MATRÍCULAS ABERTAS: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DAS … · Em função disso, na lógica da...
Transcript of MATRÍCULAS ABERTAS: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DAS … · Em função disso, na lógica da...
MATRÍCULAS ABERTAS: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DAS CAMPANHAS
PUBLICITÁRIAS DE ESCOLAS DA REDE PRIVADA DE PORTO ALEGRE/RS
Fernanda Longo – UFRGS
Julia Milani Reis – UFRGS
1. Matrículas Abertas: abrindo os trabalhos
“25% dos usuários de Listerine são empreendedores, e você?”. Essa propaganda,
veiculada nos rótulos de um enxaguante bucal no Brasil em 2017, certamente abre os trabalhos
para começarmos a delinear de que lugar estamos falando neste artigo. Em suas produções,
Bauman (2001) nos mostrou que, desde o final do século XX, vivemos uma transição entre
aquilo que ele chamou de Modernidade Sólida para a então denominada Modernidade Líquida.
A Modernidade Sólida, repleta de metanarrativas e certezas, não se esvai, mas dá espaço para
a Modernidade Líquida que assume a liquidez, a incerteza, a impermanência. Esse
deslocamento, observado e registrado por Bauman (2008), provocou alguns efeitos na
sociedade contemporânea, dentre eles a mudança enfoque de uma sociedade de produtores para
uma sociedade de consumidores.
Nessa sociedade de consumidores, onde é deslocada a centralidade da fábrica - produção
- para a empresa - inovação, criação - destacam-se, entre as atividades mais importantes “a
pesquisa e o desenvolvimento, a comunicação e o marketing, a concepção e o design”
(SARAIVA; VEIGA-NETO, 2009, p. 189). Nesse contexto, a produção não deixa de existir,
mas o ciclo se inverte e a venda se torna a priori. Esses deslocamentos, apesar de não serem
tema central deste artigo, merecem esse destaque inicial à medida que compreendemos, a partir
dos estudos de Michel Foucault, que o sujeito inserido nesse contexto é, também, subjetivado
e produzido por essa lógica da Modernidade Líquida, do neoliberalismo. Como destaca Lopes
e Rech (2013, p. 214) “o que o neoliberalismo quer é produzir, pelo estímulo ao desejo de
comprar e consumir e pela promoção da competitividade, sujeitos que saibam jogar os jogos de
livre-mercado”.
Iniciamos os trabalhos, então, com as matrículas abertas para aquele sujeito, já
destacado e mostrado como exemplo no enxaguante bucal, o sujeito empreendedor. No curso
de 1979, O Nascimento da Biopolítica, Michel Foucault (2008) se debruça sobre alguns
conceitos, dentre eles o capitalismo. Sobre esse curso, Gros (2011) esquematiza algumas formas
de capitalismo estudadas pelo autor e, entre elas, para esse estudo, destacamos o capitalismo
empresarial/gestor que compreende que a produção empresarial está na organização e no
planejamento estratégico de ações, ou seja, nessa lógica, o enfoque parece deixar de ser o
trabalho para se concentrar nas dinâmicas humanas. Pensar sobre as formas de capitalismo,
também se torna produtivo nesse estudo no momento em que compreendemos, como enfatiza
Lopes e Rech (2013, p. 218), que os “sujeitos são inventados para cada tipo de sociedade
produzida de acordo com as demandas e as necessidades de cada tempo”. Mas, então, quem é
esse sujeito empreendedor? Como ele é inventado e produzido? A que demandas ele responde?
Como já destacamos, entendemos que a subordinação do produto em relação à venda,
coloca o marketing e a comunicação em papel de destaque na produção desses sujeitos, a
medida que faz circular verdades que subjetivam novas formas de ser na contemporaneidade.
Alguns dos usuários de Listerine, por exemplo, já são empreendedores e, como a propaganda
sugestiona, os que ainda não são já podem ou devem desejar ser. Nesta esteira, concordamos
com Lopes e Rech (2013, p. 218) ao salientar que nessa forma de capitalismo em que empresa
e mercado servem para gerir a vida, “a educação se torna um solo fértil para a produção de
sujeitos qualificados dentro da lógica empreendedora”. Dessa forma, podemos pensar que o
marketing e a educação se aliam no sentido de produzir uma sociedade conforme as demandas
desse tempo da Modernidade Líquida, do neoliberalismo, da empresa, do consumo.
Nesse sentido, frente ao papel de destaque do marketing e da escola na produção de
sujeitos, neste ensaio debruçamos nosso olhar sobre as propagandas produzidas por instituições
escolares com a intenção de captar alunos e famílias novas a partir de suas propostas de ensino.
Mais do que isso, nos colocamos a pensar sobre como essas propagandas atuam na produção e
na circulação de determinadas verdades sobre o sujeito. Para isso, buscamos refletir sobre os
ditos narrados nas campanhas de matrícula veiculadas por algumas escolas da rede privada de
Porto Alegre/RS nos principais meios de comunicação como internet, televisão e rádio. Foram
selecionados os sites e os vídeos institucionais de cinco escolas que, nos últimos anos, têm
ganhado maior visibilidade nos meios de comunicação devido ao seu investimento em
marketing e ao seu destaque em prêmios. A análise do material orientou-se pela análise do
discurso, a partir dos estudos de Michel Foucault e seus comentadores, na tentativa de descrever
que verdades estão sendo postas em circulação nos discursos das campanhas publicitárias das
escolas particulares em questão e de que forma estas verdades podem subjetivar modos de ser
na contemporaneidade.
2. Não perca sua vaga, faça já sua matrícula: entre narrativas, discurso, pedagogias
culturais e as escolas privadas
Para pensar sobre isso, abrimos os trabalhos tentando delinear de qual lugar falamos. Já
nos primeiros passos dessa escrita, assumimos uma seleção de lentes teóricas dos Estudos
Culturais e dos estudos foucaultianos para entender e enxergar essa realidade contemporânea.
Costa (2003) nos ajudou a pensar ao afirmar que as realidades são inventadas pelas narrativas
que se tem das coisas, dos objetos e que estas coisas não estão em um plano prontas para serem
alcançadas. Ela afirma que “tudo aquilo a que a modernidade nos ensinou chamar de realidade
não seria mais do que histórias, relatos que têm nos contado como as coisas são. Esses relatos,
ao narrarem as coisas, criam as próprias coisas; eles inventam as realidades” (COSTA, 2003,
s.p.). Sendo assim, passamos a olhar para esse material de marketing veiculado por algumas
escolas privadas como relatos, como narrativas que, ao narrar o projeto pedagógico e os motivos
pelos quais as famílias deveriam optar por aquela instituição no momento de matrícula de seus
filhos, forjam realidades e produzem verdades sobre as formas de ser na sociedade.
Pensar a ideia de que textos culturais regem nossas vidas é possível, também, a partir
dos estudos do filósofo Michel Foucault, que nos ensina que nossa vida está inscrita em uma
ordem discursiva, que diz o que se deve querer, o que se deve sentir, o que se deve fazer e o
que se deve narrar. Foucault, mesmo sem intenção de delinear uma metodologia, nos empresta
seu olhar e seu método para analisar de que forma as narrativas das campanhas de matrícula,
vídeos institucionais e slogans1 fazem emergir verdades que delineiam as características dos
modos de ser sujeito aluno e/ou sujeito professor no sistema neoliberal. Além disso, é
importante ressaltar que as redes discursivas focos de estudo neste ensaio estão imbricadas em
relações de poder, pois quem tem o poder de narrar o outro, em função de um estatuto de
verdade, é quem cria as identidades e quem regula os modos de ser e de agir na
contemporaneidade. Mais uma vez aí percebemos o papel de destaque da escola na produção
de verdades e na construção de identidades, visto que, ao atuar historicamente como instituição
principal na formação dos sujeitos, também tem o poder de narrar o outro. Para Foucault (2004,
p.13), a ideia de verdade remete a uma produção discursiva capaz de constituir nossa maneira
1 Slogan é uma frase curta, de efeito e de fácil memorização que se caracterizam, acima de tudo, pela brevidade,
impacto, comunicação imediata e destinam-se afixar na mente a associação entre uma marca e um argumento
persuasivo capaz de fazer as pessoas se lembrarem de uma empresa, produto ou serviço (GOMES, 2011).
de ser e agir na atualidade, é o “conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro
do falso e se atribui ao verdadeiro, efeitos específicos de poder”.
Mas será que a pedagogia está restrita aos muros escolares? A educação na perspectiva
dos Estudos Culturais, campo de conhecimento que valoriza as artes populares, que entende as
culturas entendidas como modos de vida baseada nas relações sociais, adquire um caráter mais
amplo, não se prendendo às formas organizadas de ensino e aprendizagem, como a instituição
escola. Giroux (1995) diz que a pedagogia ocorre em qualquer lugar onde há discursos e
verdades e, portanto, há uma ampliação do que chamamos de educação e o que adjetivamos
como educativo. Estas ideias são conceitos importantes para pensarmos as campanhas de
matrículas como artefatos culturais que produzem maneiras de ser.
O conceito de pedagogias culturais, apesar de ter surgido num contexto marxista de
denúncia dos malefícios da mídia, é tomado por outro viés neste ensaio. Aqui compreendemos
que, como relata Corazza (2001, p. 29), “para além da instituição escolar, existe e ocorre
"pedagogia" em todo o espaço social em que saberes são construídos, relações de poder são
vividas, experiências são interpretadas, verdades são disputadas”. Sendo assim, pensar a
pedagogia cultural significa pluralizar a pedagogia a partir de uma ideia de educação
permanente da sociedade através da cultura. Nesse sentido, aprendemos modos de ser na
contemporaneidade não apenas no espaço escolar, mas também em todo o espaço social.
Cultura, neste texto, é então tomada como um espaço de possibilidades, que forma e
deforma identidades, que está em constante transformação e movimento, e que é “produzida
por textos, arquiteturas, mercadorias, organizações, regulamentos, enunciados científicos e
instituições” (CORAZZA, 2001, p. 29). Ainda assim, entendemos que, mesmo com todas as
variáveis envolvidas, podemos delinear modos de ser aluno e modos de ser professor regrados,
como já diziam Lopes e Rech (2013), pelas demandas de cada tempo. Em tempos de
neoliberalismo, onde o enfoque está sobre consumo, Saraiva e Veiga-Neto (2009) continuam a
nos auxiliar a pensar à medida que trazem que consumir significa pertencer a este mundo,
sendo, portanto, processo importante para a formação de identidades. Com esta mudança de
racionalidade, muitos significados adquirem nova importância. A escola, por exemplo, passa a
ser um local onde o estudante deve aprender a aprender, não mais de apropriação e recepção de
conhecimentos. A era da informação, descrita nos estudos de Zygmun Bauman dá acesso a
todos os conhecimentos na palma da mão, diferentemente da era do conhecimento. A escola,
fundada em um período moderno e com características daquele tempo e espaço e que se baseava
na concretização de um projeto de vida, passa a lidar com a presentificação e com o futuro
imprevisível.
Bauman (2007) define em suas análises a sociedade de consumidores, sociedade na qual
ninguém se torna sujeito sem tornar-se objeto de consumo em uma racionalidade que reforça,
encoraja e promove a escolha de um estilo de vida, rejeitando as alternativas a este modo de
vida. O autor diz que “a característica mais proeminente da sociedade de consumidores – ainda
que cuidadosamente disfarçada e encoberta – é a transformação dos consumidores em
mercadorias” (idem, ib., p.20, grifos do autor). Assim, todo mundo precisa tornar-se vendável,
objeto de desejo para então poder consumir e pertencer ao mundo em que vive. Dessa forma, a
escola como uma das principais instituições formadoras de sujeitos adquire um papel
importante na formação dessa subjetividade vendável, que tem “qualidades para as quais existe
uma demanda de mercado” (idem, ib., p.75).
O sistema neoliberal em que vivemos exige que permaneçamos em inovação para
continuar competindo e sendo objeto de desejo. Dessa forma, “o princípio de inteligibilidade
do neoliberalismo passa a ser a competição: a governamentalidade neoliberal intervirá para
maximizar a competição, para produzir liberdade para que todos possam estar no jogo
econômico” (SARAIVA; VEIGA-NETO, 2009, p.189). No sistema em que vivemos, regido
pelo princípio da competição, cabe às escolas privadas a responsabilidade de vencer, através da
conquista de novos consumidores, tornando-se assim objetos a serem consumidos e desejados.
Em função disso, na lógica da sobreposição da venda em relação ao produto, essas instituições
têm investido cada vez mais em ações de marketing, promovendo campanhas que circulam nos
principais meios de comunicação como internet e televisão.
Na lente utilizada neste trabalho, a mídia é entendida como criadora e reprodutora de
representações e atua como uma pedagogia cultural. Isso significa dizer que as produções
midiáticas produzem formas de pensar e de agir, que regula o que é aceito apresentando
modelos do ideal (SABAT, 2013). Assim como o Listerine, ao destacar o sujeito empreendedor
como desejável, produz verdades sobre formas de ser, as escolas privadas, ao colocarem em
circulação um padrão de sujeito que supostamente têm capacidade de formar, estabelecem um
modelo ideal de sujeito.
A fim de enxergar que verdades estão sendo postas em circulação, que provocam os
desejos dos sujeitos, optamos pelas ferramentas presentes na oficina de Foucault, procurando
fazer uma análise do discurso posto em circulação nas produções de marketing escolares. Para
Fischer (2002, p. 52), analisar o discurso significa operar sobre documentos, dando conta das
suas relações históricas e políticas, “associando os ditos a determinadas práticas, a modos
concretos e vivos de funcionamento, circulação e produção dos discursos; e correlacionando os
enunciados a outros do mesmo campo ou de campos distintos”. Caracterizar o discurso
educativo proposto e disseminado pelas escolas privadas nos ajuda a compreender que
subjetividades estão sendo vendidas e, por conseguinte, compradas pelos sujeitos sejam eles
participantes do universo educativo privado ou não. A partir do momento que estes ditos
circulam e são compartilhados, determinadas práticas culturais determinam as formas pelos
quais os indivíduos compreendem a si mesmos e o mundo ao seu redor.
3. Ainda temos vagas: o sujeito empresário de si
O que importa agora não é ter muitas mercadorias para vender, mas
ter elementos que façam vencer a competição pela conquista dos
consumidores.
(SARAIVA; VEIGA-NETO, 2009, p. 189)
Com o intuito de conquistar novos consumidores algumas escolas da rede privada de
Porto Alegre veiculam vídeos institucionais promovendo aquele aluno que elas são capazes de
formar. Para a produção dos vídeos, são convidados alunos, ex-alunos, pais e familiares,
profissionais da educação que narram o que pensam sobre a escola e sobre educação, a partir
de suas experiências e de suas vivências naquele estabelecimento de ensino. Esses vídeos, por
sua vez, são consumidos por espectadores em busca de um ideal de formação para sua família,
seus filhos, tendo em vista um futuro próspero e de sucesso. Já aqui podemos perceber a
ambivalência entre a Modernidade Sólida e Líquida de Bauman (2001), apesar da liquidez, da
efemeridade e da presentificação dos tempos líquidos, percebemos tanto nesse movimento das
famílias, quanto nos vídeos institucionais de algumas escolas, essa promoção, tão sólida, de
uma escola que capaz de ajudar na construção de projetos de vida.
Ao pensar sobre a Modernidade Líquida e a educação contemporânea, Saraiva e Veiga-
Neto (2009) destacam que a escola, apesar de ter passado por transformações ao longo do
tempo, está ainda fortemente arraigada na educação disciplinar da Modernidade Sólida. Dizer
isso, para esses autores, implica perceber que a escola ainda está muito centrada na concepção
de um tempo contínuo, linear, um tempo de fábrica. Esse tempo contínuo fabril pressupõe a
continuidade dos processos, portanto torna-se previsível, passível de projeções futuras e ligado
ao adiamento da satisfação. Faz-se hoje para que seja possível prosperar no futuro. É ainda
nessa lógica de tempo contínuo que destacamos alguns trechos dos vídeos institucionais
analisados.
“O aluno que passa da educação infantil ao ensino médio no colégio é alguém preparado para
qualquer desafio”
“Eu acho que o colégio nos ajuda a fazer escolhas para o futuro”
“O aluno sai daqui preparado para a vida”
“Vale a pena correr atrás de um sonho e o colégio vai dar condições para isso”
“Orgulho que inspira o futuro - Inspiração diária que constrói um amanhã mais sustentável –
educa, ensina e prepara”
Preparar-se para a vida, para qualquer desafio ou para correr atrás de seus sonhos é o
adiamento do prazer previsto no tempo contínuo. Dessa forma, compreendemos que essas
passagens operam pela lógica, não do desejo, mas da vontade. A satisfação aqui está ligada ao
futuro, a vontade de prosperar na vida adulta, ao longo prazo. A ideia de prazer dos sujeitos da
Modernidade Sólida engendra-se em uma racionalidade diferente, mais efêmera e não-linear,
tornando perceptível o desencaixe que existe entre o mundo escolar e o mundo social.
Diferentemente do tempo linear, a Modernidade Líquida opera pela lógica do tempo
pontilhista, ou seja, “um tempo descontinuo, marcado pela invencao” (SARAIVA; VEIGA-
NETO, 2009, p. 193). Esse tempo de rupturas, ligado ao prazer imediato, lida com a
imprevisibilidade do futuro e presentifica as relações. Mesmo que ainda fortemente vinculada
ao tempo linear, as campanhas das escolas analisadas sugerem que esses tempos líquidos já
provocam efeitos e algumas rupturas na maquinaria escolar.
Para além de se preparar para o futuro, a inovação também aparece como uma das
verdades postas em circulação. Relacionada ao melhor uso dos recursos tecnológicos, a
inovação passa a ser vista como propulsora de comportamentos empreendedores, para que os
estudantes estejam preparados para a vida, para que saibam administrar situações corriqueiras
ou não.
“Desde a sua fundação, o Colégio investe na inovação e na qualidade de ensino e na busca
constante pela excelência e inovação”
Inovar está na ordem do discurso na Modernidade Líquida. Como já mencionamos, o
que importa é vencer e, para isso, é preciso inovar. Estar sempre mudando, sempre tentando ser
melhor a fim de buscar a excelência são pressupostos que aparecem em praticamente todas as
campanhas aqui analisadas. Se inovar é criar novos mundos, ser consumidor não é mais apenas
consumir um produto e descartar, mas pertencer a esses novos mundos (SARAIVA; VEIGA-
NETO, 2009). Portanto, estar naquelas escolas, de certa forma, implica pertencer a esses novos
mundos por ela criados e reinventados e se formar como um sujeito, também, capaz de criar.
“A gente tá sempre mudando, sempre tentando procurar o melhor”
Segundo Saraiva e Veiga-Neto (2009, p. 189) “a empresa e a catalisadora da inovacao,
da invencao”. Nesse sentido, podemos compreender que as campanhas analisadas, ao destacar
a inovação como um de seus pilares, também colocam em evidência o modelo de empresa, que
opera pela racionalidade neoliberal. O sujeito que essas escolas se propõem a formar, ainda que
sujeitos da ambivalência do tempo linear, que projeta o futuro, e do tempo pontilhista, que
provoca rupturas pela inovação, sustenta-se na lógica do sujeito empresário de si.
No capitalismo empresarial/gestor descrito por Gros (2011) com base no trabalho
foucaultiano, o planejamento estratégico aparece como central na organização empresarial.
Sendo assim, se as dinâmicas humanas e a capacidade de se autogerir são princípios de
inteligibilidade dessa racionalidade, à escola cabe formar sujeitos capazes de aprender a
aprender, sujeitos empresários de si (SARAIVA; VEIGA-NETO, 2009). Aprender a aprender
seria estar em constante reconfiguração de si, ou seja, como destaca uma aluna presidente de
uma miniempresa2 em uma das campanhas de marketing analisadas, implica estar “sempre
mudando, sempre tentando procurar o melhor”.
Pode-se perceber nestas recorrências verdades que formam sujeitos em permanente
reconfiguração de si, em permanente processo de aprendizagem, tornando-se empresário de
si. Aquele sujeito inovador, preparado para a vida, flexível, expert, que trabalha em rede e
que sabe competir (VEIGA-NETO, 2009). A partir disso, é inevitável que a ordem discursiva
mobilizada seja a da concorrência. A sociedade neoliberal é pautada pela concorrência, não
mais pela troca. Esta mudança de racionalidade invoca uma habilidade importante a ser
2 A aluna que diz essas palavras aparece destacada como presidente de miniempresa, um projeto oferecido pela
escola para seus alunos.
desenvolvida que é a da flexibilidade, também recorrente nas campanhas de matrículas.
Sujeitos flexíveis têm a capacidade de aprender a vida toda, procuram evoluir durante todo o
tempo e recriam continuamente o seu eu. O empresário de si que não está continuamente
evoluindo e flexibilizando-se perante as demandas do dia-a-dia está fadado ao fracasso, pois
não há tempo para o desenvolvimento de um projeto que se inicie com a projeção de ser
concluído após um determinado período.
A sociedade neoliberal preconiza sujeitos que maximizam as suas performances, o que
exige a flexibilização perante as normas que os regem. Dessa forma, a flexibilidade torna-se
um produto importante a ser consumido, já que quanto mais flexível o sujeito, mais chance
tem de vencer nas relações de concorrência e tornar-se líder dos demais e de si mesmo. É
visível, no material analisado, o investimento que há por parte das escolas privadas em destacar
o quão importante é a formação de líderes e que sabem gestar seu aprendizado e sua vida, de
forma flexível e aprendendo a todo momento.
“Alunos que se destacam como pessoas”
“Educar para formar líderes “
“Amor, disciplina e alegria acaba formando líderes”
“A maior alegria para um colégio é ver seus ex-alunos capazes de liderar mudanças a partir
dos valores humanos”
Há um investimento em estratégias de ensino que envolvam as chamadas competências
socioemocionais, como ponto de partida para a formação destes líderes, que destacam-se como
pessoas que incorporam em suas vidas as características necessárias para o gerenciamento de
si e dos outros, como o amor e a disciplina. Este deslocamento da escola como um espaço de
transmissão de conhecimento para um espaço de desenvolvimento de habilidades
socioemocionais e de características como a eficiência, a flexibilidade e competitividade são
ideias convergem para o que Bauman (2010) chamou de uma educação moderno-líquida, já
que nunca estamos prontos e somos convocados a aprender ao longo da vida toda, e não mais
aprender para a vida.
De certa forma, estas verdades que fomentam o empresariamento de si na escola regem
também o que o mercado de trabalho procura como mão de obra. Klaus (2011) contribui para
a discussão ao dizer que “na atualidade, o empreendedorismo e o capital humano tornaram-se
valores sociais”(idem, ib., p.83). Partindo dessa visão, e em consonância com a autora, é
possível afirmar que a educação passa a ser responsável pela descoberta e pelo cultivo de
talentos, preparando os indivíduos para “viverem em uma economia dinâmica” (idem, ib.
p.175). Assim, a escola passa a ser cada vez mais necessária de forma que quanto mais
escolarizado é o sujeito, maior a chance de sucesso no mercado de trabalho.
As relações interpessoais e a participação dos alunos em competições como olimpíadas
de conhecimento também são verdades que circulam remetendo a comportamentos desejados
no campo empresarial. Pode-se perceber aí um incentivo à competição, um dos princípios do
sistema neoliberal. Além disso as escolas trazem a divulgação de rankings como forma de
legitimar a qualidade do seu projeto pedagógico, bem como o testemunho de ex-alunos,
reconhecidos em seus respectivos ramos de trabalho, como modelos de sujeitos bem-
sucedidos.
“Eu acho que independentemente da especialização que eu escolher, eu posso ser muito bem
sucedida”
A fim de atrair não só os pais, mas também os estudantes para seus projetos
pedagógicos, as escolas apelam para o uso das chamadas hashtags acompanhadas de frases de
efeito que mobilizam as verdades discutidas até o momento. As hashtags apareceram de forma
recorrente, principalmente nos slogans veiculados em outdoors e redes sociais. Este
mecanismo acaba por criar uma ideia de comunidade e de pertencimento, de modo que ao
escrever e replicar as hashtags, os sentidos ali colocados estão sendo proliferados
infinitamente.
4. Matrículas fechadas: na tentativa de fechar os trabalhos
Buscamos com este ensaio demonstrar que as propagandas fazem circular verdades que
contribuem para a subjetivação de sujeitos escolares na racionalidade neoliberal. Em nossas
análises destacamos que as escolas privadas fazem circular um modelo de sujeito moderno-
líquido que ao preparar-se para a vida, fica enraizado na solidez, e ao se autogestar, desloca-se
para liquidez. É o sujeito da vontade e o sujeito empresário de si, que, em reconfiguração
permanente, compete e lidera a partir de capacidades socioemocionais e de autogestão.
Nessa necessidade de vencer a competição pela conquista de alunos e de produzir um
sujeito que responda às demandas desses tempos, as escolas privadas analisadas entram nos
jogos de mercado, competem entre si e, cada vez mais, proliferam, através da sua produção de
marketing e de comunicação, um modelo de sujeito ideal que deve ser desejado por todos. Costa
(2003, s.p.) novamente nos ajuda a pensar sobre essa disputa ao dizer que
Os significados em uma sociedade ou cultura sao produzidos segundo um
jogo de correlacao de forcas no qual grupos mais poderosos seja pela posicao
politica e geografica que ocupam, seja pela lingua que falam, seja pelas
riquezas materiais e simbolicas que concentram e concedem, ou por alguma
outra prerrogativa atribuem significado aos mais fracos e, alem disso,
impoem a estes seus significados sobre outros grupos.
Nesse sentido, ao disputar significados sobre os sujeitos alunos, as escolas privadas
analisadas, mais poderosas pela sua posição política, especialmente por serem as mais
tradicionais e premiadas de Porto Alegre, acabam por determinar as características necessárias
para um sujeito de sucesso e, ao fazer isso, também excluem da prosperidade todos que não
estão engendrados nessa racionalidade.
Ainda na tentativa de fechar os trabalhos fomos provocadas por Bauman (2008, p. 126)
ao dizer que “para uma sociedade que proclama que a satisfação do consumidor e seu único
motivo e seu maior propósito, um consumidor satisfeito não e motivo, nem propósito — e sim
uma ameaça mais apavorante” (BAUMAN, 2008, p. 126). Sendo assim, para além da conquista
através do marketing, cabe à escola manter seu consumidor satisfeito através de uma estrutura
curricular que dê conta de todos os seus propósitos. Fechar os trabalhos, então, só faria sentido
se abríssemos novas possibilidades: como os currículos dessas escolas contribuem para a
formação desse sujeito moderno-líquido? Essa é uma questão que pulsa para os próximos
caminhos investigativos.
Referências Bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e interpretes: sobre modernidade, pos-modernidade e intelectuais.
Traducao de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
CORAZZA, Sandra Mara. Na diversidade cultural, uma 'docência artística'. Pátio, Porto Alegre, ano V., n. 17,
p. 29-30, mai/jul, 2001. Disponível em: <http://artenaescola.org.br/sala-de-leitura/artigos/artigo.php?id=69323>.
Acesso em: 02 maio 2017.
COSTA, Marisa Vorraber. A pedagogia da cultura e as criancas e jovens das nossas escolas. A Pagina da
Educacao, 2003. Disponivel em: <http://www.apagina.pt/>. Acesso em: 17 abril 2017.
FISCHER, Rosa Maria B., A paixao de Trabalhar com Foucault. In: COSTA, Marisa V. (org.). Caminhos
Investigativos: Novos olhares na pesquisa em educacao. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In: Microfísica do Poder. 2004. Rio de Janeiro, Edições Graal.
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
GIROUX, Henry A. Praticando Estudos Culturais nas faculdades de educacao. In: SILVA, Tomaz T. da. (Org.).
Alienigenas na sala de aula: uma introducao aos Estudos Culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 1995. p. 85-103.
GOMES, Veronica. Slogan: o que é, conceito e referência que você deve ter. Revista MktNews, 2011. Disponível
em: <http://www.revistamktnews.com/2011/01/slogan-assinatura-da-marca.html>. Acesso em: 02 maio 2017.
GROS, Fréderic. Direito dos governados, biopolítica e capitalismo. In: NEUTZLING, Inácio; RUIZ, Castor M.
(Org.). O (des)governo biopolítico da vida humana. São Leopoldo: Casa Leiria, 2011, p. 105 - 122. KLAUS, Viviane. Desenvolvimento e governamentalidade (neo)liberal: da administracao a gestao
educacional.2011. 226f. Porto alegre: Programa de Pós Graduação em Educação, UFRGS, 2011. LOPES, Maura Corcini; RECH, Tatiana Luiza. Inclusão, biopolítica e educação. Educação, Porto Alegre, v. 36,
n. 2, p.210-219, mai/ago, 2013. Disponível em:
<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/12942/0>. Acesso em: 02 maio 2017. SABAT, Ruth. Genero e sexualidade para consumo. In: LOURO, Guacira; FELIPE, Jane; GOELLNER. Corpo,
genero e sexualidade. Petropolis, RJ: Vozes, 2013. SARAIVA, Karla; VEIGA-NETO, Alfredo. Modernidade Líquida, Capitalismo Cognitivo e Educação
Contemporânea. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 34, n. 2, p.187-201, mai/ago de 2009. Disponível em:
<http://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/8300>. Acesso em: 02 maio 2017.