Mediação Popular e Movimentos Sociais

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 MEDIAÇÃO POPULAR E MOVIMENTOS SOCIAIS  Ana Lia Almeida  Núcleo de Extensão Popular Flor de Ma ndacaru (UFPB) [email protected] Resumo: A mediação popular pode ser uma prática de resistência ao paradigma oficial de resoluçã o de co nf litos, se rv indo ao s mo vi me nt os sociais co mo um inst rume nto de fortalecimento de suas lutas. A condição para isso é que a mediação s eja desenvolvida como  parte de um projeto político emancipatório, pautando a solução dos conflitos no reconhecimento da dimensão coletiva dos mesmos, na autonomia e no respeito à alteridad e. Pal av ras -chave: me diação pop ula r mov ime nto s soc iai s – con flit o - pol ítica emancipação. 1. Introdução O debate acerca da democratização do acesso à justiça tem estado cada vez mais em foco em nosso país. Os motivos para isto são os mais diversos, variando desde a necessidade de desafogar o Judiciário até o reconhecimento da necessidade de estimular a autonomia das  partes na solução dos conflitos em que estão envolvidas. Inserida neste debate está a mediação. A mediação é uma técnica de superação de conflitos que conta com a colaboração de uma terceira pessoa para facilitar o diálogo entre os envolvidos no problema. Assim como ocorre com o debate do acesso à justiça, há também várias perspectivas em relação à mediação. Infelizmente, é o utilitarismo que vem predominando no desenvolvimento da mediação no Brasil, concebendo esta técnica como um simples meio de evitar que algumas causas – especialmente as ligadas às camadas populares – cheguem ao Judiciário. A pe rs pe ctiva qu e adotamos co mp reende a mediaç ão como uma pr op os ta transformadora das relações através do tratamento do conflito, uma técnica de estímulo ao diálo go qu e po de servir a um pr oj eto eman ci pa ri o. Da í a impo rt ância do se u desenvolvimento enquanto pa rt e de uma propos ta po lít ica ligado aos in teresses dos movimentos sociais de contestação .

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A mediação popular pode ser uma prática de resistência ao paradigma oficial de resolução de conflitos, servindo aos movimentos sociais como um instrumento de fortalecimento de suas lutas. A condição para isso é que a mediação seja desenvolvida como parte de um projeto político emancipatório, pautando a solução dos conflitos no reconhecimento da dimensão coletiva dos mesmos, na autonomia e no respeito à alteridade.

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MEDIAÇÃO POPULAR E MOVIMENTOS SOCIAIS

 Ana Lia Almeida

 Núcleo de Extensão Popular Flor de Mandacaru (UFPB)

[email protected] 

Resumo:

A mediação popular pode ser uma prática de resistência ao paradigma oficial de

resolução de conflitos, servindo aos movimentos sociais como um instrumento de

fortalecimento de suas lutas. A condição para isso é que a mediação seja desenvolvida como  parte de um projeto político emancipatório, pautando a solução dos conflitos no

reconhecimento da dimensão coletiva dos mesmos, na autonomia e no respeito à alteridade.

Palavras-chave: mediação popular – movimentos sociais – conflito - política – 

emancipação.

1. Introdução

O debate acerca da democratização do acesso à justiça tem estado cada vez mais em

foco em nosso país. Os motivos para isto são os mais diversos, variando desde a necessidade

de desafogar o Judiciário até o reconhecimento da necessidade de estimular a autonomia das

  partes na solução dos conflitos em que estão envolvidas. Inserida neste debate está a

mediação.

A mediação é uma técnica de superação de conflitos que conta com a colaboração de

uma terceira pessoa para facilitar o diálogo entre os envolvidos no problema. Assim como

ocorre com o debate do acesso à justiça, há também várias perspectivas em relação à

mediação. Infelizmente, é o utilitarismo que vem predominando no desenvolvimento da

mediação no Brasil, concebendo esta técnica como um simples meio de evitar que algumas

causas – especialmente as ligadas às camadas populares – cheguem ao Judiciário.

A perspectiva que adotamos compreende a mediação como uma proposta

transformadora das relações através do tratamento do conflito, uma técnica de estímulo ao

diálogo que pode servir a um projeto emancipatório. Daí a importância do seu

desenvolvimento enquanto parte de uma proposta política ligado aos interesses dos

movimentos sociais de contestação.

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Para desenvolver esta abordagem, recorreremos à sociologia para refletir acerca da

compreensão do conflito na nossa sociedade. O conflito é considerado uma disfunção que

desequilibra a sociedade e portanto merece ser combatido? Ou é algo necessário e positivo,

que possibilita as mudanças sociais? Depende da forma como compreendemos a organização

social e os seus mecanismos de controle. E o direito é um dos mais fortes destes mecanismos.

Buscaremos refletir acerca do papel do direito enquanto um instrumento de controle a

serviço da classe dominante que tem um olhar ideológico sobre o conflito. O direito, de um

modo geral, concebe o conflito como uma disfunção que perturba o suposto equilíbrio das

relações. Especificamente no que tange aos conflitos coletivos, oculta a sua dimensão política

os reduzindo a uma mera questão jurídica. Aqui se insere a questão da criminalização dos

movimentos sociais, que não passa de uma expressão do controle social do direito combinada

a outros mecanismos de controle, como a mídia oficial.

O direito oficial, portanto, demonstra sua face classista em dois âmbitos: por um lado,

essa proteção aos interesses da classe dominante sempre que ocorre um conflito inter-classista

 – como uma ocupação de terras, em que o fazendeiro terá sempre a razão. Por outro lado, o

direito oficial é também inadequado para resolver os conflitos intra-classe trabalhadora, por 

estar fortemente pautado na moral burguesa e na propriedade. Por causa destes problemas

referentes ao direito oficial, os movimentos sociais precisam fortalecer mecanismos internosde pacificação de conflitos, que contribuam para suas lutas e estejam pautados em normas

 próprias.

Pensamos que a mediação pode se desenvolver como um desses instrumentos. Mas,

 para se configurar como um instrumento de fortalecimento das lutas sociais, a mediação

 precisa estar pautada em alguns princípios que apontem para uma perspectiva emancipatória – 

como a autonomia e a alteridade. A mediação, portanto, precisa ser parte de um processo mais

amplo de emancipação em direção a uma ordem igualitária. É o que passamos a discutir.

2. Sociedade e conflito

O conflito é um elemento indissociável da nossa vida humana. Ele está presente em

diferentes âmbitos das relações entre as pessoas e inclusive no plano da consciência de um

único indivíduo – os conflitos intra-psíquicos que, uma vez externados, podem gerar outros

tipos de conflitos (COSTA: 2004, p.11-13). Assim, podemos falar em conflitos inter-pessoais,

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inter-grupais, coletivos, interculturais, etc. A psicologia e a comunicação têm uma enorme

contribuição para a compreensão dos mecanismos que envolvem as experiências conflituosas.

 No campo do direito, a compreensão do conflito é de extrema importância. Isto porque

é em função de evitar o conflito que os juristas organizam as normas padronizadoras do

comportamento, e em função de extirpá-los das relações sociais inventam os critérios formais

de solução de conflitos. Em que pese esta centralidade do conflito para o direito, a ciência

 jurídica dispensa muito pouca atenção a sua dinâmica, às suas causas, às melhores formas de

superá-lo, e, especialmente, às relações que existem entre o conflito inter-individual e os

 problemas coletivos.

A sociologia contribui enormemente para este último debate, nos apontando que as

formas que concebemos os conflitos estão intimamente ligadas ao modo como

compreendemos a organização da sociedade, como veremos em seguida.

2.1. Teorias sociológicas sobre a organização social

A tradição sociológica nos apresenta duas correntes antagônicas para explicar a

organização da sociedade: a teoria do consenso, de orientação funcionalista 1, e a teoria do

conflito, que se consolida com a análise marxista. Deste antagonismo decorre também as

divergentes formas de se compreender a função e os instrumentos do controle social. Controlesocial são os mecanismos apresentados pela sociedade para fazer com que as pessoas se

comportem de maneira socialmente aprovada, integrando-se harmonicamente ao corpo social.

Relaciona-se com o processo de socialização, estando intimamente ligado aos conceitos de

 poder e de dominação (SABADELL: 2000, p.113-114).

Pela teoria sociológica do consenso, defendida por teóricos como Durkheim, Pareto e

Parsons, o conflito é visto como um desequilíbrio, uma patologia social que perturba a ordem.

Já pela teoria sociológica do conflito, ou da coação, cujos defensores mais ilustres são Marx,

Sorel, Touraine e Dahrendorf, o conflito é visto como um elemento essencial que impulsiona

a sociedade, fator de criatividade, dinamismo e mudanças (WOLKMER: 2001, p.94).

1 O funcionalismo é uma tradição sociológica que empreendeu uma analogia entre a sociedade e o corpohumano, ambos em perfeita harmonia. Assim como os órgãos devem estar todos sadios para que o corpohumano esteja em ótimo funcionamento, as instituições sociais também formam um todo equilibrado. Asinstituições seriam meios coletivos de satisfazer necessidades sociais, cada uma tendo uma função específica eestando integrada às outras. O conflito, nesta concepção, é comparado à doença, precisando ser eliminado dasociedade.

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A teoria do consenso – ou do equilíbrio – concebe a sociedade como um sistema de

relações estáveis “que tende à manutenção da ordem estabelecida para sua organização

através do consenso” (VILA NOVA: 1944, p.50). Nesta perspectiva, o conflito é

compreendido como um mal a ser expurgado, que desequilibra a sociedade e por isso não

deve existir. Assim, o controle social tem a função de “impor regras e padrões de

comportamento para preservar a coesão social perante comportamentos desviantes”

(SABADELL: 2000, p.117), diminuindo os conflitos e garantindo a paz e a harmonia social.

Já para a corrente conflitualista, é o conflito, e não o consenso, a característica

fundamental e necessária da sociedade. O conflito é necessário porque é a força motriz das

mudanças sociais. A sociedade seria, assim, um sistema de equilíbrio precário, marcada por 

conflitos de interesses entre as diferentes classes sociais, em constante transformação (VILA

 NOVA: 1985, p.50).

O controle social, na perspectiva da corrente conflitualista, teria a função de garantir o

favorecimento dos interesses da classe minoritária que detém o poder e a riqueza. Seriam

ocultados, assim, questionamentos acerca do que se controla e de quem é controlado, ou seja,

em detrimento de quem o controle é exercido e em função de quê. O controle social

condicionaria as pessoas para que elas aceitassem as desigualdades, identificando a ordem

com a justiça.Desigualdade, justiça, ordem e controle social são temas centrais para o direito.

Portanto, uma leitura sociológica do direito é de grande importância para os juristas, embora a

ela não seja dada a devida atenção, devido à distância que ainda persiste na mentalidade dos

  juristas em relação à interdisciplinaridade. Chegamos a um debate em relação ao qual é

 preciso travar um diálogo íntimo entre sociologia e direito: a análise de como o direito lida

com o conflito e participa da socialização através do controle social. Compreendemos que o

direito exerce o importante papel de neutralizar os conflitos, na medida em que legitima asdesigualdades através do discurso que prioriza a ordem em detrimento da justiça.

2.2. Direito e controle social

As duas referidas tradições sociológicas (consensualista e conflitualista) também nos

fornecem elementos antagônicos para compreensão da forma através da qual o direito exerce

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o controle social. Destaquemos que o direito é uma forma particular de controle social, pois

tem o poder oficial de ditar quais normas devem ser seguidas pela sociedade. As suas normas

são interpretadas e aplicadas por agentes oficiais, protegidas, portanto, pelo poder da violência

legitimada que o Estado exerce.

Por um lado, a teoria do consenso proclama que o direito tem a função de garantir a

 paz social e, para tanto, tem como principais características a certeza (advindas da publicidade

e clareza das normas jurídicas), a exibilidade, a generalidade e, principalmente a garantia do

 bem comum (SABADELL: 2000, p.131-132).

Já a teoria do conflito desconstrói esta concepção, sustentando que a prática das

instituições contradiz estas funções declaradas quando da aplicação do direito. Nesse sentido

corrobora a afirmação de Warat (1995, p.135):A força comunicacional da ciência jurídica passa vitalmente por um jogo designificados ilusórios; um território encantador onde todos fazem de contaque o Direito, em suas práticas concretas, funciona à imagem e semelhançado discurso que dele fala.

Há um caráter ideológico na abordagem funcionalista quando sustenta que o direito

tem como finalidade a garantia do bem comum e o respeito aos princípios da certeza e

generalidade, pois na verdade estes mecanismos só protegem de fato os interesses da classe

dominante. Esta perspectiva é mais acentuada no que diz respeito ao direito penal:Assim sendo, os funcionalistas cometem um grave erro científico, porque“crêem” no discurso oficial do sistema penal, pensando que as suas funçõesdeclaradas (proteger os bens jurídicos de todos, respeitar os princípios dacerteza, da generalidade etc.) são aquelas realmente desenvolvidas na prática(SABADELL: 2000, p.135). 

Sendo assim, temos na verdade um poder punitivo ilegítimo, que está a serviço do

 poder dominante, protegendo interesses particulares de uma classe que são propagados como

interesses gerais. Ademais, não há, de fato, uma distinção absoluta entre o bem e o mal,

conforme pretende a ordem estabelecida pelo direito. A definição do que é ou não legal

depende de aspectos históricos da sociedade, e principalmente de que bens serão tidos como

os mais valorados de acordo com o grupo que está no poder.

 No caso de uma sociedade capitalista marcada por profundas diferenças de classe, não

é surpresa a exagerada repressão legal aos crimes contra a propriedade – de que os

movimentos sociais de luta pela terra urbana e rural são alvos constantes. Haveria ainda uma

extrema desigualdade na aplicação das normas, em vez da generalidade e impessoalidade

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  propagada pela teoria do consenso. As normas são aplicadas desfavoravelmente para a

 população pobre, sujeita aos preconceitos e estereótipos dos aplicadores da lei, enquanto a

 parcela poderosa da população sempre encontra “jeitinhos” de escapar à aplicação da lei  – 

muitas vezes por corrupção.

O discurso do direito gera, nesta perspectiva, alguns efeitos importantes. O primeiro

deles é o de ocultar a sua própria condição de discurso, naturalizando as verdades que produz

sem que fique explícito o lugar de poder que ocupa. Em segundo lugar, o mito em torno da

lei, erigida em um forte símbolo da racionalidade, quando, na prática, a sua elaboração,

interpretação e aplicação não têm nada de racional. Em relação ao conflito, o discurso jurídico

gera o efeito de negar a divisão da sociedade, simulando uma unidade que não existe de fato,

mas é simbolicamente construída pela igualdade formal (WARAT: 1995, p.59-60).

Adotando a posição da corrente conflitualista, percebemos que os conflitos são

administrados pelo direito, de modo geral, tomando como parâmetro a proteção dos interesses

da classe dominante. Em função desta estreita relação com os interesses econômicos, a

administração dos conflitos por parte do direito tende a criminalizar, simplesmente, as ações

de pessoas e grupos que de alguma forma contestam esta ordem injusta de dominação. É o

que vem acontecendo de modo muito acirrado com os movimentos sociais.

2.4. A criminalização dos movimentos sociais.

Os atuais movimentos sociais são um grande exemplo da adeqüabilidade da análise

conflitualista sobre a sociedade e o controle social exercido nela. A ação organizada dos

movimentos, por mais heterogêneos que sejam, tem em comum a demonstração da

insatisfação de diversos e amplos grupos com as injustiças sociais. Estas lutas refletem a

disputa de poder que existe na sociedade, e somente a partir delas é possível uma mudança

estrutural em direção a uma sociedade justa, rompendo com a histórica ordem de dominação à

qual a maior parte da humanidade se submete. Percebamos que é somente a partir destas

lutas, ou seja, do conflito, que é possível a mudança necessária.

 Não pretendemos nos aprofundar no debate sobre as diferenças entre as perspectivas

dos movimentos sociais de hoje e a dos “velhos” movimentos típicos de contestação, que

tinham a questão de classe como um elemento aglutinador. Fiquemos com a idéia de que os

ditos “novos” movimentos sociais têm a identidade como um elemento central. Identificando

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estes grupos, WOLKMER (2001, p.239) coloca que as novas identidades "compõem uma

constelação de múltiplas subjetividades coletivas" que aglutinam:

os camponeses sem-terra, os trabalhadores agrícolas, os emigrantes rurais; os

operários mal remunerados e explorados; os subempregados, osdesempregados e trabalhadores eventuais; os marginalizados dosaglomerados urbanos, subúrbios e vilas, carentes de bens materiais e desubsistência, sem água, luz, moradia e assistência médica; as crianças pobrese menores abandonados; as minorias étnicas discriminadas; as populaçõesindígenas ameaçadas e exterminadas; as mulheres, os negros e os anciãosque sofrem todo tipo de violência e discriminação; e, finalmente, asmúltiplas organizações comunitárias, associações voluntárias e movimentossociais reinvindicativos de necessidades e direitos.

Os atuais movimentos sociais se utilizam, via de regra, de meios pacíficos para

reivindicar do Estado direitos sociais historicamente negados a seus grupos – moradia, acesso

à terra, igualdade de gênero, igualdade racial, reconhecimento étnico, etc. A impossibilidade

de atender a estas demandas decorre do caráter classista do Estado, cuja existência se realiza

em função da gerência dos negócios das classes dominantes e sua proteção. Cada vez mais, os

movimentos vêm vivenciando estes limites no cotidiano de frustração das suas lutas.

Incapaz de gerenciar de modo satisfatoriamente conciliador os interesses populares

com os interesses das elites dominantes, o Estado neoliberal mostra para os primeiros a sua

face repressiva em nome da manutenção da “ordem”. A ordem da opressão.A verdade é que as instituições estatais, especialmente o Poder Judiciário, têm atuado

historicamente como verdadeiros carrascos da ordem opressora burguesa. Em nosso tempo,

que é de acirramento das desigualdades sociais em função da atual ordem econômica, os que

se distanciam do mundo do dinheiro, do sucesso, do poder (ou seja, a grande maioria das

 pessoas) são considerados os “outros”, que estão sob constante suspeita de serem perigosos à

estabilidade da ordem.

Ousar contestar as injustiças, propor novas formas de vivência humana, sãoconsideradas, absolutamente, condutas perigosas. Perigosas porque podem repercutir no

mundo dos “outros”, os excluídos, como uma promessa de tempos melhores – o que os faria

 perceber que não têm nada a perder rompendo com a ordem opressora. Há um poema de

Bertold Brecht, Os dias da Comuna , ilustrativo dessa idéia, do qual citaremos apenas o

 primeiro trecho:

Considerando nossas fraquezas os senhores forjaram/ as suas leis para nosescravizarem/ As leis não mais serão respeitadas/ considerando que não

queremos mais ser escravos/ Considerando que os senhores nos ameaçam/7

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com fuzis e com canhões/ Nós decidimos: de agora em diante/ temeremosmais a miséria de que a morte2.

Temer mais a miséria do que a morte é uma libertação: significa perceber a opressão e

não mais se submeter a ela. Dito de outro modo, significa romper com os efeitos do controle

social, mostrando que não existe harmonia nem paz social, mas opressão e injustiça de poucos

em detrimento de muitos. E lutar contra elas através do conflito, do confronto necessário à

alteração da ordem. O controle social atuaria, neste sentido, como mecanismos de fazer com

que a luta política dos movimentos seja considerada um desvio da harmonia social, perigosa.

Concordamos com a hipótese de Fernanda Vieira, quando sustenta que

a atual fase do modo de produção capitalista de cunho neoliberal, tenderia a

ampliar o rol de categorias entendidas como perigosas, exercendo um maior controle sobre estas, em especial sobre movimentos sociais que adotam naconstrução de direitos, ações de desobediência civil, como o MST, que serãocriminalizados, em nome da lei e da ordem (VIEIRA:2004, p.2).

Um grande, triste e atual exemplo deste quadro criminalizatório por parte do Estado

são os últimos acontecimentos envolvendo diversas instituições estatais, entre elas o

Ministério Público, no estado do Rio Grande do Sul. Recentemente, uma ação civil pública

foi ingressada com o intuito de impedir manifestações pacíficas do MST nesse estado, além

de outros documentos que identificam o movimento como um grupo criminoso, determinamque as crianças sejam retiradas das manifestações e que as escolas do MST sofram uma

intervenção para “adequações pedagógicas”3.

Mas este é apenas um dos muitos exemplos. No país inteiro há rotineiramente despejos

ilegais dos sem-teto e sem-terra, ações judiciais contra cotas raciais, condenação de lideranças

  por formação de quadrilha, represálias às atividades de ocupação das reitorias pelo

movimento estudantil, prisões políticas enquadradas nos mais variados tipos penais. Na

análise de Roberto Efrem Filho (2008, p.1), a criminalização dos movimentos sociais provocauma deslegitimação dos sujeitos coletivos e suas lutas políticas:

Se o MST é caso de polícia e de “Justiça”, definitivamente não é possível tê-lo como um agente político legítimo, cuja expressão deve ser respeitada.Fechado está o ciclo, desse modo: o MST vai preso e, a partir daí, ademocracia se realiza saudavelmente. É de se notar ademais que acriminalização do MST vai além do Movimento, atingindo sobremaneira

2 Poesia disponível em http://www.insrolux.org/poesias/osdiasdacomunaparaomural.htm. Esta poesiafoi dramatizada pelo MST na mística de abertura do debate ocorrido na Universidade Federal da Paraíba contra acriminalização dos movimentos sociais, na noite de 29.jul.2008.

3 Informações retiradas do modelo de carta de repúdio disponibilizada no site do MST, acessível em: <http://www.mst.org.br/mst/especiais.php?ed=71>. Acesso em 29.jul.2008.

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suas causas e reivindicações. O reconhecimento do direito à terra como umdireito humano e a reforma agrária deixam de ser propostas políticas para setornarem associações à criminalidade.

Para além do âmbito estritamente jurídico, vivemos cotidianamente a difusão dodiscurso discriminatório e criminalizatório através da mídia, que repercute fortemente no

senso comum. São as matérias de jornais e revistas que deturpam as ações dos movimentos,

que estigmatizam seus integrantes como desordeiros, enfim... que reduzem as propostas

alternativas de vivência no mundo como simples desvios da ordem.

Concluindo a discussão deste tópico, sustentamos que a atividade dos movimentos

sociais são expressão dos conflitos existentes na nossa sociedade, marcada por profundas

opressões –  de raça, gênero, geração, etc., mas, especialmente, de classe. Fica claro que a

sociedade não é um todo harmônico, integrado, como ideologicamente nos tenta convencer o

liberalismo científico das teorias consensualistas. O que existe é o conflito entre estes grupos

oprimidos e os grupos detentores do poder político e econômico. Por causa da existência

destes conflitos, os mecanismos de controle social – em função da manutenção dos interesses

da classe dominante – vão marginalizar a luta destes grupos, criminalizando as suas

atividades.

O processo de criminalização dos movimentos sociais nos leva a refletir o quanto o

nosso direito é classista. Em sua maioria, as normas jurídicas protegem os interesses da classe

dominante, a exemplo da proteção à propriedade. E quando beneficiam o povo, as leis não são

aplicadas, a exemplo da ineficácia dos direitos sociais. O Judiciário cumpre bem com este

 papel, na medida em que os juízes, salvo raríssimas exceções, aplicam a lei de acordo com a

conveniência da sua própria classe social.

Boaventura de Sousa Santos (1993, p.45) analisou este fenômeno da falta de confiança

no Estado, como um todo, e especialmente no Judiciário a partir da observação da dinâmica

da relação de uma ocupação urbana no Rio de Janeiro com o Estado. Vejamos o seguinte

comentário:

  Na verdade, apesar de a inacessibilidade dos tribunais em relação aosconflitos envolvendo terras ocupadas por favelas assumir aspectos peculiaresà luz da inexistência ou nulidade legal dos respectivos títulos de propriedadee de posse, é necessário reconhecer que tal inacessibilidade é geral emrelação aos problemas jurídicos das classes baixas, residindo ou não emfavelas e constitui, por isso, uma das manifestações mais evidentes danatureza classista do aparelho jurídico do Estado numa sociedade capitalista.

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Esta observação de Boaventura nos leva a outra face da inadequação do direito aos

interesses populares: a solução dos conflitos internos dos movimentos sociais e entre

diferentes movimentos. Os conflitos, como já vimos anteriormente, são inerentes e

necessários aos relacionamentos entre as pessoas. Ocorre que o direito oficial foi elaborado

segundo a moral burguesa, e não oferece soluções satisfatórias para os interesses de

construção de novas relações inter-pessoais, não-opressoras.

É evidente que não se deve confiar ao Judiciário classista a pacificação das

controvérsias surgidas nas relações entre as pessoas que vivenciam esta construção. Nestes

grupos – sejam movimentos sociais ou organizações comunitárias -, conforme o seu grau de

organização, há mecanismos próprios de pacificação dos conflitos, que na maioria das vezes

envolvem a participação de lideranças internas.

Pretendemos contribuir, neste trabalho, com algumas reflexões sobre a possibilidade

do processo de superação dos conflitos fortalecer a luta política dos movimentos sociais. Isto

exige uma outra forma de compreensão do papel dos conflitos nas relações humanas, além da

construção de outros princípios no trato das relações conflituosas, úteis às lutas dos

movimentos sociais, que se contraponham aos princípios da Justiça classista.

3. A mediação popular como instrumento de fortalecimento das lutas dos

movimentos sociais

A mediação é um processo de superação dos conflitos centrada no diálogo e na

autonomia dos envolvidos no problema, facilitados por uma terceira pessoa. Como colocado

na introdução, existem várias perspectivas a partir das quais a mediação vem sendo

desenvolvida. A perspectiva que adotamos é a da mediação popular, vista como um

instrumento a serviço dos interesses populares, especialmente dos movimentos sociais.

Resgatando a leitura sociológica acerca da organização social, o conflito é algo

necessário às transformações sociais – segundo a visão da corrente conflitualista, com a qual

nos identificamos. No entanto, a cultura jurídica dominante percebe o conflito como algo

negativo, pela ameaça que causa à estabilidade da ordem  –  segundo a visão da corrente

liberal-funcionalista.

Em primeiro lugar, portanto, a mediação enquanto uma proposta contra-hegemônica

de superação dos conflitos, busca romper com esta percepção negativa. O conflito na

mediação é tratado com a perspectiva positiva da possibilidade de mudança qualitativa na

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relação conflituosa. É um elemento necessário para a mudança, que se dará através da

capacidade das pessoas envolvidas de dialogar e construir novos rumos para sua relação,

tarefa para a qual o(a) mediador(a) colaborará.

A discussão que se segue tem a intenção de pensar a mediação como um modo de

tratar os conflitos internos dos movimentos, que contribua para as suas lutas políticas como

  parte de um projeto emancipatório, na medida em que estimula valores como a

horizontalidade, a conscientização, a autonomia e o respeito à alteridade. Não há que se falar,

no âmbito desta proposta, de utilização da mediação como um instrumento de conciliação

entre classes antagônicas: patrão-empregado, fazendeiro/camponês, proprietário/sem-teto, etc.

Apontemos, agora, algumas reflexões importantes acerca da construção da mediação.

Dizem respeito, especialmente, ao seu caráter popular e à sua possibilidade de facilitar o

  processo de construção da consciência política dos envolvidos nos conflitos, através da

  percepção da dimensão coletiva destes e do exercício da autonomia através do

reconhecimento da alteridade.

3.4.1. O “popular” da mediação

A expressão mediação popular ou comunitária vem sendo utilizada para se referir ao

tipo de mediação realizada junto à população pobre, marginalizada, entre outras coisas, doacesso ao Poder Judiciário. Não pretendemos entrar no complexo debate da identificação de

quem seja o povo, mas duas considerações importantes precisam ser feitas para situar 

teoricamente o que estamos chamando de popular.

A primeira delas é a adesão a um pensamento que compreende o popular para além da

questão tradicional da classe. A opressão de classe está no centro das opressões, e se relaciona

a todas as outras, mas não é a única. O adjetivo popular está, em nossa compreensão,

fortemente ligado às opressões que marginalizam e excluem as pessoas da participação digna

na ordem social.

A segunda consideração identifica o popular com uma postura política de resistência.

Mas resistência a quê? Resistência à ordem opressora, nos seus diversos âmbitos: artes,

 política, sexualidade, educação, etc. No âmbito do que estamos tratando nesse trabalho, a

resistência é em relação à cultura jurídica formal, que oprime as mais diversas formas de viver 

e legitima as desigualdades sociais.

Popular, assim, assume um cristalino posicionamento político e filosófico

diante do mundo, arrastando para si a dimensão propositivo-ativa de11

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encontro com os direitos das pessoas, com os direitos humanos. Popular como expressão de todo conjunto de atitudes em condições de assumir aslutas do povo e voltadas aos interesses das maiorias, resgatando a visão demudança necessária para melhoria do mundo dos direitos e das vidas das

 pessoas (MELO NETO: 2007, p.433).

A resistência à opressão se dá em vários níveis, podendo ser mais ou menos

consciente, mais ou menos organizada. De todo modo, está intimamente relacionada ao que

chamamos de conscientização. A consciência não é algo dado, natural das pessoas, e sim algo

que vai sendo construído com a socialização. É um processo dinâmico, um movimento, que

somente pode ser compreendido se inserido na história de sua formação.

O amadurecimento da consciência passa por várias etapas, que se superam e se

contradizem. O movimento da formação da consciência está “longe de qualquer linearidade ,

[pois] a consciência se movimenta trazendo consigo elementos de fases superadas, retomando

aparentemente, as formas que abandonou” (IASI: 1999, p.15):

O autor Mauro Luiz Iasi trabalha os diferentes estágios deste movimento que é o

 processo de consciência. Considera que o primeiro estágio de consciência começa na infância,

vivenciado através das intensas formas de socialização que ocorrem nesta fase. O indivíduo,

então, concebe como suas as idéias que lhe foram impostas, de modo que a consciência se

expressa como alienação: “Esta forma será a base, o terreno fértil, onde será plantada a ideologia como forma de dominação” (IASI: 1999, p.23). A superação desta fase da consciência

como alienação começa com a percepção das contradições entre o que a ideologia apregoa e o

que ocorre na vivência do sujeito, mas depende de uma condição vital:

A pré-condição para esta passagem é o grupo. Quando uma pessoa vive umainjustiça solitariamente, tende a revolta, mas em certas circunstâncias podever em outras pessoas sua própria contradição. (...) a identidade com o outro

 produz um salto de qualidade (IASI: 1999, p.35).

  Nessa perspectiva, os movimentos sociais cumprem bem o papel de facilitar a

superação da alienação, através da vivência coletiva das injustiças. A organização grupal se

dedica a compreender melhor a repercussão destas ideologias e se empenha em desmascará-

las e combatê-las. No entanto, este processo não é linear, e sim cheio de contradições. As

contradições podem fazer com que a prática se distancie do discurso, ou que exista ainda

muito da ideologia opressora dentro de nós.

Estas contradições do processo de consciência - presentes nos movimentos sociais

como em qualquer espaço - muitas vezes levam a conflitos. A mediação pode contribuir na12

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compreensão destas contradições que levaram ao conflito, favorecendo o amadurecimento do

 processo de consciência.

Destaquemos, então: o caráter popular da mediação, em nossa concepção, se refere ao

aspecto de lidar com os conflitos de modo que o diálogo contribua na conscientização e na

resistência coletiva à opressão. Isto nos leva ao segundo aspecto a ser destacado da mediação

 popular, que é o despertar para a dimensão política e coletiva dos conflitos.

3.4.2. A dimensão coletiva dos conflitos

Os conflitos são vivenciados, de um modo geral, a partir de uma perspectiva

ideológica individualista. No campo do direito, esta questão é fundamental. O direito, em

virtude da forte tradição liberal em que se fundamenta, não dá um adequado tratamento àdimensão coletiva dos conflitos. A cultura jurídica dominante, nesse sentido, trata os desvios

das normas jurídicas sempre como uma opção individual do transgressor, que deve ser 

 punida. Não se costuma debater que as reais causas dos conflitos são, no mais das vezes, as

opressões sociais.

Por trás de um conflito familiar, por exemplo, estão conceitos e preconceitos

determinados pelas concepções dominantes dos papéis sociais exercidos pelo homem, pela

mulher e pelas crianças. Estas concepções não são meramente individuais, e sim produzidascoletivamente. Perceber a construção coletiva destes padrões de relacionamento faz parte da

conscientização.

Como foi apontado no tópico anterior, a passagem para o segundo estágio da

consciência, segundo Mauro Iasi, depende de uma vivência de grupo. É com o grupo que as

 pessoas têm uma percepção ampliada da opressão, passando a se mobilizar para reivindicar as

alterações de suas condições. Vejam um exemplo a respeito dessa ampliação da percepção,

que ilustra o exemplo dos conflitos familiares:

Uma mulher, por exemplo, submetida a condições de opressão em casa,condenada aos trabalhos domésticos e ao cuidado dos filhos, pode viver istoa vida toda como natural, portanto, para ela, inevitável. Mesmo odesmoronar da idealização na família diante das condições reais docotidiano, pode gerar no máximo a revolta, a constatação de uma terrível"sina". No entanto esta mesma mulher, num grupo onde possa ver em outrascompanheiras a mesma sina, julgada somente sua, só sua, pode começar adesenvolver uma ação contra o que considera injusto (IASI: 1999, p.34).

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A mediação popular pode cumprir esta função, de auxiliar a passagem da percepção

individual do problema para a sua compreensão coletiva. Esta passagem ocorre na mediação,

ao nosso ver, em dois estágios: desconstruindo a dicotomia culpado/inocente e percebendo

que o mesmo tipo de conflito afeta outras pessoas ao seu redor.

Em primeiro lugar, a mediação trabalha pela desconstrução da dicotomia

culpado/inocente, predominante na cultura jurídica. Este modelo binário de pensamento se

relaciona à compreensão de causalidade linear, de que toda causa gera uma conseqüência, o

que nos impede de perceber a multicausalidade e complexidade dos fenômenos. Em função

desta mentalidade há uma dificuldade de compreender a dinâmica do conflito, na medida em

que os juristas costumam explicar de forma simplista o surgimento do conflito como uma

reação individual à determinada ação também individual.

Por exemplo: fulano bateu em cicrana por que ela provocou ciúmes nele. Mas por que

existe o ciúme nas relações? Ele tem a ver com um sentimento de posse? Em que medida

fulana e cicrano alimentam este sentimento? Como esta relação foi construída? Associando-se

esse sentimento a uma mentalidade machista, esta agressão adquire um significado coletivo?

A mentalidade do direito não se interessa por estas perguntas, que tornam complexo o

entendimento da dinâmica do conflito e suas causas.

A mediação busca, num primeiro momento, mudar tal mentalidade sobre o surgimentodo conflito, adotando uma concepção multicausal, já que várias e complexas são as causas

que levam ao desenvolvimento de um conflito. Para tais causas costumam contribuir,

geralmente, todas as pessoas envolvidas – com ações e omissões -, o que revela a

impossibilidade de categorizar os envolvidos no conflito como simples culpados ou inocentes.

A partir da superação desta dicotomia, pode haver uma mudança qualitativa na relação

entre as pessoas que vivenciaram o conflito de uma maneira criativa, buscando soluções para

enfrentá-lo.Esta nova conduta implica essencialmente em não se verem, as partes, comoadversários, mas sim como colaboradores, como solidários na busca pelamelhor solução dos problemas. Os contendores deixam de encarar suasdivergências como algo ameaçador e nocivo e passam a vê-las de maneira

  positiva, como sendo uma fase de reciclagem, de engrandecimento, detransição aprimorada (COSTA: 2004, p.14).

Esta pode ser uma oportunidade construtiva para os envolvidos aprenderem a lidar uns

com os outros. Assim, o conflito pode ser uma forma de produzir e administrar com o outro a

diferença, “inscrever a diferença no tempo como produção do novo” (WARAT: 2004, p.61).14

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Por outro lado, reconhecemos que, para além da participação direta dos envolvidos, há

em grande medida uma participação coletiva na construção dos significados dos elementos de

um conflito. Por isso pensamos que, em um segundo momento, a mediação popular pode

fazer com que as pessoas percebam que o mesmo problema que elas estão passando é também

a realidade de muitas outras pessoas. A partir daí, amplia-se ainda mais a compreensão das

causas do conflito, o que pode levar ao segundo estágio de consciência de que fala Iasi.

As pessoas, ao perceber esta dimensão coletiva, podem decidir se mobilizar contra as

causas coletivas destes conflitos. No exemplo do conflito familiar citado, as mulheres podem

se reconhecer na opressão de gênero que vivenciam e, a partir daí, se organizar para o

enfrentamento desta questão – reivindicando a igualdade material entre homens e mulheres.

A mediação, portanto, pode auxiliar nesta evolução para o segundo estágio do

 processo de consciência. Mas não é o bastante identificar coletivamente as opressões e se

organizar coletivamente para reivindicar mudanças pontuais. É preciso que se vá mais além,

 para perceber que a opressão só será superada com uma alteração estrutural da sociedade, que

não podemos reivindicar que ninguém a faça - só podemos fazer por nós mesmos.

3.4.3. Autonomia, alteridade e emancipação

Um terceiro e último aspecto a ser destacado da mediação popular é a possibilidade deela servir como um instrumento de exercício da autonomia – individual e coletiva – em

direção a um projeto social emancipatório.

À diferença do modo tradicional do Judiciário, a mediação se centra na capacidade das

 pessoas de resolver seus próprios conflitos, através da dialógica convivência com a alteridade.

 Neste sentido, Juan Carlos Vezzulla, citado por Lutiana Nacur Lorentz (2002, p.77), nos traz

 pertinente contribuição:

“... a Mediação surge como resposta a essa necessidade de não querermosmais que decidam por nós, pois estamos preparados para sermos criativos e

 procurarmos nossas próprias soluções para nossos problemas”.

Mas a autonomia só pode existir verdadeiramente se for exercitada como um processo

coletivo. A vida e obra de Paulo Freire foi muito significativa para a compreensão desta

relação entre o “eu” e o “outro” no processo emancipatório – o que pode ser traduzido na sua

célebre frase da Pedagogia do Oprimido: "ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta

sozinho, todos nos libertamos em comunhão" (FREIRE: 1987, p.52).

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Aqui nos deparamos com um traço marcante da mediação popular, em nome deste

 princípio coletivo da autonomia: a possibilidade de se utilizar de parâmetros normativos

outros que não o direito oficial na superação dos conflitos. Antônio Carlos Wolkmer (2001,

 p.153) é um marco teórico nesta discussão, sustentando que a produção jurídica não é

monopólio do Estado, podendo surgir de “outras instâncias sociais diferenciadas e

independentes”.

A legitimidade destes grupos para criar o direito decorreria das “práticas e relações

sociais surgidas na concretude plural e efetiva do cotidiano” (WOLKMER, 2001, p.154). Isto

 porque tais grupos, excluídos do poder, vulneráveis à opressão do sistema sócio-econômico,

vivenciam objetivamente a “negação das necessidades e da insatisfação de carências”. Isto faz

com que, por um lado, se conscientizem de seu “estado de marginalidade concreta”, e, por 

outro, constituam uma “identidade autônoma capaz de se autodirigir por uma escolha

emancipada que se efetiva em mobilização, organização e socialização” (WOLKMER,

 p.160).

A mediação popular pode, portanto, se basear em conceitos de justiça próprios de

grupos sociais específicos, ainda que contrarie o direito oficial. Nestes termos, em respeito à

autonomia destes grupos sociais, o ilícito pode ser jurídico:

As ordenações sociais independentes podem até ser consideradas ilícitas peloEstado, mas não perdem sua condição própria de juridicidade. Daí que oEstado, por não deter o monopólio da produção jurídica, convive comsituações que inviabilizam reduzir o lícito ao jurídico. Isso configura umquadro em que o ilícito sob o ponto de vista da ordenação estatal poderá ser 

  perfeitamente jurídico para uma organização não-estatal (WOLKMER:2001, p.189).

A autonomia jurídica no uso da mediação popular deve estar, obviamente, atrelada a

uma visão política de mundo igualitária. Apenas deste modo podemos falar em mediação

 popular como um instrumento emancipatório. Isso nos leva a um último diálogo com acompreensão dos processos de consciência de Mauro Iasi.

Para o autor, a consciência em si, possibilitada pela percepção de que a opressão é

compartilhada por determinados grupos sociais – as classes – ainda não é o bastante. Não é

suficiente reivindicar coletivamente por mudanças, se esperamos que estas mudanças partam

de alguém externo a “nós”, como uma concessão. Somos “nós” os agentes dessa mudança.

A consciência de classe deve exigir, portanto, que se evolua para uma estratégia

coletiva de superação da classe – é a consciência revolucionária. É preciso lutar, não por 16

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reivindicações para a classe dentro da ordem política, mas por uma alteração estrutural que

supere esta ordem opressora. Vejamos a análise da consciência de classe do operariado, que,

ao se assumir enquanto classe, ao mesmo tempo nega e afirma o capitalismo:

A verdadeira consciência de classe é fruto desta dupla negação: num primeiro momento o proletariado nega o capitalismo assumindo sua posiçãode classe, para depois negar-se a si próprio enquanto classe, assumindo a lutade toda a sociedade por sua emancipação contra o capital (IASI: 1999, p.38).

Queremos sustentar que a mediação popular, enquanto exercício de diálogo e de

autonomia, pode contribuir para que este estágio de consciência revolucionária - que

chamamos de projeto emancipatório - seja alcançado. Nesse campo se dá a enorme

importância da construção estratégica das lutas dos movimentos, especialmente a necessidade

de convergência de suas lutas em pautas comuns, em nome de uma transformação maior.

Há muitos conflitos entre os movimentos sociais. Por um lado, a disputa pelos

escassos recursos advindos de políticas públicas incentiva estes conflitos. Por outro, há

enormes dificuldades das pessoas, em geral, em lidar com a alteridade. Reconhecer a

importância da luta do outro, estranho a nós, como tão importante como a nossa, é um grande

desafio para os movimentos sociais.

A mediação pode ser útil para tratar destes conflitos entre movimentos diferentes,

colaborando com a ampliação da identificação da opressão para além de seus pares. Avivência da identidade que une um segmento popular, em torno do qual se centra a sua luta

 por direitos, não pode se fechar em si mesma. É necessário o diálogo para a luta unificada dos

diversos segmentos explorados. É necessária a percepção de que as opressões se interligam – 

de classe, de gênero, de raça, de etnia. A falta desta percepção dificulta uma perspectiva

emancipatória ampliada, que exceda as reivindicações pontuais de cada luta específica.

o novo contextualismo e particularismo tornam difícil pensar estrategicamente a emancipação. As lutas sociais e as identidades

contextuais tendem a privilegiar o pensamento tático em detrimento do  pensamento estratégico (...) quanto mais incomunicáveis forem asidentidades, mais difícil será concentrar as resistências emancipatórias em

 projetos coerentes e globais (SANTOS: p.147).

Completa-se, desse modo, a percepção de que a autonomia só é possível com a

alteridade, e que ambas só se realizam plenamente na construção de um projeto igualitário de

sociedade. É neste sentido que se relacionam intimamente os três aspectos aqui abordados da

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mediação - o caráter popular, a dimensão coletiva dos conflitos e os processo de autonomia e

alteridade na sua superação.

Encaminhando-nos para as conclusões possíveis, a mediação popular é aqui vista

como uma prática de resistência que, através da percepção da dimensão coletiva dos conflitos,

estimula a organização na luta por soluções autônomas e emancipatórias de transformação da

sociedade.

4. Conclusões

Está tudo por fazer no campo da construção de novas formas de  superação dos

conflitos, tanto no âmbito coletivo, que nos leva a uma outra sociedade, quanto no âmbito

inter-pessoal, que nos leva a novas formas de relacionamentos entre as pessoas. As conclusões possíveis neste debate nos levam, em primeiro lugar, a admitir estes enormes desafios.

O conflito precisa ser enxergado como algo necessário à mudança qualitativa da

sociedade e das relações entre as pessoas. Este reconhecimento implica um compromisso com

o combate à ideologia opressora que nos domina, negadora do papel transformador do

conflito. É esta ideologia que faz com que grupos que expõe o conflito através da luta pela

igualdade e pela justiça sejam vistos como desviantes da ordem, criminosos que precisam de

 punição.Percebamos que a solução dos conflitos não diz respeito simplesmente à possibilidade

de “acesso à justiça” por parte dos excluídos da ordem social. Se trata de construir uma outra

 justiça, com parâmetros outros que não os do direito classista. Mas isso implica uma ruptura

com toda a ordem social de que o direito é apenas uma expressão. Por sua vez, esta ruptura

exige um acúmulo de forças processual e lenta.

Para possibilitar esta ruptura devemos partir de nós mesmos, começar construindo

outras formas de humanidade, que considerem a alteridade como parte do processo de

autonomia. Somente o exercício do diálogo pode nos levar a esta percepção da importância do

outro. Ter o outro como condição do desenvolvimento de si mesmo, a verdadeira vivência do

“nós”, em pé de igualdade, é que torna possível construir uma sociedade igualitárias através

de uma política horizontal.

A perspectiva da mediação que tentamos mostrar neste trabalho a coloca como um

instrumento de exercício do diálogo, da autonomia e do respeito à alteridade. Estes

componentes são fundamentais nas lutas dos movimentos sociais, se temos a esperança que

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neles podem estar sendo gestadas, apesar das contradições, as sementes de uma outra

sociedade - justa e igualitária.

A mediação não está sendo colocada aqui como a condição que estava faltando para o

 processo revolucionário. Longe disso. Apenas intuímos que todas as práticas que exercitem o

diálogo, inclusive a mediação, são indispensáveis para uma alteração profunda na sociedade.

6. Referências

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