MATRIMÔIOS ILEGAIS (A DIALÉTICA DA IMAGEM E DO COC … · (A DIALÉTICA DA IMAGEM E DO COC EITO)...

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1 UIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JAEIRO MATRIMÔIOS ILEGAIS (A DIALÉTICA DA IMAGEM E DO COCEITO) Plinio Fernandes Toledo RIO DE JAEIRO 2008

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U�IVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JA�EIRO

MATRIMÔ�IOS ILEGAIS

(A DIALÉTICA DA IMAGEM E DO CO�CEITO)

Plinio Fernandes Toledo

RIO DE JA�EIRO

2008

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MATRIMÔ�IOS ILEGAIS

(A DIALÉTICA DA IMAGEM E DO CO�CEITO)

Plinio Fernandes Toledo

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária) Orientador: Prof. Doutor Alberto Pucheu Neto

Rio de Janeiro

2º Semestre de 2008

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MATRIMÔ�IOS ILEGAIS

(A DIALÉTICA DA IMAGEM E DO CO�CEITO)

Plínio Fernandes Toledo

Orientador: Alberto Pucheu Neto

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da

Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária).

Examinada por:

____________________________________________________________

Presidente, Prof. Doutor Alberto Pucheu Neto, Doutor - UFRJ

____________________________________________________________

Prof. Doutor André Luiz de Lima Bueno - UFRJ

____________________________________________________________

Profa. Doutora Elvira Maria Godinho de Seixas Maciel - FIOCRUZ

Rio de Janeiro

Novembro de 2008

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Toledo, Plínio Fernandes.

Matrimônios Ilegais (a dialética da imagem e do conceito) / Plínio Fernandes Toledo. – Rio de Janeiro: UFRJ / CLA, 2008.

VII, 195f.: il.; 13cm. Orientador: Alberto Pucheu Dissertação (mestrado) – UFJR / CLA / Programa de pós-graduação em ciências da

literatura, 2008. Referências Bibliográficas: f. 190-195.

1. Teoria Literária 2. Filosofia da Linguagem 3. Poesia. 4. Literatura 5. Imagem e conceito. I. Pucheu, Alberto. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes. III. Título.

Toledo, Plínio Fernandes.

Matrimônios Ilegais (a dialética da imagem e do conceito) / Plínio Fernandes Toledo. – Rio de Janeiro: UFRJ / CLA, 2008.

IX, 198f.: il.; 13cm. Orientador: Alberto Pucheu Neto Dissertação (mestrado) – UFJR / CLA / Programa de pós-graduação em ciências da

literatura, 2008. Referências Bibliográficas: f. 190-195.

1. Teoria Literária 2. Filosofia da Linguagem 3. Poesia. 4. Literatura 5. Imagem 6. Conceito. I. Pucheu, Alberto. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes. III. Título.

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“A poesia é uma parte do saber quase sempre restringida quanto

à medida das palavras, mas em todos os demais aspectos,

sumariamente livre e, na verdade, é algo próprio da Imaginação;

a qual não estando presa às leis da matéria, pode unir a seu bel

prazer o que a natureza separou, e separar o que a natureza uniu,

e deste modo, fazer matrimônios ilegais e divórcios das coisas

(...).”

(Francis Bacon)

“A eternidade está apaixonada pelas produções do tempo.”

(William Blake)

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Para Ítala, Cristina, Jorge Luis, Luis Fernando, Bruno e Léo,

que me ensinaram a esperar o momento propício;

meus pais,

que desconfiaram;

e Nhá Chica,

por motivos que só ela sabe.

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RESUMO

MATRIMÔNIOS ILEGAIS (A DIALÉTICA DA IMAGEM E DO CONCEITO) Toledo, Plinio Fernandes Orientador: Alberto Pucheu Neto

Resumo da Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Centro de Letras e Artes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária).

Este trabalho discute a relação entre filosofia, arte e literatura. A hipótese defendida

aqui sustenta que a diferença estabelecida entre imagem e conceito emerge de uma má

abordagem através da qual um erro histórico contaminou a consciência moderna

estabelecendo fronteiras artificiais entre a linguagem e a cognição.

Nosso tema consiste em pensar o diálogo entre as “instâncias da linguagem” – a

imagem e o conceito – enfocando a imagem poética como um momento de criação que

guarda, dentro de sua tensão constitutiva, as determinações relativas que foram separadas

pela, assim chamada, consciência fraturada da modernidade. Alguns autores foram

escolhidos como representativos de nossa perspectiva na medida em que em seus trabalhos

tem lugar uma unidade complexa, realizando a convergência entre filosofia e literatura, arte

e cognição, em uma palavra, imagem e conceito.

Sustentamos que as obras de Cummings, Nietzsche, Adorno e Benjamin explicam, de

certa forma, a platônica, uma vez que nelas vem à luz o que estava escondido nas obras do

filósofo ateniense. Tentamos mostrar, portanto, que a relação dialética entre o que

chamamos “instâncias da linguagem” sempre esteve presente nas obras de filósofos-artistas

como “potências mutuamente fecundantes” que a modernidade não conseguiu ver.

Esperamos, assim, conseguir lançar uma luz sobre a importância do mythos e do

logos como forças dialéticas. Através delas, a filosofia desempenha seu papel como uma

articulação complexa que preserva o diálogo frutífero e realiza o matrimônio ilegal da

imagem com o conceito.

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ABSTRACT

ILLEGAL MARRIAGES (THE DIALECTICS OF IMAGE AND CONCEPT) Toledo, Plinio Fernandes Orientador: Alberto Pucheu Neto

Abstract da Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Centro de Letras e Artes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária).

This work discusses the relationship among philosophy, art and literature. The

hypothesis which is aimed is that the difference established between image and concept

arises from a bad approach by means of which a historical error contaminated the modern

conscience that build artificial frontiers to language and cognition.

Our subject consists to think the dialogue between the “instances of language” – the

image and the concept – focusing on the poetical image as a moment of creation that

keeps, into the tension of its constitution, the relatives determinations which was departed

from each other by the, so called, divided conscience of modernity. Some authors were

chosen as representatives of our perspective inasmuch as in her works a complex unity

takes place, realizing the convergence between philosophy and literature, art and cognition,

in a word, image and concept.

We sustain that the works of Cummings, Nietzsche, Adorno and Benjamin explains,

in a certain way, the platonic one, since, in them come into light what in Plato’s works

remains hidden. We try to show, therefore, that the dialectical relationship among what we

call “instances of language” were always present through the craft of philosophers-artists as

“mutual fruitful potentialities” that the modern conscience was unable to see.

We hope, after all, were able to throw a new light on Plato and the importance of

Mythos and Logos as dialectical forces. Here philosophy plays its role as a complex

articulation that preserves the fruitful dialogue and realizes the illegal marriage of image

and concept.

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Sumário

Introdução Imprópria _____________________________________________________________11

Capítulo 1 – Prolegômeno teórico-crítico: o conceito da imagem_________________________16

1.1. Paz entre a imagem e o conceito______________________________________________17

1.2. Duas imagens de Cummings_________________________________________________33

1.3. Coda___________________________________________________________________45

Apêndices_______________________________________________________________________48

Capítulo 2 - Imagem do conceito: experimento de filosofia quase literária__________________50

2.1. Em cena o conceito________________________________________________________51

2.2. O estranho e a ruptura na consciência dos limites_________________________________56

2.3. Deleuze imagina o conceito__________________________________________________61

2.4. De volta ao conceito________________________________________________________65

2.5. Pequena digressão sobre o caminho até as coisas__________________________________71

2.6. Enfim___________________________________________________________________78

Capítulo 3 - A imagem considerada entre dependência e autonomia em relação ao código:

�ietzsche e Adorno, ou a linguagem Dionisíaca e a nova música__________________________85

3.1. Prelúdio_________________________________________________________________86

3.2. A linguagem Dionisíaca e a verdade da arte_____________________________________88

3.3. O sujeito como ficção regulativa_____________________________________________104

3.4. Adorno e a Nova Música: ouvindo a imagem___________________________________110

3.5. Nova música e linguagem Dionisíaca__________________________________________121

Capítulo 4 - Passagem em Walter Benjamin__________________________________________129

4.1.Primeira passagem: o anjo__________________________________________________130

4.2.Benjamin na zona de indefinição: uma passagem para Platão_______________________134

Capítulo 5 - Platão artífice da imagem______________________________________________141

5.1. O muro e mais além: Platão revisitado_______________________________________142

5.1.2. Mênon, ou a imagem na trama dialógica dos conceitos_________________________151

5.2. A imagem como símbolo: o artífice do indiscernível e a potência do nada___________166

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5.2.1. Símbolo_______________________________________________________________169

5.2.2. Entrada na imagem da caverna_____________________________________________174

5.2.2.1. As luzes das sombras e as sombras da luz___________________________________179

Considerações finais______________________________________________________________190

Referências bibliográficas_________________________________________________________194

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Introdução imprópria

“A Prudência é uma solteirona rica e feia cortejada pela Incapacidade”

William Blake

Um velho professor de filosofia me disse há muito tempo que uma boa introdução

deve ser sempre problemática e programática. Na antiga linguagem acadêmica, orientava-

me a proceder de maneira linear, arrumando a disposição do texto de forma a fazer aparecer

primeiro os problemas que me incomodavam e deviam ser resolvidos para, então, mostrar o

programa que devia permitir-me a resolução dos mesmos.

Estabelecer o recorte, a meta e delimitar o campo de problemas. Arrumar bem a

ordem do texto como se se tratasse de um logos apodeitikos. Uma demonstração formal

conseqüente e estruturada sistematicamente. O professor se aposentou e os sistemas

faliram. Será que as academias ainda acreditam na ordem das razões? Enrico Berti

demonstrou que nem mesmo Aristóteles, a quem foi atribuída a paternidade da lógica

formal, acreditava nela e nunca a utilizava.1

A demonstração de um argumento segundo o ordenamento dos problemas de acordo

com as exigências de um programa, embora exiba um rigor formal absolutamente

convincente, não passa do resultado de um jogo de aparências no qual aquele que joga

parece estar no controle.

Escrita de início, antes de se formularem as hipóteses e se organizar o rumo do texto,

dizia ainda o velho professor, a conclusão ilude o leitor ao surgir como desvelamento

mágico do que havia sido programado na introdução e desdobrado no desenvolvimento da

dissertação. Escrito de trás para frente o texto se amarra e parece conseqüente. Dá-se a idéia

de que aquele que escreveu sabia de onde partia e aonde deveria chegar. Quem lê logo

percebe que o escritor está no controle de sua exposição.

Heidegger denunciou o dispositivo no cerne da época da visão de mundo moderna;

Nietzsche diagnosticou nossa fraqueza no anseio pelo controle e na vontade de poder que

plasma a ordem em matéria resistente para depois persignar-se diante de sua própria

1 Cfr. BERTI, Enrico. As Razões de Aristóteles. Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Edições Loyola, 1998. PP. 18-41.

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produção. Numa ordem de mundo virada pelo avesso, a verdade resulta da mentira. Em um

mundo invertido, Debord nos orienta, o verdadeiro é um momento do falso. O espetáculo é

o mapa desse novo mundo e as forças que nos escaparam, não obstante terem sido por nós

libertadas, mostram-se a nós em todo o seu vigor.2

Nosso problema era, portanto, escrever uma dissertação não espetacular tentando

resgatar nela o valor da imagem para a expressão literária e filosófica, situando-as para

além das fraturas alienantes de uma sociedade que, por viver a ilusão dos simulacros,

reduziu a imagem ao visível ao mesmo tempo em que separou falsamente os planos da

expressão. Distinguindo-se campos de significação que em si mesmos não se distinguem

senão de forma artificial, operou-se a cisão entre a imagem e o conceito, a atividade poética

e a teórica, a literatura da filosofia. O controle instrumental sobre os campos delimitados

empobreceu nossa compreensão. A luta pela distinção nos tornou cegos para o poder do

indistinto, para a força dos encontros, para a potência do diálogo. William Blake clamava

que todos os códigos sagrados tinham sido a causa dos erros que contaminaram a

mentalidade moderna. Em seu Casamento do Céu com o Inferno apontava a distinção

falsificadora:

1. Que o Homem possui dois princípios reais de existência, a saber: um Corpo e uma Alma.

2. Que a Energia, chamada Mal, nasce apenas do Corpo; e que a Razão, chamada Bem, nasce apenas da Alma.3

E concluía:

1. O Homem não possui um Corpo distinto de sua Alma, pois o que chamamos Corpo é uma porção da Alma percebida pelos cinco sentidos, as principais portas da Alma nesse período da vida.

2. Energia é a única vida e nasce do Corpo; e a Razão é o limite ou a circunferência periférica da Energia. 4

Ao interpretar a si mesmo e suas circunstâncias o homem produziu um mundo

ilusório de separações e distinções que não encontra amparo na experiência efetiva na qual

os planos se interconectam. O que o conhecimento conseguiu ser? Exegese e não

2 DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de janeiro: Contraponto, 1997. P. 24. 3 BLAKE, William. The Marriage of Heaven and Hell. New York: Dover, 1994. P. 29. 4 BLAKE, William. 1994. Ibid.

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esclarecimento. Nas palavras de Nietzsche: “Ilusão de que algo seja conhecido onde

tenhamos uma fórmula matemática para o acontecer: ele está apenas designado, descrito:

nada mais.” 5 Nessa descrição do acontecer ocorre a simplificação apaziguadora das

oscilações e das dúvidas. A simplificação vence o esclarecimento mediante a oposição

binária de termos excludentes e distintos. Na generalização as coisas são postas em lugares

e organizadas. Não são o que são, mas o que fizemos delas. Estão onde as colocamos.

Desde o início a ação humana é criadora de ficções e falsificadora, mas interpretou-se como

verificadora do realmente existente.

Em troca ganhamos a ilusão da segurança, da regularidade e da previsibilidade em

um mundo regido pela razão instrumental burguesa. Esta passou a mediar todas as relações

mascarando os esforços humanos pelo poder em uma ordem das razões na qual as idéias

claras e distintas linearmente dispostas pareciam ter finalmente descortinado o último véu

que escondia o penúltimo segredo.

Tudo bem arranjado parece tudo previsível. O homem que visitou o céu e, ao sair, foi

solicitado a registrar suas impressões no livro de visitas deixou diante da visão atônita de

Deus o traçado de seu próprio rosto.

Uma dissertação que trabalha, na dialética da imagem e do conceito, a tentativa de

superação das barreiras e limites impostos pela falsa consciência moderna, atando as pontas

que ligam a arte à filosofia, a apresentação imagética ao discurso conceitual - indiscernindo

nos capítulos circularmente articulados literatura, música, pintura, filosofia, devia

forçosamente situar-se num ponto marginal, fora e além das dicotomias e ilusões de

controle. Deveria prescindir de certos dispositivos. O que estamos fazendo ironicamente.

Uma introdução que não introduz, mas circula os problemas e na indefinição nômade do

proceder dialético busca figurar o todo na tensão dinâmica da imagem. Servindo-me das

palavras de Alberto Pucheu:

“A inteira completude de tudo que se refere à linguagem filosófica, poética ou

literária se perfaz através da encruzilhada entre o que e o como dizer.” 6

E ainda: “Este é o motor da poética, da filosofia, da teoria enquanto invenção de uma

escrita implícita e explicitamente literário-poético-teórico-filosófica, conduzido ao extremo

5 NIETZSCHE, F. W. Fragmentos Finais. Tradução Flávio R. Kothe. Brasília: Editora da UNB, 2007. P. 157. 6 As palavras de Pucheu foram extraídas do programa de seu curso ministrado no PPGCL em 2006.

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por intermédio de alguns pensadores ocidentais. Neste sentido, sendo teórica, a filosofia se

sabe desde sempre como literatura, como poética, não precisando ficar sombreada pela

literatura como a critica literária parece ficar.”

Nosso projeto é, como o programa de Pucheu, visivelmente de cunho interdisciplinar,

“além de comparar diferenciando-os, o modo filosófico e o crítico do habitual de abordar o

literário, busca-se mostrar as confluências da maneira filosófica e da literária, a zona em

que ambas se misturam a tal ponto que já não podemos saber se se trata de uma experiência

filosófica ou literária.” 7

Mediante a dialética da imagem, tentamos realizar, em conformidade com as palavras

acima, extraídas da voz de Pucheu, uma abordagem das experiências intercambiáveis do

tratamento imagético que povoa os trabalhos filosóficos e literários, buscando numa zona

de indistinção e indiscernibilidade as convergências que a razão moderna separou.

Nosso experimento não separa artificialmente os campos nem se ocupa em definir

conceitos. Antes, colocamos em ação uma forma de pensar que supera a analítica e realiza

mediante a confluência dos campos a crítica que se enriquece através da mútua fecundação

entre o que sempre esteve ligado: razão e imaginação. Para nós era necessário livrar a

razão, por assim dizer, dos trapos sujos que não lhe serviam e vesti-la com a imaginação;

arrancar os farrapos podres da memória pela inspiração. Uma iluminura de Blake ilustra:

nela o mau demiurgo chamado Urizen, uma figura polissêmica que sugere muito mais do

que o criador do universo físico, Jehovah, carrega na ambigüidade do nome a referência

imagética à demarcação alienante. Suas implicações fonéticas produzem um significado

abrangente e, ao mesmo tempo, crítico, porquanto Urizen = our reazon = horizen. Como a

figura de barbas pintada em The ancient Days, Urizen afasta-se da eternidade e se inclina

na direção do vazio escuro com seu compasso para medir, dividir e aprisionar.

Incomodados pela imagem de Blake e pela perplexidade kafkiana, não nos ocupamos

em estabelecer metas, nem delimitar cancelas burocráticas que guardem os documentos em

um pseudo-ordenamento falseador. A ilusão do limite e da ordem foi implodida pela

impotência dos personagens de Kafka que anseiam por um sentido que não se revela,

buscam um objetivo que se afasta à medida que caminham em sua direção, tentam entender

7 PUCHEU. Ibid.

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um limite de sentido que se evapora quando estão próximos de captá-lo; patinam no vazio

enquanto buscam apoio em um solo inconstante que não lhes oferece substrato.

Ao contrário, devemos partir da imagem, redefinida através de um texto seminal de

Otávio Paz, vale dizer, de uma visão dialética do conjunto, do múltiplo a partir da nervura

de suas tensões, e daí seguir o fluxo das forças em movimento. Deixar ser levado ao invés

de ser origem de um esforço. Os surfistas de Deleuze e os dobradores de papel sabem mais

do que o meu antigo professor, pois se situam no centro da onda e se dobram às exigências

de sua matéria. O papel da imagem, em sua dinâmica no redemoinho dos signos, dobra-se

interiorizando a sombra do conceito que ao se desdobrar ilumina as figuras que aquela

guardou. Ser aquilo que afigura, afigurando o que é. Para isso, a imagem deve ser por nós

desdobrada e redescoberta. Reaberta como janela a um novo horizonte da palavra

perpetuamente renovada.

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1. Prolegômeno teórico-crítico: o conceito da imagem

“Pensar é respirar. Reter o alento, deter a circulação da idéia: produzir o vazio para que o ser aflore. Pensar é respirar porque pensamento e vida não são universos separados e sim vasos comunicantes (...) (...) à poesia, reino onde nomear é ser. A imagem diz o indizível (...)” (Otávio Paz. O Arco e a Lira) “¿El arte es una consecuencia de la insatisfacción ante lo real? ¿O una expresión de reconocimiento por la felicidad disfrutada? En el primer caso, romanticismo; en el segundo aureola y ditirambo (en resumen arte de apoteosis).” (Nietzsche, Frg. Post. 2[114])

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1.1. Paz entre a imagem e o conceito

Goethe imaginou que quando o pensamento está perdido no mar uma palavra nova é

como uma jangada. Melhor: uma janela que abre à alma uma região do ser antes

desconhecida ou inexplorada. Uma palavra antiga pode, no entanto, ser nova quando seu

sentido é renovado para além dos jargões comuns nos quais foi aprisionada pelo hábito.

Para nós a nova palavra apresentou-se no contexto da redescoberta de uma velha. O

que a resignificou. A concepção de Imagem conforme desenvolvida por Otavio Paz em um

ensaio de o Arco e a Lira. No entanto, de imediato percebemos que na concepção de Paz

escondia-se ainda um proceder antigo, uma vez que ele pensava em termos disjuntivos,

esquecendo-se que em seu texto mostrava um conceito: o de imagem e o desenvolvia de

forma brilhante.

Precisar o significado do que a fórmula goetheana encerra nos levaria muito longe.

No entanto, a distância percorrida nos aproximaria de nosso propósito. Poderíamos parodiar

aquilo que a impenetrável língua alemã diz traduzindo o dito como algo assim: a descoberta

de uma nova palavra abre-nos um novo mundo de possibilidades. Mas às vezes a nova

palavra é o núcleo revestido por uma forma significante velha. Estamos acostumados, numa

civilização do espetáculo, a pensar mal, e quando digo mal aludo à maneira errônea,

limitada e unidimensional, do que aquilo que a imagem significa. A imagem: o que se

apresenta imediatamente diante da percepção sensível; ou o que se representa na superfície

da expressão imediatamente apreensível; ou o que se mostra sem intermediários ao sentido;

o que salta diante da visão: o ilusório que cintila na frente de um aparato passivo receptor; a

representação do sensível imediato e enganador; o simulacro em sua acepção redutiva de

cópia imperfeita e imediatamente apreensível. Numa definição de dicionário, a imagem é

“Reprodução, quer concreta, quer mental, daquilo que foi percebido pela visão (com ou

sem nova combinação dos elementos que compõem esta imagem.” 8

Representação mental, geralmente enfraquecida, de uma sensação precedentemente

experimentada. A imagem é a aparência e as aparências enganam. Confundimos a imagem

com o simulacro, com a mentira e a separamos assepticamente daquilo que perseguimos

8LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. Tradução Fátima Sá Correia; Maria Emília V. Aguiar; José Eduardo Torres; Maria Gorete de Souza. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1999. P. 512.

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enquanto amantes da verdade. Pois a verdade é aquilo que se esconde por trás da imagem;

aquilo que a imagem obscurece e impede de ver. Pensemos certo e pensemos por parcelas

nitidamente distintas. A imagem não nos serve como representativa do que buscamos

porque ela mente; e mente por ser superficial e vazia. A imagem é, portanto, uma palavra

que os buscadores do saber não sabem representar ou temem pronunciar. Tal como um

devoto indeciso envergonha-se de declarar sua crença no meio de tantos descrentes, o

artista, o criador, o poeta teme pertencer a uma classe inferior: aquela que produz imagens,

logo, que trata de nos engambelar com aparências enganadoras. O criador imita o falso

porquanto reproduz a aparência e, quando não sobra nenhum vestígio da arte representativa

na imagem elaborada pelo criador, ele simplesmente nos engana erigindo monumentos à

incompreensão. Ainda hoje a compreensão falha e deixa às claras o preconceito. Numa

conferência sobre Platão pude ouvir a perplexidade de um interlocutor indeciso: “mas não

se pode reduzir Platão a um poeta.” Evidentemente, do ponto de vista tradicional ao qual se

acostumou trancafiar as sobras do que resta de Platão, a filosofia seria uma forma superior

de discurso dirigido à compreensão do ser enquanto a poesia uma inventora de ficções sob

os auspícios da musa completamente avessa ao mundo e, quando muito, incapaz de

representar o real nas teias de fumo da imagem. Há uma demarcação de fronteiras típica da

mente racionalista: de um lado o pensamento e o conceito, de outro a visão poética e a

imagem: ambos incomunicáveis e absolutamente distintos. Clareza e distinção cartesianas

não parecem ser atributos da imagem e sim dos conceitos. Mas, quando descobrimos a

ambivalência fundamental dos conceitos, que eles excluem e no ato de excluir criam a

região inabitada por eles mesmos, produtos de sua ação restritiva, sobras irracionais de sua

ação racionalizante, vemos que o conceito não é tão preciso assim e que a imagem, em sua

amplitude de visão abarca uma região muito mais ampla do ser que a razão

instrumentalizada percebia: precisa melhor.

No capítulo introdutório à obra Modernidade e Ambivalência, Z. Bauman trata de

elaborar algumas precisões conceituais, embora seja da imprecisão e da impossibilidade de

nomear e categorizar de forma unívoca que ele trata. Aqui o conceito de ambivalência é

caracterizado não como desordem ou patologia da linguagem e do discurso, mas como

decorrente do uso categorial normal da linguagem. Eis uma primeira tese que o autor

sustenta com argumentação tão sutil quanto precisa:

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19

A ambivalência é o alter ego da linguagem e sua companheira permanente – sua condição normal. O impulso classificatório consistente em atribuir ao mundo uma estrutura no intuito de eliminar toda imprecisão e casualidade produz a partir da sua própria instauração aquilo que pretende evitar.9

Esforçando-se em sustentar a ordem e negar ou suprimir o acaso e a contingência, a

linguagem conceitual produz um mundo ordenado e gnosiologicamente confortável à

consciência humana. Sua função nomeadora/classificadora tem, no entender de Bauman, o

propósito de prevenir contra a ambivalência. E, no entanto, é exatamente o exercício

daquilo que caracteriza a função categorial da linguagem o que constitui a fonte última da

ambivalência e a razão pela qual é improvável que ela jamais se extinga realmente.

Bauman percebe o esforço contraditório da classificação: a ambivalência é um

subproduto da classificação e convida a um maior esforço classificatório. Assim, a luta

contra a ambivalência é ela mesma ambivalente, vale dizer, tanto autodestrutiva quanto

autopropulsora. “Ela prossegue com força incessante porque cria seus próprios problemas

enquanto os resolve.” 10

A esperança do conceito em nomear univocamente é uma ilusão autodefensiva. Não

há unicidade na nomeação da mesma forma que não há um sentido universal sem a relação

do mesmo com uma força que dele se apropria. O conceito não é distinto da imagem, mas

seu correlato substancial: entre os dois existe um diálogo incessante e fecundo cuja

natureza passou despercebida pela mentalidade moderna ávida em fixar limites e

estabelecer critérios para o controle. Aquilo que Deleuze imaginou conceitualmente como o

nomos sedentário. Não obstante tais limites não terem sido nunca exatos nem fixados na

natureza mesma da coisa, o nomos sedentário só construiu suas cancelas em completo

desconhecimento de sua própria impotência e relatividade como sugere a irônica e sagaz

brincadeira de Douglas Adams com a falsa piada sobre os esquimós e a neve:

E estava chovendo naquela hora, para variar um pouco.

9 BAUMAN, Z. Modernidade e Ambivalência. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. P. 11. 10 Ibid.

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20

Era um tipo específico de chuva, que ele detestava especificamente, sobretudo quando estava dirigindo. Tinha um número para ela. Era a chuva tipo 17. Havia lido em algum lugar que os esquimós têm mais de duzentas

palavras diferentes para a neve, sem as quais as suas conversas possivelmente seriam bastante monótonas. Eles distinguiam então entre neve fina e neve grossa, neve leve e neve pesada, neve derretida, neve quebradiça, neve que vem acompanhada de uma rajada de vento, neve que é levada pelo vento, neve que vem trazida pelas solas das botas do seu vizinho e arruínam o chão limpinho do seu iglu, as neves do inverno, as neves da primavera, as neves da sua infância que eram tão melhores do que essas neves modernas, neve fina, neve aerada, neve de colina, neve de vale, neve que cai pela manhã, neve que cai à noite, neve que cai de repente bem na hora em que você ia sair para pescar e neve na qual os seus huskies siberianos mijaram em cima, apesar de todos os seus esforços para treiná-los. Rob Mckenna tinha duzentos e trinta e um tipos diferentes de chuva

anotados no seu caderninho, e não gostava de nenhum deles. 11 Poderíamos somar aqui o desconforto borgiano de Funes, o memorioso que não conseguia

pensar porquanto sua prodigiosa memória não lhe permitia formar conceitos. Guardava

cada detalhe de cada coisa em cada micro intervalo de tempo de tal forma vertiginosa que

generalizar era uma tarefa impossível para ele; e sem generalizações não era possível a

formulação de categorias gramaticais com as quais relacionar os eventos em um mundo

estável ,compreensível e seguro porquanto regido por leis rígidas. Salvo do mundo imóvel e

artificial da linguagem categorial é aprisionado no labirinto movente do redemoinho do

mundo: o vertiginosos mundo de Funes. Vejamos:

Os dois projetos que indiquei (um vocabulário infinito para a série natural dos números, um inútil catálogo mental de todas as imagens da lembrança) são insensatos, mas revelam alguma balbuciante grandeza. Deixam-nos vislumbrar ou inferir o vertiginoso mundo de Funes. Este, não esqueçamos, era quase incapaz de idéias gerais, platônicas. Não lhe custava compreender somente que o símbolo genérico cão abrangesse tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; aborrecia-o que o cão das três e quatorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quatro (visto de frente). Seu próprio rosto no espelho, suas próprias mãos deslumbravam-no cada vez. Menciona Swift que o imperador de Lilliput discernia o movimento do ponteiro dos minutos; Funes discernia continuamente os tranqüilos avanços da corrupção, das cáries, da fadiga. Notava os

11 ADAMS, D. Até mais, e obrigado pelos peixes. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Sextante, 2005. PP 13-14.

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progressos da morte, da umidade. Era o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente exato. 12

O desespero cômico da multiplicação dos nomes não consegue contornar a impotência das

categorias, ou melhor, das chancelarias kafkianas. Há um desconforto aqui que ilumina,

familiar à dívida reconhecida por Foucault em relação a Jorge Luis Borges na apresentação

de seu livro As Palavras e as Coisas, ao qual voltaremos no capítulo seguinte. Por ora

cumpre notar que a pluralidade sempre acha uma forma de escapar à vã pretensão das

categorias. Não obstante ela pode ganhar não um contorno definido, mas uma mediação

possível entre o evento e a linguagem quando esses são colocados no mesmo plano

evitando a ambivalência da representação.

Por exemplo, quando se sabe que a imagem depende do conceito para ser decifrada,

percebe-se que ela cifra alguma coisa que não está imediatamente dada ao mesmo tempo

em que capta, não na forma, mas na relação, um movimento possível de ser intuído no jogo

da construção e da desconstrução: no diálogo entre as duas potências. No momento de sua

redenção, no entanto, ela é novamente diminuída pela falsa consciência que não identificou

na figura que se tornou complexa demais para ser afastada com um simples julgamento de

valor o símbolo de um jogo que sempre existiu, mas que estava próximo demais para ser

percebido. Mesmo na arte dita figurativa, na poesia aparentemente representativa, o

simbólico se escondeu sob a forma da cifra: a arte sempre se constituiu num tecido em que

a representação, a crítica e o pensamento reflexivo se viram frente a frente, não obstante

não se terem reconhecido no trabalho que realizaram.

A imagem guarda muita coisa e ela não é a figuração do imediato nem nunca foi. Da

mesma forma que a arte jamais representou a linguagem dos simulacros e das imitações do

falso. Não cabem aqui as exclusões nem as definições que buscam o recorte preciso porque

este jamais existiu. Há a luta com e contra a palavra e as formas da representação que busca

no tecido da linguagem elaborar o tecido do mundo. A imagem surge como categoria do

inapreensível ou como figuração do múltiplo e de suas tensões reais. Mas quando isso

acontece? Não nos interessa quando: não se trata de traçar genealogias ou determinar

paternidades. Acontece quando decidimos acontecer.

12 BORGES, J. L. Ficções. Tradução Carlos Nejar, 6ª edição. São Paulo: Globo, 19995. P.116.

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A imagem foi descoberta como um novo continente por Otávio Paz, mas ele só

explicitou aquilo que já deveríamos ter visto antes. No entanto porque não admitir: ele

descobre no antigo termo uma nova palavra e o redimensiona. Abre, assim, para nós que

procuramos um novo mundo um mundo novo. É a partir daí que começamos. A partir do

conceito de imagem redesenhado por Otávio Paz. É nossa primeira fonte e nosso primeiro

analisador que posteriormente aplicaremos ao estudo dos casos particulares que nos

interessam. Veremos que eles são representantes do que aqui descobrimos e que através da

análise que se adensa de Nietzsche a Platão alguns preconceitos serão desfeitos e uma

compreensão mais ampla da arte literária em sua relação com a filosofia será possível.

Precisar a natureza e função da imagem e do conceito em Nietzsche e Platão exige

uma trajetória não linear. Antes de podermos entender como a transição matizada da

metáfora ao conceito conduz em Nietzsche à superação de uma dicotomia redutivista e

enganadora e a qualificação, em Platão, do mito em oposição ao conceito ilude a unidade

que subjaz ao discurso do filósofo-poeta - que construiu o conceito como forma de

abordagem da verdade mas que, não obstante, não renunciou à metáfora e ao mito como

instrumentos capazes de chegar aonde a linguagem conceitual não poderia ir - necessitamos

de uma pequena digressão pelos caminhos do poético em sua relação com o lógico: é

preciso entendermos a relação entre a imagem e o conceito.

De fato, muito antes de Nietzsche, Platão em seu imenso repertório de mitos buscou

uma abordagem de problemas pela ficção que nos revelou um gênio poético em nada

inferior ao rigor teórico. Isso, se concordarmos em conceder à poesia seu verdadeiro status

e toda a sua dignidade. Nas palavras de Geneviève Droz,

não uma outra maneira, agradável e sedutora de exprimir um pensamento que já lá se encontra, mas a expressão do que, precisamente não se pode dizer na linguagem da racionalidade; expressão do que está, ao mesmo tempo, aquém e além do pensamento conceitual; expressão do inconcebível.13 (DROZ, 1997 p. 16)

Muito mais do que distinguir a linguagem do mito e da poesia apontando-as como

formas superiores ou inferiores de referência e expressão de uma ordem de coisas que foge

13 DROZ, G. Os Mitos Platônicos. Tradução de Maria Auxiliadora Ribeiro Keneipp. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. P. 16

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ao discurso conceitual, é necessário compreender a interação entre as formas do discurso e

a maneira como Platão e Nietzsche constantemente sugerem que usemos os vários registros

de uma mesma potência. Imagem e conceito não se opõem, mas se completam uma vez que

a inteligência que perscruta elabora na trama de sua urdidura um diálogo constante em que

os termos se transmutam e se ilustram mutuamente. São duas afirmações de uma mesma

potência. Platão faz uso de uma imaginação do conceito e de uma conceitualização da

imagem, nele mito e logos se interconectam na trama dialética da linguagem que cria

parâmetros dinâmicos de referência ao múltiplo, captando na teia do discurso a

multiplicidade em sua unidade e dissolvendo a unidade do discurso na multiplicidade do

que se mostra na apresentação.

O mito é um discurso imagético que espera a decifração do conceito para que brilhe

em intensidade expressiva na dimensão do logos, ao mesmo tempo em que o logos é uma

forma de articulação da linguagem que se encarna apenas na dimensão poética do mito. Os

temas que abordaremos em Platão: a conexão entre as esferas do discurso e sua mútua

dependência, bem como a articulação das mesmas na interação dialética dos planos da

oralidade e da escritura. Assim, tentamos demonstrar que não há dicotomias: imagem

poética – discurso conceitual; mythos – logos; – oral – escrito; mas integração de elementos

do discurso que se somam e dialeticamente se completam.

Entre logos e mythos, Platão não fará sua escolha, pois ele sabe, ou sente muito bem, sua necessária complementaridade. Platão é, indissoluvelmente e no seu sentido mais nobre, filósofo e poeta. Ou, no sentido grego, filósofo e músico.14

Divide-se comumente o discurso em esferas de incomunicável estreiteza. O artista

seria aquele que pensa por imagens, o filósofo o que pensa por conceitos, o religioso por

símbolos, o cientista por algoritmos. A cada esfera de compreensão uma dimensão

exclusiva do discurso e um padrão redutivo de significado. Com a pré-compreensão de uma

cultura que se pauta pelas dicotomias e separações, que isola os fios e depois se perde no

labirinto de fragmentos que ela mesma produziu, o intérprete navega neste mar da

incompreensão. Onde o humano se instala é preciso que se reconheça o traço da

humanidade que ele imprime em suas produções ou as pegadas que deixa como marcas de 14 DROZ, Geneviève, 1997. Op. cit. P 16.

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sua trilha. Ali onde impera a exclusão também vigora a incomunicabilidade e a

incompreensão. É preciso, portanto, remeter o discurso à unidade de sua multiplicidade

entendendo-o como plano de significação que se desdobra em diversos graus e se

multiplica em várias formas apenas para se reunir em unidade superior na qual as

determinações se interconectam e se compõem como múltiplo e uno, não excludentes, mas

inter-referentes. Difícil a tarefa que nos impomos. Para cumpri-la escolhemos servir-nos de

um ensaio de Otávio Paz sobre a imagem, buscando completá-lo e estendê-lo naquilo que

ele mesmo deixou sugerido na aparente ambigüidade de sua formulação.

O brilho e a riqueza do texto de Otávio Paz não evitam a consideração de uma

aparente contradição que se esconde em sua fórmula. A imagem é um conceito apresentado

como alternativa ao conceito; a imaginação como recurso superior ao pensamento

conceitual porquanto não procede segundo o recorte redutor do objeto nem tampouco

através das dicotomias e oposições alienantes, mas é capaz de reunir em si, numa visão

simultânea, toda a riqueza de determinações da coisa. Paz ilustra o valor da imagem em

relação ao conceito: neste o pensamento empobrecido se perde em busca de captar a

realidade nas malhas da abstração; naquela a imaginação poética contorna os limites do

conceito e intervém somando ao real um símile que carrega dele a inteira gama de suas

qualidades voltando-o sobre si mesmo. Tudo aquilo que se perde no conceito é salvo na

imagem.

É preciso que se faça aqui um breve percurso pelo o que Paz nos apresenta em sua

formulação.

De início tem-se uma definição bastante geral e sumária do que significa a imagem.

Segundo o autor, ela é tudo aquilo que possui uma pluralidade de significados incluindo

toda forma verbal, frase ou conjunto de frases que o poeta diz e que, unidas, compõem um

poema. As imagens seriam todas aquelas expressões verbais classificadas pela retórica tais

como as comparações, símiles, metáforas, jogos de palavras, símbolos, alegorias, mitos

fábulas, etc. Mas essa apresentação ainda fica demasiadamente no fenomenológico não

expressando o nexo que une todas essas representações num liame comum que as

caracterize a todas segundo uma mesma significação. Chega-se a isso apontando,

primeiramente, a característica comum que compartilham todas as imagens e que nos

permite identificá-las. Essencialmente, todas as imagens são expressões verbais nas quais

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se consegue preservar a pluralidade de significados da palavra sem, ao mesmo tempo,

quebrar a unidade sintática da frase ou conjunto de frases. Cada imagem – ou cada poema

composto de imagens – contém muitos significados contrários ou díspares aos quais abarca

ou reconcilia sem suprimi-los. Toda imagem aproxima ou conjuga realidades opostas,

indiferentes ou distanciadas entre si submetendo à unidade a pluralidade do real.15 No

interior da imagem são preservadas as características diferenciais das coisas, bem como

suas qualidades sensoriais, sem perdê-las na abstração. E aqui Paz diferencia a imagem do

conceito.

Ao contrário do que permite a imagem, o conceito opera uma espécie de redução

racional da realidade mediante a qual as qualidades particulares das coisas são convertidas

em unidades homogêneas mutilando-se todas as diferenças que as constituem. O conceito

reduz e empobrece a realidade tornando possível a comparação de coisas que são

absolutamente distintas na percepção. Usando o exemplo de Paz,

Não sem justificado assombro as crianças descobrem um dia que um quilo de pedras pesa o mesmo que um quilo de plumas. Custa-lhes muito reduzir pedras e plumas à abstração quilo. Dão-se conta de que pedras e plumas abandonaram sua maneira própria de ser e que, por uma escamoteação, perderam todas as suas qualidades e sua autonomia. 16

O mesmo não ocorre com a poesia:

O poeta nomeia as coisas: estas são plumas, aquelas são pedras. E de súbito afirma: as pedras são plumas, isto é aquilo. Os elementos da imagem não perdem o seu caráter concreto e singular: as pedras continuam sendo pedras, ásperas, duras, impenetráveis, amarelas de sol ou verdes de musgo: pedras pesadas. E as plumas, plumas: leves.17

O poeta é o construtor de imagens e o poema a imagem corporificada, seja ele épico,

dramático ou lírico desenvolvido em mil páginas ou condensado em uma frase. Nas

imagens mais altas as coisas - ao contrário do que acontece no conceito - são o que são,

15 Cf. PAZ, Otávio. O Arco e a Lira. Tradução Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1982. P.120 16 Ibid. p. 120. 17 Ibid. p.120.

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vale dizer, não são neutralizadas pela lógica científica nem absorvidas no processo de

superação dialética de suas particularidades.

A imagem não se deixa captar, segundo Paz, pela lógica nem pela dialética, ambas

dependentes do princípio de contradição. Ao nomear as coisas preservando o seu aspecto

singular e concreto, o poeta enuncia de certa forma uma espécie de identidade de contrários

que escapa por completo à lógica e à dialética. Atentando contra os fundamentos do nosso

pensar a realidade poética da imagem não pode aspirar à verdade. O poeta não diz o que é e

sim o que poderia ser; seu reino, o poema, não é o reino do ser, mas do “impossível

verossímil” de Aristóteles.

A reconciliação que a imagem opera não implica em uma redução lógica nem em uma

transmutação dialética da singularidade de cada termo. A imagem não quer deter o fluxo

das coisas nem classificar o real em categorias estanques e isoladas umas das outras às

quais é possível aplicar os princípios da lógica e arranjar um tipo de proceder intelectual

que intrumentaliza a razão distanciando-a da realidade concreta em seu acontecer móvel e

plural.

Mas, desde Parmênides, todas as tentativas de apreender o ser por caminhos diversos

dos ditados pelos princípios lógicos foram relegadas pela cultura ocidental a uma vida

subsidiária, clandestina e diminuída e, assim, o homem foi desterrado do fluir cósmico e de

si mesmo. Extravio que se deu nos dois sentidos da palavra, pois ao distanciarmo-nos de

nós mesmos acabamos por nos perdermos do mundo. À redução empobrecedora do

conceito somou-se a dicotomia alienante do eu e o tu, do sujeito cognoscente e da coisa

conhecida. O que, segundo Paz, não aconteceu ao pensamento oriental porquanto este não

sofreu do “horror ao outro”, ao que é e não é ao mesmo tempo. Se o mundo ocidental é o do

“isto” ou “aquilo”, da disjunção parmenídica, o oriental é o da identidade dos contrários, o

do “tu és aquilo”. Forma de pensar não substancialista, não reificadora, mas relacional e

integrativa, a consciência oriental pôde expressar sua doutrina, unindo ciência e poesia,

referindo-se ao ser de maneira não alienada e não excludente, como é possível deduzir do

trecho de Chuang Tsé que afirma

Não há nada que não seja isto; não há nada que não seja aquilo. Isto vive em função daquilo. Tal é a doutrina da interdependência disto e daquilo. A vida é vida diante da morte. E vice-versa. A afirmação o é diante da negação. E vice-versa. Portanto, se alguém se apóia nisto, teria de negar aquilo. Mas isto possui sua afirmação e sua negação e

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também engendra seu isto e seu aquilo. Portanto, o verdadeiro sábio despreza o isto e o aquilo e se refugia no Tao (...)18

Conhecimento não transmissível em fórmulas ou raciocínios transforma a verdade em

uma experiência, ou melhor, retém o conteúdo de experiência que deve possuir toda

compreensão se se pretende verdadeira. Atesta-se aqui o valor da imagem como

instrumento de conhecimento e da poesia como veículo de acesso ao ser. Ao contrário do

conceito amarrado ao leito de Procusto das fórmulas lógicas, a imagem poética induz a

experiência de abertura dos canais do corpo e do espírito e de apuro dos sentidos: somos

convidados a empreender a viagem e nos defrontarmos com a mirada vertiginosa e vazia da

verdade: “Vertiginosa em sua imobilidade; vazia em sua plenitude.”19

A prédica sem palavras do taoísmo e do zen não é a do exemplo, mas de uma

linguagem que seja mais que a linguagem: palavra que diga o indizível. No reino da poesia

onde nomear é ser, em que através da e na imagem diz-se o indizível, as plumas leves são

pedras pesadas. A aproximação com o pensamento oriental distingue na imagem suas

qualidades expressivas ao mesmo tempo em que permite apontar as limitações intrínsecas

ao pensamento conceitual. Se a imagem agrupa em unidade orgânica a pluralidade da

experiência salvando-a em seu acontecer múltiplo, o conceito procede pela seleção de

certas configurações nas séries sempre fluentes e múltiplas das impressões que ferem os

nossos sentidos ou brotam dos processos espontâneos da mente, fazendo com que se

detenha diante delas e lhes confira uma “significação” particular. A tendência prosaica da

linguagem conceitual empurraria o sentido das coisas numa direção única fazendo as

palavras apontarem para um mesmo objeto ou direção. Recorte categorial do objeto e

unidirecionamento do sentido integram-se como formas de artificialização e redução

daquilo que pulsava na experiência vital. A pluralidade do significado desaparece sob o

conceito na medida em que este exclui das palavras certos significados considerados

secundários e fixa-se na determinação de um núcleo ideal que agrupa todas as qualidades

em essências abstratas. O caminho que conduz ao conceito é o mesmo que leva ao universal

abstrato, este fantasma sob o qual não sobrevivem mais as diferenças, as tensões, o jogo das

oposições e os movimentos que constituem o real em seu múltiplo acontecer. A imagem

18 Citado Por PAZ, 1982. O. Op. cit., P. 125. 19 PAZ, O. 1982. Op. cit., P. 126.

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possui então, se a tomamos em relação aos limites da linguagem categorial e lógica, valor

gnosiológico porque nela a pluralidade de significados não desaparece uma vez que ela

recolhe e exalta todos os valores das palavras sem excluir os significados primários e

secundários.

Mantém a tensão de forças contrárias sem perder a unidade e sem se converter em um

mero disparate. Quer dizer: a imagem não é nem um contra-senso nem um sem-sentido.

Pergunta então Paz: “Qual pode ser o sentido da imagem, se vários e díspares significados

lutam em seu interior?” A resposta é que as imagens possuem sentido em diversos níveis:

1- Possuem autenticidade porque são expressões vivas e genuínas da

experiência de mundo do poeta;

2- Constituem uma realidade objetiva, válida por si mesma: são obras nas

quais o poeta faz mais do que dizer a verdade; ele cria realidades que

possuem uma verdade: a de sua própria existência. Isto significa que a

imagem tem sua própria lógica, mas a verdade estática da imagem só vale

dentro de seu próprio universo;

3- As imagens do poeta nos dizem algo sobre o mundo e sobre nós mesmos

e esse algo, ainda que pareça um disparate, nos revela de fato o que somos.

Veremos o quão bem se aplicam ao poema de Cummings esses três postulados. Por

enquanto cumpre ressaltar alguns aspectos significativos da imagem abordados por Paz aos

quais ainda não demos atenção.

Focalizando o momento objetivo da percepção devemos observar que esta é a

apresentação imediata de uma pluralidade de qualidades, sensações e significados que se

reúnem em torno de um objeto percebido. Essa pluralidade se unifica instantaneamente no

momento da percepção e o elemento unificador de todo esse conjunto de qualidades é o

sentido. Assim, o sentido não é só o fundamento da linguagem como também de toda

apreensão da realidade. Segundo a fórmula de Paz: “nossa experiência da pluralidade e da

ambigüidade do real se redime no sentido.” 20 A imagem poética, à semelhança da

percepção comum, reproduz a pluralidade da realidade e, ao mesmo tempo, outorga-lhe

unidade.

20 PAZ, O. 1982. Op. cit., P. 131.

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29

A imagem procede por uma operação unificadora que não é descritiva, nem linear e

nem, tampouco, abstrata. No poema o objeto, seja qual for, é uma presença instantânea e

total, que fere de golpe a nossa atenção guardando a totalidade de suas qualidades no

construto verbal. Neste sentido, o poeta não descreve o objeto, mas coloca-o diante de nós,

tal como acontecia no momento da percepção, conservando todas as suas qualidades

contrárias e, no ápice, o significado. A imagem reproduz assim o momento único da

percepção instaurando o sentido mediante o jogo das tensões em que se coloca o objeto

diante do leitor.

O verso, a frase-ritmo, evoca, ressuscita, desperta, recria. Ou, como dizia Machado: não representa; apresenta. Recria, revive nossa experiência do real. (...) A ambigüidade da realidade, tal como a apreendemos no momento da percepção: imediata, contraditória, plural e, não obstante, possuidora de um sentido recôndito. Por obra da imagem produz-se a instantânea reconciliação entre o nome e o objeto, entre a representação e a realidade. (...) Esse acordo seria impossível se o poeta não usasse a linguagem e se essa linguagem, por meio da imagem, não recuperasse sua riqueza original.21

Mas, alerta Paz, essa volta das palavras à sua natureza primitiva é apenas o início da

operação poética em que ainda não se apreendeu completamente o sentido da imagem

poética. Voltando a atenção para um aspecto constituinte da linguagem tomada em sua

função referencial Paz observa que toda frase que se pode construir refere-se sempre a outra

frase mediante a qual é explicada. Em conseqüência dessa operação, todo o sentido na

linguagem torna-se um querer dizer, ou seja, um dizer que se pode dizer de outra maneira.

Ora a imagem traz em si mesma o seu sentido. O que significa que não se pode jamais dizer

com outras palavras aquilo que a imagem diz em sua forma singular. A imagem é auto-

referencial, explica-se a si mesma, e isto somente porque nela sentido e figuração são a

mesma coisa. Toda imagem é imagem de seu próprio sentido e o sentido que ela é ou

instaura é representação semântica de sua própria forma. Orações e frases usadas na

linguagem comum são sempre meios. A imagem não é meio, sustentada em si mesma ela é

o seu sentido. Nela acaba e nela começa: o sentido do poema é o próprio poema.

21 PAZ, O. 1982. Op. cit., PP. 132-133.

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30

Em sua autocompletude a imagem faz com que as palavras percam a sua mobilidade,

isto é, a capacidade de uma palavra ser explicada por outra, e intermutabilidade, ou seja, a

possibilidade de se dizer de muitas maneiras uma mesma coisa. Na imagem, ao contrário,

os vocábulos se tornam insubstituíveis, irreparáveis. Deixam de ser instrumentos. Não

sendo mais objeto à mão a linguagem deixa de ser utensílio, instrumento de uso, e chama a

atenção sobre si mesma na peculiaridade de sua forma de apresentação na qual sentido e

expressão se unificam. Nesse retorno à sua natureza original operada pela poesia através da

imagem, a linguagem deixa finalmente de ser linguagem enquanto conjunto de signos

móveis e significantes. “Nascido da palavra, o poema desemboca em algo que o

ultrapassa.” 22

Otávio Paz exprime aqui uma contradição fundamental que se verifica quando a

linguagem volta-se sobre si mesma tornando sua própria significação. A contradição da

experiência poética que, sendo irredutível à palavra, não obstante, só pode ser expressa pela

palavra. Ao transcender a linguagem o poema torna-se linguagem em tensão que vive do

conflito de suas próprias contradições.

Retomando a busca pelo que a imagem significa pode-se afirmar, enfim, que ela é o

seu próprio sentido e nela a linguagem ultrapassa o círculo dos significados relativos, o isto

e o aquilo e diz o indizível. Enquanto a linguagem indica e representa, o poema não indica

nem representa: apresenta. Não alude à realidade; pretende – e às vezes consegue – recriá-

la. Portanto, a poesia é um penetrar, um estar ou ser na realidade. Na imagem, enfim, a

pluralidade do real manifesta-se ou se expressa como unidade última, sem que cada

elemento perca a sua singularidade essencial.

Pode-se perceber claramente a marca da cultura oriental em todo o texto de Paz. De

fato, sua formulação desemboca numa superação da dicotomia sujeito/objeto, mediada pela

imagem poética, muito próxima daquele estado de indiferenciação alcançado na meditação.

Segundo Paz, “A imagem transmuta o homem e converte-o por sua vez em imagem, isto é,

em espaço onde os contrários se fundem.”23 Afirma ainda que “A poesia coloca o homem

fora de si e simultaneamente o faz regressar ao seu ser original...” para terminar na fórmula

heideggeriana: “A poesia é entrar no ser.”24

22 PAZ. Ibid. p.135. 23 PAZ. Ibid. p. 137. 24 PAZ. Ibid. p. 138.

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31

No entanto, acredito imperativo para meu propósito tentar superar a contradição

identificada acima na formulação da idéia de Paz: nela a imagem é definida em

contraposição ao conceito, portanto concebida em oposição àquilo que a determina

essencialmente. Não é difícil mostrar que o texto está cheio de conceitos e que se move,

apesar do brilhantismo poético, no plano das categorias que servem de elementos de apoio

à elucidação das posições assumidas pelo autor. Fácil porque não há nenhuma possibilidade

de elaborar distinções, definições e relações sem o uso de conceitos. Inseridos no plano

lógico da argumentação os conceitos servem como meios para a explicitação do

pensamento: tanto para a análise do objeto quanto para a fundamentação das proposições

num plano universalmente compreensível e de validade geral. Por outro lado, o conceito é

ele mesmo, Paz não percebe, um construto humano tão artificialmente elaborado quanto a

imagem, e o que os diferencia não é a atividade que se esconde por detrás da realização

deles, mas o plano discursivo no qual se situam e o grau de generalidade que comportam.

Gilles Deleuze esclarece a relação entre o conceito e atividade construtiva - seja ela poética

ou filosófica - em uma passagem fundamental de seu curso sobre Leibniz, que cito

integralmente:

Leibniz é um dos filósofos que nos faz compreender da melhor maneira possível a resposta a esta pergunta: ‘o que é a filosofia?’. ‘O que faz um filósofo?’. ‘De que se ocupa?'. Se pensarmos que as definições que buscam o verdadeiro, ou que buscam a sabedoria não são adequadas, haverá, pois, uma atividade filosófica? Quisera dizer, muito rapidamente, como reconheço um filósofo em sua atividade. Não podemos confrontar as atividades mais que em função do que elas criam e de seu modo de criação. Basta perguntar: que é o que o carpinteiro cria? O que é o que um músico cria? O que cria um filósofo? Um filósofo é, para mim, alguém que cria conceitos. Isto envolve muitas coisas: que o conceito seja algo por criar, que o conceito seja o término de uma criação. Eu não vejo nenhuma possibilidade de definir a ciência se não se indica algo que é criado por e na ciência. Agora bem, encontra-se que o que é criado por e na ciência, eu não sei bem dizer o que é, porém não são conceitos propriamente falando. O conceito de criação tem sido vinculado muito mais à arte que à ciência ou à filosofia. Que é o que cria um pintor? Cria linhas e cores. Isso implica que as linhas e as cores não estão dadas, são os términos de uma criação. No limite, o que está dado pode sempre ser chamado de fluxo. Os que estão dados são os fluxos, e a criação consiste em recortar, organizar, conectar os fluxos, de tal maneira que se desenhe ou se realize uma criação ao redor de algumas singularidades extraídas dos fluxos.

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32

Um conceito (ou idéia), não é algo que está dado. Ainda mais, um conceito não é o mesmo que o pensamento: pode-se muito bem pensar sem conceitos e, inclusive, todos aqueles que não fazem filosofia, eu creio que eles pensam, que eles pensam plenamente, porém que não pensam por conceitos, se aceitamos a idéia de que o conceito seja o término de uma atividade ou de uma criação original. Eu diria que o conceito é um sistema de singularidades extraídas de um fluxo de pensamento. Um filósofo é alguém que fabrica conceitos. 25

Em Deleuze a atividade filosófica aproxima-se da poética, no texto de Paz abre-se um

abismo entre imaginação poética e pensamento conceitual; no entanto, a imagem, definida e

captada nas malhas do conceito, é ela mesma uma categoria empregada habilmente na

compreensão do significado e do sentido da arte poética. O que ele efetivamente faz. Mas é

verdade que existe aqui uma contradição ou apenas diferença de função?

A imagem é ela mesma o objeto que nomeia, corporificando na forma verbal o

conteúdo que ela expressa; o conceito representa o objeto, não sendo ele mesmo a coisa

representada, vale dizer, diferenciando entre representante e representado na representação.

A imagem é resultado de um procedimento singularizador; o conceito é o fim de uma

atividade construtiva que resulta numa forma universal que quer captar aspectos gerais das

coisas. A imagem apresenta-se integralmente diante do leitor como síntese das oposições

resolvida na objetificação de sua forma orgânica; o conceito representa para o leitor o nexo

essencial da coisa que ele capta em sua forma lógica. A imagem é objeto, o conceito,

instrumento mediante o qual a inteligência se dá objetos ao representá-los. Como

instrumento analítico o conceito permite explicitar para a inteligência os mecanismos e as

relações que sustentam a integridade ontológica das coisas. Assim, ele não deve se opor à

imagem, mas pode servir de meio para a análise e compreensão da própria imagem num

plano que se situa acima da pura apreensão imediata de sua forma de apresentação. Caso

não fosse possível a análise conceitual da imagem toda a crítica seria impossível e a leitura

do poema um engano. A imagem pode prolongar-se no conceito e retornar a si mesma

como plena concreção do que se insinuava apenas na percepção ou na superfície da leitura.

25 Deleuze, Gilles, Curso de terça feira - Leibniz, (15/04/1980), Disponível em http://www.webdeleuze.com/php/texte.php?cle=49&groupe=Leibniz8langue=3. Acesso em 21/09/2007.

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33

Partindo da imagem para o conceito e retornando à imagem pode ser um bom percurso para

a crítica: o que permite a concreção do objeto mediante o pensamento.

A ilusão da separação das esferas se desfaz. A linguagem retorna a si mesma como

imagem e conceito que se completam. No entanto é preciso ainda exemplificar na análise

de uma forma radical de construção imagética o quanto de verdade alcançamos até agora

em nossa proposta. Façamos uma leitura de Cummings. Nela devemos ilustrar o

entrelaçamento da imagem no conceito e vice-versa: na forma poética a referência mais

rica ao múltiplo sensível e, simultaneamente, no conceito que a forma cria o casamento da

razão com a sensibilidade. É nesse campo de referência que deveremos retornar a Nietzsche

e a Platão. Aqui evitamos o falso pressuposto de que existam dicotomias alienantes entre

potências da linguagem porquanto em nosso trajeto teórico e prático, que quer persegurir

uma idéia e, ao mesmo tempo, demonstrá-la mediante a análise em sua manifestaçãoes

concretas, não encontramos nada que sustente a falsa compreensão que recusamos, a saber,

que exista um traçado nítido entre as formas da imaginação e do pensamento e que uma

diferença de valor as distancia. Ao contrário, veremos que a imagem e o conceito, nossos

personagens lingüísticos eleitos, não possuem função nem significado em separado, mas

que, quando se atenta para o movimento que os reúne constantemente, que os dobra um

sobre o outro, sustentam-se mutuamente mediante a ação construtiva do discurso e do texto

e na relação inextrincável entre ambos.

1.2. Duas imagens de Cummings

“... ler o mundo nas malhas da obra.”

(J. G. Merquior)

Alguns poemas de Cummings constituem a representação mais clara e a realização

mais completa do que se entende por imagem. Não a imagem como imitação do objeto ou

evento, como figuração óbvia e imediata da aparência, mas como rearticulação da

linguagem em função das necessidades expressivas que envolvem o leitor na tarefa de

construir a coisa através do ato consciente da leitura. Não acontece em Cummings aquilo

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34

que Montaigne denunciara como “vã sutileza”, como artifícios fúteis para atrair a atenção

do leitor. 26 Todas as tensões estão guardadas nas relações entre os signos, algumas vezes

atomizados até o ponto de se extrair significados das letras, das unidades mínimas de

composição das palavras. Mas o mundo está lido na obra e nas malhas da obra o crítico

deve reencontrar o mundo. Não há em nenhum momento a gratuidade do dado.

Cummings é conhecido pelo estilo não usual utilizado em muitos de seus poemas, que

incluem o uso não ortodoxo tanto das letras quanto da pontuação, com as quais,

inesperadamente, sem motivo imediato e de forma aparentemente errônea é capaz de

quebrar a frase, interrompê-la ou mesmo desconstruir as palavras individualmente. Muitos

de seus poemas possuem também uma distribuição não convencional e uma total

reorganização do espaço verbal, aparentando pouco ou nenhum sentido até serem lidos com

cuidado. Apresentados como unidade compacta de diferenciações que se resolvem

harmonicamente no interior do espaço poético redefinido, esperam, desafiadoras, o trabalho

ativo da leitura, da interpretação que passa necessariamente pela paciência do conceito. Ou

melhor, neles evidencia-se o duplo trabalho do conceito, desde a construção do objeto

verbal, no cuidado arquitetônico da composição, até a necessidade imposta ao leitor da

análise que aqui se posta antes da compreensão. O leitor deve apropriar-se relativamente do

significado e alcançar a fruição estética mediante o trabalho conceitual. A imagem está ali à

espera do conceito como um convite à decifração.

Algumas pequenas peças cuja potência sintética é inigualável evidenciam a

inteligência construtiva que atua more geometrico colocando a razão a serviço da

sensibilidade e do êxtase. A relação entre pensamento, imaginação e sensibilidade em

Cummings é perfeita e o próprio Otavio Paz o reconhece em artigo intitulado “E. E.

26 Cito a passagem de Montaigne como ilustração do que quero dizer: “Os homens recorrem por vezes a sutilezas fúteis e vãs para atrair a nossa atenção. Assim, os que escrevem poemas inteiros em que todos os versos começam pela mesma letra. Na antiga literatura grega deparamos com poemas em forma de ovo, de bola, de asa, de machadinha, obtidos mediante a variação das medidas dos versos que se encurtam ou alongam para, em conjunto, representar tal ou qual imagem. A ciência de Fulano que se divertiu como calcular de quantas maneiras se combinavam as letras do alfabeto, e achou esse número incrível que Plutarco menciona, também participa desse gênero de singularidades. Aprovo a atitude daquele personagem a quem apresentaram um homem que com tamanha habilidade atirava um grão de alpiste que o fazia passar pelo buraco de uma agulha sem jamais errar o golpe. Tendo pedido ao outro que lhe desse uma recompensa por essa habilidade excepcional, atendeu o solicitado, de maneira prazenteira e justa a meu ver, mandando entregar-lhe três medidas de alpiste a fim de que pudesse continuar a exercer tão nobre arte.” (MONTAIGNE, Ensaios, Capítulo LIV, “Das vãs sutilezas”; tradução de Sérgio Milliet, 3ª edição, São Paulo: Abril Cultural, 1984.)

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35

Cummings: recordação”, inserido no volume “Signos em rotação”, quando afirma: “Os

poemas de Cummings são filhos do cálculo a serviço da paixão.”27 O poema é um ponto de

convergência entre as palavras e o mundo. Conforme Paz, “Ali as árvores se abraçam, a

chuva se despe, a moça reverdece, o amor é um raio, a cama é uma barca. O poema é um

emblema da linguagem da natureza e dos corpos. O coração do emblema é o verbo; a

palavra em movimento, o motor e o espírito da frase.”28

Tome-se como exemplo o famoso poema-gafanhoto

r-p-o-p-h-e-s-s-a-g-r

who

a )s w( e loo ) k

upnowgath

PPEGORHRASS

eringint ( o-

A The ) : l

eA

!p:

S a

( r

rIvInG .gRrEaPsPhOs )

to

rea ( be ) rran ( com ) gi ( e ) ngly

,grasshopper; 29

27 PAZ, Otávio. Signos em Rotação. Tradução Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976. P. 232. 28 Ibid. pp. 232-233. 29 CUMMINGS, E.E. Complete Poems: 1904-1962 By E. E. Cummings, Copyright 1923.

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36

A aparência do poema na página não corresponde, não obstante o esforço da

imaginação, ao salto de um gafanhoto. Como dissemos, apoiados em Montaigne, não se

trata de pura habilidade de arremessador de alpiste. O fato importante a ser percebido é que

o arranjo espacial não é em si mesmo imitativo, como é o caso da pintura ou desenho

representativos nos quais as linhas e cores efetivamente assemelham-se a certo objeto. A

espacialização é aqui governada, como percebeu Norman Friedman, pela ruptura e

combinação das sílabas e das pausas e da ênfase colocada no significado que produz um

equivalente figurativo para o sujeito do poema, enquanto o leitor procede à leitura.30

Enquanto este tateia e se perde na jornada que deve empreender ao longo dessa confusão de

sílabas, letras e pontuação incomum, sua mente vai gradualmente construindo as conexões

que obtém através da leitura: “grasshopper, who, as we look, now upgathering into himself,

leaps, arriving to become rearrangingly, a grasshopper.”31 Quando examina o poema

inteiro, uma ou duas vezes, o leitor acaba por recriar em sua mente o efeito real de um

gafanhoto pulando, que Cummings descreve dinamicamente como saltando, desintegrando

e se recompondo. O gafanhoto não está aqui representado por um conceito, um nome

designativo de uma série de objetos semelhantes, mas apresentado como um evento

singular que se organiza através da dinâmica da leitura e é recuperado em seu acontecer

pela linguagem. Um evento lingüístico que guarda em sua forma particular de organização

as relações objetivas do mundo.

O tecido da linguagem remete ao tecido do evento não o imitando ou representando

abstratamente nem, tampouco, referindo-se a ele como acontecimento comum, mas

concretizando o seu acontecer singular na imagem: única e irrepetível.

O acontecer não é preso na categoria, nem apagado na abstração; retido em sua

manifestação singular na apresentação imagética é posto em movimento no processo de

leitura através do qual o pensamento o reconstrói e vivifica. Um jogo entre a sensibilidade e

a razão no qual os signos, ao serem dispostos em uma ordem que transgride as normas da

linguagem usual, criam as suas próprias regras que devem ser adivinhadas pelo leitor. O

efeito que o autor espera que se alcance é parcialmente produzido pelo fato de as sílabas de

“grasshopper” serem rearranjadas acrosticamente quatro vezes (incluindo a ortografia

30 Cf. FRIEDMAN, Norman, E.E.Cummings: the art of his poetry. Baltimore: John Hopkins Press, 196. Pp. 123-124. 31 “Gafanhoto, que, enquanto olhamos, reunindo-se, num salto reordena-se como um gafanhoto.”

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37

normal); parcialmente pela distribuição dos parênteses, sinais de pontuação e maiúsculas; e

parcialmente pela reunião, desmembramento e espaçamento das palavras. A intenção global

não é, assim, primariamente visual, mas imagética e estética. A ruptura com o uso comum

da linguagem é pressuposto de uma retomada da experiência em sua configuração concreta:

mobilidade, riqueza e completude. Não a completude generalizante dos esquemas

categoriais, mas do evento singular recuperado na riqueza de sua singularidade.

O gafanhoto permanece sendo para nós ação: ele não é embalsamado no conceito nem

imobilizado na palavra: decomposto na rearticulação da linguagem ele é recomposto na

percepção resultante de um esforço do pensamento.

A quebra do mecanismo deve produzir a quebra das expectativas que pelo hábito

tornaram-se automáticas: arrancado de sua passividade o leitor é convidado a participar do

processo de construção da imagem. Aliás, o processo só ocorre com a participação do

leitor. Sem ela as palavras são signos mortos dispostos no papel.

As asserções governadas pelas convenções da linguagem comum são todas lineares

em sua disposição espácio-temporal: sucedem-se na ordenação espacial da escritura e no

tempo da recitação. A realidade é afigurada na linguagem segundo relações lineares de

categorias que ocupam os lugares comuns do discurso. “O gafanhoto salta na grama.”

Sujeito e predicados estão separados pela ordem gramatical da oração. O evento padece sob

o tecido linear e generalizante do discurso. Ele deve ser esvaziado antes de ser

compreendido, tornado moeda gasta que se troca por qualquer mercadoria de acordo com

referenciais puramente quantitativos. Desvitalizada a expressão a linguagem degrada-se em

utensílio; acaba por se tornar, conforme sentenciou Heidegger, pura tagarelice. Em virtude

da perda de sua capacidade de mostrar na forma de suas relações a experiência viva que

cintilava na percepção a palavra fecha-se para a capacidade de figurar uma multiplicidade

de significados. Heidegger afirma que “relegar a palavra animada e vigorosa à imobilidade

de uma seqüência de signos unívoca, mecanicamente programada, seria a morte da

linguagem e a petrificação e devastação do homem.” 32 Compare-se com o significado

atribuído por Paz à imagem: “Cada imagem – ou cada poema composto de imagens –

contém muitos significados contrários ou díspares aos quais abarca ou reconcilia sem

32 HEIDEGGER. Nietzsche. The Will to Power as Art. trad. D.F. Krell. New York, 1979. P. 149.

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38

suprimi-los. Toda imagem aproxima ou conjuga realidades opostas, indiferentes ou

distanciadas entre si submetendo à unidade a pluralidade do real.” 33

O salto, a desintegração e a recomposição captados no interior de um jogo de signos

que oscilam constantemente diante da leitura, arrancando a linguagem de sua forma inerte

de figuração lógica mediante a desarticulação rearticulação da palavra. A unidade

conseguida através da oscilação dos significados e pela forma não linear e múltipla do

arranjo das palavras. Unidade na multiplicidade; mobilidade e tensão dos signos que se

esquivam da redução à univocidade operada pela sintaxe comum; significados díspares

abarcados num sentido global sem serem suprimidos em sua singular disparidade. Eis uma

imagem de Cummings.

A poesia de Cummings fratura a linguagem no intuito de recuperar sua potência

expressiva e, ao mesmo tempo, salvar o leitor da passividade induzida pelo hábito e quem

sabe ajudar o homem a se salvar da devastação. A reinvenção do espaço e do tempo

expressivos induz à reinvenção necessária da ordem da leitura. Mediante um dispositivo de

intensificada precisão e vitalidade Cummings está ajustando a maneira que o leitor lê ao

mesmo tempo em que reordena o modo como a linguagem refere-se ao mundo. A

reordenação da linguagem está a serviço da recuperação de sua vitalidade perdida na

tagarelice da linguagem categorial e lógica e emparedada pelo hábito.

Amplificando o efeito da métrica, sugerindo na forma a coisa ou idéia apresentadas,

alterando e reforçando significados, acelerando e retardando o tempo da leitura e

realinhando a trilha a ser percorrida por ela: tudo mobilizado como meio de a vitalizar

experiência estética na construção imagética do poema. Recuperada a vida dos signos, está

salva a verdade da linguagem: verdade que consiste em desvelar as coisas, em iluminá-las

ou lançar uma luz sobre elas que tenha alcance suficiente para permitir uma aproximação

precisa do fundo de onde brotam os eventos configurados em suas relações singulares.

A obra experimental de Cummings provoca, como a de Mallarmé, uma crise na

linguagem ao mostrar a instável e oscilante relação entre significados, entre significado e

forma e entre diferentes categorias gramaticais. Derrida sustenta que esta crise é o resultado

da “lógica da linguagem e não uma distorção aberrante dela.” Além do mais, afirma que a

crise é, simultaneamente, nova – “nós ainda estamos desenvolvendo métodos críticos

33 Cf. supra, P. 03.

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39

adequados a ela” – e muito antiga – tão antiga quanto Platão e Aristóteles.34 O poema em

discussão é “l(a”:

l(a

le

af

fa

ll

s)

one

l

iness35

Este poema semelhante a um haiku foi descrito como “a mais delicada e bela

construção literária que Cummings jamais criou.” 36

Consistindo em apenas quatro palavras que o poema divide em duas frases distintas –

“loneliness” e “a leaf falls” – esta pequena obra-prima de concisão e originalidade gerou

amplo espectro de análise crítica. Comecemos com algumas posições estabelecidas.

34 DERRIDA. Acts of Literature. Ed. Derek Attridge. London: Routledge, 1992. p. 37. 35 CUMMINGS, 1923, op. cit. Encontram-se em apêndice ao final do capítulo os dois poemas na versão portuguesa de Augusto de Campos. 36 KENNEDY, Richard S. Dreams in the Mirror: A Biography of E. E. Cummings. New York: Liveright, 1980. P. 463.

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40

A princípio, a conexão entre as duas frases parece tênua. A queda de uma folha é um

evento concreto ao passo que a palavra “solidão” é um conceito abstrato. Não obstante, a

crítica convencional efetuou a ligação. Rusworth Kidder, que percebeu o poema como

“uma breve descrição do outono”, enuncia que “a queda de uma folha é uma metáfora para

o isolamento físico e espiritual”.37 Barry Marks, em uma leitura bastante detalhada, pede ao

leitor que apreenda as duas frases simultaneamente e em conjunto e verifique as várias

possibilidades que emergem. Assim, “solidão torna-se uma folha caindo” ou “o sentimento

de solidão é como o sentimento que uma pessoa tem ao observar a queda de uma folha.”

Marks conclui que “não demora muito até que o outono, o fim da estação de crescimento

das plantas, chegue a significar a morte do ano.” 38 Outono e outono da vida humana –

morte e solidão se entrelaçam.

Tal especulação pode ser interessante para a crítica, mas não nos conduz ao poema.

Este nos pede que olhemos para a página impressa. A forma do poema induz uma atitude

interpretativa que nos força a percebê-lo como um artefato ou construto verbal, ou seja,

como uma obra de arte. A ruptura evidencia-se a princípio pela disposição vertical das

palavras contrariando o modo convencional de se construir as frases escritas. A ordem que

nos parece natural é a que se tornou comum no Ocidente: seguindo o plano horizontal, da

esquerda para a direita. A inversão operada pela organização espacial do poema impõe

assim uma alteração na direção da leitura. Se o poema pretende conjugar a forma ao

conteúdo, figurando aquilo que descreve, a linha horizontal torna-se inadequada. É preciso,

de início, sugerir o movimento da folha que cai mediante um artifício verbal que induza o

olho do leitor a descrever um movimento similar como se acompanhasse a queda de uma

folha até que ela repouse no “solo”: “iness” - a última e mais longa linha do poema. Assim,

a organização do todo se dá em função da forma expressiva e da conservação da

singularidade do evento mediante o artifício verbal.

Percebe-se que o poema está organizado em estrofes de linhas alternadas 1-3-1-3-1,

ao passo que as primeiras quatro linhas alternam vogais e consoantes indicando talvez a

oscilação da folha ao cair.

37 KIDDER, Rushworth M. E. E. Cummings: an introduction to the poetry, New York: Columbia University Press, 1979. PP. 200-201. 38 MARKS, Barry. E. E. Cummings. New York: Twayne, 1964. P.23.

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41

Enquanto o olho do leitor desce a página, é deslocado pela inversão das vogais e

consoantes produzindo o efeito pendular. Os dois parênteses auxiliam na produção do

efeito de movimento. Dispostos como estão na vertical produzem um jogo visual de

atrações opostas que faz com que se tenha a impressão de um ligeiro tremor no movimento

das vogais.

Norman Friedman, ao analisar o poema, enfatiza: “As quatro primeiras ‘linhas’

compõem-se inteiramente de uma consoante e uma vogal: dois ‘l’, dois ‘f’, três ‘a’ e um

‘e’. Esta configuração sugere, através de suas adejantes alternâncias, a queda flutuante da

folha:

l(a

le

af

fa

A próxima ‘linha’ consiste em um duplo ‘ll’, insinuando uma pausa no seu

movimento para baixo. Daí o poema conclui:

s)

one

l

iness

o que sugere o hesitante deslizamento e a queda final da folha. Mas há mais, pois

Cummings explora ao máximo a palavra ‘loneliness’: o seu espacejamento extrai pelo

menos mais três níveis de significado – ‘alone’ (só), ‘one’ (um) e ‘oneliness’

(unicidade)”.39

39 Citado por Augusto de Campos. E. E.Cummings: 40 poem(a)s. São Paulo: Brasiliense, 1986. Pp. 27-28

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42

Exemplo magnífico de discurso não representativo, mas imagético, o idioma analítico

de Cummings submete a língua a uma desarticulação que produz uma hesitação entre a

forma e o conteúdo através da multiplicação do sentido, da exploração da ambigüidade dos

termos e, mais radicalmente, da fragmentação das palavras. Assim, tanto as palavras quanto

as letras assumem valores que não poderiam possuir na linguagem comum. Cummings

consegue trazer para dentro da forma do discurso o conteúdo daquilo que queria figurar na

própria apresentação da imagem-movimento: nela a folha se desloca bordando no tecido da

solidão a imagem de seu próprio isolamento: o “cair da folha” e a “solidão” não são

categorias separadas pelos dois parênteses, mas unidos por eles: integradas em um mesmo

acontecer que as entrelaça, reúnem o verbo e substantivo em uma unidade que faz

convergir planos que se separavam na representação comum. Limites entre coisa e evento

são transpostos: explorando a ambigüidade da palavra “Fall” - que tanto pode significar cair

como outono – o verbo torna-se substância e a substância verbo. Da simpatia entre

sensação e acontecimento, a solidão da folha que cai e a estação tornam-se unas com o

sentimento do poeta unificando sujeito e objeto. O poema torna-se uma alegoria do outono,

da solidão, do fim da vida ou da unidade que abarca o observador e a coisa observada. A

polissemia dissemina-se pelo próprio tema amplificando suas possibilidades de

significação.

A imagem enquanto afiguração não representativa da experiência em suas tensões e

oscilações constitutivas consegue o que o conceito não permite: integrar forma e conteúdo

no jogo material dos signos. A palavra folha, inserida no plano da construção imagética, no

qual se articula com a palavra solidão e nela se integra através da desarticulação sintática

do discurso, move-se do concreto ao abstrato tornando-se solidão e vice-versa. A folha

deixa de ser termo concreto contraposto ao abstrato da solidão para integrar-se nela,

compondo um único plano – nem material nem imaterial – em que concreto e abstrato

movem-se, transformando-se um no outro e vitalizando semanticamente um ao outro. Folha

e solidão ampliam suas possibilidades semânticas ao se integrarem na imagem; não deixam

de ser o que são – a tensão é mantida – nem permanecem sendo o que aparentemente são,

mas ganham novas dimensões mediante o jogo de associações postas em movimento na

forma orgânica do poema. Em outras palavras, “folha” e “solidão” ao serem fragmentadas

como signos no construto verbal se reintegram no processo de apreensão do texto mediado

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43

pela leitura. O evento da queda apresentado pela inversão espacial do discurso e na fratura

material dos signos insere visualmente uma palavra noutra e as põe em movimento. Neste

movimento, mais semântico do que material, embora materialmente figurado, dois torna-se

um – substância converte-se em ação e ação se substancializa; concreto e abstrato

dissolvem-se e se recompõem na dinâmica verbal. Unidade na multiplicidade, movimento

no repouso.

No terreno do procedimento singularizador percebe-se a folha despregando-se ‘l’,

tensionando-se ao cair “ff” - “s” e repousando na última estrofe do poema “ss”. De cima

para baixo: ruptura, movimento e repouso que se pode acompanhar no deslocamento das

consoantes e na horizontalização da ultima estrofe.

A primeira estrofe:

l(a)

anuncia o tema e define o núcleo semântico do poema. O tema é a unidade do múltiplo e o

sentido, contido no mínimo espaço poético, repousa no jogo das correspondências em que

os planos convergem para a unidade que os engloba. Note-se a ambigüidade pretendida

pelo autor ao explorar a similitude material da letra “l” com o numero “1” e a dupla

valência do “a” – artigo indefinido e número: “um(a)”. O poema abre com a apresentação

emblemática do seu significado. Na duplicidade do signo a oscilação do sentido e, assim, o

máximo de significado com um mínimo de recursos expressivos. De início já se coloca, da

forma mais sintética possível, a unidade do objeto na duplicidade do valor dos signos.

Na segunda estrofe:

le

af

fa

a atomização da palavra somada à disposição vertical do verso coloca a folha em

movimento de queda no interior de uma estrofe composta de três sílabas separadas de

forma não convencional. O passear do “l” que se dinamiza em “f” para depois repousar na

estrofe seguinte em

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44

ll

compõe a queda da folha que oscila e descansa para, em seguida, retomar o movimento até

o fim da queda, tendo percorrido um caminho traçado no interior do substantivo concreto,

do substantivo abstrato e do verbo, unificando-os. Os dois “ll” também podem significar,

além do repouso, a duplicidade que se resolve em unidade nas próximas estrofes quase

discursivas “s)” “one”, ou seja: “ll” is “one”. A unidade que se havia perdido é recuperada

na estrofe que se beneficia novamente da ambigüidade gráfica:

l

tendo-se a fórmula: ll=one=l. A última estrofe re-expõe o tema convertendo unidade em

substância:

iness

ao mesmo tempo em que retoma a direção vertical do discurso mostrando que a solidão, o

um e a unidade se entrelaçam pelo movimento de ruptura e retomada da visão comum. No

fim, a pacificação dos dois sentidos da leitura e a reafirmação da unidade do múltiplo.

D. John Grossman, tradutor de diversos poemas de Cummnings para o francês,

sublinha, conforme reportado por Augusto de Campos, que a exploração da ambigüidade

tipográfica de “l” permite ao poeta transformar “loneliness” em “l-one-1-iness”, e que a

tríplice repetição do número um reforça poderosamente a sensação de isolamento e a visão

da unidade transmitida pelo texto. Lembra ainda Grossman que há quem queira interpretar

a última linha do poema decompondo “iness” em “ego-idade”, e que se poderia ver também

nas cinco letras dessa linha a terra onde cai a folha.40

Mas a unidade e as correspondências predominam quando se atenta para o todo. As

tensões se resolvem nas similitudes e as ambigüidades convergem para um sentido que se

vale das tensões, alimenta-se delas, mas não se esgota nelas, ou seja, no exame

microscópico dos elementos da composição. O passeio conceitual pelos detalhes do poema

deve apenas servir como um agente potencializador da percepção de sua riqueza e da

40 DE CAMPOS, 1986. Op. cit. p.28.

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unidade e densidade preservadas com uma tão leve tessitura. A quantidade de conteúdo

guardado em forma tão breve; a manutenção do equilíbrio do conjunto não obstante a

fragmentação da linguagem; a dissociação dos signos de maneira aparentemente aleatória; a

verticalização do discurso; a exploração da ambigüidade material e semântica de letras e

sílabas; o experimentalismo radical: tudo isto nos obriga a um sentimento de humildade

resignada diante do texto. Sabemos que navegamos nele e, de fato, conseguimos lê-lo de

alguma forma: atribuindo sentido, construindo e desconstruindo o que já se apresentava

fraturado, buscando unidade e significação, enxergando o todo nas partes e vice-versa, mas

o segredo de sua composição e o que se espera finalmente que ele signifique é algo que

Cummings compartilha com os maiores mestres; artífices como ele. O segredo da poesia foi

revelado por Manuel Bandeira. Revelação que corresponde a um encobrimento quando

afirma:

Desde esse momento, posso dizer que havia descoberto o segredo da poesia. (...). Num e noutro caso alguma coisa que resiste à analise da inteligência e da memória consciente, que nos enche de sobressalto ou nos força a uma atitude de apaixonada escuta.41

A atitude de apaixonada escuta diante de algo que resiste à analise da inteligência.

Palavras adequadas para quem lê Cummings.

1.3. Coda

Aqui é necessário terminar. O discurso sobre o poema acaba e reinicia-se a sua

leitura. Após a análise conceitual, o pensamento e a imaginação voltam-se novamente à

obra, agora beneficiados de uma elevação do sentimento estético mediante a compreensão

crítica. O que oscilava na percepção e parecia caótico toma forma na leitura e aprofunda-se

na análise. A crítica inicia sobressaltada e termina impotente. Não obstante, a moldura da

imagem permitiu o enquadramento da forma e a exploração de suas tensões internas e da

convergência dos seus sentidos, aparentemente difusos e inconciliáveis.

Os poemas de Cummings parecem suportar, como sublinhou Iain Landles, a

conclusão radical de Derrida supostamente revelarem que uma vez que todas as palavras no

41 BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Passárgada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. P. 17.

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poema podem ser decompostas, não há mais palavras. Mas não penso ser exatamente isto o

que se pode concluir da leitura. E a leitura é exatamente o elemento que Derrida parece não

considerar. Se o poema surge como palavras decompostas ele é resolvido de alguma forma

no trajeto de sua interpretação. Não me parece tratar-se aqui apenas de uma questão de

decomposição de frases ou palavras com um fim em si mesmo; antes construção de uma

nova forma de ordenação mediante a exploração de recursos expressivos em função do

todo, vale dizer, como singularização de objetos e relações no interior de uma dinâmica do

poema regulada por suas próprias leis. Parece-me evidente que, ao definir um campo de

possibilidades associativas, e não quaisquer possibilidades aleatoriamente escolhidas, a

obra procede à delimitação de uma totalidade de relações singulares caracterizada por suas

próprias transformações dependentes de suas leis internas. Há aqui, portanto, a realização

de um sistema uma vez que o que se coloca não é um ser estático; ele está ligado a uma

mensagem, a uma criatividade. Um sistema que se revela ao leitor-ouvinte como uma

incessante estruturação.42

No debate pós-moderno sobre os sistemas de significação, signos podem significar

muitas coisas, mas num poema construído, mesmo que ostensivamente artificial, certo grau

de unidade é pretendido e, se o poeta for suficientemente hábil, conseguido. Lembre-se a

característica fundamental da imagem mencionada acima: “toda imagem aproxima ou

conjuga realidades opostas, indiferentes ou distanciadas entre si submetendo à unidade a

pluralidade do real.” (cf. Supra: p. 4) Unidade na multiplicidade e não um amontoado de

disparates sem qualquer conexão ou sentido.

Eis o valor da imagem: o que os poemas de Cummings realizam. Mediante a

apresentação do que aparece figurado na imagem o conceito dialoga com ela completando-

a. Na presença imediata da dinâmica dos signos faz-se possível a relação: dentro do

movimento da sensibilidade o movimento do pensamento. Os dois planos dialogam: não há

ruptura porque a imagem não sobrevive sem o conceito que a lê nem o conceito sobrevive

sem a imagem que o fecunda, enchendo-o daquilo que ele se arrisca a perder se restringir-se

ao isolamento da abstração. Não é o que se depreende da frase de Joubert citada por

Bachelard? Que os poetas devem ser o grande estudo do filósofo que deseja conhecer o

42 Cf. COSTA LIMA, Luiz. Teoria da Literatura em suas fontes, Vol. 1. Seleção, introdução e tradução, Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. P. 60.

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homem? O poeta objeto de estudo corresponde àquilo que tentamos demonstrar: que a

imagem como objeto articula os dois planos que se crê, erroneamente, separados, o da

imaginação e o do pensamento. Uma construção verbal seja ela um mito, uma alegoria,

uma narrativa ou um poema não possui apenas valor em si como mero artifício linguístico:

vale também por aquilo que nos diz de certa forma através do conceito que ela guarda em si

como o casulo guarda a futura borboleta.

A imagem é o casulo da idéia.

Derrida não considera o que disse o senhor de Sainte-Coulombe na novela de Pascal

Quignard: “um instrumento não é a música. Não um cavalo de circo comprado para fazer

piruetas diante do rei”.43

As palavras não são idênticas às coisas, mas aludem a elas e estão grávidas de mundo,

mesmo no interior do jogo, ou melhor, exatamente por causa do jogo. Também o universo é

imagem, jogo de signos em tensão e toda imagem tem como fado terminar na página

escrita. Na completude dela, da imagem como artifício verbal, é que podemos ler o mundo

nas malhas da obra onde a experiência singular é recuperada e a poesia entra no Ser. Ser e

aparecer, a alma e o corpo, a imagem e o conceito, eikone e idea, o pensamento e a

imaginação: potências de uma única força da linguagem.

Se a imagem guarda em si o conceito que desabrocha na leitura não vale o mesmo

para o conceito, quer dizer, ele não guarda em si imagens? O conceito não deve ser lido

pela imagem como a imagem é lida pelo conceito? Não é isto o que os mitos platônicos nos

mostram? A imagem lendo o conceito?

Quando entrarmos diretamente em Platão, embora estejamos o tempo todo nos

referindo obliquamente a ele, devemos mostrar como uma alegoria completa o conceito

lendo-o e, assim, exibindo o que a filosofia é: antes de um desdobrar-se do pensamento em

direção ao efetivamente real, um dobrar-se da linguagem sobre si mesma através do qual,

na construção imagética e conceitual o real, seja o que for, é colhido em seu movimento e

multiplicidade no movimento dialógico das palavras. Mas o que é o conceito? Façamos

agora o movimento inusitado: mostrar o grau de parentesco entre as duas potências pela

exibição do outro pólo: do conceito imagem vamos à imagem conceito.

43 QUIGNARD, P. Todas as Manhãs do Mundo. Tradução de Pedro Tamen, Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1993. p.90.

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AP�DICES

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so

(l f o l)l (ha c ai)

itude

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2. A imagem do conceito: experimento de filosofia quase literária

“Uma imagem vale mais do que mil palavras”, disse o poeta ao

filósofo; ao que o filósofo respondeu: “Mas por que foi preciso

dizê-lo em palavras?”

(Samuel Dahlmann ,Constelação dos Signos)

“A imagem e o conceito não existem como realidades separadas

e estanques. Não existem efetivamente senão na função que

assumem dentro da ação criadora que os alimenta e significa. A

imagem é um conceito que se desdobrou na infinita gama de

matizes e tensões que compõem sua unidade irreal e ganhou o

dinamismo próprio daquela invenção chamada de realidade pelos

filósofos. O conceito é uma imagem que esqueceu a sua origem e

segue solitário seu trajeto até que algo lhe desperte para as forças

complexas que se apropriaram dele e através dele aprenderam a

falar.”

(Jerônimo Guedes, Literaturas)

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2.1. Em cena o conceito

“A filosofia consiste sempre em inventar conceitos.” 44

(Gilles Deleuze)

Não há filosofia sem conceitos. Não há arte sem imagens. A arte apela para a

imaginação que apresenta a tessitura da experiência em objetos autônomos, regidos por leis

singulares, sejam poemas, composições musicais ou quadros. A filosofia faz uso da

reflexão conceitualmente mediada e se erige a partir de problemas que delimitam o plano

de sua investigação norteada pela lógica fria que sustenta o raciocínio preciso. Pode-se

apresentar a filosofia e a arte assim opostas e, no entanto, não fazer justiça a nenhuma das

duas. A filosofia não se serve exclusivamente do conceito e a arte não se vincula

necessariamente à construção de objetos imaginativos. Na verdade não há separação entre

os planos e a distinção que se fez até agora foi muito fraca. Insuficiente para definir a

filosofia sem fazer jus à arte, à literatura. Pois, se a filosofia não é o desvelar da verdade

diante da consciência, a literatura não é tampouco simples jogo inconseqüente de ficções

descoladas da matéria viva dos eventos e dos fluxos do que se convencionou chamar

mundo. A questão que atormentou a ciência e a filosofia foi e continua sendo a de dar

sentido a uma realidade altamente complexa, multifacetada e multiestratificada. Essa

questão fundamental para o conhecimento humano tem sido debatida por filósofos da

ciência e muitas vezes ignorada por aqueles que, por motivos próprios, querem definir a

ciência como único caminho possível para o verdadeiro conhecimento. Roland Barthes

corrige a vão pretensão científica com outra pretensão não menos vã quando afirma “A

ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos

importa”.45

Os dois lados da questão são ilusórios. Posições são parciais e os caminhos que

adotamos se restringem sempre ao campo de significação posto pelas nossas perplexidades

e interesses, o que é em si mesmo irredutível às expectativas de quem define. Os conceitos

foram apropriados no sentido categorial como fundamentos atômicos dos métodos de

44 Entrevista concedida ao Magazine Littéraire em 1988, publicada depois em Pourparlers. Paris: Minuit, 1990. P. 186. (na tradução brasileira, Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. p. 170. 45 Citado em “Discutindo Literatura”, edição nº 08, Editora Escala, 2008.

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pensar exclusivistas e, pretensiosamente, verdadeiros. Recursos artificiais que, articulados

em certa ordem imposta pela consciência leitora do mundo, formaram inúmeros caminhos

que se impuseram como traçados únicos. Hoje os descobrimos possíveis e, na

multiplicidade das perspectivas adotadas, mutuamente anuladores.

Por serem todos possíveis e excludentes anulam-se.

Mas aqui falamos de uma forma de pensar o conceito e dele se servir que não

atentava para a complexidade do que parecia simples abstração: aos olhos da razão

subjetiva que impôs as suas normas ao mundo no intuído de compreendê-lo o conceito é

forma vazia; estrutura abstrata purificada de todo o conteúdo sensível e, portanto, capaz de

captar o sensível.

Na medida em que define um campo isolado de significados e recorta na realidade

multifacetada, multiestratificada e movente uma forma e impõe uma direção o conceito nos

torna cegos para os demais campos. Determinatio est negatio. O sentido do termo de

Spinoza pode ser bastante negativo: a determinação nega e, exatamente por negar, exclui e

ao excluir fracassa em seu propósito de trazer à luz a essência fundante do realmente real.

O que ela exclui é o resíduo que não aceita, colocado de lado como irracional. Um

irracional que a própria razão produz ao limitar o mundo com suas cancelas categoriais.

Como resultado de sua vontade de determinação a vontade de clareza resulta em

obscuridade.

Tomemos cuidado com os conceitos porque em si mesmo nada valem. O valor dos

mesmos é sempre determinado pela vontade que deles se apropria. O conceito pode ser

muito mais do que uma categoria abstrata ou o depósito de resíduos da representação. O

que é um conceito? Pensamos mal dele quando o separamos da imagem e o isolamos na

determinação categorial. Ele foi maltratado pela história do pensamento ocidental. Servido

à mesa como mero instrumento cuja capacidade de colher o conteúdo que alimentava a

consciência filosófica dependia da forma abstrata de sua constituição. É aqui que Nietzsche

aponta uma saída na concepção do conceito como resíduo de uma metáfora e Deleuze

efetivamente sai do beco ao considerar o conceito como resultado de uma criação cuja

figura final é tão complexa e multiestratificada quanto o mundo no qual se insere, não como

forma de representação, mas como apresentação complexa de uma intensidade na qual as

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forças se mantém vivas em seu jogo. É preciso pensar em uma nova clave. Não apenas

dizer, mas forçar a consciência a pensar de outra maneira ao dizer.

Vamos pelo absurdo das afirmações tentando despertar a imaginação do leitor para a

mudança de tom que buscamos. Pensar em um novo registro.

A filosofia não é jogo sério nem a literatura simples trapaça, “mas o perigoso poder

ir em direção àquilo que é, pela infinita multiplicidade do imaginário”. 46 O mundo e a

linguagem remetem um ao outro, eterna e infinitamente, suas imagens refletidas. “Esse

poder infinito de espelhamento, essa multiplicação cintilante e ilimitada – que é o labirinto

de luz, o que não é pouca coisa – será, então, tudo o que encontramos, no fundo de nosso

desejo de compreender.” 47

Blanchot nos salva:

A diferença entre o real e o irreal, o inestimável privilégio do real, é que há menos realidade na realidade, pois ela é apenas irrealidade negada, afastada pelo enérgico trabalho de negação e pela negação que é também o trabalho. (...) Mas é o mais indefinido, essência do imaginário, que sempre impede K. de alcançar O Castelo, assim como impede, por toda a eternidade, que Aquiles alcance a tartaruga, e talvez o homem vivo de se juntar a si mesmo, num ponto quer tornaria sua morte perfeitamente humana e, por conseguinte, invisível. 48

A infinita multiplicidade do imaginário povoa e contamina todos os planos do ser e os

resolve em um único plano de diferenciações em que o diálogo não prescinde nem elimina

suas potências afirmativas. A imagem e o conceito, especulares irredutíveis, são potências

de uma mesma força construtiva e dialógica que se reproduz ao infinito no infinito jogo de

suas possibilidades. Há muito mais riqueza na superação de um espelhamento petrificado

pelo conceito mal entendido e na recusa em atribuir à imagem a potência do falso ou o

traçado do irreal. Padecemos de irrealidade e a filosofia tanto quanto a arte são produtos

humanos. O que escapa de nossa força imaginativa? Nem mesmo a realidade.

46 BLANCHOT, M. O Livro por vir. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. P. 138. 47 BLANCHOT, M. ibid. 48 BLANCHOT, 2005. Op. cit. P. 140.

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Porque, respondemos sem perguntar, não há delimitação precisa dos campos nem

tampouco exclusão das linguagens. Tanto a filosofia se enriqueceu de imagens quanto a

arte povoou de conceitos seus produtos. A filosofia não apelou para a imagem quando o

conceito falhou, mas sempre criou imagens conceituais sem as quais seu discurso operava

no vazio. Também se serviu abundantemente de conceitos imaginativos, sem os quais

caminharia no escuro. O conceito sem imagem é vazio e a imagem sem conceito é cega.

Não parece estranho à mentalidade tradicional encontrar nas palavras de um filósofo

sistemático e ostensivamente conceitual como Kant as palavras seguintes sobre o método

que o levara à criação de seus conceitos? Citemos uma passagem de seu curso de

antropologia de 1779 a 17780:

Devemos ter à mão uma folha de papel dobrada ao meio, na qual vamos registrando promiscue todas as imagens que digam respeito à matéria. Além disso, também precisamos fazer algumas pausas enquanto pensamos, as quais contribuem de maneira extraordinária para o descanso e fortalecimento da imaginação. (...) Quando ali se encontrarem todos os materiais de nosso assunto, surgirá em nós durante a leitura um esquema que formularemos em frases curtas, emendando-o sem coerção. Caso o esquema esteja correto, recorremos ao nosso estoque de imagens. Anotamos então a matéria sem ponderação, e, se logo nos ocorre alguma outra coisa, deixamos um espaço e, com uma palavra, assinalamos na margem o que deverá vir no meio. 49 (grifos meus)

Também soaria contraditório, para nós que nos acostumamos a diferenciar as ciências da

natureza das do espírito - o conhecimento da imaginação, a criação poética da

contemplação teórica - ler nas palavras de um cientista que

A criação consiste em encontrar a unidade, a semelhança e o padrão. O poeta Samuel Taylor Coleridge, em suas várias e atropeladas tentativas, todas elas brilhantes e todas elas inconcludentes, para encontrar uma definição do belo, sempre repetia o mesmo pensamento: o belo é “unidade na variedade”. Na minha visão esta é a experiência da criação. A própria natureza é o caos; ela é cheia de variedade infinita, sem ordem. Mas se olharmos com visão interior, uma mente criativa ( mente de poeta como Charles Baudelaire ou mente de um cientista como a de Issac Newton), haverá momentos em que muitos e diferentes aspectos repentinamente se cristalizarão numa única unidade. Nesse momento você encontrou a chave; você encontrou a

49 KANT, Revista Discutindo Filosofia – Especial; ano I – nº 5 São Paulo: Escala Editorial. P. 15

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pista; você encontrou o caminho da organização dos elementos. Você encontrou o que Coleridge chamou de “unidade na variedade”. Esse é o momento da criação. 50 (grifos meus)

Encontrando na indefinição dos campos e na natureza comum da origem do conhecimento

científico e da arte na imaginação, Bronowski aponta para uma forma de pensar já, em

grande medida, distante das classificações e das separações alienantes. Continua,

O homem se torna criativo, seja ele um artista ou um cientista, quando encontra uma nova unidade na variação da natureza. E isso ele consegue encontrando semelhanças entre coisas que não eram antes imaginadas como tendo semelhanças, o que dá ao homem um sentimento ao mesmo tempo de riqueza e de domínio. A mente criativa é aquela que procura semelhanças inesperadas. Isto não é um procedimento mecânico, e eu acredito que envolva toda a personalidade no campo das ciências como no das artes. 51 (grifos meus)

Argumentado em favor de um caminho criativo como a essência do procedimento

científico, Bronowski arremata com um exemplo inusitado e com paralelos incomuns para

a mentalidade moderna:

Quando Marx Planck propôs que a radiação do calor é descontínua, ele nos parece ter sido levado por simples experimentos. Mas estamos enganados; os experimentos não iriam tão longe assim. Eles mostraram que a radiação não é contínua; eles não mostraram a única alternativa é a teoria dos quanta de Marx Planck. Assim o mais recente conflito na física entre os quanta e o comportamento da matéria, como uma onda e como uma partícula, é um conflito entre analogias, entre metáforas de poetas; e cada metáfora enriquece nossa compreensão do mundo sem completá-la. (grifos meus) Em “Augúrios de Inocência” o poeta William Blake escreveu: Um cão morre de fome na porta de seu patrão Prediz a Ruína da Nação. Isto me parece ter a mesma penetração imaginativa, a mesma perspicácia contida na metáfora, que Marx Planck teve. E as imagens

50 BRONOWSKI, Jacob. A experiência da Criação. in: Diógenes - nº 6; Revista Internacional de Ciências Humanas. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1984. P. 38. 51 BRONOWSKI, J. 1984. Op. cit. P. 39.

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mentais são tão reais e exatas como aquelas sobre as quais Planck teorizou. 52 (grifos meus)

Em vários setores da cultura a fixação em delimitar campos operativos que povoou a

falsa consciência da racionalidade instrumental burguesa, avessa à totalidade, apaixonada

pela distinção clara dos domínios e submissa ao poder de controle sobre a natureza e a

sociedade esgotou os seus recursos e esbarrou nos seus limites. A consciência de um

mundo separado provou-se separação do mundo na consciência volatilizada da prática

social alienante. Fincou marcos e estabeleceu limites e, com isso, exibiu diante da crítica

insubmissa a falência de seu próprio projeto. Exatamente por descobrir que não há limites.

Estranhando seu próprio trajeto forçou um passo além.

2.2 O estranho e a ruptura na consciência dos limites

A heterotopia borgiana descoberta por Foucault e aquela classe de seres tão bem

arranjada que implode pela ironia o projeto da organização categorial do mundo,

mostrando, pelo absurdo do comumente aceito, o riso escondido do imponderável, somado

ao fracasso da razão instrumental, ilustra a mudança de direção. Borges, mediado por

Foucault, serve de medida ao que afirmamos:

Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba todas as familiaridades do pensamento – do nosso: daquele que tem nossa idade e nossa geografia -, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, por muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro. Esse texto cita “uma certa enciclopédia chinesa” onde será escrito que “os animais se dividem em: a) pertencentes do imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et Cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas.” No deslumbramento dessa taxinomia, o que de súbito atingimos, o que,

52 BRONOWSKI, J. 1984. ibid.

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graças ao apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um outro pensamento, é o limite do nosso: a impossibilidade patente de pensar isso. (...) 53

Meditando sobre este texto de Borges, Foucault descobre, conforme notou Emir

Rodriguez Monegal54, que o que lhe choca não é “la bizarrerie des recontres insolites”, mas

outra coisa:

A monstruosidade que Borges faz circular na sua enumeração consiste, ao contrário, que o próprio espaço comum dos encontros se acha arruinado. O impossível não é a vizinhança das coisas, é o lugar mesmo onde elas poderiam avizinhar-se. Os animais “i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo” – onde poderiam eles jamais se encontrar, a não ser na voz imaterial que pronuncia sua enumeração, a não ser na página que transcreve? Onde poderiam eles se justapor, senão no não-lugar da linguagem? Mas esta, ao desdobrá-los, não abre mais que um espaço impensável. A categoria central dos animais “incluídos na presente classificação” indica bem, pela explícita referência a paradoxos conhecidos, que jamais se chegará a definir, entre cada um desses conjuntos e aquele que os reúne a todos, uma relação estável de conteúdo e continente: se todos os animais classificados se alojam, sem exceção, numa das casas da distribuição, todas as outras não estarão dentro desta? E esta, por sua vez, em que espaço reside? (...) Borges não acrescenta nenhuma figura ao atlas do impossível; não faz brilhar em parte alguma o clarão do encontro poético; esquiva apenas a mais discreta, mas a mais insistente das necessidades; subtrai o chão, o solo mudo onde os seres podem justapor-se. (...) Esse texto de Borges fez-me rir durante muito tempo, não sem um mal estar evidente e difícil de vencer. Talvez porque no seu rastro nascia a suspeita de que há desordem pior que aquela do incongruente e da aproximação do que não convém; seria a desordem que faz cintilar os fragmentos de um grande número de ordens possíveis na dimensão, sem lei nem geometria, do heteróclito; e importa entender esta palavra no sentido mais próximo de sua etimologia: as coisas aí são “deitadas”, “colocadas”, “dispostas” em lugares a tal ponto diferentes, que é impossível encontrar-lhes um espaço de acolhimento, definir por baixo de umas e outras um lugar-comum.55

53 FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas. Tradução Salma Tannus Muchail. 9ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. P. IX. 54 MONEGAL, E. R. Borges: uma Poética da Leitura. Tradução Irlemar Chiampi; Revusão Plinio Martins Filho e Dainis Karepous. São Paulo: Editora Perspectiva, 1980. P. 41. 55 FOUCAULT, M. 2007. Op. cit. Pp. XI/XIII.

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58

O choque causado pelas heterotopias borgianas é matizado por Foucault de modo a

nos servir de incitação ao estranhamento e à necessidade que propomos de mudar a clave

de nossa forma de pensar. Ao mesmo tempo nos mostra o limite tocado pela razão

categorial e a consciência da falência de seu projeto de controle pela divisão e separação

dos eventos múltiplos e complexos do mundo. O projeto da razão revela-se utópico e a

desrazão de sua vã pretensão nos acorda para a heterotopia fundamental da racionalidade

desconsolada.

As utopias consolam: é que, se elas não têm lugar real, desabrocham, contudo, num espaço maravilhoso e liso; abrem cidades com vastas avenidas, jardins bem plantados, regiões fáceis, ainda que o acesso a elas seja quimérico. As heterotopias inquietam, sem dúvida porque solapam secretamente a linguagem, porque impedem de nomear isto e aquilo, porque fracionam os nomes comuns ou os emaranham, porque arruínam de antemão a “sintaxe”, e não somente aquela que constrói as frases – aquela, menos manifesta, que autoriza “manter juntos” (ao lado e em frente umas das outras) as palavras e as coisas. Eis porque as utopias permitem as fábulas e os discursos: situam-se na linha reta da linguagem, na dimensão fundamental da fábula; as heterotopias (encontradas tão frequentemente em Borges) dessecam o propósito, estancam as palavras nelas próprias, contestam, desde a raiz, toda possibilidade de gramática; desfazem os mitos e imprimem esterilidade ao lirismo das frases. 56

Nossas potencialidades presentes aproveitam-se dos erros do passado: a história nos

demonstra a verdade do que afirmamos: as alegorias de Benjamin, os conceitos de Deleuze,

a inversão desviante de Debord, o plágio das migalhas filosóficas de Kierkegaard, a

Umwertung de Nietzsche - que mostra na gênese do conceito a imagem de um mundo

invertido no qual a mentira assume o lugar da verdade - todas as formas do estilo agindo

pela inversão dos construtos de uma cultura histórica que se sustentou enquanto pôde

sobreviver da ilusão.

A criação de perspectivas mediante o uso criativo da linguagem constitui uma

constante no trabalho filosófico com o texto. Bergson reconheceu que os conceitos são

indispensáveis à filosofia, na medida em que esta não pode abrir mão das outras ciências,

que todas trabalham com conceitos; mas reconheceu também que a filosofia só é

56 FOUCAULT, 2007. Op. Cit. P. XIII.

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propriamente ela enquanto se liberta dos conceitos já prontos e consagrados pelo hábito,

para criar

“representações flexíveis, móveis, quase fluidas, sempre prontas a se moldar pelas formas fugidias da intuição”(...) Ora, a imagem tem ao menos esta vantagem: ela nos mantém no concreto. Nenhuma imagem substituiria a intuição da duração, mas muitas imagens diversificadas, emprestadas à ordem de coisas muito diferentes, poderão, pela convergência de sua ação, dirigir a consciência para o ponto preciso em que há uma certa intuição a ser apreendida. 57 (grifos nossos)

Assim, a linguagem da filosofia – como o próprio Bergson exemplificou de maneira

notável – não pode ser construída com conceitos que espacializam a duração, coagulam o

devir, matam o que é vivo: a linguagem da filosofia tem de apelar necessariamente para o

poder sugestivo das imagens, utilizando o literário de modo a que os jogos e a convergência

de imagens preparem e suscitem a intuição.

Escolhendo imagens tão disparatadas quanto possível, impediremos que uma qualquer dentre elas venha a usurpar o lugar da intuição que ela está encarregada de evocar, pois, neste caso, ela seria imediatamente expulsa por suas rivais. Fazendo com que todas exijam de nosso espírito, apesar de suas diferenças de aspecto, a mesma espécie de atenção e, de alguma forma, o mesmo grau de tensão, acostumaremos pouco a pouco a consciência a uma disposição bem particular e bem determinada, precisamente aquela que deverá adotar para aparecer a si mesma sem véu. 58 (grifos nossos)

Há outra disciplina de pensamento a que apela Bergson cujo anseio clama pela mudança de

clave a que nos referimos. O ajuste das tensões entre as imagens como constitutivo de uma

forma de fazer o pensamento fluir através da incorporação da construção imagética em seu

método. O estranhamento da não excludência potencializa a linguagem através do diálogo

entre suas instâncias criativas.

Neste sentido, a filosofia não se distingue da literatura: é uma forma de literatura que

trabalha suas ficções muitas vezes sem consciência do caráter artificial de suas criações.

Em Deleuze, assume o fazer criativo como sua norma distintiva. Realiza a criação do

57 BERGSON, H. Introdução à metafísica. Tradução de Franklin Leopoldo e Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1979. P.17. 58 BERGSON, Ibid.

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conceito como forma de delimitar o campo de atuação do discurso filosófico, afastando-o

da ciência, da literatura, da comunicação e da atitude contemplativa. A filosofia não pensa

por imagens, nem por metáforas nem por símbolos, mas por conceitos. Mas acreditamos

poder mostrar no pensamento do próprio Deleuze algo que desabona sua fúria distintiva: o

conceito conforme ele o caracteriza – a meu ver corretamente – carrega no cerne

multiestratificado de sua constituição plural uma imagem que o pensador francês não

enxergou: a imagem do conceito.

Portanto, no momento em que nos vinculamos a Deleuze nos separamos dele,

porquanto não acreditamos no fato nem na utilidade da distinção. Propomos o diálogo das

instâncias como forma de estabelecer “limites fluidos”, os quais permitem a distinção sem

fraturas e a tipificação sem falseamento. No interior das potências da linguagem as figuras

travam suas batalhas em busca de planos moventes nos quais afirmam suas diferenças ao

mesmo tempo em que integram suas semelhanças. As correlações, os desvios, as inversões:

ações produtivas que acionam as imagens conceituais e os conceitos imagéticos na

dinâmica intensiva dos devires.

Bergson se aproximou mais do que imaginamos. A multiplicação das imagens e dos

conceitos numa dialógica de signos que se movem no intuito de espelhar a intuição da

nervura movente do mundo: sem fraturas na linguagem operadas pelas distinções

falseadoras das categorias sedentárias. O diálogo é o caminho. O diálogo que começa com

Platão, aquele a quem é atribuída a culpa pelos erros cometidos por uma cultura que

necessita de culpados. Como não culpamos ninguém nem atribuímos a ninguém o controle

dos processos e dos fluxos, prescindimos de uma ordenação pseudo-histórica de nosso

texto.59

Mas voltemos à questão: será que o homem alguma vez prescindiu da ação criativa e

nela do trabalho dialógico da imagem e do conceito? Provamos que não, pois se há um

conceito da imagem também há uma imagem do conceito. Recomecemos de onde conduzir

um trajeto possível ao que vislumbramos. Não queremos demonstrar, mas imaginar

mediante o conceito, desviar o conceito de seu rumo categorial e de sua inserção na

59 Platão figura ao final porquanto ele só pode ser descoberto mediante um exercício consciente de anacronismo. Somente após observamos a flor desabrochada é que podemos compreender o processo que a conduziu a si mesma. Lembremos Marx ao afirmar no Capital que a anatomia do homem é a chave para a compreensão da anatomia do macaco.

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estrutura falseadora. É possível construir a imagem do conceito? Não é o conceito um feixe

complexo de imagens entrelaçadas na unidade da idéia?

2.3. Deleuze imagina o conceito

“Será que não podemos pensar o propósito da vida como sendo simplesmente ver?” 60

(John Gray)

A filosofia foi demarcada por Deleuze como uma forma de discurso que se apóia

inteiramente na produção de conceitos. O conceito considerado como fim da atividade

filosófica e o instrumento que lhe determina a potência criativa. Deleuze não tinha muito

apreço pela metáfora e a descartava como desimportante, mas fixava no conceito uma

forma de salvação do fluxo do tempo-espaço na vida do fenômeno. Como forma de relação

não mediada entre o pensamento e o evento: ambos pertencentes a um mesmo plano

rizomático de fluxos que se afirmam como acontecimentos múltiplos no tecido imanente do

ser.

A filosofia do cinema de Deleuze, com sua forma de aproximação do tempo, do

movimento e da percepção apontou-nos a possibilidade de escape da subjetividade e, ao

mesmo tempo, imersão na imanência das imagens. Falta uma abordagem mais detida da

função da reflexão sobre o cinema no contexto da ontologia deleuziana e de como ali se

procede ao resgate da imagem como dinâmica no espaço-tempo de eventos complexos

como forma de expressão não representativa, portanto não categorial, dos fluxos de eventos

que constituem o tecido movente do ser. No entanto, Alain Badiou nos alerta para o fato de

que em Deleuze uma teoria do cinema não é sobre o cinema, mas sobre os conceitos que o

cinema suscita. Deleuze fugiria assim da subordinação do pensamento às imagens e mesmo

de uma confluência entre a criação conceitual e a dinâmica das imagens, porquanto

O cinema em si mesmo “é uma nova prática das imagens e dos signos” (IT, 366), mas o objetivo do pensamento não poderia se restringir a uma fenomenologia concreta dos signos e das imagens. Do cinema a filosofia deve fazer a teoria como prática conceitual”, enetendendo-se

60 GRAY, John. Cachorros de Palha: reflexões sobre humanos e outros animais. Tradução Maria Lúcia de Oliveira. Rio de Janeiro: Record, 2007. P.212.

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que “os conceitos do cinema não são dados no cinema” (ibid..). Compreenda-se que, sob a obrigação do caso-cinema, é ainda e sempre a filsosofia (de Deleuze) que recomeça, e que faz o cinema estar onde, por si mesmo, ele não está. 61(grifos do autor)

Em sua concepção do cinema como expressão da imagem em movimento alguma

coisa da natureza intuitiva da imagem afirmava-se, ao mesmo tempo em que a função da

metáfora lhe escapava. A imagem, no amplo sentido que lhe conferimos a partir da

definição de Otávio Paz seria a singularidade autêntica que carregaria dentro de si a sua

própria negação, na medida em que precisava, isto nós acrescentamos, ser fecundada pelo

conceito ou ela mesma composta por conceitos que se relacionam numa dinâmica viva

universalizando-a: de um lado, o conceito como atualização discursiva da imagem sem

deixar de ser, por outro lado, o elemento de composição dela mesma. Isto parece ter

escapado a Deleuze. Algo que o seu próprio pensamento evoca: que o conceito é, ao

mesmo tempo, uma forma de imagem, assim como a metáfora, e um meio de explicitação

da mesma à consciência crítica.

O conceito tem sido pensado como simples abstração que retém apenas características

gerais das coisas igualando-as numa fórmula vazia. Oposto à complexidade da imagem, o

conceito seria simples: uma forma de delimitar características comuns aos fenômenos

fixando-os e elevando-os ao plano categorial das estruturas universais. Foi preciso esperar

Deleuze para que tal perspectiva se desfizesse, pois, mesmo sem tê-lo percebido, o filósofo

francês elaborou uma imagem do conceito que nos permite afastar definitivamente do plano

da linguagem as noções equivocadas de separação absoluta entre as formas de figuração do

evento.

Imagem, conceito e metáfora não se distinguem por natureza, mas por graus de

complexidade. Melhor: não se distinguem absolutamente senão a partir de uma decisão

subjetiva de relacioná-los estabelecendo hierarquias entre formas de representação: aquilo

que chamaríamos de “universalismo nomotético da racionalidade categorial”. Distinguimos

então a forma de organizar a experiência a partir de um recorte formal e da relação

hierárquica das categorias da experiência do conceito que pretendemos ilustrar aqui e que

se distingue da forma exclusivista e redutivista da imposição de formas abstratas ao plano

61 BADIOU, A. Deleuze, o clamor do Ser. Tradução de Lucy Magalhães, Revisão técnica de José Thomas Brum. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1977. P. 25.

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dos eventos traindo-os em sua realidade singular: múltipla e movente. O que opera o

recorte e fixa o fluxo não é o conceito, mas as categorias e a inserção das mesmas num

plano hierárquico de representação: o sistema. Aqui é que se tem a separação entre a coisa e

a expressão, o conceito como algo que indica uma coisa diferente de si.

A fenomenologia apropriou-se de tal distinção escolástica e, a partir de Brentano: a

intencionalidade passou a ser, precisamente, o que tipifica os fenômenos psíquicos, que

sempre se referem a algo de outro. Significar quer dizer apontar para algo, referir-se a

alguma coisa que o conceito intenciona e que é diferente dele mesmo. Temos com isso a

tripartição entre o representado, o representante e a representação. Segundo Brentano, toda

realidade é sempre individual, ao passo que cada conhecimento capta o real em sua

generalidade. Quer dizer: o evento é negado em sua singularidade e esvaziado de sua

especificidade e de sua vida através do mecanismo de representação. Mecanismo que tem

como pressuposto a separação entre o plano lingüístico da representação e o plano

existencial das coisas e dos eventos. Mas as coisas e os eventos sempre chegam a nós

mediante a tradução de sua singularidade ou em categorias universais, ou em imagens, ou

em conceitos complexos que resistem à ação esvaziante da representação e se conectam ao

que dizem mantendo a vida de sua singularidade. É neste sentido que ouviremos o clamor

deleuziano que redefine o conceito e o salva da petrificação categorial. De fato, Deleuze

recusa a posição fenomenológica e com ela a função representativa da linguagem. Através

da intencionalidade, a fenomenologia apresenta o pensamento como dependente de uma

relação interiorizada, a consciência e seu objeto, a ideação e seu ideado, o pólo noético e o

pólo noemático, ou, na variante sartriana, o para-si e o em-si. Ora, justamente porque o

pensamento é desdobramento do Ser-uno, seu elemento nunca é a relação interiorizada, a

representação, a consciência-de. O pensamento supõe que as modalidades múltiplas do ser

sejam exteriores umas em relação às outras, que nenhuma possa ter o privilégio (como a

consciência pretende ter) de interiorizar as outras. Conforme afirma Badiou,

Aqui, é a igualdade do Ser que está em jogo, e essa igualdade implica, sem nenhum paradoxo, que nada do que é tenha a menor relação interior com o que quer que seja mais. Até se afirmará que o respeito absoluto ao Ser como Uno exige, defitivamente, que todas as suas

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atualizações imanentes estejam em posição de não relação umas com as outras.62

A linguagem, concebida como modalidade do Ser-uno - desse plano de forças que se

afirmam em sua multiplicidade singular - não pode representar nem afigurar algo diferente

de si mesma. A pretensão fenomenológica de a linguagem ser representativa naufraga na

compreensão deleuziana da unicidade do Ser. A linguagem só pode entrar em acordo

consigo mesma afirmando-se como potência de um mesmo complexo de eventos que se

tangenciam, se agenciam, convergem ou divergem, mas nunca se representam.

Aqui, abandonamos completamente o plano das divisões ao reatar os laços que

sempre ligaram a linguagem ao mundo, a imagem ao conceito. Como mostramos o conceito

da imagem com Paz, devemos mostrar a imagem do conceito com Deleuze.

A categoria é uma imagem empobrecida que não guarda mais em si a riqueza de

tensões que o conceito ainda conserva. Se elegemos Otávio Paz como guia para orientar

nossa discussão sobre a imagem, agora é Deleuze quem vai nos guiar nos caminhos do

conceito. Isto porque ambos pensam de forma não mais redutivista e servem de

instrumentos insubstituíveis ao nosso propósito de superar a instrumentalidade categorial

da linguagem e pensar a filosofia como experimento literário que não procede pela inserção

dos termos no fluxo do qual fazem parte e ao qual se relacionam de forma não

representativa mas expressiva e afirmativa.

No âmbito do ser que a tudo engloba a linguagem deve ser pensada como um modo

de afirmação diferencial dos conceitos e imagens no interior de um mesmo plano em que as

alteridades se cruzam em convergências e encontros, mas não se podem representar.

Ocupam, para dizer em uma metáfora, espaços independentes federados. Trata-se de

perceber que através do diálogo entre conceito e imagem muita coisa se salva. Trata-se de

ver que este mesmo diálogo passou despercebido pela modernidade, deixando falar no

vazio o que poderia estar preenchido plenamente pela intuição. Coisa que a arte soube fazer

e que a filosofia fez sem saber. Ir além do meramente presente deixando-se vazar pela

contingência anárquica do mundo. A tarefa deleuziana interpretada por Badiou:

62 BADIOU, 1977. Op. cit. P. 31

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Trata-se, por uma tensão que renuncia à evidência das nossas necessidades e das posições ocupadas, de ir até esse lugar vazio, onde as potências impessoais nos pegam e nos obriga a fazer existir o pensamento através de nós: “Fazer circular o compartimento vazio, fazer falarem as singularidades pré-individuais e não pessoais (...) é a tarefa de hoje” (LS, 91). 63 (grifos meus)

Então as sentenças lapidares às quais aderimos: “Pensar não é o escoamento espontâneo de

uma capacidade pessoal. É o poder duramente conquistado contra si, de estar obrigado ao

jogo do mundo.” 64

2.4. De volta ao conceito

Os conceitos são realidades múltiplas que, criadas pelo filósofo, emergem no tecido

do ser costurando suas linhas de fuga em planos de sentidos e em graus de intensidade. Na

proximidade da imagem com o conceito o pensamento cria posições passíveis de superar os

limites do nomos categorial. A malha da linguagem a conquistar a dinâmica do jogo do

mundo.

Na relação dos termos; a imagem ocupa um posto superior que abarca tanto o

conceito quanto a metáfora. Não há porque desconsiderar a metáfora uma vez que ela é

parente do conceito e, mais radicalmente, uma forma de afirmação não-representativa

daquilo que no conceito-categoria irá tornar-se opaco embora funcional. Ao introduzir a

idéia de criação na filosofia, Deleuze a aproxima da arte e da literatura, não obstante ao

afastá-la da metáfora parece desconhecer que a mesma é não só o resultado, como o

conceito, de um ato de criação, mas uma forma de pensar não representativa que supera o

conceito em sua função de salvar os eventos em sua multiplicidade e tensão dinâmicas.

O pensamento filosófico não vive somente de conceitos isolados nem são eles os únicos

meios de expressão filosófica. De Platão a Deleuze, o exercício da filosofia não prescindiu

jamais desses instrumentos insubstituíveis do estilo ao qual o mesmo Platão procurou em

suas obras o contorno mais nítido; mesmo que o resultado não tenha alcançado a precisão

que se perseguia, porquanto, hoje percebemos, não era isso o que o filósofo ateniense

63 BADIOU, ibid. P. 20 64 BADIOU, ibid.

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queria. No tecido de relações estabelecidas em seus diálogos, as conexões emergem como

mais significativas do que essas ilhas ilusórias e fragmentárias que os intérpretes buscaram

nas definições. Quando se realça a parte e as perguntas aparentemente norteadoras do

proceder platônico em busca de conclusões, enfoca-se o diálogo como algo morto e incapaz

de movimento, como representação de uma verdade acabada; por outro lado, quando nos

ocupamos da forma de expressão como criação de um plano no interior do qual emergem

mais relações do que definições, no qual os conceitos e imagens ganham vida através da

unidade federada de suas conexões, obtemos algo mais próximo do que o diálogo produz na

imanência de sua intensidade e no fluxo de suas tensões. Estas não são o ponto de partida

de um questionamento que busca figurar na categoria uma resolução. Não seriam, antes, um

cosmos urdido dialogicamente de tal forma que a vida de seus elementos figuram no traço

de suas relações? É o que veremos na análise da imagem como forma figurada na trama

dialógica dos conceitos no capítulo em que nos ocupamos do Mênon. Por ora, fica o

caminho sugerido.

A exigência do estilo permanece como desafio da filosofia: a de figurar o mundo na

linguagem, ou melhor, estabelecer a linguagem no mundo como forma de uma potência

afirmativa que na virtualidade de sua força guarda a dinâmica dos fluxos que configuram a

verdade do múltiplo. Quando a vida da categoria, que é separação-classificação e corte, trai

a vida do real, que é integração-indistinção e tensão; quando a categoria opaca falha, a

linguagem dobra-se à exigência da coisa figurando-a na imagem viva do mito, da alegoria

ou da metáfora, e mesmo do conceito.

A categoria precisa, determina, fixa e assim contribui para uma visão clara das coisas e

uma concepção ordenada do mundo. Mas ela é simplificadora, falha e insuficiente. Deve

ser salva pela imagem; enriquecida pela potência imaginante que lhe insere no oco do

universal a riqueza do particular em suas articulações moventes e vivas. A categoria deve

ser, também, negada e superada pelo conceito: aquela uma forma de representação este uma

potência afirmativa do evento.

A imagem é a vida e a visibilidade do conceito, como o conceito pode ser o elemento

constitutivo da imagem que ao se desdobrar na leitura permite a inteligibilidade do discurso

e do texto que dispõe na ordem das razões o que era apresentado na imagem como

articulação concreta do múltiplo na apresentação das figuras complexas. Adivinhamos aqui

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a riqueza da ação imagética que resulta numa totalidade complexa que a razão conceitual

desdobra e desvenda sem nunca esgotar: o enigma que cabe ao intérprete não decifrar, mas

reconstruir mediante o exercício das possibilidades de leitura que não finda, apenas agrega

novas perspectivas à vastidão da imagem e a enriquece

Conceito e imagem são interdependentes. Deve-se acrescer ao conceito da imagem a

imagem do conceito. A circularidade desta relação concede ao discurso ou texto a

possibilidade de figurar o mundo sem aniquilá-lo no hermetismo intransponível nem no

generalismo vazio.

Há mais um detalhe que não pode passar despercebido: o conceito é, ele mesmo, um tipo

de imagem porque nele está figurada uma universalidade esquemática e estrutural que

somente ele é capaz de tornar visível e possível de operar. Platão chamava de Idea um

objeto visível somente à alma, portanto uma forma de imagem à qual apenas uma

inteligência treinada nos rigores da filosofia e na paciência da dialética verdadeira teria

acesso. A idéia é a forma do ver platônico: imagem não imediatamente sensível que

somente o pensamento em sua máxima potência conseguiria perceber. Ao ver sensível,

Platão não contrapôs o ver supra-sensível: aproveitou-se de um verbo cujo significado

aderia ao ver imediato das formas sensíveis e o transmutou em ação criadora do

pensamento que, em sua “segunda navegação” – num esforço criativo de ver –, alcança a

trama diferenciada do jogo do mundo.

Os termos idea e eidos derivam ambos de idein que quer dizer “ver”. Na língua grega

anterior a Platão, eram empregados sobretudo para designar a forma visível das coisas, a

forma exterior e a figura que se capta com o olhar, portanto, o “que é visto” sensível.

Sucessivamente Idea e eidos passaram a indicar, por uma transmutação semântica operada

por Platão, a forma interior ou a imagem não imediatamente sensível das coisas. A idéia

não é o conceito apenas, mas a imagem cuja forma é atravessada pela consistência

ontológica do mundo. Era preciso adiantar o olhar platônico antes de o examinarmos com

mais vagar. Tal olhar, de certa forma se explicita modernamente.

Vimos que para Deleuze o conceito não é representação, muito menos representação

universal. Seria mais uma aventura do pensamento que institui um acontecimento, vários

acontecimentos, que permita um ponto de tangência com o mundo, sobre o vivido.

Podemos lembrar aqui a formulação de Merleau-Ponty: “a verdadeira filosofia consiste em

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reaprender a ver o mundo”65; parece ser disso que falam Deleuze e Guattari quando

exprimem a ação do conceito: um reaprendizado do vivido, uma ressignificação do mundo.

Por isso, todo conceito é necessariamente assinado. Conforme comenta Silvio Gallo,

Cada filósofo, ao criar um conceito, ressignifica um termo da língua com um sentido propriamente seu. Podemos tomar como exemplo: a Idéia de Platão; o cogito de Descartes; a mônada de Leibniz; o nada de Sartre; o fenômeno de Husserl; a duração de Bergson ... A assinatura remete ao estilo filsosófico de cada um, à forma particular de pensar e escrever. 66

No estilo que lhe era peculiar Deleuze sentencia que

O batismo do conceito solicita um gosto propriamente filosófico (não poderíamos acrescentar, literário?) que procede com violência ou com insinuação, e que constitui na língua uma língua da filosofia, não somente um vocabulário, mas uma sintaxe que atinge o sublime ou uma grande beleza. 67

Note-se que, ao caracterizar o conceito como assinatura individual, Deleuze observa que o

discurso filosófico afirma-se a partir de uma sintaxe própria e não apenas dos conceitos

individualizados e que esta forma peculiar de escrita busca não a verdade, mas o sublime e

a beleza. No entanto, procurou delimitar a filosofia separando-a da atividade literária.

Percebemos que melhor seria inserir a filosofia no plano do experimento literário. O que

Deleuze recusa. Por outro lado, ao afirmar a atividade criadora como distintiva da filosofia,

rompe com a tradição que desde Aristóteles considerava a filosofia como atividade teórica.

Criar em função do sublime e da beleza não é exatamente o que separaria a filosofia da arte.

No entanto, perguntamos: há a possibilidade e a necessidade da separação?

Cada filósofo assina o mundo por meio dos conceitos que cria e cada conceito possui

peculiaridades que os distingue e qualidades que os conexionam. Para Deleuze todo

conceito é uma multiplicidade, não há conceito simples. O conceito é formado por

componentes e define-se por eles. Totaliza seus componentes ao constituir-se, “mas é

sempre um todo fragmentado. Como um caleidoscópio, em que a multiplicidade gera novas

65 Citado por GALLO, Silvio. Deleuze e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. Pp. 38-39. 66 GALLO, Silvio. 2008. Op. cit. p. 39. 67 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. P.10.

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totalidades provisórias a cada golpe de mão.”68 Nosso hábito obstrui a visão do conceito

como complexo. Estamos acostumados a vê-lo como forma ou estrutura simples e imóvel.

No entanto, não é difícil imaginar, por exemplo, que qualquer conceito contém uma

multiplicidade de eventos que relaciona em sua dinâmica constitutiva. O conceito de Bem,

conforme imaginado por Platão incluía, além dos bens da vida humana – saúde, beleza,

prazer, amizade, a vida mesma – um Bem que ultrapassava todos os outros. Era a idéia da

forma do Bem, a fusão mística de todos os valores num todo espiritual harmonioso. O

conceito guarda assim certas tensões ao colocar em relação elementos diversos

constituindo-se como múltiplo. Na forma dinâmica das relações que institui a complexidade

do conceito pode ser percebida como um jogo de tensões entre elementos que ele

harmoniza e unifica sem se confundir com os eventos do mundo e nem tampouco guardá-

los como conteúdos da representação. A harmonia de tensões que subjaz à construção

conceitual revela que estamos aqui diante de uma totalidade imagética cuja riqueza deriva

da capacidade de tecer na linguagem referenciais complexos que a inserem na trama do

mundo como assinaturas singulares de eventos múltiplos. Vemos a imagem do conceito.

Continuamos no mesmo ambiente: a linguagem articulada através do mesmo

instrumento: a imagem: que se desdobra em vários graus de complexidade:

metáfora/conceito, mito/logos, categoria/símbolo. O recurso aos instrumentos depende da

exigência da necessidade de figuração e esta do grau de complexidade e verdade que se

deseja alcançar. Neste contexto, o conceito é um instrumento útil à vontade de

representação que não se distingue qualitativamente de seus parentes lingüísticos. Ele

também é um produto do imaginário que mediante as ficções lingüísticas arquiteta as

formas de dizer o mundo com maior ou menor vivacidade, com maior ou menor grau de

aproximação com o evento em seu manifestar vivo e pulsante. Quanto mais criativo mais

verdadeiro, pois os conceitos, como Nietzsche percebeu, são metáforas desgastadas pelo

uso, moedas que perderam a efígie e passaram a valer apenas como metal. Para recuperar o

poder de representação da linguagem o filósofo deve criar, forjar novas formas de se

apropriar da coisa através do signo. O índice de verdade do conceito estreita-se ao seu

índice de novidade: quanto mais próximo à imagem mais próximo ao mundo, quanto mais

68 GALLO. op. cit. p. 40

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artifício mais representativo, quanto mais complexo mais verdadeiro. Estranho paradoxo

que nos induz a ver a filosofia como exercício de linguagem que não se distingue

substancialmente da atividade poética. Entendemos a linguagem aqui da mesma forma que

Cortázar e com ele buscamos firmar uma distinção que pode esclarecer melhor o que

estamos dizendo. Cito uma passagem do livro “Conversas com Cortázar”:

Creio que há duas maneiras de entender a linguagem. Uma está na linguagem do tipo livresco, na linguagem pela própria linguagem. Da minha parte, esta não merece nenhum respeito: a linguagem de Gabriel Miró, por exemplo, ou a de muitas coisas de Camilo José Cela. Acho que foi Borges quem disse que a masturbação verbal é uma forma de ‘desorganizar o dicionário’. Quando falo em linguagem masturbatória estou me referindo a uma espécie de serpente que morde o próprio rabo, sem uma autêntica correlação objetiva. Para mim, a linguagem que conta é aquela que abre janelas na realidade; um ato de abrir permanentemente na parede dos homens aqueles ocos que separam a gente de nós mesmos e dos demais. 69 (grifos meus)

“Abrir janelas na realidade”. Bela metáfora a representar o nosso paradoxo e significar

nossa agonia. A linguagem não se fecha sobre si mesma senão como fuga alienante de sua

correlação objetiva com o mundo. Dizer o mundo implica em muitas formas de expressão

e muitos modos de articulação. A máquina que se põe a funcionar deve ser múltipla e

movente como aquilo que nos faz enxergar. Abrir janelas demanda uma potência criativa

que se origina na imagem, na criação poética, na forma que guarda as tensões do objeto

sem as anular. Para tal o conceito não se pode paralisar no clichê, deve-se fazer

constantemente novo como novas as experiências que compõe. O conceito permite a ponte

que liga a idéia à experiência do múltiplo.

A tradição realista, equivocadamente associada a Platão, traduziu o conceito numa

metáfora inadequada. Para ela a forma da representação era um tipo de espelhamento da

realidade essencial que se escondia por trás do fenômeno e o organizava. O conceito seria

uma forma de captação, uma malha lingüística cuja função era capturar a realidade em seu

nexo fundamental. Na verdade aqui se escondia e se esconde uma vontade de poder que

69 GONZÁLES BERMEJO, Ernesto. Conversas com Cortázar. Tradução Luis Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. Pp. 71-72.

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pretende fixar o mundo em esquemas de compreensão para melhor manipulá-lo. Aquilo que

Deleuze denominou o “nomos sedentário” que procede por divisões binárias mediante as

quais o pensamento, crendo captar o ser, prescreve a este uma divisão e uma distribuição

assimétrica de suas formas. O conceito situado no plano categorial trai o evento ao

simplificá-lo, mas pretendia estar construindo um meio de acesso ao evento real: aquele

despido de todas as singularidades e do movimento que o sustentava vivo.

Um passeio pela tradição para explicitarmos o que dizemos.

2.5. Pequena digressão sobre o caminho até as coisas

O Universo não é uma idéia minha. A minha idéia do Universo é que é uma idéia minha. A noite não anoitece pelos meus olhos, A minha idéia da noite é que anoitece por meus olhos. Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos A noite anoitece concretamente E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso. (Fernando Pessoa)

Ensaiamos pensar em uma nova clave, forçando a linguagem a expressar a

divergência, sendo ela mesma aquilo que diz. O que é difícil, uma vez que a tradição

realista impôs-se a nós como um hábito do qual tentamos nos livrar. Ao pensar as relações

entre as palavras e os eventos somos levados pelo costume a considerar aquelas como

formas de captação destes últimos. Da mesma maneira, tendemos a pensar, conforme as

pré-concepções herdadas, a estrutura da proposição e do raciocínio lógicos como as únicas

formas de representar as conexões reais entre as coisas. Aqui os limites são fixos e os

territórios claramente demarcados. A gramática rudimentar das frases predicativas impõe

sua norma. Aquilo que representa o mundo separa-se daquilo que, fechado sobre si mesmo,

apresenta-se como fingimento criativo comprometido com o belo: a ciência e a filosofia

desempenham funções distintas da arte e da literatura que lhes determina a essência. Não se

misturam jamais. O que é do âmbito do conceito representativo não pertence ao domínio da

imaginação criadora.

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Neste particular, o hábito imposto pela tradição substancialista casou-se bem com o

senso comum, que só consegue ver sujeitos, coisas e representações. Ao olhar para trás não

conseguiu ver senão os limites das dicotomias que ela mesma criou. Há resíduos dessa

maneira de considerar a linguagem em várias esferas do pensamento. Vale uma passagem

por elas para mostrar aquilo que afirmamos. Para isso devemos falar, por assim dizer, outro

idioma, que não é mais o nosso. Dar voz a outra forma de pensar a expressão dentro dos

moldes do que denominamos nomos categorial.

Podemos começar concordando com Deleuze e Guattari e ver o que resulta se pensarmos

as conseqüências do que dizem dentro dos limites de um tipo de formalismo racionalista.

Supondo que o filósofo seja um criador de conceitos, deveríamos considerar que quando ele

os cria não cria, ao mesmo tempo, a realidade à qual pretende referir-se, em relação à qual

os seus conceitos devem ser boas ou más formas de aproximação. Numa imagem, os

conceitos sempre foram concebidos como malhas gnosiológicas que servem de rede para o

pensamento captar seres realmente existentes. Não fosse assim eles, além de não servirem

para nada, não se distinguiriam da criação artística. Ora, o que importava aqui não é se o

filósofo cria ou não os seus conceitos, mas com que finalidade o faz. O conceito não pode

ser tomado assim como fim da atividade filosófica, mas como meio para se atingir um fim

ulterior: representar o realmente real e suas conexões.

Pensa-se assim: Platão criou o conceito de Idéia, mas é evidente que ele não inventou a

idéia ela mesma; apenas abriu, por assim dizer, uma janela que dava para uma realidade

antes imperceptível. Com a abertura da janela ele não criou a paisagem, mas o meio de vê-

la, da mesma forma que com a trama da rede não se inventa a realidade do peixe, mas a

forma de pescá-lo. É o que nos diz Platão quando sustenta: “Não somos nós que

inventamos a Verdade. É a Verdade que nos interpela e nos solicita.”

Não se deve confundir a atividade pensante com suas representações objetivas, nem

tampouco as formas da representação com o conteúdo das mesmas. Platão inventou o termo

idéia no intuito de designar uma realidade acessível apenas ao pensamento, da qual as

idéias seriam expressão adequada: ele inventou a idéia, mas não o que a idéia designa; deu

forma ao conceito, mas não inventou a justiça, a ciência, a coragem, etc. que queria captar

com seus instrumentos conceituais. Isto é uma coisa óbvia? Sim, mas nem sempre o óbvio é

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percebido e tomado como ponto de partida de uma reflexão conseqüente. O que é o óbvio,

senão o que é esquecido primeiro?

Para Platão, o conceito em sua dimensão gnosiológica (logos) deve nos levar a colher a

essência do real, o seu nexo fundante e a sua dinâmica; e a dialética do pensamento

filosófico não é senão expressão noológica da dialética ontológica. 70 Tal característica

fundamental do pensamento platônico, descurada ou não compreendida adequadamente na

modernidade, reflete-se na concepção dialética de Hegel, pois para ambos a dialética não é,

in primis, um movimento do pensamento, mas é, sobretudo um ‘movimento’ da coisa

mesma; e o pensamento só é verdadeiramente pensamento na medida em que o sabe

espelhar.

Quando Hegel propôs a dialética como método capaz de elevar o pensamento filosófico

ao nível da cientificidade, ao qual toda verdadeira filosofia aspirava, teve o cuidado de

destacar que o momento dialético não era, de forma absoluta, prerrogativa do pensamento

filosófico, instaurando-se como constructo subjetivo a priopri, elaborado pelo intelecto no

intuito de satisfazer aos seus próprios fins, mas algo efetivamente presente em todo o

momento da realidade, como forma de articulação e conteúdo aos quais o intelecto deveria

moldar-se em sua busca pelo conhecimento verdadeiro:

“Ora, por mais que o intelecto comumente solicite a dialética, não se deve pensar de modo algum que a dialética seja algo presente somente na consciência filosófica: ao contrário, o procedimento dialético pode-se encontrar em toda outra forma de consciência e na experiência geral. Tudo aquilo que nos circunda pode ser pensado como exemplo da dialética. Nós sabemos que todo finito, ao invés de ser termo fixo e último, é mutável e transeunte: isso nada mais é do que a dialética do finito, mediante a qual o finito, enquanto em si, é diferente de si, sendo impelido também para além daquilo que é imediatamente e transformando-se no seu oposto.” 71

Quer dizer: dialética não se inventa, dialética se descobre, e os conceitos e articulações

elaboradas pelo pensamento não são, ou pelos menos não deveriam ser, criações fechadas

sobre si mesmas, mas mediações capazes de facultar ao pensamento a possibilidade deste

70 Cf. REALE, G. Introduzione generale, in: PLATONE, Tutti gli scritti. Milano: Rusconi, 1996. 71 Citado por REALE e ANTISERI, História da filosofia. Vol. III. Do Romantismo até nossos dias, São Paulo: Paulus, 1991. P. 108.

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aprofundar-se na compreensão do real efetivo, captando seus nexos ontológicos

fundamentais: complexos e moventes.

O aspecto especulativo ou positivamente racional da dialética hegeliana não foi

corretamente percebido pela crítica, especialmente por Marx, ao ser suprimido em favor de

seu aspecto abstrato ou acessível-ao-entendimento (vernünftige). Conforme esclarece

Alexandre Kojéve,

“poderia supor-se que a dialética é o próprio do pensamento lógico, ou em outros termos, que se trata de um método filosófico, de um procedimento de investigação ou de exposição. Porém, na realidade, não é nada disso. Pois a ‘Logik’ de Hegel não é uma lógica no sentido corrente do termo, nem uma gnosiologia, mas uma ontologia ou uma Ciência do Ser, tomado enquanto Ser. E 'o Lógico’ (das Logische) do texto citado não significa o pensamento lógico considerado em si mesmo, mas o Ser (Sein) revelado (corretamente) no e mediante o pensamento ou o discurso (Logos).”72

Mais recentemente, encontramos em Nicolai Hartmann a mesma orientação no sentido

de distinguir a atividade cognoscitiva não como atividade criadora de seus produtos, os

conceitos, mas como relação de captação na qual a intenção cognitiva

atravessa o círculo de bronze, não porque o seu ponto de mira é intencional, mas porque está em-si”, ou seja, fora e independente da intenção que capta e do pensamento que compreende. 73

Maurice Dupuy esclarece que, para Hartmann,

“o próprio sentido da intencionalidade é transcender o objeto puramente intencional. A verdadeira relação cognitiva é, portanto, por essência uma relação ontológica entre o ser do sujeito e o ser do objeto". 74

Há uma passagem de Hartmann ilustrativa a este respeito, no início de sua obra Traços

fundamentais de uma metafísica do conhecimento, onde se lê: “O conhecimento não é uma

72 KOJEVE, Alexandre, La Dialectica de lo Real y la Idea de la Muerte en Hegel. Traducción de Juan José Sebreli. Buenos Aires: Editorial La Pleyade, 1984. p. 21. 73 HARTMANN, Nicolai, Traços fundamentais de uma metafísica do conhecimento. Citado por DUPUY, Maurice. A Filosofia Alemã. Tradução Rosa Carreira. Lisboa: Edições 70, 1987. P. 100. 74 DUPUY, Maurice. A filosofia alemã. Tradução Rosa Carreira. Lisboa: Edições 70, 1987. Pp. 100-101.

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criação ou produção do objeto (...) mas uma apreensão de algo que existe antes de todo

conhecimento e independentemente dele." 75

Impõe-se ademais uma outra concepção, importantíssima a esse respeito, dos conceitos

como mediações substituíveis ou projetos provisórios elaborados pelo sujeito como

instrumentos interpretativos que devem conduzi-lo gradativamente à penetração no sentido

do objeto. Tal é o ponto de vista que encontramos na idéia do círculo hermenêutico de

Heidegger e Gadamer; nele o ato interpretativo não aparece como mero resultado da

criação subjetiva de conceitos, mas é construído na relação entre as pré-concepções, pré-

suposições ou expectativas do sujeito atuando como projetos iniciais substituíveis

continuamente e continuamente revistos, com base no resultado da penetração no texto. A

objetividade é procurada aqui no sentido de não se deixar levar pelas pré-disponibilidades

tomadas como ponto de partida, ou seja, as pré-vidências e as pré-cognições do caso ou das

opiniões comuns, mas fazê-las emergir das próprias coisas, garantindo assim a

cientificidade do próprio tema. Segundo Gadamer,

“é preciso [...] considerar que cada revisão do projeto inicial comporta a possibilidade de esboçar novo projeto de sentido; que projetos contrastantes podem se entrelaçar em uma elaboração que, no fim, leve à visão mais clara da unidade do significado; que a interpretação começa com pré-conceitos que são, pouco a pouco, substituídos por conceitos mais adequados. E precisamente esse contínuo renovar-se do projeto, que constitui o movimento de compreender e interpretar, é o processo que Heidegger descreve. Quem procura compreender fica exposto aos erros derivantes de pressuposições que não encontram confirmação no objeto. É função permanente da compreensão a elaboração e a articulação dos projetos correntes, adequados, os quais, como projetos, são antecipações que só podem se confirmar em relação com o objeto. Aqui, a única objetividade é a confirmação que uma pré-suposição pode receber através da elaboração. E o que distingue as pré-suposições inadequadas senão o fato de que, desenvolvendo-se, elas se revelam insubsistentes? Ora, o compreender só alcança sua possibilidade autêntica se as pressuposições de que parte não são arbitrárias. Há, portanto, um sentido positivo em dizer que o intérprete não chega ao texto simplesmente permanecendo na moldura das pré-suposições já presentes nele, mas muito mais quando, em relação com o texto, põe à prova a legitimidade, isto é, a origem e a validade, de tais pressuposições.”76

75 Citado por DUPUY, Maurice. Ibid. 76 Cit. Por REALI e ANTISERI, 1994. História da filosofia, Vol. III. P. 629

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O intérprete não é uma tábula rasa. Ele se aproxima do texto com o seu Vorverständnis,

isto é, com a sua pré-compreensão, com os seus pré-juízos ou Voruteile. Mas ele não pára

aí, no momento puramente arbitrário de suas categorias subjetivas, uma vez que deve, a

partir delas, avançar para além da arbitrariedade de seus pré-supostos rumo à ulterior

penetração do sentido objetivo do texto, que permanece de pé, fora e independentemente

dos pré-conceitos do intérprete. Pensamos aqui no sentido do que diz Karl Löwith quando

afirma não ser verdade

que um texto filosófico se constitui apenas pela leitura e a partir dela: ele permanece o que é, e podemos lê-lo e entendê-lo de maneira correta e de maneira errônea. Mas continua sendo a matriz [...] 77

É preciso reconhecer a necessidade de romper a casca das coisas e chegar até a medula

das mesmas, onde o sentido se esconde por inteiro e espera por ser descoberto. Aqui a

verdade que se busca não é a adequação de um predicado fixo a um sujeito inerte, mas um

revelar do sentido ao pensamento enérgico que procura. Para tal há que se romper antes as

trivialidades do senso comum, estabelecidas pelos pré-conceitos da época. Elaborar seus

próprios conceitos? Sim, e não simplesmente marchar ao trote do burro levado pelo

cabresto da fraseologia e das representações comuns. Pensar o pensamento dos outros ou

pensar por si mesmo consiste em pensar ou não pensar. E não há nada que o homem

comum traia com mais facilidade que o pensamento autêntico. O homem comum não pensa

porque não sabe construir os seus próprios conceitos. Isto não negamos. Hegel percebeu

com muita clareza que o que se chama bom senso é freqüentemente algo muito insano e

exemplifica:

O são sentido comum encerra as máximas de seu tempo. Assim, por exemplo, quem, antes de Copérnico, houvesse afirmado que a terra girava ao redor do sol ou houvesse sustentado, antes do descobrimento da América, que ainda havia no mundo terras desconhecidas, teria atentado contra o são sentido comum. [...] O são sentido comum é, pois, a mentalidade de uma época que encerra e resume todos os pré-

77 LÖWITH, Karl, Oietzsche e a completude do ateísmo, in: Oietzsche hoje? (Colóquio de Cerisy). São Paulo: Brasiliense, 1985. P. 142

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juízos desta época: ele é governado por imposições mentais das quais não se dá conta.78

Ser governado por imposições mentais é algo que se distancia muito de um pensamento

autêntico que pretenda transpor o dado imediato e perseguir o fundamento no qual se

alicerça todo o sentido. Portanto, tal pensamento não poderia jamais ser guiado por

representações banais e generalidades da época. As palavras gerais, diz Goethe, e as

grandes presunções causaram sempre os grandes males. Ser capaz de pensar por conta

própria, isto admitimos com Nietzsche e Deleuze. Só não podemos deixar de distinguir aqui

que os conceitos, mesmo entendidos como representações enérgicas que se movem ao

ritmo do homem que está por trás delas e as impulsiona, não obstante não se reduzem a

criações puramente subjetivas fechadas sobre si mesmas como entidades psicológicas

autônomas, sendo antes instrumentos cognitivos mediante os quais se pode ler, na evolução

perpétua do devir, as configurações essenciais que estruturam a realidade e sobre as quais

medita o pensamento filosófico, cujo objeto, a afirmação é de Hegel, é “desenvolver a

partir do conceito, a Idéia, porquanto esta é a razão do objeto, ou, o que é o mesmo,

observar a evolução imanente da própria matéria.” 79

Vemos assim que, de todos os ângulos a partir dos quais o problema é observado, faz-se

fundamental saber articular a função mediadora do conceito e a realidade que ele faz

presente ao espírito: distinguir entre meios e fins; entre aquilo que se cria, sua função e

aquilo que não se cria, mas cuja percepção apenas se dá mediante as nossas criações, desde

que adequadas àquilo para que foram criadas. Os conceitos como meios de penetração no

autêntico sentido das coisas e não criações subjetivas fechadas sobre si mesmas. O conceito

não como categoria que paralisa e falseia. Mesmo como instrumento que permite ao olhar

exercitar-se a perceber aquilo que se mostra para além.

Portanto, Deleuze aponta: o conceito não é o fim da atividade filosófica. Embora criada

por ela, o conceito é o meio pelo qual ela se exerce. Não obstante, este meio instaura-se

como evento complexo que se agencia a outros eventos complexos e os ilumina a partir de

78 Hegel, Werke, t. XIV, p.36. Citado Por BLOCH, Ernst. Sujeto-Objeto: El Pensamiento de Hegel. Traducción de Wenceslao Roces. México: Fondo de Cultura Económica, 1985. P. 33. 79 Hegel, Princípios da Filosofia do Direito. Tradução Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 1997. P.01.

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uma exterioridade interior própria à linguagem. Há muita proximidade entre conceito e

imagem para deixar de ser percebida. Construímos muitas variações em torno do tema para

que o leitor já não tenha adivinhado.

2.6. Enfim

Em sua obra “O que é a filosofia?” Gilles Deleuze e Félix Guattari inserem um trecho de

Nietzsche, em que o filósofo alemão tenta determinar a tarefa da filosofia escrevendo:

os filósofos não devem mais se contentar em aceitar conceitos que lhe são dados, para somente limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles comecem por fabricá-los, criá-los, afirmá-los, persuadindo os homens a utilizá-los. Até o presente momento, tudo somado, cada um tinha confiança em seus conceitos, como num dote miraculoso vindo de algum mundo igualmente miraculoso,... 80

Ao contrário do que pressupunha a crítica da cultura filosófica ocidental que situou o

exercício da filosofia no plano puramente teórico, no qual a produção de conceitos serviria

como instrumento que estrutura a visão que conexiona um conjunto de fatos e os explica

em função de seu nexo essencial, Deleuze e Guattari, a partir de suas leituras de filósofos

modernos como Leibniz e Spinoza, marcam uma distinção pela qual parece confundir a

filosofia com a atividade poética, criadora de formas e submetida às determinações

relativas do sujeito. O filósofo como fabricante de conceitos e o conceito como fim de uma

atividade... Temos aqui uma aproximação entre filosofia e literatura que não é

absolutamente desprovida de interesse nem de valor. A subversão deleuziana da função do

conceito traz em seu interior o pressuposto de que a filosofia seria uma forma literária, uma

poética do real concebido em sua multiplicidade movente e em sua trama complexa e

multifacética.

É preciso a constante criação e elaboração do novo não como um fim em si mesmo, mas

como acesso a um mundo que não se deixa prender nas malhas de abstrações gastas. A

filosofia é forma literária e na dinâmica dos diálogos os conceitos e metáforas, imagens

80 Citado por DELEUZE e GUATTARI, O que é a filosofia? Tradução Bento Prado Jr. E Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. Pp. 13-14.

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vivas, são colocados em movimento num jogo de espelhos mediante o qual a linguagem

brinca com o real recriando-o em suas formas de aproximação e distanciamento. Parece

incorreto à razão comum, ( digo razão comum porque ao senso comum nada parece nada),

aproximar categorias tão distintas quanto a filosofia e a literatura, o conceito e a metáfora.

Talvez porque se desconsidere que estamos aqui lidando com formas da atividade humana:

ambas alicerçadas na criação como modo de operar e colocar para funcionar sua

maquinaria. Os instrumentos são vários como vária é a realidade que procuram figurar.

Quando dizemos figurar não significamos com isso espelhar, mas urdir na figura um tecido

que não se aparenta com ela e que, no entanto, pode ser, pelo artifício, relevado mediante a

ação criadora de signos que o reinventa.

A filosofia não é saber, mas jogo sério ou atividade de desportista como brinca Platão.

Ela nunca quis ser saber, caso contrário afirmava-se como Sofia inserindo-se numa tradição

milenar de herança dogmática. Ao contrário, com a filosofia tem-se um distanciamento

desse saber visto como irrecuperável ou impossível. O saber daqueles que já eram antigos

para Platão deve-se converter em matéria de criação literária e mediante um jogo chamado

diálogo mover um mecanismo de criação cujas engrenagens são compostas de metáforas e

conceitos, vale dizer, de imagens.

Metáforas e conceitos são personae, máscaras de um poeta que se põe como demiurgo

fantasiado de sábio. Os poemas de Cummings que analisamos acima a partir do instrumento

forjado por Otavio Paz, o conceito de imagem, demonstram que a poesia e seus fantasmas

põem-se como forma de acesso ao ser e não meio de expressão do sujeito apenas. Deleuze

repudia a arte como manifestação biográfica. Não há nada na vida e na experiência

individual que interesse ao fazer literário, nem à filosofia. As imagens elaboradas são

sempre instantâneos forjados por uma atividade criadora que quer ter acesso à nervura da

realidade mediante o signo em movimento. Duas asserções:

1- A literatura é uma forma humana de relação compreensiva com o mundo.

2- É a forma mais rica de acesso ao tecido da experiência.

1 e 2: a relação compreensiva se dá mediante um fazer criativo.

A trama de Cummings rapta na criação o instante e o eterniza fundindo-o,

simultaneamente, com a experiência humana de senti-lo. A filosofia escolhe o caminho do

conceito, mas não se distancia da função da imagem. Quando o conceito não cabe ela se

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apropria da metáfora, da alusão ou da alegoria. Platão não supôs que o mundo real fosse um

quadro estático ao qual se ascende através de uma figuração geométrica do supra-sensível.

A própria anabasis é uma metáfora de um processo contínuo. Não uma categoria seca que

nomeia um comportamento ideal. A estupidez está na mente dos críticos que entendem au

pie de la lettre o que é meio de acesso e escada. Citamos Wittgenstein:

Minhas proposições são esclarecedoras no seguinte sentido: que quem me compreende acaba por reconhecer que carecem de sentido; sempre que aquele que compreenda saia através delas fora delas. Deve, pois, por assim dizer, tirar a escada depois de ter subido. 81

O mundo é um complexo de tensões. Uma teia viva de determinações moventes. Nela se

inclui a cultura e o conhecimento das tradições: tudo trama de signos que se deve tornar

viva mediante o movimento de resignificação, mediante a criação. Como? Mediante o fazer

literário. Colli percebe aqui como vício aquilo que Deleuze exalta como virtude. Mas

aquele não distingue como este que o vício que aponta é única possível virtude. Cito:

Platão chama filosofia – o amor à sabedoria – à própria busca, à própria atividade educativa, ligada a uma expressão escrita, à forma literária do diálogo.” [...] Por outro lado, a filosofia posterior, a nossa filosofia, é apenas uma continuação, um desenvolvimento da forma literária introduzida por Platão [...] Portanto, não há um desenvolvimento contínuo, homogêneo, da sabedoria à filosofia. O que dá origem a esta última é uma reforma expressiva, é a intervenção de uma nova forma literária, um filtro através do qual condiciona-se (sic) o conhecimento de todo o precedente. 82

Deleuze: “Primeiro isso lembra Platão, porque em Platão... os filósofos, para mim, não

são pessoas abstratas, são grandes escritores, grandes autores bem concretos.” 83

81 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Vérsion española de Enrique Tierno Galván. Madrid: Alianza Editorial, 1985. P. 203. 82 COLLI, Giorgio. O Oascimento da Filosofia. Tradução Frederico Carotti. Campinas: Editora da UNICAMP, 1998. Pp. 9-10. 83DELEUZE, Abecedário. Disponível em: http://www.oestrangeiro.net/index.php?option=com_content&task=view&id=67&Itemid=51. Acesso em 08 de agosto de 2007.

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Deleuze era também filósofo e, como tal, um autor bem concreto e um grande escritor.

Uma pena que não tenha percebido que lidava com metáforas ao criar os seus conceitos.

Não tenha percebido que o conceito é determinado como tal não em função de sua natureza

intrínseca – não muito diferente da imagem - mas de uma decisão subjetiva que escolhe

fixar-lhe o valor. O conceito é aquilo que eu digo que ele é. Por exemplo: construo

mediante um processo analógico uma imagem cuja função é operar a superação de uma

outra imagem considerada pobre em significação e falha em determinação: contra o modelo

de árvore - adequado a apresentar metaforicamente a concepção do ser e do conhecimento

como um sistema hierárquico de categorias – construo o modelo de rizoma – adequado a

apresentar metaforicamente uma concepção do ser e do conhecer como um plano imanente

de linhas de forças dinâmicas que se relacionam. Ambos os conceitos são metáforas

extraídas da biologia para apresentar imageticamente os construtos idealizados pelo

filósofo. Onde está a distinção? Podemos multiplicar os exemplos de conceitos-metáforas

com função imagética: máquinas desejantes, corpo sem órgãos, platôs, ritornelos –

potências lingüísticas extraterritorializadas, vale dizer, elevadas por distintos processos de

apropriação analógica a um plano de sentido metamorfoseado pelo fazer criativo-literário.

Para não dizer dos neologismos, das rupturas sintáticas, das recorrências alusivas e

elusivas, das transferências de contexto gramatical, da utilização dos ritmos. A linguagem

da filosofia ao criar os seus conceitos cria muito mais do que conceitos. Por que então

classificá-los como conceitos? Ceder ao nomos sedentário que se queria superar? Talvez

porque desse modo servimos à necessidade arraigada em nós de delimitar campos de

significação e abrangência dentro dos quais podemos pensar os artifícios como objetos

precisamente claros e distintos? A filosofia aparece como algo compreensível e como

disciplina autônoma: recortada pela natureza de seus problemas e de sua atividade

fundante. É preciso dizer o que é a filosofia, assim como é preciso dizer o que é a ciência e

a literatura; diferenciá-las para só então sossegar a angústia de se saber refém do

indefinível. Procedo mediante a criação de conceitos – mas eles não s e diferenciam das

metáforas – elejo o pensamento sem imagens, mas penso por imagens; recuso-me a deter o

fluxo sob o controle instrumental das categorias, mas interpreto os meus conceitos como

determinações formais distintas absolutamente das metáforas; trabalho autores sabendo que

são personagens de uma história cuja significação eu invento; traço os meus planos como

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máscaras que projetam a minha voz nesse teatro de sombras que é a filosofia. Minha

filosofia é, como a de Platão, um experimento literário que se serve das imagens-conceitos

e dos conceitos-imagens, que inventam personagens e situações aparentemente reais, que se

serve de ficções lingüísticas e do trabalho criador, que se vale das invenções e das rupturas

sintáticas, que se erige no terreno das violações e dos artifícios.

Deleuze nos libertou da consciência redutivista do nomos categorial, mas atribuindo à

filosofia uma característica definitória e ao conceito uma distinção precisa em relação à

imagem nos reconduziu ao território do qual havia nos libertado. Melhor seria assumir a

indistinção, o indefinível e o hibridismo dos termos no interior da força dialética que vaza o

casulo da idéia e vivifica o conceito. Libertar a idéia de seu casulo: conceito e imagens

como forças integradas de uma mesma potência ativa que se diferencia no diálogo aberto de

suas possibilidades. Não se congela nem se separa, mas retorna sobre si mesma como

afirmação de uma diferença não territorial ou formal, mas viva onde circulam os signos. A

imagem do conceito: dentro dele também lutam forças em tensão e diálogo. Nossa decisão

ao afirmar: isto é um conceito inclui a afirmação que a nega: esta é a minha imagem dele.

Filósofos são autores e autores são filósofos. Onde achar os limites? Pergunto: é preciso

achá-los, ou melhor seria pensar o complexo de forma complexa, deixar a ambigüidade em

paz e saber tirar dela a riqueza que os anseios da razão instrumental em seu ímpeto de

ordem e pureza classificatória empobreceu? Empobrecimento que é sinônimo de falta de

compreensão, de projeção idealizada daquilo que o sujeito quer impor à experiência através

de grandes cortes e grandes perdas. O conceito só é cinzento devido ao uso instrumental

que dele se fez e se faz. Em sua relação dialética com a imagem, da qual ele mesmo é um

tipo, o conceito explicita sua dimensão simbólica mediante o jogo pelo qual ganha sentido

ao conferir sentido. A imagem sem o conceito é cega; o conceito sem a imagem é vazio. A

mortificação do vivente reside no isolamento dos pólos, na tentativa de se alcançar um

sistema acabado e formal do qual foram expulsas todas as determinações moventes e

múltiplas que poderiam enraizar a linguagem no tecido plurifacético e dinâmico do real.

A idéia platônica não é exatamente um esquema fixo e formal de significação

logocêntrica. O próprio Deleuze o reconhece em uma passagem de rara inspiração:

Sim, sim! Foi como quando eu soube que existiam coisas tão estranhas quanto o que chamavam de conceitos. Para mim, teve o mesmo efeito

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do que para outros a descoberta de um personagem de ficção. Como fiquei emocionado ao descobrir Monsieur de Charlus! Ou um grande personagem de romance, ou Vautrin. Ou ainda Eugénie Grandet. Quando eu aprendi o que Platão chamava de "idéia", me parecia ter vida! Era animado! Eu sabia que era isso; que, para mim, era isso. 84 (grifos meus)

O leitor há de perceber que não há nada de inerte no conceito. Que ele não é um

instrumento. Pode ser o resíduo de uma imagem que se necessita determinar mediante a

volta sobre si mesma. No fragmento 434 do Athenäum, Schlegel refere a síntese sob outra

denominação mas de alcance igual ao que buscamos: “Deve então a poesia ser pura e

simplesmente dividida? Ou permanecer uma e indivisível? Ou alternar (wechseln) entre

separação e vínculo?” 85

A ação criadora humana é imagética assim como sua relação imediata com o mundo.

Num primeiro momento aquilo que se apresenta na percepção sensível como múltiplo e

dinâmico pode registrar num todo orquestrado segundo os ditames de uma sensibildade

imersa no fluxo a intuição imagética que é vida, movimento e tensão. No todo da imagem

conserva-se a indivisibilidade da apresentação poética, para depois se enfraquecer no

conceito e se perder nas categorias inseridas nos sistemas. Assim a imagem se volatiliza e

acaba esquecendo-se de si mesma. Na distância estabelecida pela racionalidade moderna

entre o conceito e a metáfora infiltrava-se a falsificação das diferenças amparada em falsas

semelhanças. Diferença radical entre imagem e conceito; semelhança fundamental entre as

essências captadas pelos conceitos; ordem na submissão dos conceitos às hierarquias

categorias articuladas nos sistemas. Uma relação fechada entre o universal e o singular

mediada pelos códigos normalizadores emperrou a compreensão da diversificação fluida

dos eventos e o vínculo aberto que poderiam estabelecer com a linguagem na tensão

mediada pelos signos imagéticos.

A busca de compreensão humana é mediada pela imagem, sempre foi. Já mostramos

acima que mesmo a ciência acabou tomando consciência de sua ação criadora sobre o

tecido do mundo. De seus resultados como produtos da imaginação que opera por

84 DELEUZE, G. ibid. 85 SCHLEGEL, O Dialeto dos Fragmentos. Tradução, apresentação e notas de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1997. P. 139.

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analogias, similitudes, tensões, alusões, proximidades num jogo de invenção em que cabe o

mundo inteiro com suas diferenças afirmadas na relação aberta pela criação. Ação múltipla

de nomeação e construção sintática das relações em ruptura permanente com as imposições

padronizadoras dos códigos. Aqui também o valor da imagem deve ser considerado.

Voltamos a atenção para a genealogia do conceito em Nietzsche. Através dela o autor

alemão nos introduz numa nova relação entre arte e filosofia, metáfora e conceito. Ele sabia

ser impossível classificar a filosofia segundo as rubricas disponíveis: ela não era ciência

nem poesia. Portanto exigiria a invenção de uma nova escritura, original e irredutível a

qualquer outra: “Grande perplexidade: a filosofia é uma arte ou uma ciência? É uma arte

em relação aos seus fins e seus produtos. Mas seu meio de expressão, a exposição mediante

conceitos, a aproxima da ciência. É uma forma de poesia. Impossível de classificar. Falta-

nos inventar e caracterizar uma categoria nova.” 86

A imposição de uma nova maneira de trabalhar a expressão em nome da salvação da

experiência da diferença será melhor compreendida pela análise comparativa. A denúncia

da vulgarização da linguagem conceitual e o apelo à construção de uma nova forma de

linguagem é acompanhada pela ruptura observada na música atonal por artistas que, como

Schömberg, Webern e Berg, sabiam que a submissão ao sistema tonal resultava na morte da

criatividade.

Lida por Adorno, a revolução da nova música apresenta-se como uma revolução na

expressão artística que rompe com o padrão normalizador da tonalidade e abre o espaço a

expressão da diferença na criação musical. Podemos dizer que a nova música nos leva a

ouvir a imagem, na medida em que se afirma como salvação da tensão do múltiplo

mediante a afirmação do singular em sua ruptura com o código e a busca de parâmetros

individuais de organização do material sonoro. Duas imagens nos esperam: a linguagem

dionisíaca e a nova música. Aprofundamos um pouco mais nosso exercício de superação

das fraturas impostas pela consciência submissa ao que é comum.

86 NIETZSCHE, F. W. La Oaissance de la Philosophie à l’époque de la tragédie grecque. N.R.F., p 194. Citado por KOFMAN, Sarah. Oietzsche et la métaphore. Paris: Editions Galilée, 1983. P. 09.

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3. A imagem considerada entre dependência e autonomia em relação ao

código: �ietzsche e Adorno, ou a linguagem dionisíaca e a nova música

“O momento coletivo dentro da linguagem tonal evolui cada vez

mais para um momento da comparação de tudo com tudo, para a

nivelação e a convenção. [...] o que uma vez, na música, era

linguagem, tornou-se mera repetição. [...] parece ter uma

tendência um tanto mecânico-matemática.”

Adorno, Por que é difícil a Nova Música

“Enquanto que cada metáfora da intuição é individual e sem

igual, e por ser assim, sabe sempre fugir a toda denominação, o

grande edifício dos conceitos mostra a regularidade rígida de um

columbário romano e exala na lógica esta severidade e esta frieza

que é própria das matemáticas.”

Nietzsche, Sobre verdade e mentira...

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3.1 Prelúdio

O pensamento de Nietzsche, se entendido em sua mais ampla radicalidade, clamaria

por uma total revolução em lógica, ciência, moralidade e mesmo em filosofia. O germe

desta revolução pode ser encontrado já em seus primeiros trabalhos. De qualquer modo, seu

ponto de partida constituiu na visão fundamental da realidade como uma teia altamente

diferenciada de inter-relações complexas.

“Saberiam vocês o que é o mundo pra mim? - Pergunta Nietzsche - Uma força presente por toda parte, uno e múltiplo como um jogo de forças, concentrando-se num ponto ao escassear no outro; um mar de forças em tempestade e fluxo perpétuo, eternamente a pique de se transformar, eternamente a pique de refluir...”87

A forma e a estrutura configuraram a maneira pela qual o homem, munido de seu

aparato categorial, encontrou para aprisionar tal complexidade em esquemas de

compreensão. Esta é a nossa “razão”. Mas como poderia essa nossa “razão” explicar, ou

mesmo ver esse mundo, ela que se funda na identidade e só enxerga “coisas”. Se

afirmamos, como Nietzsche, que nada no real corresponde rigorosamente à lógica, o

próprio lógico poderia subscrever essa constatação, pois a identidade é algo que nós damos

às coisas e não algo que elas, rigorosamente, possuem em sua realidade efetiva.

O princípio do não-idêntico assumiu na obra de Adorno o mesmo lugar central que

em Hegel as categorias da contradição, da identidade e da síntese. A Razão Negativa é uma

dialética sem síntese. Por isso, deve ser compreendida como um anti-sistema, em que a

consciência sabe de antemão que qualquer tentativa de apreender o real pelo pensamento

malogrará.

Notamos em Adorno, como em Nietzsche, uma consciência aguda da diferença,

representada pela recusa em dissolver o sujeito no objeto e vice-versa. A Razão Negativa,

como a dionísiaca, nos impele a preservar a consciência dos contrários e a irreconcibilidade

dos momentos antagônicos – nos ensinando que o conceito pelo qual representamos o real,

87 NIETZSCHE, Friedrich. La Voluntad de Poderio. Traducción de Aníbal Froufe. Madrid: EDAF, 1986. P.554.

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já constitui, ele próprio, uma traição a esse real. Ele, o conceito, é, pois, incapaz de

apreender toda a riqueza de dimensões desse real e, como tal, precisa por sua vez, ser

negado. A Razão Negativa ,como a dionisíaca, opõe-se, portanto, no plano do pensamento,

a uma ordem social obcecada pela produção do mesmo, negando e recusando como ilusório

o postulado da identidade.

A partir da análise comparativa de dois artigos, um de Nietzsche e outro de Adorno,

tentaremos descobrir afinidades no tocante à temática de identidade e da diferença. Não

queremos aqui estabelecer paternidade de idéias, nem tampouco esmiuçar e descobrir

influências, no caso, altamente duvidosas. O que pretendemos, na verdade, é tentar

esclarecer alguns aspectos importantes na relação entre tonalidade e linguagem conceitual,

atonalismo e aquilo que chamamos Linguagem Dionisíaca, mostrando que se pode supor,

tanto em Nietzsche como em Adorno, uma preocupação fundamental em negar e superar o

caráter eminentemente regressivo e mecânico de certo tipo de padrão normativo (em

Nietzsche, o sistema conceitual, em Adorno, o sistema tonal), que, na sociedade moderna

capitalista levou necessariamente à dissolução do sujeito em uma objetividade fetichizada.

Tal fato, deve-se ressaltar, obedece ao movimento geral de uma sociedade cuja lei mais

íntima é a busca da identidade pela produção do mesmo.

A verdade que procuramos em Nietzsche e Adorno é aquela que consiste em admitir

a existência irredutível dos contrários e, no contexto de uma sociedade que precisa da

repetição, do caráter revolucionário da expressão da diferença. O que está em jogo aqui, em

última instância, é o problema da possibilidade da criação, que só se daria, rigorosamente,

como tradução de uma experiência única irredutível, como expressão de uma divergência

absoluta. Com isto, entre outras coisas, tocaríamos na questão das mediações, no problema

da relação entre o particular e o universal na linguagem.

Adorno chama a atenção para a analogia entre a lógica do sistema tonal e a lógica

discursiva; Nietzsche nos esclarece como, a partir da experiência primeira da metáfora,

cristaliza-se o sistema discursivo-conceptual. A semelhança com a lógica musical do

tonalismo e seu aspecto linear e conciliatório é clara: ambos os “sistemas” ajustam-se à

exigência de uma sociedade que necessita de fórmulas universais que encubram o aspecto

contraditório de sua realidade efetiva. Ambos os sistemas são, portanto, ideologia e só

podem se afirmar em um meio social que precisa de ilusões.

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Nietzsche clamou por uma revolução na linguagem e o seu problema foi o de que se

alguém poderia, significativamente, adquirir uma linguagem com a qual pudesse expressar

experiências divergentes, ou seja, dionisíaca; Adorno identificou na nova música aquele

aspecto emancipatório e revolucionário que apontava para um rompimento fundamental

com tudo aquilo de convencional e nivelador que possuía a velha música tonal. Na nova

música como na linguagem dionisíaca o que tentamos ver, portanto, é algo que possa ser

veículo de expressão do indivíduo em sua integridade e liberdade criadora, para além de

sua degradação e dissolução no objeto ou sua liquidação como mercadoria.

3.2. A Linguagem Dionisíaca e a Verdade da Arte

“Caminhante, não há caminho; faz-se caminho ao andar.”

(Antônio Machado)

Num texto de 1873 intitulado Sobre a Verdade e a Mentira em sentido extra-moral,

Nietzsche esboça a realização de um projeto já anunciado em O nascimento da tragédia.

Naquele texto, ao problematizar a Ciência mediante a crítica ao conceito de verdade,

Nietzsche o situou como uma instância daquilo que ele mais tarde chamará Wille zur

Macht, ou seja, um impulso e um vigor para impor sobre uma realidade essencialmente

caótica uma forma e uma estrutura, para moldá-la em um mundo agradável à compreensão

humana enquanto habitável pela inteligência humana.

Em O Oascimento da tragédia o filósofo anunciava estar diante de um problema

novo, a saber, o problema da ciência mesma, “a ciência concebida pela primeira vez como

problemática, como discutível”.88 No texto de 1873, esse tipo de problema aparece como

resultado de uma análise crítica da linguagem, na qual o filósofo tentou uma aproximação

entre a arte e a cognição, a metáfora e o conceito.

Tal aproximação representava, para Nietzsche, uma espécie de deslocamento de

perspectivas; algo que tornasse possível um ponto de vista distanciado e suficientemente

crítico para abordagem da “ciência como problema”. De acordo com Arthur C. Danto,

88 NIETZSCHE, F. El nacimiento de la tragédia. Traducción de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza, 1985. P. 27.

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“There is an analogy to be found between art and cognition (so-called) regarding both their provenance and function: each consists in illusions, the illusions of science and sense making life possible, the illusions of art making it bearable”.89

Tal ponto de vista só faz sentido em harmonia com uma concepção acerca da origem

e função da nossa linguagem, alinhada segundo uma mirada espistemológica de acordo

com a qual seja colocada em relevo a diferença entre nossas percepções e suas supostas

causas. Neste sentido, foi necessário elucidar as relações de parentesco entre o conceito e a

metáfora, mostrando que a correspondência entre a estrutura lógica da linguagem e aquilo a

que chamamos realidade é um postulado ilusório.

A linguagem que utilizamos, apreendida em conexão com as percepções que temos,

não descreve o mundo como ele realmente é. Não há correspondência entre as sensações

que nos invadem e as formas segundo as quais as moldamos.90 De fato, segundo adverte

Nietzsche,

acreditamos saber algo das coisas mesmas se falamos de árvores, cores, neve e flores, e, no entanto, não possuímos nada mais do que metáforas das coisas, que de nenhum modo correspondem às entidades de origem.91

A diferença entre expressão lingüística e realidade efetiva é ainda enfatizada quando

Nietzsche procura mostrar os graus de distanciamento entre a metáfora e aquilo que ela

quer nomear. Primeiro há um estímulo nervoso transposto em uma imagem: a isto se dá o

nome de primeira metáfora. Depois a imagem é moldada em som: tem-se uma segunda

metáfora; e a cada vez uma completa mudança de esfera, uma passagem para uma esfera

inteiramente outra e nova que, no entanto, conserva um parentesco com a anterior. Deste

modo, argumenta Nietzsche, pode-se passar da primeira metáfora ao conceito,

compreendido como última metáfora, sem se ter em nenhum momento uma total

coincidência entre realidade e linguagem nem, tampouco, completa diferença entre a

imagem e o nome.

89 “Há uma analogia a ser encontrada entre a arte e a cognição (assim chamada) de acordo com a proveniência e função de ambas. Cada uma consiste em ilusões: as ilusões da ciência e do sentido tornando a vida possível; as ilusões da arte tornando-a suportável.” DANTO, A.C. Oietzsche as philosopher. Columbia U. Press, 1980. P. 43. 90 Observamos aqui, em Nietzsche, uma herança claramente kantiana. 91NIETZSCHE, F. O livro do filósofo. Tradução de Ana Lobo. Porto: Rés, 1989. P. 93

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Nessa perspectiva, aprendemos que é como artistas que mantemos contato com o

mundo – construtores mais ou menos involuntários de imagens e metáforas, transformando

mais do que reproduzindo nossas experiências, elas mesmas transformações mais do que

duplicações de suas causas e objetos. No entanto, a palavra em sua origem não é

imediatamente metáfora, mas a transposição imagética de uma vivência primitiva,

completamente individualizada e única. Sua resolução em conceitos se deve a um

esquecimento de sua origem, a um desgaste gradativo daquilo que antes era completamente

preenchido pela intuição. E aqui Nietzsche chega ao seu ponto: os conceitos são metáforas

que se tornaram gastas e sem força sensível, “moedas que perderam sua efígie e agora só

entram em consideração como metal e não mais como moedas”.92 O caminho que vai da

imagem à metáfora e desta ao conceito representa, pois, uma passagem do individual e

único ao padronizado e comum. Em outras palavras, pela aquisição do aparato conceitual

ganha-se um meio para a nivelação e organização de um sem números de casos mais ou

menos semelhantes, isto é, tomados rigorosamente, nunca iguais portanto, claramente

desiguais. O corolário nasce por igualação do não igual. Deve-se esclarecer, pois, que

Assim como é certo que nunca uma folha é igual a uma outra, é certo que o conceito da folha é formado por arbitrário abandono dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do que distintivo, e desperta então a representação como se na natureza além das folhas houvesse algo, que fosse ‘folha’, uma espécie de folha primordial, segundo a qual todas as folhas fossem tecidas, recortadas, desenhadas, coloridas, frisadas, pintadas, mas por mãos inábeis, de tal modo que nenhum exemplar tivesse saído correto e fidedigno como cópia fiel da forma primordial.”93

Vale dizer:

“a desconsideração do individual e efetivo nos dá o conceito, assim como nos dá também a forma, enquanto que a natureza não conhece formas nem conceitos, portanto também não conhece espécies, mas somente um X para nós inacessível indefinível.”94

92 NIETZSCHE. 1989. op. cit., p. 94 93 NIETZSCHE. 1989. op. cit., p. 93 94 NIETZSCHE. 1989. op. cit., p. 94

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Todas essas contestações não são novas e pertencem às indagações da metafísica

idealista moderna que, tal como a mirada empirista de Hume, subjazem ao texto

nietzschiano. “Tão certamente como uma folha jamais é perfeitamente idêntica a outra....”

escreve Nietzsche fazendo eco ao princípio dos indiscerníveis de Leibniz que, em sua

correspondência com Clarke, enunciara:

“Não existem dois indivíduos indiscerníveis. Um amigo meu, homem de espírito, falando comigo em presença de Mme. 1’Electrice no jardim de Herrenhausen acreditou poder encontrar duas folhas inteiramente iguais; a Senhora desafiou-o a fazê-lo, e ele as procurou demoradamente em vão”.95

Mais tarde, em favor do mesmo argumento empírico acerca da indefinida variedade do

mundo, Nietzsche aduzirá outro de semelhante teor:

a coexistência de duas coisas perfeitamente idênticas é impossível; ela suporia uma gênese absolutamente idêntica desde toda eternidade. Isso suporia, por sua vez, a gênese absolutamente idêntica de todas as coisas, ou seja, que tudo o mais fosse absolutamente idêntico desde todos os tempos... Assim, por uma só diversidade, pode-se demonstrar a absoluta diversidade e desigualdade de tudo o que coexiste; a isso nada escapa, seja o que for.96

A propósito, esclarece Francis Wolff:

“Se o próprio argumento evoca a melhor tradição da Teodiceia, em Leibniz em Nietzsche exerce funções opostas: no primeiro, argumento otimista em favor da harmonia de um mundo regido pelo princípio de razão: em Nietzsche, pelo contrário, argumento destinado a mostrar racionalmente-ironicamente que o mundo é rebelde ao conceito e aos princípios da razão”.97

Não nos cabe aqui analisar mais detidamente os argumentos de Nietzsche expostos

acima. Cumpre-nos observar que, não obstante a falsidade da aplicação universal da

linguagem ser, como vimos, ressaltada por Nietzsche, ele mesmo não deixou de notar que a

95 LEIBNIZ-CLARKE. Correspondance de Leibniz-Clarke. Paris: PUF, 1957. p. 83 96NIETZSCHE, 1986, op. cit. p. 53 97 WOLFF, F. Oietzsche e a Razão. in: Kriterion nº 74-75. Belo Horizonte: UFMG, 1985. P.80

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classificação das coisas em categorias, a resolução das metáforas em conceitos é uma

exigência necessária ao indivíduo como meio para a sua auto-conservação. Isto se daria na

medida da possibilidade de sua associação comunitária. Existe, pois, um postulado moral

subjacente à crença na correspondência entre a linguagem e a realidade, estabelecendo a

verdade como uma maneira de usar as metáforas usuais segundo regras universalmente

válidas. O universalmente válido não sendo senão o mais aceitável para um ser gregário

que necessita amparar-se em parâmetros convencionais, isto é, socialmente reconhecíveis e,

portanto, possíveis de servir como regras de coexistência comunitária.

A crença na verdade da linguagem categorial resulta da necessidade moral de se

estabelecer critérios para a convivência social. Não há verdade aqui, mas convenção. A

traição categorial do múltiplo e movente do fluxo dos eventos é uma mentira necessária à

sobrevivência humana, uma espécie de contrato social mediante o qual a verdade resulta de

uma mentira coletiva, o fato da ficção. Nos termos de Nietzsche, usar uma linguagem

categorial codificada em normas significa mentir segundo uma convenção sólida, mentir

em rebanho, ou seja, em um estilo obrigatório para todos. Citemos uma passagem

ilustrativa extraída de Sobre Verdade e Mentira em sentido Extra-moral:

O que é, portanto, a verdade? Um exército móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, em síntese: uma soma de relações humanas que são enfeitadas, traduzidas, poética e retoricamente potencializadas e que, após um longo uso, aparecem a uma sociedade como sólidas, canônicas e vinculantes. A verdade são ilusões esquecidas daquilo que são: metáforas desgastadas e privadas de força sensível (...)98

Do ponto de vista lingüístico, portanto, a sociedade surge apenas quando o indivíduo

abandona o isolamento de suas metáforas privadas e adentra o mundo das ficções

comunitárias99. Gianni Vattimo conclui que

98 NIETZSCHE, F. O livro do filósofo. Tradução de Ana Lobo. Porto: Rés, 1989. P. 94 99 Talvez seja útil observar que o termo “ficção” (Verstellung) é empregado por Nietzsche em uma ampla gama semântica derivada do termo latino “fingere”, cujo significado originário é “manusear”, portanto, “plasmar”, “formar”, enfim, por transferência, “simular”. Um pouco antes, Nietzsche havia escrito que o intelecto é “um meio auxiliar” concebido “pelos seres mais infelizes, mais delicados e mais transitórios” com o fim de “sustentá-lo por um minuto na existência”. Em suma, o homem busca superar a própria debilidade física com a atividade plasmadora e simuladora (pode-se dizer: artística) do intelecto.

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[...] é somente através da construção daquele ‘conceptual (sic) jogo de dados a que se chama, por outro lado, ‘verdade’ (Uewl 1, 362) – isto é, através do estabelecimento de uma ordem hierárquica de conceitos abstratos, afastados não apenas das coisas, mas também das impressões intuitivas imediatas de cada um – que o homem se distingue do animal, completamente imerso no fluxo das imagens”.100

Vattimo se esquece, no entanto, de que a metáfora já é linguagem e, embora ligada a

uma intuição individual e única, representa ela mesma um distanciamento em relação à

imediaticidade do fluxo das imagens. Ela já é, pois, não só um aspecto distintivo a separar o

homem do animal, mas um construto posterior à imagem quase que imediatamente

enraizada na experiência do múltiplo e na expressão da diferença.

Mediante a analogia, a metáfora já é comunicação de algo que se tornou

padronizável. A busca de uma verdade socializável que permita ao homem um primeiro

ajuste coletivo de suas percepções e um primeiro esquecimento de suas diferenças. O que

Nietzsche quer de fato dizer não é que o homem se torna humano pelo uso categorial que

faz da linguagem, mas que esse uso é uma conseqüência da existência social do homem.

Portanto, o agir do homem como ser racional e social está colocado sob a regência das

abstrações, da verdade e da mentira em sentido moral. Sendo como é, vale dizer, um ser

moral o homem

não suporta mais ser arrastado pelas impressões súbitas, pelas intuições, universaliza antes todas essas impressões em conceitos mais descoloridos, mais frios, para atrelar a eles o carro de seu viver e agir.101

Diante de um mundo em constante processo de devir, que não oferece ao homem

nenhum ponto de apoio, a aquisição de um sistema categorial regido por regras universais

surge como um consolo, trazendo ao homem a regularidade e a segurança que a realidade

efetiva não lhe pode dar. A linguagem torna-se assim uma espécie de objetividade absoluta

– esquecida de sua origem sensível, fetichiza-se.

100 VATTIMO, G. Introdução a Oietzsche. Tradução António Guerreiro. Lisboa: Ed. Presença, 1990. P. 24. 101 NIETZSCHE, 1996. Op. cit. p. 99.

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94

Em um livro posterior intitulado O Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche dirá que

“penetramos em um fetichismo grosseiro quando adquirimos consciência dos pressupostos

básicos da metafísica da linguagem...” 102 Esta conclusão fundamenta-se no fato de que a

linguagem, no seu percurso da metáfora ao conceito e deste ao sistema de categorias – a

gramática - acaba por se constituir num novo tipo de mitologia. O esquecimento da origem

objetiva do que era construção subjetiva, absolutiza a convenção e torna verdade

incontestável o que era tábua de salvação social.

Schelling já havia visto – em sua obra Einleitung in die Philosophie der Mythologie

- na linguagem tornada sistema uma “mitologia empalidecida”, que conserva, em distinções

abstratas e formais, o que a mitologia apreende como diferenciações vivas e concretas.

Herder, por sua vez, em seu notável ensaio sobre a origem da linguagem - intitulado Über

den Ursprung der Sprache - não deixou de sublinhar o caráter mítico de todos os conceitos

verbais e lingüísticos. Na mesma esteira, Nietzsche quer mostrar que o conceito não tem

superioridade descritiva sobre a metáfora, pois ambos possuem raiz em um mesmo tipo de

experiência: a imaginação diferencial do múltiplo que se resolve na plasmação artística da

experiência através da metáfora. O que torna o conceito preferível à metáfora é sua

capacidade de descrever experiências universais, ou seja, socialmente relevantes. Com a

possibilidade de figurar universalmente o conceito se permite articular em formas

proposicionais e argumentativas padronizadas. A nivelação e a convenção facilitam a

comunicação e a troca de experiências comuns. Por isso é socialmente preferível. No

entanto, tal preferência desemboca numa aceitação generalizada e passiva que desenha o

conceito como único meio de acesso à realidade – e esse meio consiste em cultivar um

estado de consciência isento de toda distorção subjetiva, de todo envolvimento pessoal.

A mitificação da linguagem artística falseada em um “sistema de categorias”, resulta,

justamente, na sua transformação em norma absoluta universal. O homem, colocado sob a

regência deste sistema padrão, não se pode considerar mais uma individualidade

diferenciada: ele se volatiliza juntamente com o esquema abstrato de que faz uso. Torna-se,

enfim, um homem universal abstrato, privado do suporte concreto de sua experiência

particular. O sistema categorial faz, pois, uma falsa mediação entre o universal e o

102 NIETZSCHE, F. Crepúsculo de los ídolos. Traducción Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 1984. P. 48.

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particular. Deixemos isso para mais tarde quando a comparação com Adorno deverá trazer

à luz o que aqui ainda permanece na penumbra.

Basicamente, ressaltamos que o conceito e a metáfora diferenciam-se em dois pontos:

o primeiro concernente à sua utilidade moral, o segundo relacionado ao grau de

afastamento das experiências individuais, portanto, em relação ao seu grau de abstração. O

afastamento em relação à experiência conduz a metáfora ao conceito e este à categoria,

quando submetido ao ordenamento do sistema lingüístico. Ao perder sua relação com a

imagem metafórica, na qual se enraizara, o conceito enfraquece a qualidade distintiva da

linguagem como ficção. Aquilo que lhe permitia relacionar-se com a experiência sem se

confundir com ela nem representá-la univocamente.

Não há representação unívoca entre a palavra e a coisa, apenas aproximação

imaginativa mediante a construção de ficções lingüísticas. O conceito é uma ficção que se

estranhou e não se sabe mais imagem metafórica. Esqueceu de sua origem porque era

moralmente necessário à organização social. Tornar-se norma afastando-se de sua origem

radicada na experiência da diferença. Igualar o desigual significando tornar possível moldar

o mundo em formas socialmente relevantes. Uma certa astúcia que transformou a utilidade

moral em critério ontológico e gnosiológico.

O conceito adquiriu, com isso, uma força normativa que o tornou capaz de atender

aos anseios gregários do homem, pois

o homem, por tédio e necessidade simultaneamente, quer existir socialmente e gregariamente, tem necessidade de concluir a paz, e procura de acordo com isto, que pelo menos desapareça do seu mundo o mais grosseiro bellum omnium contra omnes.103

A necessidade de se alcançar uma descrição universalmente válida das coisas que

empreste à conduta humana o aspecto da legalidade impõe-se ao ser gregário. Vemos que

os dois pontos supra mencionados relacionam-se de perto: pois aquilo que possui um nível

maior de abstração, portanto mais distanciado de vivências singulares, é mais útil quando se

necessita não só de um meio para se descrever experiências padrões, ou seja, socialmente

relevantes, mas, principalmente, de uma regra universalmente aceita que submeta as

103 NIETZSCHE, F. 1984. op. cit. p. 91

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individualidades à potência reguladora da norma. O universal sobrevive da personalidade

gregária e, ao mesmo tempo, a alimenta.

A experiência do conceito remetido ao plano categorial reflete, portanto, a exigência

moral de uma descrição universalmente válida das coisas, pois

enquanto cada metáfora intuitiva é individual e única e, por isso, sabe escapar a toda rubricação, o grande edifício dos conceitos os tenta a regularidade rígida de um columbário romano e respira na lógica aquele rigor e frieza que são da própria matemática.104

É necessário ao homem, portanto, que a metáfora se liquefaça no conceito e este se

volatilize no plano hierárquico das categorias. Só assim forja-se o padrão regular de que

tanto necessita a vida humana em sua urgência social de regulamentação moral.

Atingimos aqui um ponto central: para Nietzsche, tudo o que destaca o homem do

animal depende dessa aptidão de liquefazer a metáfora intuitiva em um esquema, portanto

de dissolver uma imagem em um conceito e arquitetar os conceitos em planos categoriais.

O desenvolvimento da Razão, associado ao crescente aspecto gregário do animal homem,

coincide com a sua virtual transformação de artistas em lógicos. Mas Nietzsche não admite

que haja diferença significativa entre o artista e o lógico. A diferença entre metáfora e

conceito é, para ele, um problema relativo à localização dentro de um sistema, não uma

diferença entre fato e imaginação. Uma observação de Cassirer subscreve e ilustra o

postulado nietzschiano da falsificação instrumental da linguagem conceitual mediante a

criação do sistema hierárquico das categorias. Observa Cassirer que

(...) todo o trabalho intelectual que o espírito executa ao enformar impressões particulares em representações e conceitos gerais, visa essencialmente a romper o isolamento do dado “aqui e agora”, para relacioná-lo com outra coisa e reuni-lo aos demais numa ordem inclusiva, na unidade de um “sistema”.105

104 NIETZSCHE, F. 1984, op. Cit., p. 95 105 CASSIRER, E. Linguagem e Mito. Tradução de J. Guinsburg e Miriam Schnaiderman. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. Pp. 43-44.

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Desde a perspectiva instaurada pela pulsão gregária, portanto, o fato aparentemente

singular, bem como a existência independente dos eventos irredutíveis a esquemas abstratos

é conhecido, compreendido e conceituado somente quando é “subsumido” a um universal,

quando é aceito como o “caso” de uma lei, como membro de uma multiplicidade ordenada

ou de uma série.

Goethe insistia na necessidade da plena concreção, na plena determinação da

contemplação da Natureza, onde cada coisa singular deve ser compreendida e contemplada

no contorno preciso de sua figura singular; mas, não com menos agudeza e convicção,

afirmava que o particular está eternamente submetido ao geral por intermédio do qual

justamente é ele constituído e torna-se inteligível em sua singularidade. A primeira parte da

sentença goetheana seria avalizada por Nietzsche, a segunda parte não. Sabemos porque: o

falseamento da experiência singular é o resultado de sua subsunção ao esquema das

hierarquias. A experiência do singular e do múltiplo em sua vida imediata vale dizer, em

sua verdade, não é salva pelo conceito que foi submetido ao sistema, mas perdida.

Nietzsche considera, além disso, o fato de que os esquemas conceituais podem variar

de sociedade para sociedade e, supondo que alguém possa viver fora da sociedade, de

homem para homem. Eles são o resultado particular de uma vontade de “enformar” o

fenômeno. Portanto, são construções arbitrárias e não verdades necessárias.

Voltando a Cassirer, percebemos que o resultado da normatização da experiência do

múltiplo em esquemas categoriais está vinculada a um postulado da racionalidade

instrumental moderna, cujo esforço em traduzir os eventos singulares circunscreveu o

domínio da física matemática e o santificou. Neste sentido,

“todos os conceitos da física teórica não têm como objetivo senão transformar em um sistema, em um conjunto coerente de leis, a “rapsódia das percepções” com que nos é apresentado o mundo sensível”.106

O que se estabeleceu como norma é apenas aquilo que se impôs como norma.

Reparem nos grifos nossos que evidenciam o arbitrário da empresa moderna de

106 CASSIRER. 1972. Op. cit. P. 45.

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decodificação normativa da experiência: transformá-la em um sistema coerente de leis. Não

está aqui posto o jantar antes de arrumar a mesa?

Por ouro lado, em sua empresa ostensivamente crítica do fetichismo e da alienação na

linguagem, Nietzsche observou que podem existir várias maneiras de se ordenar a

experiência, não havendo nada de necessário, sacrossanto ou imutável acerca disso, quer

dizer, a nossa maneira atual de ordenar nossas experiências é apenas aquela que nos foi

entregue pronta pelo nosso meio social. As pré-concepções que herdamos nos parecem

necessárias apenas porque nos acostumamos a elas. Existe outra forma de apresentar a

experiência salvando a verdade dos eventos múltiplos e singulares: através da arte, da

criação imagética que se volta sobre si mesma e se reconhece e, ao se reconhecer, descobre

o mundo. Nossa proposição dialética parece ecoar o sonho de Mallarmé codificado em

carta a Villiers:

Pude, graças a uma grande sensibilidade, compreender a correlação íntima da Poesia com o Universo, e para que ela fosse pura, concebi o projeto de resgatá-la do sonho e do acaso e de justapô-la à concepção do universo.107

O livro de Mallarmé teria sido a mensagem absoluta, encerrando em seu âmago “o máximo

de significação no mínimo de matéria”. 108 O casamento da arte com o pensamento, da

expressão imagética com a verdade científica, da literatura com a filosofia realizam-se na

ambivalência de duas frases de Mallarmé: “Tudo existe no mundo para culminar num

livro” – os eventos só existem à medida que são resgatados pela imagem – e “Escrevo, logo

sou” 109 – o eu é uma criação, uma imagem projetada na teia da linguagem. Portanto, o eu, a

palavra e o mundo não são distintos, mas se distinguem na trama imagética que os inventa.

Imagem e conceito contraem matrimônios ilegais. O que Nietzsche realizou no plano da

filosofia poética Mallarmé tentou cumprir no plano da poesia filosófica.

A arte compreendida como domínio da falsificação e da ilusão mostra-se, sob a

perspectiva invertida de Nietzsche, ou melhor, de um ponto de vista extra-moral, como a

possível salvação da singularidade dos eventos. Como a salvação da verdade dos mesmos

mediante uma revolução na forma de figurar a experiência. À linguagem conceitual

subsumida e fechada dentro do sistema categorial, Nietzsche propõe uma linguagem 107 Citado por SCHERER, J. Le Livre de Mallarmé, prefácio de H. Mondor. Paris: Gallimard, 1957. p 21. 108 SCHERER, J. 1957. ibid. 109 Note-se o recurso à paródia para subverter Descartes, resgatando-o poeticamente.

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dionisíaca aberta e livre na relação de tensão criativa estabelecida entre o geral e o

particular. A autoconsciência da linguagem como artifício pode produzir a abertura de um

espaço movente do jogo e das variações livremente escolhidas das regras do jogo e, assim,

recuperar em um plano superior a autonomia dos lugares e dos eventos em sua relação

dinâmica e livre, sem reintroduzir um apego exclusivo ao solo e ao consolo das

determinações legais reguladoras e socialmente obrigatórias. A experimentação aberta deve

substituir o sistema fechado. Esta afirmação sinuosa deve-se esclarecer mais à frente ao

compararmos a posição de Nietzsche com a de Adorno em sua mútua recusa de um código

normativo para a expressão da diferença, da verdade do singular.

Como vimos, a consideração acerca da necessidade do esquema conceitual-categorial,

tem sido uma das peças fundamentais no jogo idealista dos princípios que violentam a

realidade com o objetivo de ordená-la em hierarquias. Essa supremacia do lógico é o carro

chefe e a aposta de todos os sistemas, que de comum possuem o mesmo desprezo pela

realidade, naquilo que ela tem mais fundamental: a dinâmica de sua complexidade e

diferenciação. Com autoridade advinda da análise Nietzsche pode afirmar:

por terem sempre se curvado diante dos esquematismos que os filósofos não tiveram em suas mãos nada que fosse verdadeiro, pois tudo aquilo que eles vêm manejando, desde milênios, “foram múmias conceituais; de suas mãos não saiu vivo, nada real. (...) A morte, a mudança, o envelhecimento, assim como a procriação e o crescimento são para eles objeções, inclusive refutações. O que é não devém; o que devém não é ...110

Nietzsche não deixou de sublinhar, no entanto, o caráter regressivo daquilo que

ele chamou “a Razão na linguagem”. Como se pode concluir a partir da citação acima, ele

considerou que a supervalorização do conceito e de todos os esquemas abstratos elevados a

categorias articuladas em sistemas, levava a uma espécie de perigosa idolatria. A tendência

que ele quer perceber, no caminho que vai da metáfora ao conceito, é a do aparecimento

daquele esquecimento, já aludido, que acaba por transformar o produto de uma experiência

sensível em seu princípio. Assim, o esquema de categorias tende a aparecer como algo

110 NIETZSCHE, F. 1984. op. cit. p. 45

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alheio à vontade humana, algo diante do qual o homem se submete como a uma norma

divina.

Voltemos a considerar o mito. Este pode ser reconhecido como discurso decisivo

quanto às possibilidades do saber humano, onde o homem pode alcançar o conhecimento

dos primeiros princípios do universo e da sociedade, sendo por definição alheio à

coletividade humana, na medida em que é de proveniência transcendente, divina. O homem

que não produziu essa “verdade” só pode repeti-la, aceitando para si um papel que é apenas

o de quem se deixa atravessar por uma verdade destinada a reproduzir-se imutavelmente,

mas que ele não pode nem controlar, nem testemunhar. Os conceitos, por sua vez,

elaborados em sistemas, exibem uma rígida regularidade, tal como uma catedral

matematicamente organizada. Assumem, por isso, para o homem, o aspecto de uma ordem

transcendente de categorias, à qual ele deve conformar seu agir e pensar. Essa “verdade”

produzida pelo homem, em sua resolução ficcional sob o influxo de forças sociais e

imperativos morais, aliena-se dele e lhe impõe sua norma. Ele a toma agora por algo

absoluto e necessário, uma ordem transcendente de princípios que lhe cabe repetir:

Assim como os romanos e etruscos retalhavam o céu com rígidas linhas matemáticas e em seu espaço assim delimitado confinavam um Deus, como em um templo, assim cada povo tem sobre si um tal céu conceitual matematicamente repartido e entende agora por exigência de verdade que cada Deus Conceitual seja procurado somente em sua esfera.111 (grifos nossos)

A tendência imanente ao progresso do pensamento para a desmistificação, digamos

assim, para eliminar de seu domínio os deuses e as qualidades que povoam a imprecisão da

metáfora, levou à representação de um mundo exangue, análogo a uma função gigantesca, a

um juízo analítico. Tal mundo oco e descarnado acabou por impor ao homem suas

exigências, transformando-se em um imperativo e uma lei. O resultado foi que o homem,

restringindo seu campo de percepção mediante a adoção de um padrão único de

representação, acabou por considerar tal padrão (um entre tantos possíveis) um sistema

privilegiado de mediações, aquele capaz de traduzir suas experiências mais significativas e

representar a verdade. A grande contribuição crítica de Nietzsche, a este respeito, consiste,

111 NIETZSCHE, F. 1996. Op. cit. p. 95.

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101

então, em mostrar que, além de ser possível postular outros tipos de mediação lingüística

em nossa tarefa de perceber o mundo, esse tipo que possuímos não apresenta maior rigor

descritivo nem verdade que seu parente próximo: o pensamento metafórico. Relativizando a

importância do sistema conceitual à sua utilidade social, ele por fim observa que tal

sistema, imposto como norma absoluta, acaba por relegar ao homem o papel de mero

repetidor de suas criações, aparentemente transcendentes. Contra essa falsa objetividade

que torna o indivíduo vítima do sistema, posto que preso às amarras de uma linguagem

padrão, Nietzsche procura mostrar que os sistemas conceituais são, na verdade, constituídos

por metáforas usuais inseridas em esquemas categoriais-normativos, e que a arquitetura de

sua estrutura é toda ela antropomórfica e não contém nenhum ponto singular que seja

“verdadeiro em si mesmo”, objetivo e universal, à parte do homem. Nós, enfim, habitamos

em uma estrutura erigida por nós mesmos e, muito embora não possamos viver fora dos

muros desta prisão, na medida em que esquecemos de sua origem humana tornamo-nos

menos capazes de viver a plenitude de nossas experiências pessoais. Uma vez que um

sistema de mediações torna-se, para nós, única via de acesso à realidade, nos

empobrecemos e tornamo-nos incapazes de traduzir grande parte daquilo que nos define em

nossa individualidade e enriquece nossa experiência. Tal é o indivíduo vítima de sistema.

Em síntese, Nietzsche pretende chamar a atenção para o fato de que a linguagem dos

conceitos, criada em virtude das exigências de sobrevivência do indivíduo enquanto animal

social, possui uma tendência niveladora e regressiva, fechando ao homem a via de acesso às

possíveis respostas criativas àquelas experiências que ultrapassam os limites cognitivos

impostos pelo meio social. Assim, linguagens que se tornam padrão sob a vigência de certo

tipo de pressão social, seriam sempre veículos para a repetição e reprodução de

experiências convenientes a manutenção da ordem. Elas como que regulam nosso foco de

atenção na direção de objetivos comuns, impondo a nós seu imperativo mecânico-

matemático.

No entanto, existe sempre a possibilidade de que algumas de nossas experiências

possam ser, como já dissemos, inadaptáveis aos esquemas com que trabalhamos. Essas

experiências novas não podem por isso ser expressas na linguagem feita disponível para

nós por nosso meio social, pois, hipoteticamente, são elas divergentes. Mas nós podemos,

ao menos, empregar a linguagem expressivamente e artisticamente, respondendo a essas

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experiências do mesmo modo que a estrutura da nossa linguagem responde a experiências

que, como coisas apagadas, tornaram-se padrão sob a regência do esquema categorial de

que usualmente nos servimos. Chamamos “Linguagem Dionisíaca” à possibilidade de se

dar à linguagem um uso expressivo e artístico com o fim de resgatar experiências

divergentes. Se a linguagem categorial tende, como vimos, a se impor como um padrão

absoluto a limitar o campo de expressão humana à experiência da repetição; a linguagem

dionisíaca deve-se eleger como meio de expressão de uma divergência absoluta. Ela quer

salvar, portanto, tudo aquilo que a sociedade, em sua necessidade de produzir o idêntico,

abandonou, a saber, a consciência da diferença, do não-idêntico, da impossibilidade de

aprisionar a realidade em esquemas fechados.

O nosso impulso à formação de imagens metafóricas encontra na expressão

dionisíaca um meio de romper com a mesmidade do idêntico. Esse impulso fundamental do

homem que, segundo Nietzsche, não se pode deixar de levar em conta nem por um instante,

porque com isso o homem mesmo não seria levado em conta,

quando se constrói para ele a partir de suas criaturas liquefeitas, os conceitos, um novo mundo regular e rígido como uma praça forte, nem por isso, na verdade, ele é subjugado e mal é refreado.112

Ele procura um novo território e o encontra na arte.

Arte e linguagem dionisíaca relacionam-se, pois, intimamente. Esta última representa

um princípio que deve definir e nortear todo o fazer estético, impedindo-o de ser engolido

pelos mecanismos do mesmo e pelos imperativos da normalidade. Linguagem dionisíaca

aplicada à arte quer dizer um fazer estético alheio aos esquemas pré-fixados, nos quais o

universal se fecha no sistema, impossibilitando a expressão de um conteúdo real vivido

como diferença. Pelo contrário, longe da teia rígida e regular do sistema de normas, o

intelecto que se tornou livre desmantela, entrecruza, recompõe ironicamente, emparelhando

o mais alheio e separando ao mais próximo, num proceder aberto e não esquematizado em

que se descobre o universal a cada passo; desde a formulação da emoção individual até a

construção do todo. No caso do esquema categorial, necessário a manutenção de uma

ordem que se quer eterna, temos o prazer da repetição regressiva; no caso do impulso

112 NIETZSCHE, F. 1996. Op. cit. p. 99.

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artístico considerado como afirmação do indivíduo e da diferença, temos um proceder do

particular ao universal no qual “nenhum caminho regular leva à terra dos esquemas

fantasmagóricos, das abstrações”; em que o homem fala puramente por meio de metáforas

proibidas e arranjos inauditos de conceitos, “para pelo menos através da demolição e

escarnecimento dos antigos limites conceituais corresponder criadoramente à impressão

poderosa da intuição presente.”113

Se voltarmos agora nossa atenção para aquela passagem de A Vontade de Potência

citada mais acima, na qual Nietzsche declara sua ontologia pluralista, e se a tomamos em

consideração juntamente com o que acabamos de dizer, perceberemos finalmente que a

linguagem dionisíaca não é somente uma resposta a um impulso artístico humano, mas

também um meio para o conhecimento do mundo. A consideração demasiada que se teve

pelos sistemas categoriais levou à tirania do método: à violação da realidade no intuito de

encaixá-la em esquemas pré-estabelecidos. Dentro da hierarquia os conceitos revelam-se

mais como traição do que tradução do real. O rompimento de seus limites pela linguagem

dionisíaca aparece então como uma recusa ao método universal e uma libertação das

distinções e reduções falsificadoras. Neste sentido, a linguagem dionisíaca quer forçar o

rompimento da harmonia pré-estabelecida entre o particular e o universal ( a expressão é de

Adorno e será esclarecida posteriormente) para ir de encontro à verdade da arte.

Nietzsche nos alerta para o fato de que, diante da multiplicidade fundamental do

mundo, faz-se necessário uma multiplicação das perspectivas, uma busca constante de

novos arranjos e novos pontos de vista. Para que não traia o real, no ímpeto de captá-lo, é

preciso que o pensamento ensaie caminhos, criando novas regras de expressão a cada

passo, a cada nova aproximação do objeto. A sua ótica deve ser, pois, a ótica da arte, da

expressão dionisíaca que é aquela que postula uma multiplicidade de caminhos frente a

uma realidade plurifacetada. Atendo-se a esse “princípio”, Nietzsche procurou,

constantemente, diversificar seus estilos, para evitar ao leitor o engano que seria um estilo

único, um estilo-em-si: “Le bon style en soi est une pure sottise, un ‘idealisme’ quelconque,

à peu pres comme le ‘beau en soi’, le ‘bon en soi’, la ‘chose en soi” (...)114

113 NIETZSCHE, F. 1996. Op. cit. p.101. 114 NIETZSCHE, F. Ecce Homo. Paris: N.R.F. 1972. P. 80 “O bom estilo em si é uma pura estupidez, um “idealismo” qualquer, aparentado ao “belo em si”, à “coisa em si”.

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Do mesmo modo, percebendo o engano do método em si, afirmará em certa passagem de

sua obra Assim falou Zaratustra:

Je suis arrivé à ma verité par bien des chemins et de bien des maniéres; je ne suis pas monte par une seule échelle à la hauteur d´oú mon oeil regarde dans le lointain. Cela fut toujours contraire à mon goùt! J´ai toujours préféré interroger et essayer les chemins eux-mêmes. Essayer et interroger, ce fut là toute ma façon de marcher; et en vérité, il faut aussi apprende à répondre à de pareilles questions! Car Ceci est de mon goùt: ce n’est ni um bon , ni um mauvais goùt, mais c’est mon goùt, dont je n’ai ni à être honteux ni à me cacher. Cela est maintenant mon chemin où est lê vôtre?” Voilà ce que je répondais à ceux qui me demandaient “le chemin”. Car le chemin n’existe pas, dit Zaratrusta.115

3.3. O sujeito como ficção regulativa

A singularidade do projeto de Nietzsche enraíza-se em sua concepção das conexões

entre linguagem e mundo. Marca-se aqui uma distância em relação ao ímpeto ordenador do

pensamento moderno, com sua fixação em forjar uma imagem coerente e harmônica do

mundo.

É exatamente no experimentalismo radical da démarche nietzscheana que se pode

verificar uma das características mais marcantes do seu projeto filosófico-literário: a recusa

de um discurso que se apóie na noção coisificada e estanque de substância, cuja proposta

pretendia erigir um ponto de apoio metafísico à construção de um caminho único e

universal, uma mathesis universalis para a pesquisa filosófica.

Se a tarefa da filosofia parecia ser a de descobrir por trás da multiplicidade cambiante

dos fenômenos a unicidade da causa substancial que lhes estrutura e confere sentido, então

impunha-se a necessidade de determinar qual o traçado correto do caminho que nos conduz

115 NIETZSCHE, F. Ainsi parlait Zaratrusta. De l’espirit de lourdeur. Paris:Mercure dè France, 1975. Pp. 226-227 “Cheguei à minha verdade por muitos caminhos e de muitas maneiras; não me utilizei jamais de uma única escada no alto da qual meus olhos poderiam contemplar a distância. Isto sempre contrariou o meu gosto! Preferi sempre interrogar e ensaiar os caminhos eles mesmos. Ensaiar e interrogar foram sempre minha forma de caminhar; e, na verdade, é também preciso aprender a responder essas questões! Esse é o meu gosto: não é nem um bom nem um mau gosto, apenas meu gosto, do qual não me orgulho nem escondo. Aqui está o meu caminho; onde está o seu? Eis o que respondi àqueles que me perguntaram sobre “o caminho”. Porque o caminho não existe. Assim falou Zaratustra.”

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nessa via de desocultamento, cuja meta é a mesma para todo aquele que se aventura na

busca: o ser, a verdade, a correspondência da linguagem com os fatos, a consciência da

unidade subjacente aos fenômenos. Há muitas palavras com as quais se podem nomear as

dicotomias, mas no fundo é sempre a mesma coisa. Uma mesma verdade, um mesmo

caminho para uma infinidade de sujeitos igualmente fixos e imutáveis como a forma que

estrutura o fenômeno. Um sujeito uno diante de um mundo imóvel. O artífice de uma

língua que trama a partir dos eventos uma significação resultante da ordenação lógica do

mesmo. Uma questão de psicologia rudimentar e de linguagem. Psicologia rudimentar

porquanto revela um mesmo e constante sentimento a governar o contato do homem com

aquilo que o cerca: a necessidade de segurança e familiarização com o mundo resultantes

de um instinto reativo que se estabelece mediante a tentativa de pacificar e unificar a

vertigem do fenômeno que nos arrebata.

A metafísica toma o “eu” como realidade imóvel e unitária a partir da qual o sujeito

cognoscente apropria-se do fenômeno e o controla. De posse de uma identidade fixa e

unívoca o sujeito abarca o mundo estabelecendo uma ponte entre a consciência e a

consistência dos fatos. Nietzsche rejeita tal proposta. Melhor: desvenda o mecanismo que a

forja como verdade. Aqui marca uma distância que matiza a singularidade de sua

perspectiva: desvelamento do que se oculta por trás do procedimento metafísico:

.

O que me distingue mais fundamentalmente dos metafísicos é isto: não admito que o “eu” (Ich) seja aquele que pensa. Considero o eu mesmo como uma construção do pensar, construção do mesmo tipo que “matéria”, “coisa”, substância”, “indivíduo”, “finalidade”, “número”: apenas como ficção regulativa (regulative Fiktion) graças à qual se introduz e se imagina uma espécie de constância, e, portanto, de “cognoscibilidade” no mundo do devir. A crença na gramática, no sujeito lingüístico, no objeto, nos verbos, manteve sob jugo, até agora, os metafísicos. Eu ensino que é preciso renunciar a essa crença. O pensar é aquele que põe o eu, porém até o presente acreditava-se “como o povo”, que no “eu penso” há algo de imediatamente conhecido, e que este “eu” é a causa do pensar, segundo cuja analogia nós entendemos todas as outras noções de causalidade. O fato de que agora esta ficção seja habitual e indispensável não prova, de maneira nenhuma, que não seja algo imaginado: algo que pode ser condição para a vida e, sem embargo, falso. 116

116 NIETZSCHE, F. Oachgelassene Fragmente 1884-1885. Kritischen Studienausgabe (KSA), vol 11. Herausgegeben Von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlim: Walter de Gruyter, 1999. P. 526.

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106

A força que inventa as categorias trabalha a serviço de uma necessidade:

(...) necessidade de segurança, de compreensão rápida fundada em signos e sons, necessidade de abreviações: - [quando se fala de] “substância”, “sujeito”, “objeto”, “ser”, “devir” não se trata de verdades metafísicas. Foram os fortes que deram força de lei aos nomes das coisas: e, entre os fortes, foram os maiores, os grandes artistas em abstração (Abstraktions-Künstler) os que criaram as categorias. 117

O homem escapa da problematicidade do mundo enclausurando-o na linguagem.

Era isso o que se tinha e é em relação a isso que se devia dar o primeiro salto. Algo

que nos transponha a um plano em que as simples constituições lógicas em suas relações

rígidas se desfaçam no tecido poliédrico do discurso. A transmutação do discurso é o

pressuposto da superação do emparedamento do mundo na prisão da linguagem.

O ataque à visão metafísica substancialista é uma primeira rejeição que marca um

distanciamento e uma independência em relação a toda tradição filosófica construída sobre

os fundamentos lançados pela visão realista da relação entre linguagem e evento. Da Grécia

até o grito de recusa a busca de uma estrutura ontológica unitária que conferisse sentido à

multiplicidade do fenômeno, fundou aquele tipo de procedimento que Nietzsche denuncia

como radicado numa deficiência gnosiológica provocada por uma deficiência da nossa

linguagem, cuja falta de sutileza sintática, e a conseqüente forma rudimentar de construção,

que possibilita ou mesmo se impõe ao pensamento, determina os limites da apreensão do

mundo dentro da camisa de força das regras prescritas pelo código. O anseio pelo signo que

dará significação a todos os outros e pela significação básica para a qual todos os nossos

signos se possam voltar, o anseio logocêntrico do qual nos fala Derrida, dedicado à crença

em uma palavra, presença, essência, verdade ou realidade derradeira, que agirá como base

de todo o nosso pensamento, linguagem e experiência já estava radicado para Nietzsche na

estrutura monolítica da linguagem, a qual emerge da experiência do eu como unidade

substantiva em torno da qual orbitam os fenômenos psíquicos. O eu e o mundo exteriores

em relação um ao outro e absolutamente distintos são os pressupostos de uma armação

117 NIETZSCHE, F. 1999. Op. cit. vol. 12, p. 237.

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107

predicativa das proposições que confere ao pensamento a impressão de lidar com

correlações fixas entre objetos igualmente fixos.

A noção do ser como coisa origina-se de uma psicologia rudimentar que acaba

sedimentada nas categorias gramaticais, mediante as quais são isolados os fios das

sensações e fixados os fenômenos em classes para melhor compreendê-los. Toda concepção

que advém daí é necessariamente unilateral e estática, anulando aquilo que constitui a

riqueza da aparição em sua multiplicidade poliédrica que funda a verdade das aparências ao

anular a dicotomia entre o númeno e o fenômeno. Segundo Nietzsche,

penetramos em um fetichismo grosseiro quando adquirimos consciência dos pressupostos básicos da metafísica da linguagem, dito claramente: da razão. “Esse fetichismo”, continua, “vê em todas as partes agentes e ações: crê que a vontade é causa em geral; crê no ‘eu’, crê que o eu é um ser, que o eu é uma substância e projeta sobre todas as coisas a crença em uma substância-eu – assim é como se cria o conceito coisa. 118

Contrariando a metafísica realista, para a qual o ser é uma coisa realmente existente

contraposta e independente do sujeito cognoscente, para Nietzsche o conceito de substância

é uma conseqüência do conceito de sujeito e não inversamente. Segundo ele, se

renunciarmos à alma, ao “sujeito”, desaparece o pressuposto para a admissão de uma

“substância em geral”. Obtêm-se graus do ser e, conseqüentemente, perde-se o Ser.

Sujeito: tal é a terminologia da nossa crença numa unidade subjacente a todos os diferentes momentos de mais alto sentimento da realidade; entendemos esta crença como efeito de uma causa – acreditamos na nossa crença ao ponto de, graças a ela, imaginarmos a “verdade” a “realidade”, da não-aparência.” 119

O senso comum nos acostumou a acreditar em coisas subsistentes em si e por si que

se mostram à percepção como realidades dadas. A perspectiva psicologista tentou derivar o

eu da percepção, mostrando que o sujeito representa a unidade subjacente à nossas

vivências psicológicas. 118 NIETZSCHE, F. Crépuscule des idoles. Traduit de l’allemand par Jean-Claude Hemery. Paris: Gallimard, 1988. Pp. 48-49. 119 NIETZSCHE. Sujeito e Perspectivismo. Seleção de textos de Oietzsche sobre Teoria do Conhecimento. Introdução, tradução e notas de António Marques. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1989. P. 98

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Aos diversos estados psíquicos que se sucedem deu-se o nome de sujeito.

Tanto quanto a idéia de substância sustenta a nossa crença na materialidade do mundo

a crença na unidade do eu sustenta a nossa crença na materialidade da personalidade

individual. Os dois pólos se articulam através das categorias lingüísticas que os colocam em

comunicação fixando ao sujeito a possibilidade de um conhecimento ordenado do mundo

que lhe permita apoderar-se do real e fixá-lo em esquemas de compreensão. O conceito de

substância, essa categoria gramatical ambivalente que tanto serve para unificar os

fenômenos da percepção quanto fixar os estados psicológicos da personalidade, é

identificado como o núcleo daquele tipo de interpretação da experiência que não encontra a

verdade, mas cria uma ilusão confortante que resulta de uma vontade de falsificação da

experiência. Uma perspectiva reduzida que estreita o mundo nas tenazes de uma vontade de

poder reativa. Nietzsche, ao contrário, buscando posicionar-se a partir de uma perspectiva

invertida, partindo não das categorias, mas dos valores, ou seja, das formas pelas quais a

vontade apropria-se do fenômeno e o molda às suas necessidades vitais, desconsidera o Eu

como produto de uma vontade de ilusão. A verdade como resultado da vontade de mentira.

A aproximação do que se afigura como oposição. Depois a inversão daquilo que

parecia estar no lugar em virtude do hábito. Um gosto pela perspectiva invertida que

Nietzsche inaugura.

Uma desconfiança naquilo que é muito lógico, que contorna o problema e encontra

repouso nas soluções linearmente causais. Superior brotando do superior, unidade

produzindo unidade, um fim cuja consecução é apenas a explicitação de um telos interior à

coisa. Mas agora

os problemas filosóficos voltam a apresentar em quase todas as obras”, sentencia o filósofo, “a mesma forma que há dois mil anos: como uma coisa pode nascer de seu contrário, por exemplo, o racional do irracional, o vivo do morto, a lógica do ilogismo, a contemplação desinteressada do ávido desejar, o viver para o próximo do egoísmo, a verdade do erro? 120

Encaram-se duas perspectivas: a metafísica e a histórica: a primeira contornou a

dificuldade negando que as coisas pudessem nascer de seus contrários. A filosofia histórica,

ao contrário, descobre em alguns casos particulares “que não existem contrários, exceto no 120 NIETZSCHE, F. Menschliches, Allzumenschliches I. Kritischen Studienausgabe (KSA), vol 2. Herausgegeben Von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlim: Walter de Gruyter, 1999. P. 23.

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exagero habitual da concepção popular ou metafísica e que, na base dessa oposição há um

erro de razão (...)”. 121

Eu pareço estar no comando de minhas oscilações. Estas constituem ilusões. Os

fenômenos sensíveis são igualmente ilusórios. Unidade na multiplicidade em ambos os

lados da equação. Eu = substância = permanência = realidade. O múltiplo é ilusório; todas

as perspectivas se fundem em unidade superior naquele que percebe. A unidade do Eu

configura a unidade do fenômeno. Mas o eu não é uno, Nietzsche não acredita na unidade

de um Eu e não a experimenta. Conforme Deleuze salientou, a concepção nietzschiana

matiza-se em “relações sutis de poder e avaliação entre diferentes “eu” que se escondem,

mas que exprimem também força de outra natureza, forças da vida, forças do

pensamento”.122

A partir dessa posição, ele se distancia das escolas filosóficas que fundaram sobre o

conceito de substância o alicerce de seus sistemas. Ou seja: com a idéia perpectivista de

uma multiplicidade de graus do ser que se sustentam sem referência a um padrão único de

significação, justamente por lhes faltar qualquer fundamento real, estando tal abordagem

condicionada por uma categoria lingüística que a restringe a uma única forma de perceber a

realidade, e assim a limita e a torna excessivamente unilateral e redutivista. Nietzsche

estaria marcando aqui uma diferença incisiva que o qualifica como filósofo dotado de uma

vontade de independência em relação à tradição substancialista da metafísica. Mas ao

marcar sua independência em relação à tradição filosófica não estaria mascarando sua

dependência em relação à arte? Com a transfiguração do sujeito ocorreria uma

transfiguração da linguagem. Das categorias às imagens, dos conceitos aos símbolos da

experiência da linguagem ordinária e lógica à linguagem dionisíaca.

121 NIETZSCHE, F. ibid. 122 DELEUZE, G. Oietzsche. Tradução Alberto Campos. Lisboa: Edições 70, 1985. P. 12.

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110

3.4. Adorno e a �ova Música: ouvindo a imagem

QUER VER?

Escuta

(Francisco Alvim)

A imagem é, antes de tudo, uma questão de relação, tensão e ruptura: relação de

tensão entre os elementos constituintes de tal forma que dela emerge uma totalidade

submetida a regras que resultam da articulação de sua própria constituição. Tensões

internas e externas: internamente entre as unidades que a compõem, externamente com o

código de regras com o qual se relaciona dialogicamente: conservação e ruptura ou

interiorização de um procedimento que se libertou da regulamentação externa, mas que

somente pelo distanciamento e superação em relação à mesma ganha a intensidade de sua

significação. Seguimos um exemplo em Adorno para explicitar o valor da imagem musical

enquanto tecido de relações constituídas por regras que são construídas em cada obra

singular como elemento definidor de sua lógica singular. Depois arriscamos uma

comparação com o que nos parece ser em Nietzsche um correlato da ruptura instaurada pela

nova música antecipada pelo filósofo alemão na relação percebida por ele entre o código

gramatical e a linguagem metafórica. Procuramos, com isso, elaborar um aspecto da

imagem que nos permitirá ilustrar sua importância como forma de figuração singular e não

representativa da tessitura complexa e dinâmica dos eventos. Do valor da construção

imagética para a experiência não só estética, mas compreensiva.

No ensaio “Porque é difícil a nova música”, Adorno afirma:

As dificuldades na apreensão da nova música são, primeiramente, as da não-compreensão em sentido estrito, condicionada pela carência de fórmulas correntes de comunicação, mas também a de uma – por mais ilusória que seja – lógica musical, análoga à lógica discursiva.123 (grifos nossos)

123 - ADORNO, T. W. Porque é difícil a Oova Música. In: “T. W. Adorno, sociologia”. Tradução Flávio R. Kothe. São Paulo: ed. Ática, 1982. P. 157

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111

Esse tipo de analogia referida por Adorno nos mostra que o sistema tonal ajustava-se

muito bem ao conceito do espírito objetivo da época burguesa, aquele mesmo espírito que

havia procurado a representação de um procedimento geral pelo qual a imaginação oferece

a um conceito a sua imagem, culminando num padrão único de referência segundo o qual o

objeto poderia ser “produzido” em conformidade com um conceito.

Segundo Adorno, a tonalidade faria a

“mediação entre uma linguagem musical mais ou menos espontânea dos homens, uma linguagem, por assim dizer, falada imediata, e normas que haviam se cristalizado dentro dessa linguagem”.124

De fato, a tonalidade vinha já impondo, desde o século XVI, o seu padrão a uma

sensibilidade que, cada vez mais, não conseguia se orientar fora de sua norma universal.

Tal como a metáfora que, à medida que se desgastava pelo uso geral, ia ganhando o aspecto

sóbrio do conceito e se organizando em sistemas, o tonalismo foi se constituindo mediante

a incorporação em seu esquema de elementos musicais tornados padrão pelo uso.

Caminhou-se, aqui, na direção de um equilíbrio cada vez maior entre linguagem e norma,

de tal modo que o tonalismo acabou se caracterizando como um sistema pré-estabelecido

de regras mediante as quais o artista ordenava o seu material, seguindo um tipo

convencional de esquema. Como o sistema conceitual criticado por Nietzsche em Sobre a

Verdade e a Mentira em sentido Extra-Moral, a tonalidade parece ter-se tornado, “no pré-

consciente musical e no inconsciente coletivo” - embora também seja ela um produto

histórico - algo como uma segunda natureza. Por isso ela tendeu sempre a impor seu padrão

absoluto à sensibilidade do artista, restringindo a certo tipo limitado de combinações a

possibilidade de ordenação de seu material. Esse movimento de absolutização do método

tonal representaria, por outro lado, a absorção da linguagem musical pela lógica implacável

de uma sociedade na qual impera princípios coletivizadores, portanto niveladores,

cristalizando as costumeiras concepções de imediatez e naturalidade. Como notou Adorno,

“o momento coletivo dentro da linguagem tonal evoluiu cada vez mais para um momento de comparação de tudo com tudo, para a nivelação e a convenção. O sinal mais simples disso”, continua Adorno, “é que os acordes principais do sistema tonal podem ser colocados em inúmeras

124 ADORNO, T. W. 1982. Op. cit. P. 150.

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passagens, como se fosse forma de equivalência do sempre idêntico com o sempre diferente, sem que, nisso, necessitem modificar-se em si mesmos”.125

Essa tendência à comparabilidade universal, inerente à linguagem musical sob a regência

do tonalismo, oferece-se cada vez mais como veículo para o caráter de mercadoria, “caso já

não tenha estado operando, desde o início, como suspeito, na comparabilidade e

fungibilidade dos signos tonais, o mesmo principio mercantil da época burguesa”.126

O pensamento mercantil, ao qual se refere Adorno em seu ensaio, identifica-se

com aquele que se desenvolve em consonância com a lógica fetichista das mercadorias.

Cristaliza-se numa ciência que examina a lógica das relações mercantis como se estas

pertencessem a um plano ontológico desvinculado da atividade humana ao qual esta última

se submete. Tal ciência, a economia política, crê, por exemplo, que as leis da oferta e da

procura, a fixação de valores e preços, os ciclos econômicos, etc. poderiam ser objetos de

estudos como leis e fatos objetivos, independentes de seus efeitos na existência humana. O

processo da sociedade seria assim um processo natural e o homem, com todas as suas

necessidades e desejos, desempenharia o papel de uma quantidade matemática objetiva em

lugar de um sujeito consciente e livre. Na vigência dessa lógica fetichista impõe-se ao

homem o imperativo matemático-mecanicista, alienando o indivíduo dos produtos de sua

própria atividade. Desse modo, a sedimentação de uma linguagem que faz valer à

sensibilidade coletiva a sua norma absoluta, aparece como um tipo de falsa objetividade, ao

mesmo tempo que um veículo para a repetição do idêntico, consoante aos princípios de

uma ordem social obcecada pela produção do mesmo, cuja lei mais íntima é a busca da

identidade através do equivalente universal, o valor de troca. A obra de arte, ao buscar

referenciais normativos absolutos, como a tonalidade, estaria ajustada a uma mentalidade

condicionada pelo imperativo econômico das relações mercantis objetivadas. “O que uma

vez na música, era linguagem, tornou-se mera repetição”.127 E a repetição é o

enquadramento dentro do qual se sente em casa a mentalidade burguesa. Neste sentido,

torna-se evidente o caráter regressivo que assumiu o sistema tonal na sociedade. A

125 - ADORNO. T. W. 1982. Op. cit. p. 151. 126 - ADORNO. Ibid. 127 - ADORNO. Ibid.

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113

inflexibilidade de um padrão que havia já esgotado as suas possibilidades não cumpre mais

apenas a função de regular as formas de organização do material sonoro, mas produzir

obras em conformidade com parâmetros coletivos de percepção. O que nos chama atenção

para este fato, particularmente, é a relação entre fetichismo e repetição.

Se reconhecemos na lógica do sistema tonal um novo tipo de fetichismo é porque

entendemos o fato de como o tonalismo acabou assumindo o aspecto de algo exterior ao

indivíduo e independente dele, algo que possui o caráter de objetividade absoluta. Ele

mimetiza o sistema de mercadorias diluindo-o na representação fantasmagórica do idêntico.

Tal qual o demiurgo platônico, que forja as formas das coisas pela imitação das idéias

eternas e transcendentes, o artista cria a sua obra repetindo os mesmos modelos

organizacionais fornecidos pelo padrão tonal.

Voltando, por um momento, nossa atenção ao passado veremos que o homem

primitivo tendia a só se reconhecer como real na medida em que deixasse de ser ele mesmo

enquanto indivíduo, se contentando em imitar e repetir os gestos arquetípicos ancestrais.

Para esse homem, por exemplo, todo sacrifício repete o sacrifício inicial e coincide com

ele. O sacrifício inicial, no caso, seria um modelo arquetípico de acordo com o qual todos

os outros sacrifícios particulares eram realizados. A repetição, que para a consciência

mítica imprimia o caráter de realidade a um objeto ou uma ação, dependia, pois, da

constituição de modelos dotados de prestígio mágico. Tais modelos definem a maneira pela

qual o homem arcaico vivia seu mundo, formulando um conjunto de regras precisas para o

pensamento e para a ação. Forma de representação, o mito é também regime da ação, em

relação a qual o modelo aparece como a realidade última, portanto, objetividade absoluta. A

repetição, que tornava real um objeto ou uma ação, para o primitivo, dependia, pois, da

elaboração desses modelos. A obra de Mircea Eliade O mito do eterno retorno esclarece

como a consciência primitiva operava a partir da sujeição da coletividade a modelos

arquetípicos continuamente reatualizados. O atual vinculava-se ao mesmo e o ser era um

padrão de normas que submetia absolutamente a conduta do indivíduo despersonalizando-

o.

Por ter se constituído em sistema absoluto de regras para a composição, portanto,

modelo, o tonalismo tornou-se demasiadamente próximo da lógica da repetição presente no

pensamento mitológico. Eis aí um dos aspectos de sua natureza regressiva. Em outras

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palavras, a vigência de sua norma impõe a regressão na construção tanto quanto na fruição

da obra impedindo a possibilidade do progresso tanto na percepção estética quanto no fazer

artístico. Na percepção porque a tonalidade estabelece um padrão linear e estético para o

fruir, forçando o gosto comum a se acostumar às facilidades advindas do estabelecimento

de convenções gerais uniformizantes. Tal processo nivelador encontra suporte na realidade

massificante vivida pelo indivíduo dentro do sistema capitalista. Como peça de uma imensa

engrenagem que foge à sua compreensão e controle, o homem acaba por se desumanizar e

se reduzir. Tendo em mira tal fenômeno, Adorno declara:

Quando, há trinta anos, introduzi o conceito de ‘regressão na audição’, eu não me referia a uma regressão generalizada do ouvir, mas me referia à audição de pessoas regredidas, desmedidamente acomodadas, nas quais falhou a formação do ego, pessoas que nem sequer entendem as obras de modo autônomo, mas sim numa identificação coletiva. (...) Portanto, Os tipos que hoje dominam coletivamente a consciência musical são regressivos no sentido sócio-psicológico.128

A música tonal exige menor capacidade de concentração de indivíduos cada vez menos

aptos a tal, mantendo-os confortavelmente dissolvidos no amorfo da própria cultura tornada

natureza e coletivizada.

Por outro lado, na expressão musical a regressão se dá em virtude de o tonalismo, ao

formular um conjunto de regras precisas para a composição, acabar por estreitá-la em

função de um horizonte definido de uma vez por todas, limitando assim, evidentemente, o

poder de intervenção do indivíduo na obra; o que, cada vez mais, reduz sua capacidade de

se expressar integralmente.

Não obstante a crescente dissolução do indivíduo sob a vigência do sistema tonal (e

com essa dissolução anula-se, a bem dizer, a possibilidade da expressão de conteúdos

divergentes), o caráter nivelador de tal sistema foi, por algum tempo, encoberto pela função

de mediação entre o particular e o universal desempenhada pelo tonalismo, na medida em

que ainda era possível, por meio da combinação de um número, ainda que limitado, de

elementos, exprimir alguma coisa do sentimento individual. No dizer de Adorno,

128 ADORNO. Ibid.

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Enquanto a tonalidade, assim como a linguagem falada, dispunha de fórmulas universais, desde o som isolado e a seqüência intervalar até a grande arquitetura, ela flexivelmente deu lugar, na combinação desses elementos, ao peculiar, isto é, ao característico cunho individual e a expressão individual.129

Aqui se revela o aspecto mais ilusório do espírito objetivo na música. Em princípio, a

tonalidade se constitui como um sistema arquitetado com o fim de fornecer regras para a

expressão individual. Originalmente sua função seria, pois, a de manter certo equilíbrio

entre o particular e o universal na expressão musical. No entanto, tal equilíbrio rompe-se,

no momento em que o cada vez mais evidente formalismo que caracteriza o sistema tonal o

impede de conservar a consciência dos contrários, bem como de mediar a expressão do

não-idêntico, determinando, assim, de forma anti-dialética, a relação entre o universal e o

particular. O enrijecimento dos princípios em fórmula absoluta submete a individualidade à

reprodução do mesmo, vale dizer, aniquila qualquer pretensão de auto-afirmação do

indivíduo mediante a criação. O subjetivo desaparece no objetivo e qualquer relação

dialógica entre os termos é impedida pela fetichização da norma.

A música tonal, conseqüentemente, pode ser enquadrada dentro daquilo que se

poderia chamar, para usar uma expressão chave da “Dialética negativa”, o “predomínio do

objetivo”. Se nos atemos a duas dentre as quatro acepções que Adorno atribui a essa

expressão, veremos que a objetividade designa, em primeiro lugar, o caráter coercitivo de

um complexo histórico que pesa sobre o indivíduo, mas que, no entanto, pode ser rompido

por ser contingente. Em segundo lugar, ela significa a prioridade da natureza diante de toda

subjetividade que ela expulsa de si. Neste sentido, o caráter ilusório e falso do tonalismo

surge na medida em que, traindo o seu postulado original de manter certo equilíbrio entre o

particular e o universal, opera a dissolução do sujeito no objeto, portanto, do particular no

universal. Finalmente, ele se revela muito semelhante a um jogo de montar que, após

esgotar todas as possíveis combinações de seus elementos, passa a repetir, indefinidamente,

a mesma figura. Vale dizer, o sistema tonal assume o aspecto de um grande mecanismo

composto de peças que, embora possam ser combinadas e recombinadas livremente,

exibem sempre o mesmo tipo de padrão organizacional, repetindo os mesmos modelos pré-

fixados, sejam quais forem as combinações feitas.

129 ADORNO. 1982. Op. cit. p. 153.

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A música torna-se, assim, arte da aparência, uma vez que esconde o fracasso em sua

tentativa de captar, com o auxílio de determinações universais e, por assim dizer, através

delas, a plena concreção daquilo que não é idêntico a tais categorias universais. Citando

Adorno,

“Os fracassos musicais dos maiores compositores baseiam-se num número finito de tipos, de elementos mais ou menos rígidos, a partir dos quais eles são reunidos. O momento orgânico, central para o classicismo vienense, esse momento daquilo que se desenvolve demonstra ser, frente a esses tipos, em grande parte, uma arte da aparência: a música se apresenta como se uma coisa se desenvolvesse a partir de outra, sem que literalmente ocorra tal desenvolvimento”.130

Ao invés de fornecer meios para que o material sonoro pudesse ser organizado tendo em

vista a expressão do conteúdo de experiências divergentes, portanto novas, o tonalismo, por

ter-se tornado um modelo prescritivo de regras, vale dizer, uma montagem caleidoscópica e

mecânica de elementos, funcionou apenas como veículo para a repetição do mesmo. Seu

número de possibilidades combinatórias tende, como dissemos, a se esgotar em função do

número limitado de elementos com que trabalha. Neste ponto, a música tonal está de acordo

com a consciência burguesa que, como ressalta Adorno, “sempre pensa em juntar, a partir

de um mínimo de elementos, o máximo possível, de acordo com o modelo dos processos de

trabalho desde o período manufatureiro” 131, e cujo imperativo é a máquina e a produção

em larga escala, para a qual se fazem necessários moldes, ou clichês, que permitam a

confecção de produtos conforme ao padrão comum.

Submetidos ao domínio dessa “lógica da repetição”, “durante séculos, os estímulos

específicos e os impulsos individuais, a assim chamada inspiração, pré-formados pela

tonalidade, como que pediam os seus princípios organizacionais”.132 Isto porque o

tonalismo tornou-se, como procuramos mostrar, uma convenção inibidora, porquanto nele o

universal não mais se encontra em nenhuma relação dialética com o particular. Uma vez

que o universal e o particular não podem mais ser reunidos arbitrariamente, “a tonalidade

130 ADORNO. 1982. Op. cit. p. 153. 131 ADORNO. 1982. Op. cit. p. 154. 132 ADORNO. Ibid.

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também não pode ser restabelecida, como às vezes se presumiu”.133 Ao contrário, ela tem

que ser negada naquilo que possui de mais ilusório, de mais falacioso, pagando a própria

culpa pelo que é repressiva, pelo que agrida ao sentimento individual. Portanto, deve-se

contestar a própria noção de uma harmonia pré-estabelecida entre o universal e o particular,

em nome de uma situação que não quer mais o ilusório, nem tampouco a mentira que

decorre do escamoteamento das diferenças específicas e das contradições reais, por meio da

idéia de ajuste da tensão, de uma harmonia conciliatória. Tal pretensão, lembra Adorno,

faz-se “cada vez mais ideológica quanto menos a realidade propicia ao individual através

do universal o que é prometido ao individual e o que ele mesmo promete”.134

A arte deve, pois, promover a ruptura com essa espécie de acordo coletivo em

nome de sua própria verdade: “A música moderna não conhece nenhuma harmonia pré-

estabelecida entre o universal e o particular, e não deve conhecê-la”.135 Ela realiza, na

verdade, o julgamento da música tradicional, postulando um modo de expressão no qual, ao

contrário do que acontecia com o sistema tonal, “o universal é aberto, não esquematizado,

mas problemático, tendo primeiro de ser descoberto, desde a formulação da emoção

individual até a construção do todo”.136 Isso quer dizer que na nova música a harmonia pré-

estabelecida do universal com o particular se rompeu. A relação entre esses dois termos

deve ser, a partir de agora, articulada em cada caso, prescindindo da tirania uniformizante

do sistema.

No novo tipo de relação que se procura estabelecer entre a emoção individual e

a sua elevação à esfera da universalidade mediante a expressão artística, tomamos

consciência de que o antigo modelo tonal jamais foi adequado à realidade, mas, em grande

parte, foi ideologia. A nova música, então, ao mesmo tempo em que é proposta

revolucionária, é crítica do antigo sistema de representação e da situação que o produziu.

Vistas desde esta perspectiva, todas as composições de Schönberg são ataques contra o

pseudo-refinamento do esteticismo burguês. Sua obra, junto com a de Karl Kraus e Adolf

Loos, ilustra como a crítica aos costumes da sociedade vienense contemporânea, com toda

sua artificialidade e falsidade, adotou, de uma maneira muito natural, a forma de crítica da

133 ADORNO. Ibid. 134 ADORNO. Ibid. 135 ADORNO. Ibid. 136 ADORNO. 1982. Op. cit. P. 155.

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118

expressão estética. A crítica que Karl Kraus fazia, em nome da integridade criadora do

indivíduo, à maneira pela qual as pessoas usavam a linguagem em sua sociedade, era assim

uma crítica implícita dessa sociedade. Do mesmo modo, Adolf Loos, ao desejar eliminar

toda forma de decoração dos artigos funcionais, procurava mostrar que só uma sociedade

que já não desejava ver as coisas tais como elas realmente são poderia enamorar-se pela

ornamentação. A paixão pela ornamentação havia se tornado deleite pelo irreal. No caso da

nova música, também se percebia nitidamente a crítica social implícita nas concepções

opostas ao sistema tonal. De fato,

Em todos os seus traços técnicos – dissonância, intervalos ásperos, forma aberta, ela se contrapõe ao costumeiro conceito espiritual-ideológico de harmonia, alertando exatamente para aquilo que engana no caráter afirmativo da cultura, para usar os termos de Herbert Marcuse.137

A resistência à nova maneira de se lidar com o material sonoro, insere-se naquela síndrome

sócio-psicológica denominada por Adorno a “personalidade autoritária”, a qual se

caracteriza fundamentalmente pelo ódio ao divergente em si, “sobretudo o que tem um

caráter peculiar: tudo deve ser tornado igual”.138

A personalidade autoritária, deve-se dizer, coincide com o “espírito de sistema”:

ambos mostram-se obcecados pela produção do idêntico e, por isso, rejeitam tudo aquilo

que é estranho ao seu impulso de repetição. Por conseguinte, recusam o divergente e tudo o

mais que não for adequado aos moldes pré-estabelecidos de sua sensibilidade comum. Seu

impulso mais profundo é aquele que clama pela equalização e pelo nivelamento, nutrindo

uma típica aversão a todo conteúdo que não coincida com a experiência habitual.

Se pudermos caracterizar a linguagem artística como aquela que deve servir como

meio para expressão de conteúdos não captáveis pelos padrões lingüísticos habituais, então

vemos o quanto o sistema tonal tem de não-artístico exatamente naquilo que ele tem de

repetitivo e convencional. Ele não é mais capaz de exprimir o individual por ter-se tornado

um fim em si mesmo e, conseqüentemente, se descaracterizado como mediação. O que ele

faz, na medida em que repete sua própria lógica, é expulsar de seu domínio o divergente.

137 ADORNO. 1982. Op. cit. p. 157. 138 ADORNO. Ibid.

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A nova música é, no entanto, a divergência absoluta, diz Adorno. Conseqüentemente,

ela é uma retomada da linguagem artística em seu sentido mais exato, em sua verdade mais

profunda. Como tal, deve recusar as falsas representações e as generalidades impostas pelo

hábito, ou melhor, fixadas em definitivo por um código de regras petrificado alheio à

expressão individual. Resulta daqui a tão difundida quanto falsa concepção acerca da

separação entre sentimento e razão. Segundo Adorno,

Os conceitos correntes de música intelectual e música acentuadamente sentimental são uma fachada que precisa ser demolida. O que vem a ser chamado aí de intelectual, argumenta, é, em geral, só aquilo que exige o trabalho e o esforço da audição, a força da atenção e da memória, o que exige propriamente amor, portanto sentimento; e o que assim se chama sentimento, continua, é, em geral, apenas o reflexo de um modo passivo de comportamento, que frui a música como estímulo, sem ter para com ela, para com o concretamente ouvido, sequer uma relação específica, uma relação, digamos, ingênua.139

Em conformidade com essa dialética do sentimento e da razão, a nova música, como os

poemas de E. E. Cummings, é filha do cálculo à serviço da paixão. Nisso ela faz a denúncia

de que a lógica pretendida pela música tradicional nunca foi tão rigorosamente vigente. Na

medida em que o tonalismo promove a separação entre os dois pólos entre os quais transita

a expressão artística, ou ele se distancia num falso rigor formal, ou se degrada num

sentimentalismo grosseiro: a inter-relação entre os dois momentos torna-se impossível. A

música só é entendida então na medida em que é mecânica ou natural. O caminho que a

nova música deve trilhar é, no entanto, outro. O esforço necessário para captá-la não é,

observa Adorno, “um esforço do saber abstrato, nem algo como o conhecimento de

quaisquer sistemas, teoremas ou até mesmo de processos matemáticos. É essencialmente

fantasia: aquilo que Kierkegaard chamava de ouvido especulativo”.140

A fantasia é fons et origo da criatividade, é o primordial; porém não é necessário

dizer que a disciplina não é menos necessária. Para Schönberg, a música significava

expressão de si mesmo, assim como autodisciplina. E, do mesmo modo que ocorre com

toda música autêntica, sua fantasia inovadora foi a fonte de suas idéias musicais. “A música

não é, diz Schönberg em seu ‘Estilo e idéia’, um mero divertimento, mas a representação

139 ADORNO. 1982. Op. cit. p. 159. 140 ADORNO. 1982. Op. cit. p. 160.

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das idéias musicais de um poeta músico, de um pensador músico; essas idéias musicais

devem estar em correspondência com as leis da lógica humana”. Na mesma raiz da

concepção schönbergiana da música se encontram as idéias krausianas relativas à fantasia.

Quer dizer, para tal concepção, a fantasia produz os temas, as idéias musicais; a lógica

musical subministra as leis de seu desenvolvimento. Ambos os aspectos são essenciais à

boa música. No entanto, como vimos, a lógica que se pretende aqui não é aquela pré-fixada

que mutila a intuição, mas outra que brota no contexto específico de cada obra alinhavando

o seu múltiplo numa unidade superior.

“Protótipo de genuína experiência com a nova música é a capacidade de ouvir conjuntamente o divergente, fundado, no acompanhamento intrínseco do que de fato é múltiplo, uma unidade”.141

Mais uma vez se expressa a recusa adorniana ao redutivismo, que se pode formular da

seguinte maneira: a verdade não está nem na redução idealista do objeto ao sujeito, nem

num pseudomaterialismo – simples variante da razão iluminista – que tenta dissolver o

sujeito no objeto, mas no campo de forças se dá entre o sentimento individual e a sua

expressão universal, no caso particular da música, entre a fantasia e a lógica musical. Essa

tensão não resolvida, não conciliada, que impede tanto o reducionismo objetivista quanto o

subjetivista, veda a dissolução do particular no universal, através da categoria da

Vermittlung, da mediação, pela qual a parte é índice do todo, mas não pode ser absorvido

por ele e vice-versa. Assim, enquanto consciência da tensão, a nova música, de um modo

geral, pressupõe experiência, “a dimensão de felicidade e sofrimento, a capacidade para o

extremo, para aquilo que não esteja pré-formado, como que para salvar o que o aparato do

mundo administrado destrói”.142

141 ADORNO. 1982. Op. cit. p. 160. 142 ADORNO. 1982. Op. cit. p. 159.

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3.5. �ova Música e Linguagem Dionisíaca

Vimos com Adorno que a nova música não conhece nenhuma harmonia pré-

estabelecida entre o universal e o particular, e não deve conhecê-la em nome de sua própria

verdade; e que, por isso mesmo, nela, o universal é aberto, não esquematizado, mas

problemático, “tendo primeiro de ser descoberto, desde a formulação, a emoção individual

até a construção do todo”.143 Nessa medida, então, a nova música evidencia-se como crítica

ao fetichismo na música tradicional, ao mesmo tempo em que procura realizar um novo

ideal de linguagem em que o particular se expresse sempre no contexto de uma relação não

conciliatória com o universal, relação essa que se deve articular em cada caso específico.

Ao estudarmos a crítica nietzschiana da linguagem, definimos a linguagem dionisíaca

como aquela que deve veicular experiências divergentes, portanto como uma linguagem

oposta a qualquer tipo de esquema ordenador pré-estabelecido; uma linguagem que é, por

definição, uma negação de todo padrão nivelador, de toda convenção inibidora do

sentimento individual. Desse modo, o atonalismo nos parece ser a realização mais próxima

de um ideal dionisíaco de linguagem.

De fato, acreditamos que a nova música esteja para o que chamamos linguagem

dionisíaca do mesmo modo que o universal está para o particular, ou seja, consideramos

aqui a linguagem dionisíaca como sendo uma proposta ampla da expressão fundada na

lógica da diferença, e o atonalismo como uma realização dessa idéia num campo particular:

a música. Isto posto, podemos considerar a análise que Adorno faz da nova música uma

explicitação de princípios dionisíacos vigentes na música moderna, ao mesmo tempo em

que vemos em Nietzsche a antecipação ainda nebulosa de uma idéia acerca da linguagem e

sua relação com a realidade.

O ideal dionisíaco nos quer salvar da tirania do sistema. Por esta via, Nietzsche chega

a partir da necessidade imposta à sua filosofia de fazer a crítica da ciência pela ótica da arte,

vale dizer, pela crítica da linguagem, a uma idéia central em sua obra: aquela do homem

submetido à projeção reificada de suas próprias produções. Para Nietzsche, ocorreria,

principalmente a partir da filosofia Kantiana, uma cisão entre o homem e os produtos de

sua própria atividade intelectual. Em Kant, o pensador torna-se impessoal e o homem não

143 ADORNO. 1982. Ibid.

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está mais à altura do pensador. Conseqüentemente, o indivíduo coloca-se abaixo das

grandes estruturas criadas por ele mesmo. Como subprodutos ou variantes de um dualismo

nascido dessa cisão tipicamente Kantiana, que levou ao grande postulado metafísico do

fenômeno e da coisa em si, teríamos então algo como o “método em si”, “o estilo em si”,

etc. No caso do sistema conceitual, uma “linguagem em si” erigida como norma absoluta

acima do indivíduo.

De Nietzsche, Kant ganha o apelido de “grande chinês de Koenigsberg”. A palavra

chinês aqui evoca chinesice, quer dizer, a mediocridade, a falta de estilo, a imobilidade

insensível: “virtude, dever, bem-em-si, bem impessoal e universal: quimeras onde se

exprimem a decadência, o esgotamento final da vida, a chinesice (Chinesentum) de

Koenigsberg. As leis intimas da conservação e do crescimento exigem o oposto: que cada

um invente sua própria virtude, seu imperativo categórico”.

Nietzsche situa-se do lado oposto ao grande mandarim, ele não medita

laboriosamente sobre as condições de possibilidade da experiência, ele faz de sua vida uma

experimentação. Nele, a seriedade do professor dá lugar à “virtude do dançarino”: “Vou-

lhes dizer: deve-se ter um caos dentro de si para se dar à luz uma estrela dançarina”.144

“La musique, voilá sans doute ce qui oppose pardessus tout Nietzsche à Kant”, afirma

O. Reboul.145 Paixão e perigo, a música é para Nietzsche a expressão mesma do dionisíaco;

donde a superioridade de sua linguagem. “Comparé à la musique, toute communication

verbale a quelque chose d’indécent; le mot amincit et abêtit; le mot dépersonnalise; le mot

rend commun ce qui rest rare”.146

Nietzsche considera a música, pois, não apenas a linguagem mais apropriada para se

exprimir a verdade peculiar ao individual e ao não-idêntico, mas, talvez por isso mesmo, a

linguagem mais nobre. Ela prova que uma infinidade de coisas não foram ditas ainda; ela

faz pensar, ela evoca o que ainda resta a pensar. Ela é, portanto, o meio por excelência para

a expressão do divergente, do que é estranho aos padrões comuns. Não é exatamente esse o

julgamento que Adorno faz da nova música quando, contrapondo-a ao espírito burguês,

144 NIETZSCHE, F. Así habló Zaratustra. Traducción de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 1984. p. 39. 145 REBOUL, O. Oietzsche critique de Kant. Paris: PUF, 1974. P. 15 “A música, eis, sem dúvida o que opõe, acima de tudo, Nietzsche a Kant”. 146 Citado por REBOUL, O. 1974. Op. cit. p. 15 “Comparada à música toda comunicação verbal possui algo de indecente; a palavra reduz e estupidifica; a palavra despersonaliza; a palavra torna comum o que é raro”.

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afirma ser ela a divergência absoluta? Além disso, um dos principais pontos de sua

argumentação não consistiria em mostrar que o tonalismo, por ter-se tornado uma

convenção inibidora do sentimento individual, como a linguagem, diminui, bestifica e

despersonaliza? Portanto, trai a verdadeira essência da linguagem musical?

Por outro lado, o ideal dionisíaco que, creio, realiza-se na nova música, quer o

reencontro da expressão musical com sua própria verdade. No atonalismo, isto se dá,

conforme já vimos, como rompimento da harmonia pré-estabelecida entre o universal e o

particular. Ao invés de um caminho único estabelecido de uma vez por todas, teríamos

então a busca constante da adequação, a cada passo da elaboração da obra, daquelas regras

que se devem estabelecer (a lógica própria da composição) com o conteúdo particular (o

sentimento individual) que se pretende elevar à sua expressão universal. Entre expressão e

realidade se quer estabelecer um campo de forças, uma tensão não resolvida na qual a

linguagem, sem se confundir com aquilo que nomeia e sem tampouco forçar a adequação

de uma experiência particular a um esquema dado de antemão, tenta apreender a riqueza de

dimensões do real, salvando o que o espírito obcecado pela produção do idêntico elimina

do objeto - o não-idêntico. Se do lado da música tradicional encontramos a busca da

identidade e do nivelamento que culmina no banal, na nova música temos a diferença e o

não convencional, salvando aquilo que a consciência reificada soterrou num mundo de leis,

subordinações, demarcações de limites, tornados o mais universal, o mais conhecido e, por

isso, como o regular e imperativo.

Se a lógica do sistema tonal, tal qual a da linguagem conceptual, era, como vimos, a

da repetição, cuja lei mais íntima é a busca da identidade (do padrão que permita uma

identificação coletiva a “lógica dionisíaca” vigente na nova música é a da diferença que

quer salvar o divergente e exprimir as contradições reais que o ideal conciliatório de

harmonia, presente na música tradicional, quer encobrir. Isso nos alerta apara o fato de que

assim como se deve evitar e recusar as falsas superações no campo social deve-se,

igualmente, fugir das falsas mediações no campo teórico e estético, pois, como ensina

Adorno, é na medida em que se mantém como contradição sem síntese que a cultura se

conserva verdadeira. A verdade do sistema repousa sobre sua pressa em realizar a síntese,

em querer anular a diferença dos contraditórios; a verdade da dialética negativa repousa,

por outro lado, na percepção de que os contraditórios não podem ser, senão ilusoriamente,

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transcendidos. Ela é, nesse sentido, uma afirmação da diferença muito próxima do que

chamamos verdade dionisíaca: a experiência do trágico. No campo da arte tal verdade se

manifesta como expressão da integridade do compositor e índice da autenticidade de suas

qualidades estéticas.

Contrariamente á idéia revolucionária que norteia a nova música, “a idéia de ajuste de

tensão, de harmonia no sentido artístico, torna-se cada vez mais ideológica quanto menos a

realidade propicia ao individual através do universal o que é prometido ao individual e o

que ele mesmo promete”.147 Assim, tal como acontece com o sistema conceitual, a

universalidade prometida pelo sistema tonal faz-se puramente abstrata, incapaz que é de

captar, enquanto mediação, toda a infinita gama da perspectivas e matizes que a tonalidade

apresenta. Dessa maneira, a individualidade desaparece sob o peso de um sistema auto-

referente, que não pode veicular a expressão de sua mais profunda verdade. Há aqui uma

contradição entre o conteúdo real vivido e sua solução conciliatória pela harmonia pré-

estabelecida.

Por outro lado, são as contradições reais que a nova música não quer encobrir. Nesse

sentido, ela aparece como a consciência extrema da diferença, tal como o pensamento

dionisíaco; ao contrário da razão metafísica, por exemplo que, como observa Nietzsche, só

conhece duas cores: o preto e o branco, desdenhando toda infinita gama de perspectivas do

real por trabalhar com uma linguagem que abusa do conceito, portanto, que antes de captar

a realidade em sua riqueza e diversidade, procura moldá-la de acordo com formas

previamente estabelecidas.

Tanto a linguagem conceptual quanto a música tonal só opera a partir de um falso

conceito de harmonia: através da manifestação do outro unificam o diverso, tornam

semelhante o dessemelhante. Para Adorno, “essa tolice não é outra coisa senão a

consciência reificada, que escamoteia num murmúrio musical as reais contradições

sociais”.148 Para Nietzsche, toda a questão da normatividade presente nos grandes edifícios

teóricos coaduna-se com a tarefa mais evidente na sociedade do seu tempo: a produção do

homem máquina espoliado daquilo que constituiria a sua individualidade fazendo-se único.

147 ADORNO. 1986. Op. cit. p. 156 148 ADORNO. Ibid.

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Nietzsche sempre contrapôs o homem indigente ao espírito livre. Em certa passagem

de O Crepúsculo dos Ídolos” ele escreve:

D’une soutenance de thèse – “Quelle est la tâche de tout enseignement supérieur? – “Faire de l’homme une machine”. – “Quel moyen faut-il employer por cela?” – “Il doit apprendre à s’ennuyer” – “Comment y parvient-on?” – “Grâce à la notion de devoir” – “Qui peut em cela lui servir de modele?” – “Le philologue: Il enseigne comment bûcher” – “Quel est l’homme parfait?” – “Le fonctionnaire” – “Quelle est la philosophie que énonce la meilleure définition du fonctionnaire?” “Celle de Kant: “Le fonctionnaire em tant que chose em soi erige em juge du fonctionnaire em tant que phénomène”. 149

Não vemos aqui uma descrição contundente daquilo que Adorno classificaria mais tarde

como a “personalidade autoritária?” Aquela que, como ele mesmo diz, odeia o divergente

em si, sobretudo o que tem um caráter peculiar, querendo que tudo se torne igual. Nela se

manifesta aquela típica recusa contra o estranho não compartilhada pelo homem dionisíaco.

Este último, ao contrário, quer o estranho e o inesperado e clama por uma linguagem que

seja expressão de seus mais audazes arroubos. Por isso ele quer uma linguagem que seja a

expressão do divergente; uma linguagem por meio da qual se mantenha a consciência da

extrema variedade do mundo e da irredutibilidade dos momentos antagônicos. Portanto,

uma linguagem contrária ao espírito objetivo burguês e à sua necessidade de produzir o

falso. Tal ideal se realiza na nova música. Ela pode, assim, ser chamada uma linguagem

dionisíaca, posto que em todos os seus traços técnicos – dissonância, intervalos ásperos,

forma aberta, ela se contrapõe ao costumeiro conceito espiritual-ideológico de harmonia,

“alertando exatamente para aquilo que engana no caráter afirmativo da cultura”.150

“Enquanto cada metáfora intuitiva é individual e sem igual, afirma Nietzsche, e,

por isso, sabe escapar a toda rubricação, o grande edifício dos conceitos ostenta a

regularidade rígida de um columbário romano e respira na lógica aquele rigor e frieza que

são próprios da matemática”. Do mesmo modo que a linguagem dos conceitos, a música

149 NIETZSCHE, F. Crépuscule des idoles., Texte établi par G. Colli et M. Montinari – traduit de l’allemand par Jean-Claude Hemery. Paris: Gallimard, 1974. p. 110. De uma defesa de tese “- Qual é a tarefa de todo ensino superior? – “ Fazer do homem uma máquina”.- “Qual o meio deve-se empregar para isso? Ele deve aprender a se aborrecer” – “Como isso acontece?” - “Graças à noção de dever” – “Quem lhe pode servir de modelo?” – O filólogo: ele ensina como trabalhar sem cessar”-“Quem é o homem perfeito? O funcionário” – “Qual é a filosofia que melhor define o funcionário?” “A de Kant: o funcionário como coisa em si erigido em juiz do funcionário como fenômeno” (CI IX, §29) 150 ADORNO. 1986. Op. cit. p. 157

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126

tonal adequa-se perfeitamente ao espírito objetivo burguês: em ambas encontramos a

mesma lógica da repetição como princípio organizador. O edifício dos conceitos e o

sistema tonal cumprem função semelhante: ambos operam a mesmificação do outro.

Unificando o diverso, tornam semelhante o dessemelhante; fundando-se, portanto, sobre

princípios falsificadores.

Nesse ponto percebemos que o impulso mais profundo que move o pensamento

dionisíaco na direção de uma linguagem que fuja a todo esquema pré-fixado, impulso que

se realiza na nova música, resulta de uma irredutível vontade de verdade. Voltamos assim

ao ponto anterior em que admitimos ser a verdade, no seu sentido dionisíaco, a admissão da

existência irredutível dos contrários, da diversidade fundamental do mundo. Sua

racionalidade consiste em admitir a existência da não-racionalidade.

Ao postulado de que tudo deve ser tornado igual, o atonalismo responde com uma

prática musical essencialmente oposta à identificação universal pretendida pela razão

burguesa; prática essa que está vinculada a uma profunda necessidade de se eliminar do

campo da expressão musical tudo aquilo que a torne um mero veículo para a repetição e,

como tal, um fim em si mesma, antes que um meio para a expressão de uma

individualidade criadora.

Adorno dizia que a nova música, na medida em que é a divergência absoluta, não

pode ser captada e entendida senão em relação com aquilo de que diverge. Ora, a nova

música, como a linguagem dionisíaca, diverge fundamentalmente, como tentamos ver,

daquela idéia fixa da mentalidade burguesa: habitar em um mundo onde as coisas sejam

como ilhas, bem recortadas, eternamente as mesmas, flutuando no oceano calmo, vazio, de

um perpétuo agora. Ela diverge, pois, do prazer teimoso da repetição regressiva e, enquanto

tal, coloca o problema de uma linguagem que seja adequada à expressão do divergente.

A herança que se pode atribuir à nova música como sendo dionisíaca consiste no

predomínio que se pode notar em sua linguagem da “autenticidade” sobre a “convenção”,

na consideração do fato de que o artista não deve compor apenas para produzir sons

agradáveis, senão para expressar sua própria personalidade. Nessa medida, a nova música

faz o julgamento da música tradicional, como a linguagem dionisíaca fazia o da linguagem

conceitual, mostrando quão inadequada ela se tornou para a tarefa a que ela originalmente

se propôs.

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127

Devemos finalmente enunciar os pólos divergentes: de um lado teríamos a musica

tonal juntamente com a linguagem conceitual; do outro lado teríamos a nova música e a

linguagem dionisíaca. Ao primeiro binômio liga-se o prazer da repetição, enquanto o

segundo funda-se sobre o postulado da diferença, afirmando-se como expressão autêntica

do sentimento individual. Se o tonalismo, como mostrou Adorno, repetindo o que se dava

na linguagem conceitual, é o veículo na expressão de pessoas regredidas nas quais falhou a

formação do ego, “pessoas que nem sequer entendem as obras de modo autônomo, mas

numa identificação coletiva”, a linguagem atonal privilegia o momento individual

mediando experiências divergentes. Tais experiências, ensina Adorno, são revolucionárias

na medida em que, por serem inadaptáveis aos esquemas com que comumente trabalhamos,

rompem com aquele momento da identificação coletiva necessário à reprodução do mesmo

dentro da sociedade burguesa. Por meio dessa linguagem, a arte quer, pois, edificar a mente

humana, encaminhando sucessivamente a atenção dos homens da torpeza e mesquinhez da

vida cotidiana na direção da esfera da fantasia e dos valores espirituais. Neste sentido, a

arte é sempre revolucionária; apontando para a transformação da visão convencional que o

homem tem do mundo e suas atitudes com respeito a seus próximos.

A linguagem dionisíaca postula uma nova forma de expressão, um novo tipo de

organização das experiências particulares para que – através de arranjos inéditos, vale dizer,

através da demolição e escarnecimento dos antigos limites – se torne possível corresponder

criadoramente à expressão poderosa da experiência individual presente. Ela quer, portanto,

romper o âmbito da experiência comum a que homens, enquanto seres socialmente pré-

formados, já estão comodamente adaptados. Na verdade ela quer mostrar que o mais

comum não é o mais verdadeiro, mas simplesmente o mais cômodo e nesta medida ela é

crítica de todos os padrões culturais vigentes.

Como expressão da personalidade do compositor e índice da autenticidade de suas

experiências, como divergência absoluta, portanto recusa absoluta ao convencional e ao

pré-formado, a nova musica se adéqua ao conceito de uma linguagem dionisíaca.

Realizando o que essa última quer, a nova música se faz crítica das ilusões criadas pela

cultura burguesa. Assim, o “belo” em música torna-se um produto secundário da

integridade do compositor, uma função de sua busca da verdade.

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128

A nova música brota do mesmo impulso de romper limites do qual brotou a

linguagem dionisíaca, impulso esse que coincide com sua vontade de verdade. Nietzsche

nos diz que para o intelecto que se tornou livre nenhum caminho regular leva à terra dos

esquemas fantasmagóricos, das abstrações: “para ele não foi feita a palavra, o homem

emudece quando as vê, ou fala puramente em metáforas proibidas e em arranjos inéditos de

conceitos, para pelo menos através da demolição dos antigos limites conceituais,

corresponder criadoramente à impressão da poderosa intuição presente”. Adorno dirá:

A nova música moderna não conhece nenhuma harmonia pré-estabelecida entre o universal e o particular, e não deve conhecê-la, em nome de sua própria verdade. O universal é aberto, não esquematizado, mas problemático, tendo primeiro de ser descoberto, desde a formulação da emoção individual até a construção do todo.

Ambas as posições exprimem a mesma recusa aos esquemas pré-fixados, às

convenções inibidoras e às falsificações operadas por uma linguagem que responde ao

impulso básico da consciência gregária: a ânsia pela repetição. Ambos se opõem, portanto,

no campo da expressão lingüística, à uma ordem social obcecada pela produção do mesmo.

A nova música, realizando o que se pode esperar de uma linguagem dionisíaca, mostra que

a arte só secundariamente quer a beleza, já que o artista logra a beleza sem pretendê-la, pois

só está empenhado na busca da verdade.

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4. Passagem em Walter Benjamim

“Já passa da meia noite e resta (para terminar de desempacotar os

livros) uma caixa pela metade. Outras reflexões se apoderam de

mim, não exatamente reflexões, mas imagens, recordações.”

(Walter Benjamin)

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4.1. Primeira passagem: o anjo

O anjo está de frente para o espectador. Os braços abertos, os olhos arregalados:

perplexo diante dele estamos nós que o contemplamos enquanto ele nos contempla: sua

perplexidade é nossa imaginação, sua função nossa dúvida. Não há nada visível que

signifique imediatamente ou exiba o sentido de sua expressão e de sua ação impotente: ele

abre as asas ou elas são mantidas abertas por uma força que lhes empurra? Aliás, ele nem

parece olhar diretamente para nós, pois seus olhos barrocos parecem desfocados como se

esperassem alguma força que os entenda e resgate da imobilidade.

A imagem do anjo não diz nada e, ao mesmo tempo, diz tudo. Ao olhar para nós,

espera que a decifremos, mas a decifração é quase impossível posto que ela, a imagem, é

composta de traços infantis como vestígios delineando o possível. No entanto, o possível é

um horizonte e não uma trilha conduzindo a uma clareira. É forçosa a escolha que do

fragmento constrói o todo. Mas ele está ali, nos indícios elaborados pelos rabiscos da

aquarela centrados na visão angustiada que nos desafia e solicita: a imagem do anjo clama

pelo conceito. Sua potência está guardada na competência daquele que a lê e a reconstrói na

leitura. E quem a lê ao se situar a situa e ao situá-la faz com que ela fale desde uma situação

possível.

A imagem de Klee não se diz sozinha e sua língua não se estreita nas amarras de

um código de normas, de uma gramática que prefigure sua lógica transcrevendo sua clave.

Ela mesma é nada ou um fluxo linhas de forças que se espalham na simplicidade excessiva

do traço: infantil, primitiva, arcaica, um jogo em que o que fica no centro da cena é a

linguagem não verbal e livre: mas o anjo está preso a um dinamismo que o submete, ao

qual ele não resiste. É preciso opor resistência e interceptá-lo consiste em salvá-lo da

impotência atônita na qual está mergulhado. Salvá-lo requer transpô-lo a uma linguagem

que o resgate e atualize: jogar a tábua de salvação do conceito: arrancá-lo do quadro

mediante a imagem verbal que, na relação com a figura que interpreta, a liberta da

instrumentalização dos signos e retorna para dentro de si a qualidade figurativa da imagem:

o conceito imaginante desfaz na potência do símbolo a rigidez da norma burocrática.

Diante do posto, o conceito deve ser proposto, inventado como criação derivada a

movimentar a significação de uma totalidade ativa.

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A imagem diz muito sem dizer nada: emudece diante do espectador se este

permanecer espectador, vale dizer, receptor e passivo.

Não há aqui relação sujeito-objeto, mas objetivação mediante a ação sempre

complexa entre as escolhas e a elaboração do instrumento de leitura, ele mesmo criação e

força ativa. O conceito não é nem inerte nem formalidade vazia na tensão estabelecida com

o que lhe desafia: ele também se cria a si mesmo e expande a potência da imagem ao recriá-

la mediante o diálogo.

Há um diálogo resultante da atualização da imagem pela leitura que é uma

constante oralização uma vez que exige a resposta criadora do leitor: a fala subjacente ao

olhar que passeia. Se superamos o abismo que se abria entre a imagem e o conceito,

mostrando sua duplicidade intercambiável, sua dialética em movimento, também devemos

superar a aparente distância entre o oral e o escrito porquanto um e outro são potências da

linguagem objetivadas em meios distintos mas dialogantes.

Desde a primeira função dada pelo homem à apresentação figurativa ou à

utilização de um instrumento que lhe servisse de meio, já acontece a inscrição do símbolo

no interior da vida humana; o símbolo já é duplicidade dialogante: inscrição figurativa que

realiza o domínio do oral e recuperação da inscrição na significância do tecido verbal que o

símbolo coagulara. Não existe o significado e a comunicação sem o intercâmbio do que se

manifesta em duplo meio, mas se unifica na mesma urdidura. Mas toda linguagem é oral;

essencialmente fala que se perde ou se salva mediante o escrito. O signo em sua dinâmica

relativa ou pode coagular falsas representações ou dinamizar o múltiplo na totalidade da

apresentação imagética que é desafio à leitura, portanto potência a ser oralizada.151

Meditamos na imagem de Klee que nos move. O anjo que foi arrancado de sua

posição impotente e posto em movimento de invenção sem o qual não existe. Está aí uma

primeira característica de uma relação dialógica e criadora: a própria obra medeia sua

decifração e exige a oralização que resultará no conceito: ele mesmo um campo de forças a

ser decifrado. O trabalho é infinito e o movimento inesgotável. O símbolo agregador de

sentido constrói em si o processo de sua desconstrução ao se configurar como imagem

151 Veremos mais adiante em Platão de que forma a dinâmica da imagem e do conceito, sobre a qual já discorremos à exaustão, resolve o problema da dicotomia oral escrito e a anula. Na leitura de uma imagem platônica proporemos uma nova leitura do próprio Platão, cujo desdobramento ficará à espera de novas pesquisas que o realizem.

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plena de tensões e dissonâncias que apenas a análise realiza. Na leitura, ela, a imagem,

volta-se sobre si mesma e a oralidade dá as mãos ao inscrito no símbolo, simultaneamente

ao casamento do conceito com a imagem.

Olhemos agora para Walter Benjamin, que entende o passado como fragmentos

inacabados de que somos feitos. Ao olhar para nós, são esses fragmentos que o anjo vê:

seus olhos se espantam porque contemplam os nossos próprios escombros, aquilo que nos

constitui e exige ser compreendido. Então ele evita a mirada e desvia o olhar. No entanto

nos vê na obliqüidade de sua expressão. Mas nós, restos da história e entulho, podemos

continuar o que foi suprimido e, por meio da nossa ação imaginante, despertar significados

esquecidos. Assim exige o trabalho do conceito que precede nossa possibilidade de

reconstruir o que ficou e ganhar impulso para projetar o que resta a ser feito. De qualquer

forma há uma força dupla que a imagem deve despertar: a leitura oralizante e o trabalho

construtivo do conceito. Por isso, ela deve permanecer potência geradora de signos os quais

ela guarda em si como fragmentos dotados de significação.

A figura que contempla só pode enxergar escombros descontínuos à espera de sua

recuperação mediante o trabalho construtivo da memória que desperta de seu sono passivo

o anjo da história. Ele figura a história porque seu olhar guarda algo ao qual não mais se

reporta porquanto se desespera pelo presente, volta-se para o passado e almeja o futuro. Os

três tempos guardados nos olhos que não nos vê e nos solicita. O conceito presente deve

revirar os entulhos do passado e com eles construir uma imagem futura.

Reside aqui o segredo de sua trágica beleza. Ele é a representação da história que

reflete a imagem de nossa própria condição: contingência feita de pedaços, muitos deles

submersos no caos do possível que ainda não se tornou autoconsciência e, portanto, ainda

não se reconheceu. Supôs a si mesma como continuidade e progresso, mas o espelho da

imagem que nos vê mostra que há muito a fazer: começando pelo resgate do esquecido no

despertar da memória.

Nos escombros, não fomos feitos de continuidade e não representamos o repouso

de uma atualidade que progrediu em algo melhor: apenas uma possibilidade de salvação,

quando formos capazes do reconhecimento.

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O Anjo da história lança o seu olhar na altura do nosso desespero, lá onde começa

nossa esperança. O seu olhar é vazio, ubíquo. Nada desafiador, apenas suplicante. A

imagem:

A leitura mediante a qual a súplica é atendida e a imagem ganha vida:

Há um quadro de Klee intitulado Angelus novus. Nele está apresentado um anjo, que parece querer afastar-se de algo a que ele contempla. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão prontas para voar. O anjo da História deve parecer assim. Ele tem o rosto voltado para o passado. Onde diante de nós aparece uma série de eventos, ele vê uma catástrofe única, que sem cessar acumula escombros, arremessando-os diante de seus pés. Ele bem que gostaria de poder parar, de acordar os mortos e de reconstruir o destruído. Mas uma tempestade sopra do Paraíso, aninhando-se em suas asas, e ela é tão forte que ele não consegue mais cerrá-las. Essa tempestade impele-o incessantemente para o futuro, ao qual ele dá as costas, enquanto o

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monte de escombros cresce ante ele até o céu. Aquilo que chamamos de Progresso é essa tempestade.152

A interpretação salva a imagem no conceito por realizá-la, mas é ela mesma, outra imagem,

assim como o conceito. Uma alegoria que lê uma pintura e, para tal, serve-se de conceitos.

No todo, o texto de Benjamin é imagem, assim como a aquarela de Klee; em suas partes

axiais, ele é conceito. Composto de termos comuns, de chavões que o autor abomina e

supera na interpretação: passado, eventos, catástrofe, progresso, tempestade, escombros. Os

conceitos giram e Benjamin constrói uma rica imagem de uma imagem: um espelhamento

no qual o texto abre os olhos para aquilo que o observa: os olhos arregalados do anjo. Entre

os dois espelhos nossa leitura multiplica-se ad infinitum.

Uma bela brincadeira: mas quanta verdade há aqui nesse jogo? O que podemos

extrair dele para o nosso propósito? Fazê-lo jogar a nosso favor?

4.2. Benjamin na zona de indefinição: uma passagem para Platão

“Ao visitante que passar por essas galerias não é permitido tocar nos quadros, nem classificá-los, apenas imaginá-los.” (advertência colocada à entrada de uma galeria de imagens)

A obra de Walter Benjamin situa-se num plano indefinível e tensão imagética que nos

agrada; como o artista de Nietzsche na corda bamba estendida sobre o nada. Convergem na

escrita e no pensamento de Benjamin crítica literária, filosofia, mística e poesia tornadas

potências dialogantes a habitar um mesmo espaço textual. Não há porque separá-las; ele,

como qualquer filósofo criador, não escreveu para ser analisado. Como em Platão o texto

de Benjamin espera ser salvo dialeticamente no domínio do confronto entre a imagem e o

conceito. Atuando como “imagem dialética” em sua concepção da aura, anota Pierre

Missac, “Benjamin parece enfatizar o aspecto da distância, reintroduzindo, porém, a

152 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política, Obras escolhidas vol. I. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986. P. 22.

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proximidade cuja tensão (...) é a do inacessível ou, como se diria hoje, a do desejo”. 153

(grifos nossos)

Lembramos aqui de Benjamin como exemplo maior de uma convivência dialética e

frutífera entre arte, filosofia e crítica. Um crítico filosófico que nunca deixou de ser artista

da palavra. Pensador criativo e rigoroso em cuja obra habitam em perfeita harmonia a

imaginação e a inteligência sem se definirem nem se excluírem mutuamente, completando-

se. Uma espécie de fusão feliz do Eros platônico do Banquete com a inteligência lúcida dos

livros VI e VII da República - sensibilidade estética e logos crítico tutti insieme - que não

recusa, ao contrário, busca adensar na imagem as tensões daquilo sobre o que medita,

trazendo-as por inteiro para dentro da própria expressão escrita.

Por exemplo, na Tese I das teses Sobre o conceito de história lemos a salvação do

materialismo dialético revigorado pela imagem, na associação paradoxal entre aquele e a

teologia:

Como se sabe, deve ter havido um autômato, construído de tal maneira que, a cada jogada de um enxadrista, ele respondia com uma contrajogada que lhe assegurava a vitória da partida. Diante do tabuleiro, que repousava sobre uma ampla mesa, sentava-se um boneco em trajes turcos, com um narguilé à boca. Um sistema de espelhos despertava a ilusão de que essa mesa de todos os lados era transparentes. Na verdade, um anão corcunda, mestre no jogo de xadrez, estava sentado dentro dela e conduzia, por fios a mão do boneco. Pode-se imaginar na filosofia uma contrapartida dessa aparelhagem. O boneco chamado “materialismo histórico” deve ganhar sempre. Ele pode medir-se, sem mais, com qualquer adversário, desde que tome a seu serviço a teologia, que, hoje, sabidamente, é pequena e feia e que, de tal maneira, não deve se deixar ver. 154

No prefácio irônico escrito por Benjamin para a primeira edição da Origem do Drama

Barroco Alemão, que, segundo Sérgio Paulo Rouanet, ele teve a prudência de não publicar,

iniciava com a frase evocativa da imagem extraída de uma fábula conhecida: “Vou contar

de novo a história da bela adormecida”. Conforme resume Rouanet,

153 MISSAC, Pierre. Passagem de Walter Benjamin. Tradução Lilian Escorel. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998. P. 102. 154 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história, tese I. Tradução Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller. in: LÖWY, M. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005. P. 41.

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Segundo essa nova versão, a Princesa não é coroada pelo beijo do seu noivo, e sim pela sonora bofetada dada pelo cozinheiro em seu ajudante. O cozinheiro é o próprio Benjamin, a bofetada é a que ele pretende dar na ciência oficial, e a heroína é a Verdade, que dorme nas páginas do seu livro. 155

Rouanet comenta que, com essa parábola, Benjamin estava aludindo ao desfecho

anticlimático de suas ambições acadêmicas. Não era só isso. Estava reconduzindo a

imagem e a ironia ao lugar do qual elas não deveriam ter sido expulsas pela mentalidade

acadêmica. Os que se consideravam donos da casa despejaram os inquilinos considerados

inadimplentes e esses não voltariam mais a habitar o mesmo local onde deveriam ser

abrigados os legítimos senhores. O tapa no rosto poderia ter acordado a mentalidade

adormecida para a importância de perceber que a casa nunca teve dono, senão aqueles que

saberiam ocupá-la, mantendo intactas as portas e janelas que permitem a comunicação entre

os cômodos: as verdades parciais que, em contato, constroem a verdade do conjunto.

Benjamin é a passagem que nos conduz à fecundidade do diálogo bem sucedido entre

as potências da palavra e do que a transcende. Da riqueza do pensamento que não renuncia

nunca ao perigoso caminhar na zona de indefinição entre filosofia, a literatura e a arte. Um

caminhar que confundiu muitos daqueles que, centrando-se ainda na exigência das

oposições deslocadas do “ou... ou...” , tentavam entendê-lo fixando limites. Tentação à qual

Benjamin nunca responde. Confusos, como anota Michael Löwy, os intérpretes perguntam-

se

Era ele, antes de tudo, um crítico literário, um “homem de letras” e não um filósofo, como pretendia Hannah Arendt? Na verdade como Gershom Scholem, acredito que era um filósofo, mesmo quando escrevia sobre arte ou literatura. O ponto de vista de Adorno é semelhante ao de Scholem, como explica em uma carta (inédita) a Hannah Arendt: “A meu ver, o que define o significado de Benjamin para minha própria existência intelectual é evidente: a essência de seu pensamento enquanto pensamento filosófico”. 156

155 BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. Tradução, apresentação e notas Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984. P. 11. 156 LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005. P. 13.

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Ao que Löwy responde:

(...) é preciso reconhecer ( sem negligenciar o aspecto filosófico de sua obra) o alcance muito mais amplo de seu pensamento, que visa nada menos do que uma nova compreensão da história humana. Os escritos sobre arte e literatura podem ser compreendidos somente em relação a essa visão de conjunto que os ilumina a partir de dentro. Sua reflexão constitui um todo no qual arte, história, cultura, política, literatura e teologia são inseparáveis.157

Löwy dá um grande passo, mas ainda se move dentro do espaço disjuntivo e se

incomoda com o paradoxo. Com aquilo que a opinião fixada em hábito resiste em superar.

Mas a figura de Benjamin se mexia demais tornando impossível aplicar-lhe um rótulo. O

mesmo rótulo que os estudiosos não conseguiram aplicar em Platão e, na tentativa,

dividiram-no em dois; a mesma imprecisão que estranha em Nietzsche; a mesma confusão

entre Adorno e os estudantes que lhe repudiavam a prática sem ter consciência de quem

lhes havia orientado a teoria158, a mesma recusa dos editores embasbacados diante da

poesia inclassificável de Cummings. Também em Marx, pensador cuja obra não lida

confundiu os intérpretes modernos, a distância entre arte e ciência, filosofia e literatura não

se verificam. Basta ler O Capital para se compreender que as dificuldades impostas pelo

livro derivam, em sua maior parte, da forma da exposição, muito mais do que do conteúdo

exposto.No tribunal da razão a ação judicativa tanto dos defensores quanto dos acusadores

de Marx parecia concordar em um ponto: o autor de O Capital havia realizado uma

importante obra científica de economia política. Em reposta, Lukács nos revelou um outro

Marx: o filósofo ocupado com o problema da identificação da matriz ontológica das

determinações efetivamente existentes do ser social. Cientista econômico ou filósofo?

Quem seria Marx? Em uma interessante e perspicaz observação, o biógrafo Francis Wheen

descobre uma passagem inusitada: o escritor, ressaltando a importância de se atentar para o

aspecto literário, fundamental na obra do filósofo alemão. Escreve Wheen:

157 LÖWY, Michael. Ibid, p. 14. 158 A propósito confira-se a entrevista de Adorno cujo título é suficientemente dialético para ser catalogado, jogando o pensamento linear para fora de suas barreiras dicotômicas: “A filosofia muda o mundo ao manter-se como teoria”. A entrevista aparece em “Die Philosophie ändert, indem sie Theorie bleibt. Gesprächt mit Theodor W. Adorno”. Entrevista à revista Der Spiegel, n.o 19, 1969. Tradução de Gabriel Cohn. Publicada no Caderno “Mais!” da Folha de São Paulo, 31.08.2003.

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O capital não é realmente uma hipótese científica, não é nem mesmo um tratado de economia, embora os fanáticos de ambos os lados da argumentação persistam em vê-lo desta maneira. O próprio autor tinha bastante clareza de suas intenções. ‘Bem, com respeito ao meu livro, vou dizer-te toda a verdade sobre ele’, escreveu Marx a Engels em 31 de junho de 1865. ‘Há mais três capítulos por escrever, para completar a parte teórica (...). Mas não consigo despachar nada enquanto não tenho a coisa toda na minha frente. Sejam quais forem suas deficiências, a vantagem de meus textos é que eles são um conjunto artístico (...)’. Uma outra carta, escrita uma semana depois, refere-se ao livro como uma ‘obra de arte’ e cita ‘considerações de ordem artística’ como razão da demora na entrega do manuscrito. 159 (grifos nossos)

Francis Wheen nos informa ainda que,

No Museu Britânico Marx havia descoberto um manancial de dados sobre a prática capitalista – registros oficiais de governo, tabelas estatísticas, relatórios de inspetores de fábricas e de funcionários da saúde pública –, os quais usou com o mesmo efeito saturador com que Engels os utilizara em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Mas sua outra fonte principal, que costuma ser menos notada, foi a ficção literária.160

E nos aconselha, para fazermos justiça ao que pretendia Marx, ler o texto de O Capital

como uma obra de imaginação, que se enriqueceria quando considerado como

um melodrama vitoriano, ou uma vasto romance gótico cujos heróis são escravizados e consumidos pelo monstro que criaram (“O capital, que vem à luz sujo de lama dos pés à cabeça e gotejando sangue por todos os poros”); ou, talvez, uma utopia satírica, como a terra dos Houyhnhnms, de Swift, onde todas as perspectivas são agradáveis e somente o homem é vil. Na visão marxiana da sociedade capitalista, tal como no pseudoparaíso eqüino de Swift, o falso Éden é criado pela redução dos seres humanos comuns à condição de Yahoos impotentes e exilados. 161

Filósofo, economista político, escritor e artista. A obra de Marx ganharia ao ser lida

como uma grande construção literária em que o uso dos conceitos e das imagens somam-se

159 WHEEN, Francis. Karl Marx. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Record, 2001. P. 281. 160 WHEEN, Francis. 2001. Op. cit.. P. 283. 161 WHEEN, Francis. 2001. Op. cit. P. 284.

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no conjunto teórico, concedendo-lhe a força expressiva na qual a verdade da análise

potencializa-se através da imaginação artística. Um jogo que Benjamin fez muito bem.

Parece-nos que Debord acerta o que tentamos propondo uma reurbanização do

pensamento e da vida em seu conceito imaginário de “deriva”; Deleuze na crítica

endereçada ao nomos sedentário; Platão na irônica dialética que se apropria

indiferentemente do mythos e do logos – do pensamento narrativo e da narrativa pensada - e

os coloca em comunicação constante; Adorno na proposição de uma dialética sem síntese

em cuja articulação as tensões são mantidas sem resolução, em que o pensamento se

beneficia da zona de indiferenciação em que se ultrapassa mediante a linguagem o conforto

da linguagem traída. Na Dialética Oegativa Adorno escreveu: “a atitude estética da

filosofia é a capacidade de perceber as coisas mais do que as coisas são; sob seu olhar o

que é transmuta-se em imagem.” 162 (grifos nossos) Podemos ver no Trabalho das

Passagens de Benjamin reflexões tomadas a partir de um “centro excêntrico” em que se

mostra o entrecruzamento de questões numa forma fragmentária de fazer o pensamento

filosófico, a arte e a literatura convergirem sem que se percam suas singularidades.

A Wille zur Macht moderna precisa conformar-se e confortar-se na zona de segurança

derivada da precisão ilusória que ela mesma produz: mas se viver não é preciso porque não

navegar na imprecisão paradoxal daqueles que experimentaram a criação como vida, na

qual todas as oposições se integram sem se anularem e todas as divisões são indivisíveis? A

vida na qual a folha costura a solidão fundindo-se nela e nela perdendo os limites do

concreto e do abstrato mediante a expressão poética talhada nos conceitos que afiguram a

imagem?

Vemos em Benjamin o pleno desenvolvimento do que a filosofia era: conjunção do

pensamento e da arte na dinâmica de uma experiência literária. Somente através das lentes

de seus óculos nos permitimos achar a passagem para Platão, porquanto elas nos abrem o

caminho ao desabrochar a plenitude do que era semente. Benjamin realiza o que o filósofo

sempre quis. Ao lê-lo vemos aonde se pode chegar: entrando no universo do poeta-filósofo

ateniense através de um drible que nos faz deslocar nosso olhar para fora da órbita dos

162 Citado por Olgária Matos, Passagens: cidades-viagem, in. MISSAC, P. 1998. Op. cit. P. 08.

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intérpretes presos aos limites do definível e compromissados, desde o início, com as

exigências da definição.

A riqueza de Benjamin nos leva a acreditar nos matrimônios ilegais em que se foge

da lei somente para encontrar a verdade. Ele era tudo junto por inteiro. Platão também:

poeta inspirado, pensador cuidadoso, em uma palavra: dialético.

Wille Bolle chama a atenção para as relações entre “imagem dialética” e “imagens

de desejo”, explicitando a peculiaridade do conceito “dialética em Benjamin: “Há uma

hesitação entre imagens. É nessa zona intermediária onde o novo ainda se mistura com o

velho que surgem as imagens do desejo”.163 (grifos nossos)

Falamos de Benjamin para abrirmos passagem a Platão. Acho que já o fizemos.

Agora cumpre apenas refletir em torno da dinâmica do diálogo platônico, vendo nele a

imagem do todo - imagem na qual a trama dos conceitos figuram uma textura imagética

possível – e, no interior dele, as figuras móveis e não-rotuláveis de seus mitos. Bastam dois

exemplos singulares: o Mênon e a Imagem da Caverna. No geral o particular e no particular

o geral. Na completude a experiência antecipadora dessa forma de literatura que se

convencionou denominar filosofia. Melhor dito: vejamos os dois aspectos do trabalho

platônico cuja abertura em Benjamin nos permite a passagem: a imagem na incompletude

da forma dialógica aberta – Mênon – e a imagem na imprecisa dinâmica do mito: a caverna.

163 Citado por Olgária Matos. In. MISSAC. 1998. Op. cit. p. 12.

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5. Platão artífice da imagem

“O ánax ou tò manteión esti tò en Delfois, oute légei oute

kríptei, allá semaínei.”

Heráclito

“... E foi assim, Glauco, que o mito foi salvo do esquecimento e não se perdeu. Ele pode, se o compreendermos, salvar-nos a nós mesmos.”

Platão, República, X

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5.1. O muro e mais além: Platão revisitado

Água da palavra Água calada pura Água da palavra

Água de rosa dura Proa da palavra

Duro silêncio, nosso pai

Margem da palavra Entre as escuras duas Margens da palavra Clareira, luz madura

Rosa da palavra Puro silêncio, nosso pai

(...)

Asa da palavra Asa parada agora Casa da palavra

Onde o silêncio mora Brasa da palavra

A hora clara, nosso pai.

Hora da palavra Quando não se diz nada

Fora da palavra Quando o mais dentro aflora

Tora da palavra Rio, pau enorme, nosso pai.

Caetano Veloso, “A Terceira Margem do Rio”

A literatura e a filosofia sempre estiveram ligadas através de um matrimônio

declarado ilegal por quem considerou necessário divorciar os planos, separando a

contemplação da verdade da criação do belo. A filosofia não podia ter relações com o estilo

nem com a atividade criadora, i.e., com a produção de artifícios verbais e de imagens

porque buscava desvelar o ser que se escondia por trás dos fenômenos. Seus produtos

tinham de se situar dentro da zona de definição na qual as formas da expressão eram apenas

veículos do conhecimento. Toda expressão de uma atividade imaginativa criadora de

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artifícios poéticos – ao contrário da elaboração de conceitos conectados em proposições

que, por sua vez, articulam-se em raciocínios demonstrativos – foi considerada estranha à

filosofia, uma vez que esta não tinha nada a ver com a criação nem com a produção

literária. Uma concepção equivocada do romantismo acentuou a ruptura através de uma

falsa mirada sobre a arte e a literatura. Estas últimas situavam-se no domínio da expressão

do belo e do maravilhoso e nada tinham a fazer quando se tratava de conhecer a verdade. Aí

está: cada coisa ocupando o seu devido lugar; devidamente claras e distintas.

Construído o muro ficava difícil lidar com aqueles que o transpunham; não havia

lugar onde colocá-los, pois se recusavam a ocupar os lotes já distribuídos. No entanto,

continuaram construindo, a despeito das regras que determinavam os limites das cercas.

Continuaram violando as normas promovendo casamentos não autorizados. William Blake

poderia casar o céu com o inferno, porque se tratava de um visionário. Aos loucos tudo é

permitido, mas a sã razão não se pode admitir violações. Os denominados pré-socráticos

poderiam habitar a indistinção, porque pertenciam a um tempo no qual a racionalidade

ainda não se divorciara do mito.164 Mas Platão não. Platão foi aquele que elaborou a carta

magna da metafísica ocidental; aquele que separou os planos; que deu à filosofia um

proceder distinto dos caminhos da arte; que colocou as coisas no lugar. Não o divisor de

águas, mas o topógrafo que fez o reconhecimento do terreno e dividiu os lotes: conceito de

um lado imagem do outro; filosofia de um lado literatura do outro; razão versus

sensibilidade poética; oralidade versus escritura; seriedade circunspecta versus jogo;

conhecimento desinteressado da verdade contra brincadeira criativa.

Mas Platão jamais construiu nos lotes que, supostamente, teria delimitado. Quem leu

atentamente a obra dele por inteiro percebe, de imediato, que as coisas não se encaixam. É

preciso forçá-las para corresponderem às expectativas. Como? Separando artificialmente

planos dentro dos planos: a atividade séria do jogo; o interesse pela verdade que se expressa

em formas proposicionais determinadas do apêndice que ilustra a expressão racional

sempre que ela não consegue dar conta de seu material. A imagem mítica ilustra, como uma

parábola, o que a razão já havia alcançado por si mesma. Aquela não desempenha nenhum

164 É importante esclarecer que tal concepção só faz sentido do ponto de vista daqueles que classificaram os pré-socráticos como tais. Caso alguém, por exemplo, visitasse a cidade de Éfeso no século VI a.C. e perguntasse onde residia o famoso filósofo pré-socrático não conseguiria resposta. Ninguém saberia que era Heráclito.

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144

papel relevante na ópera que se encena desde Platão. Serve apenas como figuração do que

não necessita ser figurado. Colocada à margem a imagem mítica ficou à sombra da razão.

Sobrou como um resíduo a ser desconsiderado. Mas um resíduo que nunca parou de

incomodar, pois deixou a desconfiança de que, se existia desde sempre, por que deixar de

considerá-lo?

A imagem deu um tapa no rosto da Bela Adormecida. Por isso foi preciso passarmos

em revista todos os matrimônios ilegais. A bofetada sonora foi dada finalmente por Walter

Benjamin. Será que acordou a mentalidade sonolenta da modernidade? Não importa.

Acordou-nos para a convergência da filosofia com a arte e a literatura naquela zona de

indefinição onde as cercas são substituídas por vasos comunicantes, onde as distinções e

disjunções dão lugar aos tangenciamentos e encontros.

Uma última disputa está sendo encenada. Tão parcial e restritiva quanto as demais.

Tão insuficientes como todas as outras. Tem-se buscado delimitar as coisas de maior

importância referidas por Platão na Carta VII. Platão oral ou Platão escrito? Qualquer um

poderia notar que foram insuficientes porque parciais as interpretações da filosofia

platônica, de Schleiermacher à Escola de Tübingen, uma vez que não chegaram a produzir

satisfatoriamente nenhuma visão de conjunto que pudesse fornecer um meio de acesso a

Platão a partir de uma concepção abrangente. Algo que ressaltasse a complexidade

polissêmica de cunho dialético do pensamento do mestre de Atenas. Os paradigmas

hermenêuticos pautaram-se pela exclusividade e exclusão, ora ressaltando a importância da

escritura, ora colocando em relevo a importância da oralidade na filosofia platônica.

O fazedor de mitos e criador de imagens perturbava também aqueles que não

compreendiam porque um filósofo servia-se com tamanha habilidade de dispositivos que

não combinavam com o que se esperava da atividade filosófica. Filosofia trabalha com

conceitos, não com metáforas, símbolos e fábulas, em uma palavra, imagens. Mas, se o

filósofo usou abundantemente de tais artifícios como situá-los no contexto de sua obra?

Ora, como já afirmamos, marginalizando-os, lançando à sombra o que não poderia deixar

de ser mero auxílio ao pensamento que se buscava esclarecer através de uma atividade

menor sempre que a categoria falhava.

Não obstante, haveria uma idéia medular, que escapou à percepção dos leitores e

comentaristas, a partir de cuja compreensão seria possível superar os dois momentos

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145

excludentes e traçar uma visão de conjunto que fornecesse uma perspectiva mais complexa

do pensamento platônico como síntese entre oralidade e escritura, na convergência da

literatura com a filosofia? Pois hoje arriscamos a ver que “faz parte do interior e da essência

da forma platônica tudo aquilo que resulta da intenção de obrigar a alma do leitor à

produção de idéias próprias.” 165 Aqui, a força do diálogo, vale dizer, da forma literária

platônica, escapa às restrições, aos clichês e estereótipos advindos de más escolhas

orientadas por decisões parciais e precipitadas. Ao invés de se ler o diálogo, “Lê-se o

simulacro do diálogo platônico”. 166 Ao invés de ler Platão como escritor tenta-se lê-lo

como um orador.

Giorgio Colli não se alinha aos admiradores de Platão, no entanto não deixou de notar

que a dialética - que em Górgias já se anuncia como literatura - somente com Platão torna-

se um fenômeno literário abertamente declarado. Segundo Colli,

Platão inventou o diálogo como literatura, como tipo particular de dialética escrita, de retórica escrita, que, num quadro narrativo, apresenta a um publico indiferenciado os conteúdos de discussões imaginárias. A esse novo gênero literário o próprio Platão chama pelo nome de “filosofia. 167 (grifos nossos)

Erich Auerbach havia se adiantado a Colli ao esclarecer que:

É falso e, na verdade impossível, ver a poesia de Platão como uma espécie de subterfúgio ou artifício do qual nos devamos livrar a fim de chegar ao verdadeiro sentido do seu pensamento. O amor do particular era, em Platão, o caminho para a sabedoria, tal como escrito no monólogo de Diotima. E alcançou tamanha expressão porque, para ele, o télos, ou “fim” universal do homem não era incompatível com a natureza individual e com o destino dos homens, mas, ao contrário, se configurava e expressava neles. 168 (grifos nossos)

165 SCHLEIERMACHER, Introdução aos diálogos de Platão. Belo Horizonte: UFMG, 2002. P. 66. Citado por PUCHEU, Alberto. A poesia e seus entornos interventivos. In: Pelo colorido, para além do cinzento. Rio de Janeiro. Beco do Azougue, 2007. P. 142. 166 PUCHEU, A. 2007. Op. cit., p. 144. 167 COLLI, Giorgio. O Oascimento da Filosofia. Tradução Frederico Carotti. Campinas: Editora da UNICAMP, 1988. P.92. 168 AUERBACH, Erich. Dante, poeta do mundo secular. Tradução Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. P. 18.

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146

É preciso retornar ao texto Platônico considerando-o nas múltiplas direções que

aponta.

Uma multiplicidade de estilos e um uso plural de instrumentos que não se reduz nem

à forma lógica nem ao cinza da categoria. É aqui que começa o nosso esforço: pensar a

forma de comunicação platônica sem reduzi-la, evitando os grandes cortes que a mutilaram.

Ensaiamos uma maneira de compreender como foi possível a um pensador crítico da escrita

escrever tão profusamente e de modo tão brilhante. Como redimensionar as relações entre o

oral e o escrito a partir das múltiplas linhas de força que falam dentro do diálogo platônico

e que ele sintetiza. Um meio se apresenta: fazer movimentar a máquina da interpretação a

partir da decisão de enxergar o texto em sua riqueza, em ver como é possível ao escrito

salvar o oral mantendo viva a dimensão de sua incompletude e de suas oscilações, de ser

corrigido e ampliado mediante o trato interpretativo. Mais, percebendo como a linguagem

escrita possui meios de compactar não no conceito, mas na imagem mítica e no símbolo

uma riqueza de conteúdos que convida a inteligência ao trabalho ativo de realizar o escrito,

em outras palavras, oralizá-lo. Já não é tempo de fugir dos paradigmas e encarar o texto

platônico de maneira menos dogmática e mais atenta à sua singularidade, situando-o, no

plano de um desenvolvimento plurifacético, no interior de um processo crítico e dialético

que busca recuperar na elaboração escrita a dimensão e a matriz significativa da oralidade,

aquela que guarda na imagem os conceitos condensados num diálogo que espera a ação da

leitura para se realizar? Que não privilegia, mas vinculam num grau de densidade e

complexidade ímpar os momentos da reflexão e expressão que a modernidade, com seu

olhar voltado para a disjunção e as diferenciações abstratas perdeu?

Seria possível superar as perspectivas conflitantes e excludentes mediante a

identificação de uma categoria literária, amplamente utilizada por Platão, através da qual o

filósofo articulasse os planos diversos do seu filosofar numa unidade não apenas lógica,

mas imagética? Vale uma análise do mito em sua função simbólica como porta de acesso

ao pensamento platônico? Em caso afirmativo, é possível a compreensão do mito como

forma de articular planos diversos no interior de uma mesma imagem superando os limites

do discurso categorial que, necessariamente, opera a partir da classificação e da distinção

hierárquica de formas vazias e estranhas ao caráter dialético e poliédrico de uma escrita que

se faz múltipla e movente em sua démarche? É possível ler Platão segundo uma nova ótica

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que permita fazer orbitar os seus problemas em torno não de um núcleo, de uma categoria

central, mas de imagens que guardem em sua complexidade a potência do mundo que

figuram?

Não categorias claras e distintas, mas indefiníveis cuja estranheza e ubiqüidade não

podem ser incluídas na oposição filosófica binária. Tal indefinível é capaz de guardar o

máximo de significado num mínimo de espaço significante, instaurando uma relação entre

forma e conteúdo na qual aquela permite o máximo de abrangência semântica e exige o

máximo de participação ativa do leitor na decodificação do escrito. O escrito, enquanto

algo que resiste ao esforço de determinação, de codificação, de fixar em que cada passo

interpretativo cria novas tarefas de interpretação?

Há no cerne da literatura platônica o indefinível que por ser indeterminação dialoga

com o leitor e o convida constantemente à oralização do escrito: algo que não se guarda

nem se resolve em modelos, mas pede decisões vinculadas à posição do sujeito.

É verdade que quem quiser compreender a filosofia platônica terá de fazê-lo a partir

da sua plenitude e do seu conteúdo, tão grande como nobre. Como fazê-lo? Possivelmente,

através da análise simbólica do mito considerado não como determinação categorial, mas

como imagem que contém muitos significados contrários ou díspares aos quais abarca ou

reconcilia sem suprimi-los. Submete assim, à unidade, a pluralidade do real, sem reduzi-lo

a unidades homogêneas e discretas. Conserva os olhos voltados para o valor do singular

sem anulá-lo mediante o trabalho intelectual que se dirige para o universal. O que nos foi

possível ver na realização dos autores anteriormente estudados agora se explicita em Platão.

Apenas porque nesses autores revelou-se o que em Platão era potência? Ou melhor: porque

aquilo que hoje vemos redimensiona nossa mirada e nos faz enxergar o passado de acordo

com uma nova perspectiva, recriando-o. Platão como um autor cujos precursores aparecem

depois dele. No olhar complexo de uma dialética do tempo o diálogo é possível. Todos

aqueles que se tornaram textos se encontram na circulação não linear do sentido cuja

complexidade eles mesmos criaram. Não somos historiadores e prescindimos da exigência

teleológica. Em Platão estava tudo o que depois estaria ainda fora dele e, por isso mesmo,

nele. O trecho de um ensaio de Borges ilustra:

O poema Fears and scruples de Robert Browning, profetiza a obra de Kafka, porém nossa leitura de Kafka afina e desvia sensivelmente

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nossa leitura do poema. Browning não o lia como agora nós o lemos. (...) O fato é que cada escritor cria os seus precursores. Seu labor modifica nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro.169 (grifos nossos)

Hoje enxergamos que a operação unificadora e a redução categorial mutila as coisas

e as empobrece. A palidez da categoria formal e lógica provoca a impotência de sujeitar, à

margem da significação, aquilo que nele não cabe e relevar um sentido linear que não

permite o arranjo da complexidade vital na articulação do texto. A moeda gasta da

determinação categorial não figura a pluralidade do mundo. Percebemos, portanto, que a

complexidade platônica não cabe nos moldes talhados pelos intérpretes tradicionais. Mas

cresce quando lida marginalmente na obra dos que realizam o trabalho que a crítica

impotente não alcança. Mas, depois de tudo pelo que passamos, ficamos de olhos bem

abertos: vemos a riqueza de um proceder praticado por Platão que não privilegia o conceito

nem tampouco trabalha mediante a redução categorial. Como um poeta que nomeia as

coisas e ao identificá-las não tira delas o seu aspecto singular e concreto, nem as abstrai no

imobilismo, Platão soube fazer da imagem-mito um momento singular da filosofia,

mostrando-nos que, nas imagens mais altas conseguidas mediante a articulação simbólica

do sentido, as coisas são o que são e a linguagem diz o ser ao apresentá-lo em sua inteireza.

A poesia como veículo de acesso ao ser, de comunicação com os eventos e salvação dos

mesmos nas malhas da apresentação imagética.

O filosofar começa na desconfiança, a crítica inicia quando se começam a ensaiar os

caminhos. Platão crítico da escritura ou escritor da oralidade? Platão defensor da oralidade

ou oralizador da escrita? Os termos são excludentes ou se integram na imagem, na figura e

no símbolo? Um Platão imaginativo e metafórico antes que conceitual? O apreço da crítica

pelo conceito apenas um recorte interpretativo? O logos críptico naquilo que acena.

O símbolo mítico guarda aquilo que a inteligência deve separar ao decifrar sua lógica

peculiar e dessa forma unifica aquilo que o pensamento teima em separar. A pluralidade de

significados não desaparece: recolhe e exalta todos os valores das palavras sem excluir os

significados primários e secundários; mantém a tensão das forças contrárias sem perder a

unidade e sem se converter em mero disparate. Qual pode ser o sentido da imagem mítica

169 BORGES, J. L. Otras inquisiciones. Madrid: Alianza, 1985. P. 109.

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se vários e díspares significados lutam em seu interior? Possuem autenticidade, constituem

uma realidade objetiva e dizem algo sobre o mundo e nós mesmos. Giorgio Colli, que

acima citamos como crítico da “redução platônica” da filosofia à literatura é corrigido em

sua posição por Maria Filomena Molder que, em seu prefácio à obra Escritos sobre

Oietzsche, encena um novo enfoque que reforça o que sustentamos de maneira brilhante:

Tratados como transposições alegóricas, como exemplificações ilustrativas, que por momentos cobrem as teses em argumentação, os mitos filosóficos são confundidos com uma ganga imaginativa provisória de que urge livrar o esforço racional, de modo a que os conceitos reapareçam na sua verdadeira pureza e consistência. Como aconteceu tantas vezes com as interpretações de Platão, desfigurando os mitos pouca coisa se segura, pois só o filtro narrativo permitiria sermos guiados até ao enredo nacional, escorre-nos entre as mãos a água viva da comunicação direta de um pensador, o conteúdo abstracto coado magicamente no coração por uma deusa ou um deus, um conteúdo abstracto que se tornou numa forma de contacto, uma nascente. 170

Seguimos Nietzsche até o ponto em que ele nos mostra o conceito como produto da

imagem-metáfora. Tomando-o como referência, podemos argumentar que é da imagem-

mito que aflora o conceito quando aquela é mediada pela leitura. O conceito se intensifica

ao manter o vínculo dialógico com a imagem na qual se aninha, ganhando força expressiva

mediante a afirmação de sua diferença no contexto de suas semelhanças. Na percepção do

conjunto não há oposição, mas integração dialógica; não há divisão de planos, mas relações

de intensidades; não há fraturas, mas totalidade na qual as oposições aparentes resolvem-se

em tensões dinâmicas que vivificam a unidade sem aniquilar as diferenças. Estamos aqui de

acordo com Platão quando ele afirma: “Quem sabe ver o conjunto (sinoptikos) é dialético,

quem não sabe não o é.” 171 E Platão ecoa Heráclito cuja expressão do Logos nos introduz

no seio das interações complexas captadas pela linguagem imagética num complexo

coerente assim expresso: “As coisas em conjunto são o todo e o não-todo, algo que se reúne

170 COLLI, Giorgio. Escritos sobre Oietzsche. Tradução e prefácio de Maria Filomena Molder. Lisboa: Relógio D’àgua Editores. 2000. P. XVIII. 171 PLATÃO, República, VII, 537.

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e se separa, que está em consonância e em dissonância; de todas as coisas provém uma

unidade, e de uma unidade, todas as coisas.” 172

É possível, portanto, ler Platão segundo um enfoque que permita ao texto manter-se

em movimento desenvolvendo-se no curso de sua penetração interpretativa. Ver o conjunto;

traduzi-lo sem mutilá-lo nem enrijecê-lo: a interpretação transforma-se numa extensão do

texto ao tentar suplementá-lo.

O símbolo, em sua função imagética, condensa muitos significados e convida à

realização da leitura como diálogo vivo entre leitor e texto, permitindo a recriação do

significado e a recuperação dos sentidos parciais no interior de um processo ativo em que o

texto é um desafio à reconstrução de uma significação mediante a qual se estabelece uma

relação entre as figuras do filosofar como momentos relativos, guardados no todo da

imagem mítica e recuperados na reorganização elaborada da leitura. O que era texto

condensado em imagem é como que oralizado através do momento analítico da leitura. Os

comentários fazem parte da trama e entrelaçam-se ao próprio texto ao mesmo tempo em

que este salta da página integrando-se, no momento da leitura, à experiência do sujeito. A

imagem guarda uma potência que espera ser posta em movimento, que desconstrua e

reconstrua suas conexões globais. Às vezes, importa mais ver as conexões do que os

conteúdos? Ou melhor seria ver os conteúdos conexos na percepção do conjunto? Por

exemplo: um enfoque global de um diálogo ressalta a sua forma dinâmica e o entrelaçar do

jogo dos conceitos na imagem, no vai e vem das oposições que se conectam no complexo

dialógico da trama movente do texto. Um texto que é fluxo de forças em processo

constitutivo mediado pela leitura. Vejamos uma visão global de um pequeno diálogo. Em

cena o Mênon.

172 HERÁCLITO, Fr. 10, [Aristóteles], de mundo, 5, 396 b 20. Citado por KIRK, G. S. e RAVEN, J. E. Os Filósofos Pré-socráticos. Tradução de Carlos Alberto Louro Fonseca, Beatriz Rodrigues Barbosa e Maria Adelaide Pegado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª edição, 1982. p. 193. 173 BLACKBURN, Simon. A República de Platão: uma biografia. Tradução de Roberto Franco Valente. Revisão técnica de Danilo Marcondes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. P.15.

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5.1.2. Mênon, ou a imagem na trama dialógica dos conceitos

“Essa concepção dramática do que é Platão torna-o mais difícil de ser criticado. É possível rejeitar uma conclusão, mas é muito mais difícil rejeitar um processo de expansão imaginativa.” 173

Simon Blackburn

“Saberias me dizer, caro Sócrates, se a virtude pode ser ensinada”? ...

Assim o diálogo começa: abruptamente, sem preliminares cenográficos do tipo que

encontramos nos diálogos ditos “socráticos”, e sem providenciar nenhum contexto como

pano de fundo à conversação. Quer dizer, no Mênon, Platão prescinde por completo de

traços circunstanciais introdutórios. Abandona também quaisquer determinações externas

que não se vinculem estreitamente ao corpo do desenvolvimento imanente da obra. Somos

imediatamente jogados no meio da coisa, in media res, dentro da qual as circunstâncias

auto-explicativas desdobram-se no interior de um jogo dialógico em que o conceito e a

imagem devem esclarecer-se mutuamente. Vale aqui o que Jaeger disse acerca de Homero

em cuja obra reconhecia justamente a não aceitação passiva de tradições nem a simples

narração de fatos, “mas exclusivamente o desenvolvimento interiormente necessário da

ação.” 174

Diferente do que se apresenta num diálogo como o Teeteto, em que um distanciamento

gradual do narrador precede a discussão colocando-a no plano da memória e da narrativa,

não no do evento presente, mediante um afastamento da oralidade morrendo como nota

evanescente no texto, o Mênon procede a um jogo que é, simultaneamente, uma ruptura e

uma inserção. Um corte que situa o discurso no plano do evento em que o desdobrar da

discussão fornece o tecido de composição fugaz do conceito. Sua imagem em movimento.

Na outra ponta da trama, percebe-se que a obra carece também de arremate e de um

trabalho de definição de tipos. Não existem pontos de apoio que alavanquem a situação

173 BLACKBURN, Simon. A República de Platão: uma biografia. Tradução de Roberto Franco Valente. Revisão técnica de Danilo Marcondes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. P.15. 174 JAEGER, Paideia, I. Tradução Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1979. P. 113, nota 34.

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como um todo e a definam como uma obra estruturalmente acabada. Se pudéssemos usar de

uma caracterização deleuziana diríamos que estamos aqui diante de um tipo de “inserção

numa onda preexistente” em que o autor não se ocupa em circunscrever a obra numa

moldura definida em termos de partida e chegada, mas analisar o que se passa “entre”.

Como se o fundamental fosse “se fazer aceitar pelo movimento de uma grande vaga, de

uma coluna de ar ascendente, ‘chegar entre’ em vez de ser origem de um esforço.” 175

Para tal, não é preciso dizer quem são os interlocutores nem o que pensam nem,

tampouco, como pensam: eles são apanhados diretamente em ação, no processo da ação,

dentro do qual flutua o conceito na contramaré das representações particulares. Cada

interlocutor (os do diálogo e o próprio leitor) é guiado para fora de suas próprias

representações seguindo a marcha do conceito em seu autoproduzir-se. Devem por assim

dizer “navegar a onda do conceito”, inserir-se nela sem lhe oferecer resistência, quebrar as

resistências possíveis no intuito de participar da vaga do sentido. Um sentido que não se

produz, mas dentro do qual se desliza. Neste aspecto, o Mênon é o mais dialético dos

diálogos platônicos não socráticos, se quiséssemos apelar para categorias gastas. Os

interlocutores não produzem diretamente o conceito, mas este se produz a si próprio através

deles e neles se perde, possível e vago como o evento, mas completo e articulado como a

imagem. Uma completude não arrematada, mas aberta à afirmação das diferenças.

Exigente. Na simplicidade de um inacabamento formal, um acabamento potencial,

dinamizado pelas relações quando realçadas na imagem movente das forças. Personagens

como conceitos que se afiguram no relevar das tensões dinâmicas estabelecidas como

possibilidades a serem resgatadas mediante um golpe de vista que, inserido no movimento,

ao se deixar levar pela onda, perceba-se nela e através dela veja a comunicação dos

elementos que se unificam, sem se petrificar, na imaginação.

Como advertiu Hegel, o papel incolor que assumem os interlocutores em alguns

diálogos platônicos, sobretudo ou fundamentalmente os de cunho marcadamente socráticos,

serve para favorecer o desdobrar-se do pensamento de acordo com uma conseqüência

imanente. Assim, louvava aos interlocutores socráticos por serem jovens sinceramente

175 Deleuze, Gilles. Conversações 1972-1990. Tradução Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. P. 151.

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maleáveis, dispostos a abandonar a pertinácia e arbitrariedade das próprias ocorrências que

pudessem prejudicar o desenvolvimento do pensamento. 176

Podemos afirmar com Gadamer que se trata aqui de mostrar uma progressão intrínseca,

que não pretende partir de nenhuma tese imposta, mas seguir o auto-movimento dos

conceitos, e expor, prescindindo por inteiro de toda transição designada desde fora, a

conseqüência imanente do pensamento em contínua progressão.177 Progressão que se situa

fora do evento e marca um laço sempre possível entre o conceito e a imagem. Por isso,

engendra-se no evento, representa-o, perde-se nele e o perde. O abandono do oscilar da

idéia viva e movente em luta contra a tensão da imagem à qual se vincula e da qual se

distancia.

A idéia é um personagem frágil, o conceito, uma mascara rígida demais para se haver

com o evento. Mas há um laço difícil de precisar, pois o navegar do conceito é tão pouco

preciso quanto o evento. Sua dinâmica construtiva não oferece apoio ao pensamento e,

embora pareça o contrário, não se presta a definições. Ambíguo e indefinível, o conceito

guarda um resto de tensão que herdou da imagem. Uma tensão que se apagou na moeda

gasta da categoria. Figura auto-acusatória desmembra-se e se recompõe sem nunca

repousar. Esta certeza compõe a trilha do diálogo que vacila na incerteza e se estrutura na

pobreza e na indigência.

Deve-se perguntar o porquê da ausência de introduções, transições, conclusões no

diálogo e a aparência de um inacabamento formal e material que, de fato, é apenas o revelar

conseqüente de um método que pretende seguir de perto o movimento auto-formativo e

dinâmico de seu próprio objeto: o conceito, que exibe a falência de sua representação

sempre a ponto de sucumbir. Uma imagem da autonomia do conceito em seu

desdobramento auto-referente?

Ao focalizarmos a forma dinâmica do diálogo e não, como se faz usualmente, as

diversas pendências que este encerra, poderemos ver nele uma alusão à dialética que se

estabelece entre imagem e conceito, sendo aquela o enquadramento dentro do qual a trama

176 Note-se que, no Mênon, Platão não exibe Sócrates a refutar um sofista conhecido como Górgias, mas a desmontar-lhe indiretamente as concepções mediante o exame de um jovem discípulo deste, jovem o suficiente para abandonar suas representações particulares e abandonar-se ao curso das oscilações dos conceitos. 177 cf.: GADAMER, Hans-Georg. La dialectica de Hegel: Cinco ensayos hermenêuticos. Traducción Manuel Garrido. Madrid: Catedra, 1988. P. 12

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dos eventos aparece como elementos particulares que somente assumem sentido no

contexto de suas articulações no interior de um plano global: a ficção da forma cria a

possibilidade das ficções conceituais assumirem seu significado relativo. A relação entre o

todo e as partes nos mostra que o diálogo não se organiza como uma estrutura, mas como

um fluxo no qual se antagonizam forças. Tais forças ocupam um mesmo plano: o discurso-

texto/escrito-oral e não nos remetem para nada além da dinâmica de sua própria relação.

Não se apresentam, neste sentido, categorias elaboradas no intuito organizar os fenômenos

em esquemas de compreensão, em torná-los dóceis ao dispositivo racional, em enquadrá-

los nos moldes de estruturas fixas. Parece que aqui Platão decide acompanhar o

desdobramento de conceitos, que não são categorias, mas construtos imagéticos sem função

referencial. Platão não era fenomenólogo. O processo de significação dos seus termos deve

ser depreendido da relação mútua entre as forças e não do isolamento das formas. Constrói-

se assim na forma global não uma arquitetura, mas uma dinâmica que impulsiona os signos.

Um pequeno resumo dos movimentos nos ajudará a ver.

A que nos leva a primeira tentativa de definição que Mênon dá da virtude? Nela

enumera-se uma variedade de virtudes, conforme a ação, conforme a idade, conforme o

trabalho, etc. Há uma virtude para cada tipo de pessoa e de comportamento moral. Mas o

que importa sublinhar é que, ao pedido de definição, Mênon respondeu com uma mera

descrição de fenômenos particulares que se poderiam multiplicar ad infinitum. No entanto,

não percebe que a questão apresentada é a de saber em função de que espécie de

similaridade conceitual todos os tipos podem ser vistos numa mesma imagem que os

englobe mantendo as diferenças e, ao mesmo tempo, estabelecendo as semelhanças. Qual a

forma da virtude que Menon não vê? Seria o mesmo que fazer uma figura do conjunto.

Coisa de que o interlocutor de Sócrates mostra-se incapaz. Segundo a fórmula heraclítica,

“sophón estin hén pánta eidénai” 178. Se imaginarmos uma percepção intelectual sem

fraturas que se articula no todo sem romper os liames dialógicos do que no visível aparece

como simples multiplicidade desconexa, então é possível figurar o conceito na imaginação

como complexo integrado das diferenças. Já aparece em Heráclito, portanto, aquilo que o

diálogo platônico persegue como estímulo pedagógico, forçando o jovem a romper suas

limitações ordinárias. O que significa superar um tipo de pensar a variedade sem sair da

178 “Sabedoria é traçar do todo uma figura”

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155

variedade, não formando dela uma imagem compreensível, apenas enumerando tipos que

podem se multiplicar ao infinito. Virtudes são várias, cumpre figurar no todo do conceito a

unidade das mesmas. O conceito: unidade na multiplicidade.

Numa segunda definição Mênon procede a uma falsa generalização. Não forma uma

imagem adequada do conjunto que mantenha sua complexidade e universalidade sem

perder seus traços singulares. Aqui, apenas o singular substitui o universal recortando no

todo uma parte que não o guarda em sua completude.

Sócrates busca uma analogia tentando o interlocutor a ver como se procede nas

ciências matemáticas: encontramos na geometria várias figuras: o círculo, o quadrado, o

triângulo, etc. Todos são chamados figuras. Pergunta-se, então: o que é a Figura? Esta

questão deve nos levar além da simples enumeração de particulares ou das falsas

generalizações. O que se procura, aqui, é uma imagem essencial, que nos mostre o que há

de comum a todos os particulares. A questão é: como se deve proceder para se alcançar um

conceito satisfatório, que abarque, numa imagem, todos os singulares, vale dizer, que se

eleve à generalidade sem perder a especificidade. É preciso aprender a formar do todo uma

imagem (pánta eidénai).

Interessante notar o fato de Sócrates ter se servido de um exemplo retirado da

geometria referindo-se por analogia às figuras geométricas. Apresenta-nos aqui um

emblema do proceder dialógico e, no interior do diálogo, uma imagem de sua própria

dinâmica construtiva. Pois, ao conceitualizar o que é figura, ele acaba nos dando uma

imagem do conceito, sugerindo um conceito da imagem. A imagem é bastante ilustrativa: a

figura é o limite de um sólido, o que lhe põe fim sem anulá-lo, vale dizer, o que permite a

visão intelectual de sua singularidade e dos nexos que o ligam a sua totalidade. A definição

é assim a possibilidade de uma visão da imagem que guarde no conceito a nervura

dinâmica do mundo permitindo ao pensamento figurá-la. Ao mesmo tempo nos sugere ver

o diálogo em seu todo, fazendo dele uma figura. Na matemática, inventa uma metáfora cuja

força alusiva nos remete ao proceder imagético-conceitual que particularmente se persegue

nesta parte do diálogo e à necessidade de imaginar o inteiro do texto, figurando suas

articulações.

Um proceder equivocado seria tentar buscar aquilo que o texto não se propõe a

fornecer: uma definição da virtude ou uma resposta sobre se ela pode ou não ser ensinada.

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156

No vai e vem de seu movimento crítico, tudo o que não sobra é alguma unidade formal

estática e linear na qual uma questão é objetivamente respondida. A questão não é

respondida, porque não interessa respondê-la. Na dinâmica do estilo dialético cumpre

educar o pensamento a romper os limites do meramente organizável em categorias e

dispostos em sistemas. As constantes mudanças de direção do diálogo e o seu inacabamento

formal nos apontam para o fato de que aqui não se persegue definir, mas representar o

drama do pensamento em diálogo consigo mesmo no interior da imagem.

Numa terceira tentativa de definir Mênon recai na “pluralidade abstrata” e na

generalização, pois diz que virtude é ser capaz de conseguir o bem com justiça, e a justiça é

uma parte da virtude. Procura definir, portanto, a virtude tomando por base da definição

apenas uma de suas partes e não a virtude como tal. Ora, dizer que virtude é o que se faz

com uma parte da virtude é pressupor que já se sabe, de antemão, o que ela é. No entanto, o

que se procura aqui é ver intelectualmente a virtude, ideá-la, ou seja, imaginar o que ela é.

Após todas essas voltas, encontramo-nos ainda no mesmo lugar, e uma pergunta

ainda se impõe: o que é a virtude? Não se responde. Não era para ser respondida. Não

obstante, no labirinto circular e vertiginosos do movimento dialógico do texto não nos

devemos perder. O que importa ver é a própria constituição do texto em seu movimento. A

reuni-lo percebemos que ele constantemente gira em torno de questões postas para

confundir o interlocutor: a definição da virtude não importa. Não importa definir porque o

definir não tem fim. Importa ver, salvar na dialógica complexa dos signos uma figura do

pensamento e de suas determinações moventes e delas fazer uma imagem: salvar no

universal a dinâmica dos singulares em suas relações complexas.

Para responder a questão acerca da possibilidade da virtude ser ensinada, no entanto,

Sócrates adotará um método tirado da matemática: o método hipotético. Isto porque, como

ele mesmo diz, está a procurar uma coisa sem antes saber o que ela é, sem defini-la. Na

imprecisão do trajeto há que se adotar um método igualmente impreciso.

A hipótese de que deverá partir é a seguinte: se a virtude for uma ciência, poderá ser

ensinada; do contrário, não. Deve-se procurar, então, saber se a virtude é ou não uma

ciência. Ora, mais uma dificuldade. Multiplica-se o problema, acentua-se a indefinição.

Será que ainda não percebemos o jogo? A ironia escondida por detrás da busca matemática

pela definição da virtude? A questão inicial é apenas uma máscara que o filósofo usa para

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157

esconder do leitor desatento – não educado nos movimentos desnorteadores da dialética –

que o que ele persegue está escondido atrás do que ele mostra. Se tomarmos distância e

vermos os desdobramentos do diálogo compreendemos que ele se move de maneira circular

e desconcertante, que ele se compõe em sua permanente desconstrução, que o que é preciso

ver é a imagem do todo, desse construir desconstruindo no final do qual sobram apenas os

movimentos e as articulações. As tensões dinâmicas da imagem. Ela nos diz alguma coisa

se a vermos. Relembremos Heráclito: “Sabedoria é ver a imagem do conjunto”.

Podemos afirmar que a virtude deve ser a razão e que por isso pode ser ensinada?

Não sem antes notarmos o seguinte: se a virtude é uma espécie de ciência, para que ela

possa ser ensinada, então, cumpre haver mestres que ensinem e alunos que, aprendam. O

problema é conduzido para o âmbito da práxis. Mas ali não encontramos indivíduos

conduzindo-se de maneira muito diversa suas ações igualmente diversas? O que importa

para a compreensão a verificação prática daquilo que se espera compreender a fim de

nortear a prática? Circula-se novamente e não saímos ainda do lugar: pois, como Sócrates

diz ter verificado, através de vários exemplos fatuais, não há mestres de virtude. Conclui-se

com isso que a virtude não é uma ciência e que ela não pode ser ensinada. Mas os fatos

singulares não explicam, eles é que esperam ser explicados. O interlocutor é jogado para o

lugar de onde tinha partido.

No entanto, devemos forçosamente admitir que a virtude é reconhecidamente boa, e

que existem, de fato, muitos homens que agem virtuosamente. Devemos, então, fazer aqui

uma distinção: há duas coisas capazes de nos guiar retamente. Uma delas é a ciência a outra

a opinião correta. Como a virtude não pode ser ensinada ela não é uma ciência. Por isso,

não foi pela ciência que os bons homens públicos se fizeram e por não se terem formado

através da ciência não conseguiram transmitir aos outros o que foram.

Assim, conclui-se que os bons homens públicos governam os estados não pela

ciência, mas pela opinião correta, isto é, eles dizem muita coisa verdadeira e agem

corretamente, no entanto sem saber, pois suas opiniões não são atadas racionalmente, de

maneira causal, e encadeadas de modo a se transformarem em ciência. Tal como os poetas,

os políticos fazem grandes coisas e discursam bem não pela intervenção da inteligência,

mas pela inspiração, ou melhor, graças ao contato direto que têm com a divindade.

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158

Portanto, a virtude não é dádiva que se receba por obra da natureza, nem coisa que

possa ser ensinada, mas é por graça divina e não pela intervenção da inteligência.

Logrou-se com isto uma compreensão satisfatória do que seja a virtude e se ela pode

se ensinada? Sócrates responde:

Assim, pois, meu excelente Mênon segundo o nosso raciocínio, a virtude nos pareceu resultar, naqueles em quem se encontra de um exclusivo favor divino. Só podemos compreendê-la bem quando procurarmos antes de tudo, não como os homens a adquirem, mas o que ela é. 179

Mas o que é a virtude, ela pode ser apreendida? O diálogo fecha da mesma maneira

que abriu: com a mesma pergunta e sem esperar por uma resposta. Não devemos procurar

em vão a resposta, mas ver na trama dialógica dos conceitos as tensões guardadas na

imagem.

Há que se atentar aqui para duas distinções importantes. Em primeiro lugar não se pode

perder de vista que o diálogo, vale dizer, o médium ao qual recorre Platão para representar o

drama de seus conceitos, enunciados e articulações lingüísticas não é um tratado ou um

texto dissertativo, mas algo vivo cuja dimensão performática não foi notada pelos críticos.

Um diálogo não é a reprodução de um fato, mas um evento lingüístico que se articula como

construção simbólica organizando-se não segundo uma lógica formal precisa, senão como

um vai e vem de teses e hipóteses que se afrontam no contexto dinâmico do texto: uma

forma de vida artificial que imita o contexto de uma forma de vida real sem ocupar-se em

reproduzi-la, mas recriá-la em um nível sintático e semântico referentes a um plano análogo

ao do evento: o discurso oral, ele mesmo um evento.

As proposições e os conceitos sempre se apresentam a nós sob forma empírica. Eles

situam-se também no âmbito dos fenômenos que afiguram. A linguagem possui natureza

ontológica antes de ser artificialmente categorizada como lógica. Desta forma, seus signos

são artifícios construídos como forma de articulação de uma ordem própria que retira de

suas próprias leis o seu sentido. São forças que se auto-regulam no contexto de sua relação

e o diálogo é uma relação de construtos lingüísticos que se movem na dinâmica agonística

179 PLATÃO, Mênon. Tradução Maura Iglésias. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Loyola, 2001. P111.

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159

da discussão formando um tecido eventual de discurso que resgata a potência do

acontecimento ao mesmo tempo em que guarda a pluralidade, a multivocidade e a

imprecisão do jogo oral.

É componente essencial à conversação a imprecisão, a incerteza e o acaso. Num

verdadeiro diálogo o vai e vem das hipóteses e opiniões constituem linhas de fuga de uma

situação que não é nunca sistemática nem conclusiva. Um diálogo é como um caos

ordenado. Nele, os esforços conclusivos são constantemente superados em novas hipóteses

que se tornam novos pontos de apoio, como observamos no Mênon, a posteriores

“conclusões inconclusivas”.

Os pontos de partida são aquilo que Aristóteles denominou endoxa, opiniões comumente

aceitas que devem ser depuradas e verificadas no interior do diálogo. A partir de uma

situação presente não se procede a uma demonstração apodítica e sim a criação de

problemas e obstáculos geradores de novos problemas. O plano geral desenha linhas de

força coordenadas por uma potência central dialogante que as movimenta e incita

constantemente a quebrarem a inércia na qual tendem a permanecer se não forem

estimuladas. Quem espera de um diálogo uma dedução lógica de conceitos univocamente

definidos resultante numa verdade final depurada pelo exercício sistemático do raciocínio

espera dele aquilo que ele não propõe. Forçosamente o deforma de acordo com suas falsas

expectativas. O que a imagem do diálogo contém? Uma trama não linear e dinâmica de

conceitos que são dispostos num jogo irônico de máscaras em que as posições são

assumidas e abandonadas, pré-concepções aceitas e refutadas, definições assumidas como

verdade para então revelarem-se parciais e insuficientes ou contraditórias, opiniões

admitidas e elevadas no jogo das oposições até se dissiparem no redemoinho que as traga.

Um diálogo é uma performance dramática na qual a linguagem em jogo consigo mesma

realiza ações mais do que demonstra teses. O diálogo platônico realiza a filosofia como

experiência literária.

Um diálogo, recorrendo a um conceito da filosofia analítica anglo-saxã, do último

Wittgenstein a John L. Austin, é um “ato de fala”. Como tal, cada diálogo deve ser

entendido enquanto linguagem falada, uma performance, uma discussão em

desenvolvimento. Portanto, eles devem ser interpretados não apenas em consideração ao

significado locucionário e objetivo de seus conceitos e enunciados, mas, primeiramente,

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160

com relação aos significados ilocucionários e perlocucionários que contêm. Em cada caso,

o do Menon, do Lisis ou do Fédon, por exemplo, estamos diante de uma situação específica

na qual Sócrates fala a indivíduos que possuem assuntos particulares e que, sendo quem são

e tendo as perspectivas que têm, definem os horizontes daquilo que Platão quer dizer e

pode dizer. Vale ressaltar que, sob este ponto de vista, significa uma coisa tentar encontrar

as falhas óbvias na lógica dedutiva dos argumentos de Sócrates – faltas das quais Platão

estava bem consciente e com as quais confronta deliberadamente o leitor, forçando-o a uma

posição dialógica ativa – e significa outra coisa muito diferente perceber o efeito

pedagógico daquilo que Sócrates diz. Em uma discussão viva, Platão nos mostra, não

procedemos more geométrico; ao contrário, movemo-nos para diante e para trás, muitas

vezes ilogicamente, de um aspecto ao outro, dentro de um dado contexto ou situação que

define os limites do que se pode dizer um ao outro interlocutor.

A forma imagética que conceitualizamos como horizonte do texto é um ponto

fundamental a se entender quando se pretende ler um diálogo platônico como ele parece

exigir que o leiamos: como discussão viva que suprassume no escrito o oral, no filosófico o

literário colocando frente a frente conceitos e proposições no interior da dinâmica da

imagem.

Na forma viva do diálogo as ficções conceituais são eventualizadas: transformadas em

ações e relações de forças atualizadas pela leitura, vale dizer, perpetuamente oralizadas.

Palavras são eventos diferentes, mas não opostos às coisas. Não significam coisas, mas elas

e as coisas possuem vasos comunicantes através dos quais passam uma à outra o seu

sentido. O livro seminal de Austin no qual ele introduz a teoria dos speech acts não recebeu

o curioso, porém ilustrativo, título de How to do Things with Words ?

Em segundo lugar, a perspectiva adotada por uma leitura idealista de Platão tendeu a

interpretar erroneamente suas construções conceituais como representações no interior das

quais se distinguem o objeto representado do signo representante. Uma dualidade entre a

palavra que intenciona um objeto mental que é o seu significado. Este tipo de dissociação

não ocorre no contexto histórico da sociedade grega clássica em que a exterioridade e a

interioridade não diferiam em natureza. O primeiro abalo histórico que produziu na vida

social do grego uma separação entre as esferas da vida política e da representação, do

indivíduo e da cidade, do cidadão e do Estado, rompendo com aquela “bela totalidade

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consigo” que caracterizou, segundo Hegel, a idade clássica na Grécia, foi produzido pela

conquista das cidades-estados por Alexandre, cuja morte marca o período helenístico:

época em que as mutações históricas ligadas à conquista das cidades gregas pela

Macedônia separam o cidadão da comunidade visível e inclusiva na qual ele se sentia em

casa dispersando-o no horizonte inapreensível da cosmópolis. Uma fuga para a

interioridade como resposta à perda da unidade marca a clivagem desde a qual o indivíduo

passa a se sentir um cosmopolites, vale dizer, uma partícula do nada. O mundo não se

apresenta mais como totalidade na qual ele se insere e que se reflete em planos inclusivos

do cosmos ao indivíduo, passando pela cidade. Havia um mesmo plano de significação para

os eventos: naturais, humanos e culturais. As palavras e os eventos, antes da cisão, não

poderiam se apresentar à consciência filosófico-literária senão como regiões distintas de um

mesmo acontecimento. Ficamos assim fora do âmbito da distinção fenomenológica.

Deleuze nos ajudou a expressar melhor o que compreendemos. Mostrou que no interior

do conceito debatem antagonismos. Posições que pretendem realizá-lo reivindicando o

estatuto que ele põe. O caso dos rivais ou pretendentes que articulam à multiplicidade do

real as múltiplas solicitações da idéia.

O platonismo aparece como doutrina seletiva, seleção dos pretendentes, dos rivais. Toda coisa ou todo ser pretendem certas qualidades. Trata-se de julgar da pertinência ou da legitimidade das pretensões. A Idéia é colocada por Platão como aquilo que possui uma qualidade em primeiro lugar (necessária e universalmente); ela deverá permitir, graças a algumas provas, determinar aquilo que possui a qualidade em segundo lugar, em terceiro, conforme a natureza da participação. Tal é a doutrina do juízo. O pretendente legítimo é o participante, aquele que possui em segundo lugar, aquele cuja pretensão é validada pela Idéia. O platonismo é a Odisséia filosófica que se prolonga no neoplatonismo. Ora, ele afronta a sofística como seu inimigo, mas também como seu limite e seu duplo: por pretender tudo ou qualquer coisa, o sofista corre sério risco de confundir a seleção, de perverter o juízo. Esse problema tem sua fonte na cidade. Por recusarem qualquer transcendência imperial bárbara, as sociedades gregas, as cidades (mesmo no caso das tiranias) formam campos de imanência. Estes são preenchidos, povoados por sociedades de amigos, isto é, rivais livres, cujas pretensões entram a cada vez num agôn de emulação e se exercem nos domínios mais diversos: amor, atletismo, política, magistraturas. (...)180 (grifos meus)

180 DELEUZE, G. Critica e Clinica. Tradução Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997. P. 154.

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162

Não concordamos integralmente com Deleuze, posto que ele ainda busca um

referencial tradicional para a interpretação da função das hipóteses e das idéias no âmbito

da filosofia platônica. Ainda não consegue ler Platão sem desvinculá-lo do recorte

neoplatônico e cristão que buscou no indefinível da imagem o invisível do conceito e os

elevou ao plano da transcendência, lugar que não é garantia de Platão ter visitado com

convicção dogmática. Não existe sequer um acordo sobre o estatuto das idéias e se Platão

confiava dogmaticamente em seus construtos ou se os tratava como artifícios. O filosofar

como empreendimento inacabado e consciente de sua impossibilidade de chegar a termo –

por isso filia tes sophia e não sophia – impede a interpretação de se dirigir ao texto

platônico como tratado e às suas hipóteses como dogma. Mas há aqui um inequívoco

avanço, uma vez que nos permite pensar a idéia não mais como uma forma destituída de

complexidade, um esquema categorial simples, mas como um paradigma que força a

ordenação de um campo de imanência a partir da imagem que cria: um campo de tensão em

que se combatem forças múltiplas e moventes. A idéia torna-se modelo que interfere na

vida na medida em que participa da complexidade desta vida e requisita, no âmbito

agonístico dos pretendentes, justificação a partir do movimento que se multiplica nela e

naquilo que ela acena.

O movimento dialógico da agonística dos pretendentes é percebido por Deleuze no

mesmo momento em que ele demole o que podia ser um caminho original na obrigação de

pensar a diferença no contexto da semelhança. Lendo o diálogo não vemos nenhuma

obrigação de transcender; ao contrário, uma incitação permanente a permanecer no plano

do jogo entre os conceitos que configuram a imagem: ampla, diferenciada e agônica nas

tensões que mantém entre os singulares na dinâmica do inteiro.

O diálogo é como um corte instantâneo operado num fluxo do qual não se conhece o

princípio nem o fim. A rigidez de uma posição inicial é quebrada e levada a um

desdobramento processual cuja própria obra reflete em sua dinâmica estrutural. Um

desdobramento que não chega a termo quando finda, mas que se resolve no interior de seu

próprio inacabamento: tudo interioridade orgânica e interdeterminação circular. Assim, há

uma simetria especular entre o aparente acabamento formal de Mênon e o seu

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163

inacabamento substancial revelado, e o aparente inacabamento formal do diálogo em seu

caminhar progressivo e a percepção de seu acabamento essencial.

A abertura e imaturidade “em vias de” da juventude do interlocutor real - o que o

possibilita a entregar-se fielmente ao experimentalismo da dialética socrática - espelha-se

na abertura e no dinamismo estrutural do diálogo ( sua “imaturidade”) em seu amadurecer

progressivo. No diálogo o pensamento educa-se a si mesmo, vale dizer, amadurece

organicamente, juntamente com a educação e amadurecimento de Mênon: um personagem

em processo dentro de uma obra em processo. A obra forma-se a partir de um tipo de

espelhamento no qual a posição do indivíduo é captada e levada para dentro de sua

estrutura condicionado-a. A aparente imaturidade e inacabamento formal é apenas o refletir

do inacabamento e imaturidade de seu personagem. Personagem que não é alguém real,

mas possível, se pudermos usar aqui uma categoria aristotélica.

Não há para Platão um gênero que abarque todas as possibilidades e sim a adequação do

real ao possível, do conteúdo à forma. A formação do diálogo depende inteiramente da

situação presente de seus interlocutores e aquele que dá nome ao diálogo geralmente define

a démarche do mesmo. O personagem em formação, Mênon, define assim a estrutura de

uma obra em formação: carente de introdução, de definição de tipos, de acabamento

aparente e de fim. Não uma obra aporética, apenas uma dinâmica adequada ao seu assunto.

O movimento do pensamento em autoformação dialógica dentro do qual os conceitos

afiguram no conjunto a imagem e a compõem como realidade viva de interconexões entre

singularidades moventes.

Se desdobrarmos a obra na direção do fruir poético da leitura, o mesmo jogo de espelhos

e simetrias ocorre uma vez que, parodiando Thomas Szlezák, Platão vai construindo a

personagem como uma provocação endereçada ao leitor futuro - a todos nós nos quais

habita, mesmo que potencialmente - um Mênon.181 O personagem é, assim, palavra e

exemplo que se projeta para fora do diálogo. Digamos que se oraliza constantemente no

diálogo que estabelece com o leitor e na proximidade que resgata em relação à vida.

Sócrates é aquele que não escreve, aquele para quem a palavra não se desvinculava da ação

e do evento. Em Sócrates não se operava a cisão. Platão escolhe bem o seu protagonista.

181 cf.: SZLEZÁK, Thomas. Comme leggere Platone: Um nuovo cânone per affrontare gli scritti platonici. Traduzione di Nicoletta Scotti. Milano: Rusconi, 1991. A propósito das condições individuais para a recepção da filosofia.

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164

Vale uma citação integral de uma passagem da obra Os mitos platônicos de Geneviève

Droz:

Mas o mito é também, de maneira inconteste, direta ou indiretamente, uma homenagem prestada ao Mestre, aquele que nunca escreveu e para quem logos significava efetivamente, ao mesmo tempo e sem possibilidade de separação, razão e palavra. É que, para Sócrates, a busca da verdade não poderia se encerrar num texto inerte, indiferente ao parceiro e fechado sobre sua própria substância. A pesquisa, à semelhança da própria vida, é partilha, conflito, aportes mútuos e perpétua mudança. Permanece aberta à indagação, à crítica, à polêmica ou à aporia. Adapta-se ao interlocutor, dialoga e vive a dois. Até mesmo os “diálogos” de Platão, que, sem dúvida, fixam a palavra viva de Sócrates, contornam os riscos do texto escrito imitando o ritmo hesitante do pensamento que nasce e que se permuta. Certamente, Platão pressentiu como um risco, ou simplesmente sentiu, como Merleau-Ponty vinte séculos depois, que a filosofia posta em livros deixaria de “interpelar os homens”... 182 (grifos nossos)

Palavras ilustrativas: “a busca da verdade não se poderia encerrar num texto inerte,

indiferente ao parceiro e fechado sobre sua própria substância. A pesquisa, à semelhança

com a vida é partilha, conflito, aportes mútuos e perpétua mudança. Permanece aberta à

indagação, à crítica à polemica ou à aporia. Adapta-se ao interlocutor dialoga e vive a

dois”. Esse viver a dois que se multiplica em muitos e nos muitos guarda a unidade da

composição; ela mesma não objeto inerte nem estático; algo movente como os eventos que

constitui e a constituem no perpétuo diálogo que nos solicita.

Ver o conjunto. Quem deixou de ver que a imposição da totalidade implica na recusa do

recorte, das divisões dos planos e camadas, nas distinções absolutas e absolutamente vazias.

Como aquele que opõe o filósofo ao poeta e não vê o respeito que Platão dedica a este

último. Como por exemplo:

“SÓCRATES: Sim. Ouvi homens e mulheres sábios nas coisas divinas... MÉNON: O que diziam? SÓCRATES: Coisas verdadeiras, na minha opinião, e belas. MÉNON: Que coisas? E quem são eles?

182 DROZ, G. Os Mitos platônicos. Tradução Maria Auxiliadora Ribeiro Keneipp. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. P. 171.

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165

SÓCRATES: São sacerdotes e sacerdotisas esforçando-se por justificar as funções que exercem; são, ainda, Píndaro e numerosos outros poetas, todos aqueles que são, realmente divinos. E eis o que dizem: verifica se a linguagem deles te parece justa.” 183 (grifos nossos)

Hölderlin confirma o respeito não disjuntivo pela poesia em poucas linhas nas quais

medita sobre Sócrates como um apaixonado:

“Quem pensou mais profundo vive mais pleno Quem conheceu a vida compreende a máxima virtude E o sábio, ao final, Inclina-se muitas vezes para a beleza.” 184

Em nossa proposta de pensar sem o preto e branco das oposições, sem a insegurança

das generalizações e sem a impotência dos recortes e reduções acabamos por perceber que

este jogo que recusamos é um jogo pobre que não interessa a mais ninguém. Inércia da

tradição que invade a preguiça dos que se acomodam ao já feito. Separar não quer dizer

acertar e muitas vezes o correto está nas intercessões. Lesley Chamberlain nos fornece a

medida do mal-entendido que consistiu em separar a arte da filosofia, a imaginação do

conceito:

Sobre Nietzsche, o filósofo guerreiro que execrou Wagner, e sobre Platão, o filósofo despótico que “baniu os artistas”, tem havido muitos mal-entendidos. Ambos compreenderam com excepcional clareza o poder da imaginação e da arte. Mas o que eles como filósofos queriam para as pessoas se situa além da arte; e estavam preparados, ao menos em teoria, para sacrificar a arte a esse objetivo. Eles permaneceram artistas. Quem estava lá para censurá-los? 185

E numa passagem de rara beleza sobre Nietzsche ilustra:

183 PLATÃO. Mênon. Texto estabelecido e anotado por John Burnet. Tradução de Maura Iglésias. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Loyola, 2001. 81a – 81d. 184 Citado por CHAMBERLAIN, Lesley. Nietzsche em Turim: o fim do futuro. Tradução de Pedro Jorgensen Jr. – Rio de Janeiro: DIFEL, 2000. p.206. 185 CHAMBERLAIN, Lesley. Nietzsche em Turim: o fim do futuro. Tradução de Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: DIFEL, 2000. P. 90

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166

Nietzsche, como um pintor das palavras e um filosófico conjurador de imagens, é um primitivista e um expressionista. Somente nós, os de fora, comentaristas tardios, é que poderíamos vê-lo como um sonhador e vítima a la Friedrich. Nietzsche voltou-se para a cor e para a música devido a uma resposta adequada à morte de Deus. A cor substituiu o sentido e o significado. Cor e música eram o que a vida tinha para oferecer. A visão trágica original.186

A visão trágica sobrevive da tensão dos opostos e da multiplicidade da afirmação da vida.

Quanto de trágico há nos diálogos de Platão? Não como representação de um embate entre

o homem e seu destino, mas como salvação da tensão dionisíaca do múltiplo na vitalidade

apolínea do texto. Somos nós que fazemos do texto movente palidez inerte. Nós o fixamos.

Ele não se congela no escrito. É imaturo e aberto ao diálogo que ele mesmo realiza, como o

jovem Mênon. Dialogamos ou não com ele: depende se sabemos figurá-lo ou não na

imagem.

5.2. A imagem como símbolo: o artífice do indiscernível e a potência do nada

I Dwell in Possibility A fairer House than Prose –

More numerous of Windows – Superior – for Doors 187

Emily Dickinson

Situada no início do Livro VII da República, a Imagem da Caverna liga-se à temática

estabelecida no livro VI, articulando-se com a “analogia da linha dividida”, e, no interior da

186 CHAMBERLAIN, Lesley. Nietzsche em Turim: o fim do futuro. Tradução de Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: DIFEL, 2000. P.99. 187 Resido na Possibilidade Lar mais justo que a Prosa – De janelas mais numerosas – Superior – para Portas.

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167

própria Imagem da Caverna, apresenta o elemento final da tríade: “a alegoria do sol”.

Assim, no centro da República, ao final do livro VI e início do VII, Platão insere um

esquema trinitário que apresenta, de modo simbólico-analógico, o eixo de sustentação de

sua obra: sua ontologia e sua gnosiologia. Tal interconexão é aceita, por exemplo, por J. E.

Raven, Plato´s Thought in the Making, que afirma:

As três grandes alegorias da República VI e VII não são três todos relacionados mas independentes, como os três quadros de um tríptico; são antes três partes complementares e interdependentes de um só todo, com os três pés de uma trípode. Juntos constroem a base metafísica e currículo da educação superior em Platão. 188

Mas a Imagem da Caverna, e suas interconexões com as duas alegorias, possui uma

abrangência maior e uma importância fundamental para o entendimento da maneira pela

qual Platão consegue, através da imagem, ultrapassar os limites do discurso conceitual. Na

imagem da caverna temos o jogo dos conceitos, que acompanhamos no Mênon,

concentrado ao máximo num símbolo de densidade excepcional. Nele, Platão realiza o

máximo de abrangência semântica num mínimo de espaço sintático. Consegue organizar

uma imagem densamente povoada de conceitos, metáforas e alusões que resolve no

símbolo o problema da expressão de conteúdos complexos e abrangentes sem reduzi-los a

um sistema de categorias nem anulá-los em determinações vazias.

Na imagem da caverna, o sentido é algo que não se dá imediatamente no narrado, mas

além dele, apresentando-se como um “agregado difuso”. Na função simbólica da imagem

há um tipo de auto-referência, uma circularidade estabelecida na tensão entre o conteúdo e

a dinâmica da forma. O texto diz mais do que aparece em sua apresentação imediata,

convida o leitor a ultrapassar, a transcender na imanência sua presença buscando articular

pela leitura aquilo que nele é sugerido pelo estímulo do símbolo compacto. Refiro-me aqui

a algo parecido com aquilo que Deleuze percebeu na fórmula pronunciada insistentemente

pelo escrivão Bartleby de Melville. Uma espécie de suspensão do julgamento mediante a

construção agramatical de uma fórmula que se sustenta na tensão estabelecida entre o

enunciado e o conteúdo da enunciação. Com isto os atos lingüísticos são desligados de

referência imediata às coisas. Ao dizer I would prefer not to Bartleby introduz dois termos,

188 RAVEN, J. E. Plato’s thought in the Making. Cambridge: Cambridge University Press, 1965. P. 175.

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o não-preferido e o preferível, confundindo-os e conduzindo-os a uma zona de

indiscernibilidade, em que ambos se anulam reciprocamente numa neutralidade de ação.

Bartleby não recusa nem aceita, na sua “resistência passiva”, torna indistintos os termos da

enunciação, impossibilita a ação e esgota a linguagem, introduzindo o neutro.

O símbolo instaura uma potência de significação que não omite nem reduz, mas

acena naquilo que significa. Mediante o símbolo, ao agregado concentrado de significados,

é possível manter em suspenso a oralidade e deixar ao leitor futuro a decisão de reconduzi-

la ao seu lugar: um “lugar nenhum”.

Ao me aproximar do símbolo procuro, portanto, ressaltar aquilo que se descurou na

leitura platônica. Não a reduzir a uma única dimensão, mas perceber qual a dimensão de

seus significantes que permite a concentração do máximo de significado. Entramos aqui no

campo da ambivalência e da indecidibilidade. Isto para não trair algo marcante em Platão: o

afã pantonômico de sua visão de conjunto que caracteriza a démarche filosófica como um

permanente exercício de um ato criador que não se furta a complexidade e a tensão daquilo

que sua formulação quer representar.

Derrida identifica num termo, o pharmakon usado no Fedro, a polissemia regular que

por um desvio, indeterminação ou sobredeterminação, mas sem o erro de tradução que

suprimiu sua tensão, permitiu significar o mesmo termo “remédio”, “receita”, “veneno”,

“droga”, “filtro” etc. Por causa dessa capacidade, observa Derrida, pharmakon é, antes e,

sobretudo, poderoso porque ambíguo e ambíguo porque poderoso. Imagem simbólica que

guarda em si conteúdos díspares consumindo nele e suprimindo a oposição – a própria

possibilidade de oposição.

Na mesma direção aponta este pequeno trecho de “O Sofista”:

Estrangeiro – De fato, meu amigo, não só é incorreto tentar separar tudo de tudo, mas é típico de um homem completamente privado do dom das musas e ignorante da filosofia. Teeteto – Por quê? Estrangeiro – Dissociar cada coisa de todas as outras coisas é o modo mais radical de aniquilar todo discurso (logos). Oa verdade, é da ligação mútua entre as formas que nasce o nosso discurso “.189 (Platão, Sofista, 259 E).

189 PLATÃO. O Sofista. Tradução Jorge Paleikat. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1978. P. 182.

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Seria, portanto, mais do que justo operar uma análise que procura situar-se no âmbito

de uma problemática e no rumo de um procedimento justificado e postulado pelo próprio

autor.

Acreditamos ser possível recuperar na imagem a potência simbólica do mito e da

metáfora no platonismo em sua dimensão mais ampla e em todo o vigor de sua tensão

essencial. Nossa análise, partindo do símbolo e de suas valências, pretende dimensionar o

significado verdadeiro da atividade filosófica em Platão representando-a por aquilo que ela

efetivamente é: não uma forma de escrita que, mediante o discurso conceitual põe a

possibilidade da filosofia em contraste com as oscilações e incertezas da oralidade, nem

tampouco como atividade essencialmente oral que usa do recurso escrito apenas como

auxílio à memória e registro de coisas de menor importância, mas como resgate da

dimensão dialógica e viva da oralidade no plano formal da escritura. Como experiência

literária que pode superar, através construção imagética, as dicotomias nas quais a

linguagem categorial se enreda. A Imagem que traz para dentro do escrito as tensões e

oscilações do mundo enquanto experiência trágica: multiplicidade, contradição e palavra

viva. A filosofia como liertura.

5.2.1. Símbolo

“Durante o delírio caíram-lhe do tirador algumas moedas e um cone reluzente, do diâmetro de um dado. Em vão um menino tentou recolher esse cone. Apenas um homem mal conseguiu levantá-lo. Peguei-o na palma da mão por alguns minutos: lembro-me de que seu peso era intolerável e que, depois de retirado o cone, persistiu a opressão. Também me lembro do preciso círculo que me gravou na carne. Essa evidência de um objeto muito pequeno e ao mesmo tempo pesadíssimo deixava a impressão desagradável de asco e de medo.”190

Jorge Luis Borges, Tlön, Uqbar, Orbis Tertius

O que é o símbolo? Muitas coisas. Circulemos algumas. Conforme aponta René

Alleau,

o primeiro sentido grego é topológico. É o de súmbola, que encontramos em Pausânias (VIII, 54). Designa a “assembléia das

190 BORGES, J. L. Ficções; prefácio David Arrigucci Jr. tradução Carlos Nejar. São Paulo: Globo, 1995. p.44.

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águas”, o lugar onde elas se precipitam e se reúnem. Este sentido verbal de sumbállein, essencialmente dinâmico, é utilizado com o mesmo significado desde Homero. Chamava-se, por exemplo, Súmbola a uma localidade situada no limite da lacônia e do território de Tegeu, porque naquele lugar se reuniam vários cursos de água. Súmbola era também termo técnico da navegação grega. Chamava-se súmbola à parte central da verga porque as duas metades desta, uma vez juntas (sumbállein) , sobrepõem-se no cimo do mastro, sendo nessa altura ligadas por correias. 191

Em ambos os casos, o sentido concreto, natural e dinâmico de verbo é bastante claro.

Evoca um movimento que “junta” ou “reúne” elementos e aspectos à primeira vista

separados uns dos outros, mas que formam uma unidade na trama compacta de suas

relações. Aliás, o verbo sumbállein apresenta em primeiro lugar um uso transitivo: “lançar

ou atar em conjunto, pôr em conjunto”, daí “aproximar” e, por extensão, estabelecer liames,

relações que fundam a possibilidade da troca de palavras e, portanto, do próprio discurso.

Em Platão na República sumbállein sumboláia prós allélous (425C).192 No Crátilo Platão

usa: sumbállein kresmón no sentido de “interpretar um oráculo”, vale dizer, determinar

mediante um processo de diferenciação aquilo que o símbolo agrega em sua forma sintética

de apresentação. Tornar discurso o que o símbolo apresenta; trazer à tona o conteúdo da

representação, conteúdo que a excede e que ela, em sua forma peculiar, agrega.

O símbolo convertido em processo de pensamento e discurso, efetivado e oralizado

pela leitura, torna-se filosofia (logos). Não há, portanto, isolamento dos planos,

ontológico/gnosiológico, oral/escrito, pensamento/linguagem, educação/jogo, mas reunião

poliédrica e polissêmica que caracteriza a dinâmica do símbolo no interior do discurso

imagético platônico.

O símbolo, que é uma das potências da imagem, concentra em si significados

díspares e tensões que supera em sua forma dinâmica de apresentação. O que percebemos

na arquitetura dinâmica do texto dialógico, a partir de uma leitura do Mênon, a imagem-

símbolo da Caverna realiza como objeto singular que, não obstante, figura o conjunto. Na

trama dialética do todo analisamos a dinâmica dos conceitos povoando a imagem; agora

191 ALLEAU, René. A Ciência dos Símbolos. Tradução Isabel Braga. Lisboa: Edições 70, 2001. P. 29. 192 A expressão pode ser traduzida em Platão com o sentido de “trocar palavras com outro”. Carrega já uma potência explicitada na dinâmica dos diálogos em que as palavras trocadas são encontros entre vertentes que se cruzam, se ajuntam numa unidade multivocal.

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171

procuramos ver na singularidade de uma construção particular, no valor simbólico de uma

imagem específica, a força agregadora e dinâmica do símbolo.

Em uma “imagem” a realidade é apresentada como ordem cuja hierarquia das

determinações dispõe-se segundo um arranjo estruturado em graus ontológicos que se

interconectam e se determinam mutuamente. Conforme a visão sinótica de Platão,

recuperada mais tarde em seu significado mais profundo por Aristóteles, na teleologia das

formas do mundo há sempre presente a tendência das formas inferiores para ascender às

formas superiores; tendência esta mediante a qual cada forma inferior só encontra

realização na forma imediatamente superior a ela que, de certo modo, lhe completa. Assim,

esta tendência apresenta-se de tal modo que a forma inferior é sempre incompleta em si

mesma e só se realiza na superior: a “matéria específica” acha a sua plenitude (teleíosis) no

synólon configurado (concretum), quer dizer, no “corpo físico”, este, por sua vez, acha a

sua no organismo; o “organismo” no ser vivo animado; o ser vivo na racionalidade

(homem); o homem na felicidade moral; a felicidade moral na comunidade política justa.

Os graus não se excluem, mas se completam. Isolados nada são ou significam; articulados

compõem uma teia circular cujo trabalho realiza a unidade dos planos: o do ser e o da

expressão. Mais uma vez: filosofia e literatura.

É exatamente essas dimensões plurifacéticas e polivalentes do ser que a Imagem da

Caverna guarda e apresenta numa visão sinótica, tornando-se um verdadeiro emblema do

modo de proceder da filosofia platônica. Afirmamos que ela é um mito central não só

porque resume o pensamento platônico em sua totalidade, mas, fundamentalmente, porque

ao fazê-lo o faz de tal modo que exemplifica aquilo que propõe e realiza em si mesmo o

que significa. O mito em seu conjunto é um exercício insuperável de unidade e

organicidade que somente podem ser alcançadas mediante um hábil uso da função

simbólica da linguagem. O filosófico só se realiza no literário.

Há um campo de possíveis que o símbolo agrega no texto imagético, um “potencial

gerativo” do narrado cuja amplitude compactada no espaço concentrado da figuração não

nos permite reduzi-lo a uma estrutura de categorias fixas numa arquitetura imóvel. Para

fazer justiça ao texto assim apresentado melhor é vê-lo como um fermento agindo como

catalisador que desperta e move a sensibilidade e a inteligência do leitor semeando nela

“indefiníveis”, potências cuja intensidade semântica ela deve realizar ativamente. Platão,

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para explicar o sentido gerativo do potencial simbólico do escrito, usa uma imagem muito

eloqüente. Em ocasião da festa de Adônis, os gregos preparavam em pequenos recipientes e

em conchas os chamados “Jardins de Adônis”, semeando algumas sementes que, colocadas

em ambiente artificial em pleno caldo estivo, cresciam rapidamente em apenas oito dias;

mas por isso não produziam frutos, não se multiplicavam e morriam subitamente

(simbolizando, de tal maneira, a morte precoce do próprio Adônis). Mas os agricultores

prudentes não semeiam em jardins de Adônis as sementes que mais lhe importam e que

esperam que dêem frutos; se o faz, o faz pelo jogo e em função da festa. Ao contrário, as

sementes que verdadeiramente amam e das quais querem produzir frutos verdadeiros as

semeiam em lugares adequados e na estação correta seguindo as regras da arte agrícola,

esperando que aquelas sementes dêem frutos em oito meses e não pretendendo que cresçam

em apenas oito dias como nos jardins de Adônis. Bem, essa mesma diferença subsiste,

segundo alude Platão, entre aqueles que possuem a ciência e fazem bom uso da arte,

fixando na escritura sementes verdadeiras que esperam crescer e gerar frutos na alma

daqueles que cultivam a dialética, e aqueles que fixam formas acabadas e prontas apenas

para plantar sementes cujo potencial germinativo morre junto com a assimilação apressada

em almas estéreis. O texto deve guardar potências germinativas e encontrar solo fértil na

atividade da leitura. Para isso a imagem simbólica guarda no escrito possibilidades a serem

germinadas, prolongando-se através da leitura e multiplicando nela os seus frutos.193 O

texto imagético amplia-se e multiplica-se desdobrando suas potências guardadas no

símbolo. Nesse jogo literário cujo domínio absoluto Platão possuía, o valor simbólico da

imagem configura a densidade semântica da escritura e sua comunicação com a atividade

oralizante da verbalização silenciosa.

Ecoando as palavras de Heinrich Zimmer apostamos que a única dificuldade aqui

consiste na impossibilidade de reduzir-se a um sistema confiável a interpretação das formas

dinâmicas desveladas,“Porque os verdadeiros símbolos contém algo cuja delimitação é

impossível. Sua capacidade de sugerir e transmitir conhecimento é inexaurível.”194

193 Cfr. Fedro, 276 B-D 194 ZIMMER, H. A Conquista psicológica do Mal. Compilado por Joseph Campbell. Tradução Marina da Silva Telles Americano; Revisão Neusa Santos Martins. São Paulo: Editora Palas Athena, 1988. P. 9.

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Isso faz com que o leitor sinta estar em terreno muito perigoso, inseguro e ambíguo ao aventurar-se no campo da interpretação do símbolo. Os conteúdos passíveis de explicitação das imagens fartamente distribuídas modificam-se sem cessar sob seus olhos, em permutações incessantes, à medida que os contextos culturais vão se modificando historicamente. É necessária a leitura constante dos significados, que têm de ser compreendidos desde o seu principio. Pode ser qualquer coisa, menos um trabalho sistemático, essa interpretação das metamorfoses sempre imprevisíveis e espantosas. Nenhum sistematizador que valorize muito a própria reputação atirar-se-á, voluntariamente, nessa aventura arriscada. Quem termina por entregar-se a ela, portanto, é o ousado diletante. 195

Aceitar o silêncio da infinitude que não tem face. Recolher nas indeterminações moventes

da imagem, nas metamorfoses imprevisíveis e espantosas, potências do possível na

clarividência do nada. O múltilplo unificado em tecido denso e dinâmico salva na imagem a

afiguração do mundo e deixa ao amante dos signos, que se entrega ao jogo e multiplica suas

intensidades, a tarefa de salvar a riqueza configurada pelo artífice da imagem da redução

abstrata da interpretação instrumentalizada da consciência moderna que a esvazia.

Dialogar com o texto: deixar ser transpassado por suas intensidades: oralizá-lo. Eis

uma superação que o símbolo permite. Porque suas imagens “estão vivas, potentes para

revitalizar a si mesmas e capazes de uma efetividade – sempre renovada, imprevisível,

embora autocoerente – no âmbito do destino humano.” (...) Por isso as imagens do mito

desafiam qualquer tentativa de sistematização,

Não são como os cadáveres; são como os duendes. Com uma risada repentina, uma súbita mudança de lugar, zombam do especialista que iamginava tê-las cravado com um alfinete em seu gráfico. O que querem de nós não é um monólogo, o relatório de um médico legista, mas o diálogo de uma conversação vivente. 196 (grifos nossos)

Diante da potência da imagem simbólica devemos afirmar nossa posição de diletantes,

caracterizados como aqueles que se deleitam com a natureza sempre preliminar de uma

compreensão que jamais se completa. As imagens simbólicas, concluímos com Zimmer:

195 ZIMMER, H. ibid. 196 ZIMMER. 1988. Op. cit. P. 10

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Precisam ser interrogadas e consultadas de novo, nas diferentes épocas, pois cada um aproxima-se delas com sua própria mescla de ignorância e compreensão, sua própria gama de problemas, e suas próprias, inevitáveis perguntas. Pois os modelos de vida que tecemos hoje não são os mesmos de qualquer outro dia; os fios a serem manejados, os nós a serem desfeitos, são muito diferentes daqueles do passado. As respostas que já foram dadas, portanto, não servem para nós. 197

Nossa tarefa principal é aprender a ver. Não tanto interpretar as imagens a partir de procederes

usuais, mas abordá-las de forma a despertar nelas uma fala renovada e intensificá-la.

5.2.2. Entrada na imagem da caverna

E se vocês estão no pensamento da identidade, devem ser inimigos do cinema, porque o cinema exige o outro. Portanto, a discussão entre Parmênides e Platão é também uma discussão sobre o cinema. No fundo, Parmênides havia dito: “Não vá ao cinema”. E Platão: “Meu pai não quer que eu vá ao cinema, mas de todas as maneiras irei”.

Alain Badiou. O Cinema como experimento filosófico

Através do desenvolvimento da dialética da imagem e do conceito esperamos ter

alcançado um grau de compreensão não dicotômico, nem linear, nem, tampouco,

redutivista ou abstrato, do esforço criativo de figurar os eventos do mundo sem traí-los em

sua configuração complexa e dinâmica. Vimos que tanto a imagem quanto o conceito

nascem de um ato criador. Desta forma, vimos que ambos pertencem ao domínio da

linguagem da arte, constituindo atualizações de uma mesma potência afirmativa e criadora.

A linguagem em sua força plástica, no interior da qual as duas determinações emergem e

alcançam aparente autonomia, diferencia-se em várias regiões aparentemente pertencentes a

domínios desconexos. No entanto, na imagem que abarca todas as atualizações e as

intensifica pela relação dinâmica encontra sua força de coesão que mantém a unidade sem

aniquilar o múltiplo.

A imagem e o conceito, vistos desta forma, constituem domínios conexos que

ganham visibilidade na relação através da qual ambos se iluminam pelo jogo de sombras 197 Ibid. p. 11.

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que praticam. Sobrevivem da tensão dialógica de suas relações e vivificam-se mediante a

tradutibilidade mútua através da qual conteúdo e continente transmutam-se e se

transfiguram no diálogo que lhes caracteriza como integrantes de um mesmo complexo de

forças ativas, de um mesmo conjunto significante. Complexo, é preciso reforçar, que se

constrói mediante a tensão das forças cujos sentidos se intensificam e ganham relevo

apenas no dialogo que estabelecem entre si.

Não existe imagem sem conceito nem conceito sem imagem. As duas determinações

não são nem excludentes nem determinadas. Ao contrário, são interdependentes e

conversíveis. Apenas uma decisão subjetiva as isola. Em si mesmas convergem se as

situamos no complexo de relações que integram e do qual não podem, senão

artificialmente, ser extraídas. Era preciso perceber o artifício e reconduzir o conceito da

imagem à imagem do conceito: faces de uma mesma moeda cujo valor ontológico e força

expressiva emerge de seu mútuo reconhecimento.

Perceber o conceito da imagem e traçar a imagem do conceito significou para nós

criar um parâmetro crítico mais abrangente que nos permitisse ver a arte e o pensamento –

distintas em literatura e filosofia – como potências interconexas criadoras de imagens

conceituais e conceitos imagéticos que nada ganharam em delimitar falsas demarcações e

estabelecer fronteiras ilusórias. Superar o que denominamos “oposições deslocadas”.

O estabelecimento de fronteiras foi a tendência dominante do mundo acadêmico

europeu nas primeiras décadas do século XX. Nesse período impôs-se como valor supremo

a busca de independência entre as disciplinas que pretendiam demarcar cada qual o seu

território através do recorte metodológico de seu objeto, levando-se em conta a suposta

natureza autônoma, pura e não contaminada do mesmo. Foi a época da “lógica pura” de

Edmund Husserl, da “economia política pura” de Leon Walras, da “política pura” de Karl

Schmitt e da “teoria pura do direito” de Hans Kelsen e o Círculo de Viena. Estamos hoje

cansados da pureza. Sabemos aonde ela pode nos levar.

A ciência origina-se na imaginação e apela para as metáforas das quais seus

algoritmos são apenas resíduos, como os conceitos puros são, conforme nos mostrou

Nietzsche, metáforas gastas. A pureza esconde de olhos míopes a nervura imagética e as

transposições metafóricas que estão na origem de todos os esforços humanos de construir

formas de expressão que captem na linguagem a malha dinâmica dos eventos. Para quem

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sabe ver a literatura e a filosofia também, com suas metáforas e conceitos, resolvem-se na

imagem, cuja armação dialógica potencializa na visão do todo o poder significante dos seus

elementos.

Vivemos numa época de imprecisão, de indeterminação e de insegurança. Não adianta

mais tentar o retorno a uma falsa consciência dos limites cuja precisão e certeza resultou na

ilusão de controle que nos tornou cegos para a integralidade da experiência da vida: aquela

cujo valor não pode se fixado e cujas fronteiras são frutos de um ímpeto ordenador que

produziu ficções iludido de estar fixando determinações reais. Navegar na imprecisão é

preciso. Colocar as determinações em marcha. Dinamizá-las pelo diálogo no jogo

complexo de suas relações. Ter consciência do poder do jogo. Como Heráclito sabia, ao

sentenciar sobre a inocência do devir, que este mundo é um jogo de dados jogados por

crianças. Como Platão que considerava a filosofia um jogo sério e uma atividade de

desportistas. Como Mallarmé cuja ambigüidade caótica da fórmula poética – “um jogo de

dados jamais abolirá o acaso” – inicia uma imagem de densa significação e impossível

redução. O jogo circular do riocorrente de Joyce que afigura o mundo inteiro no sonho de

um operário da construção civil. Como a imagem da caverna de Platão: recorrente,

inesgotável. A imprecisão da imagem determina sua inesgotabilidade. Deixem entrar o

infinito.

É momento de reler a origem e o fim de nossas perplexidades. Lê-lo na imprecisão

que precisa a mirada do olhar para fora da órbita das fixações de limites e recortes

categoriais e enxerga na completude infinita da imagem a riqueza da filosofia como

experiência literária. Navegamos sem bússola porque, antes de mais nada, sabemos que

Platão não foi lido da forma como propomos. Mas também cria aquele que se arrisca a

viajar no nomadismo dos conceitos em direção à imprecisão da imagem. Como o Sertão de

Guimarães Rosa - “indefinível e ilimitado, sempre imagem e quase conceito de máxima

extensão, que tudo abrange e que está em toda parte e em lugar nenhum” 198 - assim é a

imagem da caverna: mito de origem e origem do mito da narrativa. A filosofia no narrado o

mundo nas malhas da imagem.

198 NUNES, Benedito, citado por Maria Cristina Elias em Cult, Revista Brasileira de Literatura, Ano IV, nº 46, p. 48.

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177

Nossa abordagem é mais do que justificada uma vez que o próprio Platão nos convida

a entrar na imagem:

“Metà tauta dé, eipon, apeíkason toioútw pátei tèn hemetéran phýsin paideías te péri

kai apaideusías.”199

Apeíkason, o imperfeito do verbo apeikásw, significa reproduzir a imagem de;

representar (em arte) 200 formar uma imagem por analogia, imaginar. Assim Platão inicia a

alegoria pedindo que imaginemos, que entremos na imagem. Depois continua

“ide gar antrwpous oíon em katageíw oikései spelaiwdei,”201

Imagine, então, homens numa caverna.

Trocando o imaginar pelo idear; estabelecendo a correspondência entre a imagem e a

idéia. A narrativa da caverna reitera a expressão inúmeras vezes. Imaginar a caverna

corresponde a romper com a convenção categorial que dispõe no plano argumentativo as

seqüencias lógicas dos conceitos. Convidar a imaginar corresponde a pedir que exercitemos

a visão sinótica que percebe o conjunto e suas relações integradas na trama dialógica das

máscaras: conceitos, metáforas, personagens. Tudo integrado no domínio inclusivo e

indefinível da imagem.

Se lemos a imagem em Cummings como apresentação de uma reestruturação sintática

que instaura uma percepção nova da figuração do evento; se ouvimos a imagem em

Nietzsche e Adorno como relação aberta entre o singular e o universal a partir de uma

ruptura com o código; se vimos a imagem na contemplação do quadro de Klee mediada

pela leitura de Benjamin; agora começamos a compreender mediante um exercício de

anacronia o valor da imagem explicitada em Platão como símbolo agregador de sentido e

estímulo ao trabalho do conceito. A imagem de Platão: aquela que concretizou no símbolo

uma teia dialética de relações que se infinitiza no concentrado absoluto da formulação

imagética: simples e complexa; diáfana e densa; inesgotável como o Logos heraclítico que

no contexto de nossa comum finitude abre o longe no perto e o distante no próximo, os

termos são de Benedito Nunes, no arrebatamento do mito pela força da palavra poética.

O teatro de sombras platônico na imagem da caverna. Platão artífice da imagem e

visibilizador do invisível.

199 PLATÃO. República, Livro VII. 514 a. 200 Dicionário Grego-Português. São Paulo: Ateliê Editorial, 2006. p. 100. 201 PLATÃO. República, Livro VII. 514 a.

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Nossa proposta encontra amparo em outra leitura de Carmen Lúcia Magalhães Paes,

na qual a imagem icônica, tida sempre como domínio do ilusório, é rebatizada pela

interpretação justa que a resignifica por intermédio do jogo com a palavra retórica de

Górgias. Citamos um trecho:

Daí que o dizer filosófico, para produzir sua significação, não dispensa, na maioria das vezes, para não dizer sempre, o concurso das figuras de linguagem ou de pensamento. Resulta ainda que a retórica, se se quer filosófica, não pode dispensar a linguagem de suas funções de verdade, pois não há étymos téknen téknen aneu tou aletews: não há arte verdadeira sem a verdade”. O que se dá, caso contrário, é a pura ilusão retórica, o que se dá é uma psycagogia do artifício, manipulação da alma pela musicalidade, pelos aspectos “irracionais” da fala, integrados ao estilo oratório. Se a verdade absoluta não é levada em conta nem é passível de ser comunicada, há-se que tornar o discurso o mais persuasivo possível, tal como fazia aquele Trasímaco do Fedro,[PLATON, Ibid. 267 c.] verdadeiro mago da palavra, detentor do poder de fazer chorar seu ouvinte ou enfurecê-lo, para, em seguida, encantá-lo e apaziguá-lo a seu bel-prazer. Isto é coisa de quem não aprendeu a synopswnta ágein tà pollaxe (a abarcar de um só golpe de vista a multiplicidade dispersa) a tornar manifesta a coisa, pondo em foco a função reveladora do signo enraizada que está no solo da anámnesis, da reminiscência, enquanto face nobre da memória. Memória esta que é movimento de busca, de desejo, de esforço (máomai) de baixo pra cima (ana), em que a alma re-memoriza sempre o que sempre já viu. Neste contexto, a fala é sempre ratificação do visto, confirmação de uma evidência, exposição da figura do eidos enquanto em si, no movimento do dizer. É justamente por ter consciência disto que Sócrates, em nome da clareza em grau maior, opera constantemente com a imagem (eikwn) convertida em figura retórica, para que a coisa se torne cada vez mais manifesta. É ainda por isso mesmo que Sócrates não teme ser tomado por qualquer medíocre fazedor de belas imagens. Mesmo porque a imagem, neste caso, não é meramente um artifício de estilo, mas um recurso poético

filosoficamente válido. 202

Aproveitando os termos de Carmen Lúcia, na imagem platônica dá-se o contrário

daquilo que ocorre no discurso sofístico de um Lísias. Ela compõe uma unidade

concordante que anima o todo e que está igualmente presente no particular. Semelhante a

um ser vivo, um organismo “naturalmente articulado”. Como a imagem não se esgota, não

pretendemos esgotá-la. O que seria uma estupidez. Tentaremos ilustrá-la a partir de um

202 MAGALHÃES PAES, Carmen Lúcia. O rouxinol dos Sofistas e as Cigarras de Sócrates. Inédito.

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ponto. Um enfoque que anime o todo e mostre a articulação dialógica da imagem. Podemos

resumir a unidade do diverso no diálogo entre as sombras e a luz.

5.2.2.1. As luzes das sombras e as sobras da luz

Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo.”

Antonio Candido. Literatura e Sociedade.

A Caverna de Platão tem inspirado a mentalidade ocidental desde que o filósofo

ateniense criou numa imagem tão simples quanto densa de sentido - possuída por forças

que ultrapassam os signos dispostos no papel e apelam para uma leitura não linear nem

categorial - as relações complexas entre o conhecimento, o ser e a vida humana desdobrada

entre os planos; tensionada entre as luzes e as sobras, o ser e o saber. Tendo de lidar com

ambos e articulá-los não só numa visão compreensiva, mas numa práxis pedagógico-

política o prisioneiro vacilante tateia na escala do acontecer a sua própria possibilidade de

ser.

A primeira vez que a lemos nos sentimos diante de um muro, um anteparo que obstrui

a visão e turva o sentido. Não sabemos bem o que fazer com uma imagem tão simples. Mas

o poeta diz que os seres que estão lá no fundo e necessitam ascender se parecem conosco.

Confiamos na comparação e lemos de novo em busca da confirmação do que está ali

ilustrado. Mas a compreensão é árdua e o próprio Platão não a facilita interpretando-a para

nós. Na moldura da ironia que lhe era peculiar nos desencaminha fornecendo pistas que

facilitam a leitura e, por isso mesmo, a estragam uma vez que, se tomada au pie de la lettre,

o mito não vale a viagem.

Não obstante, as pessoas têm viajado nele por séculos: da visita de Ulisses ao inferno

à caverna pós-moderna de Saramago: Platão está novamente entre dois pontos em que

insere o seu fluxo narrativo: um que ele conhecia e outro que jamais poderia prever, mas

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inspirou. A ascese dantesca com todos os seus planos possui muito da exigência de

elevação espiritual que o filósofo ateniense resumiu. Não faz muito tempo que o

conterrâneo de Platão Nikos Kazantzakis descreveu uma ascese mundana desprovida da

transcendência e enxugada da relação com os mistérios aos quais a imagem platônica alude.

Voltamos a ler na narrativa a imagem e percebemos que na simplicidade quase esquemática

de sua construção esconde-se uma maestria de composição cujo domínio Platão guardou

para si. Como realizar tanto com material tão exíguo é um segredo que ele compartilha com

os mestres. Há aqui um segredo que Platão compartilha com os grandes artífices: como tirar

densidade de matéria tão seca e descarnada, como organizar em unidade superior mescla

tão díspar de materiais heterogêneos, enfim, como representar dramaticamente a

experiência humana em todo o seu desespero em forma viva e completa. 203 Configurado

como imagem, este todo complexo que é a caverna platônica, esta unidade de tensão

estabelecida no interior de uma forma orgânica despojada, a narrativa/objeto não é definida

nem descrita, mas apresentada inteira à contemplação que aciona a imaginação. Revela-se o

forte caráter emblemático do mythos que a visualidade da caverna só faz acentuar.

Objeto visual oferecido à contemplação: caminho da imagem concreta à sua

abstração no conceito. Configura-se uma historieta que contém uma revelação: um enredo

(mythos) em que algo se dá a conhecer pela ação até o reconhecimento do sentido, quando

se manifesta a coerência do todo, sua unidade. O mythos configura-se como arte completa e

consegue alto grau de rigor construtivo ao mesmo tempo em que se abre à experiência

histórica e guarda em sua forma as contradições e tensões sociais que dilaceram a alma

humana. No acabamento final do artefato verbal vemos a resolução de tensões que se

sustentam no conflito: unidade na multiplicidade, complexidade na simplicidade,

refinamento no despojamento, lirismo objetivo e contenção da forma do conteúdo e da

experiência humana. O aprofundamento da experiência subjetiva transmutada em

203 Lembramos aqui do último movimento do Terceiro Concerto de Brandenburgo de Bach: uma

dança alegre e arrogante, repleta de exuberância, com brilhantes solos do primeiro violino e da primeira viola. Como Bach conseguiu preservar a “sonoridade” do primeiro movimento com uma tão leve tessitura, é um segredo que ele compartilha somente com os maiores mestres; artífices da imagem como Platão. Neste caso, por mais aguda e penetrante que seja a crítica algo de intocado permanece livre de qualquer intervenção interpretativa: sólido e, ao mesmo tempo, fugidio como uma imagem que guarda um segredo que teima em não se revelar.

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objetivismo imagético traz à tona toda a gama da experiência humana com suas

contradições e tensões inconciliáveis.

Através da percepção da dinâmica elaborada da imagem, ou melhor, de sua

“figuração dinâmica”, definida como aquela que se constitui pela inter-relação móvel dos

seus elementos, exprimindo-se pela coerência do conjunto. No complexo da imagem há

também uma tensão do trágico que identificamos acima, timidamente, em Platão. Ecoando

a voz de Goethe, que em 6 de julho de 1824 disse ao chanceler von Müller: “Todo o trágico

se baseia numa contradição inconciliável. Tão logo aparece ou se torna possível uma

acomodação, desaparece o trágico.”

Na construção vemos o amálgama que funde diferentes esferas da realidade em um

jogo analógico que inclui os níveis correspondentes da linguagem em que essas esferas são

expressas e plasmadas, configurando o mythos como um conjunto dinâmico. A mescla

aparece como condição da coerência formal – unidade tirada da diversidade; coerência do

antagonismo: unidade dialógica mantida pela tensão resultante do contraste dos vários

elementos formais e semânticos que se completam dinâmica e dialeticamente. O jogo entre

os opostos configura o espaço dos eventos no qual os antagonismos abrem janelas para o

diverso que habita o interior de suas oposições: luz e sombras vistas como intercambiáveis

– luz das sombras e sombras da luz – porquanto interdependentes; planos do ser que servem

de circulação mais do que definição do sentido, entre os quais os graus devem ser

percebidos como múltiplos guardados na unidade da tensão que os sustenta; o caminho que

produz o movimento constante da subida e descida - synopse e diairese – movimento

integrado que conexiona os planos da luz e das sombras. Movimento circular do compacto

e diferenciado: sombras-fogueira-sol-fogueira-sombras. As realidade se interpenetram e se

criam mutuamente sem exclusão ou isolamento: a luz, isoladamente, é cega como a

escuridão. No jogo dinâmico entre a luz e as sombras distende-se a realidade móvel dos

eventos singulares. O múltiplo salvo na densidade figurativa do uno. Por que até agora a

interpretação resistiu ver o movimento e insistiu na dicotomia anulando a visão da

totalidade complexa? Anulou o conjunto na distinção entre imagem e significação? Lukács

esclarece:

“Digo mais: a distinção entre imagem e significação é também uma abstração, pois a significação está sempre envolta em imagens e toda imagem está iluminada pelo reflexo de uma luz mais além das

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imagens. Toda imagem é de nosso mundo e a alegria desta existência brilha em seu rosto;” (...)204

Atentar para a complexidade do mito parece não ter sido o que os críticos fizeram

nem, tampouco, aqueles que se serviram dele como motivo inspirador para as suas próprias

criações. Poetas, místicos, filósofos transformaram a pequena peça platônica em algo que

de certa forma ela contém e, exatamente, por conter densamente abriu-se aos equívocos que

dela resultaram, sem representarem exatamente uma traição, mas, todos eles, reveladores de

aspectos que a narrativa, densa de tensão imagética, continha e permitia.

A imagem da caverna é uma representação hierárquica dos planos do ser e do

conhecer em sua relação necessária; é um mito escapista cuja mensagem pede que

abandonemos a conversação tagarela dos prisioneiros sobre as sombras no fundo da

caverna e nos voltemos para a luz que brilha fora dela e deveria guiar a inteligência rumo à

ascensão ao plano superior do ser; representa uma proposta revolucionária, porquanto na

conversão do prisioneiro em direção à saída ele tem de abandonar o conforto de sua posição

inicial e assumir o penoso trajeto da subida que lhe custaria a cômoda visão das sombras e a

normalidade do caráter que compartilhava com os outros prisioneiros; representa a decisão

política de governar segundo os ditames da justiça uma vez que a saída da caverna é apenas

uma etapa para a volta ilustrada daquele que contemplou o bem e pode, em conformidade

com o conhecimento assim adquirido, positivar leis que não sirvam a interesses

particulares, porquanto resultaram da imitação do principio supremo que sustenta todas as

coisas e administra seu padrão universal de legalidade ao cosmos, ao homem e à sociedade;

representa a irrupção da autenticidade da qual se apropria o homem que sai da caverna;

apresenta o tagarelar dos homens no fundo da caverna como solução democrática através

da qual as opiniões se elevam ao plano consensual da vida politicamente ordenada. Tudo

está representado, ou melhor, dramatizado. Aqui tudo foi permitido mas nem tudo estava

adequado. Assim, o representar ilude porque tudo o que representa falsifica por exigir uma

escolha que restringe ao domínio redutivo do signo abstrato e à univocidade do nome uma

formulação intencionalmente equívoca: a concretude do ser que, na pluralidade de sua

manifestação, esconde os laços que ligam os eventos moventes que o constituem numa

unidade dinâmica e imperceptível, não pode ser representado. O mecanismo referencial que

204 LUKÁCS, G. El Alma y las Formas. Grijalbo: 1975. P.21.

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articula os nomes em sentenças sujeito predicado não serve para o registro do múltiplo,

para apresentação das potências do existente mediante as potências da linguagem. Aqui

caducam a representação e a interpretação e o texto impõe uma outra abordagem,

consciente de sua natureza aparentemente simples, mas fundamentalmente complexa.

Deleuze ilustra a nova abordagem do texto com a idéia da leitura em intensidade que

contrapõe à leitura interpretativa. Incita-nos, a partir de uma auto-análise, a mudar o

registro:

Comecei então a fazer dois livros nesse sentido vagabundo, Diferença e Repetição, Lógica do Sentido. Não tenho ilusões: ainda estão cheios de um aparato universitário, são pesados, mas tento sacudir algo, fazer com que alguma coisa em mim se mexa, tratar a escrita como um fluxo, não como um código.205 (grifos nossos)

Porque,

(...) há duas maneiras de ler um livro. Podemos considerá-lo como uma caixa que remete a um dentro e então vamos buscar o seu significado. (...) Ou a outra maneira: consideramos um livro como uma pequena máquina a-significante; o único problema é: “isso funciona, e como é que funciona?” Como isso funciona para você? Se não funciona, se nada se passa, pegue outro livro: algo passa ou não passa. Não há nada a explicar, nada a compreender nada a interpretar. (...) Essa outra maneira de ler se opõe à anterior porque relaciona imediatamente um livro com o fora. Um livro é uma pequena engrenagem numa maquinaria exterior muito mais complexa. Escrever é um fluxo entre outros, sem nenhum privilégio em relação aos demais, e que entrra em relações de corrente, contra-corrente, de redemoinho com outros fluxos, fluxos de merda, de esperma, de fala, de ação, de erotismo, de dinheiro, de política, etc. 206

Numa imagem: “Como Bloom, escrever na areia com uma mão, masturbando-se com a

outra – dois fluxos, em que relação?” 207

Propomo-nos a ver. A imagem que Deleuze utiliza amplamente sem admitir.

Esta não fixa os significados, mas acompanha o devir do texto como se imaginasse

suas articulações sem as trair no simples referencial histórico e subjetivo de um autor que

fala de um assunto para um público determinado. Quem é o autor, qual o assunto e para

205 DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. p 15. 206 DELEUZE. Ibid. Pp. 16/17. 207 DELEUZE. Ibid. p. 17.

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quem se dirige? Não para os atenienses do século quinto, nem para os medievais que, desde

Agostinho, nutriram uma aversão semítica pela figuração icônica botando a perder o

traçado imagético do todo no qual se inserem imagens-conceitos que se multiplicam na

densidade de sua concreção movente; nem para os renascentistas que na conturbada

aquisição do patrimônio através da migração dos sábios de Constantinopla trouxeram na

bagagem o que Marcilio Ficino apresenta em tradução: o texto platônico Platão in toto para

uma mentalidade Européia, enrijecida pelo retórico rigor escolástico e pela burocrática

universidade que nada tem da antiga academia, para um povo cristão distante da dionisíaca

Grécia; nem para a modernidade que, no emergir da racionalidade instrumental, cujos

ditames herdados do humanismo renascentista querem se impor como instrumentos de

controle renunciando ao jogo, à figuração imagética e ao prazer da figuração do texto.

Contra todo esse patrimônio é preciso inventar um novo, que traçamos até agora

seguindo as peripécias da imagem e do conceito. Não inventar, mas admitir a potência do

encontro na realidade do matrimônio da filosofia com a literatura. O que Nietzsche

adiantou e não foi percebido pela crítica surda que continuou, influenciada pela

interpretação cristã, batendo na mesma tecla. Em uma de suas escaladas anotou, à margem

de sua própria obra, o que poderia constituir o centro da nossa:

Um artista não suporta nenhuma realidade objetiva, ele olha para longe, para trás, leva a sério a sua opinião de que o que uma coisa vale é aquele resto, semelhante à sombra, que se ganha a partir de cores, formatos, sonoridades, pensamentos; ele acredita que quanto mais é sutilizada, diluída e dissolvida uma coisa, uma pessoa, tanto mais cresce o seu valor: quanto menos real, tanto maior o valor. Isso é platonismo: mas esse tinha ainda uma sutileza a mais, na inversão: - ele mensurava o grau de realidade o grau de realidade de acordo com a escala de valores, dizendo: quanto mais “idéia”, tanto mais ser. Ele torcia e retorcia o conceito de “realidade”, dizendo: “o que vocês consideram verdadeiro é um engano, e nós, quanto mais próximo da “idéia”, (tanto mais próximos) da “verdade”. – Pode-se entender isso? Esse foi o maior rebatizamento: e, e, por ele ter sido adotado pelo cristianismo, nós não percebemos a espantosa questão. No fundo, Platão preferiu e privilegiou, como artista que era, a aparência ao ser: portanto a mentira e a invencionice à verdade, o irreal ao existente e à mão, - mas ele estava tão convencido do valor da aparência que lhe adicionou os atributos “ser”, “ causa primera” e “bondade”, “verdade”, em suma Todo o Resto que se atribui ao valor. 208 (grifos nossos)

208 NIETZSCHE, F. Fragmentos finais. Tradução Flávio R. Kothe. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007. P. 68.

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Admitamos o que não poderia ser iludido: Platão é um grande filósofo por ter sido

um grande artista. Por ter conseguido, assim, projetar-se acima da circunscrição meramente

política da cidade ateniense e dos valores dicotômicos da visão cristã. É preciso a coragem

de admitir que Platão tenha escrito para nós. Nós que prescindimos dos mecanismos da

representação, aos quais Platão não se submetia; nós que perdemos as ilusões da estrutura

que se impõe ao mundo no intuito de organizá-lo em esquemas fixos de compreensão; nós

que podemos, após Nietzsche e Deleuze, compreender a multiplicidade que uma “idéia”

move quando se instaura como criação que emerge dentro do tecido do ser e o intensifica

na potencialização das forças que o constituem mediante a linguagem que o compõe; nós

que estamos atentos para as relações complexas das forças; nós, enfim, que sabemos

dialogar com a imagem e com o conceito.

Até agora suportamos uma forma má de anacronismo: aquele que lançou no passado

as limitações do projeto moderno, movida pelo “nomos sedentário” diagnosticado por

Deleuze, pela “razão subjetiva” identificada por Horkheirmer e Adorno ou pela norma

abstrata do conceito fixado no código, cuja genealogia do jovem Nietzsche nos desafia à

transgressão ao mesmo tempo em que nos promove a compreensão. Desafios aos quais não

podemos deixar de responder, prognósticos que devemos relevar, incisões críticas que nos

devem incomodar e novos traçados de vertentes que não podemos deixar de seguir.

Trazida à esfera da representação a imagem se perdeu em significados possíveis que

anularam sua intensidade. Mas a imaginação não representa, ela cria elementos

constitutivos de uma unidade inserida no plano que apresenta. A imagem da caverna não é

representativa de nada e de tudo, porque ela não limita, exatamente, por não ser

representação mas apresentação.

A ascese que a imagem ilustra tornou-se emblema da alma em seu esforço de

formação integral cujos resultados espirituais espelham os graus de perfeição do ser

dispostos didaticamente em planos que se entrelaçam e se reproduzem. Uma procura no

interior de um espelhamento, uma viagem sem as peripécias de um Odisseu nem as

conquistas de um Alexandre. Uma viagem cuja maior conquista e a maior peripécia

resultam da organização do estilo e da disposição de um material que mobiliza uma

imagem cuja riqueza jamais será suficientemente explorada. A prova dos nove da história

ratifica esta afirmação. Como objeto de crítica ou de inspiração a caverna platônica jamais

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deixou de atormentar os sonhos da humanidade. Ela contém tudo o que se quer nela

encontrar: até mesmo o que nela não coube. E não coube aos gregos entendê-la, nem aos

medievais, nem aos modernos. Somente a crise instaurada pelo que sobrou da falência do

projeto moderno tornou para nós a caverna platônica visível. Foi para nós que ele escreveu,

como carta endereçada ao futuro a espera de um complexo de fluxos ao qual

correspondesse, com o qual pudesse formar uma constelação. É o que nos resta evidente

pelo depoimento de José Saramago no filme Janela da Alma:

O que eu acho é que nós nunca vivemos tanto na caverna de Platão como hoje. Hoje é que estamos a viver de facto na caverna de Platão, porque as próprias imagens que nos mostram na realidade de tal maneira substituem a realidade; nós estamos no mundo em que chamamos mundo áudio-visual. Nós estamos, efetivamente, a repetir a situação das pessoas aprisionadas ou atadas na caverna de Platão. Olhando em frente, vendo sombras e acreditando que essas sombras são a realidade. Foi preciso passarem todos esses séculos para que a caverna de Platão aparecesse finalmente num momento da história da humanidade que é hoje e vai ser, e vai ser cada vez mais.209

A realização maior do filósofo coincide aqui com a realização maior do poeta e do

narrador. Platão já havia nos adiantado que a expressão lingüística que se desdobra na

direção da trama complexa dos eventos só exercita sua potência afirmativa quando se deixa

contaminar pelos elementos constitutivos do tecido lingüístico que não se resumem ao

conceito nem isolam a imagem, mas promovem o casamento de ambos. A imagem não

surge quando o conceito fracassa, porque não se distinguem senão na aproximação

redutivista e alienante da consciência interpretativa que se deixou contaminar pelos

instrumentos errados chegados a ela através da tradição. Mas que tradição? Não houve um

caminho linear que conduziu até nós o passado intacto. No comentário sobre a genealogia

e a história em Nietzsche Foucault nos advertiu que

Paul Rée se engana, como os ingleses, ao descrever gêneses lineares, ao ordenar, por exemplo, toda a história da moral através da preocupação com o útil: como se as palavras tivessem guardado seu sentido, os desejos sua direção, as idéias sua lógica; como se esse

209 Depoimento prestado no filme de João Jardim e Walter Carvalho. Janela da Alma.

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mundo de coisas ditas e queridas não tivesse conhecido invasões, lutas, rapinas, disfarces, astúcias. (...)

A história não é linear e a tradição que permitiria uma fusão de horizontes pode ter

aprontado uma confusão de falsos norteadores. Um anacronismo anacrônico. Ele já não

começa errando ao separar? Primeiro, ao não perceber a mútua dependência entre a luz e a

sombra. A consciência ilustrada não percebe que um mundo de luz é tanto quanto um

mundo de sombras um mundo de cegos? Que luz e sombra, como conceito e imagem são

realidades interdependentes. Esquecemos aquilo que Heráclito sabia, que o caminho que

sobe e o caminho que desce são um único e mesmo caminho. Como é possível a

visibilidade sem a sobra que a luz projeta? O que é a sombra sem a luz e a luz sem a

sombra?

Assim como há interderminação dialógica entre o conceito e a imagem há entre a luz

e a sombra. A consciência ocidental que teimou em isolar os fios e fixar barreiras construiu

a ilusão de uma oposição impossível. Não viu que as sombras são projeções da luz que se

visibiliza através delas. A doutrina cristã criou a dicotomia e lançou a cultura medieval no

cerne de uma escolha impossível: a ascensão das sombras à luz, sem perceber que ambas

são metáforas que criam uma tensão dialética para tentar abrir espaço à figuração de um

mundo matizado de cores. Se considerarmos o inteiro do texto platônico veremos nele a

dialética da luz e da sombra como a dinâmica entre a imagem e o conceito. Como

afiguração dialógica de uma realidade múltipla salva na imagem. A imagem e o conceito

delineando no ilimitado da visão total os limites fluidos e moventes das forças que se

afirmam no texto não pelo mecanismo da representação, mas relacionando-se com ele

mediante a dinâmica dos fluxos. A imagem da caverna não representa. Apresenta-se a si

mesma como um mecanismo autocatalítico na interação simbólica dos signos. Espelha as

articulações e o jogo do mundo. Move-se em si mesma segundo suas próprias leis abrindo-

se à força ativa que dela se apropria e a intensifica na leitura. Na desconstrução e

reconstrução mediada pela consciência dos fluxos e da dinâmica dos jogos a imagem

forma-se movente seguindo o trajeto dos conceitos que a dissipam na sombra apenas para

reconduzi-la ao ilimitado da luz entre os quais figura o mundo.

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Seguindo proposta de Deleuze de uma leitura em intensidade que não busca fixar

sentidos, mas restabelecer o movimento do conceito num dinamismo criativo nos foi

possível exercitar uma possibilidade de leitura que não coincidiu com a tentativa de

encontrar fundamentos fixos no texto, paternidades, nem filiações que inventam um

culpado apenas para pagar o pecado de sua própria culpa. Platão logocêntrico? Como se

nele jamais se chega ao centro? Se no redemoinho das transmutações dos signos as

posições relativas se movem constantemente sob a força que as atualiza? Onde está o

centro: no logos, no mythos, na alegoria, na metáfora, no discurso oral, na escritura, na

imagem ou no conceito, na razão demonstrativa ou na ação criativa da imaginação? Está

em todos os lugares e em lugar nenhum. Nós é que o colocamos onde queremos. E onde

queremos é apenas até onde nossa visão alcança. Para que ela alcançasse mais longe foi

preciso descentralizar e, ao mesmo tempo, intensificar na dialética da imagem o tecido

dialógico da linguagem, que é discurso e texto, logos e mythos, conceito e imagem. Foi

preciso imaginar sem centralizar a imagem. Apenas aproveitar do seu poder de concentrar

elementos díspares e afigurar o todo sem trair o singular, de focalizar o movente sem

paralisá-lo. Foi preciso perceber a filosofia como experiência literária. Voltemos o olhar a

Otávio Paz que nos amparou até aqui:

“Épica, dramática ou lírica, condensada numa frase ou desenvolvida em mil páginas, toda imagem aproxima ou conjuga realidades opostas, indiferentes ou distanciadas entre si. Isto é, submete à unidade a pluralidade do real.”210

Ou para o fotógrafo cego que viu a imagem na palavra. Cuja declaração resume tudo o que

tentamos até aqui:

Para mim, a linguagem e a imagem estão ligadas. O verbo é cego, mas ele nos permite enxergar, criando imagens. Graças ao verbo temos as imagens. Hoje as imagens se criam por si, não são mais resultado do verbo. Isto é muito grave. Precisa haver equilíbrio entre o verbo e a imagem. Michelangelo não viu Moisés, não o acompanhou ao monte Sinai, não o viu jogar o decálogo no bezerro de ouro, mas leu o texto.”211

210 PAZ, O. OP. CIT., P. 120 211 BAVCAR, Eugen. Depoimento prestado no filme de João Jardim e Walter Carvalho. Janela da Alma.

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Platão não deu título à sua narrativa sombria, outros o fizeram a definindo: alegoria, mito,

fábula. O que quer que seja ele apenas nos pediu: imaginem. Foi o que fizemos, ou

tentamos fazer, até aqui. Aqui onde o círculo se fecha, pois imaginamos uma cartografia da

expressão filosófico-literária em que o redemoinho do mundo se reorganiza na imagem de

Paz a Platão.

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Considerações Finais

Nunca saberás o que é suficiente, a menos que saibas o que é mais que

suficiente.

William Blake

O trabalho que aqui finalizamos não consiste numa dissertação linear sobre um tema,

mas numa abordagem múltipla e circular que visa a romper com as estruturas fixas e

realizar no plano da construção aquilo que ela propõe no plano da análise crítica. É um

trabalho de ruptura em amplo sentido. Ruptura com o pensamento categorial e com as

estâncias da razão instrumental que, a nosso ver, iludem a consciência ao estabelecer os

planos de controle a partir das distinções, dicotomias e fraturas mediante uma abordagem

limitada e redutivista da linguagem. O que se poderia denominar “oposições deslocadas”:

aquelas que se excluem e não conseguem compor nenhuma imagem dialética na qual os

momentos sejam guardados em sua singularidade sem, não obstante, perderem a relação

mutuamente fecundante no interior dos complexos dinâmicos que as engloba e dirige. Uma

forma de pensar e escrever que instituiu um hábito do qual procuramos nos livrar. Para isso

foi preciso não apenas trabalhar um tema, e sim pensar num outro registro fazendo a

composição textual organizar-se em uma nova clave. Recusamos a separação entre a

imagem e o conceito mostrando nas páginas anteriores o porquê.

Junto com a superação da dicotomia entre pensamento e imaginação rompemos a

distinção entre literatura e filosofia: a primeira classificada, de forma limitante, como

atividade imaginativa e a segunda reduzida a uma atividade classificatória e formal.

Esperamos ter mostrado que a literatura e a imagem contaminam toda produção escrita e

todo pensamento digno de atenção. Por isso, tudo o que resultou das tentativas de pensar o

mundo acabou na criação de um novo mundo cujos elementos em relação dinâmica abriram

vasos comunicantes com os eventos em relação aos quais pareciam se apartar enquanto

construtos artificiais.

A ruptura impunha, por outro lado, o afastamento em relação a um método cujo

proceder não nos agradava há muito tempo. Não queríamos mais jogar o antigo jogo e

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tentamos inventar um novo que permitisse ao trabalho crítico somar-se a alegria da criação.

Não dispusemos os assuntos em ordem cronológica; não os organizamos segundo uma

pretensa causalidade linear; não articulamos os capítulos como seqüências ordenadas de

uma exposição contínua e conseqüente. Formamos corpos gravitando em torno de um tema

e se relacionando conforme as conexões estabelecidas pelo parentesco entre as várias

formas de conceitualizar imagem e imaginar o conceito. Não estão divididos

monologicamente nem hierarquizados em planos, nem tampouco distintos como o

desdobrar progressivo de um tema que se explicita gradativamente.

Cada capítulo consiste num instantâneo retirado de um fluxo; são autônomos e

integrados como “unidades federadas” 212: completas, singulares e articuladas ao conjunto.

Diversas partes formando uma imagem. Estão relacionados dialeticamente de maneira a

criar uma tensão no âmbito do todo quando visualizados em conjunto.

Começamos por introduzir os personagens: a imagem e o conceito como “duplos

integrados” e já de início procedemos à analise crítica, fundada na dialética da imagem e do

conceito, de dois poemas de Cummings. Neles, a imagem poética revela-se em toda

concentração sintática e profundidade semântica. Apresentando Cummings, evitamos o

equívoco de reduzir a imagem ao visível, mostrando, conforme a riqueza da concepção de

Otávio Paz sua força expressiva máxima. No trabalho de Cummings, nas dificuldades que

os poemas impõem à leitura, compreendemos o quanto o artifício poético semina a

imaginação e fertiliza a inteligência. As imagens de Cummings rearticulam a palavra, a

disposição espacial e a sintaxe nos obrigando a ver o invisível e, vendo-o perceber que o

artifício poético não é uma estrutura fechada sobre si mesma sem janelas abertas para o

mundo. É, antes, um dobrar-se da linguagem que permite a expressão em um

desdobramento não linear que rompe com os limites da representação libertando a idéia de

seu casulo.

Figura-se, no artifício, os eventos, salvando as singularidades e as diferenças

dinamizando o tecido textual e potencializando a visão compreensiva. Estamos mais

próximos da percepção matizada e múltipla do movimento no interior da imagem e do

conceito do que da estrutura formal e cinzenta.

212 O termo é de Debord.

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A literatura aparece aqui como experiência filosófica. A imagem na densidade de sua

multivocidade movente irrompe como um recurso insubstituível ao pensamento. Não

apenas, e talvez nunca, uma estrutura imóvel comprometida exclusivamente com a beleza.

Para ver a imagem utilizamos como instrumento o conceito. Depois, encenamos o

conceito em sua diversidade constitutiva, vendo nele uma multiplicidade de vozes cuja

diferença, habitando a unidade, o tornava tão complexo quanto a imagem: denso de tensões

na relação entre as figuras que o compõem.

Apoiando-nos criticamente em Deleuze, cujas posições nem sempre compartilhamos,

buscamos imaginar o conceito. Vê-lo através da imagem e como potência da imagem.

Compreendemos a idéia platônica não como estrutura abstrata, mas como visão intelectual

que conexiona o múltiplo permitindo a visão articulada do todo.

Então, situamos Nietzsche no contexto de uma visão dionisíaca que encontra na

metáfora a origem esquecida do conceito. Na perda da verdade da experiência individual,

da visão singular do múltiplo configurado na imagem, Nietzsche viu a razão descolorida

que, tornando-se moeda gasta, sobrevivia do preto e branco das oposições reduzidas nas

distinções categoriais. Mais profundamente, percebeu no império da gramática o exercício

de uma força niveladora que, na constituição das regras fixas do código, volatiliza as

diferenças em formalidades vazias.

A necessidade da expressão da diferença – que a linguagem dionisíaca nietzschiana

propunha e realizava no próprio exercício de estilo do filósofo alemão – realizou-se na nova

música. O paralelo com Adorno permitiu, mediante a comparação, percebermos a

amplitude da força da imagem. Da imagem pensada por Nietzsche à imagem sonora no

jogo aberto com o código que a nova música nos permitiu ouvir ao romper com a

tonalidade. Nela percebemos a invenção de um jogo criador no qual as regras construíam-se

na medida das obras singulares. Adorno nos revelou a importância da afirmação do

particular na tensão da diferença entre o singular e o universal que salva a criação da

padronização instaurando a exigência da verdade no domínio da expressão musical.

Ouvimos a imagem. Era necessário, então, vê-la. E a vimos num quadro de Paul Klee

através da visão de Walter Benjamin. Benjamin, o pensador das passagens e artífice das

imagens em cuja expressão escrita pode-se ver o casamento perfeito entre a filosofia, a

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literatura e a crítica. A visão do quadro abriu uma janela que nos conduziu de volta a

Platão. O fim que era início, em um trabalho que prescinde dos inícios e dos fins.

Preparamos o terreno e depois embarcamos na leitura da imagem dinâmica do

diálogo platônico evidenciando, no contexto da forma, a linha de fuga dos conceitos. No

pequeno diálogo intitulado Mênon, realizamos a dialética da imagem na percepção da

relação intensa entre a forma aberta e a densidade semântica de um texto que se constrói

possível no diálogo dos signos. Um texto móvel e indefinível articulado numa trama de

relações em perpétuo devir. Na imagem dialógica do texto, traçamos o enquadramento do

conjunto no qual bastava situar agora uma única imagem seminal. Exemplo singular e

emblema do todo, potência simbólica que concentra significados diferenciados, a imagem

da caverna termina nossa exposição, mas poderia iniciá-la. E não inicia exatamente por

terminá-la? Pois, na circularidade da forma que construímos, as comunicações e as

passagens entre as partes configuram um conjunto em que o início e o fim coincidem.

Somente ao formar uma imagem do todo compreendem-se as linhas de força que

intensificam a composição do texto. Nele a realização da forma aberta movimenta o tema

em múltiplas direções contendo no espaço da exposição escrita a própria idéia que era

propósito do texto desenvolver.

O estudo da imagem é ele mesmo uma imagem. Ao fim do trajeto esperamos que o

leitor tenha conseguido vê-la.

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