Mediação Popular e Movimentos Sociais
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MEDIAÇÃO POPULAR E MOVIMENTOS SOCIAIS
Ana Lia Almeida
Núcleo de Extensão Popular Flor de Mandacaru (UFPB)
Resumo:
A mediação popular pode ser uma prática de resistência ao paradigma oficial de
resolução de conflitos, servindo aos movimentos sociais como um instrumento de
fortalecimento de suas lutas. A condição para isso é que a mediação seja desenvolvida como parte de um projeto político emancipatório, pautando a solução dos conflitos no
reconhecimento da dimensão coletiva dos mesmos, na autonomia e no respeito à alteridade.
Palavras-chave: mediação popular – movimentos sociais – conflito - política –
emancipação.
1. Introdução
O debate acerca da democratização do acesso à justiça tem estado cada vez mais em
foco em nosso país. Os motivos para isto são os mais diversos, variando desde a necessidade
de desafogar o Judiciário até o reconhecimento da necessidade de estimular a autonomia das
partes na solução dos conflitos em que estão envolvidas. Inserida neste debate está a
mediação.
A mediação é uma técnica de superação de conflitos que conta com a colaboração de
uma terceira pessoa para facilitar o diálogo entre os envolvidos no problema. Assim como
ocorre com o debate do acesso à justiça, há também várias perspectivas em relação à
mediação. Infelizmente, é o utilitarismo que vem predominando no desenvolvimento da
mediação no Brasil, concebendo esta técnica como um simples meio de evitar que algumas
causas – especialmente as ligadas às camadas populares – cheguem ao Judiciário.
A perspectiva que adotamos compreende a mediação como uma proposta
transformadora das relações através do tratamento do conflito, uma técnica de estímulo ao
diálogo que pode servir a um projeto emancipatório. Daí a importância do seu
desenvolvimento enquanto parte de uma proposta política ligado aos interesses dos
movimentos sociais de contestação.
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Para desenvolver esta abordagem, recorreremos à sociologia para refletir acerca da
compreensão do conflito na nossa sociedade. O conflito é considerado uma disfunção que
desequilibra a sociedade e portanto merece ser combatido? Ou é algo necessário e positivo,
que possibilita as mudanças sociais? Depende da forma como compreendemos a organização
social e os seus mecanismos de controle. E o direito é um dos mais fortes destes mecanismos.
Buscaremos refletir acerca do papel do direito enquanto um instrumento de controle a
serviço da classe dominante que tem um olhar ideológico sobre o conflito. O direito, de um
modo geral, concebe o conflito como uma disfunção que perturba o suposto equilíbrio das
relações. Especificamente no que tange aos conflitos coletivos, oculta a sua dimensão política
os reduzindo a uma mera questão jurídica. Aqui se insere a questão da criminalização dos
movimentos sociais, que não passa de uma expressão do controle social do direito combinada
a outros mecanismos de controle, como a mídia oficial.
O direito oficial, portanto, demonstra sua face classista em dois âmbitos: por um lado,
essa proteção aos interesses da classe dominante sempre que ocorre um conflito inter-classista
– como uma ocupação de terras, em que o fazendeiro terá sempre a razão. Por outro lado, o
direito oficial é também inadequado para resolver os conflitos intra-classe trabalhadora, por
estar fortemente pautado na moral burguesa e na propriedade. Por causa destes problemas
referentes ao direito oficial, os movimentos sociais precisam fortalecer mecanismos internosde pacificação de conflitos, que contribuam para suas lutas e estejam pautados em normas
próprias.
Pensamos que a mediação pode se desenvolver como um desses instrumentos. Mas,
para se configurar como um instrumento de fortalecimento das lutas sociais, a mediação
precisa estar pautada em alguns princípios que apontem para uma perspectiva emancipatória –
como a autonomia e a alteridade. A mediação, portanto, precisa ser parte de um processo mais
amplo de emancipação em direção a uma ordem igualitária. É o que passamos a discutir.
2. Sociedade e conflito
O conflito é um elemento indissociável da nossa vida humana. Ele está presente em
diferentes âmbitos das relações entre as pessoas e inclusive no plano da consciência de um
único indivíduo – os conflitos intra-psíquicos que, uma vez externados, podem gerar outros
tipos de conflitos (COSTA: 2004, p.11-13). Assim, podemos falar em conflitos inter-pessoais,
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inter-grupais, coletivos, interculturais, etc. A psicologia e a comunicação têm uma enorme
contribuição para a compreensão dos mecanismos que envolvem as experiências conflituosas.
No campo do direito, a compreensão do conflito é de extrema importância. Isto porque
é em função de evitar o conflito que os juristas organizam as normas padronizadoras do
comportamento, e em função de extirpá-los das relações sociais inventam os critérios formais
de solução de conflitos. Em que pese esta centralidade do conflito para o direito, a ciência
jurídica dispensa muito pouca atenção a sua dinâmica, às suas causas, às melhores formas de
superá-lo, e, especialmente, às relações que existem entre o conflito inter-individual e os
problemas coletivos.
A sociologia contribui enormemente para este último debate, nos apontando que as
formas que concebemos os conflitos estão intimamente ligadas ao modo como
compreendemos a organização da sociedade, como veremos em seguida.
2.1. Teorias sociológicas sobre a organização social
A tradição sociológica nos apresenta duas correntes antagônicas para explicar a
organização da sociedade: a teoria do consenso, de orientação funcionalista 1, e a teoria do
conflito, que se consolida com a análise marxista. Deste antagonismo decorre também as
divergentes formas de se compreender a função e os instrumentos do controle social. Controlesocial são os mecanismos apresentados pela sociedade para fazer com que as pessoas se
comportem de maneira socialmente aprovada, integrando-se harmonicamente ao corpo social.
Relaciona-se com o processo de socialização, estando intimamente ligado aos conceitos de
poder e de dominação (SABADELL: 2000, p.113-114).
Pela teoria sociológica do consenso, defendida por teóricos como Durkheim, Pareto e
Parsons, o conflito é visto como um desequilíbrio, uma patologia social que perturba a ordem.
Já pela teoria sociológica do conflito, ou da coação, cujos defensores mais ilustres são Marx,
Sorel, Touraine e Dahrendorf, o conflito é visto como um elemento essencial que impulsiona
a sociedade, fator de criatividade, dinamismo e mudanças (WOLKMER: 2001, p.94).
1 O funcionalismo é uma tradição sociológica que empreendeu uma analogia entre a sociedade e o corpohumano, ambos em perfeita harmonia. Assim como os órgãos devem estar todos sadios para que o corpohumano esteja em ótimo funcionamento, as instituições sociais também formam um todo equilibrado. Asinstituições seriam meios coletivos de satisfazer necessidades sociais, cada uma tendo uma função específica eestando integrada às outras. O conflito, nesta concepção, é comparado à doença, precisando ser eliminado dasociedade.
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A teoria do consenso – ou do equilíbrio – concebe a sociedade como um sistema de
relações estáveis “que tende à manutenção da ordem estabelecida para sua organização
através do consenso” (VILA NOVA: 1944, p.50). Nesta perspectiva, o conflito é
compreendido como um mal a ser expurgado, que desequilibra a sociedade e por isso não
deve existir. Assim, o controle social tem a função de “impor regras e padrões de
comportamento para preservar a coesão social perante comportamentos desviantes”
(SABADELL: 2000, p.117), diminuindo os conflitos e garantindo a paz e a harmonia social.
Já para a corrente conflitualista, é o conflito, e não o consenso, a característica
fundamental e necessária da sociedade. O conflito é necessário porque é a força motriz das
mudanças sociais. A sociedade seria, assim, um sistema de equilíbrio precário, marcada por
conflitos de interesses entre as diferentes classes sociais, em constante transformação (VILA
NOVA: 1985, p.50).
O controle social, na perspectiva da corrente conflitualista, teria a função de garantir o
favorecimento dos interesses da classe minoritária que detém o poder e a riqueza. Seriam
ocultados, assim, questionamentos acerca do que se controla e de quem é controlado, ou seja,
em detrimento de quem o controle é exercido e em função de quê. O controle social
condicionaria as pessoas para que elas aceitassem as desigualdades, identificando a ordem
com a justiça.Desigualdade, justiça, ordem e controle social são temas centrais para o direito.
Portanto, uma leitura sociológica do direito é de grande importância para os juristas, embora a
ela não seja dada a devida atenção, devido à distância que ainda persiste na mentalidade dos
juristas em relação à interdisciplinaridade. Chegamos a um debate em relação ao qual é
preciso travar um diálogo íntimo entre sociologia e direito: a análise de como o direito lida
com o conflito e participa da socialização através do controle social. Compreendemos que o
direito exerce o importante papel de neutralizar os conflitos, na medida em que legitima asdesigualdades através do discurso que prioriza a ordem em detrimento da justiça.
2.2. Direito e controle social
As duas referidas tradições sociológicas (consensualista e conflitualista) também nos
fornecem elementos antagônicos para compreensão da forma através da qual o direito exerce
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o controle social. Destaquemos que o direito é uma forma particular de controle social, pois
tem o poder oficial de ditar quais normas devem ser seguidas pela sociedade. As suas normas
são interpretadas e aplicadas por agentes oficiais, protegidas, portanto, pelo poder da violência
legitimada que o Estado exerce.
Por um lado, a teoria do consenso proclama que o direito tem a função de garantir a
paz social e, para tanto, tem como principais características a certeza (advindas da publicidade
e clareza das normas jurídicas), a exibilidade, a generalidade e, principalmente a garantia do
bem comum (SABADELL: 2000, p.131-132).
Já a teoria do conflito desconstrói esta concepção, sustentando que a prática das
instituições contradiz estas funções declaradas quando da aplicação do direito. Nesse sentido
corrobora a afirmação de Warat (1995, p.135):A força comunicacional da ciência jurídica passa vitalmente por um jogo designificados ilusórios; um território encantador onde todos fazem de contaque o Direito, em suas práticas concretas, funciona à imagem e semelhançado discurso que dele fala.
Há um caráter ideológico na abordagem funcionalista quando sustenta que o direito
tem como finalidade a garantia do bem comum e o respeito aos princípios da certeza e
generalidade, pois na verdade estes mecanismos só protegem de fato os interesses da classe
dominante. Esta perspectiva é mais acentuada no que diz respeito ao direito penal:Assim sendo, os funcionalistas cometem um grave erro científico, porque“crêem” no discurso oficial do sistema penal, pensando que as suas funçõesdeclaradas (proteger os bens jurídicos de todos, respeitar os princípios dacerteza, da generalidade etc.) são aquelas realmente desenvolvidas na prática(SABADELL: 2000, p.135).
Sendo assim, temos na verdade um poder punitivo ilegítimo, que está a serviço do
poder dominante, protegendo interesses particulares de uma classe que são propagados como
interesses gerais. Ademais, não há, de fato, uma distinção absoluta entre o bem e o mal,
conforme pretende a ordem estabelecida pelo direito. A definição do que é ou não legal
depende de aspectos históricos da sociedade, e principalmente de que bens serão tidos como
os mais valorados de acordo com o grupo que está no poder.
No caso de uma sociedade capitalista marcada por profundas diferenças de classe, não
é surpresa a exagerada repressão legal aos crimes contra a propriedade – de que os
movimentos sociais de luta pela terra urbana e rural são alvos constantes. Haveria ainda uma
extrema desigualdade na aplicação das normas, em vez da generalidade e impessoalidade
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propagada pela teoria do consenso. As normas são aplicadas desfavoravelmente para a
população pobre, sujeita aos preconceitos e estereótipos dos aplicadores da lei, enquanto a
parcela poderosa da população sempre encontra “jeitinhos” de escapar à aplicação da lei –
muitas vezes por corrupção.
O discurso do direito gera, nesta perspectiva, alguns efeitos importantes. O primeiro
deles é o de ocultar a sua própria condição de discurso, naturalizando as verdades que produz
sem que fique explícito o lugar de poder que ocupa. Em segundo lugar, o mito em torno da
lei, erigida em um forte símbolo da racionalidade, quando, na prática, a sua elaboração,
interpretação e aplicação não têm nada de racional. Em relação ao conflito, o discurso jurídico
gera o efeito de negar a divisão da sociedade, simulando uma unidade que não existe de fato,
mas é simbolicamente construída pela igualdade formal (WARAT: 1995, p.59-60).
Adotando a posição da corrente conflitualista, percebemos que os conflitos são
administrados pelo direito, de modo geral, tomando como parâmetro a proteção dos interesses
da classe dominante. Em função desta estreita relação com os interesses econômicos, a
administração dos conflitos por parte do direito tende a criminalizar, simplesmente, as ações
de pessoas e grupos que de alguma forma contestam esta ordem injusta de dominação. É o
que vem acontecendo de modo muito acirrado com os movimentos sociais.
2.4. A criminalização dos movimentos sociais.
Os atuais movimentos sociais são um grande exemplo da adeqüabilidade da análise
conflitualista sobre a sociedade e o controle social exercido nela. A ação organizada dos
movimentos, por mais heterogêneos que sejam, tem em comum a demonstração da
insatisfação de diversos e amplos grupos com as injustiças sociais. Estas lutas refletem a
disputa de poder que existe na sociedade, e somente a partir delas é possível uma mudança
estrutural em direção a uma sociedade justa, rompendo com a histórica ordem de dominação à
qual a maior parte da humanidade se submete. Percebamos que é somente a partir destas
lutas, ou seja, do conflito, que é possível a mudança necessária.
Não pretendemos nos aprofundar no debate sobre as diferenças entre as perspectivas
dos movimentos sociais de hoje e a dos “velhos” movimentos típicos de contestação, que
tinham a questão de classe como um elemento aglutinador. Fiquemos com a idéia de que os
ditos “novos” movimentos sociais têm a identidade como um elemento central. Identificando
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estes grupos, WOLKMER (2001, p.239) coloca que as novas identidades "compõem uma
constelação de múltiplas subjetividades coletivas" que aglutinam:
os camponeses sem-terra, os trabalhadores agrícolas, os emigrantes rurais; os
operários mal remunerados e explorados; os subempregados, osdesempregados e trabalhadores eventuais; os marginalizados dosaglomerados urbanos, subúrbios e vilas, carentes de bens materiais e desubsistência, sem água, luz, moradia e assistência médica; as crianças pobrese menores abandonados; as minorias étnicas discriminadas; as populaçõesindígenas ameaçadas e exterminadas; as mulheres, os negros e os anciãosque sofrem todo tipo de violência e discriminação; e, finalmente, asmúltiplas organizações comunitárias, associações voluntárias e movimentossociais reinvindicativos de necessidades e direitos.
Os atuais movimentos sociais se utilizam, via de regra, de meios pacíficos para
reivindicar do Estado direitos sociais historicamente negados a seus grupos – moradia, acesso
à terra, igualdade de gênero, igualdade racial, reconhecimento étnico, etc. A impossibilidade
de atender a estas demandas decorre do caráter classista do Estado, cuja existência se realiza
em função da gerência dos negócios das classes dominantes e sua proteção. Cada vez mais, os
movimentos vêm vivenciando estes limites no cotidiano de frustração das suas lutas.
Incapaz de gerenciar de modo satisfatoriamente conciliador os interesses populares
com os interesses das elites dominantes, o Estado neoliberal mostra para os primeiros a sua
face repressiva em nome da manutenção da “ordem”. A ordem da opressão.A verdade é que as instituições estatais, especialmente o Poder Judiciário, têm atuado
historicamente como verdadeiros carrascos da ordem opressora burguesa. Em nosso tempo,
que é de acirramento das desigualdades sociais em função da atual ordem econômica, os que
se distanciam do mundo do dinheiro, do sucesso, do poder (ou seja, a grande maioria das
pessoas) são considerados os “outros”, que estão sob constante suspeita de serem perigosos à
estabilidade da ordem.
Ousar contestar as injustiças, propor novas formas de vivência humana, sãoconsideradas, absolutamente, condutas perigosas. Perigosas porque podem repercutir no
mundo dos “outros”, os excluídos, como uma promessa de tempos melhores – o que os faria
perceber que não têm nada a perder rompendo com a ordem opressora. Há um poema de
Bertold Brecht, Os dias da Comuna , ilustrativo dessa idéia, do qual citaremos apenas o
primeiro trecho:
Considerando nossas fraquezas os senhores forjaram/ as suas leis para nosescravizarem/ As leis não mais serão respeitadas/ considerando que não
queremos mais ser escravos/ Considerando que os senhores nos ameaçam/7
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com fuzis e com canhões/ Nós decidimos: de agora em diante/ temeremosmais a miséria de que a morte2.
Temer mais a miséria do que a morte é uma libertação: significa perceber a opressão e
não mais se submeter a ela. Dito de outro modo, significa romper com os efeitos do controle
social, mostrando que não existe harmonia nem paz social, mas opressão e injustiça de poucos
em detrimento de muitos. E lutar contra elas através do conflito, do confronto necessário à
alteração da ordem. O controle social atuaria, neste sentido, como mecanismos de fazer com
que a luta política dos movimentos seja considerada um desvio da harmonia social, perigosa.
Concordamos com a hipótese de Fernanda Vieira, quando sustenta que
a atual fase do modo de produção capitalista de cunho neoliberal, tenderia a
ampliar o rol de categorias entendidas como perigosas, exercendo um maior controle sobre estas, em especial sobre movimentos sociais que adotam naconstrução de direitos, ações de desobediência civil, como o MST, que serãocriminalizados, em nome da lei e da ordem (VIEIRA:2004, p.2).
Um grande, triste e atual exemplo deste quadro criminalizatório por parte do Estado
são os últimos acontecimentos envolvendo diversas instituições estatais, entre elas o
Ministério Público, no estado do Rio Grande do Sul. Recentemente, uma ação civil pública
foi ingressada com o intuito de impedir manifestações pacíficas do MST nesse estado, além
de outros documentos que identificam o movimento como um grupo criminoso, determinamque as crianças sejam retiradas das manifestações e que as escolas do MST sofram uma
intervenção para “adequações pedagógicas”3.
Mas este é apenas um dos muitos exemplos. No país inteiro há rotineiramente despejos
ilegais dos sem-teto e sem-terra, ações judiciais contra cotas raciais, condenação de lideranças
por formação de quadrilha, represálias às atividades de ocupação das reitorias pelo
movimento estudantil, prisões políticas enquadradas nos mais variados tipos penais. Na
análise de Roberto Efrem Filho (2008, p.1), a criminalização dos movimentos sociais provocauma deslegitimação dos sujeitos coletivos e suas lutas políticas:
Se o MST é caso de polícia e de “Justiça”, definitivamente não é possível tê-lo como um agente político legítimo, cuja expressão deve ser respeitada.Fechado está o ciclo, desse modo: o MST vai preso e, a partir daí, ademocracia se realiza saudavelmente. É de se notar ademais que acriminalização do MST vai além do Movimento, atingindo sobremaneira
2 Poesia disponível em http://www.insrolux.org/poesias/osdiasdacomunaparaomural.htm. Esta poesiafoi dramatizada pelo MST na mística de abertura do debate ocorrido na Universidade Federal da Paraíba contra acriminalização dos movimentos sociais, na noite de 29.jul.2008.
3 Informações retiradas do modelo de carta de repúdio disponibilizada no site do MST, acessível em: <http://www.mst.org.br/mst/especiais.php?ed=71>. Acesso em 29.jul.2008.
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suas causas e reivindicações. O reconhecimento do direito à terra como umdireito humano e a reforma agrária deixam de ser propostas políticas para setornarem associações à criminalidade.
Para além do âmbito estritamente jurídico, vivemos cotidianamente a difusão dodiscurso discriminatório e criminalizatório através da mídia, que repercute fortemente no
senso comum. São as matérias de jornais e revistas que deturpam as ações dos movimentos,
que estigmatizam seus integrantes como desordeiros, enfim... que reduzem as propostas
alternativas de vivência no mundo como simples desvios da ordem.
Concluindo a discussão deste tópico, sustentamos que a atividade dos movimentos
sociais são expressão dos conflitos existentes na nossa sociedade, marcada por profundas
opressões – de raça, gênero, geração, etc., mas, especialmente, de classe. Fica claro que a
sociedade não é um todo harmônico, integrado, como ideologicamente nos tenta convencer o
liberalismo científico das teorias consensualistas. O que existe é o conflito entre estes grupos
oprimidos e os grupos detentores do poder político e econômico. Por causa da existência
destes conflitos, os mecanismos de controle social – em função da manutenção dos interesses
da classe dominante – vão marginalizar a luta destes grupos, criminalizando as suas
atividades.
O processo de criminalização dos movimentos sociais nos leva a refletir o quanto o
nosso direito é classista. Em sua maioria, as normas jurídicas protegem os interesses da classe
dominante, a exemplo da proteção à propriedade. E quando beneficiam o povo, as leis não são
aplicadas, a exemplo da ineficácia dos direitos sociais. O Judiciário cumpre bem com este
papel, na medida em que os juízes, salvo raríssimas exceções, aplicam a lei de acordo com a
conveniência da sua própria classe social.
Boaventura de Sousa Santos (1993, p.45) analisou este fenômeno da falta de confiança
no Estado, como um todo, e especialmente no Judiciário a partir da observação da dinâmica
da relação de uma ocupação urbana no Rio de Janeiro com o Estado. Vejamos o seguinte
comentário:
Na verdade, apesar de a inacessibilidade dos tribunais em relação aosconflitos envolvendo terras ocupadas por favelas assumir aspectos peculiaresà luz da inexistência ou nulidade legal dos respectivos títulos de propriedadee de posse, é necessário reconhecer que tal inacessibilidade é geral emrelação aos problemas jurídicos das classes baixas, residindo ou não emfavelas e constitui, por isso, uma das manifestações mais evidentes danatureza classista do aparelho jurídico do Estado numa sociedade capitalista.
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Esta observação de Boaventura nos leva a outra face da inadequação do direito aos
interesses populares: a solução dos conflitos internos dos movimentos sociais e entre
diferentes movimentos. Os conflitos, como já vimos anteriormente, são inerentes e
necessários aos relacionamentos entre as pessoas. Ocorre que o direito oficial foi elaborado
segundo a moral burguesa, e não oferece soluções satisfatórias para os interesses de
construção de novas relações inter-pessoais, não-opressoras.
É evidente que não se deve confiar ao Judiciário classista a pacificação das
controvérsias surgidas nas relações entre as pessoas que vivenciam esta construção. Nestes
grupos – sejam movimentos sociais ou organizações comunitárias -, conforme o seu grau de
organização, há mecanismos próprios de pacificação dos conflitos, que na maioria das vezes
envolvem a participação de lideranças internas.
Pretendemos contribuir, neste trabalho, com algumas reflexões sobre a possibilidade
do processo de superação dos conflitos fortalecer a luta política dos movimentos sociais. Isto
exige uma outra forma de compreensão do papel dos conflitos nas relações humanas, além da
construção de outros princípios no trato das relações conflituosas, úteis às lutas dos
movimentos sociais, que se contraponham aos princípios da Justiça classista.
3. A mediação popular como instrumento de fortalecimento das lutas dos
movimentos sociais
A mediação é um processo de superação dos conflitos centrada no diálogo e na
autonomia dos envolvidos no problema, facilitados por uma terceira pessoa. Como colocado
na introdução, existem várias perspectivas a partir das quais a mediação vem sendo
desenvolvida. A perspectiva que adotamos é a da mediação popular, vista como um
instrumento a serviço dos interesses populares, especialmente dos movimentos sociais.
Resgatando a leitura sociológica acerca da organização social, o conflito é algo
necessário às transformações sociais – segundo a visão da corrente conflitualista, com a qual
nos identificamos. No entanto, a cultura jurídica dominante percebe o conflito como algo
negativo, pela ameaça que causa à estabilidade da ordem – segundo a visão da corrente
liberal-funcionalista.
Em primeiro lugar, portanto, a mediação enquanto uma proposta contra-hegemônica
de superação dos conflitos, busca romper com esta percepção negativa. O conflito na
mediação é tratado com a perspectiva positiva da possibilidade de mudança qualitativa na
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relação conflituosa. É um elemento necessário para a mudança, que se dará através da
capacidade das pessoas envolvidas de dialogar e construir novos rumos para sua relação,
tarefa para a qual o(a) mediador(a) colaborará.
A discussão que se segue tem a intenção de pensar a mediação como um modo de
tratar os conflitos internos dos movimentos, que contribua para as suas lutas políticas como
parte de um projeto emancipatório, na medida em que estimula valores como a
horizontalidade, a conscientização, a autonomia e o respeito à alteridade. Não há que se falar,
no âmbito desta proposta, de utilização da mediação como um instrumento de conciliação
entre classes antagônicas: patrão-empregado, fazendeiro/camponês, proprietário/sem-teto, etc.
Apontemos, agora, algumas reflexões importantes acerca da construção da mediação.
Dizem respeito, especialmente, ao seu caráter popular e à sua possibilidade de facilitar o
processo de construção da consciência política dos envolvidos nos conflitos, através da
percepção da dimensão coletiva destes e do exercício da autonomia através do
reconhecimento da alteridade.
3.4.1. O “popular” da mediação
A expressão mediação popular ou comunitária vem sendo utilizada para se referir ao
tipo de mediação realizada junto à população pobre, marginalizada, entre outras coisas, doacesso ao Poder Judiciário. Não pretendemos entrar no complexo debate da identificação de
quem seja o povo, mas duas considerações importantes precisam ser feitas para situar
teoricamente o que estamos chamando de popular.
A primeira delas é a adesão a um pensamento que compreende o popular para além da
questão tradicional da classe. A opressão de classe está no centro das opressões, e se relaciona
a todas as outras, mas não é a única. O adjetivo popular está, em nossa compreensão,
fortemente ligado às opressões que marginalizam e excluem as pessoas da participação digna
na ordem social.
A segunda consideração identifica o popular com uma postura política de resistência.
Mas resistência a quê? Resistência à ordem opressora, nos seus diversos âmbitos: artes,
política, sexualidade, educação, etc. No âmbito do que estamos tratando nesse trabalho, a
resistência é em relação à cultura jurídica formal, que oprime as mais diversas formas de viver
e legitima as desigualdades sociais.
Popular, assim, assume um cristalino posicionamento político e filosófico
diante do mundo, arrastando para si a dimensão propositivo-ativa de11
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encontro com os direitos das pessoas, com os direitos humanos. Popular como expressão de todo conjunto de atitudes em condições de assumir aslutas do povo e voltadas aos interesses das maiorias, resgatando a visão demudança necessária para melhoria do mundo dos direitos e das vidas das
pessoas (MELO NETO: 2007, p.433).
A resistência à opressão se dá em vários níveis, podendo ser mais ou menos
consciente, mais ou menos organizada. De todo modo, está intimamente relacionada ao que
chamamos de conscientização. A consciência não é algo dado, natural das pessoas, e sim algo
que vai sendo construído com a socialização. É um processo dinâmico, um movimento, que
somente pode ser compreendido se inserido na história de sua formação.
O amadurecimento da consciência passa por várias etapas, que se superam e se
contradizem. O movimento da formação da consciência está “longe de qualquer linearidade ,
[pois] a consciência se movimenta trazendo consigo elementos de fases superadas, retomando
aparentemente, as formas que abandonou” (IASI: 1999, p.15):
O autor Mauro Luiz Iasi trabalha os diferentes estágios deste movimento que é o
processo de consciência. Considera que o primeiro estágio de consciência começa na infância,
vivenciado através das intensas formas de socialização que ocorrem nesta fase. O indivíduo,
então, concebe como suas as idéias que lhe foram impostas, de modo que a consciência se
expressa como alienação: “Esta forma será a base, o terreno fértil, onde será plantada a ideologia como forma de dominação” (IASI: 1999, p.23). A superação desta fase da consciência
como alienação começa com a percepção das contradições entre o que a ideologia apregoa e o
que ocorre na vivência do sujeito, mas depende de uma condição vital:
A pré-condição para esta passagem é o grupo. Quando uma pessoa vive umainjustiça solitariamente, tende a revolta, mas em certas circunstâncias podever em outras pessoas sua própria contradição. (...) a identidade com o outro
produz um salto de qualidade (IASI: 1999, p.35).
Nessa perspectiva, os movimentos sociais cumprem bem o papel de facilitar a
superação da alienação, através da vivência coletiva das injustiças. A organização grupal se
dedica a compreender melhor a repercussão destas ideologias e se empenha em desmascará-
las e combatê-las. No entanto, este processo não é linear, e sim cheio de contradições. As
contradições podem fazer com que a prática se distancie do discurso, ou que exista ainda
muito da ideologia opressora dentro de nós.
Estas contradições do processo de consciência - presentes nos movimentos sociais
como em qualquer espaço - muitas vezes levam a conflitos. A mediação pode contribuir na12
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compreensão destas contradições que levaram ao conflito, favorecendo o amadurecimento do
processo de consciência.
Destaquemos, então: o caráter popular da mediação, em nossa concepção, se refere ao
aspecto de lidar com os conflitos de modo que o diálogo contribua na conscientização e na
resistência coletiva à opressão. Isto nos leva ao segundo aspecto a ser destacado da mediação
popular, que é o despertar para a dimensão política e coletiva dos conflitos.
3.4.2. A dimensão coletiva dos conflitos
Os conflitos são vivenciados, de um modo geral, a partir de uma perspectiva
ideológica individualista. No campo do direito, esta questão é fundamental. O direito, em
virtude da forte tradição liberal em que se fundamenta, não dá um adequado tratamento àdimensão coletiva dos conflitos. A cultura jurídica dominante, nesse sentido, trata os desvios
das normas jurídicas sempre como uma opção individual do transgressor, que deve ser
punida. Não se costuma debater que as reais causas dos conflitos são, no mais das vezes, as
opressões sociais.
Por trás de um conflito familiar, por exemplo, estão conceitos e preconceitos
determinados pelas concepções dominantes dos papéis sociais exercidos pelo homem, pela
mulher e pelas crianças. Estas concepções não são meramente individuais, e sim produzidascoletivamente. Perceber a construção coletiva destes padrões de relacionamento faz parte da
conscientização.
Como foi apontado no tópico anterior, a passagem para o segundo estágio da
consciência, segundo Mauro Iasi, depende de uma vivência de grupo. É com o grupo que as
pessoas têm uma percepção ampliada da opressão, passando a se mobilizar para reivindicar as
alterações de suas condições. Vejam um exemplo a respeito dessa ampliação da percepção,
que ilustra o exemplo dos conflitos familiares:
Uma mulher, por exemplo, submetida a condições de opressão em casa,condenada aos trabalhos domésticos e ao cuidado dos filhos, pode viver istoa vida toda como natural, portanto, para ela, inevitável. Mesmo odesmoronar da idealização na família diante das condições reais docotidiano, pode gerar no máximo a revolta, a constatação de uma terrível"sina". No entanto esta mesma mulher, num grupo onde possa ver em outrascompanheiras a mesma sina, julgada somente sua, só sua, pode começar adesenvolver uma ação contra o que considera injusto (IASI: 1999, p.34).
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A mediação popular pode cumprir esta função, de auxiliar a passagem da percepção
individual do problema para a sua compreensão coletiva. Esta passagem ocorre na mediação,
ao nosso ver, em dois estágios: desconstruindo a dicotomia culpado/inocente e percebendo
que o mesmo tipo de conflito afeta outras pessoas ao seu redor.
Em primeiro lugar, a mediação trabalha pela desconstrução da dicotomia
culpado/inocente, predominante na cultura jurídica. Este modelo binário de pensamento se
relaciona à compreensão de causalidade linear, de que toda causa gera uma conseqüência, o
que nos impede de perceber a multicausalidade e complexidade dos fenômenos. Em função
desta mentalidade há uma dificuldade de compreender a dinâmica do conflito, na medida em
que os juristas costumam explicar de forma simplista o surgimento do conflito como uma
reação individual à determinada ação também individual.
Por exemplo: fulano bateu em cicrana por que ela provocou ciúmes nele. Mas por que
existe o ciúme nas relações? Ele tem a ver com um sentimento de posse? Em que medida
fulana e cicrano alimentam este sentimento? Como esta relação foi construída? Associando-se
esse sentimento a uma mentalidade machista, esta agressão adquire um significado coletivo?
A mentalidade do direito não se interessa por estas perguntas, que tornam complexo o
entendimento da dinâmica do conflito e suas causas.
A mediação busca, num primeiro momento, mudar tal mentalidade sobre o surgimentodo conflito, adotando uma concepção multicausal, já que várias e complexas são as causas
que levam ao desenvolvimento de um conflito. Para tais causas costumam contribuir,
geralmente, todas as pessoas envolvidas – com ações e omissões -, o que revela a
impossibilidade de categorizar os envolvidos no conflito como simples culpados ou inocentes.
A partir da superação desta dicotomia, pode haver uma mudança qualitativa na relação
entre as pessoas que vivenciaram o conflito de uma maneira criativa, buscando soluções para
enfrentá-lo.Esta nova conduta implica essencialmente em não se verem, as partes, comoadversários, mas sim como colaboradores, como solidários na busca pelamelhor solução dos problemas. Os contendores deixam de encarar suasdivergências como algo ameaçador e nocivo e passam a vê-las de maneira
positiva, como sendo uma fase de reciclagem, de engrandecimento, detransição aprimorada (COSTA: 2004, p.14).
Esta pode ser uma oportunidade construtiva para os envolvidos aprenderem a lidar uns
com os outros. Assim, o conflito pode ser uma forma de produzir e administrar com o outro a
diferença, “inscrever a diferença no tempo como produção do novo” (WARAT: 2004, p.61).14
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Por outro lado, reconhecemos que, para além da participação direta dos envolvidos, há
em grande medida uma participação coletiva na construção dos significados dos elementos de
um conflito. Por isso pensamos que, em um segundo momento, a mediação popular pode
fazer com que as pessoas percebam que o mesmo problema que elas estão passando é também
a realidade de muitas outras pessoas. A partir daí, amplia-se ainda mais a compreensão das
causas do conflito, o que pode levar ao segundo estágio de consciência de que fala Iasi.
As pessoas, ao perceber esta dimensão coletiva, podem decidir se mobilizar contra as
causas coletivas destes conflitos. No exemplo do conflito familiar citado, as mulheres podem
se reconhecer na opressão de gênero que vivenciam e, a partir daí, se organizar para o
enfrentamento desta questão – reivindicando a igualdade material entre homens e mulheres.
A mediação, portanto, pode auxiliar nesta evolução para o segundo estágio do
processo de consciência. Mas não é o bastante identificar coletivamente as opressões e se
organizar coletivamente para reivindicar mudanças pontuais. É preciso que se vá mais além,
para perceber que a opressão só será superada com uma alteração estrutural da sociedade, que
não podemos reivindicar que ninguém a faça - só podemos fazer por nós mesmos.
3.4.3. Autonomia, alteridade e emancipação
Um terceiro e último aspecto a ser destacado da mediação popular é a possibilidade deela servir como um instrumento de exercício da autonomia – individual e coletiva – em
direção a um projeto social emancipatório.
À diferença do modo tradicional do Judiciário, a mediação se centra na capacidade das
pessoas de resolver seus próprios conflitos, através da dialógica convivência com a alteridade.
Neste sentido, Juan Carlos Vezzulla, citado por Lutiana Nacur Lorentz (2002, p.77), nos traz
pertinente contribuição:
“... a Mediação surge como resposta a essa necessidade de não querermosmais que decidam por nós, pois estamos preparados para sermos criativos e
procurarmos nossas próprias soluções para nossos problemas”.
Mas a autonomia só pode existir verdadeiramente se for exercitada como um processo
coletivo. A vida e obra de Paulo Freire foi muito significativa para a compreensão desta
relação entre o “eu” e o “outro” no processo emancipatório – o que pode ser traduzido na sua
célebre frase da Pedagogia do Oprimido: "ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta
sozinho, todos nos libertamos em comunhão" (FREIRE: 1987, p.52).
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Aqui nos deparamos com um traço marcante da mediação popular, em nome deste
princípio coletivo da autonomia: a possibilidade de se utilizar de parâmetros normativos
outros que não o direito oficial na superação dos conflitos. Antônio Carlos Wolkmer (2001,
p.153) é um marco teórico nesta discussão, sustentando que a produção jurídica não é
monopólio do Estado, podendo surgir de “outras instâncias sociais diferenciadas e
independentes”.
A legitimidade destes grupos para criar o direito decorreria das “práticas e relações
sociais surgidas na concretude plural e efetiva do cotidiano” (WOLKMER, 2001, p.154). Isto
porque tais grupos, excluídos do poder, vulneráveis à opressão do sistema sócio-econômico,
vivenciam objetivamente a “negação das necessidades e da insatisfação de carências”. Isto faz
com que, por um lado, se conscientizem de seu “estado de marginalidade concreta”, e, por
outro, constituam uma “identidade autônoma capaz de se autodirigir por uma escolha
emancipada que se efetiva em mobilização, organização e socialização” (WOLKMER,
p.160).
A mediação popular pode, portanto, se basear em conceitos de justiça próprios de
grupos sociais específicos, ainda que contrarie o direito oficial. Nestes termos, em respeito à
autonomia destes grupos sociais, o ilícito pode ser jurídico:
As ordenações sociais independentes podem até ser consideradas ilícitas peloEstado, mas não perdem sua condição própria de juridicidade. Daí que oEstado, por não deter o monopólio da produção jurídica, convive comsituações que inviabilizam reduzir o lícito ao jurídico. Isso configura umquadro em que o ilícito sob o ponto de vista da ordenação estatal poderá ser
perfeitamente jurídico para uma organização não-estatal (WOLKMER:2001, p.189).
A autonomia jurídica no uso da mediação popular deve estar, obviamente, atrelada a
uma visão política de mundo igualitária. Apenas deste modo podemos falar em mediação
popular como um instrumento emancipatório. Isso nos leva a um último diálogo com acompreensão dos processos de consciência de Mauro Iasi.
Para o autor, a consciência em si, possibilitada pela percepção de que a opressão é
compartilhada por determinados grupos sociais – as classes – ainda não é o bastante. Não é
suficiente reivindicar coletivamente por mudanças, se esperamos que estas mudanças partam
de alguém externo a “nós”, como uma concessão. Somos “nós” os agentes dessa mudança.
A consciência de classe deve exigir, portanto, que se evolua para uma estratégia
coletiva de superação da classe – é a consciência revolucionária. É preciso lutar, não por 16
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reivindicações para a classe dentro da ordem política, mas por uma alteração estrutural que
supere esta ordem opressora. Vejamos a análise da consciência de classe do operariado, que,
ao se assumir enquanto classe, ao mesmo tempo nega e afirma o capitalismo:
A verdadeira consciência de classe é fruto desta dupla negação: num primeiro momento o proletariado nega o capitalismo assumindo sua posiçãode classe, para depois negar-se a si próprio enquanto classe, assumindo a lutade toda a sociedade por sua emancipação contra o capital (IASI: 1999, p.38).
Queremos sustentar que a mediação popular, enquanto exercício de diálogo e de
autonomia, pode contribuir para que este estágio de consciência revolucionária - que
chamamos de projeto emancipatório - seja alcançado. Nesse campo se dá a enorme
importância da construção estratégica das lutas dos movimentos, especialmente a necessidade
de convergência de suas lutas em pautas comuns, em nome de uma transformação maior.
Há muitos conflitos entre os movimentos sociais. Por um lado, a disputa pelos
escassos recursos advindos de políticas públicas incentiva estes conflitos. Por outro, há
enormes dificuldades das pessoas, em geral, em lidar com a alteridade. Reconhecer a
importância da luta do outro, estranho a nós, como tão importante como a nossa, é um grande
desafio para os movimentos sociais.
A mediação pode ser útil para tratar destes conflitos entre movimentos diferentes,
colaborando com a ampliação da identificação da opressão para além de seus pares. Avivência da identidade que une um segmento popular, em torno do qual se centra a sua luta
por direitos, não pode se fechar em si mesma. É necessário o diálogo para a luta unificada dos
diversos segmentos explorados. É necessária a percepção de que as opressões se interligam –
de classe, de gênero, de raça, de etnia. A falta desta percepção dificulta uma perspectiva
emancipatória ampliada, que exceda as reivindicações pontuais de cada luta específica.
o novo contextualismo e particularismo tornam difícil pensar estrategicamente a emancipação. As lutas sociais e as identidades
contextuais tendem a privilegiar o pensamento tático em detrimento do pensamento estratégico (...) quanto mais incomunicáveis forem asidentidades, mais difícil será concentrar as resistências emancipatórias em
projetos coerentes e globais (SANTOS: p.147).
Completa-se, desse modo, a percepção de que a autonomia só é possível com a
alteridade, e que ambas só se realizam plenamente na construção de um projeto igualitário de
sociedade. É neste sentido que se relacionam intimamente os três aspectos aqui abordados da
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mediação - o caráter popular, a dimensão coletiva dos conflitos e os processo de autonomia e
alteridade na sua superação.
Encaminhando-nos para as conclusões possíveis, a mediação popular é aqui vista
como uma prática de resistência que, através da percepção da dimensão coletiva dos conflitos,
estimula a organização na luta por soluções autônomas e emancipatórias de transformação da
sociedade.
4. Conclusões
Está tudo por fazer no campo da construção de novas formas de superação dos
conflitos, tanto no âmbito coletivo, que nos leva a uma outra sociedade, quanto no âmbito
inter-pessoal, que nos leva a novas formas de relacionamentos entre as pessoas. As conclusões possíveis neste debate nos levam, em primeiro lugar, a admitir estes enormes desafios.
O conflito precisa ser enxergado como algo necessário à mudança qualitativa da
sociedade e das relações entre as pessoas. Este reconhecimento implica um compromisso com
o combate à ideologia opressora que nos domina, negadora do papel transformador do
conflito. É esta ideologia que faz com que grupos que expõe o conflito através da luta pela
igualdade e pela justiça sejam vistos como desviantes da ordem, criminosos que precisam de
punição.Percebamos que a solução dos conflitos não diz respeito simplesmente à possibilidade
de “acesso à justiça” por parte dos excluídos da ordem social. Se trata de construir uma outra
justiça, com parâmetros outros que não os do direito classista. Mas isso implica uma ruptura
com toda a ordem social de que o direito é apenas uma expressão. Por sua vez, esta ruptura
exige um acúmulo de forças processual e lenta.
Para possibilitar esta ruptura devemos partir de nós mesmos, começar construindo
outras formas de humanidade, que considerem a alteridade como parte do processo de
autonomia. Somente o exercício do diálogo pode nos levar a esta percepção da importância do
outro. Ter o outro como condição do desenvolvimento de si mesmo, a verdadeira vivência do
“nós”, em pé de igualdade, é que torna possível construir uma sociedade igualitárias através
de uma política horizontal.
A perspectiva da mediação que tentamos mostrar neste trabalho a coloca como um
instrumento de exercício do diálogo, da autonomia e do respeito à alteridade. Estes
componentes são fundamentais nas lutas dos movimentos sociais, se temos a esperança que
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neles podem estar sendo gestadas, apesar das contradições, as sementes de uma outra
sociedade - justa e igualitária.
A mediação não está sendo colocada aqui como a condição que estava faltando para o
processo revolucionário. Longe disso. Apenas intuímos que todas as práticas que exercitem o
diálogo, inclusive a mediação, são indispensáveis para uma alteração profunda na sociedade.
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