falso e se atribui ao verdadeiro, efeitos específicos de poder”.

Mas será que a pedagogia está restrita aos muros escolares? A educação na perspectiva

dos Estudos Culturais, campo de conhecimento que valoriza as artes populares, que entende as

culturas entendidas como modos de vida baseada nas relações sociais, adquire um caráter mais

amplo, não se prendendo às formas organizadas de ensino e aprendizagem, como a instituição

escola. Giroux (1995) diz que a pedagogia ocorre em qualquer lugar onde há discursos e

verdades e, portanto, há uma ampliação do que chamamos de educação e o que adjetivamos

como educativo. Estas ideias são conceitos importantes para pensarmos as campanhas de

matrículas como artefatos culturais que produzem maneiras de ser.

O conceito de pedagogias culturais, apesar de ter surgido num contexto marxista de

denúncia dos malefícios da mídia, é tomado por outro viés neste ensaio. Aqui compreendemos

que, como relata Corazza (2001, p. 29), “para além da instituição escolar, existe e ocorre

"pedagogia" em todo o espaço social em que saberes são construídos, relações de poder são

vividas, experiências são interpretadas, verdades são disputadas”. Sendo assim, pensar a

pedagogia cultural significa pluralizar a pedagogia a partir de uma ideia de educação

permanente da sociedade através da cultura. Nesse sentido, aprendemos modos de ser na

contemporaneidade não apenas no espaço escolar, mas também em todo o espaço social.

Cultura, neste texto, é então tomada como um espaço de possibilidades, que forma e

deforma identidades, que está em constante transformação e movimento, e que é “produzida

por textos, arquiteturas, mercadorias, organizações, regulamentos, enunciados científicos e

instituições” (CORAZZA, 2001, p. 29). Ainda assim, entendemos que, mesmo com todas as

variáveis envolvidas, podemos delinear modos de ser aluno e modos de ser professor regrados,

como já diziam Lopes e Rech (2013), pelas demandas de cada tempo. Em tempos de

neoliberalismo, onde o enfoque está sobre consumo, Saraiva e Veiga-Neto (2009) continuam a

nos auxiliar a pensar à medida que trazem que consumir significa pertencer a este mundo,

sendo, portanto, processo importante para a formação de identidades. Com esta mudança de

racionalidade, muitos significados adquirem nova importância. A escola, por exemplo, passa a

ser um local onde o estudante deve aprender a aprender, não mais de apropriação e recepção de

conhecimentos. A era da informação, descrita nos estudos de Zygmun Bauman dá acesso a

todos os conhecimentos na palma da mão, diferentemente da era do conhecimento. A escola,

fundada em um período moderno e com características daquele tempo e espaço e que se baseava

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na concretização de um projeto de vida, passa a lidar com a presentificação e com o futuro

imprevisível.

Bauman (2007) define em suas análises a sociedade de consumidores, sociedade na qual

ninguém se torna sujeito sem tornar-se objeto de consumo em uma racionalidade que reforça,

encoraja e promove a escolha de um estilo de vida, rejeitando as alternativas a este modo de

vida. O autor diz que “a característica mais proeminente da sociedade de consumidores – ainda

que cuidadosamente disfarçada e encoberta – é a transformação dos consumidores em

mercadorias” (idem, ib., p.20, grifos do autor). Assim, todo mundo precisa tornar-se vendável,

objeto de desejo para então poder consumir e pertencer ao mundo em que vive. Dessa forma, a

escola como uma das principais instituições formadoras de sujeitos adquire um papel

importante na formação dessa subjetividade vendável, que tem “qualidades para as quais existe

uma demanda de mercado” (idem, ib., p.75).

O sistema neoliberal em que vivemos exige que permaneçamos em inovação para

continuar competindo e sendo objeto de desejo. Dessa forma, “o princípio de inteligibilidade

do neoliberalismo passa a ser a competição: a governamentalidade neoliberal intervirá para

maximizar a competição, para produzir liberdade para que todos possam estar no jogo

econômico” (SARAIVA; VEIGA-NETO, 2009, p.189). No sistema em que vivemos, regido

pelo princípio da competição, cabe às escolas privadas a responsabilidade de vencer, através da

conquista de novos consumidores, tornando-se assim objetos a serem consumidos e desejados.

Em função disso, na lógica da sobreposição da venda em relação ao produto, essas instituições

têm investido cada vez mais em ações de marketing, promovendo campanhas que circulam nos

principais meios de comunicação como internet e televisão.

Na lente utilizada neste trabalho, a mídia é entendida como criadora e reprodutora de

representações e atua como uma pedagogia cultural. Isso significa dizer que as produções

midiáticas produzem formas de pensar e de agir, que regula o que é aceito apresentando

modelos do ideal (SABAT, 2013). Assim como o Listerine, ao destacar o sujeito empreendedor

como desejável, produz verdades sobre formas de ser, as escolas privadas, ao colocarem em

circulação um padrão de sujeito que supostamente têm capacidade de formar, estabelecem um

modelo ideal de sujeito.

A fim de enxergar que verdades estão sendo postas em circulação, que provocam os

desejos dos sujeitos, optamos pelas ferramentas presentes na oficina de Foucault, procurando

fazer uma análise do discurso posto em circulação nas produções de marketing escolares. Para

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Fischer (2002, p. 52), analisar o discurso significa operar sobre documentos, dando conta das

suas relações históricas e políticas, “associando os ditos a determinadas práticas, a modos

concretos e vivos de funcionamento, circulação e produção dos discursos; e correlacionando os

enunciados a outros do mesmo campo ou de campos distintos”. Caracterizar o discurso

educativo proposto e disseminado pelas escolas privadas nos ajuda a compreender que

subjetividades estão sendo vendidas e, por conseguinte, compradas pelos sujeitos sejam eles

participantes do universo educativo privado ou não. A partir do momento que estes ditos

circulam e são compartilhados, determinadas práticas culturais determinam as formas pelos

quais os indivíduos compreendem a si mesmos e o mundo ao seu redor.

3. Ainda temos vagas: o sujeito empresário de si

O que importa agora não é ter muitas mercadorias para vender, mas

ter elementos que façam vencer a competição pela conquista dos

consumidores.

(SARAIVA; VEIGA-NETO, 2009, p. 189)

Com o intuito de conquistar novos consumidores algumas escolas da rede privada de

Porto Alegre veiculam vídeos institucionais promovendo aquele aluno que elas são capazes de

formar. Para a produção dos vídeos, são convidados alunos, ex-alunos, pais e familiares,

profissionais da educação que narram o que pensam sobre a escola e sobre educação, a partir

de suas experiências e de suas vivências naquele estabelecimento de ensino. Esses vídeos, por

sua vez, são consumidos por espectadores em busca de um ideal de formação para sua família,

seus filhos, tendo em vista um futuro próspero e de sucesso. Já aqui podemos perceber a

ambivalência entre a Modernidade Sólida e Líquida de Bauman (2001), apesar da liquidez, da

efemeridade e da presentificação dos tempos líquidos, percebemos tanto nesse movimento das

famílias, quanto nos vídeos institucionais de algumas escolas, essa promoção, tão sólida, de

uma escola que capaz de ajudar na construção de projetos de vida.

Ao pensar sobre a Modernidade Líquida e a educação contemporânea, Saraiva e Veiga-

Neto (2009) destacam que a escola, apesar de ter passado por transformações ao longo do

tempo, está ainda fortemente arraigada na educação disciplinar da Modernidade Sólida. Dizer

isso, para esses autores, implica perceber que a escola ainda está muito centrada na concepção

de um tempo contínuo, linear, um tempo de fábrica. Esse tempo contínuo fabril pressupõe a

continuidade dos processos, portanto torna-se previsível, passível de projeções futuras e ligado

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ao adiamento da satisfação. Faz-se hoje para que seja possível prosperar no futuro. É ainda

nessa lógica de tempo contínuo que destacamos alguns trechos dos vídeos institucionais

analisados.

“O aluno que passa da educação infantil ao ensino médio no colégio é alguém preparado para

qualquer desafio”

“Eu acho que o colégio nos ajuda a fazer escolhas para o futuro”

“O aluno sai daqui preparado para a vida”

“Vale a pena correr atrás de um sonho e o colégio vai dar condições para isso”

“Orgulho que inspira o futuro - Inspiração diária que constrói um amanhã mais sustentável –

educa, ensina e prepara”

Preparar-se para a vida, para qualquer desafio ou para correr atrás de seus sonhos é o

adiamento do prazer previsto no tempo contínuo. Dessa forma, compreendemos que essas

passagens operam pela lógica, não do desejo, mas da vontade. A satisfação aqui está ligada ao

futuro, a vontade de prosperar na vida adulta, ao longo prazo. A ideia de prazer dos sujeitos da

Modernidade Sólida engendra-se em uma racionalidade diferente, mais efêmera e não-linear,

tornando perceptível o desencaixe que existe entre o mundo escolar e o mundo social.

Diferentemente do tempo linear, a Modernidade Líquida opera pela lógica do tempo

pontilhista, ou seja, “um tempo descontinuo, marcado pela invencao” (SARAIVA; VEIGA-

NETO, 2009, p. 193). Esse tempo de rupturas, ligado ao prazer imediato, lida com a

imprevisibilidade do futuro e presentifica as relações. Mesmo que ainda fortemente vinculada

ao tempo linear, as campanhas das escolas analisadas sugerem que esses tempos líquidos já

provocam efeitos e algumas rupturas na maquinaria escolar.

Para além de se preparar para o futuro, a inovação também aparece como uma das

verdades postas em circulação. Relacionada ao melhor uso dos recursos tecnológicos, a

inovação passa a ser vista como propulsora de comportamentos empreendedores, para que os

estudantes estejam preparados para a vida, para que saibam administrar situações corriqueiras

ou não.

“Desde a sua fundação, o Colégio investe na inovação e na qualidade de ensino e na busca

constante pela excelência e inovação”

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Inovar está na ordem do discurso na Modernidade Líquida. Como já mencionamos, o

que importa é vencer e, para isso, é preciso inovar. Estar sempre mudando, sempre tentando ser

melhor a fim de buscar a excelência são pressupostos que aparecem em praticamente todas as

campanhas aqui analisadas. Se inovar é criar novos mundos, ser consumidor não é mais apenas

consumir um produto e descartar, mas pertencer a esses novos mundos (SARAIVA; VEIGA-

NETO, 2009). Portanto, estar naquelas escolas, de certa forma, implica pertencer a esses novos

mundos por ela criados e reinventados e se formar como um sujeito, também, capaz de criar.

“A gente tá sempre mudando, sempre tentando procurar o melhor”

Segundo Saraiva e Veiga-Neto (2009, p. 189) “a empresa e a catalisadora da inovacao,

da invencao”. Nesse sentido, podemos compreender que as campanhas analisadas, ao destacar

a inovação como um de seus pilares, também colocam em evidência o modelo de empresa, que

opera pela racionalidade neoliberal. O sujeito que essas escolas se propõem a formar, ainda que

sujeitos da ambivalência do tempo linear, que projeta o futuro, e do tempo pontilhista, que

provoca rupturas pela inovação, sustenta-se na lógica do sujeito empresário de si.

No capitalismo empresarial/gestor descrito por Gros (2011) com base no trabalho

foucaultiano, o planejamento estratégico aparece como central na organização empresarial.

Sendo assim, se as dinâmicas humanas e a capacidade de se autogerir são princípios de

inteligibilidade dessa racionalidade, à escola cabe formar sujeitos capazes de aprender a

aprender, sujeitos empresários de si (SARAIVA; VEIGA-NETO, 2009). Aprender a aprender

seria estar em constante reconfiguração de si, ou seja, como destaca uma aluna presidente de

uma miniempresa2 em uma das campanhas de marketing analisadas, implica estar “sempre

mudando, sempre tentando procurar o melhor”.

Pode-se perceber nestas recorrências verdades que formam sujeitos em permanente

reconfiguração de si, em permanente processo de aprendizagem, tornando-se empresário de

si. Aquele sujeito inovador, preparado para a vida, flexível, expert, que trabalha em rede e

que sabe competir (VEIGA-NETO, 2009). A partir disso, é inevitável que a ordem discursiva

mobilizada seja a da concorrência. A sociedade neoliberal é pautada pela concorrência, não

mais pela troca. Esta mudança de racionalidade invoca uma habilidade importante a ser

2 A aluna que diz essas palavras aparece destacada como presidente de miniempresa, um projeto oferecido pela

escola para seus alunos.

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desenvolvida que é a da flexibilidade, também recorrente nas campanhas de matrículas.

Sujeitos flexíveis têm a capacidade de aprender a vida toda, procuram evoluir durante todo o

tempo e recriam continuamente o seu eu. O empresário de si que não está continuamente

evoluindo e flexibilizando-se perante as demandas do dia-a-dia está fadado ao fracasso, pois

não há tempo para o desenvolvimento de um projeto que se inicie com a projeção de ser

concluído após um determinado período.

A sociedade neoliberal preconiza sujeitos que maximizam as suas performances, o que

exige a flexibilização perante as normas que os regem. Dessa forma, a flexibilidade torna-se

um produto importante a ser consumido, já que quanto mais flexível o sujeito, mais chance

tem de vencer nas relações de concorrência e tornar-se líder dos demais e de si mesmo. É

visível, no material analisado, o investimento que há por parte das escolas privadas em destacar

o quão importante é a formação de líderes e que sabem gestar seu aprendizado e sua vida, de

forma flexível e aprendendo a todo momento.

“Alunos que se destacam como pessoas”

“Educar para formar líderes “

“Amor, disciplina e alegria acaba formando líderes”

“A maior alegria para um colégio é ver seus ex-alunos capazes de liderar mudanças a partir

dos valores humanos”

Há um investimento em estratégias de ensino que envolvam as chamadas competências

socioemocionais, como ponto de partida para a formação destes líderes, que destacam-se como

pessoas que incorporam em suas vidas as características necessárias para o gerenciamento de

si e dos outros, como o amor e a disciplina. Este deslocamento da escola como um espaço de

transmissão de conhecimento para um espaço de desenvolvimento de habilidades

socioemocionais e de características como a eficiência, a flexibilidade e competitividade são

ideias convergem para o que Bauman (2010) chamou de uma educação moderno-líquida, já

que nunca estamos prontos e somos convocados a aprender ao longo da vida toda, e não mais

aprender para a vida.

De certa forma, estas verdades que fomentam o empresariamento de si na escola regem

também o que o mercado de trabalho procura como mão de obra. Klaus (2011) contribui para

a discussão ao dizer que “na atualidade, o empreendedorismo e o capital humano tornaram-se

valores sociais”(idem, ib., p.83). Partindo dessa visão, e em consonância com a autora, é

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possível afirmar que a educação passa a ser responsável pela descoberta e pelo cultivo de

talentos, preparando os indivíduos para “viverem em uma economia dinâmica” (idem, ib.

p.175). Assim, a escola passa a ser cada vez mais necessária de forma que quanto mais

escolarizado é o sujeito, maior a chance de sucesso no mercado de trabalho.

As relações interpessoais e a participação dos alunos em competições como olimpíadas

de conhecimento também são verdades que circulam remetendo a comportamentos desejados

no campo empresarial. Pode-se perceber aí um incentivo à competição, um dos princípios do

sistema neoliberal. Além disso as escolas trazem a divulgação de rankings como forma de

legitimar a qualidade do seu projeto pedagógico, bem como o testemunho de ex-alunos,

reconhecidos em seus respectivos ramos de trabalho, como modelos de sujeitos bem-

sucedidos.

“Eu acho que independentemente da especialização que eu escolher, eu posso ser muito bem

sucedida”

A fim de atrair não só os pais, mas também os estudantes para seus projetos

pedagógicos, as escolas apelam para o uso das chamadas hashtags acompanhadas de frases de

efeito que mobilizam as verdades discutidas até o momento. As hashtags apareceram de forma

recorrente, principalmente nos slogans veiculados em outdoors e redes sociais. Este

mecanismo acaba por criar uma ideia de comunidade e de pertencimento, de modo que ao

escrever e replicar as hashtags, os sentidos ali colocados estão sendo proliferados

infinitamente.

4. Matrículas fechadas: na tentativa de fechar os trabalhos

Buscamos com este ensaio demonstrar que as propagandas fazem circular verdades que

contribuem para a subjetivação de sujeitos escolares na racionalidade neoliberal. Em nossas

análises destacamos que as escolas privadas fazem circular um modelo de sujeito moderno-

líquido que ao preparar-se para a vida, fica enraizado na solidez, e ao se autogestar, desloca-se

para liquidez. É o sujeito da vontade e o sujeito empresário de si, que, em reconfiguração

permanente, compete e lidera a partir de capacidades socioemocionais e de autogestão.

Nessa necessidade de vencer a competição pela conquista de alunos e de produzir um

sujeito que responda às demandas desses tempos, as escolas privadas analisadas entram nos

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jogos de mercado, competem entre si e, cada vez mais, proliferam, através da sua produção de

marketing e de comunicação, um modelo de sujeito ideal que deve ser desejado por todos. Costa

(2003, s.p.) novamente nos ajuda a pensar sobre essa disputa ao dizer que

Os significados em uma sociedade ou cultura sao produzidos segundo um

jogo de correlacao de forcas no qual grupos mais poderosos seja pela posicao

politica e geografica que ocupam, seja pela lingua que falam, seja pelas

riquezas materiais e simbolicas que concentram e concedem, ou por alguma

outra prerrogativa atribuem significado aos mais fracos e, alem disso,

impoem a estes seus significados sobre outros grupos.

Nesse sentido, ao disputar significados sobre os sujeitos alunos, as escolas privadas

analisadas, mais poderosas pela sua posição política, especialmente por serem as mais

tradicionais e premiadas de Porto Alegre, acabam por determinar as características necessárias

para um sujeito de sucesso e, ao fazer isso, também excluem da prosperidade todos que não

estão engendrados nessa racionalidade.

Ainda na tentativa de fechar os trabalhos fomos provocadas por Bauman (2008, p. 126)

ao dizer que “para uma sociedade que proclama que a satisfação do consumidor e seu único

motivo e seu maior propósito, um consumidor satisfeito não e motivo, nem propósito — e sim

uma ameaça mais apavorante” (BAUMAN, 2008, p. 126). Sendo assim, para além da conquista

através do marketing, cabe à escola manter seu consumidor satisfeito através de uma estrutura

curricular que dê conta de todos os seus propósitos. Fechar os trabalhos, então, só faria sentido

se abríssemos novas possibilidades: como os currículos dessas escolas contribuem para a

formação desse sujeito moderno-líquido? Essa é uma questão que pulsa para os próximos

caminhos investigativos.

Referências Bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e interpretes: sobre modernidade, pos-modernidade e intelectuais.

Traducao de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

CORAZZA, Sandra Mara. Na diversidade cultural, uma 'docência artística'. Pátio, Porto Alegre, ano V., n. 17,

p. 29-30, mai/jul, 2001. Disponível em: <http://artenaescola.org.br/sala-de-leitura/artigos/artigo.php?id=69323>.

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