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JOSÉ CARLOS DE MEDEIROS PEREIRA MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE

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JOSÉ CARLOS DE MEDEIROS PEREIRA

MEDICINA,

SAÚDE

E SOCIEDADE

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central - Campusda USP - Ribeirão Preto, SP

364.444 Pereira, José Carlos de MedeirosP436m Medicina, saúde e sociedade / José

Carlos de Medeiros Pereira. - RibeirãoPreto: Complexo Gráfico Villimpress,2003.

1. 364.444 - Medicina Social. 2.Sociologia - Metodologia. I. Título.

Direitos autorais de José Carlos de Medeiros Pereira (e deAntônio Ruffino Netto em relação à seção 7, “Sobre tuberculose”).

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ÍNDICE

PREFÁCIO .......................................................................... 5

1. SOBRE MEDICINA SOCIAL ........................................151.1. Medicina, saúde e sociedade .................................17

2. MEDICINA PREVENTIVA, SAÚDE PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS ............................................. 33

2.1. O projeto preventivista e a noção desubdesenvolvimento.................................................... 352.2. Problema social e problema de saúde pública ... 41

3. SOBRE CONTRACEPÇÃO ............................................ 673.1. O direito de não ter filhos .................................. 693.2. Aspectos sociais da contracepção .................... 73

4. SOBRE METODOLOGIA ..............................................974.1. Cientificismo “versus” ideologicismo ....................994.2. O específico e o geral na ciência ........................ 104

5. SAÚDE E POLÍTICA CIENTÍFICA, TECNOLÓGICA E EDUCACIONAL ......................................................... 109

5.1. Sociedade e educação médica .............................. 1115.2. Saúde e política nacional de ciência e tecnologia ........... 116

6. ESPECIALIZAÇÃO NA MEDICINA ......................... 1356.1. Sobre a tendência à especialização na Medicina ...... .137

7. SOBRE TUBERCULOSE (com Antônio Ruffino Netto) .... 1497.1. Mortalidade por tuberculose e condiçõesde vida: o caso Rio de Janeiro .................................... 1517.2. Saúde – doença e sociedade;a tuberculose – o tuberculoso ..................................... 172

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8. DOENÇA DE CHAGAS — RESENHA DE TESE ..... 1838.1. A evolução da Doença de Chagas no Estadode São Paulo ................................................................ 185

9. VÁRIOS ......................................................................... 1899.1. A enfermidade como fenômeno social ................ 1919.2. Sobre a etiologia social da saúde e da doença ........... 1969.3. Ampliando o conceito de Medicina ..................... 2009.4. Medicina além do biológico ................................. 2049.5. Riqueza, poder e doença ..................................... 2109.6. Urbanização, industrialização e saúde ................. 2149.7. Fome e suprimento de alimentos ......................... 219

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5José Carlos de Medeiros Pereira

PREFÁCIO

Durante o ano de 2001 resolvi rever o conjunto de artigos devária espécie que havia produzido durante o período em que fuiprofessor de Departamento de Medicina Social da Faculdade deMedicina de Ribeirão Preto, da USP. Lendo-os e organizando-os,dei-me conta de que aqueles relacionados, de modo direto ou indiretoà disciplina, ainda poderiam ser úteis. Talvez haja um pouco de vaidadeintelectual em tal constatação, admito. Mas entendo que, apesar deescritos há muitos anos, alguns deles pelo menos, suscitam questões,propõem interpretações e indicam formas de abordagem quepoderiam ser retomadas, corrigidas e enriquecidas por outros.

Pensei em reescrever algumas partes. Mas lembrei-me de umconselho que meu falecido catedrático, o Professor FlorestanFernandes, dava aos seus auxiliares: uma vez pronto um trabalhointelectual, revisto e achado conforme no momento em que foi escrito,ele não deve ser retomado. No entender dele, a obra já teria cumpridosua função para o autor. Poderia, agora, auxiliar a outros que a lessem.Se o sujeito quisesse retormar o tema, que escrevesse outro trabalho,com base na literatura subseqüente e no entendimento que passara ater do mesmo. Ora, aposentado, minhas leituras foram dirigidas aoutros caminhos. Conseqüentemente, os acrescentamentos que fizesseresultariam apenas de um maior amadurecimento dado pelo tempo epor leituras não correlatas.

Fiz, no entanto, pequenos ajustes. Não compartilho mais,inteiramente, de um ou outro ponto de vista exarado na época. Porisso, tomei a decisão de alterá-los, nesse caso. Em outros, minhavisão se alterou, mas não a ponto de rejeitar integralmente o que foi

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escrito. Peço aos leitores que, algumas vezes, levem em consideraçãoo momento histórico, político e intelectual em que o artigo foi dado alume.

Os leitores devem ter em conta que o período que vai darenúncia de Jânio Quadros à eleição de Fernando Henrique Cardosofoi, em geral, desfavorável ao avanço das Ciências Sociais.Pessoalmente, no entanto, sempre considerei que a ciência deve fazeras menores concessões possíveis à ideologia. Em razão, porém, daenorme tensão mundial, esta última tornou-se por demaispreponderante na produção científica na área. É óbvio que asposições ideológicas influenciam o trabalho intelectual no sentidode condicionar e mesmo determinar a escolha dos temas a serempesquisados, as técnicas de investigação e, sobretudo, asinterpretações. Se em condições normais, esses excessos tendem aser circunscritos, em tempos de enorme politização da vida social,eles tendem, pelo contrário, a avultarem.

Um dos aspectos que mais me chamou a atenção, comoprofissional da área, foi a tendência generalizada, nessa época, àpopularização, na academia, mas também em outros círculos, deum marxismo vulgar, mecanicista, sem mediações. Essa correntede pensamento foi degradada à situação de um sistema ultra-simplificador da complexidade do mundo social, especialmente porpessoas sem nenhuma formação histórica e sociológica. Asofisticação do pensamento foi varrida muitas vezes. O princípio dosim/não, preto/branco, reacionário/progressista etc. etc.freqüentemente tomou o lugar de formas mais complexas deraciocínio. Entendo que não colaborei para que tal degradaçãoocorresse. Os leitores aquilatarão se mantive o nível de que estouacusando outros de terem rebaixado. De qualquer modo, noto, comsatisfação, que esses tempos estão ficando para trás.

Sem dúvida, o modo simplista de fazer ciência tambémpermaneceu, é preciso que se diga. Muitas vezes, contra ele, é quese apelou, canhestramente, para o marxismo. Ou seja, buscam-sedados, nem sempre bem coletados, e procura-se, sem praticamente

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nenhum marco teórico, estabelecer alguma correlação entre eles.Como afirmo no artigo “Cientificismo ‘versus’ ideologicismo”, semesse marco, que daria sentido às relações buscadas, o investigadorpode ficar ao nível do observado, da aparência, não entendendo,na verdade, aquelas relações. Com freqüência, pressupõe umacausalidade inexistente na correlação observada, chegando aconclusões errôneas. Na Medicina Social notei muitas vezes esseerro. Para dar um exemplo banal e tosco: verifica-se a existência deuma correlação positiva entre número de médicos por habitantes eboas condições de saúde. Daí não se pode inferir, sem mais aquela,que médicos estão associados, causalmente, com boa saúde. Namaior parte dos casos a boa saúde também está associada,estatisticamente, à existência de maior número de automóveis, detelefones, de aparelhos de ar condicionado e assim por diante. Ouseja, de modo geral, o que ocorre, é que os médicos, como quaisqueroutros profissionais, tendem, simplesmente, a se estabelecer naqueleslugares onde poderão ser melhor remunerados.

Os leitores irão verificar que naqueles trabalhos que tratammais especificamente da Medicina Social, procurei entender a saúdee a doença, assim como a assistência médica, como fenômeno social.Ou seja, buscando as determinações, sócio-econômicasprincipalmente, responsáveis pela manifestação da enfermidade epelo modo como ela é enfrentada pela assistência médica. É quenessa disciplina não se trata de estudar a história natural da doençanum indivíduo mas numa população, examinando-se os diferentesriscos a que estão expostos os vários grupos constituintes dasociedade e porquê. Importam mais as relações entre os homensdo que entre eles e o meio natural. A Medicina não é vista comotendo completa autonomia frente à sociedade, mas encarada, elaprópria, como sendo determinada e condicionada, em grande parte,pela estrutura econômica e social. Vai-se até mais além, em algunsartigos, examinando-se as relações da ciência, e sobretudo datecnologia, com o poder. Como não podia deixar de acontecer,numa disciplina social, a historicidade das práticas e saberes que têm

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como objetivo a prevenção e a cura da enfermidade também é discutidaem alguns pontos. Recomendo àqueles que desejarem situar-serapidamente frente às questões expostas, irem ao final do volume.Em três pequenos artigos jornalísticos (“A enfermidade comofenômeno social”, “Sobre a etiologia social da saúde e da doença” e“Ampliando o conceito de Medicina”), abordo-as de modo mais oumenos sumário.

Os que queiram informar-se mais a respeito do assunto podemler o primeiro dos artigos reunidos neste volume: “Medicina, saúde esociedade”. Nele, aproveito contribuições tanto da EpidemiologiaSocial como da Sociologia da Saúde para expor como a MedicinaSocial explica os dois processos a que me referi acima (saúde-doençae assistência médica). Esclarece-se que a disciplina concebe aMedicina como uma ciência histórico-social, encarando os homens,sadios ou doentes, não apenas como corpos biológicos, mas,sobretudo, como corpos sociais, inseridos em sociedades dadas,membros de determinadas classes e grupos sociais, participantesde relações sociais específicas. Insisto que se trata de realizar umarotação de perspectivas, vendo e examinando o mesmo objeto deinvestigação de um ponto de vista substancialmente diferente. Ouseja, vê-se a enfermidade não só como fenômeno natural e portanto,técnico, mas também como fenômeno social e, conseqüentemente,como problema social, político e cultural. De fato, todos os homensparticipam de sociedades históricas, divididas, conflituosas,competitivas, em que os diferentes segmentos sociais têm desigualpoder, riqueza e prestígio. Por isso é que a Medicina Social nãotoma a presença do homem numa determinada cadeia epidemiológicacomo inevitável. É essencial, para a disciplina, discutirem-se osdeterminantes extramédicos da assistência médica, que é o outroconjunto de fenômenos pelos quais ela se interessa. Vista comouma instituição social, as práticas sociais da Medicina claramenteguiam-se, o mais das vezes, por outros critérios que não somentemédicos: em termos societários, políticos e econômicos, umas vidastêm sempre mais valor do que outras.

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Nos dois artigos seguintes discuto certos aspectos de disciplinascorrelatas à Medicina Social: a Medicina Preventiva e a Saúde Pública.Em “O projeto preventivista e a noção de subdesenvolvimento”, tratode uma vinculação, que cria existir, entre mudanças no entendimentodas causas do subdesenvolvimento e as transformações pelas quaistinha ou estava passando o projeto orientador da Medicina Preventiva.Explico-me: a interpretação do subdesenvolvimento evoluiu de umavisão culturalista (teoria da modernização) para uma visão sobretudode natureza política e econômica (teoria da dependência). No casoda Medicina Preventiva, a interpretação evoluiu desde uma visão deque a doença seria devida a fatores ligados a hábitos culturaisprincipalmente, para a da Medicina Social, em que a doença érelacionada à estrutura social global.

O segundo artigo (“Problema social e problema de SaúdePública”) procura mostrar relações de vária ordem entre os dois tiposde problemas. Nele discuto algumas questões comuns a ambos, comoas dificuldades na definição do que seja problema. A quem compete adefinição? Quais os vieses, sobretudo de natureza ideológica, queinterferem nessa definição e, conseqüentemente, na proposta desoluções? Insisto em que o planejamento destas depende muito domodo como se encare o sistema social, político e econômico. Depois,da capacidade de profissionais da área em interessar um grupo socialsuficientemente poderoso para que encampe tais soluções ou até asintegre em seu projeto de transformação social. Enfatizo o fato deque é praticamente impossível um consenso a respeito do assunto, jáque os vários grupos sociais têm objetivos e valores não só diversoscomo contraditórios. Uma certa possibilidade de superação dessasdissensões político-ideológicas estaria, em meu entender, nanecessidade de os diagnósticos e soluções se alicerçarem em modelosinterpretativos teoricamente mais sofisticados. Insisto em que semque isso se dê, as intervenções planejadas para corrigir o problemapodem conduzir, elas próprias, a conseqüências negativas nãoprevistas.

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O tema da contracepção sempre me atraiu porque estáintimamente relacionado ao de desenvolvimento ecônomico e social.Creio que praticamente todos os que se debruçaram sem viesesideológicos (e principalmente religiosos) sobre ele, concordam queuma das principais causas da miséria do que era chamado TerceiroMundo estava na procriação exagerada. Paternidade e maternidadeirresponsáveis, infelizmente, eram (e ainda são) estimuladas, emmuitos países subdesenvolvidos, por líderes políticos, religiosos emilitares. Na verdade, estão eles entre os grandes culpados peloseu atraso em vários e importantes níveis. Nenhum país pode crescereconomicamente e se desenvolver social e culturalmente quando suastaxas de natalidade são demasiado altas. Os investimentos para semanter saudável, educar e profissionalizar uma pessoa de modo atorná-la capaz de viver produtiva e responsavelmente na sociedademoderna são muito elevados. Tais líderes parecem imaginar que seDeus não prouver, o Estado proverá. De onde tirará os recursos écoisa de somenos importância. É claro que só o controle danatalidade não basta. Tanto assim que em todos os países em que osocialismo do tipo soviético ou assemelhado conquistou o poder,uma rígida política de restrição de nascimentos foi posta em prática.Nem sempre daí resultou maior riqueza.

O primeiro dos artigos sobre o tema (“O direito de não terfilhos”) é restrito e mais vinculado à discussão que então se tinhaestabelecido na imprensa sobre o planejamento familiar. Já o segundo(“Aspectos sociais da contracepção”) é mais amplo. Nele discutocriticamente, com certa profundidade, os argumentos de naturezaeconômica, social e política favoráveis e contrários à política deregulação da fertilidade. O governo de então (presidido pelo Gal.Ernesto Geisel), mudara muitas das posições assumidas pelasadministrações anteriores a respeito do problema populacional.Mostro que os debates tinham, compreensivelmente, caráterprofundamente ideológico. Relativizo, no entanto, o exagero dasposições defendidas, já que, historicamente, as relações entrepopulação e processos sociais complexos variaram muito no decorrer

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do tempo e de um país para o outro. Concluo, porém, que pôr àdisposição da população, sobretudo das mulheres, conhecimentos emeios para que pratiquem a contracepção constitui um dos deveresdo Estado moderno e um direito básico delas.

A educação é uma daquelas áreas na qual quase todos se julgamcom competência para meter o bedelho. Esta é uma tendênciaaparentemente incoercível. Os profissionais que nela militam queixam-se, com razão, dessa intromissão, freqüentemente não só abusivacomo inepta. Confesso que eu também, muitas vezes, nela meintrometi. Aqui, porém, trata-se de uma incursão mais restrita. Numseminário sobre educação médica fui solicitado a proferir uma palestra(“Sociedade e educação médica”). Divergi dos organizadores doevento. Em geral, entendiam, que o ensino médico poderia ter grandeinfluência no modo como a profissão estava ou viria a ser exercida.Segui o ponto de vista normalmente defendido pelos sociólogos,destacando o papel conservador da educação. Assim sendo, é difíciltransformá-la num agente de mudança social. No caso específico daeducação médica, apontei o fato de que a formação do médico édeterminada fundamentalmente pela prática profissional e não oinverso.

Nesse sentido, o artigo “Sobre a tendência à especializaçãona Medicina” constitui, de certa forma, uma demonstração do queafirmei naquele seminário. Nesse trabalho, faço um apanhado dasexplicações do processo de especialização. No caso da expansãoextraordinária da especialização na Medicina (em geral tida comoexcessiva, no Brasil, pelos que estudam a organização dos serviçosmédicos), aponto, exatamente, a política de atenção médica dosistema oficial de Previdência Social como o grande favorecedorda tendência. É claro que havia e há outros fatores: a preferênciados próprios pacientes, sobretudo dos que podem pagar; asvantagens para os próprios médicos, que, especializando-se,procuram fugir da acirrada competição profissional; o interesse daindústria produtora de equipamento médico sofisticado etc.Obviamente, essa tendência tornou os médicos menos capacitados a

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encarar seus pacientes como um todo não só biológico, mas, sobretudo,psico-social e cultural.

As colocações acima, no entanto, não significam que a políticaeducacional e, sobretudo, a voltada para a ciência e a tecnologia,não possa ter enorme importância no desenvolvimento sócio-econômico de um país. As várias áreas do social se interinfluenciam.O sistema educacional, desde que devidamente gerido por uma políticaconveniente, pode reagir sobre o meio social global, alterando-osignificantemente. Os objetivos da educação e da saúde são definidosem nível societário. Mas, dependendo da estratégia específica, asreações corporativas podem ou não trazer benefícios para aqueledesenvolvimento. No artigo “Saúde e política nacional de ciência etecnologia” indico vários pontos que, em meu entender, estavamdificultando a realização desse papel positivo. No caso daUniversidade, apoiando-me em texto de Florestan Fernandes, façoreferências à pesquisa inútil, ao desperdício de recursos materiais ehumanos, à predominância de interesses individuais e grupais emdetrimento dos objetivos mais altos da ciência, à dependência culturalprevalecente em muitos nichos acadêmicos, ao dogmatismo existenteem outros etc. O arrolamento de tais pontos talvez possa contribuirpara o debate a respeito do tipo de conhecimentos a seremproduzidos no ambiente universitário; conseqüentemente, para queeles sejam aproveitados construtivamente pela sociedade.

Em 1981 e 1982, escrevi alguns trabalhos em parceria commeu amigo e colega de Departamento, o Prof. Antônio Ruffino Netto.A tuberculose, na qual ele era (e é) interessado, é uma doença queexemplifica bem um dos pontos ressaltados nos estudos de MedicinaSocial. Ou seja, o de que a causa necessária de uma doença nemsempre é suficiente para desencadeá-la. Ruffino havia levantadodados sobre a mortalidade pela moléstia no Rio de Janeiro. Intrigadocom as variações de velocidade de declínio apresentadas pela curva,procurou-me para que o auxiliasse a analisá-los. Da colaboraçãoresultou o artigo “Mortalidade por tuberculose e condições de vida:o caso Rio de Janeiro”. Verificamos a existência de 3 regressões

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distintas. Creio que conseguimos, alicerçados no exame de fatoresde ordem social, econômica e cultural, esclarecer as razões dasvariações. De fato, no caso dessa doença, alterações nas condiçõesde vida das pessoas são fundamentais para explicar sua incidência,prevalência e letalidade. Concluímos que, “apesar de ser marcanteo impacto determinado pelos métodos específicos de controle datuberculose, não menos significativo é o efeito dos métodosinespecíficos de controle (melhoria das condições de vida)”.

Posteriormente, resolvemos produzir um trabalho mais geral.Nele, tentamos mostrar que os ciclos biológicos, descritos no quese chama a “história natural da enfermidade”, não esgotam o seuentendimento. Esses ciclos foram exaustivamente estudados pelaEpidemiologia e Saúde Pública. Mas, em nosso entender, para que oestudo ficasse completo, seria preciso atentar para o ciclo social.Neste, o homem histórico, concreto, entra em relações com os outroshomens. Tais relações, por sua vez, são condicionadas e mesmodeterminadas pela estrutura sócio-econômica inclusiva. Daí porquetermos sugerido um modelo mais holístico de interpretação, tantoda doença individual como coletiva, em que o aspecto societáriofosse considerado. Indicamos que, em seu estudo, os investigadorespensassem não apenas num ciclo, representado pela letra O, masem dois. O esquema se transformaria num 8, tendo o homem comoponto comum. “Desta forma, ficaria claro que nem sempre éinevitável que os homens participem de determinada cadeiaepidemiológica. Isso levaria mais facilmente o investigador e otécnico, em suas interpretações e nas soluções propostas, aconsiderar a estrutura social e suas características específicas, quefazem com que a doença se individualize em uns homens e não emoutros”.

A tese de doutoramento do Prof. Luiz Jacintho da Silva,intitulada A Evolução da Doença de Chagas no Estado de SãoPaulo, defendida em 1981, trata de outra doença, a de Chagas,com importante determinação social. Por isso incluí a resenha quedela fiz no livro que organizei. Como muitos diziam, a doença de

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Chagas propagava-se, em grande parte, porque os homens viviamem habitações mais apropriadas a barbeiros do que a eles. O autor,em seu trabalho, mostra como a alteração do espaço geográfico esócio-econômico, pela cafeicultura, facilitou a disseminação doTriatoma infestans. Com a desarticulação desse espaço (onde aendemia estava presente) e o surgimento, nele, de outra organizaçãosocial, praticamente desapareceu, no Estado de São Paulo, atransmissão natural da doença. Luiz Jacintho não só estudou o contextohistórico da doença, mas procurou inseri-lo numa totalidade. Além domais, trata o social não só como características dos sujeitos, mas asvê como produto de forças sócio-econômicas mais profundas.

Reiterando o que disse no início deste prefácio, espero que osartigos aqui reunidos tenham utlidade para muitos dos que os lerem.Entendo que, pelo menos, desempenharão funções didáticas. Umpouco mais pretenciosamente, talvez venham a ter também implicaçõesteóricas. Dou-me por satisfeito se contribuírem para uma melhorcompreensão dos determinantes sociais da saúde e da doença e daassistência médica.

José Carlos de Medeiros Pereira Ribeirão Preto, setembro de 2002

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1. SOBRE MEDICINASOCIAL

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1.1. MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE*

I – INTRODUÇÃO

Nosso propósito é apresentar uma certa rotação de perspectivasquanto ao modo de analisar tanto o processo saúde-doença como aassistência médica. O primeiro é freqüentemente pensado como sendoquase exclusivamente biológico. Em relação à segunda ela é vista,demasiadas vezes, como se se orientasse sobretudo por consideraçõesde ordem médica. Ora, saúde e doença são objetos ao mesmo temposociais e biológicos. Os homens são sadios, enfermam e morrem nãosegundo apenas variáveis biológicas, mas por razões, o mais das vezes,sociais. Quanto à assistência médica, mais facilmente se percebeque ela é constituída por um conjunto de práticas sociais que obedecema poderosos determinantes econômicos, políticos e de outras ordenstambém não-médicas.

A assistência médica é, inquestionavelmente, objeto de estudodas Ciências Sociais, principalmente da Sociologia. Trata-se, por certo,de uma instituição social, com a especificidade de se constituir de umcomplexo de ações e relações sociais referidas à área médica. Maspode ser objeto também de uma disciplina de fronteira à qual nosreferiremos adiante. Tal disciplina, em outra de suas vertentes, volta-se, igualmente, para o estudo das determinações extrabiológicas dasaúde e da doença, principalmente desta, quando encarada não emtermos de indivíduos isolados, mas de uma população que apresentasegmentos sociais vivendo em condições diferenciadas. Assim, quandose analisa como a enfermidade ocorre e se distribui na população

* Publicado originalmente em Estudos de Saúde Coletiva, nº 4, pp. 29-37, Rio deJaneiro, novembro de 1986.

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descobre-se que o fato de ela se individualizar em determinadosorganismos biológicos é, em grande parte, uma conseqüência de seremesses organismos membros participantes de determinadas relaçõessociais.

II – A MEDICINA SOCIAL

Sem dúvida, as várias ciências sociais poderiam dar conta dainvestigação dos determinantes da assistência médica, como jádissemos. Por outro lado, elas poderiam também estudar: a) osdeterminantes sociais que fazem com que um dado fenômeno naárea da Saúde Coletiva seja considerado normal ou patológico; b)ou, ainda, os fatores e condições igualmente sociais que levariam talfenômeno a se manifestar diversamente nos vários segmentos sociais(classes, frações de classe, grupos ocupacionais, de renda etc). Noentanto, especialmente de duas décadas para cá, foi sedesenvolvendo uma novel disciplina, a Medicina Social, que se voltouespecificamente para o estudo dessas duas ordens de questões(15).A par de outras razões, talvez se possa dizer que, para o surgimentodesta, militaram desdobramentos havidos nas investigaçõesrealizadas em dois campos de estudo aparentemente distintos. Numcaso, a Epidemiologia, disciplina médica, passou a se interessar, cadavez mais, pela convergência do social e do “natural” na explicação damanifestação do fenômeno doença. Verificou que este depende,freqüentemente, de condições suficientes, de natureza social, tantoou mais até que de causas necessárias, de natureza biológica. De seulado, trabalhadores intelectuais na área da Sociologia e, maisrecentemente, na da Economia, estabeleceram claramente que ofuncionamento e a estrutura do sub-sistema social representado pelaassistência médica obedecem a razões extramédicas. Nada maisnatural que sendo ambas as questões vinculadas, de um modo oudoutro, à Medicina, fosse adquirindo contornos a disciplina a que nosestamos referindo.

Na verdade, algumas correntes heterodoxas dentro da própria

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Medicina, gozando de maior ou menor prestígio conforme o momentohistórico e os paradigmas científicos pelos quais ela se norteou,freqüentemente consideraram o fato de os homens doentes seremtambém participantes de determinadas relações sociais, as quais épreciso levar em conta. Especialmente nos últimos anos, por influênciade tais correntes, a Medicina vai deixando de ser quase que apenas oconhecimento (biológico principalmente) da doença e dos meios decurá-la e/ou a ciência do corpo humano, normal e patológico. Umnúmero significativo de trabalhadores na área vai percebendo, cadavez com maior clareza, que a explicação das doenças e sua cura éfacilitada pelo conhecimento do contexto social em que vivem aspessoas. Bem ou mal, eles têm buscado explicá-las através dareferência a fatores sociais, ainda que, o mais das vezes, esse socialseja encarado como constituído por características de pessoas, na játradicional concepção multicausal da doença. Apesar disso, naatualidade, muitos dos cultores da disciplina médica procuram ampliaro objeto da mesma, a maneira de representá-lo cientificamente e omodo de apreendê-lo. Cada vez mais, em face disso, cremos que aMedicina tenderá a ser concebida também como uma ciência histórico-social, percebendo que as características dos seres humanos (doentesou não) são sobretudo um produto de forças sociais mais profundas,ligadas a uma totalidade econômico-social que é preciso conhecer ecompreender para explicarem-se adequadamente os fenômenos desaúde e de doença com os quais ela se defronta.

Passando a Medicina a ser encarada como atrás, suas práticassociais puderam vir a ser, também, objeto de investigação médica enão apenas de alguma ciência social. De qualquer forma, essas novasconcepções facilitaram a constituição da Medicina Social, voltadapara o estudo tanto dos processos que mantêm a saúde ou provocama doença como das práticas sociais que procuram recuperar oumanter aquela. Trata-se de uma mudança qualitativa, porque o objetode tal disciplina não é representado por corpos biológicos, mas porcorpos sociais. Não se trata, tão-somente, de indivíduos, mas desujeitos sociais, de grupos e classes sociais e de relações sociais

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referidas ao processo saúde-doença. Realizada tal mudança, aspráticas sociais da medicina e a doença seriam objeto de investigação,especificamente, dessa disciplina social, que se poderia vincular àMedicina desde que ela fosse concebida como uma ciência quetivesse um objeto social e natural ao mesmo tempo.

A rotação de perspectivas quanto ao modo de encarar einterpretar esses objetos de estudo representa uma ruptura emrelação à corrente positivista predominante. Tal rotação faz avançara interpretação, introduzindo tipos diversos de explicação, sobretudosociológica. O uso deles pela Medicina Social permite a inserçãodos fatos observados e das relações descobertas em teorias maisabrangentes; permite ver coisas novas, como se elas estivessemsendo criadas pelo investigador porque, agora, fatos conhecidossão olhados a partir de outros pontos de vista, embora tambémconhecidos(16: 101). É certo que os paradigmas da Biologia, de modogeral usados na Medicina, são menos controvertidos. Eles permitem,inclusive, que quase todos os investigadores utilizem o mesmo modelode análise, ao qual se conformam, Mas tal procedimento geramenores oportunidades de questionamento e, conseqüentemente,de reflexões sobre as questões estudadas(7). Ora, nas CiênciasSociais inexiste um paradigma único sobre o qual se assente umcrescimento científico cumulativo. Sua existência implicaria numacordo entre seus grandes cientistas quanto à concepção da sociedade,o que seria praticamente impossível pois esta, ao contrário dos objetosnaturais com os quais lida a Biologia e outras ciências naturais, éplena de divisões e conflitos dos quais o próprio investigador é parte.Mas, com isso, o avanço proporcionado pode ser significativo: umacriatividade mais expressiva, mais profícua, cientificamente falando,que acaba produzindo resultados também significativos.

III – A ENFERMIDADE COMO FENÔMENO SOCIAL

Adotar a perspectiva da Medicina Social implica em encarar aenfermidade como um fenômeno social também. Tomá-la como um

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fenômeno natural, como habitualmente se faz, tem implicações políticasinegáveis: permite transformar problemas sociais em problemastécnicos, com soluções dependentes da adoção de procedimentosigualmente técnicos e não políticos. Diga-se que o primeiro tipo desolução é o geralmente disponível pelos serviços médicos. Tal fatocontribui, certamente, para a Medicina tender a adotar antes um tipode explicação e não outro. Não nos esqueçamos que ela é, em grandeparte, uma técnica de intervenção. Esta característica, e a formação,da mesma forma, muito técnica dos médicos, favorecem a adoção deuma concepção fragmentada do homem e da doença. Talfragmentação, feita com o objetivo de melhor analisar, para conhecer,o objeto de estudo, impede que este seja inserido num todo socialcoerente. Tratando-se, porém, de objeto e de problemas sociais,idealmente se exigiria, de quem explica e propõe soluções, a percepçãode como se estrutura e funciona o sistema social no qual um se inseree os outros ocorrem. A proposta da Medicina Social pretendepreencher essa lacuna, procurando ultrapassar o nível deconcreticidade dos fenômenos médico-sociais, não os tomando comose eles fossem transparentes, como muitas vezes se faz. Oferecendouma visão mais abrangente da doença e dos homens doentes, essadisciplina pretende chegar a uma interpretação sociologicamente maisrigorosa dos fenômenos e a uma proposição de soluções socialmentemais relevantes. Ou seja, ela se propõe ultrapassar a mera aparênciados mesmos, para chegar, realmente, ao que considera a sua essência.

Para a Medicina Social boa parte das doenças constitui umamanifestação muito concreta das relações sociais (sobretudo deprodução) de que os homens participam. Por isso é que elas seapresentam tão diversamente, se consideramos os diferentessegmentos sociais. Vinculando-se ao modo como os homens vivem,trabalham, se divertem, se relacionam enfim, a prevenção daenfermidade, mantendo-se a saúde, tem muito a ver com quaisquermelhorias nas condições de vida proporcionadas, entre outras coisas,pela diminuição da desnutrição, pelo acesso a moradias maisadequadas, pelo exercício de um trabalho física e mentalmente menos

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desgastante etc. Em outras palavras, os homens enfermam e morremdesigualmente por pertencerem a uma e não a outra classe social,por exercerem diferentes ocupações, por se vincularem a este ouaquele setor econômico (rural ou urbano-industrial por exemplo),por compartilharem culturas ou sub-culturas distintas etc. Isto é queos faz correr riscos desiguais de contraírem moléstias e de morrerem.Os trabalhadores rurais, por exemplo, correm mais riscos do queos burocratas do serviço público por estarem muito mais expostosao binômio excesso de trabalho-consumo deficiente(8).

Ainda que como fenômeno biológico a doença possa tercaracterísticas universais, podendo o homem ser encarado comoum ser isolado, da perspectiva da Medicina Social, fora de seucontexto social esse homem é uma abstração, algo que não existe.Ele participa de uma sociedade histórica, dividida, conflituosa,competitiva, em que os diferentes segmentos sociais têm desigualpoder, riqueza e prestígio. Por isso, uma visão reducionista doproblema de saúde e doença, perdendo de vista essa totalidadesocial, acaba não proporcionando o entendimento procurado doproblema. A divisão deste em partes, para se proceder à análise,pode ser conveniente apenas quando, em seguida, faz-se a síntese,chegando a uma concepção enriquecida do conjunto do qual se partiu.Só quando se tem um mínimo de percepção dos fatores sociaisprodutores da enfermidade é que se pode compreender porque apresença da causa necessária de uma doença não necessariamentea desencadeia se não estiverem presentes as condições suficientespara que ela exista. É nesse sentido que se pode dizer que a verdadeiracausa da tuberculose são as precárias condições de vida e não obacilo de Koch.

Na explicação cabal da produção tanto da saúde como dadoença entre os homens, na quase totalidade dos casos, é preciso,pois, ter em conta as relações sociais de que eles participam numarealidade social concreta. Nesse sentido é que podemos ousar afirmarque se o DDT e o BHC matam barbeiros em todo lugar, também éincontestável que se as pessoas tivessem outras condições de moradia e

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melhores condições de vida, a incidência e a prevalência de umadoença como a de Chagas possivelmente diminuiriam em proporçãomaior do que quando se tentam soluções baseadas na noção de quesua causa fundamental é a presença de triatomíneos infectados. Damesma forma poderíamos nos referir à esquistossomose.Freqüentemente se pensa em combatê-la procurando melhoresmoluscocidas e não em fazer com que as pessoas vivam em condiçõesde não precisar entrar em contacto com águas infestadas. Num eoutro caso,quando a explicação da doença não contempla o social, assoluções aventadas deixam intocada a estrutura social determinanteda doença

É o caso de muitas proposições epidemiológicas que partemdo pressuposto da inevitabilidade da presença do homem numadeterminada cadeia epidemiológica. Ora, se suas relações com osoutros homens e com a natureza fossem diferentes da que estáocorrendo naquele lugar e naquele momento histórico ele nãoparticiparia de tal cadeia. Sem que essas relações sejam levadas emconsideração, a Medicina, o mais das vezes, vai se limitar a enfrentara doença já produzida. Evidentemente, este modo de procederconstitui uma solução correta em face do problema individualexistente, mas não como explicação e solução, ao nível coletivo, dofenômeno doença. O pressuposto da inevitabilidade desta se suascausas necessárias não forem afastadas assenta-se na tendência dasciências naturais de se voltarem para as características universais daprodução dos fenômenos. Esta tendência se vincula, por sua vez, àsuposição de que se está diante de um universo contínuo, em que asdiferenças pouco explicam. Ora, não é este o caso de qualquerfenômeno e processo envolvendo seres humanos, pois, em termossocietários, é cientificamente incorreto desconsiderar-se asdiferenças sociais. Se não nos voltarmos para elas, nossasconstatações a respeito, por exemplo, da incidência e prevalência dequaisquer doenças serão meras abstrações. Não nos dirão que gruposocupacionais ou frações de classes sociais são afetados. De fato,como já nos dizia Marx, a população é uma abstração se deixarmos

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de lado suas divisões.É em decorrência do fato de as relações sociais variarem

historicamente que existe, também, uma historicidade das doenças.Dependendo da evolução das condições específicas existentes numadada formação social concreta, umas doenças surgirão e outrasdesaparecerão. A tuberculose, por exemplo, foi uma doençalargamente disseminada enquanto perduraram as condições deexistência precárias determinadas, entre outras razões, pelaRevolução Industrial. Neste século, entretanto, diminuiu de muitosua morbi-mortalidade sempre que essas condições melhoraram,antes mesmo de terem sido descobertos tuberculostáticos eficazes.Da mesma forma, à medida que uma sociedade passa depredominantemente rural a urbano-industrial serão diferentes asenfermidades que afetarão seus membros. Poderão diminuir aszoonoses e verminoses mas aumentar os acidentes (de trabalho, detrânsito), as violências ou as doenças cardio-vasculares. Em termosmais gerais, pensemos na passagem do mundo subdesenvolvido: adoença sobe dos intestinos para os pulmões. O que é poluído agoraé o ar e não o chão(1).

IV – DETERMINANTES EXTRAMÉDICOS DAASSISTÊNCIA MÉDICA

Tradicionalmente concebe-se a assistência médica como oconjunto de práticas sociais da Medicina visando, especificamente, apromoção da saúde e a prevenção e cura da doença ao nível individual.Não entrariam na definição aquelas atividades promotoras de saúdenão exercidas por profissionais da saúde, como também as medidascoletivas. Há um certo consenso, por exemplo, de que o saneamentoé antes engenharia sanitária do que medicina. Nem mesmo as medidaslevadas a cabo pela medicina preventiva são sempre encaradas comoassistência médica. Estão também excluídas a indústria farmacêutica,de aparelhos hospitalares etc. Cecília Donnangelo resume o que foidito afirmando que a assistência médica seria o “conjunto de ações

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de diagnóstico e terapêutica dirigidas ao consumidor individual”(3).Há outras concepções de assistência médica mas, para nossospropósitos vamos nos cingir a esta para distingui-la de Saúde Pública,no sentido de medidas orientadas coletivamente visando o atingimentodos fins mencionados acima.

Ainda que a assistência médica diga respeito exclusivamente àatividade exercida por médicos, de modo algum, como já foi dito, elase faz tendo em conta apenas critérios médicos. É que as práticassociais referidas constituem uma instituição social cujo funcionamentoe dinâmica obedecem a determinações extramédicas. Dificilmenteserão os médicos que, nas condições concretas de sua atuação,decidirão quem e como alguém será atendido e considerandocritérios tão-somente médicos. O mais das vezes, como umas vidastêm mais valor do que outras em termos societários, políticos eeconômicos, serão nesses termos que as decisões serão tomadas.Ou seja, os pacientes serão assistidos em razão de sua capacidadede pagamento, ou porque podem exigir a assistência médica dadoo poder de que dispõem ou, ainda, porque são consideradoseconomicamente mais produtivos do que outros. Sobretudo nassociedades capitalistas, em que há um quase completo domínio dosinteresses econômicos, os valores alheios à medicina tenderão, emmuito, a orientar as decisões.

Sendo assim, há necessidade de analisar mais profundamenteos aspectos sociais, políticos e econômicos responsáveis pelodesvirtuamento dessa assistência (em relação ao ideal expresso) demodo a não produzir os resultados que, medicamente, dela seriamesperáveis na redução, por exemplo, da morbi-mortalidade doconjunto da população. Nessa análise, uma das primeiras questõesque chamam a atenção é a tendência de considerar a saúde e adoença como sendo de responsabilidade individual. Esta é, em grandeparte, uma conseqüência de modo predominante de pensar nassociedades capitalistas. Contudo, ela já era também a visão dominantena medicina. Mesmo antes do capitalismo a atenção médica eraconsiderada uma questão individual(5). Além do mais, agravando o

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problema, ao não se voltar para a determinação social da saúde e dadoença, a assistência médica acaba atuando, muito freqüentemente,mais sobre os efeitos do que sobre as causas.

A determinação social da assistência médica é claramentepercebida inclusive quando se estuda sua história. Como nuncaexistiram sociedades históricas sem imensas desigualdades sociais,o que se vai observar é que o tratamento e prevenção da doençasempre variaram de um segmento social para outro. No capitalismo,especificamente, pode-se mesmo dizer que a proteção da vida e dasaúde depende de um cálculo econômico. Isto é visível, por exemplo,na própria distribuição geográfica dos médicos. Eles, como diz Illich,têm tendência compreensível de se instalarem “onde o clima é sadio,a água pura e as pessoas podem pagar seus serviços”(6). Mas não ésó por regiões, evidentemente, que a distribuição é desigual. Omesmo se pode dizer em relação às várias classes sociais. Àdistribuição desigual dos médicos pode-se acrescentar uma série deoutros serviços de saúde, como hospitais, centros de saúde,laboratórios, pessoal para-médico etc. Há uma hierarquia de tratamentoporque os corpos são vistos socialmente. Ou seja, eles se hierarquizamde acordo com sua produtividade, com o capital neles investido (porexemplo, num médico investiu-se mais do que num professor primário),com seu status, com seu poder. Muitas vezes, mesmo quando o Estadose volta (em termos de assistência médica) para a população marginale o sub-proletariado é porque está preocupado em diminuir as tensõessociais, por exemplo.

Evidentemente, numa sociedade capitalista, é inevitável quese façam tais cálculos econômicos e políticos e se considere acapacidade de pagamento dos que se encontram enfermos. Afinalos recursos são sempre escassos (em face do modo como sãoestruturados os serviços). Daí ser necessário que se tenha uma base“racional” para decidir. Ao estabelecê-la considerando coisas comoa produtividade ou a capacidade (expressa na possibilidade de pagar),o sistema social vigente pode tornar a diferenciação da assistênciamédica relativamente aceitável para o conjunto da população, porque

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se funda em distinções tidas como socialmente normais em nossasociedade. É claro que seria incorrer num mecanicismo poucodefensável explicar toda e qualquer transformação no âmbito daassistência médica como estando inteiramente vinculada aos interessesdo capital. Em qualquer sistema sócio-econômico global as instituiçõessociais nele existentes tendem a funcionar de modo a reproduzi-lo.Assim sendo, a medicina, enquanto prática social, acaba tendo essepapel no capitalismo como teria em outro modo de produção.

Na verdade, é muito interessante observar que a orientaçãocoletiva da medicina, enquanto assistência médica, é muito maisexpressiva com o avanço do capitalismo do que em modos deprodução anteriores. Os serviços de assistência crescemquantitativamente e segmentos sociais, até então desassistidos, sãoincorporados ao cuidado médico. Uma outra explicação para essaincorporação, além das já mencionadas (preocupação com aprodutividade e controle das tensões sociais) estaria no fato de quetanto a indústria farmacêutica como a de equipamentos cresceuenormemente nestas últimas décadas. Como o lucro dessasatividades só se efetiva através dos atos médicos, que levam aoconsumo das mercadorias produzidas por essa indústria, elapressiona sempre no sentido de que os cuidados médicos seestendam a uma porção maior da população. É evidente que a própriapopulação, por sua vez, luta para que o Estado proporcione sempreassistência médica mais adequada, o que leva à expansão da mesma,ainda que com diferenciação muito grande de qualidade, conforme seassinalou.

A discussão sobre relações da assistência com a estruturasocial pode ser encarada ainda sob outros aspectos, mas vamosnos limitar a estes. Poderíamos, por exemplo, discutir o enormedesenvolvimento do aparato técnico dessa assistência; a crescentepolitização do ato médico; os movimentos de contestação a essegigantismo tecnológico; a contradição gerada pelos custos crescentesdessa assistência, o que inevitavelmente vai lhe estabelecer um limite;as tentativas de racionalização dos serviços médicos; o surgimento

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de medicinas alternativas etc. Os limites de espaço nos obrigam,entretanto, a restringirmos nossa exposição aos pontos abordados.

V – CONCLUSÕES

O desenvolvimento de uma disciplina como a Medicina Socialcontribuiu, ao lado de outras causas evidentemente, para esclarecera dupla natureza (biológica e social) do objeto da Medicina. Oprocesso saúde-doença tendeu, cada vez mais, a ser percebidocomo sendo determinado (em boa parte pelo menos) pelofuncionamento e dinâmica do sistema social inclusivo onde eleocorre. Passaram a ser devidamente consideradas as diferençassociais na produção dos ditos fenômenos. Percebeu-se que saúdee doença só são explicáveis quando a sociedade deixa de ser vistacomo um todo homogêneo, estável e ahistórico e passa a ser, aocontrário, visualizada como dividida em classes, estratos e grupossociais, freqüentemente opostos e mesmo antagônicos. Sob esseprisma, foram inovadas as concepções metodológicas quenorteavam o entendimento da enfermidade. Ultrapassando relaçõescausais imediatas, geralmente vinculadas apenas às característicasdo organismo biologicamente considerado, a rotação deperspectivas proporcionada permitiu chegar à noção de totalidadesocial. Ou seja, entender que nem mesmo são as características sociaisdas pessoas que explicam boa parte das doenças, mas o conjunto deforças sociais mais profundas, as quais só podem ser adequadamentecompreendidas quando nos voltamos para o bosque, deixando de noscingir tanto às árvores que o compõem. Em termos de explicação esolução do problema doença, a novel disciplina tem mostrado queencarar o homem isoladamente, ou a população indistintamente,implica, sem dúvida, em construir uma abstração inadmissível.

A explicação sociológica dos fenômenos médico-sociais,contudo, refere-se, principalmente, aos processos sociais vinculadosàs práticas sociais da medicina (especialmente assistência médica).É que, nesse caso, os fenômenos são inequivocamente sociais, com

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a especificidade de estarem vinculados à área médica. A visão maisabrangente e totalizadora de como se estrutura, funciona e setransforma o sistema social, permite à Medicina Social determinarcom mais precisão os aspectos extramédicos presentes na assistênciamédica. Tratando-se de uma sociedade dividida em segmentos sociaisque mantêm entre si relações de dominação-subordinação ao nívelsócio-econômico e político, entende-se que, nela, a proteção da vidae da saúde dependa de um cálculo econômico. É que, na verdade, talassistência não é prestada, exatamente, a corpos biológicos mas acorpos sociais. O que está em jogo é a produtividade dos mesmos,seu poder, sua riqueza, seu prestígio. Quem os possui recebe tratamento(ou melhor tratamento). Não se pode, evidentemente, desconsiderara capacidade política das classes dominadas de lutar por uma melhoratenção médica, mas a expansão da mesma, ocorrida no capitalismo,vincula-se, em grande parte, ao processo de reprodução ampliada docapital. Ou seja, valores alheios à ordem médica, em geral, orientamas decisões nesse campo.

Enfim, uma diferente concepção geral do mundo e o domínio deoutro instrumental metodológico, permitiram desenvolver um marcoteórico de mais longo alcance seja no tocante à explicação doprocesso saúde-doença, seja na compreensão dos determinantes daspráticas sociais da medicina.Tornou-se evidente que, para isso, eranecessário considerar a sociedade específica em que esses fenômenosocorrem, com seu sistema de estratificação social, de produçãoeconômica e de distribuição de bens e serviços. Sobretudo no caso daassistência médica, a perspectiva aberta pela Medicina Social apontouo fato de as soluções aventadas, ao nível individual e coletivo, basearam-se, freqüentemente, numa percepção incorreta das relações sócio-culturais e dos interesses político-econômicos envolvidos. Se a visãopredominante contribui, muitas vezes, para tecnificar variados problemasque são principalmente sociais, transformando-os em problemasmédicos, esta outra (ainda heterodoxa) tende a colocá-los no campoespecífico de sua resolução: o político.

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RESUMO

O artigo apresenta o ponto de vista da Medicina Social quantoao estudo tanto do processo saúde-doença como da assistência médica.Nele, de início, se aponta o fato de essa disciplina ter-se aproveitado,recentemente das contribuições feitas pela Epidemiologia Social (notocante à interpretação social do processo saúde-doença) e pelaSociologia da Saúde (quanto à determinação extramédica daassistência médica). É exposto, em linhas gerais, o modo como essadisciplina explica os dois processos. Esclarece-se como ela concebea Medicina como uma ciência histórico-social também, encarando oshomens, sadios ou doentes, não apenas como corpos biológicos mas,sobretudo, como corpos sociais, inseridos em sociedades dadas,membros de determinadas classes e grupos sociais, participantes derelações sociais específicas. Indica-se como a rotação de perspectivadecorrente, ao alterar o paradigma do investigador, permite a este vercoisas novas em relação aos mesmos fatos.

Em seguida estuda-se mais de perto a enfermidade comofenômeno social. Mostra-se como vê-la apenas como fenômenonatural tem enorme signficado político, pois transforma os problemassociais envolvidos na produção da doença em problemas técnicos enão políticos. A Medicina Social, ao não fragmentar seu objeto, insereo fenômeno num todo social coerente, ao contrário da Medicinatradicional. Sua proposta de investigação ultrapassa o exagerado nívelde concreticidade com que esta vê o processo saúde-doença,permitindo-lhe considerar outros aspectos essenciais do mesmo. Éque a nova disciplina entende que o estudo do homem, sadio ou doente,isolado de seu contexto social, constitui mera abstração, já que eleparticipa de sociedades históricas, divididas, conflituosas, competitivas,em que os diferentes segmentos sociais têm desigual poder, riqueza eprestígio. Conseqüentemente, não se pode tomar a presença do homemnuma determinada cadeia epidemiológica como inevitável. Ou seja, aMedicina Social volta-se para as diferenças sociais, considerando-asfundamentais.

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Na parte final discutem-se os determinantes extramédicos daassistência médica. Este seria o outro conjunto de fenômenos pelaqual se interessaria a disciplina examinada. Depois de se definir oque se entende por assistência médica, mostra-se como as práticassociais da mesma configuram uma instituição social. Tomando-acomo tal, verifica-se que a assistência médica raramente guia-sepor critérios tão-somente médicos: em termos societários, políticose econômicos, umas vidas têm sempre mais valor do que outras. Asmesmas diferenças de tratamento são também claramentepercebidas quando se estuda a história da assistência médica. Éque como os corpos são principalmente sociais, eles se hierarquizamde acordo com sua produtividade, com o capital neles investido,segundo seu status e poder. Mesmo quando a assistência médicase volta para as populações marginais, o mais das vezes o que sepretende com ela é diminuir as tensões sociais.

O autor entende, contudo, que explicar toda e qualquertransformação no âmbito da assistência médica como se vinculandointeiramente aos interesses do capital seria incorrer num mecanismoinadmissível. Crê que para explicar cabalmente o processo emdiscussão seria preciso ter em conta toda a complexidade da realidadesocial, na qual os aspectos políticos e sociais, por exemplo,desempenham também um importante papel. Ainda que sendo asdeterminações econômicas as mais evidentes, sem dúvida, haveriaainda que discutir outros pontos, como a influência da ciência e datécnica no aparato técnico dessa assistência, a crescente politizaçãodo ato médico, os movimentos de contestação ao tipo de assistênciamédica hoje em voga, as tentativas de racionalização dos serviçosmédicos, o surgimento de medicinas alternativas etc.

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2. MEDICINA PREVENTIVA,SAÚDE PÚBLICA E

PROBLEMAS SOCIAIS

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2.1. O PROJETO PREVENTIVISTA E A NOÇÃO DE SUB-DESENVOLVIMENTO*

Quando, logo após a Segunda Guerra Mundialprincipalmente, começou-se a discutir mais intensamente as razõesdo subdesenvolvimento, surgiu uma extensa e variada literatura arespeito, produzida sobretudo nos Estados Unidos, que relacionavao subdesenvolvimento à inexistência, nos países do Terceiro Mundo,de uma mentalidade e um conjunto de valores que propiciassem ocrescimento econômico. Esta literatura se referia, entre outras coisas,à falta de mentalidade empresarial, à inexistência de valores positivosligados ao trabalho duro e continuado (considerando-se os povosafricanos, asiáticos e, de certa forma, também latinos, comodemasiadamente adeptos do ócio), à ausência de preocupação como amanhã, o que faria com que a poupança e o investimento fossemrelativamente baixos e assim por diante. Conseqüentemente, asuperação da situação de subdesenvolvimento foi vista comodependendo, em grande parte, de um intenso esforço demodernização cultural. Ou seja, ela se faria através de um processode mudança cultural ao cabo do qual os povos desses países passassema ter mentalidade, valores, instituições etc. mais próximos aosimperantes na Europa Ocidental (não latina especialmente), Japão eEstados Unidos.

Em face dessa interpretação do processo dedesenvolvimento/subdesenvolvimento, caberia aos países tidos comodesenvolvidos o papel de mentores da transformação apregoada.

* Publicado originalmente em Ciência e Cultura, 35(8) agosto de 1983, pp. 1075-7.Um trecho foi alterado porque divergia acentuadamente do modo de pensar atual doautor.

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Contribuiriam para a modernização proposta oferecendo cursos deformação e treinamento de modo a formar quadros superiores paraos países mais ou menos à margem da civilização ocidental (entenda-se, ainda não suficientemente vinculados ao modo de produçãocapitalista); fornecendo assessores às instituições governamentaisdesses países; produzindo programas radiofônicos, televisivos ecinematográficos em que o estilo de vida mais adequado à situaçãode desenvolvimento e crescimento econômico fosse propagado;enviando missionários que convertessem esses povos a um catolicismomenos tradicionalista ou, o que seria melhor, à forma de cristianismoconsiderada como mais burguesa (as várias seitas protestantes);exportando capitais e managers que difundissem as modernas técnicasde organização empresarial etc. Enfim, seria “dever” dos paísesdesenvolvidos compartilhar sua civilização com os subdesenvolvidos.

Paulatinamente, contudo, especialmente depois dos anos 60,foi ficando claro para os estudiosos do problema dosubdesenvolvimento menos comprometidos com o status quo, quea condição de subdesenvolvimento tem raízes que vão além de umsuposto atraso cultural. É preciso sempre se perguntar: atraso emrelação a que? De fato, cada cultura tem valores próprios, de modogeral adequados à consecução dos fins maiores a que se propõe.Sem dúvida, há excessiva justificação ideológica nas teorias queconsideram o subdesenvolvimento como decorrente,fundamentalmente, da espoliação sofrida pelos atuaissubdesenvolvidos em face dos desenvolvidos. Mas há que se tomartal possibilidade em consideração, sobretudo no caso de algunsdesenvolvidos, como a Grã-Bretanha em face da Índia por exemplo.Ou seja, se os fatores culturais não podem ser desprezados,igualmente não podem ser os econômicos, especialmente no casode algumas relações históricas que se estabeleceram entre algunspaíses no decorrer do processo de desenvolvimento capitalistamundial. Vai uma distância muito grande entre considerar um fatorcomo sendo causal a considerá-lo como determinante. Os processossociais, na quase totalidade, possuem fatores multicausais.

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Na verdade, tanto a chamada “teoria da modernização” comoa do desenvolvimento do subdesenvolvimento capitalista, a par deserem ideologicamente viesadas, possuem seus méritos específicos,sobretudo se, no caso da segunda, pensarmos mais em termos dedependência do que propriamente em termos de espoliação. Ambas,possivelmente, exageram na tendência de tomar a aparência das coisaspela sua essência. Em suma, o aprofundamento da discussão a respeitodas razões do subdesenvolvimento mostrou que a referência ao “atrasocultural” é uma explicação muito parcial da questão. Concluiu-se queenquanto não fosse suplantada a dependência econômica, dificilmenteo seria a cultural, inclusive científica e tecnológica. O enfrentamentodaquela (a econômica) torna-se difícil, por sua vez, pelo fato de que adependência representada pelo subdesenvolvimento cria tambémmentalidades dependentes, internalizando-se a dominação.

De modo assemelhado as coisas se passaram ao nível damedicina preventiva. O projeto preventivista proposto para odesenvolvimento na América Latina (a partir dos Estados Unidos)foi um projeto em grande parte colonizador, como os demais projetossociais elaborados segundo a visão que se tinha do subdesenvolvimentoatrás exposta (a do atraso cultural) Segundo ela entendia-se que ospovos subdesenvolvidos eram doentios porque, sobretudo,muitosaspectos de sua cultura eram inadequados em termos de produçãoda saúde: hábitos de higiene e alimentares, noções a respeito da saúde,métodos de prevenção e cura, habitações; enfim, um modo de vidaerrôneo, incorreto, que acabava facilitando a disseminação da doençae abreviando a morte. Os países desenvolvidos tinham, nesse campo,outra tarefa de cunho missionário, colonizadora e civilizadora, queera a de levar a esses povos atrasados os benefícios da ciência e datécnica, da educação e da medicina modernas, ensinando-os a teruma vida mais sadia.

Influenciando as escolas médicas, esta visão do problemalevou ao desenvolvimento de uma medicina preventiva bastantenormativa, ainda que não necessariamente sob esta denominação.Assim é que praticamente até o início da década de 60 não havia

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departamentos que ensinassem aquela disciplina, mas sim higiene esaúde pública. Sem dúvida, para estas, de modo geral, sempre foramatraídos muitos médicos com uma preocupação mais social do queindividual dos problemas da saúde, interessados antes em conservá-la do que em tratar da doença. Contudo, dada aquela interpretaçãodas razões da doença, a higiene e saúde pública tornaram-sefreqüentemente policialescas. Não é à-toa, por exemplo, que osserviços de saúde pública passaram a fazer inúmeras recomendaçõesou mesmo determinações quanto ao uso de alimentos, ao modocomo as casas deveriam ser construídas (em termos, por exemplo,de metragem dos cômodos, instalações sanitárias, etc) e assim pordiante. Um entendimento do problema de saúde a esse nível levou,conseqüentemente, a uma continuada tentativa de normatizar a vidada população à semelhança dos demais órgãos governamentais.Os preventivistas viram-se a si mesmos como donos do saber e aosoutros como ignorantes a serem ensinados, sua atuação poucodiferindo, quanto a este aspecto, da maneira de agir dos demaismédicos. Conseqüentemente, tenderam, freqüentemente, a afastara população do processo de tomada de decisões no tocante a umaesfera fundamental da existência, qual seja a relativa à saúde e àdoença.

Posteriormente, houve uma evolução da compreensão doproblema, no sentido de se perceber que muitas daquelasrecomendações, que entram em choque com o modo de ver daspopulações, são inaplicáveis, na prática. Mais ainda, concluiu-seque nem tudo aquilo que o povo crê e pratica é necessariamentemaléfico à saúde e que, além do mais, dada a responsabilidadegovernamental em prover a população de bens e serviçosconsiderados como geradores de saúde, seria conveniente educara população para pleitear tais bens e serviços (por exemplo,saneamento básico). Esta foi uma característica do período damedicina comunitária.

Só muito mais recentemente, quando se reinterpretou osubdesenvolvimento sócio-econômico é que houve, entretanto, uma

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radical alteração no modo de se entender a doença a nível coletivo.Em razão dela, o projeto preventivista chegou, finalmente, a encampara proposta da medicina social, que interpreta o processo de saúde/doença nos países do Terceiro Mundo, como sendo, fundamentalmente,conseqüência do subdesenvolvimento, nos termos em que se discutiuno final da primeira parte deste artigo. Isto é, enquanto não houveruma alteração significativa das estruturas sociais, políticas eeconômicas responsáveis pela situação de miséria material e não-material em que vivem os povos subdesenvolvidos, muito pouco sepoderá fazer para melhorar sua condição de saúde.

Modificado assim o projeto preventivista, em razão daalteração da compreensão do processo de subdesenvolvimento,aqueles profissionais agora voltados para a medicina preventiva esocial tendem a alterar sua postura no trato com a população. Naprática concreta se dirigirão a ela, cada vez menos, supomos, comose fossem donos de um saber e de uma cultura superior que seatribuíram a missão de ensinar e orientar os ignorantes. Isto porqueterão em conta que os homens doentios e sem educação formalelevada são, eles próprios, vítimas de uma situação pela qual não sãonem individual nem coletivamente responsáveis.

Desta forma, ainda que compreendam a necessidade deenfrentar, com os recursos normais e próprios da medicina, a doençaque as relações sócio-econômicas vigentes tendem a produzir emdeterminados conjuntos de indivíduos, considerarão outros aspectosda relação entre estrutura social e processo saúde-doença. Também,tampouco, dentro da nova visão, se negará a possibilidade de selevar a população a sentir, pensar e agir de modo diferente frente aesse processo (embora respeitando mais sua própria visão sobre oassunto), como queria a medicina comunitária. O que vai distinguirtais profissionais será sua visão mais politizada da questão. Istosignifica que pensarão o problema e atuarão não só como técnicosda área, mas perceberão que, sem um projeto político que sejaencampado por segmentos sociais significativos, não ocorrerãoaquelas mudanças sócio-econômicos capazes de aliviar a situação

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de pobreza material e não-material responsável pela doença coletivaevitável. Em nada altera o entendimento de que a solução do problemadesta é político o fato de que variará o projeto ao qual cada pessoa,individualmente, se ligará.

RESUMO

É discutida uma possível vinculação entre a mudança noentendimento das causas do subdesenvolvimento e as transformaçõespelas quais tem passado o projeto que orienta a medicina preventiva.A interpretação do subdesenvolvimento evoluiu de uma visãoculturalista (teoria da modernização) para uma visão econômica(teoria da dependência). No caso da medicina preventiva, ainterpretação evoluiu desde uma visão de que a doença seria devidaa fatores ligados a hábitos culturais, para a medicina social, em que adoença coletiva é relacionada à estrutura social e global.

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2.2 PROBLEMA SOCIAL E PROBLEMA DE SAÚDE PÚ-BLICA*

1. INTRODUÇÃO

Há grandes semelhanças na discussão do que seja problemasocial e problema de saúde pública. Em primeiro lugar, elas surgemjá na dificuldade de definição de ambos; depois, no estabelecimentodo que seja normal e patológico e nas interferências de naturezaideológica tanto na definição como nas soluções. O planejamentodestas, em ambos os casos, vai depender, por sua vez, do modocomo se encare o sistema social, político e econômico e,freqüentemente, da capacidade dos profissionais do setor deinteressar um grupo social suficientemente poderoso para que seempenhe nelas, incluindo-as no seu projeto de transformação social.Não menos importantes são as semelhanças decorrentes do fato demuitos problemas de saúde pública serem, ao mesmo tempo,problemas sociais, e vice-versa, embora haja uma tendência indevida,na medicina, de incluir como problemas médicos questões que, naverdade, são fundamentalmente sociais. Essas similitudes é quepretendemos abordar no presente artigo.

2. QUEM DEFINE? O NORMAL E O PATOLÓGICODO TÉCNICO E O DA POPULAÇÃO.

Temos verificado que médicos, em geral, e sanitaristas epreventivistas, em particular, praticamente não se preocupam com a

* Artigo publicado originalmente em Temas IMESC 4(1): 5-20, 1987.

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questão de a quem cabe a definição do problema de saúde pública, aocontrário do que ocorre, pelo menos com alguns sociólogos, em relaçãoaos problemas sociais. Nisto, certamente, interferem os viesesprofissionais de ambos. Os médicos, por exemplo, tendem a considerarque questões de saúde e doença são de sua inteira responsabilidade,enquanto os sociólogos são menos exclusivistas no que tange àdiscussão de temas sociais. De qualquer modo, as dificuldades sãoassemelhadas. Na discussão dos sociológos há, de princípio, umadivergência significativa: quem é que vai considerar como socialmenteindesejáveis atitudes, comportamentos, processos, relações,instituições sociais? Indesejável para quem? Para toda a sociedadeou para um seu segmento? Por trás da definição dificilmente vamosdeixar de encontrar atitudes valorativas quanto ao que seja normal,sabidamente uma noção muito relativa. Dado que em toda sociedadecomplexa encontram-se grupos sociais heterogêneos, classes cominteresses divergentes, contraditórios e mesmo antagônicos, o queum grupo pode perceber como patológico, outro pode ver comoperfeitamente normal. O mesmo, pelos menos em parte, aplica-se àdefinição de problema de saúde pública.

Esta é uma das dificuldades quando se reserva a definição deproblema social à população. Não sendo homogênea e predominandonela os interesses e a ideologia dos grupos dominantes, aquilopercebido como socialmente indesejável pode ser uma inovação capazde contribuir para a melhoria das condições de vida da maioria dacoletividade. A visão conseqüentemente, é, em geral, conservadora,havendo a tendência de conceber o status quo como normal. Dequalquer modo, quando se percebe algo como gravemente indesejáveldo ponto de vista social, lança-se mão dos conhecimentos técnicos ecientíficos para corrigir as assim tidas como disfunções do sistemavigente. É verdade que essa mesma ordem pode ser considerada, elaprópria, como indesejável por grupos minoritários. Esta, no entanto, éuma dificuldade insanável. O que é concebido como problema socialvaria de uma classe ou fração de classe para outra, ou conforme areligião, a subcultura do grupo, etc. Por exemplo, um grupo de

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criminosos pode ter valores discrepantes em relação ao restante dasociedade, mas perfeitamente aceitos no interior do grupo e, portanto,sociologicamente normais se esse grupo restrito for tomado comoparadigma. Tomar o geral, o comportamento médio ou mediano comonormal não oferece, na verdade, maiores problemas cientifícos quandose trata de um sistema social relativamente estável. A dificuldadesurge nos momentos de transição, quando comportamentos comunsnão respondem às exigências do sistema social emergente. Nestemomento é possível ao sociólogo, como veremos, considerar comopatológico aquilo que ainda tem a aparência de normal.

Outra possibilidade de definição de problema social é atribuí-laao discernimento do cientista social, principalmente do sociólogo.Também, neste caso, é difícil não haver interferências ideológicas.Por exemplo, o sociólogo, segundo sua concepção, pode entendercomo inexorável a tendência de transformação de um dado sistemasocial, que se encontra em transição, no sentido de ele se constituirem plenamente capitalista. Então, muito daquilo que estivesseobstaculizando a emergência do novo tipo social poderia ser tidocomo problema social. Suponhamos, para continuar o exemplo,uma população vivendo em economia de subsistência. Ainda queela não estivesse sentindo sua situação como socialmente indesejável,esse tipo de economia pode representar um problema em termos domodelo representado pelo sistema capitalista de produção. Pode-seestabelecer um conflito entre a noção de normal do cientista social ea da população envolvida. Mais grave ainda é quando se realiza umaintervenção planejada para alterar uma situação social vista pelo grupotécnico-científico como problemática e que tem, como conseqüêncianão planejada, a criação de outra, esta sim considerada pela populaçãocomo socialmente indesejável. Continuando ainda o exemplo,suponhamos que a população vivendo em economia de subsistênciativesse sido inserida na economia de mercado e que, não tendo sidodevidamente preparada para isso, passasse a sentir dificuldades deintegração à nova situação. Nesse caso teríamos alterado umacondição existencial vista como problemática pelo sociólogo e criado

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um problema social inexistente antes, do ponto de vista da população.É claro que, em qualquer intervenção planejada nos processos sociais,há de se ter em conta as possíveis conseqüências negativas da mesmapara a população alvo.

É certo que os sanitaristas dificilmente concedem à populaçãoa responsabilidade pela definição do problema de saúde pública,mas dificuldades assemelhadas, decorrentes de conflitos com apopulação, criam-se também para eles. Como alguns sociológos,eles podem achar a definição de problema pela população comocientíficamente inaceitável, dada a quantidade de preconcceitos sobrea saúde e a doença existentes no seu meio. Mas ao reservarem a si aincumbência, podem entrar em conflito com ela, ou, mais precisamente,com certas parcelas da mesma interessadas na manutenção de umdado estado de coisas. Teremos oportunidade de discutir adiante aprópria definição de problema de saúde pública, mas suponhamosque certos hábitos e comportamentos sejam considerados, pelossanitaristas, como tendo conseqüências negativas para a saúde dapopulação que os pratica. Ora, dificilmente se consegue fazer acorreção planejada de condições sócio-culturais e econômicas semmaiores resistências, mesmo quando a alteração pretendida for nonível individual (a referida mudança de hábitos); mais ainda quando onível no qual se pretende interferir é o institucional ou o estrutural(modificação da arquitetura ou da distribuição de renda). Seja, paraexemplificar, uma intervenção numa área relativamente simples comoa da moradia. Imaginemos que se tenha chegado à conclusão de quea melhor forma de combater a doença de Chagas, numa dada região,seja a construção de casas de alvenaria de certo padrão. A resistênciaà alteração poderá ser grande por parte dos proprietários rurais queestejam destinando aos seus trabalhadores habitações sanitariamenteimpróprias.

3. OS CONFLITOS DE OBJETIVOS

Poderia parecer que os conflitos entre o pessoal técnico-

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científico e a população, ou certas parcelas dela, no caso do problemade saúde pública, seriam menores porque o ideal de saúde é muitomais facilmente aceito por todos os segmentos sociais do que objetivosde natureza social. Isto só em parte é correto. É verdade que hápadrões quantitativos e qualitativos mais precisos em se tratando doque seja saúde e doença, sobretudo em termos individuais, do que osque indicam o normal e o patológico sociais, ainda que a definição desaúde comumente usada, difundida pela Organização Mundial daSaúde, deixe muito a desejar (“estado de completo bem-estar físico,mental e social e não, apenas, ausência de enfermidade”). Aqui nosdeparamos com duas dificuldades principais: 1) a de que o problemade saúde pública pode, ao mesmo tempo, ser um problema social e,mais do que isso, fundamentalmente, um problema social; 2) adecorrente do fato de não haver coerência entre os objetivos depessoas, grupos ou coletividades. Eles podem, inclusive, sercontraditórios. Discutiremos aqui esta segunda questão, deixando aprimeira para mais adiante.

Médicos e sanitaristas, quando se trata de problemas de saúdeindividual ou coletiva, geralmente raciocinam como se pessoas egrupos sociais tivessem como principal motivação, em suas vidas, aconquista ou manutenção da saúde. Isto só é verdadeiro em algunsmomentos de sua existência. A razão é simples: os homens, sejaindividual, seja coletivamente, comportam-se socialmente tendo emconta objetivos diversos, contraditórios ou até mesmo antagônicos,situados em diferentes esferas do social, como já dissemos. Aintervenção planejada de cientistas, técnicos sociais, médicos ousanitaristas, numa determinada realidade médico-social, vai portanto,encontrar, sob esse ponto de vista, escolhos outra vez assemelhados.Por exemplo, um objetivo econômico, como o de ganhar mais, podeconflitar com o de gozar mais saúde, porque o atingimento do primeiropode implicar um modo de vida estressante, fatigante, depauperanteetc. O sentir-se bem física, mental e socialmente pode exigir, porexemplo, em certos casos, até que se beba e que se fume. A variedadee diversidade de objetivos perseguidos na vida em sociedade por

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indivíduos, grupos e classes torna inimaginável um homem tendo comoúnico objetivo na vida (seja o de ter saúde, seja o de apenas ganhardinheiro). Imaginá-lo assim seria concebê-lo como um ser alienado e,portanto, sem saúde. Estaríamos diante de uma contradição.

Os vários fins que os homens perseguem estão ligados, por suavez, a valores socialmente aceitos, pelo menos num determinadoambiente social, já que o que um grupo social pode ter como valorpositivo, outro pode ter como valor negativo. Repetindo o exemplo,num grupo heterodoxo os valores aceitos como desejáveis serão,com grande probabilidade, contestados pelos grupos majoritáriosda sociedade na qual todos se incluem. Mas, dentro de um mesmogrupo social, os valores socialmente aceitos como meritórios sãofreqüentemente contraditórios. Valoriza-se, por exemplo, o homemeconomicamente bem-sucedido e o homem honesto, mas as duascoisas nem sempre andam juntas. Em nosso tipo de sociedade,aceitar o primeiro valor pode implicar desobedecer ao segundo.Por isso é que, em grande parte, as pessoas se neurotizam. Elasintrojetaram, em seu processo de socialização, valores discreprantes.Para se conseguir atingir um fim socialmente valorizado numa esfera,podemos ser obrigados a deixar de lado outro fim, igualmente valorizadoem outra esfera. Em alguns ambientes sociais pode ser de bom tomfumar e tomar bebidas alcoólicas. Isto daria prestígio, que é um objetivoimportante na vida das pessoas, ainda que pudesse prejudicar a saúde(ou talvez por isso mesmo), violando o valor de se ter boa saúde.

Os fins fundamentais, que normalmente guiam os homens denossa sociedade, são obter riqueza, prestígio e poder. Eles sãoprioritários, superando de muito, no dia-a-dia, o objetivo de mantera saúde, ainda que a despreocupação com ela vá prejudicar aconsecução daqueles outros objetivos, em deteminadas situações emomentos. Como estamos vendo, os fins e os valores a eles ligadosnão são necessariamente racionais quando os vemos por um únicoprisma. Na verdade, o termo racional só se aplica aos meios, nuncaaos fins. Fixados estes, são racionais os meios que, dentro dascondições dadas, levem á sua realização. Não há discussão quanto à

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racionalidade de fins, porque a esfera dos valores vincula-se aosaspectos emocionais da vida humana. Nesta área, um valor é igual aoutro. Não se pode nunca imaginar, portanto, que um comportamento,por produzir enfermidade num prazo mais ou menos longo, seja sempreabandonado quando se mostra sua relação com aquela. Os homens,de modo geral, vivem o aqui e o agora, raramente o amanhã, sobretudoo amanhã distante. Dificilmente sacrificam o presente para obter umapossível satisfação no futuro. Assim sendo, não será pelo fato de quea saúde e a doença, orgânicas ou psíquicas, são mais facilmentediscerníveis do que o normal e o patológico sociais que os sanitaristase epidemiologistas não se conflitarão, freqüentemente, com os gruposde risco cujos comportamentos queiram alterar.

4. O PROBLEMA DA SAÚDE PÚBLICA

Fizemos até aqui referências a algumas semelhanças entre oproblema social e o de saúde pública quanto a dificuldades de váriasordens no relacionamento entre o cientista ou o técnico, de um lado, ea população, ou parte dela, de outro. Não tivemos ainda, no entanto,oportunidade de definir o que seja problema de saúde pública. Diga-se de passagem que, freqüentemente, mesmo em manuais de SaúdePública, a questão é deixada de lado, como se fosse assunto mais oumenos óbvio. Como não é, surgem mal-entendidos. Tabagismo,cardiopatias congênitas, hipertensão arterial, doença de Chagas,acidentes de trânsito etc. são ou não problemas de saúde pública?Por quê? Os autores, comumente, não nos dizem. Ficamos, às vezes,com a impressão de que considerar um problema de saúde que estejaafetando um segmento da população como problema de saúde públicadepende tão-somente da decisão do trabalhador qualificado do setorsaúde que lida com ele. Ou seja, sanitaristas, epidemiólogos, médicosvoltados para o social estão tão acostumados a se atribuir a tarefa (eos outros a aceitar que assim seja), que acabam não se colocando,nem para si mesmos, a questão de quais critérios estão utilizando.

Na verdade, hoje, em alguns meios, dependendo da formação

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científica e da postura ideológica do grupo de profissionais do setor,antes de se voltarem para critérios, seus membros estão discutindose o problema é técnico ou é político-social. De fato, dado o crescenteprocesso de medicalização vigente na sociedade ocidental, muitosproblemas sociais acabaram transvestidos em problemas de saúde,pública ou não. Seria o caso, por exemplo, da desnutrição ousubnutrição em certos grupos sociais de países subdesenvolvidos. Anão discussão do que seja o problema em exame leva, como nãopoderia deixar de ser, à supressão do debate a respeito de causas esoluções. Diminui o número de contribuições para o entendimento doproblema, ainda que, por vezes, para alguns dos engajadosideologicamente de modo consciente no assunto, este seja um dosobjetivos secundários (ou mesmo primários) pretendidos. O nãoesclarecimento dos critérios utilizados permite mais facilmente adesqualificação de quaisquer opositores que não vejam o problematecnicamente e critiquem as posturas adotadas pelo pessoal técnico-científico da área da saúde frente a um pseudo ou verdadeiroproblema de saúde pública. Por vezes, os sanitaristas, ou pelo menosparte deles, assemelham-se aos tecnocratas da economia queconduziram nossa política econômica nas duas últimas décadas. Sóque, no caso, trata-se de tecnocratas da saúde, donos da verdadeno que diz respeito a esse setor da realidade.

As dissensões quanto ao que seja problema de saúde pública,de um certo ponto de vista, entretanto, são bem menos graves doque aquelas que se travam em torno do que seja problema social. Éque os vários grupos sociais divergem, e sempre divergiram, emrelação ao seu modelo de sociedade ou, simplesmente, ao que sejanormal e patológico. Aqui, o desacordo constante é a regra. No quetoca à saúde, há um certo consenso quanto ao que ela seja ou, pelomenos, ao que seja doença. Todos, na pior das hipóteses, concordamque a saúde é sempre melhor do que a doença. É claro que, quandose trata de discutir o normal e o patológico médicos, em termossocietários, a coisa muda, ou pode mudar. Assim, considera-se anormalque o indivíduo A, especificamente, sofra de doença de Chagas, mas

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a mesma opinião pode não prevalecer quando se trata de discutir se énormal ou não um determinado grupo social dela padecer. Sob esseprisma social, alguns sanitaristas e outros profissionais que se voltampara a Saúde Pública parecem se aproximar um pouco de certossociólogos vinculados ao funcionalismo, que tendem a considerarnormal aquilo que é comum numa dada sociedade e patológico o quese apresenta como desvio (por exemplo, um comportamento). Cremos,no entanto, que, em sua maioria, sanitaristas e médicos voltados parao social estão suficientemente atentos para o erro, cientificamentefalando, de se tornar o geral como paradigma de normal, no que serefere à saúde coletiva. Se bem que, em alguns manuais deEpidemiologia, de Saúde Pública ou de Administração Sanitária, surjauma pergunta inquietante: a de se as ações de saúde pública nãointerfeririam negativamente na seleção natural. Obviamente, se talpergunta é feita, é porque se está supondo que pobres e doentesestão nessa situação não em virtude de como se estrutura e organizao sistema social no qual se inserem, mas em razão de seus genes.

Quando o desvio, pelo menos em relação a um modelo ideal denormalidade admitido pela população, pelos técnicos, ou por ambos,assume a dimensão de um problema social ou de saúde pública? Éaquele desvio estatisticamente relevante? Talvez dependa do tipo dedesvio, pois uns se referem a coisas socialmente relevantes e outrosnão. Assim, certos desvios em relação aos costumes sexuaissocialmente aceitos podem ser freqüentes e nem por isso tidos comoproblemas sociais. Já o homicídio, por exemplo, é estatisticamentepouco freqüente na quase totalidade das sociedades. Mas odescumprimento da norma de não matar é sempre tido como grave,como um crime. Assim, se sua freqüência aumentar em determinadaépoca, comparada a outras, em uma mesma sociedade, ou quandose a compara com outras, o fenômeno passa a ser considerado comosério sintoma de desorganização social. O mesmo raciocínio se aplicaao problema de saúde pública. Não se convertem em tal todos osproblemas de saúde sofridos por uma população ou um seu segmento.

Nisso, como já dissemos, os manuais são muito imprecisos. A

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dificuldade já começa pelas próprias definições de saúde pública. Emgeral, elas são por demais abrangentes. Em vez de se aterem àdeterminação, a mais precisa possível, da extensão e dos limites doconceito, enumerando-lhe, inclusive, os atributos essenciais eespecíficos, de modo que a coisa definida não se confunda com outras,parece que os estudiosos da Saúde Pública entendem que dar excessivaextensão ao que ela seja constitui a melhor maneira de lhe darimportância. Por exemplo, quase todos se referem à definição deWinslow, de 1920, ou nela se apóiam. Segundo esse autor, a SaúdePública é “a arte e a ciência de prevenir a doença, prolongar a vida efomentar a saúde e a eficiência, mediante o esforço organizado dacomunidade”. Esse objetivo seria alcançado através “do saneamentodo meio, do controle das infecções transmissíveis, da educação dosindivíduos em higiene pessoal, da organização dos serviços médicos ede enfermagem para o diagnóstico precoce e o tratamento preventivo,do desenvolvimento de um mecanismo social que assegure a cadapessoa um nível de vida adequado para a conservação da saúde”. Ouseja, o objetivo da Saúde Pública seria “proporcionar a cada cidadãocondições de gozar de seu direito natural à saúde e à longevidade”.Convenhamos que a amplitude da definição é tal que uma enormidadede ações ao nível social, econômico ou político poderiam serconsideradas de saúde pública. E, com base nela, praticamente todosos problemas de saúde podem ser facilmente convertidos emproblemas de saúde pública. Se os autores obedecessem à regra deque a definição deve convir a todo o definido, e apenas ao definido,tais dificuldades inexistiriam ou seriam menores.

Em nossa busca de definições de problema de saúde públicaencontramos uma, cientificamente aceitavel, em Forattini (1). Refere-se ele a uma definição de Nathan Sinai, citada por Mário M. Chaves,na qual o autor estabeleceria três critérios para que um problema desaúde se transformasse em problema de saúde pública: 1) “representarcausa freqüente de morbidade e de mortalidade”; 2) “existirem métodoseficientes para sua prevenção e controle”; 3) não estarem eles “sendoadequadamente empregados pela sociedade”. Forattini acrescenta

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um quarto critério: “ao ser objeto de campanha destinada a erradicá-lo ocorrer sua persistência além do prazo previsto”. Poderíamostambém nos valer dos critérios estabelecidos por Nelson Moraes (2)

para avaliar a importância de uma doença transmissível e aplicá-los aqualquer problema de saúde, a fim de verificar se ele adquiriria ostatus de um problema de saúde pública. Os critérios seriam osseguintes: distribuição geográfica, população em risco,potencialidade endemo-epidêmica, morbidade, mortalidade,letalidade, conseqüências econômico-sociais, disponibilidade derecursos profiláticos e terapêuticos eficazes, viabilidadeeconômica-financeira do programa de controle e implicaçõesinternacionais.

O mais grave defeito nessas definições, principalmente nareferida por Forattini, é que elas visualizam a sociedade como se elafosse um todo homogêneo. Não consideram a diversidade desituações existenciais gozadas pelos vários grupos sociais,fundamentalmente pelas várias classes sociais e frações. Quandoessas divisões não são consideradas, os índices e coeficientes relativosà saúde tornam-se, em grande parte, abstrações. Especificamente nocaso de enfermidades sociais vinculadas a precárias condições devida, sua prevalência pode ser alta no grupo que vive aquelas condiçõese praticamente inexistente em grupos sócio-econômicos privilegiados;isto num caso extremo. Mas como quase todas as doenças sãodeterminadas socialmente, em maior ou menor grau, atingindo gruposde risco definidos, o critério de freqüência da morbi-mortalidade fica,muitas vezes, adstrito aos grupos que sejam, de alguma forma,poderosos, com maior capacidade de vocalização e de pressão sobreos serviços de saúde estatais. Assim sendo, a malária, por exemplo,por afetar, geralmente, segmentos populacionais despossuídos deriqueza, poder e prestígio e, conseqüentemente, de condições dereivindicar e de se fazer ouvir pelos meios de comunicação de massa,pode se transformar num problema de saúde pública de menorexpressão do que a poliomielite, simplesmente por esta afetar, commaior freqüência do que a malária, pessoas pertencentes às classes

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dominantes. Conseqüentemente, o critério de “freqüente morbi-mortalidade” deveria ser qualificado, indicando-se o número de casosou de óbitos provocados pela doença não na população como umtodo, mas em segmentos específicos da mesma. A dificuldade talvezesteja no fato de que, quando se consideram as divisões da sociedadena qual o problema esteja ocorrendo, ele pode adquirir outrasconotações que não apenas a técnica.

5. O ASPECTO IDEOLÓGICO

Referimo-nos já a alguns aspectos ideológicos no que dizrespeito tanto à definição de normal e patológico médico-sociais,como de problema social e de saúde pública. A postura ideológica,geralmente, não chega ao nível de consciência dos sujeitos envolvidosna questão. Inclusive, diz-se que uma ideologia eficiente é a queapresenta tais características. No caso do problema social, quandose entende que uma dada situação é socialmente indesejável, o quese está afirmando, muitas vezes, é que ela prejudica a eficiência e afuncionalidade do sistema social, vistas ambas sob a ótica dos gruposdominantes, especialmente. Até mesmo pode ocorrer que estatambém seja a ótica dos dominados, por eles terem adotado a ideologiados dominadores. No caso de problema de saúde pública, a questãopode adquirir contornos assemelhados. Por exemplo, ele pode serconsiderado como importante ou não, simplesmente em função daregião onde ocorra, independentemente do segmento populacional queesteja atingindo. Suponhamos que, num caso, afete larga porção degrupos sociais que constituem a mão-de-obra de setores econômicosrelevantes, em termos do sistema capitalista de produção existente, eque, em outro, atinja populações que vivem em regiões em quepredomina a economia de subsistência. A esquistossomose, porexemplo, será um problema de saúde pública muito mais relevantequando atingir bóias-frias envolvidos no corte da cana e na colheitado café em São Paulo do que quando afetar populações nordestinasvivendo, no Sertão ou no Agreste, em economia de subsistência. Em

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outras palavras, as conseqüências sócio-econômicas do problema sãovistas, quase sempre, do ponto de vista das classes possuidoras, situadasem regiões econômica, social e politicamente dominantes. A eficiênciae a funcionalidade prejudicadas não são as de qualquer subsistemasocial, mas as de um determinado.

É claro que há também o reverso da medalha. Dado que adefinição de problema de saúde pública é, freqüentemente, tarefaque os sanitaristas e os outros profissionais da área atribuem a sipróprios; dado também que muito deles, em determinados lugares emomentos, estão situados mais ou menos à esquerda do espectropolítico-ideológico, há a possibilidade de problemas de saúde quepossam render maiores dividendos políticos ao grupo seremtransformados em problemas de saúde pública importantes. Éinteressante destacar aqui como a ideologia serve a diferentespropósitos, até mesmo contraditórios. Vejamos o caso do marxismomecanicista, que tende a enfatizar exageradamente a determinaçãoeconômica de qualquer fenômeno e processo social. Por essa via, asações na área da saúde são vistas como sempre determinadas porforças econômicas incontrastáveis e a serviço de interessessubalternos dos capitalistas. Os homens, nesta perspectiva, sãotransformados em autômatos destituídos de vontade. Ora, como opolítico-ideológico é outro nível de análise significativo do marxismodialético, os mecanicistas acabam deixando de considerar sua própriae relevante influência sobre os acontecimentos.

De qualquer forma, vista a questão sob o prisma ideológico,o problema de saúde pública pode ganhar contornos interessantes,seja quando se procura sua gênese, seja quando nos voltamos para assoluções. A discussão destas se fará mais adiante, mas aquigostaríamos de acentuar o fato de que uma visão romântica evoluntarista é, às vezes, apanágio dos dois grupos de técnicosideológicamente em oposição. Uns, os que encaram os problemascomo sendo apenas técnicos, vêem sua solução como dependendotão-somente de ações racionais, cientificamente conduzidas,desconsiderando os aspectos políticos, econômicos e outros envolvidos.

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Outros, se formos para o extremo oposto, praticamente só vêem oaspecto político. Desses, uns há que entendem que só após a“revolução” algo se fará; há outros que supõem que ela é iminente,sendo possível apressar sua irrupção desde que assumam uma posiçãomais decisiva em seu desencadeamento e condução.

6. O PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA COMOPROBLEMA SOCIAL

As relações entre problema de saúde pública e problema socialpodem ser ainda mais estreitas. É que muitos problemas de saúdepública são também problemas sociais e outros, ainda, supostamentede saúde pública, são, na verdade, problemas sociais transvestidos deproblemas de saúde pública, como já tivemos oportunidade de assinalar.Ambos os tipos de problemas, às vezes, relacionam-se por estaremvinculados ou ao modo de funcionamento “normal” (no sentido dedentro do esperado, de comum) do sistema sócio-econômico, ouporque têm sua origem na desorganização desse mesmo sistema. Nocaso do modo de produção capitalista ou de qualquer outro pré-capitalista, as divisões sociais, às vezes com extremas desigualdadesna distribuição de bens e serviços, de status e papéis, de obrigaçõese direitos, provocam problemas de saúde pública, segundo as definiçõesatrás, e também problemas sociais, no sentido de situações sociaisconsideradas por todos como indesejáveis. Ou seja, sendo estassociedades socialmente muito heterogêneas, com diversas classessociais e frações, com grupos de risco específicos, tais problemassurgirão inevitavelmente, mantendo-se as características própriasdaquela formação social concreta. De outro lado, nas sociedadesrelativamente complexas (seja do ponto de vista social,econômico, político ou cultural), a desorganização social podefacilmente se instalar, sobretudo nos momentos de transição, demudança para os tipos sociais emergentes. O solapamento de situaçõestradicionais pode, de um lado, transformar-se em foco de tensõessociais e, de outro, não só estas tensões isoladamente, mas as próprias

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transformações, sobretudo econômicas, podem provocar problemasde saúde pública. Suponhamos a concentração da propriedade rural,em virtude de as atividades agrícolas na região (por exemplo,monocultura da cana ou mesmo da soja) não mais comportarem apequena propriedade. A mecanização se instaura, o trabalho ruralpode não ser mais contínuo, ocorrem fases de desemprego ousubemprego para os trabalhadores rurais (ainda que vivendo na zonaurbana, por causa da intensa migração rural-urbana), as cidadesincham em suas periferias. É inevitável, nesses casos, que assistamosa processos de desorganização social, de um lado, e ao surgimento deproblemas de saúde pública, de outro.

É claro que há problemas de saúde pública que não sãoproblemas sociais. Suponhamos que, num determinado momento,concluam os sanitaristas que o tabagismo é um problema de saúdepública. Pelo menos em nossa sociedade não há indicações de que ovício de fumar seja considerado pela população, ou pelos sociólogos,como tão socialmente indesejável que se tenha transformado emproblema social. Pode ser que, da mesma forma, uma dadaenfermidade cardiovascular, com tênues relações com a estruturasocial, venha a ser considerada problema de saúde pública sem ser,ao mesmo tempo, um problema social. Há, por outro lado, problemassociais que pouco ou nada têm a ver com a saúde. Os preconceitosem geral, pelo menos para os sociólogos (não necessariamente paraa população), são tidos como problemas sociais. Ora, nem sempreeles gerarão problemas de saúde. Outro exemplo: pensemos emmovimentos políticos radicais, tanto de direita como de esquerda. Nãohá indicações de que sejam ou se transformem facilmente emproblemas de saúde pública.

Não cremos que o fato de um problema de saúde públicaser, ao mesmo tempo, um problema social, facilite sua solução.Não se pode generalizar, é bem verdade, mas, se houver relação,vai ser no sentido de a solução ser apressada, ou encontrar menoresresistências, quando o problema de saúde pública gerar um problemasócio-econômico, afetando os interesses de um ou mais grupos

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dominantes. A relação inversa, em que um problema sócio-econômicogera um problema de saúde pública, possívelmente não mereceráuma atenção maior se a solução do segundo implicar que, para que oprimeiro seja sanado, se atinjam aqueles interesses. Um exemplo, noprimeiro caso, seria o da ancilostomíase. Como, do ponto de vistaeconômico, é uma doença que diminui, em maior ou menor grau, acapacidade de trabalho e, portanto, a produtividade dos trabalhadoresrurais em geral, há maior preocupação estatal, e das classesproprietárias, em que o problema seja solucionado. Um exemplo opostoseria o da desnutrição e da subnutrição. Comumente, elas sãocausadas por uma desigual distribuição de renda, da propriedade, debens e serviços etc. Fundamentalmente, pois constituem um problemasocial. Como sua solução vai depender de mudanças mais profundasna estrutura sócio-econômica, um enfrentamento decisivo do problemadificilmente ocorrerá. É claro que se os problemas de saúde públicaestiverem vinculados a problemas sociais cuja gênese se situar nonível institucional ou pessoal, tais resistências tenderão a ser menores,ou mesmo inexistirão, no caso do nível pessoal.

Em geral, todos os problemas de saúde pública que afetamdefinidamente interesses econômicos e sociais de grupos poderososencontrarão maior receptividade em sua solução. Por outro lado,aqueles problemas dessa ordem vinculados, em sua gênese, a essesmesmos interesses, possivelmente não serão enfrentados com vigor,a não ser, talvez, quando os procedimentos utilizados forem só técnicos.Por exemplo, a doença de Chagas poderá ser combatida sem maioresresistências desde que se esteja utilizando o expurgo de barbeirosatravés do uso de inseticidas. Mas se a solução aventada implicar emmelhoria das condições habitacionais da população em risco,possivelmente aquelas resistências crescerão. Os interesses afetadosdos grupos dominantes, e que dificultam soluções, não são apenas deordem econômica; podem ser sócio-políticos também. Assim,suponhamos que o combate a um problema de saúde pública dependada racionalização dos órgãos públicos voltados para a questão, porestarem excessivamente burocratizados, porque o empreguismo é

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demasiado, e também a incompetência. Se essa racionalização afetarinteresses clientelísticos de pessoas e grupos políticos ligados ao poder,porque implicaria, por exemplo, na demissão de funcionários ociososou incompetentes e na contratação de outros em função do mérito, épossível encontrar-se igualmente resistência daqueles, que se sentirãoprejudicados pela adoção das medidas organizativas. Evidentemente,se um problema é, simultaneamente, de saúde pública e social, e seassim for considerado por todos, pela população e pelos profissionaisda área, se houver resistências, elas não serão manifestadasclaramente. Nas atuais condições de esclarecimento da população,dificilmente haveria algo semelhante à revolta contra a vacinaobrigatória e contra os mata-mosquitos que Oswaldo Cruz e o governoRodrigues Alves foram obrigados a enfrentar no começo deste século.

7. PRIORIDADES E MUDANÇA DE OPINIÃO

Ainda no tocante às soluções, em ambos os tipos de problemanão há critérios bem definidos quanto ao estabelecimmento deprioridades, o que não é de se espantar, dada a vinculação freqüentedeles, já assinalada, com interesses político-econômicos e sociaisde grupos dominantes. Por vezes, enfatiza-se até mesmo umproblema menos relevante, do ponto de vista social e sanitário(por exemplo, com o uso dos meios de comunicação de massa) , paraque outros, mais importantes daquele ponto de vista, sejamobscurecidos. Foi o caso, talvez, de se exagerar a questão daviolência urbana, no começo da década de 80, como problemasocial, em face do desemprego e subemprego explosivos da época.Pode-se também dar grande destaque à AIDS como problema desaúde pública, toldando outros, como o da malária ou o da febreamarela. Essas coisas ocorrem não só porque as propostas de soluçãode problemas relevantes, sociais e de saúde pública, podem afetar ofuncionamento e a dinâmica “saudáveis” do sistema sócio-econômicovigente (da ótica de alguns); elas se dão também pelo excessivotecnicismo dos profissionais da área e por influência dos meios de

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comunicação. No caso destes, é evidente que a AIDS constitui muitomais notícia jornalística do que a prosaica malária, por exemplo.

Assemelham-se os problemas sociais e os de saúde pública,igualmente, nas tentativas de seu enfrentamento mediante legislaçãorepressiva. Esta é uma característica bem latina, sobretudo latino-americana, indicando nossa herança cultural ibérica comum. Homensde governo, políticos em geral, mas também sanitaristas,freqüentemente entendem que um dos bons caminhos para fazerface a determinados problemas é legislando a respeito. Isto, às vezes,é realmente correto. Ocorre que, comumente, há pouca preocupaçãocom o fato de essa legislação ser ou não socialmente aceitável, anódina,ou ainda com a existência ou não de condições concretas para fazê-la cumprir. Os exemplos a respeito são abundantes.

Quando se trata de problemas relacionados a grupos ou pessoascujos comportamentos geram doença (hábitos alimentares, modos detrabalhar, vícios etc.) ou são eles próprios tidos como problemas sociais(discriminação racial, por exemplo), muitas vezes se tenta alterá-losatravés de influências educacionais formais ou, o que é mais comum,informais, usando os meios de comunicação de massa e outrosrecursos. A mudança de opinião pressuposta, para que hábitos ecomportamentos se alterem, não é fácil de ser conseguida. Em áreasem que predominam as emoções, argumentos racionais evidentementetêm pouca efetividade. Os exemplos de pessoas e grupos admiradosé que costumam exercer influência positiva. Ocorre que pessoas egrupos formadores de opinião variam amplamente, conforme asubcultura, a classe social, o grupo etário etc. No passado, as classesditas altas, os sacerdotes, a aristocracia e outros grupos situadosno topo da hierarquia social exerciam bastante bem essa função.Hoje, no entanto, os padrões reconhecidos de estratificaçãosocial são muito fluidos para que isso se dê com a intensidadeanterior. Há líderes de opinião para cada momento e para cada meiosócio-cultural. Os meios de comunicação atuais, especialmente atelevisão, criam ídolos e os consomem com grande rapidez. Criançase adolescentes, sobretudo, pelas próprias condições de sua situação

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de transição, mudam muito de ídolos. De qualquer forma, professores,médicos, sacerdotes e outros profissionais de igual categoria não sãonecessariamente os melhores formadores de opinião em relação avariados problemas, inclusive em relação àqueles que lhes dizemrespeito. Pelé, realmente, pode ser mais ouvido no tocante a consumode medicamentos (pelo menos em certos grupos sócio-culturais) doque um médico.

Aqueles que pretendem conseguir mudanças de opinião dapopulação para conseguir solucionar problemas sociais ou de saúdepública poderiam muito bem se alicerçar em C. Wright Mills(3).Verificou ele que livros, revistas, artigos, conferências etc. antesreforçam nossa opinião do que mudam, porque tendemos a ler e aouvir apenas aquilo que vem ao encontro dos nossos pontos de vista.Geralmente lemos e escutamos o que é de nosso agrado. Mudançasde opinião vinculam-se muito mais a contatos face a face com pessoasque admiramos, gostamos e respeitamos. Será difícil, por exemplo,que numa conferência na qual se esgrimam argumentos contra otabagismo, dada por pessoas desconhecidas, encontrem-se muitosfumantes inveterados. Se queremos atingir um dado grupo (o dosadolescentes, por exemplo) , precisamos saber quais são seus gruposde referência positiva, quais seus ídolos, e transformá-los, se possível,em formadores de opinião contra o hábito ou comportamento quequeremos modificar.

8. CONSEQÜÊNCIAS NEGATIVAS DA INTERVEN-ÇÃO E AMPLITUDE DOS MODELOS EXPLICATIVOS

Apesar de tudo, os problemas que se apresentam aoadministrador de saúde, ao técnico em planejamento e a outrosprofissionais dos setores que estamos tratando, em muitos casos,podem ser de fato solucionados na esfera puramente técnica. Istoocorre, sobretudo, em se tratando de problemas de saúde pública. Setodos o reconhecem como tal e o querem ver solucionado, se hácondições técnicas para isso, e a correção não se faz a contento, há

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uma grande possibilidade de que a falha seja do órgão técnicoencarregado. Já nos referimos à freqüente incompetência burocrática.O mais das vezes, porém, problemas que não são apenas técnicossão enfrentados como se o fossem, e não por desejo e imposição degrupos dominantes. Em um e outro caso, por vezes, os encarregadosde amainar, controlar ou mesmo solucionar inteiramente tais problemas,baseando-se em diagnósticos imperfeitos, que demonstramincompreensão de aspectos cruciais da economia e sociedademodernas, tomam decisões que levam a soluções com conseqüênciasnegativas não previstas. Em outras palavras, quando não se considerao comportamento dos agentes sociais envolvidos, sua volição, as muitascombinações de fatores e condições de várias ordens (não sóeconômicas), a intervenção deliberada, planejada, nos processos sócio-sanitários deixa a desejar. Na verdade, o alcance da intervenção nasolução dos problemas depende muito de se operar com paradigmasteóricos suficientemente relevantes na explicação dos mesmos.

Há, nesse ponto, uma certa dessemelhança ente sanitaristas esociológos e outros cientistas sociais. Os primeiros tendem mais(embora haja exceções notáveis) ao exagero nas colocações ditaspráticas, ficando na periferia das questões ao só considerarem ascausas mais imediatas e visíveis. Disso podem resultar equívocosgraves. É como se um psicológo só tivese em conta, como causada neurose, a incapacidade do paciente em se ajustar ao seu meiosocial, sem se perguntar se esse meio é, em si mesmo, patológico,caso em que o não-ajustamento poderia ser mais saudável. As boassoluções dos problemas sociais e dos de saúde pública vinculados aeles vão depender, pois, do desenvolvimento de construçõesteóricas, no campo sócio-econômico, principalmente, que dêemconta dos fatores e condições que levam à sua produção eimpedem os grupos e agentes sociais envolvidos de resolvê-los. Éque, conseguida a explicação do fato, já se terá dado um grande passoem direção à solução. Infelizmente, são freqüentes as situações emque os responsáveis por ela têm uma visão limitada da questão causale dos interesses conexos, demonstrando um conhecimento leigo da

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vida em sociedade e do funcionamento e dinâmica do sistemaeconômico. Há, evidentemente, como assinalamos, o outro lado damoeda. Sociólogos, principalmente, voltados ao estudo de problemassociais, freqüentemente se preocupam em demasia com os aspectosteóricos das questões, negligenciando a prática concreta, a efetivasolução dos mesmos. De qualquer forma, o exagero nas colocaçõesditas práticas, inevitavelmente limitadas, tem uma explicação simples.Sabidamente, qualquer intervenção planejada na realidade socialencontra sempre menos resistência quando se trata de interferir nonível individual. Como já foi dito, realizar mudanças controladas noplano institucional ou estrutural é bastante difícil.

Quaisquer que sejam as alternativas que se colocam para oplanejador, contudo, a solução de um problema que envolva ocomportamento de pessoas e grupos sociais só pode ser conseguida,em grande parte, através da elevação do nível de consciência socialdas questões. Para isso, por vezes, realmente será preciso lançarmão de legislação restritiva para os recalcitrantes, mas sempre comosolução parcial, auxiliar. Inclusive porque seria de todoinconveniente, depois de tantos anos de regime relativamentetotalitário, contribuir para aumentar o autoritarismo que, de modogeral, sempre vigiu entre nós. As tentativas de tentar normatizar avida de membros de certos grupos e o funcionamento de algumasinstituições só se impõem, no caso de problemas de saúde pública,quando muitos estão sendo prejudicados pelas ações egoístas deuns poucos. Seja como for, a correção espontânea de hábitos ecomportamentos prejudiciais à saúde não é fácil porque, como jáfoi dito, ela geralmente só é importante para as pessoas quandoé perdida. Repetindo, em condições normais, mesmo vícios nocivosà saúde, a longo e médio prazo, podem até ser considerados, acurto prazo, em determinadas circunstâncias, como contribuindo paraa saúde, nos termos da definição da OMS. Em suma, os planejadoresnão podem ter uma visão simplista das motivações humanas, porque,nesse caso, as tentativas de solução serão quase sempre condenadasao fracasso, ou serão simplesmente inócuas.

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9. CONCLUSÕES

Neste artigo, tivemos o intuito de mostrar algumas semelhançasno modo de definir, dignosticar e solucionar problemas sociais e desaúde pública. Uma das primeiras semelhanças surgiria já na própriadefinição: a que segmento social caberia considerar alguma coisa, noplano social ou sanitário, como constituindo um problema? Entresociólogos, há divergências a respeito: uns crêem que a incumbênciacabe à população; outros, a algum de seus segmentos; outros, ainda,somente aos técnicos e cientistas sociais; outros, por fim, à populaçãoe aos técnicos simultâneamente Entre os sanitaristas, epidemiólogose outros profissionais da área da saúde, parece-nos que há uma crençadefinida de que a incumbência lhes deve caber. De qualquer forma, adefinição está intimamente ligada ao entendimento do que seja normale patológico; em termos sociais e sanitários, este entendimento variaamplamente, sobretudo quando se trata de ações, relações, processossociais etc. O consenso é maior no caso da saúde, se bem que, mesmoaí, há diferenças, especialmente quando os supostos ou reais problemasde saúde pública relacionam-se a problemas sociais.

Em grande parte, a dificuldade de se chegar a uma noção maisou menos aceita por todos quando ao que seja normal e patológicoliga-se ao fato de os vários grupos sócio-culturais terem objetivosdiversos e até mesmo contraditórios, não só em relação aos outrosgrupos, como em relação aos seus próprios objetivos. Os homensvisam alcançar vários fins ao mesmo tempo, não necessariamentearticulados entre si. Conseqüentemente, atingir um muitas vezesprejudica a consecução de outros. Além do mais, os valores pelosquais se guiam podem ser igualmente contraditórios. Em se tratandode saúde, por exemplo, nem sempre ela se coloca como prioritária;no aqui e agora, outros objetivos que com ela conflitam podem servistos como mais relevantes. Isto tudo é perfeitamente explicável.Afinal, os valores que lhes dão origem e significado vinculam-sebastante ao nível irracional da existência, ao emocional, principalmente,daí os fins não serem escolhidos racionalmente. Desse modo, nem

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sempre se conseguem mudanças tão-somente pela racionalidade dosargumentos apresentados.

Na verdade, o caráter ideológico das questões avulta aqui,quer se trate de problemas sociais, quer de saúde pública. No casodestes, vários agravantes ainda chamam a atenção. Um deles é onão estabelecimento de critérios claros e objetivos do que seja aprópria saúde pública. As definições não delimitam bem a extensãodo conceito, ou seja, não seguem, em geral, a regra de que umadefinição deve convir a todo o definido, e apenas ao definido; são pordemais amplas. De outro lado, também não são estabelecidos critériosrelativamente precisos para considerar um problema de saúde comosendo de saúde pública. Mais ainda, a indefinição a respeito e osinteresses em jogo (é claro) fazem com que muitos problemas sociaissejam transformados em problemas de saúde, pública ou não.Resultado: problemas que demandam soluções, sobretudo políticas,são enfrentados apenas tecnicamente. Em parte, parcela ponderávelde sanitaristas e epidemiologistas não se dá conta disso, em virtudede sua visão limitada da sociedade e da economia. Muitas vezes vêem-nas como um todo homogêneo, não distinguindo claramente suas váriasdivisões, pincipalmente aquelas que opõem as classes sociais umasàs outras. A despolitização dos problemas, freqüentemente, faz comque alguns, mais ou menos irrelevantes, sejam vistos como prioritários,em detrimento daqueles realmente importantes, pelo menos em termosdo conjunto da população.

Se os problemas de saúde pública, e mais ainda aquelesestritamente sociais, ligam-se a condições e fatores sócio-econômicos e políticos, é evidente que se coloca a necessidadede intervenção deliberada na realidade social. Espera-se, nessecaso, que alguns segmentos sociais (inclusive os constituídos porplanejadores sociais e da saúde) realizem uma mudança controlada,isto é, planejada. De fato, seria mais ou menos utópico esperar que acorreção desses problemas se desse espontaneamente. Aqui, nos doistipos de problemas, surgem novas dificuldades. Muitos dessesproblemas, claramente, vinculam-se ao nível institucional ou mesmo

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estrutural. Ocorre que a intervenção nesses planos, sobretudo nosegundo, é sempre muito controversa, provocando o máximo deresistências. No plano individual já ocorre o contrário: freqüentementea interveção nele é vista positivamente. Mas, de modo geral, é inócuaquando os problemas são mais graves. Apesar disso, parte ponderáveldos planejadores em ambas as áreas, mas principalmente na sanitária,tende a enfrentá-los mediante intervenção nesse plano pessoal (emparte por formação precária, mas também por razões ideológicas, ousimplesmente porque são funcionários, servindo a governosmarcadamente interessados em despolitizar os problemas). Ou seja,agem como se não houvesse contradições maiores entre os váriossegmentos sociais, decorrentes inclusive de sérios conflitos de interesse.É claro que, por vezes, técnicos e cientistas sociais e da área desaúde têm uma relação de negatividade com a ordem social vigente.Nesse caso, não se preocupam tanto com a funcionalidade sincrônicado sistema; ideologicamente, visam antes sua superação. Contudo,radicais e reformistas, por formação ou por condições objetivas,costumam ficar ao nível do discurso. A revolução se torna umavirtualidade, algo a ser examinado no âmbito da academia.

Seja como for, diagnósticos imprecisos ou mesmo errôneos,pelo não entendimento dos fatores causais mediatos e maisabrangentes, podem levar a intervenções infelizes. Por vezes, elasprovocam conseqüências negativas não previstas até mais gravesdo que o problema que se pretendeu enfrentar. Isto mostra anecessidade de os planejadores se guiarem por modelosinterpretativos mais sofisticados, teórica e politicamente corretos.De fato, em qualquer sociedade mais complexa, muitos problemassociais ou de saúde pública só podem ser adequadamente solucionadosse a intervenção se faz nos níveis fundamentais, e não nos mais oumenos marginais à questão. Para isso, contudo, um projeto detransformação precisa ser incorporado por um grupo politicamentecapaz de implementá-lo.

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RESUMO

Neste artigo são discutidas algumas questões mais ou menoscomuns a ambos os tipos de problemas e certas relações que entreeles existem. Uma questão comum seria a da definição de problema;a quem compete ela? Mostra-se como variam as noções de normale de patológico e como esta variação, em grande parte, está associadaàs divisões, sobretudo em classes sociais, existentes nas sociedadescomplexas. O autor enfatiza o fato de os vários grupos sociais teremobjetivos e valores não só diversos como contraditórios, o que dificultao estabelecimento do consenso, principalmente em relação às soluções.Ele explica algumas influências ideológicas e insiste na necessidadede os diagnósticos e soluções propostos se alicerçarem em modelosinterpretativos teoricamente mais sofisticados. Sem que isso se dê, épossível que as intervenções planejadas para corrigir o problemaconduzam, elas próprias, a conseqüências negativas não previstas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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3. SOBRE CONTRACEPÇÃO

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3.1. O DIREITO DE NÃO TER FILHOS*

O planejamento familiar está sendo discutido na imprensa porautores das mais variadas tendências ideológicas e formaçõesintelectuais. O ponto de vista adotado varia amplamente. Ora seprocura mostrar o dedo alienígena, ora os interesses de pessoas,grupos e instituições. O enfoque por vezes é econômico-social, maspredomina, creio, o político-ideológico.

O que sempre me chama a atenção nesse debate é que,raramente, nas colocações feitas por autores de diferentes correntesideológicas e científicas, transparece a preocupação com os possíveisinteresses e direitos das pessoas que mais sofrem o problema: asmulheres em idade fértil, sobretudo as pertencentes aos grupos social,econômica e culturalmente marginalizados. Nesse ponto se dão asmãos alguns autores que se filiam ao pensamento de esquerda, osconservadores bispos e papas da Igreja Católica (pelo menos notocante a este ponto) e os pensadores que poderiam ser consideradoscomo situados à direita do espectro político. Podem discordar se deveou não o Estado ou qualquer instituição social interferirem, no sentidode pôr à disposição da população conhecimentos, instrumentos emedicamentos que permitam a realização da anticoncepção. Mas, demodo geral, estão aparentemente concordes em que a população nãoprecisa ser ouvida, certamente porque a encaram como composta depessoas destituídas de direitos específicos e de capacidade de decidirpor si mesmas.

O atual Papa (João Paulo II), por exemplo, parece ter umaconcepção de que aos homens não é permitido pensar com suas

* Publicado originalmente em Ciência e Cultura, 36(12), 1984, pp. 2171-2.

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próprias cabeças. O sentir e agir dos mesmos, no que diz respeito aum assunto tão íntimo, como o das relações sexuais, inclusive entremarido e mulher, são invadidos com uma sem-cerimônia que, a mimpelo menos, choca. Mas se trata de posição que não tem nenhumarelação com o mundo moderno e que, de fato, não afeta senão a umaminoria muito pequena de crentes que levam demasiado a sérioposições tão dogmáticas. Pelo que sei, as mulheres católicasengravidam e abortam por razões que nada têm de religiosas e queestão muito mais relacionadas à pobreza e à ignorância.

Quanto aos autores mais conservadores, sua concepção doproblema do planejamento familiar me desgosta pelo fato detenderem a estabelecer uma relação demasiado direta, masinversa,entre crescimento econômico e desenvolvimento social ediminuição de taxa de natalidade. Lendo alguns de seus artigos temosa impressão de que o determinante na promoção da riqueza social éa diminuição do número de filhos. Ocorrendo isso, quaseautomaticamente (assim parece em alguns textos) diminuiria apopulação de marginais, de pobres, de deserdados pela estrutura sócio-econômica vigente. É claro que, no atual estágio de avanço docapitalismo, com o uso de tecnologia poupadora de mão-de-obra, umexcesso de população adulta desqualificada e com restrito poder deconsumo, transformou-se em disfuncional para o sistema. Não lheinteressa a existência da mesma porque ela pouco ou nada contribuipara o processo de valorização do capital, e também por exigirfreqüentes vezes, recursos materiais e humanos para ser controladasocialmente (por ser foco de tensão social). A proposta desses autores,ainda que outros sejam contra ela simplesmente por ser conservadora,no fundo, por vias transversas, atende às solicitações das milhões demulheres que desejariam ter condições de fugir à maternidadeindesejada e que, em elevadíssima proporção, as leva ao abortoprovocado.

No caso dos que se manifestam sobre o planejamento familiar,e que são, de um modo ou de outro, vinculados ao pensamento deesquerda, o problema é mais bem percebido. Ou seja, entende-se

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que, historicamente, a queda nas taxas de natalidade ocorre à medidaque se produz um processo de desenvolvimento econômico e social.Eles têm claro que a variável determinante é o desenvolvimento, sendoo crescimento demográfico antes efeito do que causa. No entanto,padecem, freqüentes vezes, de uma visão mecanicista da questão,pois não percebem que estamos diante de uma totalidade em quecrescimento demográfico e desenvolvimento sócio-econômico secondicionam e estimulam reciprocamente. Certamente não é pelosimples fato de se controlar o número de nascimentos que o paísaumentará sua riqueza social. Mas é também verdadeiro que, diantede uma política econômica corretamente conduzida em direção àqueleobjetivo, a restrição ao crescimento demográfico pode produzir efeitospositivos. Sobretudo quando o tipo de tecnologia utilizado tende apoupar mão-de-obra.

A concordância com as colocações normalmente feitas porautores à esquerda, não significa, contudo, que devamos endossaruma freqüente conseqüência por vezes tirada dessas teses por algunsdeles. No caso, a de que não se deve pôr à disposição dos segmentossociais inferiorizados de vários modos (sobretudo econômica eculturalmente) conhecimentos e condições materiais para a práticada anticoncepção. É como se puníssemos duplamente essessegmentos: por não terem esses conhecimentos e condições,negamos a eles o direito que reconhecemos às camadas sociaisprivilegiadas. Pior ainda é quando a luta contra esse direito seestriba numa equivocada teoria: a de que o aumento dapopulação lúmpen levaria a um grau tal de tensão social queprovocaria uma radical alteração da ordem social em direçãoao socialismo. Não vou discorrer a respeito do assunto, masapenas lembro que uma revolução social se faz através da açãode classes e frações de classe com consciência de objetivos políticosdefinidos. O lúmpen, via de regra, sempre serviu aos interesses dasclasses conservadoras.

É notório que há grupos vinculados ao pensamento de esquerdaque têm uma posição mais consistente. Que defendem o direito da

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mulher ao uso de seu corpo, inclusive sexualmente, sem aconseqüência de uma maternidade indesejada. E que, ao mesmo tempo,lutam para que a redução das taxas de natalidade se faça pelo caminhoseguido pelas nações hoje tidas como social, econômica e culturalmenteavançadas, isto é, pelo do desenvolvimento sócio-econômico. Qualquer,porém, que seja a motivação ideológica, julgo que o direito de mulheresde qualquer classe social a recusar uma maternidade indesejada deveser um ponto a ser aceito sem qualquer contestação.

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3.2. ASPECTOS SOCIAIS DA CONTRACEPÇÃO*

I .INTRODUÇÃO.

De vez em quando recrudescem entre nós os debates arespeito da participação governamental no planejamento familiar. Deuns anos para cá, o Executivo federal, depois de décadas de resistênciaa qualquer interferência nessa área da regulação da fertilidade, pareceter aceito a necessidade de se fazer algo no sentido de favorecer aredução das taxas de crescimento populacional. Até recentemente,as medidas tomadas foram sempre no sentido inverso, ou seja, com ofito de promover esse crescimento. Alguns poderiam dizer que talguinada decorre de pressões do FMI. Entretanto, já em 1974 o governobrasileiro aceitara, numa reunião promovida pela ONU, em Bucareste,que cabia ao Estado proporcionar informação e serviços quepermitissem aos casais o planejamento de sua prole. A políticanatalista que até então vigorava, pelo menos ao nível do discurso,vinha ao encontro das posições defendidas pela Igreja Católicae por muitos dos altos membros das Forças Armadas, ainda quepor razões diferentes. Para os segundos, especificamente, osgrandes espaços geográficos vazios do País só poderiam ser ocupadosse a população crescesse em ritmo acelerado.

A presença do Gal. Geisel na Presidência da República,luterano relativamente infenso às pressões da Igreja Católica, e acrise econômica que acabou se abatendo sobre o Brasil, dando um

* Artigo Publicado originalmente em Ciência e Cultura, vol 37, nº 11, novembro de1985, pp. 1772-1782

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fim à euforia dos tempos de “milagre”, fizeram com que as posiçõesgovernamentais fossem mudando. Até mesmo na cúpula da ForçasAramadas elas tenderam a se alterar. Tanto assim que, maisrecentemente, o Brig. Waldir de Vasconcelos, chefe do Estado Maiordas mesmas, tem defendido, freqüentemente, a necessidade prementede o Brasil passar a desenvolver uma política antinatalista. Mas já em1977 o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social aprovarao planejamento familiar como parte do Programa Nacional de ProteçãoMaterno-Infantil. Em 1981, por outro lado, surgiu o Grupo deParlamentares para Estudos de População e Desenvolvimento com oobjetivo de atuar no Congresso e pressionar o governo para adotaruma política demográfica do tipo mencionado. Em 1983, no âmbito doMinistério da Saúde, formula-se o Programa de Assistência Integralà Saúde da Mulher, que, entre outros fins, propõe a implementaçãode métodos e técnicas de anticoncepção.

Os debates travados a respeito do assunto, de modo geral, têmcaráter profundamente ideológico, como não poderia deixar de ser. Éque as conotações políticas da questão são inegáveis. Cremos queestas são afirmações de senso comum, apesar de todos os esforçosdas partes envolvidas de racionalizarem suas posições com argumentostécnicos a propósito de virem ao encontro de valores sancionadospositivamente em nossa sociedade (proteção à saúde, promoção dodesenvolvimento econômico e social, melhoria de qualidade de vidade crianças e mulheres etc.). Não há nada de extraordinário nisso, jáque decisões realmente significativas para vida social se vinculamsempre a uma determinada maneira de encarar o mundo. Em facedisso o que pretendemos fazer será uma síntese crítica dos argumentosque têm sido aduzidos pró e contra o planejamento familiar. Nessaexposição não teremos, de modo algum, a pretensão de sermosneutros. Inclusive porque somos daqueles que crêem, com Weber,que não há qualquer parentesco interno entre objetividade e ausênciade tomada de posição.

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II. ARGUMENTOS ANTINATALISTAS DE CARÁTERECONÔMICO.

Ainda que normalmente os contendores concordem, um poucohipocritamente, cremos, que no nível estritamente individual, acontracepção seja um direito humano básico, a nível global a discussãoassume outras conotações. Assim, no primeiro nível, eles podementender que, de fato, a mulher tem todo o direito de decidir, seminterferência de qualquer autoridade, seja religiosa, política, científicaou de qualquer natureza, se deseja ou não conceber. Sob outra ótica,entretanto, argumentos de índole social, econômica, política, militar,sanitária etc. são esgrimidos pelos que são pró ou contra uma dadapolítica demográfica. Na verdade, a discussão a respeito dacontracepção (e sobre a maneira de ela ser realizada), apresentafacetas múltiplas já que depende da ótica através da qual o problemaé encarado. Tal ótica é tão variada que enquanto uns consideramelogiosa, aceitável e democrática uma dada medida, outros a ela seoporão encarando-a negativamente. Comecemos por argumentos denatureza econômica favoráveis a uma política antinatalista.

No Brasil, poderíamos tomar Mário Henrique Simonsen, ex-ministro tanto da Fazenda como do Planejamento e reputadoprofessor de Economia, como apresentador de pontos de vistatípicos daqueles que apoiam tal política por razões de naturezaeconômica. Diga-se de passagem que ele era ardoroso propugnadordo desenvolvimento de atividades de regulação da fertilidade mesmoquando o governo brasileiro a elas se mostrava avesso. Num artigointitulado, significativamente, “Aritmética dos coelhos”1 , eleapresenta uma série de argumentos dessa ordem. Eles, geralmente,assumem que os países mais ou menos subdesenvolvidos secaracterizam por seu explosivo crescimento demográfico. Em facedisso, haveria uma excessiva pressão sobre o emprego, sobretudoquando tais países, em seu esforço de industrialização, se utilizaramde técnicas de capital intensivo, poupadoras de mão-de-obra. Não

1 Cf. Cap. IV de Brasil 2001, APEC, Rio, 1969.

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teria sentido, a esta altura dos acontecimentos, discutir se o modeloeconômico-industrial adotado poderia ser outro; que não deveríamoster copiado técnicas de países industriais avançados comcaracterísticas demográficas muito distintas. O que importaria é que,hoje, teríamos um grave problema de ajustamento entre a estruturaeconômica e a demográfica. E enfrentá-lo dependerá da perspectivaideológica de cada um.

Autores como Simonsen supõem sempre, evidentemente, quehá uma inegável relação causal negativa entre crescimento econômicoe desenvolvimento social de um lado, e grande expansão da populaçãode outro. Tal expansão impediria ou, pelo menos, tornaria mais difícila realização daqueles outros processos. Deixando de lado a relaçãopositiva inversa, traduzida no fato de que, em contrapartida ao fatoapontado, teríamos a redução dos índices de natalidade à medida quehouvesse um processo de desenvolvimento econômico e social, nossoautor arrola 4 principais argumentos para mostrar apenas o quanto écontraproducente um elevado crescimento demográfico sobre oprocesso mencionado atrás. O primeiro desses argumentos seria oque ele chamou de “efeito aritmético”. Sustentando aqui, comoMalthus, de que PIB e população são variáveis independentes, concluique quanto maior é a população de um país, maior o divisor pelo qualterá que ser dividido esse PIB. Não crescendo o dividendo (o PIB)na mesma proporção do aumento da população, a renda “per capita”(o quociente) poderia até retroceder. É claro que não se diz nada arespeito da estrutura da distribuição de renda, a qual pode ser tãodesequilibrada que, mesmo quando há recessão econômica, unscontinuam se apropriando de parcelas crescentes da renda nacional.Em outras palavras, a discussão é abstrata, puramente matemática,contábil por assim dizer. Um segundo ponto discutido diz respeito ao“efeito infra-estrutura social”. Por tal efeito ele se refere àpossibilidade de uma grande população fazer com que haja desviosde muitos recursos para investimentos sociais, como habitação,saúde, educação, infra-estrutura urbana etc. Desconsiderando o fatode que são os homens que produzem e não os equipamentos, ele se

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limita a estabelecer que como esses investimentos geram poucoproduto, piora a relação entre capital investido e produto obtido. Umterceiro aspecto negativo de um grande crescimento demográficoseria o “efeito pirâmide etária”, que se poderia expor assim: quando émuito elevada à proporção de jovens e crianças, aumenta o númerode pessoas inativas que deverão ser sustentadas pela populaçãoeconomicamente ativa. Em outras palavras, esses jovens e criançasdesviam uma quantidade muito grande de recursos que poderiam seraplicados na melhoria do nível de vida de uma população menor. Porfim, teríamos o “efeito emprego”: havendo grande expansãodemográfica, precisa-se de maior número de empregos e, para gerá-los, pode ser necessária a utilização de técnicas de baixa produtividade“per capita”, o que impediria o país de sair do subdesenvolvimento.Como sempre, não se diz que a decisão quanto a adotar esta ou aquelatecnologia dificilmente é dos governos e sim dos empresários. Ora,estes usam técnicas de capital intensivo inclusive quando há excessode mão-de-obra, por outras razões que nada tem a ver com emprego.

Como se vê, trata-se de um conjunto de argumentos bem típicosdo sr. Simonsen. Eles nos dizem, em síntese, que o fator maisimportante da produção é o equipamento e não os homens. Diminuindo-se a quantidade destes, sobretudo de pobres, teríamos um mundomelhor porque sobraria mais ainda para os que possuem o fator deprodução escasso, ou seja, o capital. Seria graças a este,fundamentalmente, que ocorreria o processo de crescimentoeconômico. Segundo esta visão da questão, por outro lado, estãointeiramente afastadas as possibilidades de se alterar o sistema sócio-econômico e político vigente. Tem-se a impressão de que as leisque regeriam esse sistema seriam permanentes e não, como de fatosão, construções humanas, histórico-sociais e portanto passíveis demodificação se surgirem outras relações de dominação-subordinação.

Mas Simonsen também produziu, em nosso entender,argumentos de melhor quilate científico, técnico e político favoráveisà sua posição. Por exemplo, ele descrê, com razão, dos efeitos

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benéficos de uma grande população sobre a expansão do mercado.Ainda que a posição de seus oponentes sobre o assunto possa serparcialmente correta em algumas situações, concordamos com eleque uma grande população pobre não necessariamente leva o mercadoa expandir-se. A respeito disso, nosso autor chama a atenção para ofato de que se a grandeza da população fosse o principal estímulo aocrescimento econômico e à expansão do mercado, então China eÍndia e não Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão seriam osprincipais países do mundo, economicamente falando. Ele, igualmente,aponta para algumas conseqüências sociais deletérias quando há umrápido crescimento da população, especialmente urbana. Nesse caso,muito freqüentemente, as cidades tendem simplesmente a inchar, numprocesso sociopático, em que surgem problemas sociais graves, comoanalfabetismo, alcoolismo, prostituição, aumento de criminalidade,subalimentação, más condições de moradia e de saneamento,marginalidade cultural (dada a dificuldade de as levas de migrantesrurais ajustarem-se com rapidez e adequadamente ao sistema urbanoe muitas vezes também industrial) etc. Um outro argumento de pesolevantado por Simonsen é que boa parte da população, especialmentefeminina, realmente não deseja ter mais filhos. Só os tem por nãodispor ou do conhecimento de medidas contraceptivas ou de condiçõeseconômicas para delas fazer uso. O resultado pode ser umextraordinário aumento do número de abortos provocados. Nesteúltimo ponto somos levados a concordar com o ex-ministro uma vezque, segundo alguns, está por centenas de milhares o número deabortos provocados anualmente no Brasil.

III – ARGUMENTOS NATALISTAS TAMBÉM DENATUREZA ECONÔMICA.

Contra os argumentos, sobretudo de ordem econômica,levantados por Simonsen e outros neomalthusianos, dos quais tomamoso autor citado como modelo, outros se colocam seja contra oplanejamento familiar, seja contra o controle populacional, esgrimindo,

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da mesma forma, considerações de ordem econômica. Esses autoresentendem que a visão do problema se altera radicalmente se levamosem conta a possibilidade de alteração da estrutura sócio-econômicaexistente. Assim, em relação aos efeitos do crescimento da populaçãosobre a renda “per capita”, afirmam que, dependendo das condiçõesexistentes, uma população em rápido crescimento pode representarum fator de primeira plana no crescimento econômico. Crêem, porexemplo, que um país como o Brasil poderia usar com mais intensidadeo fator trabalho de que temos em abundância. É claro que eles estãosupondo que as instituições estatais têm razoáveis condições deinterferir no uso de uma tecnologia intermediária, que usasse maismão-de-obra. Argumentam que há uma indiscriminada edesnecessária adoção de tecnologia poupadora de mão-de-obra nãosó por empresas multinacionais mas também pelas nacionais e estatais,inclusive estimuladas por empréstimos favorecidos obtidos junto aosistema financeiro estatal. A conseqüência, segundo a visão doproblema por parte desses autores, é a transformação de uma largafaixa de nossa população em marginal (econômica, social eculturalmente) sobretudo por não encontrar no sistema econômicoum lugar adequado. Transplantando modelos econômicosinconvenientes às nossas necessidades e condições é quetransformamos homens em fator de produção relativamente supérfluo,e o capital em fator básico. Exemplificam os que defendem essaposição, com o caso dos próprios Estados Unidos, cujo crescimentoeconômico e desenvolvimento social está bastante vinculado a umgrande crescimento populacional, graças, inclusive, ao recebimentodos excedentes populacionais europeus. (E também, diga-se depassagem, a uma política liberal de farta distribuição de terras, sementraves legais maiores, ao contrário do que ocorreu sempre no Brasilem que elas sempre foram monopolizadas por uma pequena fraçãoda população bem situada política e economicamente. Tal política,evidentemente, transformava rapidamente os agricultores emconsumidores de bens industrializados, estimulando a economiaindustrial).

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Aqui seria preciso fazer um pequeno reparo na argumentação.É que o crescimento econômico dos Estados Unidos deveu-se, semdúvida, entre outros fatores, ao crescimento da população. Mas éconveniente ressaltar que o ônus inicial da formação dessa mão-de-obra, que, em parte, já chegava adulta, coube aos países de origem.Seria o caso, no Brasil, do Estado de São Paulo, que foi a região quemais recebeu imigrantes europeus e japoneses (e também mineiros enordestinos), já adultos, ou seja, em idade produtiva. Isto significa queo custo de sua formação recaiu sobre outros países e regiões. Dequalquer modo, citam-se, como exemplos favoráveis ao argumentode que a população, pelo menos numa fase inicial do processo decrescimento econômico, é um fator estimulante deste, os casos doBrasil e do México. Realmente, eles foram os países latino-americanosque mais cresceram economicamente no período posterior à SegundaGrande Guerra. Concomitantemente, foram os que mais crescerampopulacionalmente. É claro que este é um tipo de associação perigosa,quando se transforma uma das variáveis em fator causal da outra.Mas talvez seja possível dizer-se que, de fato, em certos momentoshistóricos, a população em expansão representou um papel que se lheestá atribuindo aqui. Trabalhando nessa direção, alguns julgam,comparando França e Alemanha, que o crescimento econômico daprimeira, em relação à segunda, foi obstado por uma precoce eexagerada política de planejamento familiar. O exemplo dos EstadosUnidos e de países da Europa Ocidental, entretanto, não é conclusivoquanto à população crescente ser, sempre, independentemente dascondições históricas e sociais, um fator positivo conducente aocrescimento econômico. Em determinados momentos de sua história,reduziu-se o crescimento demográfico desses países quando suapopulação mais urbanizada e mais culta, lançou mão do planejamentofamiliar. Ao mesmo tempo havia a substituição de homens pormáquinas. Ou seja, a substituição de uma tecnologia por outra não foitão brusca, ainda que tenha produzido excedentes populacionaisfreqüentemente absorvidos pelas Américas. No Brasil e em paísesem condições semelhantes, a adoção de tecnologias de capital

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intensivo ocorreu em grandes proporções antes que a taxa decrescimento demográfico se reduzisse suficientemente para não haverrepercussões sociais negativas graves. Em outras palavras, a variávelpopulação, se vista sob o ângulo puramente quantitativo, tem maiorou menor significado na promoção do desenvolvimento econômicona dependência de outras condições que interagem com ela. Seriaum erro analisá-la isoladamente.

Os que criticam as tentativas de promoção de medidas quepermitam algum tipo de planejamento familiar também afirmam queos países superpopulosos não necessariamente são protótipo detodos os subdesenvolvidos. De fato, os defensores de planejamentoou controle familiar geralmente lançam mão de exemplos algoextremos, com o que retrucam os natalistas afirmando que nem todosestão no caso da Índia. Mesmo quando a terra é realmente escassae falta capital, se este vier de países economicamente avançados eutilizando-se tecnologia capaz de proporcionar uma razoável taxade emprego, uma população em expansão, no entender desses críticos,poder-se-ia constituir num fator potencialmente importante para arealização do crescimento econômico.

Cremos nós que o argumento é de quilate discutível, pois asituação de subdesenvolvimento, em grande parte, alicerça-se nessedomínio do capital oriundo dos países centrais da economiacapitalista. Continuamente estamos assistindo à instalação, em largaescala, de filiais de empresas desses países nos subdesenvolvidospopulosos sem que isto, nem sempre, produza os resultados positivosesperados no tocante ao processo de crescimento econômico. Nomais das vezes o que se tem criado é uma relação de dependênciaeconômica e mesmo política dos subdesenvolvidos para com oscapitalizados. E como, normalmente, a longo prazo, há umatransferência de renda do país que recebe o capital, para o de origemdo mesmo, essa aplicação de capital pode,às vezes, se constituir numverdadeiro presente de grego. É bem verdade que, possivelmente,quem pensa nesse tipo de solução, encara-a como provisória, supondoque, aos poucos, diminua sensívelmente o crescimento populacional,

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já que esta é uma tendência universal em todas as sociedades urbano-industriais.

Os neomalthusianos, ainda, são criticados pelos natalistas pelofato de ficarem muito presos aos aspectos matemáticos do problemadescuidando exageradamente dos sociais e políticos. Afinal, a questãonão se resume a uma divisão do produto interno bruto pela populaçãopara saber a quanto montaria a renda “per capita”. De fato,freqüentemente, eles tomam os recursos como fixos, como o fezMalthus. Ou seja, tendem a partir da suposição de que os recursosnaturais e, de certa forma, o capital, são relativamente fixos. Nestestermos, é claro, a variação da população é que sobretudo fixaria ascondições para que um país fosse rico ou pobre. Conseqüentementeaquela teria que ser manipulada. Isto, de certa forma, significadesconsiderar o papel exponencial do trabalho na criação da riquezamaterial. Não se deve exagerar no entanto, em tal tipo de crítica,pois seríamos injustos para com os neomalthusianos se ignorássemosque eles se preocupam com a relação entre a populaçãoeconomicamente ativa e a inativa e com a qualidade dessa população(em termos de qualificação, escolaridade, hábitos de poupança,valorização do trabalho etc.).

IV – CRESCIMENTO POPULACIONAL, DESEMPREGOE TECNOLOGIA.

Examinando-se com atenção os argumentos de ordemeconômica antinatalistas e considerando, por outro lado, aespecificidade do problema conforme o país e o momento histórico,percebemos que as relações entre tamanho da população, empregoe crescimento econômico não são invariáveis. Elas dependem daexistência de outras condições econômicas, sociais e políticas, comoexistência ou não de terras pouco cultivadas, das possibilidades deacesso a elas, de capital, do estado das relações entre as váriasclasses sociais, da cultura, do grau de educação formal da população,do regime político e assim por diante.

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Em primeiro lugar, de uma perspectiva histórica, um economistacomo Albert HIRSCHMANN, por exemplo, entende que “as pressõesdemográficas têm sido parte integrante do processo de crescimentode todos os países que hoje são considerados economicamenteavançados”. No entanto, para que esse processo ocorra, é precisoque sejam também utilizadas as técnicas cada vez mais produtivas,sem o que a renda e o produto nacionais teriam expansão apenasvegetativa. A utilização dessa tecnologia exige, entretanto, um montantede capital crescente por emprego criado. No caso dos paísessubdesenvolvidos, como já se disse, o desenvolvimento tecnológiconão guardou uma estreita relação com a disponibilidade de mão-de-obra, por razões que não nos cabe aqui analisar. Como resultado, emmuitos deles, apesar, às vezes, de uma enorme expansão da produção,a absorção de mão-de-obra tem sido inferior ao ritmo de crescimentoda população em geral e da urbana em particular. Ainda que grandenúmero de autores e mesmo organismos internacionais profliguem aadoção de tal tecnologia alegando que ela implica no usodesproporcional de um fator de produção escasso nesses países (ocapital) em face da grande disponibilidade dos fatores trabalho erecursos naturais, a solução tanto pelo lado da tecnologia como peloda população não é fácil. Pareceria, à primeira vista, que o dilema seresolveria pelo lado da tecnologia, adotando-se, por exemplo, umatecnologia intermediária, já que a manutenção de uma atrasadasimplesmente condenaria o país à estagnação. É fato que em algunssetores (pois não é possível generalizar), ela poderia ser adotada, demodo que fosse mínima a redução de emprego e máximo o rendimentodo capital.

Freqüentemente, contudo, e repetindo o argumento, os quedefendem esse tipo de solução não consideram um aspecto básico:que nos países que deveriam adotá-la predomina o sistema capitalistade produção. Isto significa, entre outras coisas, que a escolha datecnologia não é exatamente um assunto de alçada do governo,embora nele possa interferir. De fato, no geral, são os própriosempresários que decidirão, e o farão tendo em conta condições muito

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concretas. O economista Jan TINBERGEN, há muitos anos, notavaa respeito que, mesmo que um país em desenvolvimento possuaexcesso de mão-de-obra, a tecnologia moderna pode vir a ser apreferida por uma série de razões, inclusive coisa como a existênciaou não de mão-de-obra qualificada, sua rotatividade, o tipo delegislação trabalhista existente, a freqüência de greves, o tamanho domercado, as previsões quanto a mudanças na demanda etc. Como aopção por uma dada tecnologia, portanto, não se faz de uma formatão fácil como sugerem muitos autores, outros, colocando-se numaperspectiva diferente, julgam que solução melhor seria interferir dealgum modo no ritmo de crescimento populacional. Entendem que seconseguisse reduzi-lo mais rapidamente, antes que os processos deurbanização, de secularização e de racionalização do comportamentoo fizessem, o problema sócio-econômico e político representado peladificuldade de conciliar a criação de empregos (por parte do sistemaeconômico) com o número dos que os procuram seria, pelo menosparcialmente, enfrentado.

A respeito do assunto focalizado, o que podemos dizer comcerteza é que não há soluções iguais para todos os países. Oproblema varia de um para outro e mesmo de uma região paraoutra dentro do mesmo país. Não podemos comparar a Índia como Brasil nem o Nordeste com São Paulo. Não se pode generalizarindevidamente, desconsiderando-se as especificidades de cadasituação: a estrutura social, as condições políticas, o sistemaeconômico, os recursos naturais etc. Exemplificando: os problemassão diferentes, do ponto de vista de criação de empregos em face douso desta ou daquela tecnologia, até mesmo se se trata de populaçãoconcentrada na região urbana ou de população rural. É que, no casodesta última, podem ser exigidos relativamente poucos investimentospara que ela se torne mais produtiva, dependendo do sistemaeconômico de que se trata. Na verdade, a preocupação maior com acriação de empregos para a população citadina está relacionada,em boa parte, segundo entendemos, com o fato de que os problemaseconômicos, sociais e políticos que surgem, quando aqueles faltam,

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afetam mais diretamente os segmentos afluentes da sociedade osquais, em toda parte, tendem a se concentrar nas zonas urbanas. Noentanto, a urbanização sociopática pode ser, simplesmente, umadecorrência da não solução da mesma questão do emprego no meiorural, em momentos anteriores. No mais das vezes, a migração rural-urbana acelerada vincula-se ao não encontro, pela população rural,de condições de existência minimamente satisfatórias em seu meio.Ou seja, ela é antes expulsa por esse meio do que propriamente atraídapela cidade, ainda que tal atração seja, igualmente, uma motivaçãopoderosa para que ela se ponha em movimento. Sendo assim, nãoresta dúvida, segundo julgamos, que, realmente, o uso de umatecnologia menos poupadora de mão-de-obra no setor primário daeconomia poderia ser em muitos países, mesmo capitalistas, umasolução viável para o problema de um temporário excesso de populaçãoem face das possibilidades de absorção de mão-de-obra oferecidaspelo sistema econômico. Não devemos, contudo, acreditar em soluçõesfáceis. Se uma dada tecnologia é adotada, é porque ela se mostroumais conveniente para os proprietários dos meios de produção, gerandomais lucros. Seria infantil querer que tais proprietários utilizassemuma tecnologia de trabalho intensivo, na agropecuária, se as condiçõesde mercado indicam o contrário. Por exemplo, um trator, ainda quecaro, e de manutenção dispendiosa, pode substituir um tal número detrabalhadores, que seu uso se impõe.

É preciso que se diga, porém, a respeito de muitas dasinvestigações e ensaios produzidos no tocante às questõesabordadas, que esses trabalhos, inúmeras vezes, padecem do defeitode tentar reescrever a história e a política econômica do país. Nadaadianta, é evidente, mostrar como teria sido diferente o rumo dosacontecimentos se outras medidas tivessem sido tomadas nopassado, se ficarmos apenas nesse nível de crítica. O que importa ébuscar as raízes históricas dos problemas atuais para delas tiraralgumas ilações válidas para o presente. Cremos, por exemplo, quese pode mostrar quão negativa é para as próprias classes dominantesa tomada de decisões, no âmbito da política econômica, visando quase

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que exclusivamente o curto prazo; é que elas podem implicar na criaçãode conseqüências futuras danosas para essas mesmas classes. Assimseria o caso de uma política econômica que não tivesse atentado paraa geração do desemprego, ao estimular o uso de uma dada tecnologia.

É fato que os empresários se voltam fundamentalmente paraseus interesses imediatos, centrados na possibilidade de obtenção domaior lucro possível no menor espaço de tempo. Como classe,entretanto, seus objetivos são mais amplos. Ora, uma das funções datecnocracia estatal é exatamente fazer-se consciência crítica dosistema, constituindo-se em guardiã desses objetivos, antecipandosuas conseqüências futuras das ações presentes e atuando de modoa que os mesmos objetivos continuem a ser atingidos. Nesse sentido,pode-se perfeitamente discutir uma reorientação da políticaeconômica de tal ordem que estimule a criação de empregos. Issode um lado; de outro se pode discutir, igualmente, as conseqüênciaseconômicas, sociais e políticas de se adotar uma política defavorecimento da contracepção. Em certas circunstâncias, algo poderiaser adotado de ambas soluções parciais (planejamento familiar e usode uma tecnologia intermediária). Só as condições concretas, em cadamomento histórico, dirão de sua oportunidade.

A reconstrução histórica nos mostra que tanto o capital nacionalcomo o multinacional viram na grande oferta de mão-de-obra umaextraordinária vantagem relativa. O que deixaram de considerar éque a adoção de uma tecnologia mais ou menos sofisticada teriatambém conseqüências nos níveis social e político, além do econômico.Nesta altura dos acontecimentos, as tensões sociais e políticas,representadas pelo excesso de desemprego e subemprego, tornam-se politicamente perigosas. Daí a reação de muitos desses interesses,como se disse, no sentido de favorecer o planejamento familiar emesmo o controle de natalidade. Mas isto não significa que os própriossegmentos sociais envolvidos negativamente na questão não possamtambém ser, de uma forma ou de outra, beneficiados por uma políticade favorecimento da contracepção. Sobre a questão discorremos maisadiante.

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V – PLANEJAMENTO FAMILIAR E MUDANÇA SOCIAL.

É evidente, pelo que já expusemos, que tanto os favoráveiscomo os contrários ao planejamento familiar estão se posicionandofrente a aspectos do processo de mudança social que lhes parecemrelevantes. Pode-se dizer que o debate se sofisticou. Recordemo-nosde que, num passado recente, se defendia o crescimento demográficosob o argumento, por exemplo, de que havia grandes vaziosdemográficos a serem ocupados ou porque Deus havia ordenado aoshomens que crescessem e se multiplicassem. De um lado, hoje ficouclaro que a ocupação de vastos territórios é muito mais uma questãode capital e de técnica do que se supunha. É que a criação de umainfraestrutura representada por estradas, pontes, armazéns, máquinasetc. implica em tão vultosos investimentos que, às vezes, apenas oEstado tem condições de realizá-los. De outro, a crescentesecularização do comportamento e da cultura fez com que o discursoda Igreja Católica a respeito de relações sexuais e de uso de medidasanti-concepcionais se tornasse algo ultrapassado, mesmo para seusfiéis.

Aparentemente estaríamos em face de um embate entreconservadores e “mudancistas”, embora, em outros níveis do social,as posições possam ser exatamente inversas. Assim, os que sãocontrários a qualquer tipo de alteração nos valores e noscomportamentos tradicionais que dizem respeito à decisão de ter ounão filhos, constituiriam, segundo parece, os conservadores. Noentanto, é óbvio que o aumento populacional indiscriminado tem efeitosimportantíssimos sobre o sistema social, incluindo as esferaseconômica e política. Conseqüentemente, entre os que adotam essaposição, embora alguns possam de fato ter em mente a manutençãode um dado estado de coisas, outros estão engajadosideologicamente na mudança. Em termos concretos, ainda quenem sempre conscientemente, todos os contrários à contracepção,dadas as conseqüências sociais do comportamento que apregoam edefendem nesse campo restrito da atividade humana, são

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“mudancistas” (apesar de não necessariamente progressistas). Istoapesar de estarem defendendo a tradição.

Por outro lado, os que são favoráveis ao planejamento familiare, mais ainda, a um controle mais rigoroso do crescimento populacional(tal como se fez na Índia por exemplo), aparentemente se estãocolocando contra a tradição. Eles tentam alterar valores, normas,atitudes e comportamentos no campo da reprodução humana. Muitostambém pretendem, através dessa possível diminuição do ritmo docrescimento populacional, provocar um aumento da riqueza individual,porque seria diminuído o desemprego e o subemprego e facilitada aadoção de uma tecnologia mais produtiva. Eles parecem, pois, ser osdefensores do progresso. Contudo, e isso teremos oportunidade dediscutir mais demoradamente no prosseguimento deste trabalho, omais das vezes, sobretudo do ponto de vista político, eles sãoconservadores. É que sua motivação, freqüentemente, é a de diminuiras fontes de tensões sociais relevantes (desemprego, crescimentosociopático das cidades, criminalidade, aumento da populaçãoeconômica, social e culturalmente marginal, e outros fenômenos tidoscomo se situando na esfera da patologia social), tensões estas quepoderiam redundar em conseqüências políticas prejudiciais para seusinteresses. Temos aqui como que um paradoxo, já que enquanto osentido posto na ação pelos sujeitos situa-se ideologicamente numlado do espectro político, esta ação social, vista em termos de suasconseqüências, pode se situar no outro lado desse espectro.

Apesar de tudo, encarada a questão à luz da experiênciahistórica de vários países, parece-nos que as tentativas deplanejamento familiar, como programa de governo visando reduziro ritmo do crescimento populacional, tiveram efeitos mínimos. Ouseja, como ensaios de mudança social planejada, frustraram-se.Dizemos isto porque as maiores modificações ocorridas nessa áreade comportamento constituem, sobretudo, um reflexo de outrasalterações mais significativas que já se produziram na concepção devida e na visão de mundo da população como um todo ou de segmentosexpressivos da mesma. Se tal visão não tiver sofrido uma alteração

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prévia, pouco ou nada se consegue quando se tenta induzir as pessoasa reduzir sua prole. E se a mudança na concepção geral do mundo eda vida já se operou, de nada adiantarão recomendações, exortaçõese ameaças (como as dos Papas, por exemplo) quanto ao que deveriaser o comportamento “correto” nessa esfera específica do social.

A grande mudança no campo da reprodução humana éespontânea. Independentemente de qualquer programa deplanejamento, tende a diminuir o número médio de filhos quando: a)avança o processo de industrialização e de urbanização; b) se elevao nível educacional da população; c) a secularização da vida socialse torna a regra, dessacralizando-se as representações quanto àposição dos homens nele; d) a racionalização do comportamento seexpande, tornando as pessoas mais propensas a agir tendo em contaobjetivos concretos a serem alcançados mediante ação planejada; e)o processo de individualização avança, fazendo-as cada vez maisinfensas ao estabelecimento de normas de conduta determinadasdiscricionariamente por autoridades de qualquer tipo; f) os meios decomunicação de massa generalizam certos tipos de conhecimento; g)o sistema econômico mais complexo e produtivo põe à disposição dapopulação produtos industriais de consumo e de massa a preçosreduzidos; h) a mulher participa mais decisivamente das atividadeseconômicas e se depara com a possibilidade de realizar projetos devida fora dos limites estreitos do casamento e da maternidade. Emoutras palavras, vários processos convergem, produzindo o resultadoassinalado. A concepção de mundo se altera, aumenta o conhecimentoa respeito dos mecanismos de reprodução e de contracepção, outraspossibilidades são visualizadas pela mulher nessa sociedade emmudança, aumenta o custo econômico de ter filhos nas condiçõesimperantes nas cidades etc. etc.

Talvez o crucial é que, participando mais intensamente da vidasocial e econômica, a mulher pode optar agora por ter menos filhos,inclusive porque estes, ao contrário do ocorria na sociedade tradicional,especialmente rural, deixam de constituir uma espécie de seguro paraa velhice dos pais. Nesse processo de transformação social, os direitos

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humanos básicos passam a constituir um ponto de referência paratodas as sociedades nas quais estão avançando as concepções dejustiça social e de liberdade de decisão. Entre certos segmentos sociaisfoi, pois, se desenvolvendo a noção de que entre esses direitos estavao de poderem as mulheres, legitimamente em termos morais, nãoterem (através da contracepção) gestações indesejadas. Tal direitobásico da mulher acabou, inclusive, sendo reconhecido no âmbito dasNações Unidas. Cada vez se lhe reconhece o direito de exercerplenamente outras atividades que não apenas a de, fundamentalmente,procriadora, e a prerrogativa de por ela não optar desde que tal funçãotolha aquelas outras. Contra tal visão do problema colocam-se gruposreligiosos, especialmente a Igreja Católica. Em nosso entender, essesgrupos calcam-se em valores que poderiam até ser de adesãoobrigatória em outros tempos e situações. Por exemplo, dados oselevadíssimos índices de mortalidade infantil e geral, produzindo comoresultado uma baixa esperança de vida nos séculos anteriores aoRenascimento, é perfeitamente compreensível que se punisse erejeitasse a mulher que se recusasse a conceber. Ou seja, era umamoral válida para outras condições históricas. Mas supor valoreseternos, válidos para todos os tempos e todas as classes sociais é,sociologicamente falando, um contra-senso.

Em favor da atual posição de alguns setores da Igreja Católica,pode-se dizer, entretanto, que deixaram, de lado uma ambigüidadedificilmente sustentável no tocante ao assunto em causa. Referimo-nos ao fato de que essa Igreja, geralmente, repelia qualquer medidaque levasse à contracepção e ao mesmo tempo defendia o “statusquo” no terreno social, político e econômico. Ora, sem mudançassociais, principalmente no campo econômico, era previsível que,dadas as condições em que se estão processando astransformações econômicas no mundo subdesenvolvido, o grandeaumento populacional levasse antes à miséria crescente do que aocrescimento econômico e ao desenvolvimento social. A posiçãodoutrinária em relação à contracepção permaneceu, mas houveum avanço no referente ao social. Pelo menos um Papa anterior

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ao atual, Paulo VI, teve oportunidade de criticar os neomalthusianosafirmando que “o problema do mundo é o de aumentar a quantidadede alimento à mesa e não o de reduzir o número de comensais”. Istoimplica, segundo entendemos, na possibilidade de aceitar reformassócio-econômicas e políticas de certa profundidade.

VI – OUTROS ASPECTOS SOCIAIS DA CONTRACEPÇÃO

Em partes anteriores deste artigo cremos haver mostrado quenão há uma relação unívoca entre crescimento populacional (oufalta dele) e crescimento econômico e desenvolvimento social. Osexemplos históricos serviriam para confirmar qualquer hipótese, oque significa que, isoladamente, a variável população não édeterminante, como nenhuma outra, diga-se de passagem, quandose trata de explicar processos sociais complexos. É a totalidadesocial, a interação do conjunto das variáveis, representadas porcondições sócio-políticas e econômicas, que transformará ou não ocrescimento populacional em alavanca do crescimento econômico.Ou, inversamente, em obstáculo à consecução desse fim, ou aindade outros socialmente valorizados. A respeito dessas relações éinteressante a argumentação de Raymond ARON. Segundo ele, se aadoção de medidas visando à contracepção levasse um país a avançareconomicamente, então a França constituiria, hoje, o primeiro sistemaeconômico do mundo, já que essa prática, por parte de sua população,é secular. No entanto, a França foi economicamente superada porpaíses menos desenvolvidos à época, sobretudo Alemanha. No casodesta, as evidências parecem indicar que seu grande crescimentopopulacional produziu efeitos positivos em sua expansão econômicae no aumento de seu poderio militar.

Este último aspecto, o militar, é freqüentemente invocado comorazão para que a população de um país não pratique o planejamentofamiliar. No passado recente, este era um argumento ponderável, jáque exércitos numerosos, compostos de homens jovens, constituiamum indicador da potência de uma nação. Ainda hoje, apesar de todas

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as transformações que se operaram na tecnologia guerreira, paraalguns países esta é uma variável que merece muita consideração.Assim, muitos deles, com sérias preocupações militares, procuramestimular os casais a terem filhos em maior número, sobretudo quandose deparam com a quase estagnação da população. Foi o caso, entreoutros, da extinta União Soviética e de Israel. Esta, contudo,evidentemente, é uma preocupação limitada a uns poucos países.

Talvez, mais do que todas, as questões de natureza política sãoas mais importantes quando se trata de discutir as conseqüênciassociais (no mais amplo sentido), de estimular ou não uma política delimitação de natalidade. Desde há muito, por exemplo, organizaçõesinternacionais ligadas fortemente aos Estados Unidos parecem temeras tensões sociais resultantes do aumento do desemprego quando apopulação cresce em ritmo elevado, mas não a economia. Como nãopoderia deixar de ser, isto não é afirmado claramente. Aparentemente,a preocupação é sempre com a miséria das populações afetadas ecom aspectos ecológicos. Atente-se para esta afirmação deMacNamara (que foi Secretário da Defesa, no governo Kennedy)numa reunião do Banco Mundial, do qual era Presidente, em setembrode 1969: “O maior obstáculo isolado ao processo econômico-socialda maioria dos povos do mundo subdesenvolvido é o selvagemcrescimento da população desses países. O objetivo final é a elevaçãoda dignidade do homem para habilitá-lo a viver uma vida plena e livre.Para esse alvo final, o desenvolvimento é o meio adequado. Todavia,taxa alguma de desenvolvimento pode sobrepor-se à proliferaçãoindiscriminada da população em um planeta limitado”.

Da mesma forma, muitos dos grupos políticos de esquerda sãocontrários a qualquer restrição ao crescimento populacional. Amotivação subjacente é a de que as pressões populacionais constituemum fator que poderia levar a transformações políticas de monta.Cremos, pessoalmente, que esta constitui uma visão errônea doproblema de mudança social, embora um autor como Sartre, em suainterpretação das causas da revolução cubana, tenha entendido queuma das razões de seu sucesso radicou no fato de que a população

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jovem do país não estava encontrando empregos sob o regime deposto.É preciso porém que se diga também que esses grupos rebelam-secontra o fato de se negar à população carente outros direitos básicos,como, por exemplo, o direito ao trabalho e a uma vida decente,considerando a excessiva atenção dada à questão do planejamentofamiliar uma técnica política diversionista por parte das classesdominantes. Crêem que a solução correta de qualquer crescimentomais ou menos explosivo da população está na promoção dodesenvolvimento econômico e social, como historicamente se temverificado.

VII – CONCLUSÕES.

Parece-nos ter ficado evidente, depois da exposição anterior,que dificilmente se consegue resolver problemas sociais, políticos eeconômicos de certo vulto através do planejamento familiar. Embora,em interação com outras medidas, ele se possa constituir numinstrumento de combate à miséria em que vive a maior parte dapopulação mundial, isoladamente considerado representa uma medidaapenas paliativa. Não há dúvida que quando um país se desenvolvesocial e economicamente, o planejamento familiar passa a ser postoem prática por um número crescente de pessoas. Preocupar-se tão-somente em adotar uma política de limitação de nascimentos,recusando-se a realizar mudanças político-econômicas substantivas,é, conseqüentemente, uma política quase anódina das classesdominantes tanto dos países desenvolvidos como dos emdesenvolvimento, se com isso pretenderem diminuir as tensões sociaise mesmo promover o crescimento econômico. Desde que o problemacomporta variadas facetas, cremos que a maioria dos argumentosapresentados por natalistas e antinatalistas são, sobretudo, tentativasde “racionalização”.

Por outro lado, julgamos eticamente pouco defensável aposição de negar à população carente, marginalizada social, econômicae culturalmente, os conhecimentos e os meios para praticar a

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contracepção, desde que as mulheres (e também os homens) dessessegmentos sociais assim o desejem. Em muitos casos, são as mulheresdesse meio social o sustentáculo econômico de suas famílias. São porisso obrigadas, por vezes, a fazer um cálculo econômico entre ter ounão filhos. Mas permanece correta a descoberta de KUBAT eMOURÃO, num estudo levado a efeito em Osasco para determinaro número ótimo de filhos desejados pela população, de que apreocupação com o assunto está diretamente relacionada ao domínio,por parte dos cônjuges, de outros componenetes do ambiente social.Quem não sabe se vai ter trabalho e alimento amanhã, não planeja onascimento de filhos. Independentemente, porém, do estabelecimentode relações entre crescimento demográfico e quaisquer outrasvariáveis, entendemos que a decisão de engravidar ou não é umadecisão que diz respeito primordialmente à mulher e ao seu parceiro,cônjuge ou não. O interesse no assunto por parte de outrospersonagens (sejam eles profissionais, padres ou políticos) deve sersobretudo acadêmico, ainda que possam, em suas respectivas esferasde atividades, contribuir para que se efetive o direito da mulher deconceber ou não segundo seu desejo.

RESUMO

O autor discute criticamente alguns argumentos de naturezaeconômica, social e política favoráveis e contrários a uma política deregulação da fertilidade de modo a reduzir as taxas de crescimentopopulacional. Procura explicar mudanças nas posições do governobrasileiro a respeito. Entende que os debates têm,compreensivelmente, caráter profundamente ideológico. Discorremais amplamente sobre os argumentos de ordem econômica próe contra o planejamento familiar. Examina as possibilidades deaumentar as taxas de emprego através do uso de tecnologia menospoupadora de mão-de-obra como uma solução alternativa às tentativasde redução do ritmo de crescimento populacional. Encara estastentativas de regular a fertilidade como uma experiência de mudança

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social planejada e julga-as frustradas, tendo em conta os exemploshistóricos. Considera ainda alguns outros aspectos do problema, comoo político. Conclui que as relações entre população e processos sociaiscomplexos como o crescimento econômico e o desenvolvimento socialvariam historicamente e de um país para outro. Julga o planejamentofamiliar um instrumento pouco efetivo no combate à miséria. Contudo,crê que pôr à disposição da população conhecimentos e meios parapraticar a contracepção constitui um dos deveres do Estado moderno.Isto porque entende que é um direito básico da mulher decidir sedeseja ou não ter filhos.

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4. SOBRE METODOLOGIA

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4.1. CIENTIFICISMO “VERSUS” IDEOLOGICISMO*

Pelo cientificismo do título não quero me referir apenas à crençaexagerada nos resultados da ciência, definição à qual frequentementese referem os dicionários. Pela expressão quero me referir,especialmente, a um certo dogmatismo no modo de entender o fazerciência. Esta visão enraiza-se na crença, em princípio correta, de quenão há (ou de que não deve haver) pré-juízos na ciência. Em facedisso, foram criados preceitos de como evitar os vieses a que oinvestigador poderia ser levado, se não controlasse seus preconceitose prenoções. Isto pode significar, contudo, às vezes, realizar ainvestigação sem praticamente ter um marco teórico. Assim, a decisãode o investigador ater-se única e exclusivamente aos fatos implicaem certas consequências para as quais é preciso atentar.

Lembremo-nos de que o positivismo postula, depois de oinvestigador ter obtido os fatos, que ele busque as possíveisrelações entre eles. Em seguida seria procurada uma explicaçãopara tais relações. Só em último lugar é que se poderiageneralizar o conhecimento adquirido, extrapolando-o paraoutras situações que se apresentassem de modo igual ouassemelhado. Notemos, porém, que ao estabelecer uma inteirasubmissão aos fatos, o positivismo, frequentemente, apenastransforma as normas dominantes na sociedade, em orientadorasda maneira “científica” de ver o mundo. Isto porque é evidenteque só vemos aquilo para o qual fomos treinados (socializados)para ver, deixando de lado, geralmente, tudo o que não estejadentro dos limites de nossos estreitos interesses. Assim, para dar um

* Publicado originalmente em Medicina, vol. 15, nº 4, outubro-dezembro de 1982.

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exemplo primário, o homem rural e o citadino vêem diferentemente anatureza. Da mesma forma o cientista. Ele seleciona o que pretendever em função de suas preocupações e, dependendo de sua maneirade interpretar o mundo, verá uns fatos e não outros, buscará pesquisaruns temas e não outros, e assim por diante, Em suma, ninguém parterealmente das observações dos fatos para buscar relações entre eles,e sim de hipóteses a respeito de relações. Ocorre que se o investigadornão tiver um marco teórico suficientemente abrangente para darsentido às relações que encontra, ficará quase sempre no níveldo observado, da aparência, sem chegar a entender o porquêdas relações encontradas. Por isso é frequente, na história daciência, um erro persistir porque a concordância nos resultadosobtidos pelos vários pesquisadores foi uma decorrência de seuspreconceitos comuns.

Não só ninguém, de fato, parte dos fatos, como preconiza opositivismo, como, se ficar apenas adstrito às observações, semfazer uma crítica do que elas representam, chegará a conclusõeserrôneas. Isto é muito comum no caso de investigação de fatos sociaisbaseada nas verbalizações dos sujeitos a respeito do assuntoinvestigado. Se, numa pesquisa, perguntamos às pessoas algo, podeacontecer várias coisas em termos da resposta dada: 1) elas dizem oque é de seu interesse dizer, se têm alguma coisa a ver com o resultadoalcançado (é o caso de se perguntar ao acusado sua versão dos fatos);2) dizem o que supõem que o entrevistador vai querer ouvir: 3) dizemo que fazem, pensam e sentem. Mesmo neste último caso, o quetemos é uma descrição do que as pessoas julgam que fazem, senteme pensam, mas não o que de fato acontece na realidade. Para dar umexemplo: o mais da vezes as pessoas manifestam em suasverbalizações os valores positivos existentes na sociedade em quevivem. Assim, se perguntarmos a elas, em nossa sociedade, seacreditam em Deus, se rezam e se vão à igreja, tenderão a darrespostas positivas por serem estes valores correntes entre nós. Sóque, se formos aos templos verificar diretamente o número de fiéispresentes, encontraremos outro resultado.

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Se o cientificismo apresenta estes e outros variados defeitos,não é menos verdade que o “ideologicismo” apresenta outros tantos,só que numa direção oposta. É que, de tanto submeter os dados auma interpretação ideológica, acaba, por vezes, encontrando nelessignificados diferentes daqueles que de fato possuem. Por vezes, oviés “ideologicista” vai mais longe, confundindo, pura simplesmente,ideologia com ciência. Neste caso, as formulações falsamente teóricaspredominam, no sentido de se partir de pressupostos mais ou menosfalsos, construir um edifício logicamente correto e, no momento defazer o confronto do modelo abstrato com a realidade, se esta não seadequar a ele, entender que está havendo um erro de observação. Oviés “ideologicista” tende a não se preocupar muito com os dados emsi e sim com sua interpretação. Frequentemente, constrói-se ummodelo e procuram-se os exemplos empíricos que contribuam paravalidá-lo, sem consideração pelos fatos que não confirmam a hipótese.

Não é preciso, para exemplificar o que estou dizendo, recorreràs falsidades perpetradas em várias áreas das ciências humanastanto por fascistas como por comunistas sobretudo de linha stalinista.Podemos nos restringir à própria medicina. Não desenvolveuParacelso a teoria da signatura plantarum segundo a qual haviauma analogia entre a forma dos vegetais e os órgãos humanos,indicando aquela a possibilidade de cura de enfermidades queafetassem estes? Não foi tal teoria aceita durante séculos por pelomenos uma parte dos médicos? Esteve igualmente em voga, tambémpor séculos, a teoria miasmática. Por outro lado, a prática do banhoera vista como malsã, sobretudo na França dos séculos XVII e XVIII.Nesse tempo um sujeito odorífero era tido como cheio de vigor. Muitosmédicos achavam que especialmente o banho quente abria os porosexpondo o corpo aos perigos do mundo exterior. Exageros no sangrar,aplicar enemas, fazer vomitar e suar foram tratamentos padrões tidoscomo científicos até meados do século passado. Também aceita emmuitos círculos científicos durante décadas foram as teorias deLombroso.

Do que não se dão conta muitos dos que se apegam a um

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exagerado “ideologicismo” é que a subjetivação da objetividade namente do investigador pode alterar esta última a tal ponto que atransforma simplesmente em outra coisa. O fato de se admitirque os objetos não são tão uniformes e simples, como supõemos positivistas ingênuos, não autoriza o cientista a transformá-los em algo mais ou menos estranho à sua natureza. Esses“ideólogos” às vezes também não percebem que as idéias dequem quer que seja, e não só as dos outros, tendem a expressar,ainda que de um modo incompleto, as relações sociais nas quaisestá inserido aquele que as têm.

O viés a que estou fazendo referência ainda ocorre, muitasvezes, também quando da interpretação de acontecimentos históricos.Estes, fundamentalmente, são balizados pelo tipo sócio-econômicodominante. Assim sendo, a ação dos agentes do processo histórico,ou sua vontade de alterar os rumos deste, dificilmente se traduzirãonum desvio de rota suficientemente significativo, ainda que influamsobre o acontecer histórico. Em outras palavras, os homens fazem ahistória no sentido de que seu querer influi, ainda que esse quererseja, o mais das vezes, condicionado e mesmo determinado pelaestrutura social na qual vivem. O viés a que estamos fazendoreferência, ocorre, por vezes, no sentido de se partir de um resultadohistórico e se supor que os homens que atuaram no processo o fizeramde modo a obter exatamente aquele resultado.

Da maneira como as coisas são colocadas, concluiríamos queos grupos e camadas sociais dominantes, individual e coletivamente,teriam uma racionalidade excepcional, pois seriam capazes de planejardesdobramentos e desenvolvimentos da economia, da política,da ciência, etc. a fim de alcançar, precisamente, aquele resultado.Ora, a história é um constante devenir, um constante vir-a-ser, emque as transformações operadas nem sempre (melhor, dificilmente)foram pensadas antecipadamente desse modo pelos agentes sociaisenvolvidos. O que acontece é que esses agentes têm projetos quepodem ser errôneos ou incompletos quanto à compreensão do real,mas, na tentativa de pô-los em prática, eles alteram a realidade. Essa

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alteração acaba modificando o projeto, o qual, outra vez, quando datentativa de sua consecução, altera a realidade, e assimsucessivamente. Como as várias classes sociais, e suas frações, têmpropósitos vários, complexos e mesmo contraditórios, o resultado finaldificilmente pode ser tido como obra pensada de um conjunto deatores. Isto não significa que o investigador não possa atribuir, “aposteriori”, funções a determinados atos e processos que não tinhamesse significado inicialmente e que passaram a ter no decorrer doprocesso, ainda que os participantes não tivessem tido consciênciaclara disso.

Terminando, é preciso advertir que, de modo algum, é meupropósito negar os extraordinários avanços ocorridos no conhecimentocom o advento da ciência moderna. Apenas chamo a atenção paraalgumas questões freqüentemente negligenciadas pelos cientistas.Talvez a ciência, ainda que socialmente determinada, seja a únicacriação humana capaz de levar à apreensão de fatos objetivos e aoestabelecimento de relações reais entre eles. No entanto, fazer ciência,como dizia Simiand, sociólogo francês do início do século, implica emnão colecionar fatos sem teoria, nem em construir teorias sem estaremalicerçadas em fatos. O difícil, freqüentemente, é conseguir a justamedida, sem os excessos tanto do “cientificismo” como do“ideologicismo”.

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4.2. O ESPECÍFICO E O GERAL NA CIÊNCIA *

Os cientistas de uma área, com bastante freqüência,desconhecem as características distintas que a ciência assume emoutras. Essas diferenças são marcantes sobretudo quando secomparam as ciências físicas e naturais, de um lado, e as sociais, deoutro. Não só os universos que investigam diferem muito: tambémsão distintas as relações entre sujeito e objeto numas e noutras, assimcomo o tipo de explicação. Isto leva a críticas mútuas relativamentesem sentido. Por exemplo: é comum os cientistas sociais acusaremos que atuam no âmbito das ciências físicas e naturais de realizaremum trabalho alienado, que seria o resultado da introjeção dadependência pelos mesmos. Eles se preocupariam com temas etécnicas que só teriam sentido para os países capitalistas desenvolvidos.Desse modo, transformar-se-iam em ponta-de-lança do colonialismocultural, introduzindo, entre nós, técnicas e métodos de trabalho emdesacordo com os interesses nacionais. Seu trabalho, nesse caso,constituiria uma outra forma de drenagem de recursos dos paísesperiféricos para os centrais do sistema capitalista. Entende-se, defato, em largos setores intelectuais, que o desenvolvimento de unspaíses só foi possível, e ainda é, em decorrência, em grande parte, daespoliação de recursos materiais e humanos de que foram (e são)vítimas os países atualmente subdesenvolvidos.

Por outro lado, são também freqüentes as críticas por partedos que militam nas ciências físicas e naturais aos cientistas sociais.Muitas vezes eles os censuram porque, em sua opinião, estes

* Publicado originalmente em Ciência e Cultura, 36(9): 1569-1570, setembro de1984.

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tenderiam à realização de uma ciência nacional. Isto se lhes afigurariapouco defensável, dada sua visão internacionalista de ciência.Pareceria a eles que a ciência dos segundos, igualmente, estaria pordemais eivada de influências ideológicas (supondo ou não apossibilidade de alguém ser inteiramente isento de influxos desse tipo,os quais, normalmente, não chegam ao nível da consciência, inclusivepor serem parte, às vezes, das próprias normas da comunidadecientífica). Em ambos os casos, cremos que existe grande confusãoquanto à compreensão do significado do trabalho científico levado acabo pelo outro lado. Senão vejamos.

Os cientistas da natureza geralmente não entendem que osfenômenos e processos estudados pelas ciências sociais sãohistórico-sociais. Ou seja, que o seu objeto não é o mesmo sempre,que não é natural, já que foi construído pelos próprios homens, aoestabelecerem entre si relações que dependem quase exclusivamenteda correlação de forças sociais, políticas e econômicas,especialmente a partir do momento em que a humanidade saiu dahomogeneidade primitiva e começaram a existir divisões de algumtipo entre eles. De seu lado, os cientistas sociais não entendem, muitasvezes, como os interessados nas ciências da natureza podem tratarseus objetos como se fossem destituídos de historicidade, fazendogeneralizações sem referência a condições concretas bemdeterminadas. Isto é, eles às vezes atribuem especificades históricasa objetos que, por serem físico-naturais, nenhuma influência sofreramou sofrem da atividade humana. O que está em jogo aqui é que unsse voltam para o que é específico e outros para o que é geral. Parauns a explicação só pode ser obtida a partir do estabelecimento dediferenças, enquanto que, para os outros, o fundamental está na buscade uma lei geral que esteja além de uma diversidade que seria apenasaparente.

Estas diferenças decorrem das próprias característicasdistintivas dos sistemas (ou universos) para os quais se voltam os doistipos de ciência. No caso das ciências naturais, supõem-se que osfenômenos e processos que estudam ocorrem em sistemas (naturais

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ou físicos) homogêneos, contínuos, estáveis, a-históricos, variandosegundo forças intrínsecas que obedecem a leis gerais que existiriampara todo o sempre (embora possam ainda não estar descobertas).Sendo homogêneos (sobretudo no sentido de suas partes serem nãoconflitivas), permitiriam, inclusive, seu estudo através da redução dosproblemas a varíaveis mais simples, a fim de serem submetidas auma análise das relações quantitativas entre elas. Já os sistemas sociaissão bastante diferentes por serem as sociedades humanas históricas,instáveis, abertas ao exterior (uma sociedade recebe influências e semodifica sobretudo através de fatores externos), conflituosas e mesmoantagônicas nas relações internas que são estabelecidas entre osgrupos que as compõem (classes sociais, por exemplo), com unidadesparticipantes (o ser humano) dotadas de volição (o que não é o casodos átomos ou células) e que realizam ações com significado tantopara si como para os outros. Além do mais essas sociedades sãodescontínuas no espaço (embora cultura e normas sociais possamser transpostas de um lugar para outro muito distante) e no tempo (nomesmo lugar geográfico, por sua vez, podem ter existido culturasbastante distintas).

Um universo (o físico e o natural) independe da existênciae das ações dos homens, enquanto o outro só existe porque foicriado por eles através das reações mútuas que estabeleceram.Conseqüentemente, as relações entre sujeito e objeto são muitodiversas num tipo e outro de ciência. Nas histórico-sociais eles são osmesmos (o sujeito está contido no objeto), enquanto nas da naturezaeles são estranhos um ao outro. As ciências sociais procuram maisdo que conhecer, compreender os fenômenos que estudam, situando-os em suas caracterísitcas específicas. As segundas (físico-naturais)voltam-se para o estabelecimento de relações causais gerais, nãohavendo necessidade de compreendê-las (busca de sentido) comoquando se trata de ações e relações sociais. Daí resulta a tendênciados formados cientificamente no âmbito das ciências físicas e naturaisde buscarem o que é geral, enquanto os cientistas sociais tendem àdeterminação das diferenças, que, para eles, são as realmente

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explicativas, já que o universo com que lidam tem aquelascaracterísticas citadas de descontinuidade, ocorrendo os fenômentose processos estudados em realidades históricas, tornando a referênciaao lugar e tempo específicos indispensáveis na explicação.

Outra diferença que decorre disso é quanto ao modo de encarara própria realidade. Os cientistas físico-naturais tendem a crer que osatributos que examinam são inerentes à realidade mesma; eles seimporiam ao sujeito que investiga, ao qual caberia simplesmentereproduzi-los o mais fielmente possível para fazer boa ciência. Nocaso dos cientistas sociais (embora não seja o caso de todos), seentende, por vezes, que a realidade, na verdade, é ordenada segundoos interesses do investigador. Haveria distintas perspectivas, a visãodo problema se alterando radicalmente se se adota uma ou outra.Esta segunda maneira de encarar as relações entre o sujeito e o objetoleva à convicção de que a ciência só é possível porque os investigadorestêm um determinado ponto de vista, a partir do qual ordenam a realidadee a tornam inteligível. Já os cientistas físico-naturais tendem geralmentea crer que o objeto é que se impõe ao sujeito, sendo, portanto, limitadasas possibilidades (ou se reduzindo, no limite, a apenas uma) deexplicações. Devemos dizer, no entanto, que discordando da visãoestritamente positivista ou subjetivista, há a dialética, segundo a qualhá uma ação recíproca entre sujeito e objeto, ambos se construindomutuamente. Tais diferenças poderiam ser explicadas pelo fato deque as ciências físicas e naturais, normalmente, têm um únicoparadigma, concordando com eles os cientistas que nelas trabalham(são raros os deslocamentos de um por outro, como foi o caso emque a física de Einstein substituiu em grande parte a de Newton). Emse tratando das ciências sociais não há esse consenso porque eleimplicaria em que todos os que nelas trabalham teriam a mesmaconcepção geral do mundo e da sociedade. Isto nos parece impossívelem razão mesmo dos conflitos e antagonismos existentes na sociedade.

Traçamos um painel limitado das diferenças existentes entreos dois tipos de ciência. Além do mais, ele foi feito por alguém quemilita na área das ciências sociais, o que pode introduzir algum viés

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quanto à interpretação das caracteríticas das ciências físico-naturais.No entanto, cremos que ele é suficiente para chamar a atenção paraa necessidade de realizarmos uma certa rotação de perspectivas paraentender os problemas dos campos de estudos alheios. Ao criticar apostura dos “outros” seria conveniente que nos colocássemos primeiroa questão de saber até que ponto podemos generalizar nossos própriospontos de vista sobre a ciência (por exemplo, a respeito da publicaçãonacional ou internacional dos resultados). Se a área alheia possuirespecificidades, só conhecendo-as compreenderemos o porquê decertas posturas “científicas” daqueles que a cultivam.

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5. SAÚDE E POLÍTICACIENTÍFICA,

TECNOLÓGICA EEDUCACIONAL

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5.1. SOCIEDADE E EDUCAÇÃO MÉDICA*

Em termos mais gerais, a educação contribui para o processosocializador. As instituições educacionais procuram inculcar noseducandos aqueles valores, normas, atitudes, comportamentos etc.que são comuns à cultura da sociedade em questão. A educaçãotem, assim, um papel homogeneizador. Devemos considerar, noentanto, que as sociedades complexas são sempre segmentadas devários e diferentes modos, apresentando diversas subculturas, de modoque existem também diversos sistemas educacionais, de acordo comesses meios sociais variados. Sob essa ótica, o papel social que asociedade atribui à educação é conservador. Ela funciona como umdos principais processos de controle social. Entendendo-se educaçãocomo produto da vida social, é difícil pensar-se em moldar a sociedadea partir dos sistemas educacionais, o que não impede que se possapensar a educação como um agente de mudança social.

De qualquer forma, o sistema educacional tende antes a sofrero impacto das transformações sociais do que a ser esse agente. Háuma espécie de demora cultural no caso das instituições educacionaisem relação ao que se passa no sistema social global. Mais ainda, ossistemas educacionais da maioria dos países tem uma históriapregressa, de modo que eles próprios dificilmente também podempassar por modificações drásticas. Sua história, suas tradições,constituem uma realidade viva, de modo que qualquer mudança quese imagine no aparelho formador de profissionais, por exemplo, nãopode supor que se possa partir da estaca zero, ainda que existam

* Palestra proferida no “Seminário sobre o Ensino Médico na FMRP-USP”, realizadode 26 a 30 de maio de 1980 . Publicada originalmente em Medicina, 12 (3 e 4):17-19, 1980.

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modelos muito melhores. Os mortos, de certo modo, sempre guiamos vivos, o que não significa que não nos possamos subtrair a essadireção. Também o futuro pode ter grande influência na orientaçãodo presente. De fato, mais e mais a idéia que se faz do futuro, osplanos existentes em relação ao mesmo, contribuem para que opresente seja moldado de acordo com essa idéia, com esses planos.

Encarando as relações entre sociedade e educação sob osaspectos abordados até aqui, fica claro que, com referência àformação de profissionais, em nosso caso o médico, o que os grupossociais, econômica e politicamente dominantes esperam é que elessejam formados de acordo, sobretudo, com as necessidades do sistemaeconômico. Em termos realmente societários, a idéia norteadora é deque sejam formados de acordo com a realidade nacional na qual essesprofissionais vão agir. É uma idéia inegavelmente correta, mas,infelizmente, incompleta, porque não é fácil definir-se a realidadenacional na qual tais profissionais vão atuar e, principalmente, a queinteresses estarão atrelados, mesmo contra sua vontade, uma vezformados.

Qual é, de fato, a realidade dos paises subdesenvolvidos? Arealidade é que são países economicamente dependentes, às vezestambém politicamente, mas o que, talvez, seja o mais grave,culturalmente dependentes. Ora, uma das manifestações dadependência cultural é o desenvolvimento de mentalidadesigualmente dependentes (PARDO, s/d.) no sentido de boa parte daspessoas desses países tenderem a considerar sua própria sociedadecomo possuindo uma cultura inferior comparativamente ao paradigmaque porventura elas tenham. Em consequência, sua criatividade,frequentemente, visa ajustar o sistema de formação profissional deseus países aos padrões tecnológicos vigentes na sociedade tomadacomo modelo. É evidente que seria um contra-senso rechaçar atecnologia dos países desenvolvidos pelo simples fato de que sejaestrangeira. O que se repele é a escolha da mesma em desacordocom as necessidades societárias reais do país dependente.

Não tendo em conta, também, a realidade própria do país o

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sistema educacional corre o risco de formar profissionais de nívelsuperior com habilidades, conhecimentos e valores ajustados a umarealidade alheia. A evasão de cérebros é uma das consequênciasbem conhecidas dessa política educacional.

Quanto ao modo de a sociedade influir na educaçãoprofissional, um estudo levado a cabo na Universidade AutônomaMetropolitana-Xochimilco, do México, intitulado El DiseñoCurricular (1976), mostrou que a relação não é direta, havendouma mediação representada pela prática social da profissão.Transformações radicais na prática médica, por exemplo, repercutiriam“sobre o currículo tradicional, modificando-o parcialmente ou gerandonovas oportunidades profissionais”. Esta conclusão é importante, poisdemonstra que não é a produção do conhecimento a variável principalresponsável pela mudança na educação profissional mas sim aaplicação desse conhecimento. Há, contudo, um fator de complicação.É que há várias práticas sociais da profissão, até mesmo antagônicas,embora uma possa ser dominante num momento. Certamente, naprofissão médica, essas várias modalidades de prática existem. Adominante projetará sua influência sobre a educação profissional,embora tanto as práticas decadentes como as emergentes influam. Amaneira como essas práticas acabam repercutindo sobre o currículovai depender de intermediações políticas propriamente ditas e daUniversidade, que é onde se decide se uma prática vai se integrar ounão ao currículo. (Cf. pp. 25 a 27 principalmente).

Tendo em conta as relações mais específicas entre educaçãoe economia (também parte de nosso tema), ficou claro, sobretudo apartir da Segunda Guerra Mundial, que a educação, especialmente aprofissionalizante, constitui um dos grandes investimentos que asociedade pode realizar, por ser altamente produtivo e,consequentemente, um fator significativo para levar a cabo osprocessos de crescimento econômico e de desenvolvimento social.No caso da educação médica, ela tem particular importância não sósocial como também econômica, desde que contribua efetivamentepara elevar o nível de saúde da população, uma vez que a sanidade

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desta é um dos fatores relevantes de promoção de ambos os processos.Merece ainda referência, na discussão das relações entre

sociedade e educação, o modo como a maioria da população,brasileira no caso, vê a educação sistemática, especialmente a queconduz a uma profissão. Predomina aqui uma visão utópica einsatisfatória: a do mito de que a obtenção de um diploma denível superior constitui o canal de ascensão social e econômicapor excelência. Há um divórcio entre crença e realidade. Uma dasconseqüências desse modo de encarar a educação superior, é de quea população acaba dando excessiva importância à educação formalem seus aspectos exteriores, tomando o acessório pela essência. Ouseja, não percebe que as portas do sucesso sempre se abriram maisfacilmente para aquele que dispunha de um diploma, mas desde queeste constituísse o coroamento de uma situação sócio-econômicaanterior elevada. Especialmente as camadas médias tomaram a nuvempor Juno, vendo a posse do diploma como causa da posição privilegiadade alguns e não o inverso, isto é, o diploma de curso superior comomanifestação daquela posição superior.

Finalmente, quanto ao papel criador da educação, normalmenteé exercido em grau mais elevado pela Universidade. A ela,principalmente, cabe ser a mediadora entre os objetivos da sociedadeinclusiva e a educação formal, como também a tarefa de contribuirpara que a própria sociedade se altere. Já dissemos que ainda que, demodo geral, a educação seja um produto social, isso não obsta a quea Universidade possa cumprir esse papel inovador. Para cumprí-lo épreciso, porém que ela não exagere seu papel de instituiçãotransmissora passiva de conhecimentos. A Universidade autênticanão se limita tão-somente a formar profissionais, mas desempenhauma missão maior que é a de duvidar e negar, ou seja realizar acrítica, o que implica na apreciação do valor do pensamento, dosconhecimentos produzidos e da ação deles derivada. Isso significareagir sobre o meio, tentanto alterar os aspectos da realidade que oconjunto dos membros da instituição considere como indesejáveis.Ao realizar tal tarefa nós estaremos fazendo história e não somente

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sofrendo-a.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

1 - Heilbroner, R. L. –O Futuro como História, Zahar, Rio, 1963.2 - Marx, K. – El Capital, “Prólogo”, Fondo de Cultura Econômica, 2ª. ed.,

México, 1959.3 - Pardo, P. H., - “El médico y la realidad nacional”, Departamento de Medicina

Preventiva y Social, U. N. A. H., Honduras, mim., s/d.4 - Pereira, J. C. – a) “Sobre os rumos do sistema educacional”, Forum

Educacional, FGV, Rio, ano 1, nº 4, 1977; b) “Sobre a tendência àespecialização na Medicina”, Forum Educacional, FGV, Rio, ano3, nº 3, 1979.

5 - Schultz, T. W. – O Valor Econômico da Educação, Zahar Editores, Rio,1967.

6 -UAM – Xochimilco, División de Ciencias Biológicas y de la Salud, ElDiseño Curricular, México, 1976.

7 - Vaizey, J. – Economia da Educação, IBRASA, São Paulo, 1968.

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5.2. SAÚDE E POLÍTICA NACIONAL DE CIÊNCIA ETECNOLOGIA*

1. INTRODUÇÃO

É uma das “modas” atuais considerar-se o desenvolvimentoda ciência e da tecnologia como um dos principais fatorespropulsionadores do processo de desenvolvimento sócio-econômico.Independentemente do exame das relações entre o sistema científico-tecnológico e a estrutura e o funcionamento do sistema social global,aquela consideração corre o risco de se preocuparexcessivamente com os aspectos administrativos e quantitativosda ciência e da tecnologia, tornando-se simplista. Ciência etecnologia não podem ser examinadas como variáveisindependentes. Seus efeitos propulsores são limitados ouampliados pelo contexto político principalmente. (1)

Deve-se, pois, ter plena consciência de que os fins de umapolítica científico-tecnológica serão determinados, em grande parte,fora de área. Muitos estudiosos têm evitado o debate da questãosupondo, implícita ou explicitamente, que o Estado representa osinteresses mais gerais de toda a sociedade, economia e cultura ouestá acima dos interesses classistas. Isto significa encará-lo comoum absoluto, como um demiurgo, como se as várias camadas sociaisfossem passivas diante do conjunto de órgãos políticos, jurídicos e

* Trabalho apresentado em Sessão de Temas Livres no I Simpósio sobre PolíticaNacional de Saúde, realizado pela Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados, emBrasília, de 9 a 11 de outubro de 1979. Publicado originalmente em Educação &Sociedade, Cortez Editora/Autores Associados/CEDES, ano II, nº 6, junho de 1980,pp. 19-32.

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administrativos que o constituem, existindo ele além e acima dasociedade.

Obviamente, tal formalismo é inaceitável. Sem dúvida asautoridades que detêm o poder, constituindo o Governo do Estado,não se dissociam da nação, mas podem ou não representá-la comoum todo. O mais das vezes representam tão-somente uma parte dela,a mais influente politicamente. Se o Estado pode constituir umfator limitante, dependendo do ponto de vista do observadorinteressado, é inegável que seus dirigentes mantêm conexões objetivascom a realidade social. Donde, quando se pensa na ação do Governo,há de se ter em conta os porquês, como e para quês da mesma, arazão dos quais pode e deve ser procurada nas condições sociaisconcretas.

Desse ponto de vista, o Estado moderno reflete o dinamismode um processo em que a sociedade e a economia se diversificarame se tornaram mais complexas. Impulsionados por tais transformações,os órgãos dirigentes do Estado tiveram que pôr em prática políticasno campo científico-tecnológico, condicionadas pelas contingênciashistóricas, representadas principalmente pela internacionalização daeconomia e da ciência e tecnologia. Por vezes tentaram se opor àtendência desnacionalizadora, ora a ela se atrelaram de um ou outromodo. Em outras palavras, a ciência e a tecnologia não são camposneutros, e sim submetidos, como os demais, ao ritmo de transformaçõese conseqüentes tensões da sociedade e economia, as quais alteraminevitavelmente a visão que as elites dirigentes têm dos interessesmais amplos do conjunto da população do país.

Se aceitas essas considerações, a discussão sobre a políticacientífico-tecnológica tem de partir de uma definição de alvos na qualintervenha a comunidade científica e tecnológica como representantenão só de interesses seus definidos, como de grupos fora do poderque por ela possam ser representados, desde que, evidentemente, elaconsiga conquistar tal representação. Essa comunidade, da qual seespera tenha uma percepção mais clara de questões que digamrespeito, pelo menos, à ciência e à tecnologia e ao adequado

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aproveitamento destas para o aceleramento do processo dedesenvolvimento social, e cuja posição, concretamente, é superior àde muitos outros grupos sociais, como grupo profissional responsávele consciente, tem até mesmo o dever de tentar pressionar o Estadopara que se engaje numa política que considere construtiva para osdestinos do país. Isto significa tomar uma posição política frente aoproblema, não se omitindo, através de uma pseudo neutralidadecientífica, que não pode existir em relação a fins. Estes não sãopassíveis de discussão científica, uma vez que a um fim se podecontrapor, validamente, outro. Mas, também, validamente se podediscutir as conseqüências de se optar por um conjunto de fins e nãopor outro.

2. CIÊNCIA E TECNOLOGIA COMO FATORES DEDESENVOLVIMENTO

A questão que se coloca é: como o desenvolvimento científico-tecnológico pode contribuir para o desenvolvimento (semadjetivações) do país? Isto significa discutir o próprio conceito dedesenvolvimento. Mesmo que suponhamos que o fundamental desteprocesso está no crescimento econômico (com maior ou menordependência dos centros econômica e políticamente hegemônicos, etc.),há de se procurar estabelecer, inicialmente, a relação existente entre oavanço científico e tecnológico autônomo, crescimento edesenvolvimento.

A história dos atuais países desenvolvidos demonstra essarelação, mas ela varia de país para país, sendo, em razão dascondições históricas vinculadas às relações de dominação-subordinação ao nível internacional, muito mais frouxa nos atuaissubdesenvolvidos. Alguns motivos podem ser alinhados para explicaro fato: a) o processo substitutivo de importações, característico doprocesso de industrialização por que passaram ou passam esses países,foi, em grande parte, baseado na utilização tanto de tecnologia comode capitais estrangeiros; b) não há pressões societárias suficientemente

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fortes para o aproveitamento do “know-how” produzido no país. Emdecorrência, os pesquisadores nacionais tendem a se concentrar napesquisa “pura”, imitando as comunidades científico-tecnológicas dospaíses mais altamente desenvolvidos ou em pesquisas irrelevantesem termos de contribuição para o processo; por outro lado, dado onão aproveitamento de suas possíveis contribuições, os pesquisadoresnacionais se concentram, freqüentemente, na carreira pessoal(produzindo teses para concursos) e em trabalhos individuais. (2)

Ainda que frouxa, em nosso caso, a relação entre crescimentoeconômico e desenvolvimento científico-tecnológico, a políticareferente à segunda variável tem de partir de uma definição clara eviável de seus objetivos. Esta definição, contudo, será condicionadapela política econômica global. Questões do tipo: como serãoaproveitadas as contribuições geradas pela comunidade científico-tecnológica, como será planejada a pós-graduação, a carreirauniversitária e, principalmente, que opções tecnológicas fará o país,são fundamentais para lastrear uma política científico-tecnológica.

Só depois de definidos os alvos é que se poderão determinar,agora com base objetiva (geralmente confundida como a única científica),os meios de que se lançarão mão para melhor atingir tais fins. A essenível, a racionalidade dos meios usados será mensurada tendo em contasua adequação àqueles fins com o mínimo de esforços, o domínio dasreações negativas da ação que possam ser previsíveis, a alteração dasituação, as correções que se farão necessárias quando da avaliaçãodos resultados alcançados, a criação de uma situação favorável àconsecução dos objetivos programados, etc. Esta tarefa deveria caber,em grande parte, às universidades, onde, no Brasil, é produzido quasetodo o conhecimento original no país, aos Institutos de pesquisa, órgãosgovernamentais responsáveis pela distribuição de recursos para apesquisa e políticos voltados para as áreas sociais (como a saúde),econômicas e outras que serão beneficiadas, direta ou indiretamente,pela política científico-tecnológica pela qual se optou.

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3. O DIAGNÓSTICO DA SITUAÇÃO

Na discussão sobre uma política científico-tecnológica devemos,necessariamente, partir de um diagnóstico da situação existente,especialmente dos problemas que, definidamente, constituam umobstáculo à consecução dos alvos tidos como desejáveis pela parcelalúcida da comunidade científico-tecnológica, no sentido de se preocuparcom as conseqüências sociais de sua atividade específica e com osentraves que dificultam o aproveitamento socialmente construtivo deseus esforços. Ao apontá-los ou deles tomar consciência, damos umprimeiro passo para sua superação.

Talvez uma das questões fundamentais diga respeito àdependência, que tende a se ampliar, quando um país emdesenvolvimento propende à imitação dos padrões vigentes nosdesenvolvidos quanto à orientação dada ao seu sistema científico-tecnológico. O exemplo concreto dos países subdesenvolvidos mostraque essa dependência constitui como que um pecado original:estabelecida no passado a desigualdade entre as nações nesse campo,ela tende a se ampliar por fatores econômicos e políticos.Particularmente ilustrativo é o exemplo brasileiro no que se refere apesquisas na área médica e farmacêutica. Dada a necessidade decombate às doenças tropicais, foram criados Institutos como o Butantã,Oswaldo Cruz, Manguinhos, etc. que se voltaram para a solução deproblemas brasileiros sem perder sua qualidade e seus padrõesuniversais. Estas experiências, porém tenderam a se conflitar compoderosos interesses estabelecidos.

Além do mais, a crescente influência de capitais estrangeirosacabou impedindo maiores esforços na direção inicial. O mesmo sepode dizer da dominação da indústria famacêutica e de instrumentosmédicos por esses capitais. Evidentemente, a política científica etecnológica é inevitavelmente afetada, uma vez que, geralmente, nãoé do interesse desses capitais o desenvolvimento de uma ciência etecnologia próprias aos países em desenvolvimento. Agravando-se acarência de recursos, em virtude, inclusive, do desinteresse, por

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omissão ou não, das camadas dirigentes, a ciência e tecnologiadesenvolvida nesses países torna-se mais dependente e alienada dosproblemas do próprio país. Os laboratórios dos países de origemfornecem às filiais as últimas invenções e novos produtos, pouco sepreocupando em estimular os laboratórios e universidades locaisautônomas a elaborar pesquisas visando os interesses dapopulação nativa. Os centros de pesquisa mencionados podeminteressar a esses capitais, normalmente, apenas na medida emque, financiados do exterior, passam a realizar pesquisasencomendadas ou estimuladas de fora. (3)

A situação a que se referiu acima prejudica, igualmente, autilização de cientistas e técnicos formados no país por indústriasnele instaladas. Tornando-se as oportunidades de emprego muitolimitadas, muitos dos mais bem dotados dirigem-se para os paísesdesenvolvidos, uma vez que só nestes encontram emprego produtivopara seus conhecimentos e habilidades. Esta “evasão de cérebros”,por sua vez, constitui mais outra contribuição, no caso relativamentesutil, dos subdesenvolvidos para a manutenção e ampliação dadesigualdade científica e cultural entre os países, concentrando-se aciência, ou assim parecendo, naquele reduzido universo de naçõesditas desenvolvidas. Em tais condições precárias, pesquisadores devalor vêem-se desestimulados de se dedicar à ciência aplicada pornão ter ela utilização no país de origem. Por outro lado, vêem-setambém frustados no terreno da ciência “pura”, dada a quaseimpossibilidade de competir com os laboratórios e universidades dospaíses avançados, com sua vastidão de recursos materiais e humanos.

Entendido isso percebe-se o quanto é frequëntemente errôneocriticar toda a comunidade científica e tecnológica, ou conjuntos depesquisadores de um país subdesenvolvido, pelo que podemosconsiderar descaminhos de seu sistema científico-tecnológico. Asexigências culturais, sociais e econômicas do meio ambientecondicionam amplamente o desenvolvimento desse sistema, só emparte podendo-se dizer que as condições são estabelecidas pelosmodelos científicos e por seus cultores. É a sociedade, as

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exigências culturais do meio ambiente, que compelem os cientistas adesenvolver seus projetos de investigação e de aplicação.(4) Se estesprojetos estão disssociados das necessidades práticas de alcance social,é porque a ideologia dominante condicionadora da interpretação dessasnecessidades e do modo de aproveitamento das contribuições daprodução científica e tecnológica está operando em sentido inadequado.No caso brasileiro, especificamente naquela produção voltada para amelhoria ou manutenção das condições de saúde da população, aslimitações referidas e ainda outras, como escassez de recursos, faltade autonomia dos centros de pesquisa etc., existem em alto grau.

4. A TAREFA DOS CIENTISTAS E TÉCNICOS

Estas condições desfavoráveis não eximem, contudo, o cientistae o técnico (voltados ou não para o campo da saúde), de suasresponsabilidades sociais. E o primeiro passo para que alguma coisa sefaça é, como foi dito atrás, a tomada de consciência dessaresponsabilidade. De fato, não se pode conceber que o rumo daspesquisas, os problemas abordados, a utilização dos conhecimentosacumulados e descobertas feitas não dependam, em boa parte, dasatitudes e comportamentos dos agentes sociais citados. Alhear-se soba justificativa de que uma tomada de posição representa umamanifestação “extra-científica” é um preconceito “científico” e comotal pode e deve ser combatido. Os obstáculos existentes deveriam, antes,servir de estímulo a cientistas e tecnólogos para se voltarem à tarefade, manejando os valores mais altos da ciência e da tecnologia,transformarem o Brasil num país mais saudável, mais desenvovildo,cultural, social e economicamente.

De fato, a obrigação mais alta do verdadeiro cientista é aatividade criadora em todos os níveis e a integridade intelectual. Ambasrepresentam um papel de primeira plana numa luta (que não precisaser necessariamente partidária, ainda que política) para adefinição dos alvos da política científico-tecnológica adequadapara a área da saúde e para conseguir os meios para alcançá-los.

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Essa luta é travada em vários terrenos. E, talvez, a principal barreira aser vencida, encontrada pelos trabalhadores intelectuais, seja a própriasociedade global, muitas vezes acanhada para fazer valer suasreivindicações em determinadas áreas, de que é exemplo a de melhorsaúde. Em face disso, a motivação indispensável à realização das tarefasnecessárias pode esmorecer. Esta é, pois, a primeira tarefa: vencer ainsuficiente plasticidade da sociedade brasileira para aproveitareficientemente o resultado de um labor intelectual realmente profícuoem termos desse alvo.

Não sentindo exploradas construtivamente suascontribuições, muitos cientistas e técnicos desanimam. Cria-seum círculo vicioso na relação entre esses trabalhadores e a sociedade:não produzindo conhecimentos tidos como úteis pela sociedadeinclusiva (ou por suas camadas mais influentes), ela nega prioridadeao saber científico e tecnológico, inclusive ao saber médico. Nãoconseguindo obter satisfações morais (como o reconhecimento dopróprio valor, por exemplo) e materiais, as pessoas voltadas para asvárias áreas do saber deixam de dedicar a elas o máximo de seusesforços porque lhes falta estímulo. Uma possível saída para o impasseseria tentar produzir uma ciência e tecnologia claramente relevantespara o desenvolvimento nacional e, em nosso caso específico, para amelhoria da saúde coletiva, e tentar mostrar, através dos meiosdisponíveis de comunicação, essa relevância, a fim de que grupos ecamadas sociais com influência sobre a política científico-tecnológicase disponham a apoiar aquela preconizada pela comunidade científica.

5. O PAPEL DA UNIVERSIDADE

Devemos reconhecer, no entanto, que muito do descrédito deque goza a ciência e a tecnologia nacionais tem sua razão de ser nascaracterísticas passadas e presentes do ensino superiorbrasileiro. No passado se atribuía pouca importância à pesquisa(“pura” ou “aplicada”) nas universidades, havendo uma nítidanegligência em desenvolver no corpo quer docente quer discente

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“hábitos de pensamento produtivos”. Atualmente, a pletora de cursosde pós-graduação acabou tendo o mesmo efeito, embora tenha havidoum extraordinário aumento quantitativo de pesquisas. É que sesubstituiu o desinteresse anterior por um afã ardoroso de pesquisar,mas de pesquisar qualquer coisa “não importa com que fito ou comque proveito”.(5) Ou melhor, produzem-se pesquisas em série visando,tão-somente, alcançar títulos acadêmicos, hoje uma espécie de “doençainfantil” que avassala a instituição universitária. Em decorrência, háum desperdício de recursos materiais e humanos incompatível comuma política científico-tecnológica socialmente produtiva e tambémincompatível com a integridade intelectual de uma comunidadecientífica atenta às suas responsabilidades sociais e empenhada, defato, na solução dos problemas nacionais e no desenvolvimento docorpo teórico da ciência e em seus desdobramentos práticos. Ao seproduzir uma pseudociência, estribada numa rede invisível deinteresses extracientíficos, dificulta-se o avanço da verdadeira ciência,detendo-se suas tendências frutíferas. (6)

A grave sintomatologia descrita é causada, por sua vez, emlarga medida, como já nos referimos, pelos vários tipos de obstáculosao aproveitamento construtivo das contribuições científicas etecnológicas de valor. Basicamente eles decorrem do fato de sermoseconômica e culturalmente dependentes, mas também de fatoresinstitucionais (por exemplo, a estrutura e funcionamento do sistemaeducacional brasileiro), políticos, sociais, culturais, etc. Quanto aosobstáculos institucionais, dois são patentes: a falta de entrosamentoentre os vários núcleos universitários e congêneres onde se faz pesquisacientífica; donde o desconhecimento mútuo do que cada grupo estárealizando. Um segundo obstáculo bastante importante é quanto àinexistência, neste momento, de pressões societárias organizadas, queestimulem o financiamento da pesquisa científica visando clara eobjetivamente a promoção do desenvolvimento sócio-econômico ecultural em geral e especificamente, no campo da saúde. Tudo issocompromete a formulação de uma política científico-tecnológica comose pretende: ou seja, “racional”, socialmente satisfatória e, o que é

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muitíssimo importante, viável dentro das condições existentes ou quepossam vir a ser criadas. Creio que, pelo menos em parte, essasdificuldades poderiam ser sanadas por um interesse mais ativo dacomunidade científica por estas questões de suma valia. À falta deestímulos como os mencionados, principalmente os provenientes dosistema econômico, correr-se-á o risco de os pesquisadorescontinuarem desenvolvendo “suas atividades muito mais com vistas àsua carreira pessoal (teses, concursos) do que em função dos problemasrelevantes da comunidade nacional”. (7)

6. A SUPERAÇÃO DOS OBSTÁCULOS

A ruptura do círculo vicioso poderia ocorrer tanto pelo lado dasociedade global, na qual podemos incluir a “classe” política, comopelo lado da comunidade científica, estabelecendo uma compreensãomútua melhor de seus interesses e capacidades. À medida quecamadas sociais mais amplas possam fazer ouvir suas reivindicaçõese pressionar os órgãos governamentais responsáveis, essa rupturatenderá a ocorrer, potenciando os esforços dos dois gruposestrategicamente situados acima assinalados (políticos e cientistas).A “classe” política, por exemplo, pressionada, poria sua grandecapacidade de “vocalização” a serviço do objetivo apregoado. Quantoaos cientistas e tecnólogos, como grupo profissional consciente daimportância de suas contribuições para o desenvolvimento do país,receberiam os estímulos que lhes estão faltando atrás mencionados.A ação decisiva de grupos estratégicos dentro da sociedade globalpoderia levar à formulação conjunta, por parte de políticos e cientistas,pelo menos, de uma política científico-tecnológica definida, encorajandopesquisas socialmente orientadas. Essa definição é fundamental pois,como já se afirmou, as descobertas, tanto no campo da ciência puracomo no da aplicada, inexistindo essa política, acabam sendo sobretudoocasionais. Conseqüentemente, a assistematização no relacionamentoentre os que trabalham nas mesmas áreas ou afins torna-se a regra:dificulta-se a percepção das conseqüências produtivas do labor

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intelectual para a sociedade e a economia. Sem essa política definida,podemos esperar a manutenção da descontinuidade de esforços, dosubaproveitamento de recursos materiais e humanos, da falta de rumos,igualmente definidos, na orientação da pesquisa científica, da carênciacrônica de recursos, etc. Resultado: os problemas de saúde do paístenderão a continuar sendo enfrentados não pela remoção de suascausas fundamentais, mas através do combate aos efeitos e causasaparentes.

Há, contudo, uma outra possibilidade de interpretação do quadronegativo e pessimista que traçamos. Segundo uma perspectiva otimistapoderia tratar-se, simplesmente, de uma situação passageira,consubstanciando uma crise de crescimento da ciência e da tecnologiano Brasil. Mas, então, a crise poderia ser mais rapidamente superadase os problemas fossem enfrentados com maior vigor, discutindo-seos alvos da política científico-tecnológica (em nosso caso voltada parao campo da saúde) a partir de questões cruciais como a dependêncianessa área. Ela constitui uma simples imitação ou representa algomais sério, como a manifestação, no âmbito científico, da subordinação,que cremos real, dos sistemas sócio-econômicos “periféricos” aoscentrais? Se a ciência e a tecnologia que estamos produzindo eensinando não são adequadas à sociedade e economia como um todo,a quem ou a que elas aproveitam? A comunidade científico-tecnológicanacional está atrelada aos interesses, manifestos ou disfarçados, dealguns grupos? De quais? Por quê? Deve-se dar mais ênfase, ou não,à produção de conhecimentos científicos originais, competindo no nívelinternacional, ou dar prioridade à adaptação dos existentes à realidadebrasileira? E assim por diante.

A comunidade científica e tecnológica tem responsabilidadesespeciais, às quais, como já insistimos, ela não pode fugir através deuma pseudo neutralidade. Contribuindo para definir uma política, elapoderá encontrar soluções para o problema, por exemplo, da existênciade canais, institucionais ou não, para o aproveitamento produtivo, daciência médica por exemplo, que está sendo ou vier a ser produzida.Se os recursos são escassos, eles também podem estar sendo mal

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utilizados naqueles projetos de pesquisa improdutivos a que nosreferimos. Há, pois, de sensibilizar os que podem fornecer essesrecursos, desenvolvendo uma produção científica e tecnológicaorganizada, visando campos em que temos amadurecimento ecapacidade para realizar contribuições profícuas. Neste ponto, oscientistas e tecnólogos têm de atentar para duas ordens de fatores:viabilidade dos projetos e significação dos resultados alcançados.

O engajamento da comunidade científica nesse processo demudança, enfrentando responsabilidades e desprendendo-se de umintelectualismo estéril, é fundamental, ainda, porque essa comunidadetem, pelo menos virtualmente, as maiores condições de tentar frearas tendências negativas assinaladas. Para isso, os cientistas têm deabandonar a neutralidade cômoda e a restrição à sua especialidade,preocupar-se com o essencial (que está nas contribuições societáriase propriamente científicas) e não com o acessório, abandonar acompetição improfícua entre grupos e pessoas, fonte lamentável deindividualismos e facciosismos, e, ao contrário, formar grupos coesos,lutando por interesses comuns.

A responsabilidade social dos cientistas e tecnólogos da áreada saúde é muito grande quando se analisam as conseqüênciasnegativas para a sociedade brasileira da ruinosa prioridade que temsido dada, em muitos casos, à tecnologia em si mesma ou à utilização,também excessiva, de técnicas importadas, quando nossosproblemas sociais e econômicos exigiriam um maior desenvolvimentodo pensamento inventivo em todos os campos, criando ou adaptandotecnologias. Inclusive porque, muitas vezes, ao se insistir na imitaçãocanhestra do uso de produtos e técnicas de uso comum nos paíseseconomicamente desenvolvidos, estaremos mostrando umaincapacidade injustificável, sob qualquer ângulo que se aexamina, de levar a cabo um desenvolvimento autônomo dasociedade brasileira.

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7. O ESTABELECIMENTO DE PRIORIDADES E SUAIMPLEMENTAÇÃO

O estabelecimento das prioridades envolvidas dependerá, emlarga medida, como se deixou claro, dos comportamentos e atitudesda comunidade científico-tecnológica brasileira. É evidente que adiscussão permanecerá em aberto quanto aos reais interessescoletivos, tarefa que não é apenas dos cientistas e técnicos, mas,numa sociedade pluralista e aberta, de todas as camadas sociais. Nadeterminação desses interesses e prioridades, entretanto, éinquestionável que esta comunidade muito poderá contribuir, tantopara estabelecê-los, como para, uma vez realizada essa tarefafundamental, coordenar os meios materiais e humanos necessários.Por exemplo, poderia contribuir especialmente no tocante àracionalização desses meios, já que, sabidamente, a produção científicae tecnológica de alto nível é um empreendimento caro, não se podendobarateá-lo além de certos limites. Esta colocação nos leva a umaoutra questão, que é a de expandir organizadamente a Universidadebrasileira e outros centros de produção de conhecimentos científicose tecnológicos originais. Urge, numa política científico-tecnológicanacional, global, da qual a Saúde é um componente de raro significadosócio-econômico, rediscutir as possibilidades criadoras da instituiçãouniversitária, hoje sofrendo uma crise de crescimento desordenado,com os resultados negativos assinalados em outra parte deste trabalho.

Isso porque, sendo na Universidade onde se produz o “grosso”dos conhecimentos mencionados, o sistema universitário, no que dizrespeito ao recrutamento, seleção, formação e aperfeiçoamento depessoal, precisa ser reestudado, verificando-se sua adequação quantoaos objetivos da política que se proporá. Como são inegáveis asrelações entre o ensino universitário e o mercado de trabalho naformação do pessoal técnico-científico, será necessário proceder-se a um diagnóstico dos recursos de que o sistema de atenção médicacarece, isto se permanecer o modelo em voga. Há também que seproceder a um prognóstico quanto às possibilidades de sua alteração

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e conseqüentes futuras necessidades de recursos humanos. É pontorelativamente pacífico de que quando é grande a incerteza quanto atal evolução, é preferível formar pessoal treinável, com boa formaçãogeral, do que pessoas treinadas em determinadas especialidades, quepoderão se tornar ociosas ou supérfluas, não se ajustando ou seajustando com dificuldade a novas situações. Infelizmente, creio queo sistema de formação de pessoal médico atual está cometendo esteúltimo erro.

A universidade, igualmente, deveria ser reestruturada no quediz respeito à criação de condições institucionais para odesenvolvimento da pesquisa, como já foi mencionado. De fato, arigidez vigente na maioria das universidades brasileiras faz com queos investigadores precisem, freqüentemente, dedicar ingentes esforçosnão à própria pesquisa mas à criação de condições adequadas à suarealização. Da rigidez mencionada decorrem dificuldades relativas àobtenção de verbas, à contratação de pessoal auxiliar, aoconseguimento de meios técnicos, como aparelhamento, livros e outrositens necessários, ao atendimento a exigências burocráticasfreqüentemente descabidas ou exageradas, etc. Obviamente estascondições deveriam estar institucionalizadas. É evidente a esterilidadeda repetição de tais esforços por parte dos pesquisadores.(8)

Acreditamos, também, que uma das principais missões daUniversidade, depois de formulada e posta em prática a políticacientífico-tecnológica preconizada, é realizar a avaliação continuadada eficácia dos esforços que estejam sendo feitos. Diga-se, a propósito,que, ao contrário das empresas privadas, quase todos os serviços,ligados direta ou indiretamente ao Estado brasileiro, têm uma visívelaversão a se auto-avaliarem.

O próprio modelo de universidade brasileira e a importânciaque, normalmente, confere à pesquisa científica original também secoloca em questão, no caso. A Universidade, para realizar suaparte nessa política científico-tecnológica para a área de saúde,não poderia, simplesmente, limitar-se a uma passiva transmissãode conhecimentos e habilidades prontos e acabados. “A ciência,

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como sistema institucionalizado de conhecimento, reconstrói-se eaperfeiçoa-se de modo incessante, em função do progresso do homemno domínio e na utilização de suas formas de conhecimento. Parapoder transmitir essas formas de conhecimento, a universidade temde absorver o ensino das técnicas de pesquisa científica; para poderacompanhar os progressos incessantes dos diversos ramos doconhecimento científico, a universidade precisa produzir, por meiospróprios, pelo menos algumas parcelas daqueles progressos...”.(9)

8. CONCLUSÕES

Em face do exposto entendemos que a Política Nacional deSaúde se interliga, em boa parte, à política de ciência e tecnologia, eque uma e outra, se integram, por sua vez, na política social eeconômica global. Ou seja, os objetivos específicos de grandes camposde atuação como a educação e a saúde serão, sobretudo, decorrênciadaquilo que tenha sido definido em nível societário. Só depois dessadefinição pode-se propor para esses campos uma estratégiaespecífica. Por outro lado, para que os grupos encarregados deexecutar os objetivos propostos se empenhem decisivamente em suatarefa é necessário que participem de sua formulação. Só assim elesos assumirão como seus. Igualmente, como nenhum grupo social podese arrogar o monopólio da verdade, a definição desses amplos objetivosa nível político deveria se realizar de um modo democrático.

A participação de cientistas e técnicos nessa formulalção, comogrupo social com interesses definidos, com respostas próprias àsquestões que se colocam é de suma importância, como já se afirmou.Mas a eles também cabe, freqüentemente e sobretudo, traçar meiosalternativos. Ainda que a decisão quanto ao uso destes meiosseja igualmente política, ela poderá se lastrear, em maior grau,em argumentos menos emotivos, ocorrendo a participaçãomencionada. Outro aspecto a assinalar é que a opção por uns enão por outros meios gera subprodutos os quais são capazes,inclusive, de produzir conseqüências não desejadas da ação

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planificada, contrariando os objetivos propostos. Talvez os maissensíveis a estas conseqüências, quando imediatas, sejam os políticose não os cientistas e técnicos. Contudo, estes, muitas vezes, são maisaptos a antecipar tais conseqüências quando mediatas e, ainda, aavaliar com certa isenção a consecução dos ditos objetivos. Talvezseja preciso uma auditoria externa para acompanhar o uso de meiose a consecução dos fins propostos pela política escolhida. Isto remediariao costumeiro defeito (não só nosso, diga-se de passagem) de deixarque os próprios executantes se auto-avaliem. É claro que esta é, nomomento, uma proposta inexeqüível. Mas a utopia, mudando ascircunstâncias, pode vir a se tornar realidade no futuro.

Para finalizar, queremos destacar, sobretudo com base nostrabalhos citados de Florestan Fernandes, o que consideramos principalna discussão até aqui estabelecida para a formulação de uma políticade ciência e tecnologia, nela incluída a área da saúde, definida e válidapara o Brasil. À guisa de conclusão, mencionaríamos os seguintespontos: 1) a redução ou mesmo eliminação da pesquisa inútil, que nãocontribui para o avanço do corpo teórico da ciência, para oconhecimento mais aprofundado ou específico de determinadasquestões, nem visa a aplicação, nisso não se incluindo as pesquisasde treinamento; 2) a diminuição do desperdício de recusos materiaise humanos; 3) o enfrentamento da dependência científica etecnológica; 4) a atenuação do domínio da economia nacional porempresas multinacionais que dificultem, ou mesmo impeçam oaproveitamento construtivo da produção científica e tecnológicanacional original e dos recursos humanos formados; 5) a superaçãodos obstáculos sócio-político-culturais a esse aproveitamento; 6) maiorresistência à tendência à importação de soluções tecnológicasinadequadas às condições brasileiras ou que levam a uma maiorsubordinação do país às economias centrais do sistemacapitalista; 7) a luta contra o vício arraigado, em boa parte dosmembros do sistema universitário, de maior preocupação cominteresses individuais e grupais do que com os objetivos maisaltos da ciência; 8) o encontro de soluções, ainda que parciais,

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para vencer a tendência, também comum, de os grupos se degladiaremnuma competição estéril, isolando-se e conflitando-se, em vez de seassociarem para um trabalho profícuo; 9) a conscientização, dosgrupos e pessoas mencionados atrás, de que a integridade intelectualé matéria a ser vivenciada, repelindo-se o dogmatismo existente emcertas áres com relação não só quanto aos alvos e métodos da ciência,como quanto aos problemas sociais, políticos e econômicos envolvidosna solução dos problemas da saúde, dogmatismo esse que se traduznuma limitação da liberdade de pesquisa de temas e uso de métodos;10) o estímulo à responsabilidade social dos cientistas e técnicos notocante ao aproveitamento dos resultados dos avanços da ciência eda técnica ocorridos na área; 11) o abandono, pelos mesmos, dacarapaça de uma neutralidade inexistente, como justificativa“racionalizadora” de seu próprio comodismo em face dos problemascruciais de saúde no Brasil; 12) a falta de entrosamento entreinstituições, grupos e pessoas para debaterem problemas que dizemrespeito à comunidade científico-tecnológica, ao sistema de atençãomédica e ao sistema social inclusivo, procurando soluções concretaspara os mesmos; 13) o debate a respeito do tipo de conhecimentos aserem produzidos; 14) a criação de canais institucionais através dosquais esses conhecimentos possam ser aproveitados construtivamentepelo sistemas de atenção médica existentes ou a serem criados; 15)a coordenação nacional do sistema científico-tecnológico, a fim deevitar descontinuidade de esforços e subaproveitamento dos resultadosproduzidos; 16) a apresentação de projetos viáveis e significativos,não só do ponto de vista científico e técnico, como do ângulo societário;17) a criação de condições para que os cientistas e técnicos formadosno país, na área e em outros, encontrem nele emprego produtivo,evitando a “evasão de cérebros”; 18) o exercício de pressões coletivassobre empregadores (estatais e privados) para que os elementoshumanos que constituem (e vierem a constituir) quadros com propostasalternativas, recebam estímulos adequados, sobretudo econômicos(devendo-se deixar claro que o fazer ciência não pode ser concebidocomo sacerdócio); 19) a reavaliação dos objetivos e funções da

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universidade, pois sendo o principal centro de pesquisas do país,necessita, para cumprir adequadamente sua missão, não só reformarvelhas-estruturas, como impedir que quaisquer alterações nas mesmas,através da manutenção e mesmo expansão de interesses extra-científicos venham impedir (ou dificultar) o alcançar aquela missão;20) a avaliação contínua dos resultados da política posta em prática,cotejando-os com os objetivos propostos e realizando, conforme ocaso, alteração destes ou dos meios que estejam sendo utilizados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

1 - Rattner, H. “Considerações sobre ‘Política Científica-Tecnológica’”,Revista de Administração de Empresas, F.G.V., vol. 17, nº4, julh/agosto de 1977, p.45;

2 – Idem, pp. 45-46;3 - Lopes, J. L., “Ciência e Universidade no Terceiro Mundo: a experiência

no Brasil”. In Furtado, Celso, Brasil: Tempos Modernos, EditoraPaz e Terra, 1968, Rio de Janeiro, principalmente pp. 140-1, 145,149-150;

4 – Fernandes, F., A Sociologia numa Era de Revolução Social, Cia EditoraNacional, S. Paulo, 1963, cap. 1, “O cientista brasileiro e odesenvolvimento da ciência”, p.11;

5 – Idem, Educação e Sociedade no Brasil, Dominus Editora/Editora daUSP, S. Paulo, 1966, parte 2, cap. 2, “Pesquisa e ensino superior”,pp. 209-210;

6 – Idem, A Sociologia numa Era de Revolução Social, op. cit., 22;7 – Rattner, H., op. cit., p.46;8 – Fernandes, F. Universidade Brasileira: Reforma ou Revolução?, Editora

Alfa-Ômega, S. Paulo, 1975, cap. 9, “ A universidade e a pesquisacientífica”, pp. 248-9;

9 – Idem, ibidem, nota 32 à p. 246.

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6. ESPECIALIZAÇÃO NAMEDICINA

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6.1. SOBRE A TENDÊNCIA À ESPECIALIZAÇÃO NAMEDICINA*

INTRODUÇÃO

A tendência à especialização na medicina é presentementeuniversal nos países ocidentais. A profissão, que há duas décadasmais ou menos tinha por protótipo o clínico geral, hoje,praticamente, tem por protótipo o especialista. Isso dá a entenderque aquilo que era uma tendência, na verdade já se transformouem norma. Nossa intenção aqui será discutir certo número decondições e fatores geralmente considerados como responsáveis poressa mudança e, em seguida, dar um enfoque diferente a essasinterpretações.

EXPLICAÇÕES CORRENTES

Há uma série de explicações correntes do processo. Talvez amais mencionada seja a que se refere à evolução da medicina comociência aplicada. Entende-se que tal evolução implicou numacrescente complexidade técnico-científica que, do ponto de vistaprático, veio tornar muito difícil para a mesma pessoa dominar todo ocampo de conhecimentos abrangido pela medicina. Em outraspalavras, o próprio desenvolvimento da ciência e da tecnologiarelacionadas com a prática médica teria forçado os médicos a, porassim dizer, restringirem seu campo de atuação, especializando-se no

* Publicado originalmente em Educación Médica y Salud, vol. 14, nº 3 (1980): 252-261.

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campo restrito que pudessem dominar e, inclusive, aprofundar.Freqüentemente, a sofisticação tecnológica no campo médico,

no caso brasileiro e outros assemelhados, está vinculada a nossadependência cultural (no amplo sentido), principalmente dos EstadosUnidos. Ao tomar como paradigma a medicina praticada neste últimopaís (efeito de demonstração), as instituições formadoras de médicose as classes de renda mais alta tenderam a valorizar positivamente oprofissional especialista. Em conseqüência, este se tornou o modelopara os futuros médicos e alterou os conceitos sobre atendimentomédico “ideal” do restante da população.

O exemplo do professor-especialista, por sua vez, teriainfluenciado os alunos no sentido de optar precocemente por umaespecialização ainda no próprio curso de graduação. A própriaprecocidade da opção produziria neles certa insegurança quanto aosseus conhecimentos globais, o que poderia inclinar os recém-formadosàs especializações gerais num primeiro estágio e àsmicroespecializações num segundo. Além do mais, ao receberemseu ensino em hospitais universitários, onde a sofisticação doaparelhamento é a regra, vão se tornando mais e mais dependentesde um complexo instrumental que só pode ser utilizado por quemtenha conhecimento especializado de seu uso, o que dificultariaposteriormente o abandono do setor restrito em que se especializaram.Esse tipo de ensino de graduação também faria com que os alunos sefamiliarizassem sobretudo com doenças raras, crônicas edegenerativas, características de um nível terciário de atendimento,que necessitam de cuidados médicos especializados em maior grau.Em suma, a especialização seria estimulada já durante o período deformação do futuro médico, a qual tenderia para dois aspectosprincipais: a citada imitação do modelo de assistência médica vigentenum país desenvolvido e o aprendizado voltado para um padrão desaúde e doença típico de países em estágio de desenvolvimento maisavançado e não do Brasil, fazendo com que grande número de médicostenha uma formação relativamente inadequada para enfrentar arealidade concreta de nosso país.

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Outra explicação habitual refere-se à expansão da procura deserviços médicos especializados, induzida, entre outros fatores, peloaceleramento dos processos de urbanização e industrialização e pelaconseqüente enorme ampliação do número de pessoas vinculadas àPrevidência Social. Quando esta passou a prestar assistência médicaaos seus associados, não só veio ao encontro de suas necessidadessentidas, como estava interessada em prestá-la a baixo custo e a umgrande número de pacientes, diminuindo seus dispêndios comafastamentos do trabalho, por exemplo. Nesse ponto, teriam entradoem cena os interesses da “classe” médica e dos órgãosgovernamentais. Assim, o credenciamento em massa de especialistaspor parte do INPS poderia indicar, de um lado, que o órgãoprevidenciário considerou o atendimento médico por este grupo maissatisfatório quanto à rapidez de recuperação do paciente; e de outrolado, que esse credenciamento de especialistas procurou atender auma preocupação da “classe” médica, no sentido de diminuir suastensões internas, decorrentes da competição no mercado de trabalho.

Isto significaria que a política de saúde do Ministério daPrevidência Social (pois este é mais importante nessa matéria que oMinistério da Saúde) respondeu a considerações não apenas ousobretudo médicas (desde que quantidade de pacientes atendidos abaixo custo e a ampliação do mercado de trabalho para médicos nãopodem ser tidas como considerações de cunho médico) mas tambémde política econômica e social. Ademais, o processo de especializaçãona medicina teria sido acelerado pela entrada dos órgãosprevidenciários no campo da assistência médica, por se haverem elesrendido às pressões de interesses particularistas quanto à assistênciahospitalar, financiando, a juros baixos e a longo prazo, a construção eo aparelhamento de hospitais. Essa política teria sido, ao mesmo tempo,causa e efeito do grande destaque ganho pela assistência médicahospitalar, sobretudo nas regiões sul e sudeste do país, com a utilizaçãode equipamentos sofisticados e custosos. Poder-se-ia dizer que taltipo de assistência levou à ampliação do número de especialistas, jáque requer mais os serviços destes. Assim, tanto direta como

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indiretamente, o INPS, com sua política de saúde, teria reforçado atendência à especialização.

Concomitantemente, ao nível de atendimento particular, ocorreuuma promoção também acentuada de necessidades artificialmentecriadas (levando ao que Ivan Illich chamou de “medicalização” davida), cujo efeito real foi o aumento de assistência médicaespecializada. Essa assistência, embora vindo atender à procura decamadas que podem pagar, que dão preferência ao uso, por parte domédico, de equipamento sofisticado e à confirmação de diagnósticosatravés de exames laboratoriais e outros, repercutiu, em virtude docitado efeito de demonstração, sobre as demais camadas sociais,incentivando a especialização, inicialmente nas grandes cidades e,posteriormente, em todo o país.

Quanto à oferta de serviços médicos, o aspecto mais relevanteque se tem buscado é o crescimento do número de profissionais, emtermos tanto absolutos como relativos. Não nos interessa aqui discutira razão da grande procura das escolas médicas por parte dosestudantes em vias de entrar para um curso superior. Objetivamente,o resultado do grande número de candidatos a futuros médicos foipressionar o Estado e estimular entidades privadas a instalar maiorquantidade de escolas de medicina. Se os novos médicos, em suagrande maioria, se dedicassem à clínica geral, a competição entreprofissionais se tornaria por demais acirrada.

Outro fator freqüentemente citado entre os que teriamcontribuído para que a especialização se tornasse a regra é o de queporção ponderável dos antigos clínicos gerais não se mantiveraatualizada sobre os avanços da medicina, prestando (com numerosasexceções) serviços deficientes. Assim, teria sido natural que os jovensmédicos desejassem ostentar o título mais prestigioso de especialistas,desvinculando-se de uma imagem que se estava tornando negativa.

Finalmente, mas sem exaurir o assunto, outro tipo de explicaçãousa as tradicionais colocações a respeito do surgimento e evoluçãodo processo de divisão social do trabalho, cuja amplitude é uma dascaracteríticas centrais das sociedades econômica e socialmente

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complexas. Em sua obra De la Division du Travail Social, Durkheimconsidera tal divisão como conseqüência do aumento do volume e dadensidade da população. O processo teria levado a um tipo especialde solidariedade entre os homens, a solidariedade orgânica, que teriapor fundamento suas diferenças, em contraposição à solidariedademecânica, em que tal fundamento seria suas similitudes. A funçãosocial da divisão do trabalho, para Durkheim, seria a evitação do conflito.

Durkheim enfatiza pouco o aspecto econômico da divisão dotrabalho, ao contrário de Adam Smith (An Inquiry into the Natureand Causes of the Wealth of Nation), que está interessado na divisãotécnica do trabalho como um dos principais meios de elevar suaprodutividade, fator primacial para se atingir o que, em linguagematual, seria o desenvolvimento econômico. No contexto destasobservações, dir-se-ia que a divisão social do trabalho levou aosurgimento dos ofícios e profissões (como a de médico) e que oavanço do processo produziu a divisão técnica dos próprios ofícios eprofissões (o especialista, em nosso caso), nitidamente voltada para oobjetivo consciente de produzir economicamente mais. A fragmentaçãoda profissão médica, como a das demais profissões liberais, ainda queocorrendo muitas décadas após o mesmo processo ter atingido os antigosofícios, teria causa semelhante: as exigências do sistema de produção.

UMA CONCLUSÃO PARCIAL

Ainda que não exaustivo, este conjunto de condições e fatoresteria militado em favor da especialização. Ainda que sua utilidade,quando excessiva, seja quase sempre questionável em termos do quese poderia entender por uma assistência médica “ideal” num paíscomo o Brasil, seria ela a expressão de um processo que atenderia,de um lado, aos anseios dos próprios médicos, que poderiam manterrelativamente intacta sua coesão grupal, e viria, de outro, ao encontrode ponderável parte daqueles que procuram assistência médica, quese julgaria melhor quando prestada dentro do esquema daespecialização. Sob outro prisma, a tendência à especialização

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permitiria aos médicos uma assimilação mais rápida dos avançostécnicos e científicos ocorridos em sua área de atuação, melhorandoa qualidade dos serviços prestados. A possível elevação de seus custosseria compensada pela rapidez e eficiência que se supõe estaremassociadas à especialização.

ALTERANDO O ENFOQUE: O OUTRO LADO DAQUESTÃO

Sugerem as colocações anteriores que a intensificação daespecialização na profissão médica respondeu a um processo socialque beneficiou seus dois principais protagonistas: o médico e seupaciente. No entanto, isso só ocorreu na aparência: seaprofundarmos a interpretação, ela nos mostrará a outra faceda moeda. De fato, o movimento subjacente ao processo escapou aocontrole dos participantes, e principalmente aos próprios médicos. Aespecialização na medicina, vista por um prisma diferente, se apresentacomo um produto de mudanças sócio-econômicas. Sendo produto,não foi uma criação conscientemente planejada por médicos eenfermos. Não há dúvida que uma das facetas mais característicasdessas mudanças é a divisão técnica do trabalho. A realização detarefas cada vez mais específicas é uma constante na evolução dasociedade humana, já que incrementa a eficácia e o aumento daprodutividade. A essa tendência, que se intensificou enormementenos dois últimos séculos, não escapou a medicina.

Resta, contudo, perguntar a quem de fato mais tem aproveitadoa fragmentação do trabalho. É sintomático que o processo se acelerouà medida que o regime capitalista de produção sobrepujava regimesem que predominava a reprodução simples do capital. A atividadeartesanal, responsável pela produção direta de bens, foi aprimeira a desaparecer, porque não atendia às necessidades doprocesso de reprodução ampliada. Ao parcelamento dos ofícios,seguiu-se o das profissões. Se é certo que o homem que realizaum trabalho parcial torna-se capaz de efetuá-lo com maior perfeição,

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rapidez e eficiência, por ficar restrito a uma porção do todo (comomostrou Adam Smith no caso da fabricação de alfinetes), o mesmonão ocorre, necessariamente, em profissões como a de médico, emque o agente tem que ter a noção clara desse todo. Isto para não nosreferirmos ao que possa ocorrer com o trabalhador parcial, cujo graude alienação aumenta, como mostra Erich Fromm, entre outros.

A mesma atividade de coordenação que a especialização emtarefas específicas impôs ao empresário, no caso do trabalho industrialpulverizado, passou a ser necessária no caso dos médicos que, emvirtude de sua especialização excessiva, se tornaram incapacitadosde encarar o paciente como um todo biológico, psicológico, social ecultural. Disso resultou uma forma de atendimento que é produtocomum de profissionais parciais, assim produzindo uma faca de doisgumes: desde que se trate de encarar o homem enfermo como umsomatório de partes, cada qual suscetível de tratamento isolado, oespecialista pode proporcionar mais serviços médicos em quantidadee qualidade; e tanto médicos quanto pacientes podem passar adepender de uma instituição mais ampla, representada pelos serviçosestatais de assistência médica, empresas proprietárias de aparelhossofisticados, hospitais, laboratórios, etc. Do ponto de vista do prestadorde serviços médicos, o problema se desloca para o domínio daqueleinstrumental; e do ponto de vista daquele que os recebe, para o deseu atendimento como um homem integral e não fragmentado. Aeficácia do profissional em aspectos restritos não garante talatendimento.

Voltado para sua atividade parcial, a questão raramente preocupao especialista e, muito menos, o proprietário de “indústrias” quepretendem, direta ou indiretamente, proporcionar saúde e/ou combatera enfermidade. O primeiro tende a se aprofundar apenas em seucampo limitado, desinteressando-se de outros, igualmente importantesda perspectiva tanto individual como social, e perdendo mesmo, quandotransformado em ultra-especialista, a liberdade de atuação dentro daprópria profissão. Para ele, é mais difícil mudar de especialidade ou delugar de trabalho, ou mesmo desvincular-se de empregadores, que podem

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existir em número limitado (algumas vezes representados tão-só peloEstado).

A atomização do trabalho médico pode levar também àatomização de responsabilidades, em parte porque a excessiva divisãotécnica da profissão acentua a necessidade de serviços administrativosde apoio, com o conseqüente realce da burocratização e possívelimpessoalização das relações. Max Weber (Economía e Sociedad,na tradução em língua espanhola) enfatiza a superioridade técnica daorganização burocrática, em decorrência exatamente de suaimparcialidade, mas burocratização nem sempre significaracionalização das atividades às quais se aplica. Independentementedo significado dúbio do termo “racional”, é patente a freqüência comque a instituição encarregada da organização dos meios tende a setornar um poder à parte e superior, subvertendo a hierarquia entremeios e fins e perdendo de vista o objetivo central. Mesmo que issonão ocorra, uma das conseqüências da intensificação do processo deburocratização é tornar mais difícil e complicada a vida das pessoasenvolvidas. Como membro de uma organização burocrática, é difícilao médico não absorver um pouco de uma de suas mais marcantescaracterísticas, qual seja, a impessoalidade, que muitas vezes leva àcitada atomização de responsabilidades.

De qualquer modo, e isto é o fundamental, não procede atribuiraos médicos, seja em nível individual ou grupal, a tomada de decisõesquanto ao avanço do processo de especialização na medicina. Omédico, o mais das vezes, torna-se especialista para se integrar aomercado de trabalho existente e não porque assim o tenha decididode moto próprio. Como especialista, poderá ter melhores oportunidadesde obter maiores salários ou honorários, porque o sistema de atençãomédica desenvolvido no Brasil privilegia o emprego de especialistas.Nessa qualidade, mesmo nos raros casos em que possa ser o dono deseus intrumentos de trabalho (porque a regra é o assalariamento, pelomenos nos grandes centros urbanos), a vinculação a instituições torna-se para ele quase obrigatória, desde que dificilmente estará emcondições de proporcionar atendimento aos pacientes encarados como

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uma totalidade. Entendemos, pois, que é de todo procedente fazer-seuma distinção entre o processo inicial de divisão social do trabalho eseu desdobramento, a divisão técnica e profissional: o significado socialdo primeiro processo é bastante nítido, enquanto, no segundo caso, émaior a motivação econômica, não dos que sofreram o processo,mas dos detentores dos meios de produção. Na divisão social, osbeneficiários são o conjunto da coletividade; na divisão técnica eprofissional, os prejudicados é que são muitos, e poucos osbeneficiários. Em tal situação, o especialista passa a ser vítima, porquenão encontra condições de exercer a clínica geral nem de proporcionarassistência médica integral.

CONCLUSÕES

Através da inversão na análise e interpretação, verificamosque o principal beneficiário da especialização provavelmente não é omédico nem o paciente, mas a “indústria” de assistência médica. Nãose esgota nela, contudo, o número dos favorecidos pelo processo.Também os setores industriais dedicados à produção de aparelhos einstrumentos indispensáveis à medicina sofisticada, confundida, nem,sempre com razão, com a de alto padrão. Uma colocação desse tipoé necessária para evitar a tendência de encarar apenas o médicolevado à especialização como o agente mais importante através doqual se pode e deve interpretar o problema. As pressões, condições efatores que desencadeiam e reforçam a tendência à especializaçãosão mais significativos: o mercado de trabalho médico, a intervençãodo Estado, as diversas esferas da produção voltadas para o setormédico, os processos econômicos que condicionam e mesmodeterminam a divisão técnica e profissional do trabalho. Os pacientes,por sua vez, são induzidos a valorizar o especialista com argumentosnem sempre racionais. Quanto aos governos, incentivam aespecialização pressionados por todos os atores envolvidos e tambémpara diminuir tensões numa área sensível como o é a da saúde. E asindustrias farmacêuticas e de material utilizado na prática médica de

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todo o tipo, seguindo a dinâmica do sistema capitalista, dependem dacriação de uma demanda (real ou artificial) cada vez maior demedicamentos, aparelhos, instrumentos, etc.

Por outro lado, o conjunto do empresariado interessa-se emaumentar a produtividade da força de trabalho mediante a melhoriaou recuperação, a baixo custo, das condições de saúde desta. Autilização de serviços médicos prestados por empresas e pelaPrevidência Social, empregando especialistas que fragmentam oatendimento, pretende fazer com que, mais rapidamente e a essecusto mais baixo, a mão-de-obra, sobretudo a mais qualificada, sejarecuperada para a atividade produtiva. Contudo, neste ponto,podem (ou poderão) surgir conflitos de interesse dentro do próprioempresariado, quando parte dele, dedicada à “indústria” dasaúde, eleva os gastos com a assistência médica, e o restante,empenhado em expandir seus ganhos, visa o aumento daprodutividade e, mais ainda, o da rentabilidade, o que implicana diminuição dos custos dos serviços médicos, de tensões dentro efora das empresas, ou seja, no sistema social global.

Ora, o aumento da rentabilidade exige a ampliação dademanda, o que pode ser prejudicado se os gastos com a atençãomédica se elevam em demasia, diminuindo a proporção das rendasdestinadas à aquisição de bens e serviços não médicos. Nestesentido, cremos poder concluir que, para os participantes diretosda relação, as conseqüências da especialização não foramrealmente benéficas, ou o foram em proporção bem menor doque se costuma referir.

Sendo acertadas estas conclusões, não pode ficar sem reparoo papel discreto e conservador que tem exercido a universidadebrasileira nesse particular, e especialmente suas faculdades demedicina. A função criadora, que deveria ter como princípio diretor eorientador um ponto de vista crítico, foi muito obscurecida. Uma eoutras exageraram seu papel de instituições transmissoras passivasde conhecimentos, não agindo sobre o meio no qual estão inseridas,mas tão-somente, de modo geral, recebendo seus influxos. Autênticas

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instituições universitárias não se podem transformar em simplesagências formadoras de profissionais de nível superior, desvinculando-se da missão maior que as define: o pensamento reflexivo e organizadoque não só afirma, mas, principalmente, duvida e nega, ou seja, crítico,o que implica na apreciação do valor desse pensamento (sob todos osaspectos) e da ação dele derivada.

Para exercer esse papel, a universidade precisaria agir sobre omeio. Para isso, os professores universitários, que são sem dúvida oque de mais importante existe na instituição, têm que atentar para osproblemas de sua realidade social, percebendo-os com maior clareza.Feito o diagnóstico da situação, tão preciso quanto seja possível, opasso seguinte é atuar no sentido de alterar seus aspectos que possamser considerados como indesejáveis. Ainda que a universidade sejatambém, em grande parte, um produto de processos sociais mais gerais,sobre os quais nem sempre pode atuar com vigor, nada obsta que ajadentro dos limites que lhe são outorgados e que, diga-se de passagem,podem ser alargados. Afinal, são os homens que fazem a história. Amaioria deles, é certo, tem condições excessivamente limitadas parafazê-la. Não, porém, em nosso entender, os membros da comunidadeuniversitária. Se eles, de quem se espera tenham uma consciênciamais aprofundada dos problemas, e cuja posição é superior à da maiorparte de outros grupos sociais, não tiverem um mínimo de condiçõespara alterar os rumos de um processo social parcial, teríamos quereconhecer que somos meros autômatos.

RESUMO

Da evolução da medicina como ciência aplicada à expansãoda procura de serviços médicos especializados, passando pelainfluência do professor-especialista sobre a decisão precoce do alunode optar por um ramo especializado, o autor faz um apanhado deexplicações do processo de especialização, para concluir que um deseus principais fatores é, no caso do Brasil, a política do sistema deprevidência social que favorece o especialista.

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São também citados: 1) a preferência (nem sempre justificada)do paciente — pelo menos o que pode pagar — pelo médico quetrabalha com equipamento sofisticado; 2) o interesse econômico daindústria que produz ou possui esse equipamento; 3) o desejo do médiconovo de escapar à acirrada competição que o esperaria na práticageral; 4) o interesse de muitos médicos, novos ou não, de sedescartarem da imagem um tanto negativa de parte de antigos clínicosgerais que não se mantiveram a par dos avanços da medicina.

Examinando a questão no contexto de teorias sociológicasda divisão social e técnica do trabalho, assinala o autor que oprocesso conduziu à atomização de responsabilidades entremédicos, que a especialização excessiva tornou incapacitadosde encarar o paciente como um todo biológico, psicológico, social ecultural.

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7. SOBRE TUBERCULOSE(com Antônio Ruffino Netto)

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7.1. MORTALIDADE POR TUBERCULOSE E CONDI-ÇÕES DE VIDA: O CASO RIO DE JANEIRO*

I – INTRODUÇÃO: O PROBLEMA

Voltou-se hoje, como num passado não muito remoto da históriada Medicina, a enfatizar a importância de fatores não-biológicosdeterminantes da morbidade e da mortalidade. Em algumasenfermidades a influência de tais fatores é mais nítida. Entre elas atuberculose. Nesta, já ficou patente que sua causa necessária é menossignificativa do que as condições suficientes. A simples presença dobacilo de Koch não basta para causá-la. Freqüentemente, os fatoresde ordem social, econômica e cultural têm que estar presentes paraque a moléstia se desenvolva. Assim sendo, muitas vezes, alteraçõesnas condições de vida das pessoas são fundamentais para explicarmodificações em sua incidência e prevalência.

Entendemos que os dados de mortalidade por tuberculose(coeficiente/100.000 habitantes), no antigo Distrito Federal (hoje,município do Rio de Janeiro), no período de 1860 a 1977,apresentados na figura 1 (8, 12, 13)1 poderiam exemplificar o queestamos afirmando. A impressão geral é de que se trata de umadoença cuja mortalidade está declinando progressivamente, comvelocidades aparentemente diferentes de acordo com períodos

*Artigo redigido em colaboração com Antônio Ruffino Netto. Publicado originalmen-te em Saúde em Debate, Nº 12, 1981, pp. 27-34.1 Deve-se assinalar que os dados referentes ao período de 1860 a 1940 foram recupera-dos a partir da referência 12, pág. 48.

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históricos.Uma vez que estes dados estão apresentados em escala

aritmética, qualquer conclusão seria um tanto precipitada podendolevar a inferências descabidas. Projetando-se, contudo, estasinformações numa escala semi-logarítmica (apresentada na figura 2)é possível perceber que a “curva total” é composta por 3 retas, quetraduzem a tendência de mortalidade por tuberculose a declinar comvelocidades desiguais, de acordo com diferentes períodos. Assim éque para o período que antecede 1885, encontrou-se:

log y = 24,7611 – 0,0117X;para o período que medeia entre 1885 e 1945, encontrou-

se:log y = 11,4965 – 0,0046X;após 1945 encontrou-se:log y = 75,9634 – 0,0378Xonde:y = coeficiente de mortalidade/100.000x = ano calendário.

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Apesar de se tratar de dados de qualidade discutível, sendo emparte, inclusive, recuperados a partir de um gráfico, é inegável quehouve decréscimo nos coeficientes de mortalidade por tuberculoseem períodos em que, praticamente, não havia ocorrido nenhum avançosignificativo no tratamento da enfermidade por tuberculostáticos.

Dado que a tendência do fenômeno (mortalidade) se apresentasob forma de 3 retas2 , sendo 2 “relativamente” paralelas,imediatamente nos perguntamos: “que fatores teriam condicionado

2 Se se tentasse ajustar uma única regressão para o período de 1860 a 1945, a retaseria dada por : log=15,7622 - 0,0069X, onde se observa um coeficiente de declínio(0,0069) que é cerca de 1,7 vezes menor do que o observado no período 1860-1885(0,0117), ou seja 0,0117/0,0069=1,7; por outro lado, seria 1,5 vezes maior do que oobservado no período 1885-1945 (0,0046), ou seja, 0,0069/0,0046=1,5. Estasconsiderações reafirmam a conveniência de se tratar o problema da tendência comoconstituído por 3 retas separadamente.

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tal comportamento?”. Formulamos um conjunto de hipóteses tentandoexplicar as diferentes velocidades de declínio expressas pelas 3 retas.

Uma primeira hipótese poderia ser a busca de uma interpretaçãoque analisasse o fenômeno de um ponto de vista estritamente biológico.Assim é que, quando se pensa nas relações hospedeiro-parasita algunsepidemiologistas(1) assinalam que haveria diferentes períodos: numaprimeira etapa das relações entre hospedeiros e parasita resultariama doença e a morte. Existiria, contudo, um imperativo biológico quelevaria ambas as espécies a sobreviverem e alcançarem uma condiçãode equilíbrio depois de muitas ondas epidêmicas que, gradualmente,iriam se amortecendo, passando-se assim de uma situação epidêmicapara uma endêmica. Haveria, desta forma, uma modificação marcante(quantitativa e qualitativa), na relação hospedeiro-parasita, passandopor períodos de flutuações epidêmicas, períodos de flutuaçõesdecrescentes (ondas amortecidas) e período de endemia.

Para comprovar tais colocações, ARMIJO (1, pp. 6-9) lançamão de 3 tipos de argumentos: a) história da medicina (mostrandoestatísticas de mortalidade por escarlatina em Liverpool no períodode 1849 a 1925, bem como as variações ocorridas na mortalidadepor sarampo e difteria); b) epidemiologia experimental; c) epidemiasgeradas teoricamente.

Assim, para a tuberculose (biologicamente falando), seriade se esperar que após sua introdução no Brasil3 , estivéssemos, desdemuito antes de 1860, numa etapa de ondas epidêmicas decrescentes.

Milita contra a aceitação desta teoria o fato de que ela poderiaser válida para uma população relativamente fechada, com movimentosmigratórios desprezíveis, especialmente externos, o que,absolutamente, não se aplica ao caso em tela. De fato, nele, as relaçõeshospedeiro-parasita não ocorreram dentro da situação teórica,hipotética, descrita, e sim no interior de uma sociedade cuja estruturapopulacional (qualitativa e quantitativamente) estava apresentandomudanças tão rápidas que poderiam alterar completamente o

3 Atribui-se ao Pe. Manuel da Nóbrega, chegado em 1549, o ter sido a primeirafonte conhecida de infecção neste país (12, p. 17).

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comportamento da tendência da doença.Em face disso é que entendemos que as variações assinaladas

devem ser atribuídas, fundamentalmente, a modificações nas condiçõesde existência da população carioca, sobretudo das classes sociaisdesafortunadas. Esta constatação nos encaminha ao exame depossíveis transformações ocorridas na formação econômico-social,representada pela região do Rio de Janeiro, ou mesmo pelo Brasil, noperíodo em discussão. Serão algumas destas modificações, quereputamos terem sido expressivas, que apontaremos e discutiremos aseguir.

II – PRIMEIRO PERÍODO: 1860-1885

Em relação ao primeiro período e parte do segundo, cremosque as modificações observadas na curva de mortalidade,possivelmente, estão bastante vinculadas com alterações ocorridasna economia cafeeira. Esta se desenvolveu inicialmente, como sesabe, no Vale do Paraíba, tanto em terras da província do Rio deJaneiro, como em regiões de Minas Gerais e São Paulo ligadas àcapital do Império. O período de fastígio do café, no Vale do Paraíba,segundo STEIN (17), ocorreu entre 1850 e 1864, sendo o período dedecadência o representado pelo último quartel do século passado.Isto está de acordo com as indicações de CELSO FURTADO (6, pp.137-138), que mostra como os anos 30 e 40 do século XIX foram depreços declinantes para o café, ao passo que a partir de 1850 ascotações passaram a apresentar-se em alta. Disso se poderia concluirque a maior parte do terceiro quartel do século passado se constituiunum período de prosperidade para toda a região cafeeira do Vale doParaíba voltada para o Rio de Janeiro. Quanto à própria cidade, é desupor-se que as modificações das condições de vida nela imperantesse tenham processado no sentido de favorecer uma existência maissaudável.

Presumimos, igualmente, que a prosperidade proporcionada pelocafé repercutiu na composição demográfica da cidade. Em primeiro

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lugar, essa prosperidade teria atraído imigrantes europeus desejososde se aproveitarem do crescimento econômico gerado pela culturado café, seja como prestadores de serviços, seja como elementosvinculados ao seu comércio. É preciso que se diga que a expansãoeconômica do Vale do Paraíba foi possível, em grande parte, graças acapitais e créditos fornecidos pelo capital financeiro internacional daépoca. No Rio de Janeiro estabeleceram-se casas exportadoras (eimportadoras) e outros intermediários. Não seria descabido conjecturarque os estrangeiros atraídos pelas possibilidades econômicas abertaspor essa expansão fossem mais saudáveis do que os habitantes nativos.Em segundo lugar, a criação de empregos em maior número e maisrendosos, aliada ao fato de que a cidade era o centro do Império,proporcionando aos seus moradores, com condições de se acercaremdo poder, possibilidades de maior ascensão social e política, exerceriaatração sobre pessoas de condição sócio-econômica elevadaresidentes em outras partes do Brasil. Esse movimento migratório,por ter atraído pessoas com menores possibilidades de seremportadoras de tuberculose ou de a contraírem, repercutiria nodecréscimo do coeficiente de mortalidade por essa enfermidade.

Esse processo de europeização e de embranquecimento dacidade, indicado acima, vinha já desde a vinda da família real para oBrasil. No entanto, um outro fenômeno migratório que teria contribuídopara isso, a diminuição do número relativo de negros e mulatosescravos poderia ter sido determinado por uma utilização crescente,pela lavoura cafeeira, de seres humanos vivendo em condição servilantes utilizados em serviços domésticos e outros afazeres urbanos.Julgamos que se teria passado algo semelhante ao que ocorreriaposteriormente na cidade de São Paulo: quando o chamado “oestepaulista” ultrapassou o Vale do Paraíba como principal região produtorade café do Brasil, houve deslocamento da mão-de-obra escrava dacapital para o interior, afluxo de libertos para a capital e acréscimo dapopulação branca graças à fixação de imigrantes (4, pp. 9/10). Dadoque a condição de vida do escravo sujeitava-o a um muito maior riscode se infectar pelo bacilo de Kock, qualquer redução relativa de seu

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número contribuiria para o decréscimo dos coeficientes de mortalidadepor tuberculose.

A intensificação das influências sócio-culturais européias, quese estava operando desde há muito, como se disse atrás, manifestou-se numa série de alterações na forma de viver do povo brasileiro.Elas abrangeram o tipo de habitação, hábitos alimentares, vestimentas,vida familiar etc. Gilberto Freire entende ter havido uma“reeuropeização” da sociedade brasileira, com importantes mudançasnos hábitos coloniais. A progressiva ocidentalização teria restringidoas velhas influências orientais (2,5).

Vale a pena destacar alguns dos aspectos anteriores quepassaram a ser criticados. No caso da habitação, a alcova, local dosono, na casa colonial estava situada no centro da residência. Ela“não dispunha de aeração, iluminação ou qualquer outra comunicaçãocom o exterior” (2:100; 5:419). Calcado em Freire e F. P. Candido,afirma J. F. Costa que, “do ponto de vista da higiene, a habitaçãoantiga prestava-se a todo tipo de crítica. Sua arquitetura fechada,impermeável ao exterior, elaborada para responder ao medo dos ‘mausares’, ventos e miasmas foi cruamente atacada pelos médicos comoinsalubre e doentia”. Em seus “Relatórios sobre as medidas desalubridade reclamados pela cidade do Rio de Janeiro”, Francisco dePaula Candido afirmaria: “As casas do Rio de Janeiro parecemdestinadas antes a Lapônia ou à Groelândia do que à latitude tropical...uma fatal alcova, dormitório predileto, escura e modesta sala com umcorredor escuro; uma sala de jantar, de costurar, de tudo, exceto desaúde, pouco mais escura do que a sala da frente, mas munida deinfalível alcova, mediante ou não outro corredor, a cozinha térrea” (2,p. 110: 5, pp. 433-4).

Com a “reeuropeização” da cidade, estimulada pela imigraçãode maior número de europeus, facilitada pela melhoria das condiçõeseconômicas e ativada pela ação dos médicos, a casa vai se tornandomais higiênica. Já durante a estada da família real, haviam sido abolidasas rótulas ou gelosias. Paulatinamente, as casas, até então escuras eúmidas, passam a apresentar outras características, com janelas e

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portas mais amplas. Ganhavam outra aparência, com modificaçõesno seu interior. Concomitantemente, há mudanças nas roupas e noshábitos higiênicos; desenvolvem-se novos gestos, rituais e atitudes (2,pp. 123-150).

De qualquer forma, as alterações na arquitetura levaram àconstrução de casas com melhores condições de aeração e deinsolação. As casas do período anterior, bastante fechadas e escuras,visando proteger seus moradores dos “miasmas”, provavelmenteseriam, ao mesmo tempo, excelentes ambientes à manutenção dobacilo de Kock e sua transmissão. Trabalhos bem recentes no campoda Tisiologia têm mostrado a preocupação e o interesse dospesquisadores em relação a essas condições de manutenção etransmissão do bacilo de Kock (14, 18), assinalando o quanto aventilação e insolação são elementos importantes no controle datuberculose. Tal ocorrência, por si só, possivelmente, teve grande efeitonas condições de transmissão da doença e, portanto, na epidemiologiada enfermidade no período assinalado.

Importantes para a compreensão do fenômeno que estamosdiscutindo serão também as mudanças operadas nos costumes, hábitosfamiliares e valores. As mulheres, por exemplo, são incitadas a sairmais de dentro de suas casas. O mais significativo, talvez, tenha sido,contudo, a transformação ocorrida no papel representado pelo escravodoméstico. Ele passou a significar uma ameaça à saúde, principalmentepara as crianças, tendo sido “alinhado junto com os miasmas, insetose maus ares” (2, p. 122). Entendemos que o fator fundamental nessaexclusão dos escravos do serviço doméstico esteja relacionada comsua crescente utilização na lavoura cafeeira, onde o capital por elerepresentado seria muito mais rentável. Não se deve ignorar,entretanto, o efeito de demonstração constituído por aristocratasportugueses e burgueses estrangeiros que acorriam ao Rio de Janeiro,que raramente admitiam negros ao seu serviço. De qualquer forma,também os brasileiros começaram a dispensá-los.

Outro estímulo nesse sentido foi dado pelos médicos, quepassaram a responsabilizar os negros pela perpetuação de hábitos

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incultos, de maneiras grosseiras e rudes e de serem fonte de variadosmales, constituindo uma ameaça para a saúde (2, pp. 125-6). Umadas conseqüências da exclusão dos escravos do ambiente familiar,em termos de processo de transmissão do bacilo de Kock, foi deque, com ela, diminuiu bastante a excessiva aglomeração de pessoassob o mesmo teto, existente no começo do século XIX. Luccock,por exemplo, “calculava que o número de pessoas numa casa do Rio,em 1808, era de 15”, enquanto Gendrin estimava que “numa famíliacomum havia 7 ou 8 negros” (2, p.84). A par disso, os médicos daépoca passaram a apontar, cada vez mais, a inconveniência de muitaspessoas dormirem no mesmo quarto. Mais ainda fizeram os médicos.O Dr. Paula Candido, presidindo a Junta Central de Higiene da capitaldo Império, conseguiu, junto ao Parlamento, que fossem adotadasnovas medidas sanitárias para início de controle da tuberculose. “Assimé que, pelo Decreto nº 6.387, de 15 de novembro de 1876, os serviçossanitários, em diversas cidades do Império, foram reorganizados” (12,pp. 43-44). Muitas das leis baixadas a partir de 1870 estavamrelacionadas com as condições de habitação. Tanto assim que,“de 1876 a 1886 foram baixados cinco decretos e um aviso ministerial,além de várias instruções, relativamente à polícia sanitária domiciliar.Preocupava-lhes muito o problema das condições higiênicas dashabitações coletivas, chamadas ‘cortiços’ e as epidemias de varíola,febre amarela, disenterias, visitantes habituais da cidade” (12, p.45).

Em suma, percebe-se que uma série de fatores interatuantespoderia estar, no período em causa, interferindo na epidemiologia datuberculose e, conseqüentemente, na mortalidade pela mesma.

III – SEGUNDO PERÍODO: 1885-1945

No segundo período continuou a decrescer a taxa demortalidade por tuberculose, ainda que o ritmo da queda tenhadeclinado, passando 0,0117 para 0,0046 (ou seja 2,5 vezes menor).Este declínio não significou uma piora das condições de vida. Teriasido como se, nesse intervalo de tempo, os fatores positivos e negativos

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tendessem a um certo equilíbrio, ainda que com predomínio dosprimeiros. Muitos daqueles a que nos referiremos a seguir propiciaramantes melhores condições de vida do que piores, ainda que, às vezes,possam ter atuado, durante algum tempo na segunda direção. Istoexplicaria a queda do ritmo. Lancemos mão de um exemplo: aexpansão do processo de industrialização no antigo Município Neutro.Geralmente este processo, em seus primórdios, é visto como tendocontribuído para a piora daquelas condições, sobretudo porquetendemos a compará-lo com o acontecido na Inglaterra.

Nesta, no entanto, o avanço do capitalismo industrial significoua transformação do artesão e do camponês em assalariados. Istoimplicou seu despojamento da propriedade dos meios de produção deque gozavam. No Brasil as coisas não se passaram do mesmo modo.As condições de trabalho na indústria eram igualmente péssimas.Ocorre que as condições de vida anteriores eram também desumanas.O trabalhador industrial brasileiro, no início do processo, geralmente,ou tinha sido escravo ou um homem livre que não encontravalugar num sistema econômico-social em que se era escravo ousenhor. Disso decorreu a existência de uma população marginal nascidades (11) inclusive, e talvez principalmente, no Rio de Janeiro.

Do mesmo modo que usamos a industrialização paraexemplificar nosso raciocínio, poderíamos ter usado outros processos,como os de migração e de urbanização. Enfim, cremos que, noconjunto, a partir da década de 1880, os fatores e condiçõesintervenientes melhoraram menos significativamente as condições deexistência, quando as comparamos com tempos anteriores.

Julgamos que, também neste período, as variações observadasna taxa de mortalidade por tuberculose estão grandementerelacionadas, pelo menos nas primeiras décadas do mesmo, com aeconomia cafeeira. Ao contrário do que ocorrera nas décadasanteriores, o último quartel do século passado foi de decadênciadessa economia no Vale do Paraíba.

Uma das repercussões graves dessa situação teria sido a quedado poder aquisitivo dos grupos ligados à economia cafeeira, com

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conseqüências negativas sobre a atividade comercial e de serviçosem geral, agravada pela tendência desses grupos de minimizaremsuas perdas através do conhecido processo de socialização dosprejuízos, mediante a depreciação externa da moeda. Tal processoacabava encarecendo excessivamente o preço dos produtosimportados, os quais constituíam parcela importante dos bensconsumidos por uma população como a do Rio de Janeiro. Isto teriaproduzido uma piora do padrão de vida da população da cidade.

A queda de produção e de preços do café, aliada ao definitivosolapamento do regime escravocrata em 1888, determinou ummovimento migratório de ex-escravos para o Rio Janeiro. Sepermanecessem nas zonas cafeeiras decadentes do Vale do Paraíba,teriam que se submeter a condições de trabalho “substancialmenteanálogas às anteriores” ou teriam de se integrar na economia desubsistência (4,p.5). Entre estas duas opções teriam optado, em grandeparte, pela migração para o Rio de Janeiro.

Nesta cidade, possivelmente, viveram em condiçõesprecárias de vida. De um lado, por não estarem preparados paracompetir por posições estratégicas no sistema econômico, coube-lhesos setores residuais da economia (4, pp.5-6). De outro, porque teriamresistência a venderem sua força de trabalho, tendendo a identificarliberdade com o não-trabalho, “com o direito de não fazer nada” (4,p.56; 3). Ora, para que alguém venda sua força de trabalho é precisonão somente que seja despossuído de meios de produção, mas tambémque esteja ideologicamente disposto a vendê-la, não preferindo “àcondição de assalariado, a miséria e mendicidade” (15, p.45). Emvista disso, possivelmente, suas condições de vida, mormente emtermos de alimentação e de moradia, deviam ser precárias.Conseqüentemente, é de se supor que sua saúde também o fosse,tornando-se pessoas mais predispostas a desenvolverem a tuberculosedoença.

Se os antigos escravos resistiam à sua transformação emtrabalhadores assalariados, submetendo-se com dificuldade “àdisciplina própria à produção capitalista”, também uma parcela de

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brasileiros brancos despossuídos tendiam à mesma resistência. Istoporque, no Brasil, era máximo o preconceito contra o trabalho braçalpor estar identificado com uma atividade exercida por escravos. Emconseqüência, qualquer depressão dos setores de serviço poderia fazercom que piorassem as condições de vida, inclusive sob este aspecto.

A decadência da economia cafeeira do Vale do Paraíba teriaainda contribuído para o grande crescimento demográfico da cidade.Tinha ela, conforme os dados dos Censos gerais, 274.972 habitantesem 1872, 522.651 em 1890, 811.443 em 1900, 1.157.873 em1920 e 1.764.141 em 1940, do que se depreende que o grande salto,em termos demográficos, ocorreu no último quartel do século passado.É que, sabidamente, com a crise do café, há um refluxo dos colonospara as cidades (7, pp.45), em busca de empregos na burocracia, nosserviços e mesmo na indústria em expansão. A cidade “incha” emtermos populacionais e, dadas suas condições geográficas, quedificultam a ocupação do espaço, as habitações “sobem” os morros.Cortiços e favelas tornam-se locais de moradia. Estamos diante deuma urbanização sociopática que facilita a disseminação daenfermidade.

Inversamente, a crise cafeeira no Vale do Paraíba induz a umabandono do mesmo por parte de grandes plantadores, que são atraídospelo oeste paulista. Da mesma forma, ela leva a um déficit imigratório,com muitos dos melhores elementos estrangeiros buscando outrospaíses, como a Argentina e os Estados Unidos. De fato, em 1900,pela primeira vez, o número de emigrados do país superou o deimigrados para ele, sendo que em 1903 o excesso de saídas sobre ode entradas superou 18.000 pessoas (11, p. 219). De modo geral, aspessoas que migram são as mais competentes, ativas e esforçadas. Éclaro que se poderia dizer o mesmo dos migrantes internos queprocuraram o Rio de Janeiro. No entanto, é de se presumir que osque saíam eram mais saudáveis do que os que chegavam. Além domais, estes vão enfrentar condições de vida mais precárias pelo próprioexcesso de pessoas vivendo na cidade.

A migração é facilitada pelas estradas de ferro. A que se dirigia

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a São Paulo, a D. Pedro II, alcançou seu ponto terminal em Cachoeira,em 1874 (9, p.74), quando a lavoura cafeeira entrava em decadência.Destacaremos aqui não tanto o fator de prosperidade por elarepresentado, e sim o fato de que sua existência não só facilitou aprocura do Rio de Janeiro pelos migrantes, como a expulsão de seusproblemas sociais pelas cidades menores do Vale do Paraíba.Realmente, muitas vezes, as pequenas cidades se deparam com ummenor número desses problemas, em relação às metropóles, emdecorrência de tenderem a repeli-los para estas últimas. Entre taisproblemas, poderíamos incluir todos os socialmente indesejáveis, quesão pressionados a abandoná-las, inclusive os tuberculosos, vítimas,especialmente no século passado, de sério estigma social. Dentrodessa mesma linha de raciocínio é possível levantar outra hipótese. Ade que a diminuição do ritmo de queda dos coeficientes de mortalidadepor tuberculose decorreria, parcialmente, do fato de que essafacilidade de comunicação permitiria às pessoas doentesdemandarem em maior número o centro de assistência médica queera o Rio de Janeiro.

Entre os fatores negativos que poderiam contribuir para essadiminuição poderíamos, talvez, incluir também a migração estimuladapela grande seca de 1877-80 que despovoou o interior nordestino.Ainda que a maior parte dos migrantes se tenha dirigido para o valeamazônico, uma parcela dos mesmos, habitantes dos Estados maisao sul da região, se dirigiram tanto para São Paulo como para o Riode Janeiro. Tratando-se de pessoas geralmente subnutridas, comresistências orgânicas reduzidas, pode-se conjecturar que se tenhamconstituído presa mais fácil para a moléstia. Acrescentaríamosigualmente a esse conjunto de fatores negativos a expansão daburocracia com a instauração da República. A incorporação aosquadros da organização burocrática, pressupomos, freqüentementesignificou vida sedentária, trabalho em ambientes fechados, poucoensolarados e arejados, com roupas inadequadas ao clima da cidade.

Julgamos, contudo, que o processo social mais importanteocorrido no período e ao qual se poderia atribuir boa parte da explicação

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pelo acontecido com a curva de mortalidade por tuberculose, teriasido, ao lado do de urbanização, o de industrialização. A indústria emexpansão no Brasil, desde o final do Império e nas primeiras décadasdo período republicano, concentrou-se no Distrito Federal.Evidentemente, as condições de trabalho vigentes nos primeirosestabelecimentos industriais deviam ser bastante insalubres,especialmente se considerarmos que mais da metade dessa atividadeocorria no setor têxtil. Assim é que, em 1889, 60% do total do capitalindustrial estava aplicado nesse setor, (16, p.16), no qual,reconhecidamente, as condições de trabalho são geralmente piores.

Em relação à primazia do Distrito Federal no parque industrialbrasileiro, isso fica claro, quando nos utilizamos dos dados do CensoIndustrial de 1907. Nessa data, nos 3.250 estabelecimentos industriaisbrasileiros trabalhavam 150.841 operários, sendo que, à capitalde República, cabiam 30% da produção total, 24% do operariado e20% dos estabelecimentos (16, p.17), ou, mais precisamente, 670empresas e 35.243 operários (15, p.84). Nessa época, São Paulocontribuía com 16% da produção total. Já pelo Censo de 1920 existiamno Distrito Federal 1.541 estabelecimentos industriais, nos quaistrabalhavam 56.229 operários.

Nas primeiras décadas, esse desenvolvimento industrial usoumão-de-obra que não encontrava lugar na economia cafeeira e quese fora concentrando no Rio de Janeiro. É claro que a remuneraçãoera baixa, tendo sido este, inclusive, um dos principais fatores daprosperidade dessa indústria. De fato, essa “população marginal, semocupação fixa e meio regular de vida, era numerosa”, encontrandodificuldade em se “entrosar normalmente no organismo econômico esocial do país. Isto (...) resultava em contingentes relativamentegrandes de indivíduos mais ou menos desocupados, de vida incerta ealeatória e que davam, nos casos extremos, nestes estadospatológicos da vida social, a vadiagem criminosa e a prostituição(...). A indústria nascente (...) encontrará naqueles setores dapopulação um largo, fácil e barato suprimento de mão-de-obra”(11, p.203).

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As novas condições de vida proporcionadas pelo trabalhoindustrial, mal remunerado e ao mesmo tempo insalubre, poderiamter contribuído para manter relativamente elevada a incidência datuberculose entre os trabalhadores industriais. É de se supor,contudo, que o grosso das vítimas da enfermidade estivesseconcentrada nessa população marginal, sem ocupação fixa, a que serefere Caio Prado Jr., pois o desenvolvimento industrial carioca não éde molde a ocupar toda ela. Além do mais, estava essa população emconstante crescimento, devido à atração exercida pela cidade grande,capital do Império e da República, sobre pessoas de todo o Brasilmas, principalmente, sobre as que antes habitavam o Vale do Paraíbae que não encontravam, nas pequenas “cidades mortas” da região,possibilidades de subsistência.

Vários acontecimentos, como a Primeira Guerra Mundial,as constantes crises do café, o “crack” do capitalismo mundial de1929-30, a Revolução de 1930 e a Segunda Guerra Mundial, nãoforam de molde a alterar significativamente para melhor a situaçãoque expusemos.

IV – TERCEIRO PERÍODO: APÓS 1945

Num período posterior ao término da Segunda Guerra Mundial,aumenta a velocidade de declínio da curva por tuberculose. Ela passaagora a 0,0378. Entendemos que esse aumento de velocidade foidevido ao fato de que convergiram condições e fatores de naturezasócio-econômica, que melhoraram o padrão de vida de grande parteda população vivendo exclusivamente no Rio de Janeiro, e fatores deordem estritamente médica, como a utilização extensiva e intensivade tuberculostáticos.

A industrialização se intensificou no período subseqüenteao final da guerra, mercê de um processo de substituição deimportações grandemente estimulado pela deterioração dasrelações de troca. De fato, com a queda acentuada dos preçosdos produtos primários no mercado internacional, tivemos cada vez

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menos capacidade de continuar importando produtos industrializadose, portanto, fomos obrigados a produzi-los internamente. Com isso,houve possibilidade de absorver uma porção razoável de mão-de-obra pelo setor industrial e por setores comerciais e de serviçosaltamente beneficiados pela expansão da indústria. Os salários reaisaté mesmo subiram, principalmente a partir da segunda presidênciade Vargas e até 1958 pelo menos.

Mesmo quando estes começaram a cair, com a política salarialposta em prática a partir da segunda metade da década de 60, o fatode as indústrias continuarem a se concentrar no município, mas nãograndes parcelas da população trabalhadora, poderia explicar aquelacontinuada curva de mortalidade. De fato, é possível que a populaçãomoradora das cidades-dormitórios não contribua para a mortalidadegeral e específica da cidade do Rio de Janeiro. Assim, assumimos ahipótese de que grande parte da população moradora nesta ébeneficiária do processo de industrialização, da expansão do turismo,do desenvolvimento dos serviços públicos etc. e que, ao mesmo tempo,parte ponderável da população trabalhadora, que poderia ser a maisprejudicada, em vista de morar na Baixada Fluminense, não contribuipara a elevação de suas taxas de morbidade e mortalidade. Da mesmaforma que a descentralização de atendimento dos tuberculosos (comose verá adiante) retirou grande número deles da cidade, aimpossibilidade de muitos trabalhadores viverem na mesma, diminuiriaa mortalidade por tuberculose.

É possível também que o Rio de Janeiro se tenha beneficiadocom a transferência da capital para Brasília. Tornando-se menosatrativa, em termos de migração interna, diminuiu seu ritmo decrescimento demográfico, com repercussões positivas naquelas taxas.Talvez até mesmo atraia, em proporção igual ou até maior doque no passado, pessoas de elevada posição sócio-econômica,que nela passam a residir.

Sendo, além do mais, uma cidade que concentra parterazoável das classes possuidoras e dominantes, a prosperidadegeral do país repercute sobre ela. Mais ainda. É sabido que há

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uma tendência de os governos aplicarem mais recursos materiais nasregiões próximas ao poder. Especialmente depois da redemocratizaçãodo país em 1945, quando os chefes do poder executivo dependiam dovoto das grandes cidades, o Rio de Janeiro pode ter atraído benefíciospara si, com a elevação da arrecadação de impostos e taxas federais,por ser, ao mesmo tempo, grande cidade e capital do país.

Quanto a medidas de caráter médico-preventivo desenvolvidasno período, é preciso que consideremos que muitas delas só alcançamcerta repercussão depois de alguns anos, de modo que incluímos aquialgumas tomadas durante a Segunda Grande Guerra. É de 1940, porexemplo, o Plano Federal de Construção de Instalação de Sanatóriosque previu o término do Sanatório do Distrito Federal que fora iniciadoem 1937 (12, pp. 127-138). Em 1941 foi criado pelo DepartamentoNacional de Saúde o Serviço Nacional de Tuberculose (SNT), aoqual caberia dedicar-se, especificamente, ao estudo dos problemasrelativos à tuberculose e ao desenvolvimento de meios de açãoprofilática e assistencial (12, pp. 144-152). No ano seguinte criaram-se, naquele Departamento, cursos de aperfeiçoamento e especializaçãoem Tisiologia (12, pp 141-2). De 1942 a 1945 o SNT instalou einaugurou vários sanatórios por todo o Brasil, estendendo a assistênciaaos tuberculosos do interior do país, procurando evitar seu afluxopara as capitais. Outras atividades desenvolvidas pelo SNT, a partirde 1942, poderiam modificar a epidemiologia da doença, entre as quaisum censo torácico-tuberculínico em todo o país (tentando vacinar osanalérgicos, orientar os já infectados e isolar os bacilíferos). Tal censofoi efetuado através de núcleos fixos e móveis. Núcleos fixos foraminstalados no próprio Distrito Federal e, no Estado do Rio de Janeiro,em Volta Redonda e Petrópolis, enquanto um móvel, fazendo pião emCampos, foi instalado num vagão da Estrada de Ferro Leopoldina,servindo a zona norte fluminense.

Em 1946 foi criada a Campanha Nacional Contra a Tuberculose(CNCT) (12, pp. 169-192), que passou a coordenar todas as atividadesde controle da doença, dando-lhes uniformidade de orientação e decomando, ainda que sugerindo a descentralização dos serviços. As

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atividades da CNCT aumentaram, sem dúvida, a eficiência doprograma de controle da enfermidade, alterando,dessa forma, seuquadro de mortalidade, não só no Rio de Janeiro como em todo opaís.

Por fim, devemos ressaltar a grande contribuição para o declíniodas taxas de mortalidade determinada pela utilização dostuberculostáticos: estreptomicina a partir de 1948; ácido para-amino-salicílico (PAS) a partir de 1949; hidrazida a partir de 1952 (12, p.48).

V – COMENTÁRIOS FINAIS E CONCLUSÕES

Ainda que a qualidade dos dados trabalhados seja discutível,como já foi assinalado na “Introdução”, parece-nos ser inquestionáveluma alteração significativa na tendência secular de mortalidade portuberculose no Rio de Janeiro. Ressalte-se, além do mais, a adequaçãodo uso de dados de mortalidade para se estudar a epidemiologia dessaenfermidade. Afirma A. Pio a respeito: “a mortalidade é o indicadormais apropriado para a descrição epidemiológica do problema e aobjetivação do propósito de mudança. Sua escolha se justifica porquea mortalidade, além de ser o indicador de que se dispõe de melhorinformação, é ainda de alta magnitude na maior parte da população”da América Latina (20).

O conjunto de hipóteses levantadas neste trabalho procuroudestacar a importância dos fatores inespecíficos para explicar aalteração da tendência. De fato, os métodos de controle da tuberculose(entendidos como ações de saúde que interferem no ciclo naturalde transmissão da doença) podem ser classificados emespecíficos e inespecíficos. Entre estes, tem-se enfatizado arelevância do desenvolvimento sócio-econômico que “determina,entre outras coisas, uma melhoria nas condições de alimentação,aumentando as defesas naturais inespecíficas e, portanto,diminuindo o risco de morbidade dos infectados; de habitação,diminuindo o grau de contato entre o caso bacilífero e o grupo

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humano que o rodeia; e de atenção médica, diminuindo o tempo entrea aparição da doença e o tratamento”. Quanto aos métodos específicos(vacina, quimioprofilaxia, diagnóstico e tratamento), têm eles “um efeitodireto sobre a transmissão da infecção, o risco de ficar doente, emorrer por tuberculose” (10).

Mesmo sem ter esgotado todas as possíveis hipótesesexplicativas das tendências periódicas observadas, julgamos poderconcluir que, apesar de ser marcante o impacto determinado pelosmétodos específicos de controle da tuberculose, não menossignificativo é o efeito dos métodos inespecíficos. Acrescente-se quea repercussão destes é muito mais abrangente, em termos de saúde,dado que a melhoria das condições de vida reduz a morbi-mortalidadede grande número de doenças e não apenas da tuberculose.

RESUMO

Os autores analisam os dados de mortalidade por tuberculosena cidade do Rio de Janeiro no período de 1860 a 1977. Através deuma metodologia específica evidenciam que a curva de velocidadede declínio da mortalidade se ajusta a 3 regressões distintas,equivalentes aos períodos 1860-1885; 1885-1945 e após 1945.

Efetuando um estudo da formação econômico-social dacidade, região (e mesmo do Brasil) destacam alguns fatores(econômicos, demográficos, sociais, político-sanitários) queapresentam como hipóteses explicativas para as diferentesvelocidades de declínio.

Concluem que apesar de ser marcante o impacto determinadopelos métodos específicos de controle da tuberculose, não menossignificativo é o efeito dos métodos inespecíficos de controle(melhoria de condições de vida).

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7.2 - SAÚDE-DOENÇA E SOCIEDADE

A TUBERCULOSE – O TUBERCULOSO*

1 – INTRODUÇÃO

De um modo geral, na visão da doença pelos técnicos da áreade saúde, busca-se um relacionamento entre fatores (guardando uma“racionalidade interna”) tentando descrever o que se chama histórianatural da enfermidade. Assim é que encontramos uma série bemgrande de “ciclos biológicos” de bactérias, parasitas, fungos, etc. jámuito bem descritos e elaborados sem margem para maiorescontestações. Uma vez descritos estes ciclos, tem sido preocupaçãodaqueles que militam na área da Saúde Pública descobrir elos dareferida cadeia que sejam mais frágeis e/ou vulneráveis para aí atuaremna tentativa de reduzir o problema focalizado.

É certo que a história tem mostrado que alguns destes elosforam profundamente estudados, trabalhados e, quandomanuseados, capazes de causar um impacto marcante na reduçãodo problema. Exemplo deste fato é a vacinação antivariólica.

Nosso propósito porém, dado que discorreremos sobreproblemas de saúde humana, é, ao voltar nossa atenção para os ciclosbiológicos das doenças, focalizá-la num determinado ponto do ciclo(independentemente do seu tamanho) no qual surge o homem(esquema 1).

Na quase totalidade dos casos, a busca da “racionalidadeinterna” da cadeia epidemiológica procura ver o círculo descrito como

*Artigo escrito em colaboração com Antônio Ruffino Netto e publicado originalmenteem Medicina, 15 (1 e 2): 5-11, 1982.

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se fosse uma letra O ou um zero. Contrariamente a este modo de ver,no presente trabalho enfatizaremos o fato de que esse ciclo único(um zero), pode ser transformado em pelo menos 2 ciclos (isto é, numoito) que tem um ponto em comum, qual seja um homem, histórico,concreto, que preenche um lugar no tempo e no espaço (esquema 2).O questionamento da razão daquele homem ocupar aquele lugar enaquele tempo, poderá mais facilmente explicar porque ele fatalmenteserá engajado num ciclo biológico de uma doença qualquer.

(ESQUEMA 1)

(ESQUEMA 2)A reflexão sobre esta maneira de encarar o problema mostra-

nos que impactos seguramente serão causados, na redução da doença,

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atuando-se tanto no ciclo I como no II. A eficácia e eficiência daatuação num ou noutro ou em ambos deveria ser devidamenteanalisada pelos militantes da Saúde Pública ainda que varie sua visãodo problema.

A título de ilustração, tomaremos a tuberculose. No ciclo I,mostraremos como o problema biológico é visto e o que tem sidoobtido; quanto ao ciclo II, não cabe mostrar “cadeia de fatores”, mastão somente que as relações sociais globais é que levam aqueledeterminado indivíduo a ocupar aquele determinado ponto do ciclobiológico num instante dado, no qual, freqüentemente, se tornará umtuberculoso. Vê-se, de imediato, que a solução do problema dotuberculoso está muito restrita ao ciclo I, enquanto o entendimento doprocesso gerador da tuberculose tem o seu componente explicativono ciclo II.

2 - TUBERCULOSE COMO EXEMPLO DO PRESENTEOBJETO DE REFLEXÃO

2.1 – Ciclo I – Ciclo biológico (“O Tuberculoso”)

Uma das formas mais claras e objetivas de visualizar oencadeamento entre os diversos estados da doença capaz deproporcionar um modelo de interferência, levando a ações de controleda tuberculose no ciclo natural da transmissão da infecção, éapresentado no esquema 3 (OPS, 1979):

Na referida publicação são analisadas detalhadamente cadauma das setas do esquema 3, isto é: A – risco de infecção; B – riscode adoecer; C – cura espontânea ou com tratamento específico; D –letalidade; E – transmissão da infecção; bem como qual seria o impactoesperado através de cada um dos meios (chamados “específicos”)de controle da doença: vacinação BCG, quimioprofilaxia, localizaçãoe tratamento dos casos.

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(ESQUEMA 3)Assim, vacinação com BCG em recém-nascidos e dos

tuberculino-negativos diminuiria em 80% o risco de adoecer (B); aquimioprofilaxia com hidrazida, nos tuberculino-positivos, diminuiriaem 90% o risco de adoecer durante o período de medicação e em70% nos 5 anos seguintes.

Segundo PIO (1975), como resultado esperado de um programaadequado de controle da tuberculose, “vai-se produzir uma aceleraçãona diminuição dos atuais indicadores da tuberculose. Pode-seprognosticar uma mudança brusca na mortalidade, especialmente emmenores de 15 anos. Com um programa eficaz de vacinação BCG,em poucos anos, deveriam desaparecer as mortes por tuberculosenas crianças. Por outro lado um programa eficaz de diagnóstico etratamento deverá influir rapidamente na mortalidade dos adultos”....”Em caso de contar com a informação sobre o risco de infecção,deve-se considerar que, se o programa é eficaz, a incidência deinfecção irá diminuindo a uma velocidade não menor que 10% aoano.” ...”Se a diminuição é menor que 10%, pode-se duvidar da

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eficácia do programa”.

2.2 – Ciclo II – Ciclo social (“A Tuberculose”)

Em publicação recente, RUFFINO NETTO & PEREIRA(1981) analisaram os dados de mortalidade por tuberculose (todas asformas) na cidade do Rio de Janeiro no período de 1860 a 1977(esquema 4)

(ESQUEMA 4)Através de uma metodologia específica, evidenciaram que a

curva de velocidade de declínio da mortalidade se ajusta a 3 regressõesdistintas (esquema 5), equivalendo aos períodos: 1860 a 1885; 1885 a1945 e após 1945.

Chamando-se y = coeficiente de mortalidade (por 100.000) portuberculose e x = ano calendário, encontraram:

- para o período 1860-1885:log y = 24,7611 – 0,0117x;

- para o período 1885-1945:log y = 11,4965 – 0,0046x;

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- para o período 1945-1977log y = 75,9634 – 0,0378x.

Efetuando os autores um estudo da formação econômica socialda cidade, região (e mesmo do Brasil) destacaram alguns fatores(econômicos, demográficos, sociais, político-sanitários) queapresentam como hipóteses explicativas para as diferentes velocidadesde declínio da mortalidade. Concluem que apesar de ser marcante oimpacto determinado pelos “métodos específicos” de controle datuberculose, não menos significativo é o efeito dos métodosinespecíficos de controle (melhoria de condições de vida).

(ESQUEMA 5)

2.3 – Impactos sobre o problema da tuberculose

Apesar da qualidade discutível dos dados de mortalidadeutilizados no trabalho referido (fato esse que foi amplamente discutido

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no próprio artigo) é possível evidenciar que nas 3 velocidades dedeclínio (-0,0117; -0,0046 e –0,0378), no caso dos dois primeirosperíodos assinalados, o declínio foi decorrente sobretudo de influênciasde ações praticadas ao nível do ciclo II, enquanto só no terceiro períodoter-se-ia destacado a influência de ações ao nível do ciclo I.

Em outras palavras, houve grande declínio da mortalidade portuberculose, inclusive numa época em que era praticamentedesconhecido o ciclo biológico (ciclo I) da doença.

3 – DISCUSSÃO

Queremos salientar que a referência à tuberculose foi feita emtermos de exemplo. De fato, a preocupação que nos norteou naredação do presente trabalho foi mostrar como, na explicaçãocabal da produção tanto da saúde como da doença entre os homens,na quase totalidade dos casos, é preciso ter em conta as relaçõessociais globais (ou seja, econômicas, políticas, culturais, etc.) ao nívelda realidade social concreta. A Medicina alopática que, no presenteséculo, se tornou a oficial, dado seu positivismo cientificista, tende afragmentar excessivamente os fenômenos e processos que estuda,além de tecnificar problemas que, freqüentemente, são antes sociaisdo que própriamente médicos. Neste sentido é que ousaríamos afirmarque se o DDT e o BHC matam barbeiros em todo lugar, também éincontestável que se as pessoas tivessem outras condições de moradiae melhores condições higiênicas de vida, a incidência e a prevalênciada doença de Chagas, possivelmente, diminuiriam em proporção maiordo que quando se tentam aquelas soluções técnicas. Estas, ao não sevoltarem para as condições sociais de existência da população afetada,mantêm intocada a estrutura social determinante da doença. Damesma forma, poderíamos nos referir ao combate à esquistossomose.Neste caso, há uma extensa discussão a respeito de quais os melhoresmoluscocidas; de qual o elo mais fraco: o caramujo ou o parasito nafase de miracídio ou de cercária. Semelhantemente, diríamos que seas pessoas vivessem em condições de não precisar entrar em contacto

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com águas infestadas a doença diminuiria de muito, independentementede quaisquer outras medidas.

Em todos estes exemplos, a discussão epidemiológica,freqüentemente, parte de um pressuposto que nos parece errôneo, ouseja, o da inevitabilidade da presença do homem numa determinadacadeia epidemiológica, que chamamos de ciclo biológico tipo zero.Em nosso entender, o homem não necessariamente participaria dacadeia se as relações que estabelece com os outros homens e com anatureza fossem diferentes da que está ocorrendo naquele lugar enaquele momento histórico. Por isso insistimos em que a explicação ea solução globais do fenômeno doença e da razão da manutanção dasaúde, devem alicerçar-se na constatação de uma cadeiaepidemiológica tipo oito, em que se englobam as relações sociais quedeterminam ou condicionam a participação do homem numdeterminado ciclo biológico.

Sem que tais relações sociais sejam levadas em consideração,há uma inevitável tecnificação das questões, o que, convenhamos,constitui um modo pouco científico de explicação e de solução deproblemas. É que, neste caso, nos limitamos a enfrentar a doençajá produzida, voltando-nos para a série de causas necessáriasque a provocaram, deixando de lado aquelas condiçõessuficientes, sem a presença das quais a moléstia não se instalarianaquele terminado organismo biológico. Evidentemente, estemodo de proceder constitui uma solução correta em face doproblema individual existente, mas não como explicação e solução,ao nível coletivo, do fenômeno doença, que está inserido em processosao mesmo tempo biológicos e sociais.

A resistência ou dificuldade da visão positivista de ciência derealizar uma rotação de perspectivas e encarar uma questão qualquersob óticas diferentes das usuais, radica não apenas na já mencionadaexcessiva fragmentação do objeto de estudo, em que se procuraanalisá-lo não em sua totalidade mas em termos de relações limitadasentre um número de variáveis também limitado. Ela se enraiza,igualmente, na tendência de se voltar para as características universais

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da produção do fenômeno, a exemplo das ciências físicas sobretudo;estas, realmente, tratam com universos contínuos, em que as diferençaspodem ser, geralmente, impunemente desprezadas. Não é o caso dequalquer fenômeno e processo envolvendo seres humanos, pois, emtermos societários, a desconsideração da descontinuidade do universocom que estamos tratando inevitavelmente nos conduzirá a uma visãolimitada, por ignorar as especificidades e diferenças característicasdo universo social.

Assim, voltando-nos novamente para os exemplos fornecidospelo estudo da tuberculose, diz-se que numa determinada populaçãohá uma incidência x e uma prevalência y da doença; que um doenteinfecta um certo número de pessoas com as quais manteve contacto;que, dos infectados, uma determinada porcentagem se torna bacilíferae outra não; que a letalidade da doença é z. O raciocínio estáformalmente correto. Contudo, se não nos voltarmos para as diferençassociais de incidência da doença na população, nossas constataçõesserão, concretamente falando, incorretas. Isto porque serãoprincipalmente alguns segmentos da população, ou seja, determinadosgrupos ocupacionais e classes sociais, que serão afetados, enquantooutros o serão pouco ou nada. Ao nos preocuparmos com as diferenças,imediatamente descobriremos que, tendo em conta a divisão dapopulação em classes, grupos e segmentos sociais, aqueles índicesou coeficientes referentes à população global constituem meraabstração. Realmente, se o fenômeno se comporta diferentementepor razões sociais e não em decorrência de causas biológicas, incidimosem erro quando estudamos esse mesmo fenômeno utilizando apenasvariáveis biológicas. Como as pessoas não enfermam e morremsegundo tão-somente estas variáveis, a desconsideração do ciclo II,o mais importante na explicação da variabilidade da produção dadoença, faz-nos obter resultados falsos, já que a população é umaabstração, se deixarmos de lado suas divisões.

É em decorrência do fato de as relações sociais variaremhistoricamente que existe também uma historicidade das doenças.Ao desconsiderar de que modo de produção se trata, as especificidades

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da formação social concreta com sua peculiar estratificação social, aestrutura social na qual o fenômeno se manifesta, estrutura esta emque seus membros têm direitos e deveres diferentemente distribuídos,acabamos construindo um modelo ideal que diverge flagrantementeda realidade social concreta à qual queremos aplicá-lo.Conseqüentemente, nossa explicação e atuação serão parciais. Talparcialidade não é percebida porque a atuação decorrente, técnica,aparentemente neutra, socialmente asséptica, ao produzir resultados(no caso do combate à tuberculose, embora não no caso de outrasmoléstias), vem ao encontro de necessidades percebidas sem, aomesmo tempo, em nada afetar a estrutura social.

4 – CONCLUSÕES

A explicação e a solução do fenômeno representado pelobinômio saúde-doença, para atingirem a máxima plenitude, devemconsiderar toda a riqueza de determinações da totalidade na qual ofenômeno se manifesta. Assim sendo, já que não é absolutamenteinevitável que os homens participem de uma determinada cadeiaepidemiológica, haveria que estudar as razões vinculadas à estruturasocial que os fazem dela participar. Por outro lado, uma vez que ofenômeno varia por razões sociais, tal variabilidade teria que serestudada sob esse prisma principalmente e não apenas por uma óticaque privilegia as variáveis biológicas. Sendo o universo socialdescontínuo, com especificidades e diferenças marcantes, constituemera abstração considerar a população como um todo,desconsiderando suas divisões em classes sociais, gruposocupacionais etc. e a historicidade da estrutura social na qual ofenômeno se produz. Em termos de solução pois de problemas deSaúde Pública, se nos voltarmos exclusivamente para os “ciclosbiológicos” das doenças, chegaremos a soluções muito parciais, comeficácia freqüentemente discutível e com eficiência que pode ser muitobaixa.

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RESUMO

Os autores, tomando como exemplo a tuberculose, propõemum esquema diverso do usual para representar o ciclo biológico decertas doenças, nas quais os fatores sociais são essenciais.Comumente, o ciclo é representado sob a forma de uma letra O.Entendem que se poderia pensar em pelo menos dois ciclos, tendocomo ponto comum o homem, ficando o esquema transformado num8. Neste segundo ciclo o fundamental seriam as relações sociaisglobais, que levam o homem a entrar no ciclo biológico de uma doençaqualquer. Desta forma, ficaria claro que nem sempre é inevitável queos homens participem de determinada cadeia epidemiológica. Issolevaria mais facilmente o investigador e o técnico, em suasinterpretações e nas soluções propostas, a considerar a estruturasocial e suas características especifícas, que fazem com que adoença se individualize em uns homens e não em outros.

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8. DOENÇA DE CHAGASRESENHA DE TESE

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8.1. A EVOLUÇÃO DA DOENÇA DE CHAGAS NO ESTA-DO DE SÃO PAULO*

A tese de doutoramento do médico Luiz Jacintho da Silva, sobo título acima, foi apresentada ao Departamento de Medicina Socialda Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP e defendida em12 de fevereiro de 1981, tendo recebido o louvor da bancaexaminadora. O autor é professor de Medicina Preventiva daUniversidade de Campinas. Trata-se de um trabalho de excelentenível e bastante original em seu modo de procurar compreender aevolução da endemia chagásica em nosso Estado. Esta evolução foivista em termos das transformações por que passou a totalidaderepresentada pelo espaço social e geográfico correspondente à região.Mostrou como nesse espaço, construído pelos homens nas relaçõesque estabelecem entre si e com a natureza, a partir de certo momentocriaram-se condições mais favoráveis à disseminação da maisimportante espécie de barbeiro responsável pela veiculação da doença,o Triatoma infestans, por ser a mais domiciliar de todas.

O processo responsável pela alteração do espaço, que facilitouessa disseminação, teria sido a cafeicultura estritamente capitalista,ou seja, a baseada na utilização da mão-de-obra livre, emcontraposição à cafeicultura escravocrata. A região onde sedesenvolveu esta última, o Vale do Paraíba, sempre foi indene,enquanto que nas demais, à medida que avançava a frente pioneira,estimulada pelo café, ampliavam-se os limites da zona endêmica dadoença de Chagas. O autor defendeu a hipótese de que a doençadeve sua existência “a um conjunto de relações determinadas pelas* Publicado originalmente, como resumo de tese, em Medicina, 14 (3 e 4): 51-53,1981.

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características do espaço”. Como a organização deste é um produtohistórico, dependente das relações sociais e econômicas que nele seestabelecem, a própria doença é também um evento a ser analisadosob uma perspectiva histórica. No caso da doença de Chagas, aestrutura e organização sociais associadas à cafeicultura eram de talmolde que facilitaram a disseminação do T. infestans. É que essaorganização do espaço social e geográfico se caracterizava, aocontrário do período escravocrata, por uma cada vez mais intensamobilidade social, por interações sociais freqüentes e pelo aumentoda densidade demográfica. O barbeiro é, desse modo, transportadomais facilmente de um local para outro, além de o número maior depessoas chagásicas, vivendo juntas, proporcionar melhores condiçõespara a infecção dos próprios insetos.

De fato, sabendo-se que o barbeiro com características maisdomiciliares (a espécie infestans), introduz-se numa dada região“através do transporte passivo, geralmente entre os pertences demigrantes”, o autor da tese adota a hipótese de se poder aceitar aexistência de um “limiar de contato humano entre os domicílios, acimado qual seu transporte seja eficiente, e que este contato deve estar nadependência direta da distribuição espacial destes mesmos domicíliose do grau de interação social dos seus ocupantes”. O T. infestans setornaria mais facilmente endêmico onde a distribuição dos domicíliosfosse mais densa e maior a interação social entre os habitantes. Porisso é que a região de cafeicultura escravocrata do Vale do Paraíbateria permanecido indene. As fazendas eram compactas do ponto devista da habitação, estando todas as casas situadas muito próximasdentro da fazenda, mas a grandes distâncias das demais fazendas.Os contatos sociais eram quase inexistentes entre escravos dediferentes fazendas e a mobilidade social espacial quase nula, pois,freqüentemente, um escravo nascia e morria dentro da mesmafazenda.

Com a desarticulação do espaço social e geográfico onde aendemia estava presente no Estado de São Paulo, ela foidesaparecendo, a ponto de hoje, em nosso Estado, praticamente

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inexistir a transmissão natural da doença. Esta desarticulação dosistema de relações sociais e econômicas se deveu à menorimportância da cafeicultura na economia do Estado; ao fato de que afrente prioneira, tendo atingido as fronteiras do Estado, essa lavourafoi cada vez mais desenvolvida em outras regiões; à intensificação daindustrialização paulista e ao avanço do processo de urbanização. Éclaro que a tudo isso se devem somar as campanhas de Saúde Públicavisando o controle da doença de Chagas. A preocupação com adoença, no entanto, teria sido estimulada, no começo da década de50, pela preocupação com a recuperação das terras rurais do Estadoe, junto com isso, a recuperação do homem rural paulista.

O fundamental, contudo, foi a modernização da agricultura, quelevou a uma diminuição da mão-de-obra ocupada no setor primário.Intensificou-se o esvaziamento do meio rural paulista; a populaçãodiminuiu não só em termos relativos como absolutos. Assim, é queenquanto em 1950 a população rural era de 4.330.212, ela passou, em1970, para 3.460.019 com uma variação para menos de 870.193habitantes. Com isso diminuiu de muito o número de domicílios. Entre1960 e 1970, desapareceram 270.388 moradias na zona rural paulista.Certamente as que foram destruidas eram as que estavam em piorescondições, justamente aquelas favoráveis ao barbeiro. Em suma, coma diminuição da população rural, diminui o número de indivíduosinfectados que possam ser picados pelos barbeiros, ficando prejudicadaa circulação do Trypanosoma cruzi, de uma pessoa a outra, atravésdaquele vetor.

Um dos pontos altos do trabalho realizado diz respeito aofato de o autor ter abordado a doença de Chagas não só numcontexto histórico, mas procurando entender esse contexto como umatotalidade. Além disso, ao contrário do que ocorre freqüentementenos trabalhos epidemiológicos que procuram incorporar o social comose este fosse constituído principalmente por características de pessoas(como, por exemplo, nível de renda, escolaridade, ocupação etc.), oprof. Luiz Jacintho da Silva percebeu, nitidamente, que taiscaracterísticas, o mais das vezes, são apenas um produto de forças

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sociais mais profundas que só podem ser adequadamentecompreendidas quando se presta atenção ao bosque e não às arvoresque o compôem. Esse bosque, essa totalidade, foi captado através danoção de espaço geográfico, mas um espaço construído pelo homem.Ainda que a totalidade realmente utilizada, possivelmente, ultrapasseo nível de espaço geográfico, para apanhar também o da formaçãoeconômico-social correspondente, o fato digno de nota é que o trabalhoencampa uma visão geral do mundo, especialmente das razões quelevaram à mudança social e econômica e a alterações da saúde e dadoença na região estudada.

Uma das contribuições mais significativas do trabalho está emque ele, praticamente, construiu um modelo de estudo da evolução daendemia chagásica. Creio que o modelo se construiu quando o autormostrou tanto o conjunto de eventos que levou à disseminação dadoença, como aquelas situações que, ao se desviarem daquele padrão,levam à diminuição ou mesmo ao desaparecimento da endemia.Construído o modelo, ele poderá ser aplicado a outros contextosgeográficos e históricos, proporcionando uma possibilidade decomparações e, conseqüentemente, de pôr à prova as hipótesesdefendidas pelo autor. Esta possibilidade tem uma enorme significaçãono estudo da determinação social da saúde e da doença.

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9. VÁRIOS

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9.1. A ENFERMIDADE COMO FENÔMENO SOCIAL*

Os problemas de saúde, vistos do ângulo da Medicina Social (oque significa dizer do ângulo sócio-econômico), implicam num estudodas enfermidades tendo em conta a população, os grupos que acompõem, o sistema econômico e social. Não se trata de estudarapenas a história natural da enfermidade num indivíduo, como faz oclínico, mas ter em conta os diferentes riscos a que estão expostos osvários grupos constitutivos da sociedade e por quê. A interpretaçãodesses porquês exige que nos voltemos para as relações entre o meioambiente e o homem, o meio e o agente e, sobretudo, para as relaçõesentre os homens (o ambiente sócio-econômico-político-cultural). Umdos principais aspectos desse último ambiente decorre da diferentedistribuição da riqueza entre os vários grupos, diferenças estas queestão ligadas à propriedade e não-propriedade, ao assalariamento,ocupação, possibilidade maior ou menor de conquistar prestígio e poder.Outros aspectos derivados seriam hábitos, costumes, situação demoradia, tipo de trabalho, lugar de residência, tipo e qualidade dealimentação etc.

Quando verificamos alguma relação significativa entre aspectossócio-econômicos e a incidência-prevalência de uma enfermidade oumortalidade por ela, temos que alterar os aspectos desse meio queestão contribuindo para o aumento dessas taxas. A dificuldade estáem que, para alterar as influências sócio-culturais, econômicas etc.vamos nos deparar com fortes resistências, sobretudo de naturezapolítica e econômica, além de barreiras propriamente sociais eculturais. Aos médicos, individualmente e mesmo como classe, não

* Artigo publicado originalmente no Diário de Notícias de 18 de janeiro e naTribuna de Batatais de 24 de junho de 1981.

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cabe a tarefa de realizar mudanças societárias. Mas como grupocônscio de fatores extramédicos que estão afetando a saúde dapopulação, ou parte dela, pode caber, pelo menos, a responsabilidadecientífica e social de chamar a atenção para tais fatores.

Sem nos preocuparmos excessivamente com a estrutura efuncionamento de um sistema econômico e social em particular,poderemos, usando uma classificação do Prof. Hernán SANMARTÍN (Salud y Enfermidad, Ecología Humana. MedicinaPreventiva y Social), indicar alguns fatores sociais que podemfreqüentemente relacionar-se com a enfermidade. Alguns deles dizemrespeito a características culturais de grupos raciais, nacionais,religiosos e outros, como hábitos alimentares, educação, condiçãosocial dos sexos e dos diferentes grupos etários etc. É preciso dizer,porém, que muitos fatores que parecem estar relacionados a certosaspectos sócio-biológicos, podem derivar do fato de que o grupo édiscriminado social, econômica, política e culturalmente pela sociedadeinclusiva, como ocorre freqüentemente com os negros em quase todosos países onde originalmente foram escravos, com certasnacionalidades e povos em países para onde migraram e exercemocupações de baixo prestígio. Nestes casos, a característica quepoderia ser tomada como causa é, na verdade, um efeito, como é ocaso do baixo nível educacional e ocupacional encontradiço entremuitos grupos discriminados.

Outros fatores sociais freqüentemente relacionados aofenômeno saúde-doença são ocupação, renda, escolaridade, hábitosde lazer etc., os quais, como os anteriores, dependem de comoestá estruturada a sociedade e a economia. Os mais significativosno entanto são os relacionados à distribuição da renda, dos meiosde produção e trabalho existentes, da correlação de forças sócio-políticas, da política econômica posta em prática, das relações(sobretudo econômicas) com o exterior, de processos sócio-econômicos relevantes como industrialização, urbanização,migração rural-urbana, inflação com elevação do custo de vida paracamadas assalariadas etc.

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O estabelecimento dessas relações entre características sociais,econômicas, culturais, etc. e saúde e enfermidade, nos levam aoconceito de enfermidade social. Pode-se dizer que “toda enfermidadeé um fenômeno social porque tem componentes sociais que a originame conseqüênciais para a sociedade. Porém, ainda quando todas asenfermidades estejam condicionadas por fatores sociais e produzamalguma repercussão sobre a sociedade, certas enfermidades têm maiorsignificação para a comunidade do que outras, devido às suascaracterísticas epidemiológicas ...” (p. 25). As enfermidades que têmtendência a reduzir a capacidade produtiva e, portanto, com maiorrepercussão sobre o sistema econômico, normalmente adquirem maiorsignificado social. Diz SAN MARTÍN: “Um problema médico deixade ser individual e passa a ser de incumbência coletiva cada vez queem sua solução dominam fatores sociais, requerendo ação socialorganizada” (p. 25).

Segundo ele, a maior ou menor importância social daenfermidade depende, em primeiro lugar, de sua freqüência napopulação; em segundo, da forma como se distribui essa freqüência:grupos de idade afetados; sexo; repercussões sobre a produçãoeconômica; gravidade do curso da moléstia (exigindo somaselevadas em seu tratamento); letalidade (se a porcentagem dos quemorrem é alta, as repercussões evidentemente serão maiores);cronicidade (tempo e dinheiro requerido para tratamento ereabilitação); tipo e grau da incapacidade (por exemplo enfermidadesque afetam órgãos do sentido e locomotores); finalmente, um fatorque pesa na determinação da importância social da enfermidade é apossibilidade de que se estenda por parte ponderável da população(Cf. pp. 25-26). Em síntese, as enfermidades que têm maior importânciasocial são as que produzem mudanças na composição da população,na expectativa de vida, na porcentagem da população economicamenteativa, nos índices de produção (como ausência do trabalho), as queexigem consideráveis gastos médicos com tratamento e reabilitaçãoetc. É claro que o tratamento da enfermidade chamada social consistena eliminação dos fatores predisponentes, produtores ou mantenedores

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da enfermidade que têm sua origem na estrutura sócio-econômica enão na utilização, tão-somente, de recursos estritamente médicos.

Quaisquer melhorias nas condições gerais de vida fazem comque caiam os índices de morbidade e mortalidade, sobretudo entre ascrianças, mais suscetíveis do que os adultos jovens à desnutrição esubnutrição. Alguns trabalhos mostraram, por exemplo, como a quedados níveis de salário mínimo é acompanhada por um avanço damortalidade infantil. A desnutrição, decorrente fundamentalmente decomo se estruturou o sistema sócio-político-econômico entre nós,tornou-se fenômeno tão comum, em certas camadas da populaçãobrasileira, que é anormal encontrar-se nelas crianças sem nenhumgrau de desnutrição. Assim é que um levantamento feito pela FundaçãoSESP (Serviços Especiais de Saúde Pública) e CEME (Central deMedicamentos), em 1972, estimou que, no Brasil, as crianças de 6meses a 5 anos, em estado normal de nutrição, representavam 29,8%do total, enquanto as desnutridas de 1º grau constituiam 37,7%, as de2º grau perfaziam 21,8% e as com desnutrição de 3º grau atingiam10,7% (Cf. Anais da V Conferência Nacional de Saúde, 1975, p.228).

Agrava o quadro da relação entre doença e miséria, o fato deque, nos lugares onde moram pessoas pobres, normalmente não sãoencontrados serviços razoáveis de saneamento nem de assistênciamédica. As casas são pequenas e insalubres. O trabalho a que aspessoas se dedicam aumenta o risco que correm de se adoentarem.Isto faz com que se ampliem as diferenças no potencial dasenfermidades. É maior a incidência e prevalência de doençasinfecciosas agudas nesses meios. É evidente que a contínua exposiçãoa condições de vida insalubres, sob quaisquer pontos de vista queexaminemos a questão, mina a resistência das pessoas. A debilidadedecorrente pode torná-las suscetíveis a outras enfermidades alémdaquela que as acometeu, abrindo também caminho para variadascomplicações. Enfim, os pobres além de estarem muito mais expostosà doença, têm muito menos acesso aos benefícios da Medicina (Cf.COE, Rodney M., Sociología de la Medicina, p. 77).

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Outro fator limitante, em termos de saúde, para as camadas debaixa renda é representado pela impossibilidade de adquirirmedicamentos caros ou simplesmente adquiri-los. Também oconhecimento dessas pessoas sobre o processo saúde-doençacostuma ser precário. Ora, sabidamente, alguém que tenha melhorconhecimento das enfermidades, tem maiores possibilidades, emigualdade de condições sócio-econômicas, de procurarassistência médica no estágio inicial da doença. Em termos depopulação, esse conhecimento é de primordial importância. De fato,o desconhecimento do modo de atuar da enfermidade e dos efeitosque causa torna mais difícil a essa população, inclusive, melhor utilizaros serviços médicos disponíveis.

É bem verdade que os mais ricos podem se deparar comum problema inverso, que é o de se exporem a um excesso deatos médicos. Realmente, é conhecida a concentração de médicos ede assistência médica nos lugares onde as possibilidades de consumiratos médicos é maior, ou seja, nos centros urbanos grandes eprósperos. Disso pode até mesmo criar-se, como afirma Ivan ILLICH(Cf. A Expropriação da Saúde, Nêmesis da Medicina), “umaperigosa correlação natural entre a intensidade do ato médico e afreqüência de curas”. O que certamente ocorre é que os médicos,como quaisquer outros profissionais, é claro, tendem a se instalaronde haja mercado para consumir seus serviços, ou seja, sobretudoonde as pessoas podem pagar (pp. 25-26). Como, normalmente, essaspessoas são mais saudáveis, a correlação estabelecida pode ser,parcialmente ao menos, enganosa.

Enfim, quando analisamos fenômenos de morbidade e demortalidade em termos societários, precisamos ter em mente que ascausas necessárias das doenças podem não ser suficientes. Em outraspalavras, e usando um exemplo, freqüentemente os micro-organismospatógenos não são suficientes, por si sós, para causar doençasinfecciosas, sendo necessária a presença de fatores coadjuvantes, denatureza social, econômica, cultural e política para que a moléstia seinstale.

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9.2. SOBRE A ETIOLOGIA SOCIAL DA SAÚDE E DA DO-ENÇA*

Até o começo do século XX, a Medicina dava grande atençãoao meio social como fator etiológico da enfermidade e se preocupavabastante com a relação médico-paciente como meio terapêutico, comojá ensinava Hipócrates. Nos escritos clássicos gregos efreqüentemente na Idade Média e no Renascimento ainda se retinhamconhecimentos de etiologia social (de que são exemplos asquarentenas). A história da Medicina mostra que “os grandes médicose cirurgiões do Renascimento, como Paré ou Paracelso, mostravam,com freqüência, maior percepção da situação psicológica do enfermoque de seus processos fisiológicos. No século XVII, homens comoSydenham preconizaram a observação da história da enfermidadeem indivíduos e grupos como um requisito prévio para o conhecimentomédico” (Cf. Rodney M. COE, Sociologia de la Medicina,Madrid, 1973, p. 20).

Uma preocupação maior com as condições e fatores sócio-econômicos das enfermidades significa, pois, uma volta a uma certatradição original da Medicina (ainda que não predominante), quevia o homem como uma totalidade em que não se dissociava obiológico do social. Esta visão se foi esmaecendo sobretudo com acrescente especialização, tornando o médico um cientista e profissionalcom um conhecimento fragmentário do objeto que estuda e sobre oqual atua. Em outras palavras, à medida que aumentou enormementeo conhecimento científico sobre o ser biológico, a capacidade de

* Artigo publicado originalmente com o título “Determinantes sociais da saúde e dadoença” em Tribuna de Batatais de 8 de setembro e Diário de Notícias de 5 deoutubro de 1980.

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compreender globalmente o homem se foi reduzindo, de modo que apreocupação fundamental restringiu-se a causas imediatas bemdefinidas e muito restritas. Enquanto se desenvolveramextraordinariamente os achados de medicamentos visando debelarcada enfermidade, atenuou-se “o ímpeto da Medicina por conhecera causa das coisas precisamente quando tais causas, as causas dasenfermidades, coincidiam cada vez mais (sem confundir-se) com ascausas dos males da sociedade” (Cf. BERLINGUER, Giovanni, inMedicina y Sociedade, vários autores, Editorial Fontanella, S. A.,Barcelona, 1972, pp. 10-11). As enfermidades não podem serconsideradas como um processo puramente biológico, tendo suahistoricidade, alterando-se nos vários períodos históricos, segundo oslocais, as sociedades, as classes sociais (idem, p. 8).

Desde que a Medicina, até a algumas décadas atrás, pelo menos,sempre reconheceu a existência dos fatores sociais na enfermidade,a atual preocupação maior com eles significa o renascimento de umapreocupação antiga mais do que um início. A conexão íntima entre asenfermidades e o meio social se comprova pelo fato de que elas “nãosão nem uniformes nem casuais em sua incidência”. É notório, hoje,que o “o estudo destas distribuições diferenciais da enfermidade...proporciona, com freqüência, as chaves acerca da natureza e causasda enfermidade” (Cf. Rodney M. COE, op. cit., pp. 13-14).

Com o advento da teoria bacteriológica e as contínuasdescobertas nesse campo, a Medicina entrou na chamada “erabacteriana”. Isto fez com que ela se restringisse cada vez mais aoorganismo biológico e com a resposta deste a estímulos tambémbiológicos e físico-químicos. Com isso, a Medicina passou a valorizarfundamentalmente a Biologia como ciência básica para proporcionarconhecimentos sobre o processo saúde-doença, procurando umagente da enfermidade (microorganismos patogênicos) isoladodo meio social. Por outro lado, com o desenvolvimento datecnologia em geral e da Química e da Bioquímica em especial, elapassou a pôr quase todas suas esperanças no laboratório, na descobertade medicamentos e aparelhos para diagnósticos e tratamento. Só mais

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recentemente, a unicausalidade passou a ser questionada, verificando-se que as causas das doenças são múltiplas, que o diagnóstico etratamento de várias doenças não pode prescindir da análise do meiosocial, que a Medicina, freqüentemente, é utilizada para gerar lucrospara certos grupos etc.

Como se pode perceber, são relativamente claros osdeterminantes sociais do processo saúde-doença desde que não nospreocupemos apenas com as causas imediatas do fenômenoenfermidade. Se o nível de análise for recuado, procurandoaquelas mais longínquas, em grande número de casosreconheceremos causas extra-individuais e extrabiológicas dadoença. Ao nível populacional ficaria então evidente que assoluções dos problemas de saúde-doença estão além das possibilidadesda Medicina e do profissional médico isoladamente, em que pese adedicação denodada da maior parte dos membros desse grupoprofissional. Freqüentemente, inclusive, os próprios médicos se tornamvítimas dessa falta de autonomia da Medicina (aliás, como de qualqueroutra instituição) frente à sociedade. Ela é um produto social tantocomo a doença e a assistência médica.

A determinação social da Medicina é bem percebida quandose estuda sua história, não em termos de vida de médicos ilustres ede descobertas técnicas e científicas, mas procurando verificar avariabilidade na concepção da saúde e da doença e a evolução ediferenças de tratamento proporcionado aos vários grupos sociais.Este estudo ensina como a prática médica e seu instrumentalconceptual variam historicamente. Na verdade, não é preciso ir longe.Uma observação objetiva mostra como é distinta a prioridadedada aos diferentes segmentos sociais quando se trata de atençãomédica. Os serviços estão estruturados de tal modo que a proteçãoda saúde e da vida acabam dependendo de um cálculo econômico, aponto de se combater menos a enfermidade em geral e mais aquelaque acomete homens com capacidade de pagar. Como existe óbviarelação da doença com o meio social, com as relações sociaisessenciais, especialmente as relações de produção, são exatamente

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aqueles grupos sociais e econômicos que correm maiores riscos deenfermarem que terminam recebendo menor proteção.

Enfim, de um lado o que se pode notar é que a doença temcaracterísticas universais quando se observam apenas indivíduos,enquanto que, se nos preocuparmos com o nível social, verificaremosque os homens adoecem e morrem desigualmente. De outro lado,houve grande desenvolvimento da tecnologia de curar o indivíduoem contraposição ao avanço do conhecimento para combater aenfermidade em seu conjunto. Talvez tenha sido dada pouca atençãoao combate às causas mais distantes da doença porque elas nãopoderiam ser eliminadas sem que a própria sociedade fosse modificada.

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9.3. AMPLIANDO O CONCEITO DE MEDICINA*

Especialmente a partir de 1960, um número crescente depessoas, preocupadas com o processo saúde-doença, com as condiçõese fatores não biológicos que levam à doença e com a superação totalou parcial das entidades mórbidas, perceberam que a Medicina,isoladamente, não poderia enfrentar a questão. Até mesmo porqueuma tal visão equivaleria a conceber a Medicina como tendo quasecompleta autonomia frente à sociedade, quando a própria Medicinaé, em grande parte, determinada e condicionada pela estruturaeconômica e social. De fato, hoje o que se pergunta cada vez mais éque relações existem entre o processo saúde-doença, a assistênciamédica e a sociedade global.

No caso da Medicina, considerada como aplicação dedisciplinas científicas, a problemática vai até mais além, colocando-se a questão das relações entre ciência e tecnologia com a sociedade.Uma das dificuldades desse tipo de análise está no fato de que apesarde, em sua definição mais geral, a Medicina ser entendida comopráticas e saberes que têm como objetivo a prevenção e cura daenfermidade e a preservação da saúde, a maneira de pôr em práticaesse objetivo varia segundo os períodos históricos e as diferentessociedades. Em nossos dias, sobretudo, os aspectos econômicos,sociais e políticos da prática médica adquiriram enorme significado.

Dois aspectos, principalmente, levaram à percepção maior deque o processo saúde-doença não é um fenômeno exclusivamentebiológico. Em primeiro lugar, ficou claro que se a enfermidade fosse

* Este artigo foi publicado originalmente com o título de “Medicina e Sociedade”em Tribuna de Batatais de 30-8-1980 e no Diário de Notícias, de Ribeirão Preto, de21-9-1980.

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apenas um fenômeno biológico, deveria afetar em igual proporção atodos os indivíduos enquanto seres biológicos. Ora, sabemos que hádiferenças muito grandes quanto a isso, e que os indivíduos enfermame morrem desigualmente, por distintos motivos e em diferentesmomentos de sua vida. Independentemente de fatores biológicos oufísicos, como idade, clima e outros, a classe social a que pertencem eo lugar em que residem determinam importantes diferenças na saúdedas pessoas. Para resumir, está suficientemente comprovado que aforma de viver determina a forma de morrer: de que, como e quandomorrerá um indivíduo específico.

Em segundo lugar, a atenção médica é, além dos conhecimentospróprios de diagnóstico e tratamento, certo tipo de prática que, comotal, é organizado e modelado dentro de cada sociedade. A atençãomédica não é, assim, um conjunto de medidas e de normas abstratase de validade universal, mas reconhece variações históricas. Asociedade, e sua particular estrutura sócio-econômica, fixa ascondições em que essa atenção é dispensada: a quem, como, quando.

Isto levou a uma ampliação do conceito de Medicina porque,encarada sob sua forma tradicional, que insiste em um enfoqueessencialmente reparativo, somático e individual, ela é relativamenteinoperante para alcançar seus grandes objetivos. Em outras palavras,tomou-se cada vez mais consciência de que a Medicina não podeavançar muito mais mantendo-se na situação de enfrentar aenfermidade já produzida. Daí a revisão e ampliação do conceitode Medicina, que consiste em considerar: a) que o objeto de açãodela não é só a enfermidade e que a conduta da população frente àdoença e frente à atenção médica é tão importante quanto a própriaatenção médica, o que significa que os fatores de ordem social, e nãosó biológicos, condicionam a etiologia, tratamento e evolução daenfermidade; b) que a ação médica não pode se limitar a enfrentar aenfermidade já produzida, mas deve atuar preventivamente, tanto emrelação ao indivíduo são, à sua família e à comunidade em que vive.

Estes aspectos conduzem a uma série de perguntas relativas àprática médica, tais como: quais são os fatores sociais, econômicos,

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políticos, culturais, etc. que influem no aparecimento, tratamento eevolução de uma enfermidade? Quais são as transformações sociaisque precisariam ocorrer para controlar ou prevenir as enfermidades?Como podem os médicos (e a Medicina como instituição) relacionarem-se com indivíduos e grupos, entendendo os indivíduos como seressociais e os grupos mais do que como um conjunto de indivíduos? Emface destas questões pelo menos três conjuntos de problemas levarama uma concepção de Medicina como uma disciplina social. Osconjuntos citados foram: 1º) o exame da etiologia social dasenfermidades mostrou as variações sociais na incidência e prevalênciadas enfermidades, conforme as pessoas estejam situadasdiferencialmente na estrutura social; 2º) as condições sociais quecondicionam a reação frente à enfermidade (a rede de relações sociais,o grupo, a cultura etc. nos quais está inserido o enfermo) vãocondicionar e mesmo determinar o episódio como anormal ou não;estas condições contribuirão para determinar qual o curso da açãopara recuperar a saúde e, portanto, facilitarão ou dificultarão arecuperação e a reabilitação; 3º) a organização das instituições sociaisvoltadas para a atenção médica depende da sociedade nas quais estãoinseridas.

Freqüentemente, a Medicina é encarada como um conjuntoorganizado de conhecimentos, destrezas e atitudes voltadas para aprevenção e cura das doenças, isto é, os serviços de saúdeinstitucionalizados, como hospitais, empresas, Secretarias,Ministérios, outros órgãos públicos e privados que visam o processosaúde-doença. Sob este aspecto, uma das principais questões a estudar,dentro da visão aqui defendida, é como funcionam, estão modeladase organizadas essas instituições de atenção médica à população.Dentro desse sistema de atenção podem ser assinalados alguns pontos-chaves, como: 1) a determinação dos problemas que serão objeto deatenção médica e o estabelecimento de prioridades em relação aosmesmos; 2) o recrutamento e a formação do pessoal que enfrentaráos problemas de saúde; 3) a organização do pessoal nessasinstituições, tendo em vista a fragmentação da assistência médica.

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Em suma, esta concepção de Medicina, a qual, em parte pelomenos, constitui como que uma retomada da tradição anterior nessecampo, procura fugir àquela que a vê como um conjunto de práticascientíficas e técnicas dissociadas do restante da sociedade. Elatambém procura não reduzir a análise do fenômeno “enfermidade”ao nível biológico, individual e psicológico, procurando outrasdeterminantes para ele que, em última análise, só podem serencontradas no que poderíamos chamar de “totalidade” social. Estetipo de análise igualmente não procura ocultar os conflitos existentesna sociedade e a forma como a Medicina institucionalizada às vezesintervém para preservar interesses de grupos.

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Observação: Na redação deste artigo vali-me de algumasconsiderações contidas num texto mimeografado de Juan CésarGARCIA intitulado “Medicina y sociedad”.

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9.4. MEDICINA ALÉM DO BIOLÓGICO*

Atualmente são evidentes as várias relações mantidas entre aMedicina e a sociedade global e, mais ainda, as determinaçõessociais do processo saúde-doença e da atenção médica. Tais fatoslevaram, paulatinamente, a uma convergência crescente, no campoda Medicina, entre o biológico e o social, possível de notar em váriospontos.

1. Verificaram os médicos que, apesar de seu arsenal demedicamentos capazes de vencer as enfermidades infecciosas, oproblema destas está fundamentalmente em sua prevenção e não emsua cura. Entretanto, as medidas preventivas não são usadas porparcelas ponderáveis da população, especialmente de países emdesenvolvimento como o Brasil, por encontrarem, aquelasmedidas, barreiras enraizadas em razões sociais, econômicas,culturais e psicológicas. Passou a preocupá-los o fato de,freqüentemente, doenças evitáveis não poderem ser controladasatravés de esforços baseados apenas em conhecimentos médicos.

2. Um dos problemas enfrentados atualmente pela Medicina éque as enfermidades crônicas parecem não ter uma causa únicadefinida, mas múltiplas. Entre essa multiplicidade de causas seriaimportante o modo de vida, entendendo-se por isso coisas comohábitos, tipo de trabalho, produtos consumidos na sociedade industrial,condições de habitação. Inclusive como fatores causais intenta-semostrar a influência maléfica de alterações provocadas no ambientepelo próprio desenvolvimento da sociedade industrial. Relacionado

* Artigo publicado originalmente sob o título “O biológico e o social na Medicina”em Tribuna de Batatais de 13 de setembro de 1980 e Diário de Notícias de 22 dejaneiro de 1981.

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igualmente com o problema está o custo elevado do tratamento dessasdoenças, as conseqüências sociais para a família, a comunidade e oenfermo, o que significa pensar em termos sociais, econômicos,psicológicos e culturais

3. Ainda que a Medicina Preventiva e Sanitária sempre tenhatido grande importância na Europa (ao contrário do que ocorreu nosEstados Unidos, em que se restringia até há pouco quase que somenteao controle de moléstias contagiosas), este ramo da Medicina foiganhando terreno em toda a parte, inclusive no Brasil. Seudesenvolvimento teve como uma das conseqüências chamar a atençãopara o fato de que o conhecimento da causa imediata da doença émenos importante, socialmente falando, do que o conhecimento dascausas mediatas, as quais devem ser removidas. Tais causas só podemser definidamente conhecidas estudando-se as condições de vidadiferenciais de faixas distintas da população.

4. O avanço da Medicina Social (grande nos países da EuropaOcidental) repercutiu nos países subdesenvolvidos e emdesenvolvimento. Dando grande importância à manutenção dasanidade das populações, ela tem mostrado que para essa manutençãoe também para o restabelecimento da saúde da populaçãoglobalmente considerada, a remoção e detecção das causasbiológicas das moléstias são apenas uma parte. Ficou inclusivepatente que mesmo as causas biológicas não podem serinteiramente afastadas se a Medicina empregar tão-somente técnicasbaseadas em teorias bacteriológicas para assegurar a higiene e ocontrole de vetores. Os estudos nesse campo têm mostrado que ascondições sócio-econômicas satisfatórias possuem tanta importância,pelo menos, quanto o emprego dessas técnicas. A remoção de algumascausas não-biológicas das enfermidades pode estar além daspossibilidades da Medicina (distribuição da renda, nutrição, condiçõesde moradia etc.) mas algumas causas biológicas poderiam sercontroladas estimulando-se as pessoas a viver (dentro de suaspossibilidades) de modo a favorecer a saúde. Isto implica em estudarproblemas de comunicação, nível educacional, atitudes, obtenção do

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apoio da população para programas sanitários e assim por diante.5. Verificou-se que a reabilitação de pacientes clinicamente

curados era mais problema social do que propriamente médico, se aMedicina for encarada de modo restrito. Para enfrentar problemascomo estereótipos e estigmas sociais ligados a certas enfermidades,por exemplo, os médicos têm procurado muitas vezes o auxílio dasCiências Sociais.

6. O estudo do desenvolvimento industrial mostrou, em toda àparte, que existem relações entre certas doenças e ocupações; osacidentes de trabalho também tendem a aumentar. Por isso, osmédicos são, cada vez mais, solicitados a exercerem a Medicina doTrabalho, em que não basta a aplicação apenas de conhecimentosestritamente médicos. Exige-se, nesse campo, que eles possuamconhecimentos outros, afim de melhor atuarem no sentido de manterou recuperar a saúde de operários industriais e de trabalhadores deserviços e rurais, que, por sua vez, igualmente, apresentam doençasespecíficas, relacionadas com seu tipo de trabalho (bancários, porexemplo).

7. Foi-se desenvolvendo, no decorrer do tempo, umaconcepção positiva de saúde em vez de uma simplesmentenegativa que a encarava como ausência de enfermidade,biologicamente considerada. Ainda que a definição de saúdedada pela Organização Mundial de Saúde – OMS (“estado decompleto bem-estar físico, mental e social e não apenas ausênciade doença ou enfermidade”) seja pouco operacional e ambígua, nãoespecificando o que seja este completo “bem-estar”, a definiçãoenfatiza a convergência mencionada. De qualquer forma, a saúdepassou a ser “considerada como o aspecto mais evidente da qualidadede dada população e assim sendo, é incluída entre os componentesque caracterizam o nível de vida das coletividades, definido como ascondições de vida consideradas como recomendáveis”. A saúdepassou a ser encarada como fim e meio do desenvolvimentoeconômico e social. É fim porque “o desenvolvimento, em últimainstância, tem por objetivo elevar o nível de vida das populações, no

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qual a saúde está incluída. É meio, na medida em que uma populaçãosadia se configura como um dos maiores recursos para o própriodesenvolvimento” (Cf. Indicadores de Saúde, Cadernos daSecretaria de Bem-Estar Social da Prefeitura Municipal de SãoPaulo, série Indicadores Sociais, nº 3, 1974).

8. As investigações têm demonstrado que, no “stress”, o maissignificativo é o ambiente social do indivíduo. Esse ambiente pode terrelações não apenas com enfermidades mentais, como produzir empessoas mais suscetíveis às pressões do meio, efeitos sobre osprocessos fisiológicos. Com isso, os médicos foram levados a dirigirsua atenção para o conhecimento das condições sociais de vida,redescobrindo a importância da relação médico-paciente, servindotal relação e conhecimento, notavelmente, a propósitos terapêuticos(donde a necessidade urgente da volta do médico de família).

9. As modificações que se estão processando em todo o mundono exercício da profissão de médico, estão levando-o, cada vez mais,a ser um assalariado, ao contrário do que ocorria no passado. Esteprocesso está obrigando os médicos a se interrogarem sobre ofuturo de sua profissão, ligando-o à discussão das tendênciasde transformações da sociedade com relação à Medicina.Problemas típicos enfrentados pelos membros das organizaçõesburocráticas passaram também a ser uma preocupação dosmédicos assalariados, impelindo-os a estudar o processoburocrático, geral em nossa sociedade, para melhor compreender suasituação em face dessas transformações.

10. A qualidade e os custos crescentes da assistência médicavêm sendo fortemente criticados. A Medicina foi estatizada em algunspaíses europeus. Em outros surgiram cooperativas médicas,funcionando ao lado das clínicas particulares e da Medicinaestatizada. O problema começa a ser debatido, em vários níveis, noBrasil. Os médicos, individualmente e como grupo profissional, estãoprocurando propor soluções alternativas para a organização daassistência médica. Em grande parte tais questões, que visam, emúltima análise, racionalizar a assistência médica, são tanto médicas

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(estritamente falando) como sociais.11. Há um sentimento crescente entre os próprios médicos de

que a excessiva especialização chegou a um ponto crítico. Osresultados parecem insatisfatórios quanto à assistência proporcionadaà população. De um lado, há o fracionamento dessa assistência e suaimpessoalização, levando ao desconhecimento do enfermo como serhumano. De outro, a especialização só pode ser exercida com sucesso(freqüentemente) em grandes centros urbanos. Aumenta acompetição nesses centros, enquanto certas zonas ficam desassistidas.Não se questiona o avanço técnico proporcionado pela especialização,mas seus resultados práticos tanto para os enfermos como para ospróprios médicos. Enfrentar este problema extrapola o campo médico,dadas suas repercussões sociais.

12. Começa também a ser questionada a assistênciahospitalar. Verifica-se, atualmente, uma preocupação tanto comseus aspectos técnicos como humanos (adaptação do enfermo aoambiente hospitalar, despersonalização do paciente, tensões entre opessoal, escassez e qualidade dos serviços para-médicos, problemasadministrativos etc.). Do ponto de vista econômico tem sido analisadoo custo elevado da assistência hospitalar em relação aos resultadosproporcionados quando comparados com a assistência ambulatorial edomiciliar. Os defeitos da instituição hospitalar, para serem sanados,exigem contribuições da Administração, Economia, Sociologia eciências afins.

13. Há, hoje, a nítida percepção de que o exercício da atividademédica é mais proveitoso quando se compreende claramente o que opaciente costuma esperar do médico, as razões de suas reações e deseus familiares e os possíveis conflitos entre as expectativas destes eas do médico. Este precisa compreender melhor, de um lado, quantoa sua visão da enfermidade e do enfermo está determinada econdicionada pela introjeção, nele, de uma perspectiva específica domeio científico que freqüentou. De outro, como os sentimentos,expectativas, ansiedades, tensões etc. dos enfermos e suas famíliassão condicionadas por uma visão diversa da prática médica. Em suma,

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o médico precisa ter uma compreensão melhor da origem dos conflitos,que por vezes surgem entre sua visão e a do paciente, por terem sidosocializados e ressocializados em meios diferentes.

Ainda que, evidentemente, não tenhamos esgotado os pontosde convergência, acreditamos ter ficado suficientemente clara apreocupação cada vez maior da Medicina pelos aspectos sociais e,vice-versa, dos cientistas sociais por problemas relacionados aoprocesso saúde-doença.

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9.5. RIQUEZA, PODER E DOENÇA*

É de senso comum que riqueza, poder e prestígio estãoestreitamente associados. Também é de senso comum que aquelesmais ricos, poderosos e de posição social elevada vivem mais e melhor.Qualquer consulta às estatísticas de mortalidade infantil nosmostra que os coeficientes variam segundo as condições sócio-econômicas dos pais. Ora, se a simples possibilidade desobrevivência depende dessas condições, igualmente delasdepende a esperança de vida ao nascer, a probabilidade de semanter ou não sadio, a de adquirir esta ou aquela enfermidade.Vemos, de fato, ao compulsar os dados relativos às causas dos óbitos,que moléstias evitáveis e passíveis de cura tais como as doençastransmissíveis, do aparelho respiratório, do aparelho digestivo e daprimeira infância são causadoras de mortes entre os pobres, emproporção muito maior do que entre os ricos, de educação superior,detentores de autoridade e de posição social elevada. As pessoas,nessas condições, morrem, em proporção maior, de outras moléstias,como tumores e doenças cardio-circulatórias. As distinções existentesentre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos evidenciam-se nossubdesenvolvidos entre ricos e pobres. Quer dizer, há um padrão demorbi-mortalidade para países com condições diferentes e igualmenteum padrão diferente, dentro de cada país, para estratos sócio-econômico diferentes.

Em que é que uma condição sócio-econômica representadapor baixos rendimentos, escolaridade insuficiente em face das

* Publicado originalmente no Diário de Notícias de 18 de janeiro e na Tribuna deBatatais de 24 de junho de 1981.

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exigências do mercado de trabalho, poucos contatos sociais etc. vaiinterferir nas condições de vida que têm significado médico?Fundamentalmente porque, quem ganha pouco, tem de dedicar a maiorporção desse ganho à alimentação e um pouco menos à moradia evestuário. Artigos de residência, assistência à saúde e higiene, serviçospessoais, recreação, educação, leitura, viagens são deixados de lado.Estes itens só ganham maior proporção quando a renda familiar seeleva, o que está de acordo com a lei formulada por um estatísticoalemão do século passado (lei de Engel), segundo a qual, à medidaque aumenta a renda, aumentam em termos absolutos os gastos comalimentação, vestuário, habitação (despesas correntes) mas diminuemem termos relativos.

As várias pesquisas realizadas no Brasil, por organismos oficiaisou não, confirmando a lei de Engel, mostram que as famílias queganham até um salário mínimo dispendem, de modo geral, mais de80% de seus ganhos com alimentação, enquanto aquelas que têmrenda superior a 18 salários mínimos gastam apenas cerca de 15%dessa renda com essa finalidade. Em 1970, os 40% mais pobres dapopulação brasileira auferiam apenas 10,01% da renda nacional,enquanto os 10% mais ricos se apropriavam de 47,79% da mesma(Cf. C. G. LANGONI, “Distribuição da renda e desenvolvimentoeconômico do Brasil”). Esta desproporção se manteve nos últimosdez anos. Daí não causar nenhum espanto o fato de que a desnutriçãoe a subnutrição sejam endêmicas no Brasil.

Não se deve inferir disso que as pessoas ganhem pouco porquetrabalham pouco e, conseqüentemente, se tornem doentes. Aconhecida colocação a respeito do círculo vicioso da pobreza e dadoença (Cf. C. E. WINSLOW, The Coast of Sickness and thePrice of Health), poderia levar a essa conclusão. AfirmaWINSLOW: “Era claro... que a pobreza e a doença formavam umcírculo vicioso. Homens e mulheres eram doentes porque eram pobres;tornavam-se mais pobres porque eram doentes e mais doentes porqueeram mais pobres”. Se as mediações entre os dois fenômenos nãoforem devidamente esclarecidas, corre-se o risco de aceitar que, se

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os homens forem mais saudáveis, tornar-se-ão mais ricos, o que nãoé correto. A relação não é direta. A distribuição da riqueza dependedo poder que as várias camadas sociais detenham dentro de umdeterminado sistema sócio-econômico e não da sanidade ouenfermidade de seus membros. É extremamente importante ter-seisso em conta, sem o que podemos estabelecer uma falsa relação decausalidade. Uma ciência fragmentadora do real, além deideologicamente conservadora, freqüentemente não permite entender,em se tratando da doença, que os problemas médicos decorrentesnão se resolvem apenas através da aplicação de recursos médicos,ainda que sua solução dependa também dessa aplicação.

Quando não se atenta para as relações mais amplasenvolvidas no suposto círculo vicioso da pobreza e da doençafica-se num aparente bonito jogo de palavras (cientificamenteincorreto e politicamente reacionário): alguém é doente porqueé pobre ou, ainda, é pobre porque é doente. A solução do impasseimplicaria sempre numa atividade missionária dos médicos, curandoos pobres doentes ou, então, fazendo com que tais pobres trabalhassemmais. Essa proposição do círculo vicioso da pobreza e da doença (senão for devidamente esclarecida) reduz-se a uma mera tautologia.Se aplicada a um país, por exemplo, poder-se-ia expressar da seguinteforma: “Um país é pobre porque é pobre”, ou, ainda “uma populaçãoé doente porque é doente” (Cf. Gunnar MYRDAL, TeoriaEconômica e Regiões Subdesenvolvidas, MEC-ISEB, 1960, p. 26).

Descartemos, pois, o aspecto de responsabilidade individualexistente, em larga proporção, em tais afirmações. Consideremossempre os pontos essenciais da questão, que se vinculam à estruturae funcionamento do sistema sócio-econômico global. Façamossempre a pergunta pertinente ao caso, que é saber porque um conjuntode homens não tem, muitas vezes, o bastante para comer. Nãoapontemos como causa aquilo que, geralmente, é efeito: a doença, asubnutrição. Para corrigir esse efeito seria preciso uma razoávelalteração estrutural de modo, por exemplo, que houvesse uma melhordistribuição da renda, que a política econômica posta em prática

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contemplasse uma maior criação de empregos, que fosse diminuída adependência econômica, política, tecnológica etc. que vivemosdo exterior e assim por diante. Em suma, as tautologias, por bemexpressas que sejam costumam ser cientificamente pobres comoexplicação dos processos que pretendem esclarecer.

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9.6. URBANIZAÇÃO, INDUSTRIALIZAÇÃO E SAÚDE*

Um fator reconhecidamente importante em relação à saúde éo tipo de atividade exercida pela população, bem como ascondições ambientais sob as quais ela se realiza. Por isso, umestudo de como ocorreram os processos de industrialização eurbanização e que repercussões produziram sobre o modo deviver dessa população pode proporcionar um melhor entendimentoda saúde gozada e da doença padecida por ela. Saúde e doençarelacionam-se com aqueles processos em termos dos requisitos físicos,psicológicos, sociais e culturais exigidos pelas ocupações urbanas,por exemplo. Mas há outras repercussões significativas. O viver numambiente industrial e urbano geralmente proporciona maior acesso àeducação formal e informal, isto é, tanto através da escola comoatravés de mais freqüentes e intensos contactos sociais. Tal educação,aliada às novas experiências, altera a visão tradicional da doença,seja quanto à interpretação da mesma, seja quanto ao tratamento.Esse ambiente também proporciona maior acesso à assistência médica,de modo geral. Isto para falar de alguns aspectos positivos.

Mas há, evidentemente, o outro lado da moeda, que são osaspectos negativos e que dizem respeito às condições higiênicas, àdesorganização social e pessoal etc. associadas a ambos os processos.De fato, deixamos de ser uma população concentrada na zona ruralsem que isto tenha significado o deslocamento dessa população paraa indústria de transformação. O setor terciário da atividade econômica(serviços, comércio, transporte, governo etc.) passou a empregar cada

* Publicado originalmente no Diário de Notícias de 19 de abril e em A Tribuna deBatatais 14 de julho de 1981.

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vez mais pessoas. Mas esse emprego, muitas vezes, é subemprego emesmo desemprego disfarçado. Conseqüentemente as cidadesbrasileiras “incharam” e não cresceram propriamente dito. Largaporção da população se manteve à margem do processo deindustrialização, ainda que recebendo seus influxos indiretos.

Esse “inchamento” das cidades constitui um fenômeno que sepoderia chamar de urbanização sociopática. Isto porque grande partedo contingente humano que as procura não encontra nelas condiçõesde moradia decentes; o favelamento e o “cortiçamento” intensos têmefeitos desagregadores sobre a família; surgem problemas de higiene,já que os municípios encontram dificuldade em estender a rede deágua e esgotos à periferia; rompem-se muitos laços de parentesconão só por causa da mudança de valores, mas em parte porque muitasdas pessoas que procuram as cidades não vêm com suas respectivasfamílias e sim isoladamente (mesmo quando são famílias que emigram,a família conjugal passa a predominar sobre a família extensa). Comomuitas dessas pessoas não encontram emprego, aumenta amendicância, a prostituição, a insegurança pessoal, o consumo deálcool, o “stress” (principalmente nas cidades maiores). Além do mais,a desorganização social que freqüentemente ocorre pela rápidatransposição de um meio rural para o urbano, pode levar àdesorganização pessoal e, conseqüentemente, ao aumento dafreqüência de distúrbios mentais.

Os processos de industrialização e urbanização têm muitasoutras repercussões sobre a saúde e a assistência médica. Há, porexemplo, um aumento da população atendida pela Previdência Socialcom o aumento do número absoluto e relativo das pessoas que passama trabalhar na indústria e no setor de serviços. Ainda que precariamente,elas acabam tendo acesso a serviços médicos. Por outro lado, crescea freqüência de acidentes do trabalho, já que se trata de um operariadoque, em grande parte, não tinha experiência prévia do trabalhoindustrial, nem um estilo de vida mais adequado a ele. É claro que, apar disso, essa incidência de acidentes demandando assistência médicatende a aumentar porque, em geral, nossas indústrias pouco se

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preocupam em instalar aparelhamento que os minimize e em adestrarseu pessoal de modo que faça sua prevenção. Possivelmente o estilode vida urbano-industrial, produzindo maior “stress”, tenda a fazeraumentar a incidência e a prevalência de doenças do aparelhocardiovascular (hipertensão, infarto do miocárdio etc.) e digestivo(úlcera, colite ulcerativa etc.) ainda que se possa atribuir o aumentoda freqüência de tais doenças não tanto àqueles processos e mais àcompetitividade inerente à estrutura social de países que tenham comoparadigma os Estados Unidos.

Como se disse acima, o aumento da freqüência e intensificaçãodos contatos sociais ocorrido com a urbanização produz, geralmente,uma modificação da percepção da doença. É que os valores tradicionaisa respeito tendem a se alterar com isso. Ainda que por simplesimitação (sem essa alteração de valores), o fato é que parte dapopulação urbana emigrada da zona rural tende a exigir, sempre quepossível, um tipo de serviço médico semelhante ao dispensado àsclasses de renda mais alta. Ocorre com os serviços médicos fenômenoparecido com o sucedido com outras necessidades e que oseconomistas chamam de “efeito de demonstração”: as classes derenda mais baixa desejam, naturalmente, usufruir dos mesmos padrõesde consumo (em termos relativos, é claro) gozados pelas classes derenda mais alta. No campo da assistência médica, os governos,pressionados, tentam diminuir as tensões que vão surgindo. Assimsendo, bem ou mal, eles tomam algumas providências para atender aesses desejos. Por outro lado, com a expansão da assistência médica,o uso de antibióticos etc. aumenta a proporção de pessoas de 60 anose mais no conjunto da população. Como essa faixa etária necessitade maiores cuidados médicos, essa maior demanda repercute noaumento do número de médicos especialistas em doenças crônicas edegenerativas, características da população mais velha.

Quanto às possíveis diferenças de problemas médicos entre aszonas rurais e urbanas, elas decorrem, entre outros, dos seguintesfatores: 1) o nível de vida na zona rural, de modo geral, é inferior; 2)a natalidade é maior na zona rural; como o atendimento médico é

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relativamente precário, a mortalidade infantil também é maior; 3) comoa densidade da população na zona rural é menor, a possibilidade deepidemias é menor, uma vez que os contatos são menos freqüentes,embora as condições de saneamento possam ser precárias; 4) comoos jovens adultos emigram para as cidades, a população rural conta,proporcionalmente, com maior número de menores de 15 anos, o que,por si só, torna seus problemas médicos algo diferentes dos que surgementre a população urbana; 5) os extremos sociais são maiores nazona rural, pois, praticamente, ou se é proprietário ou se é assalariadoe mal pago. Sendo assim, e se associarmos esse fato a outros fatorescoadjuvantes (como a própria escassez de assistência médica), essapopulação tem menores possibilidades de contar com essa assistência;6) por causa do tipo predominante de moradias, hábitos de higiene,alimentos muitas vezes contaminados, contato mais freqüentes comanimais, a população rural tende a apresentar maior freqüência dedoenças parasitárias, zoonoses, alguns tipos de micoses, infecçõesintestinais, acidentes com animais peçonhentos, doença de Chagas,malária (em algumas regiões) e assim por diante.

Apesar da listagem de diferenças apresentadas, devemosesclarecer que é difícil fazer-se uma generalização a respeito dasanidade da vida rural em relação à urbana porque as condiçõesvariam, não só de país para país, como segundo regiões e micro-regiões do mesmo país. Talvez a única que se possa fazer é que,como a densidade populacional no campo é muito menor do quenas cidades, as possibilidades de qualquer contágio são igualmentemenores no campo e que as enfermidades infecciosas, transmitidaspelas vias aéreas superiores, são mais freqüentes nas cidades. É claroque acidentes de trânsito ocorrem mais nas cidades, mas a populaçãorural também está exposta a riscos específicos. Parece, por outrolado, que há uma associação entre urbanismo e enfermidades comocâncer do pulmão, pneumonia, bronquite, arteriosclerose,coronariopatias, hipertensão, não tanto em razão do local, mas emvirtude de condições de vida diferentes.

A industrialização propriamente dita, independentemente do

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processo de urbanização, além dos acidentes de trabalho referidos,afeta também a saúde, em alguns casos, porque a poluição é grandeem certas cidades industriais; por isso acaba afetando toda a populaçãoe não apenas o trabalhador industrial. Por outro lado, algumasatividades industriais propiciam condições favoráveis ao surgimentode enfermidades ocupacionais. Realmente, os riscos, em algumasindústrias, são maiores por causa do pó, de agentes químicos (solventespor exemplo) e físicos (calor, umidade e ruídos excessivos).Diretamente, estas seriam as principais relações que poderíamosmencionar entre a saúde e industrialização (Cf. Hernán SANMARTÍN, Salud y Enfermedad).

Contudo, as repercussões indiretas, como foi visto, podem serde maior gravidade, representadas por certos desenvolvimentostecnológicos que depredam a natureza, alterando o ambiente de modoa torná-lo menos salubre. Não se pode esquecer que a industrializaçãoapesar de, geralmente, ter constituído um fator de melhoria dascondições de vida, também causou muitas contaminações dosalimentos humanos, os quais podem acabar se tornando prejudiciaisao metabolismo. A propósito, um relatório de 1978, da OrganizaçãoMundial da Saúde, revela a existência de mais ou menos 5.000compostos usados como aditivos na indústria de alimentos. Apesardisso, não devemos ser como aqueles críticos conservadores do mundo,que tendem sempre a considerar o passado melhor do que o presentee este melhor do que o futuro.

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9.7. FOME E SUPRIMENTO DE ALIMENTOS*

A fome, em suas várias gradações, é muitas vezes relacionadaà incapacidade maior ou menor de produção de alimentos. É evidenteque, em determinadas sociedades e períodos históricos, isto de fatoaconteceu. A própria Bíblia se refere ao episódio de José, que foicapaz de interpretar os sonhos do faraó e profetizar 7 anos de fartura,seguidos de 7 anos de fome. Tais eventos, no entanto, ocorrem commaior freqüência em sociedades pré-capitalistas, nas quais, realmente,fatores climáticos e desorganização da produção, em consequênciade guerras por exemplo, podem produzir graves períodos de fome.Nelas, além do mais, o desenvolvimento técnico é menos intenso, ostransportes são precários, pode não haver um governo com autoridadesuficiente sobre uma razoável extensão de território e capaz de fazercom que más colheitas em uma região sejam compensadas pela suaabundância em outras sob sua autoridade. E assim por diante.

Com o desenvolvimento técnico e dos meios de comunicação,com a centralização do poder e a formação de estados nacionais,com melhorias organizacionais na esfera tanto da produção como dadistribuição de bens, com o surgimento de sociedades amplas ecomplexas cobrindo um território mais ou menos vasto, com o avançodas trocas internacionais e, fundamentalmente, com o avanço do modode produção capitalista, a relação apontada não é mais tão evidente.Mesmo em regiões superpovoadas (pelos padrões brasileiros), a fomepode ser um fenômeno praticamente desconhecido, pelo menos emsuas formas mais graves. Em outras, pelo contrário, mesmosubpovoadas, existindo terras férteis mais do que suficientes para

* Publicado originalmente em Ciência e Cultura, 34(7), julho de 1982, pp. 904-5.

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sustentar uma população muito maior, pode ser que a população sejabastante desnutrida. Uma ponderável parcela de países do TerceiroMundo encontra-se nessas condições.

É que o problema, na verdade, não é apenas técnico, massobretudo político. Soluções técnicas para produzir maior quantidadede alimentos existem em número mais do que suficiente. Nem todas,é certo, economicamente viáveis. O que há é uma tendência notável,em nosso tipo de sociedade, de tecnificar problemas políticos, fazendocom que se desloque o fórum normal do debate. Da mesma forma,problemas coletivos são transformados em questões individuais, comose sua resolução coubesse às pessoas que estão sofrendoconseqüências de políticas, sobre as quais, isoladamente, não têmcondições de intervir. Assim, seguindo tal tendência, são inúmeráveisas discussões sobre a má nutrição do brasileiro e da população pobremundial, em que a fome de que padecem é vista como decorrendo,em grande parte, simplesmente, da melhoria da técnica da produção,ou mesmo, de ensinar a população carente a comer maisracionalmente. Por mais bem intencionadas que sejam, tais soluçõessão apenas paliativos.

Essas colocações técnicas desconsideram o fato inquestionávelde que mudanças de política econômica podem fazer com que osprodutores rurais usem suas terras tanto para produzir cana-de-açúcarou mais feijão e arroz. Tudo depende do lucro que obterão. Seria umcontra-senso, num regime capitalista de produção, pedir a umempresário que deixasse de obter lucros e se descapitalizasse. Istonão o beneficiaria, nem à população mais carente. Apenas aos quecomprariam seus produtos agora, e suas terras depois, a preçosaviltados. Ninguém pode ser impunemente Papai Noel no capitalismo.Ou todos são ou aquele que se transformar em Quixote será punido,até mesmo pela falência. Em todas as épocas históricas, os que tiveramcondições de pagar nunca passaram fome, a não ser em situaçõesextremas. Nesta questão, sempre encontramos duas posições polares:de um lado, os que sofrem por desnutrição; de outro, os que estãodoentes por comer demais. Se os crânios de todos os mortos se

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parecem quando reduzidos seus corpos a esqueletos, alguns conservamdurante mais tempo cabelos sobre eles ou matéria cerebral dentrodeles, como diz Giovanni Berlinguer em Medicina e Política.Conseqüentemente, se pretendemos que os cabelos de todospermaneçam mais tempo sobre seus respectivos crânios, semdistinções de natureza sócio-econômica, então teremos que ir ao cernedas questões. Aqui, ela reside no fato de que as pessoas não sealimentam de forma conveniente principalmente por causa da misériaem que vivem, o que implica em o setor produtor de alimentos nãoreceber os estímulos econômicos necessários. No capitalismo,existindo quem pague, a produção tenderá a ser sufiente, quaisquerque sejam os critérios usados para medir essa suficiência.

Para entender as leis que regulam o mercado, inclusive deprodutos alimentícios, não é preciso recorrer a nenhum economistamoderno ou heterodoxo. Basta-nos o pai da economia política mesmo,Adam Smith, que publicou sua Investigação sobre a natureza e ascausas da riqueza das nações em 1776, há mais de dois séculospois. Distinguia ele um preço primário das mercadorias, que seriaaquilo que custariam àquele que as coloca no mercado, e um preçonatural, que seria o acrescentamento, a esse preço, do lucro normaldo capital na região, no país, no setor econômico em causa. O preçode mercado flutuaria em torno do preço natural, dependendo da ofertae da procura, sendo esta proporcional à quantidade daquelescompradores efetivos dispostos a pagar o preço natural. Quando aoferta é menor do que a procura efetiva, ocorre uma competiçãoentre os compradores e o preço se eleva. Quando a quantidadeproduzida excede à procura efetiva, para que as mercadorias seescoem, será necessário vendê-las ao preço pretendido por aquelesque desejam pagar menos. Adam Smith acreditava que existiria comoque uma mão invísivel que regularia a oferta e procura de bens eserviços postos no mercado.

Pois bem, se os compradores potencialmente efetivos ganhampouco, a procura é menor do que poderia ser. Então alguma coisaseria preciso fazer para estimular a produção. Ainda que a tal mão

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invisível só exista, provavelmente, num mercado constituído por umamultidão de pequenos compradores e vendedores, o que não é ocaso da economia moderna, o Estado poderia intervir paradesequilibrar a balança existente. De fato, numa economia como abrasileira, em que a intervenção do Estado é a regra e não a exceção,uma possível solução político-econômica seria lutar para que esseEstado redistribuísse renda de um ou de outro modo. Há décadas,vários países europeus, com governos social-democratas, praticamtais políticas redistributivas. É claro que uma política voltada para acoibição da maternidade e paternidade irresponsáveis constituiriaoutra grande contribuição. Os recursos, evidentemente, só poderiamvir de impostos e taxas; por exemplo, sobre bens supérfluos e dealto valor unitário, consumidos pelos estratos sociais de alta renda.Implementadas tais políticas, uma parcela bem maior da populaçãoteria condições de comprar não só produtos alimentícios como outrosde primeira necessidade. A produção destes cresceria, sem dúvida.Espero que a relação de forças políticas e econômicas evolua de talforma que, um dia, a subnutrição entre nós seja apenas umalembrança. Para isso, na verdade, ao contrário do que dizem muitos,o modelo econômico em voga, ainda que fosse algo modificado,não o seria no fundamental. Em suma, é principalmente através daação política e não técnica, que haveria maior possibilidade demelhorar o nível de vida da população. E não só em termos dealimentação, como se discutiu aqui.

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