mavericks...Mavericks 11 eventos de surfe. Era o clássico exagero. Seja lá o que fosse considerado...

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Mark Kreidler MAVERICKS A onda sinistra Tradução: Julia Romeu

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Mark Kreidler

mavericksA onda sinistra

Tradução:

Julia Romeu

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divergência de energia da onda

(ondas menores)

convergência de energia da onda

(ondas maiores)

divergência de energia da onda

(ondas menores)

Mavericks – Half Moon Bay, Califórnia= “raios” da onda ou camadas de energia da onda= cristas da onda

S

NMetros

500 10002500O L

A energia das ondas é deslocada para cima e para baixo da costa em torno de Half Moon Bay, em geral como resultado de tempestades formadas perto da costa do Japão. A seta grande, no centro, mostra o ponto em que as energias da onda convergem para formar as ondas em Mavericks.

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Capítulo 1

Dobrando uma esquina em Pillar Point, o surfista encarou a nebulo-sidade da manhã e os leves esguichos de água salgada, e chegou a

uma faixa estreita de praia. Aquela passarela de areia levava até as pedras e o quebra-mar e, muito além de onde sua vista alcançava, a gigantescos paredões de água que, ele tinha certeza, estavam quebrando ao longe. O famoso costão ao seu lado já estava pululando de gente, ameaçando o terreno instável do penhasco. Ao ver as condições radicais ao seu redor, sentir a areia fria debaixo dos pés e já sabendo o que sabia, algo que apenas uma vida inteira passada naquele exato local poderia ter-lhe dito, Grant Washburn imediatamente entendeu duas coisas.

Em primeiro lugar, tinha uma chance excelente de pegar a onda da sua vida ou sofrer uma morte dolorosa. Em segundo, as pessoas que estavam na água não seriam as únicas castigadas.

Ali, com sua prancha de nove pés e oito polegadas, Washburn, ele próprio com a imensa estatura de ,98 metro, parou por um momento para absorver a cena que se descortinava diante de seus olhos. Havia um circo na areia. Tendas e barraquinhas por todo canto, pódios, palcos, equipamento de som, brindes de patrocinadores empilhados sobre mesas improvisadas. Tinha uma barraquinha vendendo bourbon – eram drin-ques sendo passados de mão em mão? Espalhava-se pelo ar um aroma de pizza e salsichas, como em qualquer festival: vendedores ambulantes ofereciam esses alimentos a alguns metros dali, num estande onde você podia comprar sua própria camiseta de Mavericks e outras lembranças. Tudo se assemelhava aos cem metros anteriores à saída de um parque de diversões.

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Dali, de onde os espectadores estavam perambulando, não havia chance nenhuma de observar direito o pico em si e a onda que causara todo aquele carnaval. Só dava para ver nuvens baixas, um sol alto e um pouco de mar. Seria melhor para eles comprar uma pizza de pepperoni e voltar para casa para assistir ao evento transmitido por webcast em seus laptops. Mas Washburn já sabia que aquelas pessoas não iriam embora. A maioria era amadora; não entendia nada. Foi esse pensamento, e não o ar de fevereiro que vinha do mar em Mavericks, que fez Washburn ter um calafrio.

Com um só olhar, Grant se deu conta de que os espectadores não compreendiam que não dava para ver o evento daquele local, nem se as nuvens se abrissem e dessem lugar a uma tarde perfeita e cristalina. Tinham apenas uma vaga ideia de que estavam se colocando em perigo ficando assim tão próximos do quebra-mar. E, uma vez que aquela era uma área pública, ninguém estava com muita vontade de lhes dizer que não deveriam permanecer num lugar onde, legalmente, tinham o direito de estar. Claro que não era proibido ficar ali, mas o bom senso e a longa experiência diziam a Grant que os espectadores com certeza levariam um banho da onda. Mas, hoje, ninguém iria impedi-los.

Afinal, aquilo era um evento; não um dia normal de surfe, ou pelo me-nos não apenas um dia normal de surfe. As pessoas que estavam dentro da água hoje iam arriscar suas vidas e seus ossos até um ponto incomum, mesmo para os padrões do lugar. Muitos seriam castigados pelas ondas, ainda que conseguissem evitar uma tragédia completa. Somente essa ideia já fazia daquilo um acontecimento. Washburn tinha de admitir: até as pessoas que sabiam o que estavam fazendo – que conheciam o humor inconstante da onda – permaneciam na praia. Havia resultados a ser anunciados, um webcast a ser produzido, planos de operadoras de celular a ser empurrados para o público, um evento a ser gravado e editado, comida a ser vendida.

Naquele exato momento, Grant Washburn sentiu que estava parado na esquina das avenidas Alma e Comércio. Ficava bem ali, em Pillar Point.

Até aquele inverno, Mavericks, de acordo com muita gente, havia rea-lizado o sonho daqueles que o promoviam e se tornado o Super Bowl dos

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eventos de surfe. Era o clássico exagero. Seja lá o que fosse considerado demais – gente demais, comercialização demais –, dali em diante a compe-tição ia se aproximar desse limite e depois ultrapassá-lo. Washburn passara anos vendo o evento nascer e crescer em termos comerciais. Sendo um dos veteranos da área, ele tivera seu papel na crescente popularidade do lugar entre pessoas que nunca haviam surfado e jamais surfariam. Dera inúmeras entrevistas; compartilhara seu tempo e seus conhecimentos com documentaristas, cientistas do surfe, repórteres, cineastas. Vira a corrida do ouro que se seguira quase passando por cima de um de seus melhores amigos, Jeff Clark, fundador e padrinho do campeonato. Grant surfara em todas as competições, filmara a onda dúzias de vezes e colaborara com um livro de fotos e ensaios sobre ela. Tinha orgulho de ser um dos pouquíssimos seres humanos que alguma vez tentaria realizar algo tão claramente insano quanto descer uma onda de quinze metros. E Grant acreditava em celebrar aquele lugar, não escondê-lo, e celebrar as pessoas que, como ele, o amavam sem reservas.

Nem ele nem seus irmãos de competição eram contra a ideia de ga-nhar um pouco de dinheiro para surfar a onda que adoravam dropar de graça, ou até pagando, durante todo o resto da temporada. Era o tempo no mar que eles mais valorizavam, a fraternidade, o desafio, o risco e a adrenalina da coisa, e a recompensa indescritível de conseguir domar uma minúscula fração do poder natural incrível que revolvia e ribombava por Pillar Point, eterno e implacável. Aquela parte era espiritual e real. O resto eram só negócios – pegar um pouco da grana que outras pessoas haviam descoberto como arrancar de Mavs. Se alguém merecia um pouco, com certeza eram os caras que arriscavam a pele.

Ainda assim, hoje era diferente. As ondas estavam maiores e mais assustadoras, e o público, maior e mais desorganizado. Washburn viu tudo; viu o que ia dar errado. Não queria que ninguém que estava ali só para assistir se machucasse. “Vocês vão ser arrastados pela onda”, disse sem rodeios para o grupo de vendedores de companhias telefônicas à sua frente. Olhou em volta de novo e lembrou por que, anos antes, dissera à esposa e às filhas que parassem de ir à praia em dia de competição. Grant

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era o único membro da família Washburn que se arriscaria – e mesmo ele, aos 42 anos, só estava disposto a correr riscos nas ondas quando eles eram calculados ao máximo. No entanto, esses riscos existiam, e cobravam um preço bem alto – hoje, mais do que nunca. O resto da família não ia se aventurar daquela maneira.

Do outro lado da praia, Grant encontrou algumas das pessoas que estavam tentando cuidar da segurança e disse que deveriam colocar os produtos, as tendas e, acima de tudo, os espectadores num lugar mais seguro, atrás do penhasco. Ele sabia que as ondas iam cair com tudo em cima daquela faixa estreita de areia, espirrando jatos de água salgada sobre o quebra-mar e arrastando tudo o que houvesse pela frente. A sensação era a de que o dia seria daqueles, e, para um surfista, essa sensação é tudo. Na verdade, para qualquer pessoa que frequentara Mavericks ao longo dos anos, essa era uma conclusão automática baseada nas condições. As ondas estavam se formando tão longe no mar e caindo sobre Mavericks com tamanha força que acabariam carregando vestígios daquela energia potente até o quebra-mar. Isso já havia acontecido milhares de vezes antes.

Além do mais, aquilo que estava prestes a ocorrer se via logo ali, na tela do computador de quem quisesse ver, e já fazia algum tempo. Washburn e os outros surfistas tinham visto esses swells atravessando o Pacífico dias antes; estavam rastreando a tempestade desde que ela nascera, acompa-nhando os modelos de previsão de tempo que seu colega Mark Sponsler construíra em seu site. Esse padrão de onda específico havia passado pelo buraco da agulha e atravessado quase 3 mil quilômetros de mar aberto, chegando até esse minúsculo ponto do mapa como um monstro. Os surfis-tas estavam mais alucinados do que nunca. Mesmo para uma tempestade que criara swells tão gigantes, a chance minúscula de todas as variáveis se harmonizarem da maneira perfeita para trazer a onda até Mavericks ainda era minúscula. Quando acontecia, sempre parecia um milagre.

Dessa vez, as ondas seriam épicas. E épico, na água, significava uma potencial catástrofe na praia.

Washburn sentiu certa vontade de pegar um megafone e gritar para a massa ali reunida que saísse da zona de perigo, mas sabia que não faria

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muita diferença. E, no fim das contas, Grant Washburn estava ali para surfar; não para cuidar da segurança. Sua bateria na competição ia come-çar logo. Grant queria entrar na água e remar para longe para ver bem as ondas que Mavs produzira para ele hoje. Balançou a cabeça, desanimado com aquela confusão na praia. Grant não era a polícia do mundo – mas talvez alguém devesse ser. Um dos seguranças havia assentido para Grant quando ele falara do perigo, como se quisesse dizer que compreendia o que ele estava tentando lhe dizer sobre afastar todo mundo do que pro-vavelmente seria a área de impacto, mas o surfista teve certeza de que nada ia mudar. Os patrocinadores ainda estavam chegando. O pessoal da TV e do webcast estava conectado. A bruma ia se dissipar e se transformar numa tarde espetacular, digna de cartão-postal, e os surfistas dançariam dentro de um abismo aquático para divertir – e talvez chocar – as massas.

Os fãs queriam o que queriam. Seria um espetáculo. Washburn pegou sua prancha e se afastou do público, entrando na

parte rasa da água. Após remar para longe, pôde ver as ondas entrando, as séries se enfileirando a quase ,5 quilômetro da praia. Era colossal. Grant não podia impedir o que vinha; seria futilidade tentar. O que podia fazer era ir até lá, como fizera várias vezes nos últimos quinze anos, e se co-nectar com ela. Nem sempre era tão imensa e tão arriscada, e nunca fora tanto num dia de competição; mas ela estava lá. Era a onda de verdade, e Grant Washburn sabia exatamente o que fazer, pelo menos em relação àquela parte. Sabia como aceitar a energia, se alinhar com as forças natu-rais, domar a adrenalina, acalmar os nervos e descer a onda. Grant sabia que, hoje, tudo podia mudar, para melhor ou para pior.

E Grant pensou também em Mark Foo, um conhecido big rider ha-vaiano que anos antes morrera ali, numa onda que não devia tê-lo matado, num dia que não era nem de longe tão grandioso. A morte trágica de Foo ficara como uma lembrança gélida de que qualquer surfista podia ser esmagado pelo que pareciam ser condições normais. Era parte do risco gigante no qual todos eles eram viciados. Mas hoje a coisa iria além. Era um daqueles dias – Grant mal precisou de um olhar para perceber – nos quais nem todo o treinamento do mundo, nem todo o vigor e toda a força

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ajudariam qualquer um deles a chegar do outro lado sem se arrebentar. Não daria para sobreviver só porque você tinha levantado mais peso, feito mais exercício em terra ou ficado mais tempo prendendo a respiração. A questão não era preparo físico ou coragem; não era resistência. Você não conseguiria ultrapassar o perigo só com sua vontade. Dessa vez, Mavericks exigia uma tonelada de experiência e quatro de respeito. Menos que isso e você seria destroçado.

Algumas horas antes, quando Washburn ainda não entrara no mar, seu colega, o surfista da Cidade do Cabo Chris Bertish, estava se revirando na cama, tentando dormir. Era um descanso do qual Bertish precisava desesperadamente, mesmo que fosse só por algumas horas. Mas sabia que isso não aconteceria, pelo menos não por enquanto. A visão continuava fugindo. Quando a visão fugia, a paz não era possível.

Chris escolhia ser uma pessoa otimista, mas esse problema precisava ser resolvido. Não era uma questão de localização; não se sentia perdido. Não estava cansado. Estava, como seria de se esperar, um pouco tenso após ter viajado por 36 horas consecutivas, durante as quais havia con-seguido, graças à sua lábia, pegar a última conexão para a costa oeste dos Estados Unidos, perder todo seu equipamento em algum ponto do trajeto e então precisar se hospedar na casa de outra pessoa para relaxar. Mas nada disso, em si mesmo, era necessariamente singular; Chris ex-perimentara a maior parte daquelas coisas de uma maneira ou de outra dúzias de vezes. Afinal, atravessar o globo com tão pouco tempo para se organizar tinha seus problemas. Sabia por experiência que, quando por fim deixasse acontecer, quando se permitisse completar a imagem que havia em sua cabeça, poderia descansar por algumas horas. Mas o problema é que ele não conseguia deixar acontecer. Não conseguia se soltar. A cena sempre ocorria da forma errada.

Bertish sempre visualizara. Era assim que se preparava mentalmente para descer ondas do tamanho de prédios. Principalmente na noite ante-rior a uma grande competição, Chris repassava toda a sequência de surfe

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na cabeça, dissecando as idas e vindas de cada onda até conseguir ver um caminho livre da crista à parede, por dentro do tubo e até o outro lado. Imaginava-se remando até estar na posição e caindo para dentro da onda, cravando na prancha um pé direito firme e uma borda sólida na água agitada. A gigantesca barreira líquida se engrossaria lá em cima, e Chris encontraria uma maneira de atravessá-la, com um timing puro e perfeito. Ele surfaria exatamente como queria, com uma deslizada limpa, e a onda permitiria que passasse em paz. Era rítmico e universal, a epítome de sua ligação com o oceano e com a onda.

A visão era linda e f luida. E também estava comicamente em de-sacordo com o que de fato acontecia na água na maioria das vezes. Lá, tudo era turbulência e espuma; um barulho como o de um trem de carga ribombando em seu crânio. Eram sentidos constantemente aguçados e adrenalina absorvida aos quilos. Chris era um dos destemidos surfistas de ondas grandes, um autêntico. Enfrentava séries colossais que outros caras deixavam passar, e seus esforços eram recompensados com energia e arrepio – e também, às vezes, com dor, desorientação, exaustão. Chris, da adolescência até agora, aos trinta e tantos anos, sempre estivera disposto a se atirar no caos, mesmo quando a razão e a prudência não aconselhavam. Ia a lugares aonde até os outros big riders tentavam convencê-lo a não ir. Matava dragões. E amava tudo aquilo.

Chris Bertish enfrentava as ondas, pegava algumas incríveis e dava aos fotógrafos e cinegrafistas oportunidades de captar imagens maravilhosas. Também se arrebentava com frequência. Sofrera uma lesão no ligamento colateral medial do joelho esquerdo no ano anterior. Surfara um dos dias de maiores ondas em Mavericks aquela temporada com duas costelas que-bradas, simplesmente cobrindo o torso com camadas justas de papel filme, fechando sua roupa de borracha e indo para o mar. Chris já fora partido e rasgado, já ficara preso embaixo d’água pela força da onda tantas vezes que conhecia bem os primeiros estágios da perda de consciência – aquela sensação de calma e paz que o dominava quando começava a desmaiar. Sabia como lutar contra isso por tempo suficiente para sobreviver quando o poder da onda o obrigava a submergir. Sabia como ganhar.