Mauro Marini Trabalho Produtivo

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O conceito de trabalho produtivo: nota metodológica 125 O conceito de trabalho produtivo: nota metodológica * RUY MAURO MARINI ** Desde o nascimento da economia política, o conceito de trabalho produtivo vem se constituindo em matéria polêmica. Após a formulação inicial da teoria do valor-trabalho, que teve seus epígonos em Boisguillebert e Adam Smith e deitou por terra a tese dos fisiocratas, segundo a qual somente a terra e quem nela traba- lha criam valor (o que faria da indústria e do comércio atividades improdutivas), coube a Marx dar-lhe sua forma definitiva. Essa última tem induzido, no entanto, a muitos equívocos, que se reduzem em última instância a identificar trabalho produtivo e criação material de valor e, portanto, de mais-valia. A classe operária se converteu assim em sinônimo de proletariado industrial (o que, em sentido amplo, não exclui evidentemente os assalariados do campo). Isso de deve, em parte, à equiparação a nível teórico do capítulo VI inédito de O capital ao próprio O capital. Trata-se, sem dúvida, de um erro, dado que foi Marx e mais ninguém quem descartou sua inclusão na obra, para retomar aí somente parte do que tentara estabelecer, fazendo com que esse escrito se reves- * Escrito originalmente em espanhol e extraído postumamente do arquivo de Ruy Mauro Marini, este texto foi publicado primeiramente em Dos Santos, Theotonio. Los restos de la globalización: ensayos. Caracas: UNESCO, 1998, p.153-163 e pode ser encontrado no seguinte endereço: http:/ bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/critico/marini/09concepto.pdf. Tradução de Igor Oje. Revisão técnica de Mauro Castelo Branco de Moura. ** Ruy Mauro Marini (1932-1997), intelectual revolucionário brasileiro, foi um dos criadores da Teoria da Dependência. Lecionou, entre outros lugares, na Universidade de Bra´silia (UnB) e na Universidade Nacional Autônoma do México (Unam) e é autor de Dialética da dependência e Subdesenvolvimento e revolução, entre outras obras. Miolo_Rev_Critica_Marxista-34_(GRAFICA).indd 125 Miolo_Rev_Critica_Marxista-34_(GRAFICA).indd 125 29/03/2012 14:49:03 29/03/2012 14:49:03

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Sobre o conceito de trabalho produtivo.

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  • O conceito de trabalho produtivo: nota metodolgica 125

    O conceito de trabalho produtivo: nota metodolgica*

    RUY MAURO MARINI **

    Desde o nascimento da economia poltica, o conceito de trabalho produtivo vem se constituindo em matria polmica. Aps a formulao inicial da teoria do valor-trabalho, que teve seus epgonos em Boisguillebert e Adam Smith e deitou por terra a tese dos fisiocratas, segundo a qual somente a terra e quem nela traba-lha criam valor (o que faria da indstria e do comrcio atividades improdutivas), coube a Marx dar-lhe sua forma definitiva. Essa ltima tem induzido, no entanto, a muitos equvocos, que se reduzem em ltima instncia a identificar trabalho produtivo e criao material de valor e, portanto, de mais-valia. A classe operria se converteu assim em sinnimo de proletariado industrial (o que, em sentido amplo, no exclui evidentemente os assalariados do campo).

    Isso de deve, em parte, equiparao a nvel terico do captulo VI indito de O capital ao prprio O capital. Trata-se, sem dvida, de um erro, dado que foi Marx e mais ningum quem descartou sua incluso na obra, para retomar a somente parte do que tentara estabelecer, fazendo com que esse escrito se reves-

    * Escrito originalmente em espanhol e extrado postumamente do arquivo de Ruy Mauro Marini, este texto foi publicado primeiramente em Dos Santos, Theotonio. Los restos de la globalizacin: ensayos. Caracas: UNESCO, 1998, p.153-163 e pode ser encontrado no seguinte endereo: http:/bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/critico/marini/09concepto.pdf. Traduo de Igor Oje. Reviso tcnica de Mauro Castelo Branco de Moura.

    ** Ruy Mauro Marini (1932-1997), intelectual revolucionrio brasileiro, foi um dos criadores da Teoria da Dependncia. Lecionou, entre outros lugares, na Universidade de Brasilia (UnB) e na Universidade Nacional Autnoma do Mxico (Unam) e autor de Dialtica da dependncia e Subdesenvolvimento e revoluo, entre outras obras.

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    tisse do status de mero rascunho. Deve-se, alm disso, a uma incompreenso da obra de Marx, resultado de uma leitura parcial da mesma, que leva a ignorar os sucessivos enriquecimentos do que nela objeto do conceito de trabalho, de acordo com o plano de exposio que Marx traou.

    Os desdobramentos de um conceitoNo entanto, a definio proposta por Marx no Livro I, captulo XIV, de que

    dentro do capitalismo, somente produtivo o operrio que produz mais-valia ou que trabalha por fazer rentvel o capital (Marx, I, p.426; grifos meus), d conta perfeitamente do conjunto do problema e contm j em embrio os desdo-bramentos de que ser objeto. Esses comeam a aparecer no Livro II, captulo VI, quando Marx distingue trabalho produtivo e trabalho necessrio ou socialmente til. Voltaremos depois a esse ponto. Destaquemos, por enquanto, que a aplicao excludente do conceito de classe operria aos produtores imediatos de valores de uso plausvel de objeo.

    Na realidade, a partir do momento em que comea a estudar a subsuno real do trabalho ao capital, na seo IV do Livro I, dedicada aos procedimentos de extrao de mais-valia relativa, Marx assinala que a cooperao simples, me-diante a qual um grupo de operrios desempenha uma operao produtiva ou, se essa ltima se divide em mais de uma, se decompe em diferentes grupos para execut-la, revela j o carter social do trabalho ou a combinao de uma srie de jornadas individuais do trabalho. Nessa etapa do desenvolvimento capitalista, a fora produtiva especfica da jornada de trabalho combinada a fora produtiva social do trabalho ou a fora produtiva do trabalho social (Marx, I, p.265), ainda que aparea j como fora produtiva do capital.

    A situao comea a mudar na manufatura, quando, como consequncia da diviso do processo produtivo em um conjunto de operaes diversas de durao desigual e inclusive da combinao de vrios processos produtivos, operrios de distintos tipos se renem e so estabelecidas normas de proporcionalidade no modo como a massa coletiva de trabalho deve ser distribuda. A partir de ento cada grupo ou conjunto de operrios que executam a mesma funo parcial est integrado por elementos homogneos e forma um rgo especial dentro do mecanismo coletivo (Marx, I, p.281), que recorre inclusive de maneira espordica ao uso de mquinas. Mas a maquinaria especfica do perodo da manufatura , certamente, o prprio operrio coletivo, produto da combinao de muitos ope-rrios parciais (Marx, I, p.283). Promove-se assim a diferenciao em matria de qualificao (e, portanto, de educao) no seio do operrio coletivo, que d lugar a operrios especializados e pees, cujo resultado em ambos os casos a reduo do valor de sua fora de trabalho, ainda que de maneira desigual (Marx, I, p.284-285). O processo se completa com o advento da indstria fabril, quando a diviso do trabalho na fbrica se torna puramente tcnica:

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    O grupo orgnico da manufatura substitudo pela concatenao do operrio principal com uns poucos auxiliares. A distino essencial a que se estabelece entre os operrios que trabalham efetivamente nas mquinas-ferramentas (inclu-dos tambm nessa categoria os operrios que vigiam ou alimentam as mquinas motrizes) e os simples pees que ajudam esses operrios mecnicos (e que so quase exclusivamente crianas). Entre os pees incluem-se mais ou menos todos os feeders (ou alimentadores, que se limitam a fornecer s mquinas os materiais trabalhados por elas). Alm dessas classes, que so as principais, h a equipe, pouco importante numericamente, encarregada do controle de toda a maquinaria e das reparaes contnuas: engenheiros, mecnicos, carpinteiros etc. Trata-se de uma categoria de trabalhadores de nvel superior, que em parte tm uma cultura cientfica e em parte so simplesmente artesos, e que se mo-vem margem da rbita dos operrios fabris, como elementos agregados a eles. (Marx, I, p.347-348)

    Como vemos, o operrio coletivo compreende distintos tipos de trabalhadores e se organiza em estratos diferenciados, em alguns dos quais seus membros se movem margem dos produtores diretos de valor. Entretanto, envolvidos como os demais na esfera produtiva, estes so parte integrante do operrio coletivo. Certamente, o modo como se apresentava esse operrio coletivo em meados do sculo passado se modificou: nem os pees se constituem hoje prioritariamente de crianas nem a equipe de nvel superior numericamente pouco importante, alm de haver-se diversificado notavelmente. Com base em entrevistas a empre-gados e dirigentes da IBM, Reich (1992, p.85-86) estima que menos de 20 mil de seus 400 mil funcionrios esto classificados como operrios de produo empregados na manufatura tradicional; a imensa maioria de seu pessoal se dedica a outras atividades, como investigao, desenho, engenharia, venda e prestao de servios.

    Isso no que se refere produo. Mas a reproduo do capital no se esgota nela, e sim compreende a circulao e a distribuio, cujas atividades correspon-dem, em geral, ao trabalho improdutivo, pois no afetam o valor criado e no criam, portanto, diretamente mais-valia (salvo excees, como veremos). A lei geral aqui que todos os gastos de circulao que respondem simplesmente a uma mudana de forma da mercadoria no agregam a esta nenhum valor (Marx, II, p.132).

    No entanto, ao considerar o trabalhador da circulao que se ocupa principal-mente na venda (assim como em contabilidade, embalagem, classificao etc.), Marx assinala que ele se paga mediante o desembolso de capital varivel por parte do capitalista que opera nessa esfera, proporcionando ao capitalista em questo um lucro positivo e contribuindo, portanto, a fazer mais rentvel seu capital. Por conseguinte, a partir do ponto de vista da definio dada no Livro I, estamos diante

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    de um trabalhador produtivo, dado que torna rentvel o capital, qualquer que seja a forma sob a qual este se apresenta.1

    Os gastos de circulao referidos ao armazenamento de mercadorias consti-tuem uma variante: no se referem a uma mudana de forma, mas sim conser-vao do valor ou, o que o mesmo, de seu valor de uso, sem o qual no existiria valor algum. Ainda que represente uma paralisao da circulao, o armazena-mento paradoxalmente condio dessa ltima, j que assegura a persistncia e continuidade do processo de circulao e, portanto, do processo de reproduo (Marx, II, p.131).2 Destaquemos que o armazenamento abarca tanto os bens destinados ao consumo como os que se referem ao capital constante fixo e circu-lante, e que nas mudanas de forma que sofre incidem os desenvolvimentos do mercado mundial e dos meios de transporte. Como qualquer atividade econmica, implica investimentos adicionais em capital constante e varivel, que, ainda que representem dedues do valor social total e no deixem, portanto, de ser gastos de circulao, agregam-se ao valor das mercadorias, passam a formar parte de seu valor, ou seja, as encarecem (Marx, II, p.123). Tais gastos envolvem os que se destinam ao pagamento da fora de trabalho empregada nessa atividade e, na mesma linha do raciocnio precedente, concorrem a tornar mais rentvel o capital. A nica situao em que o que aparece como gastos de circulao agrega valor mercadoria a do transporte, pela simples razo de que o valor de uso das coisas pode exigir seu deslocamento de lugar, e, portanto, o processo adicional de produo da indstria do transporte (Marx, II, p.133; grifos nossos). Nesse caso, realiza-se uma adio de valor, que, como sublinha Marx, se decompe necessariamente em reposio de salrios e criao de mais-valia. O transporte representa assim uma atividade produtiva embutida na circulao e aquele que desempenha essa atividade um trabalhador produtivo, do mesmo tipo daquele que objeto de estudo no Livro I, vale dizer, o produtor de valor de uso no marco de um sistema de produo geral de mercadorias.

    A questo do trabalho produtivo, ainda que claramente estabelecida desde o Livro I, como destacamos, s se esgotar completamente no captulo XVII do Livro

    1 A concluso de Marx vai nesse sentido: Para o capitalista industrial, os gastos de circulao aparecem e so, na verdade, gastos mortos. Para o comerciante so a fonte de seu lucro [...]. Por conseguinte, o investimento que esses gastos de circulao supem , para o capital mercantil, um investimento produtivo. E tambm o trabalho comercial comprado por ele , para ele, um tra-balho diretamente produtivo (Marx, III, p. 294; grifos nossos). Colocada a questo nesses termos, o trabalho produtivo aquele que permite ao capital produzir ou apropriar-se de mais-valia.

    2 Autores menos avisados situam o sistema chamado just-in-time praticamente ao nvel das grandes inovaes tecnolgicas contemporneas. De fato, ainda que dependa dessas, j que supe maior sincronizao e padronizao da produo, o just-in-time simplesmente um mecanismo destinado a superar essa contradio, na medida em que reduz os estoques de insumos requeridos no processo de produo, contribuindo a encurtar o tempo de rotao e, portanto, a baixar os custos de circulao. Tais fatores influem decisivamente na taxa de lucro. Sua importncia determinante para a subordinao dos produtores de insumos aos grandes industriais o que, seja dito de passagem, corresponde a uma forma disfarada de centralizao do capital, do mesmo modo que a terceirizao da produo.

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    III, ao se estudar os operrios assalariados mercantis. A pedra de toque aqui a distino entre capital social e capital individual. Depois de estabelecer que sua si-tuao no se distingue da que rege o conjunto de classe operria,3 Marx se dedicar a explicar como os operrios comerciais produzem diretamente lucro para seus empregadores, ainda que no produzam diretamente mais-valia (da qual o lucro no mais do que uma forma transfigurada) (Marx, III, p.286). E a explicao no poderia ser mais simples: Do mesmo modo que o trabalho no retribudo do operrio cria diretamente mais-valia para o capital produtivo, o trabalho no retribudo dos operrios assalariados comerciais cria para o capital comercial uma participao naquela mais-valia (Marx, III, p.287). O mesmo vale para os demais operrios da circulao naquelas indispensveis para que esta tenha curso (bancos, publicidade etc.). Ficam, no entanto, naturalmente excludos os trabalhadores assalariados cuja remunerao corresponde simplesmente a gastos da mais-valia, como o empregado domstico, o burocrata, os membros do apa-rato repressivo do Estado, por mais necessrios que sejam para o capital e para o regime poltico que lhe corresponde.

    Trabalho e classe operriaA partir do que expusemos, possvel sustentar que restringir a classe operria

    aos trabalhadores assalariados que produzem a riqueza material, ou seja, o valor de uso sobre o qual repousa o conceito de valor, corresponde a perder de vista o processo global da reproduo capitalista. Como Marx destaca repetidamente, o desenvolvimento da produo mercantil capitalista no faz seno acrescentar o nmero de trabalhadores assalariados e, portanto, dos operrios envolvidos no processo de reproduo, sem que isso implique necessariamente, como se tem pretendido, que Marx concebesse uma sociedade formada exclusivamente por capitalistas e operrios.4 A partir do ponto de vista estritamente econmico, a tendncia do sistema aumentar, nunca diminuir, a classe operria, ou seja, aquela categoria social formada por trabalhadores pagos mediante o investimento de capital varivel e cuja remunerao sempre inferior ao valor do produto de seu trabalho. Se, por um lado, devido ao aumento da produtividade do trabalho,

    3 Este operrio comercial um operrio assalariado como outro qualquer. Em primeiro lugar, porque seu trabalho comprado pelo capital varivel do comerciante e no pelo dinheiro gasto como renda, o que quer dizer que no se compra simplesmente para o servio desembolsado. Em segundo lugar, porque o valor de sua fora de trabalho e, portanto, seu salrio, determinado, igualmente aos demais operrios assalariados, pelo custo de produo da sua fora de trabalho especfica e no pelo produto de seu trabalho (Marx, III, p.286).

    4 Esse equvoco deriva do fato de que, ao construir seus esquemas de reproduo, na terceira seo do Livro II de O capital, Marx adota essa premissa, por razes que analisamos em outra oportunidade. Ver Marini, 1979, p.20-21. E, referindo-se obra Reforma social ou revoluo?, Grossmann destaca: J em 1899 Rosa Luxemburgo comprova em sua polmica contra Bernstein que a anlise de Marx no supe [...] para a realizao do objetivo socialista [...] o desaparecimento absoluto do peque-no capital e [...] da pequena burguesia, como condio para que se possa chegar ao socialismo (Grossmann, 1979, p.143).

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    tende a se reduzir a quantidade de trabalhadores ligados diretamente produ-o, incrementa-se, por outro lado, o nmero dos que se empregam nas esferas da circulao e distribuio. Trabalho produtivo e improdutivo so, portanto, conceitos historicamente determinados, referidos s atividades que contribuem a valorizar ou a tornar rentvel o capital. Somente em um regime de organiza-o superior, baseado em foras produtivas ainda mais poderosas, ser possvel superar o conceito capitalista de trabalho em favor do de trabalho necessrio ou socialmente til, quando tende ento a crescer em progresso geomtrica a massa de recursos, includo o trabalho, dedicados a atender as necessidades do homem em seu sentido mais amplo. Isso vem sendo anunciado nos pases que tentaram ou esto em vias de tentar formas distintas de organizao econmica, atravs do socialismo. A est, sob os nossos olhos, o exemplo de Cuba, que, apesar de seus problemas econmicos, vem tendo um desenvolvimento social (em matria de educao, sade, previdncia social) infinitamente superior a muitos pases capitalistas industrialmente avanados.

    Sempre verdade que a diversificao de atividades que o desenvolvimento capitalista vem induzindo, sobretudo nesta era de formidvel avano tecnolgico e globalizao, cria dificuldades para definir e quantificar a classe operria. A incidncia do conhecimento no processo de produo, por exemplo, levou a que se constatasse que, na IBM, em 1984, 80% do custo de um computador correspon-diam a seu hardware, vale dizer, prpria mquina, e 20% ao software, o sistema operacional e os aplicativos que nele so utilizados; mas, em 1990, essa proporo se havia invertido, fazendo com que somente 10% do preo de custo se devessem ao processo fsico de produo do equipamento, ou seja, produo do material em si (Reich, 1992, p.83-ss.). Consequentemente, as atividades l realizadas salvo as que, uma vez determinadas, se enquadrassem na categoria de servios ficavam no marco do trabalho produtivo e, desde o ponto de vista estritamente econmico, insistamos nisso, encontravam-se referidas classe operria.

    Um primeiro passo para, sem abandonar a economia, dilucidar o problema posto sobre o que a classe operria consiste em recorrer origem do papel que o trabalhador assalariado desempenha; vale dizer, em saber se esse papel cor-responde a um desdobramento do processo de trabalho ou se corresponde a um desdobramento da funo do capitalista, que Marx resume como direo, vigi-lncia e coordenao (Marx, I, p.267).5 bvio que, se corresponde ao ltimo

    5 Ao desenvolver-se a cooperao em grande escala, esse despotismo [do capital] vai apresentando suas formas peculiares e suas caractersticas; primeiro, assim que seu capital alcana um limite mnimo, a partir do qual comea a verdadeira produo capitalista, o patro se exime do trabalho manual; depois, confia a funo de vigiar direta e constantemente aos operrios isolados e aos grupos de operrios a uma categoria especial de operrios assalariados. Do mesmo modo que acontece nos exrcitos militares, o exrcito operrio posto sob o comando do mesmo capital exige toda uma srie de chefes (diretores, gerentes, managers) e oficiais (inspetores, foremen, overlookers, capatazes, contramestres) que, durante o processo de trabalho levam o comando em nome do capital (Marx, I, p.268).

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    caso, o trabalhador assalariado fica excludo da classe operria, mesmo que seu salrio, educao, costumes e ambiente social o levam a se confundir com ela. Basta observar seu comportamento em um momento qualquer de agudizao da luta de classes uma greve, por exemplo para comprovar isso.

    O passo seguinte tem que se dar necessariamente fora da economia. A pro-cedncia social, os mecanismos de mobilidade a que esto sujeitos, a educao, o ambiente familiar e de trabalho dos indivduos modificam seu comportamento e, mais que isso, moldam sua viso do mundo e a percepo que eles tm de si mesmos. Para definir uma classe social em um momento histrico dado no basta, portanto, considerar a posio que objetivamente ocupam os homens na reproduo material da sociedade. necessrio, alm disso, considerar os fatores sociais e ideolgicos que determinam sua conscincia em relao ao papel que nela acreditam desempenhar. Apesar das crticas que essa assertiva tem sofrido, somente em ltima instncia a base econmica determina a conscincia. E o faz mediante a dinmica social concreta, ou seja, atravs da luta de classes. E a tal ponto que, em circunstncias dadas, mesmo trabalhadores que, por sua posio na reproduo econmica, no esto includos diretamente na classe operria ou que se consideram alheios a ela podem coincidir com suas aspiraes e se assimilar ao movimento operrio.6

    Isso se deve a que, alm da conscincia que possam ter de seu pertencimento de classe, os operrios produtivos ou improdutivos, qualquer que seja a modalidade sob a qual realizam seu trabalho e o mbito onde o fazem, do mesmo modo que outras classes ou fraes de classe submetidas ao capital, tm interesses comuns, cuja percepo estabelece a base possvel de um projeto de vida solidrio. Essa a razo pela qual todas as instituies e mecanismos do jogo poltico que carac-terizam a sociedade burguesa, assim como suas variadas expresses ideolgicas, visam bloquear essa percepo, dissolver a unidade latente entre os trabalhadores antes que esta tome forma, vedar-lhes a passagem para a compreenso dos fatos reais que constituem a essncia da ordem capitalista e de seu desenvolvimento.

    Para contra-atacar a ao desagregadora que o capital realiza, no resta seno refletir sobre esses fatos, buscando discernir em que consistem e para qual direo tendem. Antes de abandonar o campo do marxismo, como muitos esto fazendo por desinformao, perplexidade ou por interesse, seria preciso esgotar primeiro as possibilidades que ele nos oferece para proceder a essa reflexo. De minha parte, estou convencido que isso nos levar a um redescobrimento da classe operria e de qual pode ser hoje o seu papel na tarefa de pensar e construir um mundo melhor.

    6 A adeso dos trabalhadores intelectuais professores, estudantes, profissionais, funcionrios p-blicos a valores de inspirao operria, que foi uma marca distintiva dos movimentos de 1968, resultou da prtica desses setores que, em sua mobilizao por melhores condies de vida e de trabalho, comearam a adotar formas de organizao e luta como o sindicato e a greve. Isso pde ser observado claramente na Amrica Latina desde os princpios daquela dcada e no somente aqui. Os anos 1970 assistiram ao auge dessa tendncia, que hoje se encontra em declnio.

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  • Referncias bibliogrficasGROSSMANN, H. Ensayos sobre la teora de las crisis. Dialctica y metodologa en El

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    Mxico, n.20, abr.-jun. 1979.MARX, K. El capital. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1946-1947.REICH, R. B. The Work of Nations. New York: Vintage Books, 1992.

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