Medicina Famílias não entregam corpos doados · Há muitas famílias que, por ... lheres. 0...
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Universidades Faculdades de Medicina não têm forma de reclamar todos os cadáveres doados. Autor da lei pede uma alteração legislativa
Famílias travamdoação de corposSalomé Filipesociedadegijn.pt
? Manifestar em vida o desejo dedoar o corpo para investigaçãonão é sinónimo de que isso acon-teça. Há muitas famílias que, porfalta de concordância ou por es-quecimento na hora da morte,não o concretizam, o que faz comque o número de intenções dedoação que as universidades deMedicina recebem não bata cer-to, depois, com a quantidade decadáveres que anualmente che-gam às faculdades. As instituiçõesdeparam-se com um problema:saber quando é que os dadoresmorrem, para poderem ir buscaros cadáveres e ficarem responsá-
veis por eles. Há quem defendeque só uma alteração à lei poderesolver o problema.
"Devia haver um sistema, comum registo das doações na conser-vatória, para que as universidadestivessem conhecimento quandoos dadores morrem. Muitas vezesas famílias não nos informam. E
ninguém tem o direito de ir con-tra uma vontade manifestada emvida pelo dador. É um direito quetem de ser integralmente respei-tado", alerta Duarte Nuno Vieira,diretor da Faculdade de Medicinada Universidade de Coimbra e au-tor da lei n. Q 274/99, que regula adissecação de cadáveres. "Alerteigovernos anteriores para essa fa-lha de uma lei que eu próprio fiz,
mas ainda não foi feito nada nes-se sentido", lamenta.
Dulce Madeira, coordenadorada Unidade de Anatomia de Medi-cina da Faculdade de Medicina daUniversidade do Porto, confirmaque "muitas famílias não infor-mam da morte do dador, talvezpor esquecimento". À instituiçãoa que pertence chegam, todos osanos, 10 a 15 cadáveres e cerca de120 formulários de intenção dedoação. Os números têm-se man-tido, sensivelmente, desde 2007.
Seis faculdades têm programasde doação cadavérica, sendo aNova Medicai School, da Nova deLisboa, a que recebe o maior nú-mero de intenções de doação -acima das 300 por ano. Todas as
universidades dizem que os nú-meros se têm mantido nos últi-mos anos, com exceção da Uni-versidade da Beira Interior (UBI),na Covilhã, onde dá entrada o me-nor número de formulários. "Noano passado, não recebemos ne-nhum cadáver e tivemos apenastrês intenções de doação. Tem-severificado uma ligeira diminuiçãodas solicitações para doações, mastambém estamos com capacidademáxima de armazenamento atin-gida", explica fonte oficial.
Mais jovens a doarApesar de, no caso na ÜBI, os res-ponsáveis pela universidade nãosentirem falta de cadáveres, pois,
"nos últimos anos, a faculdade temusado mais a simulação", as restan-tes instituições carecem de corpos.Há, no entanto, a perspetiva de queo problema, daqui a alguns anos,possa ser minimizado, uma vezque parece haver cada vez mais jo-vens a manifestar intenção de doaro seu corpo. "Temos cada vez mais
doações de gente jovem, na casados 20 anos e até menos. Se calhar,esta nova geração compreendemelhor a importância da doaçãocadavérica para a Ciência", concluiDulce Madeira. •Doações Por carta,pessoalmente
ou pela Internet• Fazer a doação é mais sim-ples do que aquilo que muitos
pensam. Os corpos deverão serdoados a uma das seis facul-dades que têm programas de
doação cadavérica, devendo o
contacto ser feito, diretamen-te, com a universidade esco-lhida. Algumas têm, inclusive,os formulários disponíveis on-line, bastando para isso reen-caminhá-los via email ou porcarta. Presencialmente, juntodas faculdades, também é
possível fazer a doação.
©O©cadáveressão recebidos anualmente pelas uni-versidades com programas de doação(U. Porto, U. Lisboa, U. Nova de Lisboa,U. Beira Interior, U. Coimbra e InstitutoAbel Salazar), mais de metade delas
são na capital.
2vezes mais mulheresmais do dobro das doações às universi-dades portuguesas são feitas por mu-lheres. 0 "dador padrão" é do sexo fe-minino, com idade compreendida entre
os 50 e os 60 anos. No entanto, há
gente de várias faixas etárias a doar.
IOanos de estudoNão existe um limite para um cadáver fi-
car numa universidade, mas, dizem os
profissionais, "pode ultrapassar os 10anos". No fim, os restos mortais são cre-mados e podem ser devolvidos à família
ou não, consoante o desejo do dador.
"Os cadáveresforamos meusmelhoresprofessores"? A tecnologia, hoje, é melhor do
que nunca. Há programas de com-putador, há modelos anatómicos
e, tecnologias à parte, é possíveltambém estudar Medicina atravésde cadáveres de animais. No en-tanto, a maior parte dos profissio-nais da área parece ter uma certe-za: nada substitui o estudo de umcorpo humano. "No final do século
XX, achou-se que já não faziasentido o estudo com cadáveres.Mas depois vieram estudos com-provar que eles são elementosfundamentais, devido à variabili-dade imensa da anatomia huma-na. Não há nada que substitua to-talmente um cadáver humano",garante Duarte Nuno Vieira, daFaculdade de Medicina da Univer-
Essenciaisna aprendizagemde técnicas comoa transplantaçãoou a intubaçãosidade de Coimbra, instituição querecebe cerca de 10 corpos por ano.Os cadáveres são usados nas au-
las, ajudando a formar novos mé-dicos, e mostram-se essenciais
para a aprendizagem de algumastécnicas, nomeadamente a trans-plantação e a entubação. Dulce
Madeira, da Universidade do Por-to, vai mesmo mais longe: "cos-tumo dizer muitas vezes que oscadáveres foram os meus melho-res professores". Já António Gon-çalves Ferreira, diretor do Institu-to de Anatomia da Faculdade deMedicina da Universidade de Lis-boa, explica, por exemplo, que oscadáveres têm sido de extremaimportância em "workshops de
Anatomia, organizados extra-au-las práticas, com participação vo-luntária massiva dos alunos do
primeiro ano do Mestrado Inte-grado de Medicina".
"A maior satisfação ésaber que serei útil"
Maria de Fátima, de 57 anos, entregou a intenção de doação à Universidade do Porto e guarda-a na mesa de cabeceira
DADORA É com uma leveza atípi-ca que Maria de Fátima Capucho,de 57 anos, fala da morte. Talvezpelo facto de já muitos lhe teremmorrido nas mãos. A auxiliar degeriatria aceita o fim da vida - "a
passagem para o outro lado" -como destino ao qual ninguémfoge. E por isso não hesitou em to-mar uma decisão; doar o corpo àCiência quando morrer. "Se de-pois de morrermos o corpo nãoserve para nada, porque não aju-dar a Medicina?", questiona.
A ideia surgiu em novembro,quando viu, na televisão, uma re-portagem sobre a falta de corpos
para estudo nas universidades."Mexeu com os meus sentimen-tos. Pensei que, realmente, o cor-po vai para a terra, apodrece e
ninguém o estuda. E que, se nãohouver corpos para os futurosmédicos estudarem, é difícil for-marem-se bons profissionais",diz Maria de Fátima. "Andei umassemanas a pensar no assunto e
depois comentei com a minha fi-lha e ela reagiu bem". O passo se-
guinte foi contar ao marido. "De-pois de morta, podes ir para qual-quer lado", respondeu ele, emtom de brincadeira. "Percebi quenão era a favor nem contra, por-
tanto fiquei tranquila e decidiavançar. Eu posso ter muita von-tade, mas se quem cá ficar nãocumprir o meu desejo, a vontadenão vale de nada", sublinha.
Uma simples pesquisa na Inter-net deu a Maria de Fátima as dire-trizes a seguir para avançar com a
doação. Escolheu a Faculdade deMedicina da Universidade do Por-to como destino do seu corpo e"bastou imprimir o formulário".Depois, no Natal, aproveitando areunião da família, comunicou atodos a decisão. Foi do filho, lor-ge, que Fátima recebeu a reação
Foi no Natal queMaria de Fátimacomunicou à famíliaa decisão de doaçãomais emotiva. "Ficou muito con-tente. Disse que se fosse ele nãoteria coragem, mas que me davamuito valor", recorda. Assim, en-tregou a intenção de doação e, al-
gum tempo depois, recebeu a res-posta da universidade, com indi-cações para a família do que fazeraquando da morte.
"Ajudar a Medicina, acima detudo", foi o que moveu Maria deFátima. Mas algumas questõesideológicas e religiosas surgiram."Tinha a curiosidade de saber o
que aconteceria ao nosso espírito,numa situação destas. Acabei porperguntar a um espiritista, que me
disse que o espírito larga o corpono momento da morte, seguindoo seu percurso. É a alma. Fiqueitranquila".
O documento que recebeu dauniversidade está agora guardadona mesa de cabeceira - "e que não
seja preciso tão cedo". Numacapa, a vermelho, escreveu: "Mui-to importante. Mãe". Para queninguém se esqueça da sua últi-ma vontade. •
Recolha Faculdadesvão buscar os corpos
Quando ocorre o óbito, cabe à famíliainformar a faculdade à qual o corpo foi
doado. Depois, é a universidade que se
encarrega de recolher o cadáver, su-portando os custos. Por isso, alertam
os dadores para que a doação seja fei-ta à faculdade mais perto da sua área
de residência.
Funerais Pode havercerimónia fúnebre
0 facto de o corpo ter sido doado paraestudo não implica que não possa ha-ver cerimónias fúnebres aquando da
morte. Todas as exéquias podem ter
lugar, incluindo as missas de corpo
presente. No final, a única diferença é
que o cadáver não segue para o cemi-tério.
Aumento Não existemcampanhas de divulgação
"Apesar de a lei, quando foi feita, ter
previsto a existência de campanhas de
divulgação da doação cadavérica,nunca nada foi feito nesse sentido",diz Duarte Nuno Vieira, autor da legis-lação. Mas, "quando saem notícias so-bre o assunto, há um aumento brutal
das doações", adianta.
Edgar SimõesPresidente da Associação Nacional
de Estudantes de Medicina
"É uma questãode solidariedade
para com o
avanço da Ciência"
Qual a importância que tem,para os alunos de Medicina, o
ensino através de cadávereshumanos, em comparaçãocom outras vias?Os modelos informáticos aindanão estão desenvolvidoso suficiente para permitir umuso massificado. Emcomparação com os modelosanatómicos e com o ensinoanimal, a grande vantagem é o
facto de as estruturas quevamos dissecar serem idênticasàs que encontramoscirurgicamente. O ensino porcadáveres tem característicasúnicas.
Sente falta de corpos paraestudo na universidade quefrequenta (Nova de Lisboa)?A minha faculdade tem umsistema muito bom para gerir o
ensino anatómico comcadáveres, portanto não sinto
que haja grande carência. Mashá aulas com vagas limitadas à
disponibilidade de cadáveres.
Há cada vez mais jovens adoar o corpo. Como vê esteaumento?Com muito bons olhos. É umaquestão de solidariedade paracom os profissionais de Saúde e
para com o avanço da Ciência.Acho que os jovens são cadamais mais interessados emCiência e Inovação, estandomais consciencializados daimportância do uso decadáveres para a formação.