Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

89
Alceu Amoroso Lima MEDITAÇÃO SÔBRE O MUNDO INTERIOR 1954 Livraria AGIR Editôra Rio de Janeiro

Transcript of Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

Page 1: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

Alceu Amoroso Lima

MEDITAÇÃO

SÔBRE O MUNDO INTERIOR

1954

Livraria AGIR Editôra

Rio de Janeiro

Page 2: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

Regnum Dei intra vos est

(Lc. XVII, 21)

Page 3: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

O r e l h a Eis um dos mais harmoniosos e dos mais profundos livros de quantos escreveu ALCEU AMOROSO LIMA, o grande crítico literário que se superou em filósofo autêntico e se realizou em líder intelectual, cuja influência é a maior já alguma vez exercida por um pensador em nossa pátria, pois se estende ao longo de quatro gerações e numa área de atividade que tudo compreende, desde a política e a economia até a vida espiritual mais intensa, a contemplação e a ação religiosa. Meditações sôbre o mundo interior não é livro feito de recortes e, se apareceu antes em jornal, foi sob a forma de capítulos, já elaborados dentro de um plano intencional de unidade. A obra está submetida a uma rota fielmente seguida e a um ritmo que se vai tornando cada vez mais intenso, à medida que as páginas se sucedem. De comêço, o Autor fala-nos dos obstáculos que se antepõem, em nossos dias, à realização do mundo interior. São êles representados pelo liberalismo e a licenciosidade, duas corruptelas da verdadeira liberdade, que deve ser defendida como um dos bens supremos do nosso mundo interior; pelo moralismo, que se exprime na primazia das obras, na preeminência da operação sôbre o ser, do Ethos sôbre o Logos; pelo filosofismo, diminuição da filosofia sob a aparência de a elevar; pelo politicismo, que asfixia a vida interior, enquadrando o homem em instituições onipotentes como o Estado ou em limites instransponíveis como a Sociedade; e pelo economismo, que reduz o homem a um autômato, a uma coisa, a simples instrumento de uma coletividade. A vitória contra semelhantes obstáculos só se obterá através da restauração dos direitos do mundo interior, o que depende de um tríplice condição: de uma reta

Page 4: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

concepção da divindade, que se oponha a um tempo, ao deísmo, ao panteísmo e ao ateísmo; da harmonia psicológica ou da sã hierarquia dos três momentos capitais de nosso contato com o mundo, tanto exterior como interior -- a inteligência, a sensibilidade e a vontade; e do meio ou das condições que cercam o nosso corpo e o nosso espírito, o alheio, o outro, o não-eu, notas indispensáveis ao nosso perfeito movimento interior. Estabelecidas assim as exigências para a expansão livre da vida de intimidade da pessoa. ALCEU AMOROSO LIMA fala dos fundamentos do mundo interior: o Silêncio, a Solidão e a Santidade. São os quatro capítulos centrais da obra, e os mais belos. Por isso, não lhe anteciparemos o conteúdo, a fim de que o leitor experimente, em plenitude o seu sabor. Após referir-me às conseqüências da vida interior bem vivida -- ela aguça a sensibilidade, alarga a inteligência e fortalece a vontade -- o autor como que deixa transportar pela inspiração de algumas constantes de sua própria meditação, escrevendo, então, sôbre a oposição presença-ausência, propriedade acidental do ser que a vida interior permite sentir, conhecer e querer, três capítulos que, por si só, bastariam para colocá-lo ao nível dos maiores filósofos de nosso tempo. E o tom de vivência e profundidade é mantido até o final da obra, mesmo quando, num esfôrço por retomar a exposição quase racional, ALCEU AMOROSO LIMA tenta expor, mas na verdade transmite ao leitor e faz que êste viva com o autor a Sabedoria da vida interior a quatro dimensões: a evocação ou passado, a antecipação ou futuro, a profundidade ou meditação, a elevação ou prece. Mas diríamos uma falsa idéia da obra se não acrescentássemos que é livro para todo gênero de leitores, qualquer que seja o grau de conhecimento de cada um, pois a cultura e a experiência que lhe servem de alicerce

Page 5: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

estão de tal modo assimilidas, que o prazer intelectual de sua leitura é superado pelo consôlo e edificação que proporcionam as reflexões íntimas, as comparações, os exemplos da vida cotidiana, que entretecem suas páginas. A verdade é que estas Meditaçãoes sôbre o mundo interior desvendam-nos, sem que o autor de certo o procurasse ou o desejasse, o mistério do êxito de sua própria vida e da fecundidade de sua atuação. Quem soube, com tal minúcia e de modo tão amplo, descrever o mundo interior, sua natureza, suas condições, suas conseqüências, suas dimensões, seguramente já o realizou em si, através do Silêncio, da Solidão e da procura humilde, tenaz e constante da Santidade. E assim tem podido levar aos outros o fruto de sua intimidade com a Sabedoria.

Page 6: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

Í N D I C E

Págs.

Explicação…………………………………………………………..………………. 7 Cap. 1º -- Liberalismo …………………………………………..……………...... 11 Cap. 2º -- Moralismo ……………………………………………..…….……...…. 14 Cap. 3º -- Filosofismo …………………………………………………...…...……. 17 Cap. 4º -- Politicismo …………………………………………...…………………. 20 Cap. 5º -- Economismo ……..…………………………………...………...………. 23 Cap. 6º -- O Hóspede …………………………………………….………..………. 26 Cap. 7º -- Equilíbrio …………………...…………………………………..………. 30 Cap. 8º -- O Meio …………………..………………………..……………………. 34 Cap. 9º -- Silêncio -- I ………………………………………..…………...………. 38 Cap. 10º -- Silêncio -- II …………………………………...…...………..……..…. 42 Cap. 11º -- Solidão …………………….……………………………...………..…. 45 Cap. 12º -- Santidade ………………………………….…...………..…..…..…. 49 Cap. 13º -- Conseqüências ……………………………..……...……………..…. 53 Cap. 14º -- Ausência ……………………………………...………………..…. 57 Cap. 15º -- Presença -- I ……………………………..……...……………..…. 61 Cap. 16º -- Presença -- II …………………………………....………………. 64 Cap. 17º -- Sabedoria …………………………………….…...…………..…. 68 Cap. 18º -- Saudade …………………………………….………………….…. 72 Cap. 19º -- Futuro …………………………………….….…..…………....…….. 76 Cap. 20º -- Meditação …………………………………….…..………….……. 80 Cap. 21º -- A Oração implícita ………………………..……...…………….……. 84 Cap. 22º -- A Oração explícita …………………………….....………….……...… 87

Page 7: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

EXPLICAÇÃO Os capítulos que se seguem foram publicados na Tribuna da Imprensa, durante o segundo semestre de 1953 e dela reproduzidos por sua generosa autorização. Foram publicados sob o título de “ Bilhetes do Mundo Interior” que a seção continua a ter, e em seguida aos do Velho e do Novo Mundo. Costumamos dividir o mundo moderno em Velho e Novo Mundo; em mundo totalitário e mundo democrático; países para lá e para cá da Cortina de Ferro; mundo socialista e mundo capitalista; Oriente e Ocidente; ou mais amplamente ainda, em mundo moderno e mundo eterno. Tôdas essas divisões são mais ou menos legítimas ea última se aproxima muito da que tomamos por base dêste ensaio, o mundo exterior e o mundo interior. Aqui, porém, prescindimos da própria noção de tempo e colocamos o homem perante os dois mundos que constituem a sua própria natureza completa, pois o mundo interior não é uma opção, mas uma síntese. E o homem completo, isto é, o homem normal, é aquêle que vive interiormente a sua vida exterior e não sepulta em si, egoísticamente, a sua vida interior. É certo, entretanto, que uma das marcas do nosso tempo é a primazia da vida exterior sôbre a vida interior, quando não o esmagamento desta por aquela. O maior perigo que corremos, hoje em dia, -- em face do curso que vai tomando o progresso da técnica, com a absorção do homem pelo Estado, pelo Partido ou pela Fábrica, -- o maior perigo é precisamente essa anulação da personalidade pela extroversão sistemática do homem e de sua vida profunda. Um biologista materialista, Jean Rostand, resumindo as conclusões do seu próximo livro, Ce que je crois, rasga

Page 8: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

os seguintes horizontes para a ciência biológica de amanhã, que vai tentar fazer aquilo com que Bernard Shaw sonhava ao dizer que “what can be done with a wolf, can be done with a man” ! Isto é, se foi possível fazer de um animal feroz como o lôbo um animal manso como o cachorro, também será possível fazer de um ser imperfeito, como o homem de hoje, um ser perfeito, como o homem de amanhã. Esquecido, o sofista do século XX, de que foi o homem que fêz do lôbo um cachorro e não o próprio lôbo… E, portanto, só Deus, dizemos nós os que não julgamos que o homem seja um deus, poderia mudar a natureza humana, como só a Sua graça pode aperfeiçoá-la, ajudando a própria virtualidade dessa natureza. É possível que venham a ser um fato êsses novos horizontes que os biologistas abrem às intervenções do homem sôbre a natureza, inclusive a própria natureza humana. Jean Rostand chega a crer que “aparentemente se poderá prolongar, no futuro, de modo sensível a duração da vida humana…; outros muitos problemas serão resolvidos: determinar-se-á à vontade o sexo das crianças… talvez a ectogênese ou a gravidez de bocal (como Aldous Huxley já previra, com humor, no seu This brave New World). Pelo emprêgo dos hormônios ou de medicamentos apropriados ou ainda por uma correção cirúrgica dos centros nervosos, modificar-se-ão a personalidade, o temperamento, o caráter. Suscitar-se-ão artificialmente aptidões e virtudes” (sic). Êsse biologista materialista, que acredita serem as virtudes consequências dos hormônios, como Virchow, no século passado, fazia do bem e do mal secreções como o açúcar ou o vitríolo, não fecha, entretanto, os olhos aos perigos dessa ditadura da técnica biológica. “Será difícil”, diz êle, “impedir que a coletividade não abuse do seu poder em relação àqueles que a constituem. Haverá sempre um equilíbrio difícil de

Page 9: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

alcançar entre a preocupação do interêsse coletivo e o respeito da liberdade individual… Não valeria a pena que a natureza fizesse de cada indivíduo um ser único, para que a sociedade reduzisse a humanidade a não ser mais do que uma coleção de iguais.” Ou, como nós diríamos, não valeria a pena que Deus criasse o homem à sua imagem e semelhança, para que o homem se reduzisse apenas à semelhança e imagem dos animais… E que tivesse colocado no coração humano o amor da liberdade para que êle procurasse apenas novas formas de escravidão. A libertação do homem não está mais nas coisas. Está em si próprio. Não está na vida exterior. Está no seu mundo íntimo. Não está na técnica biológica ou física. Está na virtude. O progresso da humanidade não depende da perfeição daqueles que a souberem manejar. A técnica não é um bem ou um mal em si. É uma arma de dois gumes, que serve cegamente ao bem e ao mal, conforme a luz dos olhos de quem a manejar. Mas tanto maior é o poder que essas técnicas, já agora de ordem biológica, colocam nas mãos do próprio homem, quanto maior a ameaça às liberdades, aos direitos, às variedades da pessoa humana. E tanto maior a submissão do homem às fôrças por êle próprio desencadeadas na matéria do seu próprio corpo ou da natureza física, quanto mais precisamos desenvolver em nós as potências do mundo interior. Eis porque uma meditação sôbre o mundo interior me parece, a esta altura da vida e dos acontecimentos, muito mais urgente e necessária do que tôda meditação sôbre o mundo passado, moderno ou futuro…

A. A. L. Mosela, outubro, 1953.

Page 10: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima
Page 11: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

C a p . 1 . º

LIBERALISMO

O século passado converteu a liberdade em liberalismo e o nosso a confunde com licenciosidade. Liberalismo e licenciosidade são duas corruptelas da verdadeira liberdade. O liberalismo, como posição filosófica, com tôdas as ramificações conhecidas, -- liberalismo econômico, político, moral, religioso, etc., -- coloca a liberdade como valor supremo, sem distinguir entre liberdade de opção e liberdade de superação. A liberdade de opção, que nos permite escolher entre um caminho e outro sem estabelecer entre êles qualquer hierarquia de valores, é apenas um momento inicial no desenvolvimento dêsse poder, que vai gradativamente distinguindo a matéria viva da matéria inanimada, e os sêres superiores dos sêres inferiores. A hierarquia dos valores, no seio da própria natureza, já se faz pelo próprio acréscimo do poder de liberação. Mas a liberdade de opção no mesmo nível, sem distinguir valores senão pelo capricho das nossas tendências, é um momento inferior da liberdade. Esta só se torna realmente o que é, quando passa ao estágio superior de sua evolução. Só como superação de valores positivos, isto é, só pela liberdade de superação, é que encontramos a verdadeira natureza dêsse conceito capital para o homem e para a sociedade. A liberdade de superação não se limita a escolher sem injunções da necessidade, mas também sem distinção de valores, como faz a liberdade de opção. A liberdade de superação distingue os valores e nos integra nos que devem constituir a nossa autêntica finalidade, distinguindo, portanto, o superior do inferior e não apenas um do outro, como indistintos e iguais. Eis porque a liberdade não é o valor supremo, se a considerarmos como

Page 12: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

escolha indistinta. Mas pode sê-lo se a considerarmos como escolha que nos integra na hierarquia intrínseca dos valores, colocando o Bem acima do mal, o Eterno acima do efêmero, Deus como a nossa finalidade suprema. A liberdade se integra, pois, na verdade, quando considerada como elemento de superação dos valores menores e de nossa orientação para o verdadeiro e último Fim extraterreno, de tôdas as nossas ações. Restaurar a liberdade em sua grande dignidade intrínseca e separá-la das suas corruptelas, eis um dos grandes deveres de nosso tempo. Os negadores da liberdade, os totalitários de todos os matizes, combatem a liberdade como se ela se confundisse com o liberalismo ou a licenciosidade. Devemos ao contrário, defendê-la como um dos bens supremos do nosso mundo interior e que por isso mesmo deve estender-se naturalmente à nossa vida exterior. Pois o mundo interior não se opõe ao mundo exterior e sim ao mndo superficial, ao mundo frívolo, ao mundo mundano, tão àsperamente condenado pelo próprio Cristo. Se o mundo interior não é apenas o pólo oposto ao mundo exterior, e sim a síntese do efêmero, do ativista, do parcial, com o eterno, o contemplativo, o integral, é que constitui também uma superação. A vida interior compreende também a vida exterior, mas transfigurada, transcendentalizada, colocada no plano dos valores supremos, impregnada de eternidade. Cresce, pois, desmedidamente a nossa responsabilidade na apreciação dos acontecimentos ou das idéias, dos homens ou mesmo das paisagens, quando tudo consideramos do ponto de vista do nosso mundo interior, que é de fato um mundo superior. É um ponto de elevação que se destaca dos pontos de visão unilaterais e puramente terrenos e temporais. O mundo interior é o da supratemporalidade. É o dos valores, de todos os valores, mas impregnados de

Page 13: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

um sentido de perenidade, de substancialidade e, enfim, de sobrenaturalidade. O mundo interior é aquêle onde atua primordialmente a Graça, que não destrói a natureza, mas, ao contrário, lhe dá o seu sentido completo. Enquanto vivemos de um modo puramente exterior, vivemos apenas no plano da natureza. Vivendo uma vida interior, o mais interior possível, transcendemos o plano da natureza sem o diminuir em nada, mas dêle tirando, pela ação da Graça, tudo o que realmente contém.

Page 14: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

C a p . 2 . º

MORALISMO

Vimos o verdadeiro sentido da vida interior e da sua primazia sôbre a vida exterior, porque não se opõe a esta e sim à vida fútil, à vida superficial. A vida exterior, a nossa vida de ação, deve basear-se na vida interior, segundo um velho lema da filosofia perene que nos ensina que a operação segue o ente. Operatur sequitur esse. A operação é uma conseqüência do ser. Antes de atuar é preciso existir. E essa atuação depende, por conseguinte, da existência. A qualidade daquela, da qualidade desta. É precisamente a inversão dessa hierarquia de valores que está na base da inconsistência do mundo moderno. Como lembrou Romano Guardini, vivemos há quatro séculos, ao menos, sob o signo do primado do Ethos sôbre o Logos, quando a hierarquia natural dos valores é precisamente a oposta. O Logos, que é a nossa relação com o ser, deve preceder o Ethos, que é a nossa relação com o atuar e o dever ser. O atuar é uma operação do ser. Lodo deve seguir-se a êle e não precedê-lo. Tôda a tendência dos séculos modernos tem sido no sentido contrário. Primeiro a Moral, depois a Filosofia, depois a Política e finalmente a Economia embargaram o passo à Religião, o Ethos passou adiante do Logos, e com isso ficou perturbada completamente a hierarquia natural dos valores. Primeiro a Moral tomou a dianteira da Religião. A Religião, a partir do Renascimento e da Reforma, se foi cada vez mais convertendo em uma ética, em uma norma de costumes. A relação com Deus foi decaindo e dando lugar a uma preocupação crescente com as relações exclusivas com o próximo. “Ama a teu próximo como a ti

Page 15: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

mesmo por amor de Deus”, eis o preceito divino. O amor do próximo é precedido pelo amor de Deus e por êle se justifica. A transformação gradativa da religião em ética vai deixando cair, cada vez mais, o amor de Deus e exaltando o amor do próximo por si mesmo, sem referência a Deus. A moral vai, assim, quase que inconscientemente, se substituindo à religião. A austeridade dos costumes, o ascetismo, o puritanismo, vai absorvendo a atenção e a preocupação de um cristianismo reformado, e afastando-o da tradicional primazia do ofício divino, da palavra divina, do Opus Dei. A dissociação entre a Fé e as Obras, em vez de colaborar na defesa da Fé, veio concorrer paradoxalmente para a primazia das obras, para a preeminência da operação sôbre o ser, do Ethos sôbre o Logos. Tive ocasião de mostrar como em certas igrejas protestantes dos Estados Unidos essa inversão de valores era manifesta. A palavra do pastor tornava-se mais importante que a renovação incruenta do sacrifício do Cristo. O púlpito vinha dominar o altar. Há poucos meses o National Geographic Magazine, tão espalhado entre nós e, portanto, de fácil verificação, fazendo uma das suas maravilhosas reportagens fotográficas, trazia um retrato da velha igreja de São João, em Alessandria, pela qual tantas vêzes passei em caminho de Mount Vernon, freqüentada por Washington. Êsse pequeno e venerável templo é perfeitamente simbólico dessa transmutação de valores. O púlpito está sôbre o altar e o domina inteiramente. O altar como que desaparece. Passa a ser uma mesa sem importância. O que se passa lá em cima, no púlpito, é que conta. A palavra do pastor passa a ser muito mais importante que o sacrifício da Redenção. O Opus hominis começa a predominar sôbre o Opus Dei. E já não é mais o Côro coletivo que canta, subordinado ao altar, e em tôrno dêle, como se vê nas

Page 16: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

grandes catedrais da Idade Média e muito particularmente nas igrejas de Espanha, onde o côro suntuoso ocupa o centro da Igreja, -- como que começando a fazer concorrência ao altar, se assim me posso exprimir, -- já não é mais o Côro, é o púlpito isolado, do homem só, que fala, lendo e explicando a palavra divina, mas segundo a sua interpretação individual e humana. O jansenismo, aliás, -- com a sua insistência continua na moralização dos costumes, tão necessária como reação a “libertinagem” do século XVII, mas tão perigosa quando ultrapassa os limites do bom senso e afasta o pecador da fonte de regeneração por excesso de moralismo, -- coloca-se na mesma linha dessa inversão de valores que vai pouco a pouco minando o prestígio da religião e confundindo-a com a moral. E, à medida que nos aproximamos de nossos dias, mais se nos depara essa sub-reptícia substituição da religião pela moral, das nossas relações com Deus pelas nossas relações com o próximo. Da operação dominando o ser. A maior tentativa moderna dessa substituição é o Positivismo, que tenta secularizar totalmente a religião, criando a religião da humanidade e fazendo da Moral a chave final da sua classificação das ciências, mas como uma consequência e não como uma causa. E com a supressão da Teologia. O eticismo tenta assim substituir-se á Fé. E a vida exterior, a vida ativa, a norma dos costumes passa a constituir o valor supremo em nossas vidas. A vida interior, por falta de alimento substancial, vai assim deperecendo até morrer e ser substituída pelo ativismo desordenado que domina os nossos tempos.

Page 17: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

C a p . 3 . º

FILOSOFISMO Se a decadência da vida interior em nossos dias provém, antes de tudo, da substituição da vida religiosa pela vida moral, como atividade mais alta do nosso ser, o segundo passo no sentido dessa decadência foi a substituição da moral pela filosofia, como valor supremo. À substituição da religião pela moral, nos séculos XVI e XVII, seguiu-se a substituição da moral pela filosofia, no século XVIII. E por uma filosofia entendida como atividade suprema da razão e da “razão pura”, sem qualquer ligação com outros valores naturais ou revelados, moral, teodicéia ou revelação sobrenatural. Foi a ação do conjunto de idéias do século XVIII conhecido pela expressão “Aufklaerung” e que podemos traduzir para o vernáculo como Racionalismo. Pois essas Luzes, que a ideologia daquele tempo invocava como valor supremo, eram a Luz da razão natural. Êsse naturalismo racionalista é que trouxe para o pensamento moderno o conceito da supremacia da atividade filosófica sôbre as outras duas atividades que tradicionalmente a ultrapassavam: a Religião e a Moral, nossos deveres para com Deus e nossos deveres para com nós mesmos e para com o próximo. Todo aquêle moralismo que a Reforma, no século XVI, e que o jansenismo, no século XVII, tinham colocado no ápice de nossa atividade, passava agora a ser subordinado a um filosofismo, que se tornou a expressão mesma do homem e da sua posição no universo. Foi então que começou o culto do livro. Como foi então que o filósofo ultrapassou o moralista, como êste sobrepujara o teólogo. O culto do livro como livro, isto é, como expressão máxima da razão humana, se traduziu, antes de tudo, pela

Page 18: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

publicação de Enciclopédias e Dicionários, onde o racionalismo tentou condensar a súmula de todos os conhecimentos. Era uma renovação das Summas, teológicas ou filosóficas da escolástica, mas num sentido completamente antiescolástico. E tinha como intenção substituir o Livro Divino, a Bíblia, por um livro humano, a Enciclopédia ou o Dicionário. Nêle se supunha que todos os conhecimentos podiam caber e todos reduzidos a itens, a palavras, a conceitos, facilmente analisados pela razão humana. Sendo assim, tornava-se a filosofia a atividade suprema do homem. A religião e a moral passavam a ser meros capítulos da filosofia, como esta a ser uma atividade, que se abria apenas para dois caminhos: o agnosticismo ou o materialismo. Ou a concessão de que há domínios trancados ao exercício da razão, como o da religião e da moral, em que dominava apenas o sentimento e a imaginação. Ou a afirmação categórica de que a razão é apenas a expressão suprema da matéria e os dois pólos esgotam a realidade: a realidade material fora de nós e a realidade racional em nós. Mundo exterior e mundo interior, no mesmo plano e aquêle conhecido por êste, mas por seu lado constituindo a sua base e a sua origem. Êsse filosofismo era uma diminuição da filosofia, sob aparência de a elevar. Pois a limitava ao mundo dos sentidos ou lhe impedia a entrada nos domínios que ultrapassam as possibilidades da razão natural. A filosofia passava a ser religião e moral. E dava entrada ao surto mais exultante do arbítrio e do cepticismo. A vida interior, dominada inteiramente pela razão ou pelo sentimento, passava a oscilar entre a rigidez do racionalismo, que teve no tempo a sua expressão máxima em Voltaire, e a placidez do sentimentalismo, cuja máxima expressão Rousseau. A vida interior do filosofismo, como a vida interior do moralismo,

Page 19: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

representavam uma diminuição da vida interior compreendida dentro de uma hierarquia total de valores. Assim como a primazia da moral sôbre a religião trazia a primeira pedra ao novo edifício da natureza humana baseado na relação de homem para homem e não do homem para Deus – a primazia da filosofia sôbre a moral e sôbre a religião fazia oscilar tôda estrutura da vida interior, entregando-a aos caprichos da razão e do coração. Desaparecia, aos poucos, a medida intrínseca dessa vida interior, cujas raízes repousam, em última análise, não em nós, mas na natureza das coisas, e portanto, afinal, em Deus. Uma vida interior, sob o domínio do racionalismo voltaireano ou do sentimentalismo de Rosseau, era uma vida interior separada do mundo exterior, separada das raízes comuns dos valores, reduzida ao puro capricho individual. Não foi à-tôa que o romantismo sucedeu ao racionalismo e ao sentimentalismo do século XVIII e que a vida interior se desmandou – por vêzes magnificamente expressa, mas nem por isso menos precária – na extra-limitação de todos os valores, na extrapolação de todos os limites. E como a hipertrofia é, em tudo, a precursora da atrofia, e vice-versa, a decadência da vida interior se seguiu normalmente à sua super-estimação pelo racionalismo e pelo sentimentalismo. O filosofismo não foi mais feliz que o moralismo na verdadeira configuração da vida interior do homem moderno.

Page 20: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

C a p . 4 . º

POLITICISMO Ao moralismo, que pretendia superar a religião pela moral; ao filosofismo, que pretendia superar a religião e a moral pela filosofia; vinha agora suceder o politicismo, que pretendia superar religião, a moral e a filosofia, pela Política, pela organização social, pelo Estado. O século XIX ia ser o grande século teórico do Estado. As instituições políticas passaram a desempenhar as funções que as insituições religiosas representavam outrora. O Estado substituiu-se à Igreja. E a política vinha reivindicar a sua primazia sôbre a teologia, a ética ou a filosofia. Tôdas essas atividades passavam, ainda de modo tímido e indireto, a ser função das instituições sociais. Augusto Comte já diz que o homem é uma abstração e o que existe realmente é a humanidade. Cria a sociologia, ou pelo menos dá-lhe um nome, para acentuar nitidamente que o coletivo deve primar sôbre o individual e o homem é apenas produto da sociedade, como vai, ao longo do século, sustentar todo o movimento socialista, não só como ação revolucionária, mas ainda como filosofia da vida. O social passa a dominar o individual. O socialismo entesta com o individualismo. O realismo aniquila o sentimentalismo. O naturalismo sucede ao romantismo. E os grandes impérios modenos começam a luta pelo domínio do mundo. Foi então que se formou o novo império germânico, o segundo Reich, de que o terceiro, de Hitler, pretendia ser um simples herdeiro, como o quarto se está formando no seio dessa Europa Central, hoje de novo ameaçando germanizar a Europa, com o apoio dos Estados Unidos… Foi Hegel, no limiar do século XIX, que operou essa transmutação de valores, que iria afetar de modo

Page 21: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

desastroso a vida interior do homem moderno. Foi Hegel que tentou fundir todos os valores anteriores, numa espécie de incêndio universal, para tudo concentrar numa entidade nova – a idéia, que não era a reprodução das idéias platônicas, ou das idéias criadoras, de Deus, do tomismo, nem muito menos a expressão das ideologias, racionalistas ou sentimentalistas, do século XVIII, mas era uma nova expressão do panteísmo e a volta àquela obsessão do elemento único, que na aurora da filosofia grega tinha preocupado os filósofos desde Tales de

Mileto: o ar, a água, a inteligência, etc. A idéia era o novo “Único”, para Hegel, como o Indivíduo, em contraposição, ia ser o novo “Único”, de Stirner. E assim, entre o anarquismo e o institucionalismo, ia oscilar todo o século XIX, mas com predomínio absoluto do segundo, contra o qual o primeiro tentou em vão, pelo terrorismo intermitente, lançar as suas bombas, reais ou imaginárias… Mas foi o politicismo que dominou o século. Foi a formação dos impérios, o francês, o alemão, o russo, o inglês. Foi a luta externa dos imperialismos. Foi o surto das “internacionais”, a primeira e a segunda. Foi a eclosão do comunismo moderno. Foi a fundação da sociologia, como ciência. Foi o aparecimento dos grandes sistemas sociológicos, positivistas, socialistas ou evolucionistas, que mesmo quando concluindo pelo primado do indivíduo em face do Estado, faziam-no subordinando o homem ao determinismo ou ao mecanicismo, que eram novas formas de esmagar o homem pela natureza física ou pelas instituições políticas. E Hegel concluía a sua imensa síntese pela apologia do Estado Prussiano, Nietzsche concluía a sua anti-síntese pelo desafio contra o Estado, “o mais inumano dos monstros frios”, mas chegando a um novo culto do titanismo renascentista, pelo mito do super-homem, do Prometeu moderno.

Page 22: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

Em tudo isso era evidente o sacrifício da vida interior. Tanto no hegelianismo, como no anarquismo ou no nietzscheanismo, o homem saiu diminuído e sua vida interior aniquilada. Hegel a subordinava ao Estado, e os anti-hegelianos ao Indivíduo, um indivíduo tão anti-humano como êsse Estado despersonalizado de Hegel. O politicismo e o antipoliticismo davam-se as mãos para aniquilar a verdadeira vida interior. O dinamismo de Hegel ou de Nietzsche, de Augusto Comte ou de Spencer, dos politicistas ou dos antipoliticistas, esmagava a vida interior. Fazia do homem um simples joguête: ou do Estado, ou da Natureza, ou do Sistema, ou so Super-Homem. E, com isso, a luz interior se apagava ao sôpro violento de qualquer dêsses vendavais. Nenhum dêsses novos valores podia respeitar a delicadeza do silêncio e a doçura da solidão, a substância do indizível, a força da fragilidade. O que traziam, como remédio ao homem desamparado, era, de um lado, o seu enquadramento em instituições onipotentes como o Estado, ou em limites intransponíveis como a Sociedade; de outro, o neo-gigantismo do super-homem nietzscheano ou o individualismo da industrialização spenceriana. Para qualquer lado que se voltasse o politicismo, por si ou por suas antíteses, asfixiava a vida interior e projetava o homem no dinamismo da mais inexorável exteriorização.

Page 23: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

C a p . 5 . º

ECONOMISMO

Veio enfim o século XX. “Enfin Malherbe vint”. E com êle o fruto de tôdas essas decomposições anteriores. O moralismo tinha usurpado a primazia da religião. O filosofismo pretendeu substituir-se à religião e à moral. O politicismo fêz da religião, da moral e da filosofia, meras consequências das instituições sociais e nelas do mais perfeito instrumento de unificar a sociedade: o Estado soberano e onipotente. Êsse conjunto de idéias vinha produzir no século XX uma restrição ainda maior no quadro da hierarquia dos valores. Já agora não era a Política, que pretendia absorver a Religião e a Moral, era a Economia, que por sua vez absorvia a política. E a absorvia também, como o fizera o politicismo no século anterior, sob duas modalidades iguais e contrárias: o comunismo e o capitalismo. Ambos vinham do século XIX, como ambos vinham do reconhecimento da primazia dos valores políticos sôbre os valores filosóficos, morais ou religiosos. Ambos se apoiavam sôbre uma base comum: a Técnica. Ambos recomendavam um remédio comum para a solução dos males do mundo: a Produtividade. Ambos faziam, a seu modo, a apologia da Máquina. Ambos subordinavam, ou explícita ou implicitamente, os valores religiosos, morais e filosóficos, aos valores econômicos. Comunismo e capitalismo empolgaram o século XX. A luta dos grandes titãs políticos do século, a Rússia e os Estados Unidos, é apresentada, por uns e por outros, ora de modo simplório, como na Rússia, ora de modo elaborado, como nos Estados Unidos, como a luta de dois sistemas econômicos antagônicos, o que se baseia no primado da iniciativa

Page 24: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

individual sôbre a coletiva (capitalismo) e o que se baseia no primado da coletividade sôbre o indivíduo (comunismo). Mas são tantos os traços comuns entre ambos, inclusive o fanatismo anti-capitalista de uns e anti-comunista dos outros, como conseqüência natural do neo-inquisitorialismo, que podemos ver, nessa luta de irmãos siameses, as bases comuns que possui. Essas bases não são suficientes, sem dúvida, para nos levar ao neutralismo dos braços cruzados. Mas também não nos devem iludir no reconhecimento dos males comuns que afligem os dois campos antagônicos. E êsse mal comum é aquêle que há 20 anos procurei analisar numa tese de concurso, Esbôço de introdução à economia moderna, em que sustentava que a primazia do economismo sôbre a sacralidade era o sentido dessa economia moderna, tanto capitalista como socialista, que não se apresentava a nós como uma opção, mas como um dever de superação, por aquilo que Chesterton chamou de “distributismo” e costumamos hoje chamar de humanismo econômico. O economismo veio operar, no século XX, o mesmo desequilíbrio de valores, que o moralismo, o filosofismo e o politicismo exerceram nos séculos anteriores. O homem que tentava superar a Deus, como a sociedade que tentava superar o homem, eram agora envolvidos na mesma onda que tudo reduz ao primado da máquina e da sua utilização pela técnica. O tecnicalismo é tão anti-humanista como qualquer das formas anteriores de desumanização. E a nova escravidão dos tempos de hoje vem pôr em perigo de morte, mais uma vez, a liberdade. Essa liberdade, que o liberalismo tinha deformado no século XIX, que o libertinismo já havia corrompido no século XVII e que no século XX é absorvida pelo totalitarismo, sob tôdas as suas formas. O economismo é, pois, a expressão mais atual do totalitarismo. E o totalitarismo, a negação completa da vida interior, como se vê naquele fenômeno

Page 25: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

que David Rousset, por experiência própria e por meditação apropriada, chamou de “concentracionismo”. O campo de concentração, como as torturas moderníssimas das injeções que fazem os condenados falar e convertem os inocentes em culpados por confissões falsificadas – representam o que há de mais requintado no processo de supressão da vida interior. O indivíduo se torna um autômato. O homem reduzido a coisa. O mundo interior é totalmente aniquilado. Os direitos, como os deveres, se anulam. A vida profunda se torna equivalente à vida animal. O homem se torna realmente um simples instrumento de uma coletividade, que, por sua vez, desconhece qualquer espécie de estabilidade. O mundo interior, a vida interior não são sequer pensáveis nessa nova espécie de escravos de um automatismo impessoal e genérico. Eis aí como atuam as autênticas alienações. Não as que Marx elaborou, mas as que a lógica dos erros preparou para o nosso tempo. A restauração dos direitos do mundo interior é, portanto, uma das peças fundamentais da recuperação do tempo perdido em que nossa geração se vem empenhando, sob pena de desaparecer também no turbilhão nivelador da nova escravidão pessoal e coletiva.

Page 26: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

C a p . 6 . º

O HÓSPEDE

A vida interior depende de três condições preliminares: uma correta concepção de Deus; a harmonia psicológica e as circunstâncias do meio. Uma reta concepção da divindade é a condição fundamental de uma vida interior, rica e fecunda. Pois o que faz a fôrça da vida interior não é o isolamento. É o encontro de Deus em nós. Somos apenas a casa do Hóspede. O isolamento, como tal, poderá ser apenas mau-humor, desespêro ou misantropia. E nada de mais alongado dessas formas de negação da vida do que a vida interior. Esta, ao contrário, é uma intensificação da vida. Para ter vida interior é preciso, antes e acima de tudo, ter vida, crer na vida e viver a vida do modo mais intenso possível. Ora, só pode preencher essas três exigências ou mesmo qualquer delas quem crê em Deus e encontra a Deuas não apenas à distância ou de modo abstrato, mas dentro de si mesmo. O ateísmo pode provocar uma intensificação da vida exterior, mas jamais um aumento da vida interior. Para quem não crê em Deus, só há vida no movimento, na agitação, no mundo das ações e dos fatos. O ateu encontra em si o vazio. Pois se vê, naturalmente, como uma conseqüência e um motor. Mas jamais como a habitação da própria vida. Crer em Deus é portanto a condição essencial da vida interior. E ter de Deus uma noção que permita essa intimidade com o mistério, êsse diálogo interior, que não anula a Deus em nós, nem nos aniquila em Deus, é a exigência imediata. E por isso é que duas concepções correntes da Divindade, o deísmo e o panteísmo, são também tão contrárias ao mundo interior como o ateísmo.

Page 27: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

O deísmo coloca a Deus como uma categoria abstrata ou então a uma distância tal que o isola do mundo, tanto exterior como interior. Para o deísmo Deus é uma “categoria do ideal” , como dizia Renan, ou o “arquiteto do universo”, como dizia Voltaire, ou um Allah inacessível e sem comunicação com o mundo, como quer o fatalismo muçulmano. Essa concepção abstracionista de Deus, como uma peça na geometria do universo, aparta Deus de tal maneira do homem que não há meio de o encontrarmos, quando nos fechamos em nós mesmos. O mesmo se dá com o fatalismo maometano, para quem a linha da Divindade é como que paralela à linha da Humanidade, sem que entre elas existam quaisquer coordenadas. Por mais puro que seja o moteísmo, desde que separa Deus do homem, não permite que a vida divina se insira na vida humana de modo a alimentar o mistério e a abundância da vida interior. O mesmo se dá com a concepção oposta, com o panteísmo. Se dissolvemos Deus no universo, o Creiador nas criaturas, se apenas vemos Deus em tôda parte, encarnado na criação, é como se o tivéssemos solitário e separado no céu geométrico ou fatalista. Os dois contrários se encontram. No panteísmo Deus se perde no universo e não podemos encontrá-lo em nós, como se Êle se tivesse desinteressado da sua própria obra, por culpa das traições do homem. Para que nossa vida interior represente a vida de Deus em nós e o encontro com Êle no fundo de nós mesmos é preciso que se resguarde simultâneamente a distinção entre Deus e o mundo, contra o panteísmo e a união de Deus com o mundo, pelas idéias criadoras, pelos sacramentos e pela graça constantemente animando a natureza contra o deísmo. Só assim podemos ter a Deus em nós, sem que seja uma ilusão ou uma palavra vã. Só assim podemos encontrar, dentro de nós, o próprio criador

Page 28: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

da vida. E por isso mesmo é que não bastam as virtudes morais para que tenhamos uma vida interior intensa. É mister que as virtudes teologais, a Fé, a Esperança e o Amor, transfiguradas pelos dons do Espírito Santo, venham permitir que encontremos, no fundo de nossas almas, a presença divina. E essa presença é que faz a riqueza da vida interior. É porque há em nós mais do que nós mesmos, que o mundo interior tem um sentido tão grande. É porque Deus pode habitar em nós e pela vida interior podemos mais de perto conviver com Êle, que ir a Deus não é sair de nós e sim, pelo contrário, entrar em nós. A vida religiosa só se torna exterior como uma conseqüência e não como uma causa. Os dois modos de manifestação exterior dessa vida, a oração e o apostolado, só se justificam, quando alicerçados na vida interior. Pela oração é que nos unimos profundamente a Deus. E a oração coletiva, a oração em união com todos os fiéis, a oração do nosso eu em união com a Igreja, Corpo Místico de Cristo, só tem valor quando precedida e acompanhada, simultâneamente, pela oração interior, pela intimidade com Deus no fundo de nossas almas. De outra forma se opera apenas uma mecanização, uma ritualização da prece, que não possui valor espiritual nenhum. O mesmo ocorre com o apostolado. Só há fôrça de irradiação e de contaminação no apostolado, como extensão do Reino de Deus, a que cada cristão está moralmente obrigado, quando essa irradiação parte de um foco ardente que não pode deixar de expandir-se. E, portanto, de uma vida interior que extravasa naturalmente e por isso mesmo de modo mais fecundo para a extensão da vida sobrenatural em nós, que é Deus em nosso mundo interior. Uma falsa concepção da Divindade é, por conseguinte, um elemento de enfraquecimento, corrupção e aniquilamento de nossa vida interior. Uma verdadeira concepção de Deus, ao contrário, permite que, dentro de

Page 29: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

nós, encontremos a Fonte de tôda a vida, a própria Vida em sua cratera ardente e luminosa. Não há pois, vida interior autêntica sem uma profunda vida religiosa. Deus em nós é a condição primeira e maior dessa reverência que devemos ter para com a nossa vida íntima, de modo a expurgá-la de todos os elementos de desagregação e mantê-la na limpidez e na limpeza com que nos preparamos sempre para receber um hóspede. E Deus é mais, muito mais do que um hóspede em nossa casa íntima. É o próprio dono da casa. E quanto mais nos tornarmos hóspedes do nosso Hóspede, tanto mais veremos crescer e florescer o nosso mundo interior.

Page 30: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

C a p . 7 . º

EQUILÍBRIO

Vimos que a primeira condição da vida interior é uma correta concepção de Deus. Outra condição é a que podemos chamar a harmonia psicológica ou a sã hierarquia de nossas faculdades. Há três momentos capitais de nosso contato com o mundo, tanto exterior como interior: a sensibilidade, a inteligência, a vontade. Pelo primeiro, recebemos do mundo exterior as impressões que representam como que a matéria-prima para a atividade criadora das nossas faculdades. Pela inteligência elaboramos essas formas primárias e tôscas da nossa sensibilidade, e desenvolvemos em nós as formas superiores com que iluminamos, tanto a ação inicial da sensibilidade como a operação final da vontade. Esta última, enfim, dirige as nossas ações para a sua finalidade conveniente, sob a direção orientadora do intelecto. Todo o nosso equilíbrio psicológico depende do funcionamento normal dessas três peças fundamentais de nossa natureza. O sadio funcionamento de nossa sensibilidade está intimamente ligado às condições do nosso corpo. “Não somos um piano tocado por um anjo”, nos diz Maritain, advertindo do perigo de uma cisão cartesiana ou racionalista do corpo e do espírito. Segundo a mais velha tradição hilemórfica, somos um composto vivo, em que o corpo está tão intimamente ligado à alma que a separação entre os dois elementos, se não representa a extinção do espírito, é, pelo menos, uma redução tão profunda de sua natureza, que o dogma da ressureição da carne vem ajustar-se, como uma luva, a essa redução substancial da natureza do espírito separado de seu instrumento natural, o corpo. Do funcionamento normal

Page 31: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

dêsse último depende, pois, de modo direto, o normal funcionamento daquele. Santo Tomás chega a dizer que a perfeição de um depende do outro. Quanto mais perfeito o corpo, mais perfeita, em tese, a alma. Contra a posição platônica de que a alma e o corpo estão ligados por uma união meramente acidental, Santo Tomás sempre defendeu, contra a maioria dos pensadores de seu tempo, a união substancial da alma e do corpo, um naturalmente inclinado ao outro. Uma sã psicologia depende, pois, de uma sã biologia. A vida interior, portanto, não representa uma antítese à vida física. Representa, apenas, a colocação da sensibilidade física em seu lugar inicial mas essencial, para o equilíbrio geral das funções. O mesmo sucede com os dois outros elos da corrente psíquica que o homem representa. Aliás o próprio movimento dos sentidos internos, o senso comum, a imaginação, a memória, a estimativa, está diretamente ligado à pureza dos nossos sentidos externos, que são como que a janela aberta para que o mundo exterior penetre em nós e ponha em movimento as potencialidades que ficarão estáticas sem essa excitação exterior. Quando passamos dos sentidos, externos e internos, ao intelecto, tomamos pé no que representa o centro vivo e irradiante da própria natureza humana. A atividade intelectual do homem é apreensão de formas e julgamento. Apreendemos a verdade pela inteligência e caminhamos de uma idéia a outra pela razão. A razão, nos ensina Santo Tomás, é a imperfeição da inteligência. Esta, à custa do caminho discursivo das abstrações racionais, pode chegar à intuição das coisas mais recônditas e sutis, aproximando a racionalidade da natureza humana, da intuitividade da natureza angélica, nesse caminho da ignorância dos sêres sem vida ao conhecimento puro que só existe em Deus. Nessa ascensão é que a inteligência opera, no homem, a passagem da matéria morta ao mundo das formas

Page 32: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

imateriais, ao mundo angélico e daí ao mundo sobrenatural, à própria vida divina. O exercício normal da inteligência, no homem, é, portanto, a condição sine qua non para aquela correta intuição de Deus, sem a qual não existe a possibilidade de uma sadia vida interior. Assim designa Santo Tomás duas grandes etapas da nossa vida psicológica: “É natural ao homem que pelo sensível chegue ao inteligível, já que o conhecimento tem a sua fonte nos sentidos” (I, I, a. 9). E daí “da experiência sensível, interpretada pela inteligência, o espírito se deixa conduzir à intelecção mais elevada das coisas divinas” (10 Ver. a. 6, ad 2). Finalmente, à posição passiva da nossa sensibilidade que recebe o universo, à posição ativa da nossa inteligência que conhece a universalidade das coisas, da pura potência ao Ato puro, corresponde a irradiação da sensibilidade e da inteligência por meio da vontade, que é a nossa tendência à realização dos nossos fins, à plena operação da nossa natureza. De modo que, assim como a inteligência é a fôrça que nos leva naturalmente à verdade, ao que é, -- a vontade é a fôrça que, iluminada pela inteligência, nos leva naturalmente ao bem, ao que deve ser a nossa perfeita realização, à satisfação suprema dos nossos desejos. Daí uma hierarquia de bens particulares que não satisfazem senão de modo passageiro o nosso ser, até a apreensão suprema do Bem universal, do Bem total, do Bem em si, único, como nos diz Santo Agostinho, que pode satisfazer plenamente e pacificar a nossa insaciável sêde de absoluto. E o nosso coração não tem sossêgo enquanto o não alcança. Ou então o perde, muitas vêzes, na loucura das posses parciais e na angústia do inacabado. Só quando essa tríplice condição do nosso equilíbrio psicológico está preenchida, -- a sensibilidade, a inteligência, a vontade, -- só quando êsses três elementos

Page 33: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

indissociáveis da nossa natureza estão bem distribuídos, bem colocados e em perfeito funcionamento, é que podemos possuir uma vida interior abundante e fecunda.

Page 34: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

C a p . 8 . º

O MEIO

Examinamos as duas condições essenciais para a existência de uma vida interior sadia. Há uma terceira, entretanto, que completa as outras duas: as condições do meio. O ser humano, mesmo em sua vida psicológica, não pode ser abstraído dos outros sêres humanos e das condições físicas que o circundam, por duas razões: uma tirada da observação da própria natureza humana e a outra das condições de funcionamento da sua vida psicológica. É dos sentidos que tiramos os materiais com que trabalha a inteligência e com que opera a vontade, não só para conhecer o mundo exterior, mas ainda para descer às profundezas do mundo interior e aí alcançar a Verdade última e suprema, que não é uma abstração, mas uma realidade, uma pessoa, a mais perfeita das realidades e das pessoas, o próprio Deus, nosso Senhor e nosso Pai. Ora, os sentidos buscam êsses elementos no meio em que vivemos, meio físico e meio humano. Êsse meio, portanto, é uma condição preliminar para o funcionamento do nosso eu. É impossível abstrair do meio, ao considerar o homem. Como é impossível abstrair dos sentidos, isto é, do contato do homem com o meio, para considerar a vida intelectual e a volição, elementos capitais da nossa vida interior. O meio, portanto, as condições que cercam o nosso corpo e o nosso espírito, o alheio, o outro, o não-eu, são notas indispensáveis para o perfeito movimento interior do nosso eu. Outra razão é a própria natureza social do ser humano. A observação nos revela que o homem vive sempre em contato com os outros homens e, quando perde êsse contato, algo de estranho se passa com êle: ou

Page 35: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

melhora muito ou piora muito. Piora, em regra. Melhora, por exceção. Mas, normalmente, perde. Já que, naturalmente, o homem é necessário ao homem para que a vida humana se desenvolva normalmente. O contato com outros homens é, portanto, uma condição de humanidade sadia, de aperfeiçoamento natural de uma natureza, que recebemos não formada e perfeita, mas apenas com uma soma de potencialidades que nos cabe atualizar. A sociedade é, portanto, o elemento natural ao homem, como a água é o elemento natural aos peixes e o ar aos pássaros. Os animais vivem em simbiose com os elementos inferiores, por possuírem uma natureza infinitamente mais simples que o ser humano. Ao passo que o homem, que é uma natureza racional, só pode viver bem em contato com outras naturezas racionais. E a sociedade é o elemento dessa convivência. Por êsses motivos, pelo menos, não pode haver vida interior sem haver vida social, já que o meio mais à altura das exigências do homem todo é o meio social. Só da sociedade, pois, é que nasce a possibilidade de uma verdadeira vida interior. Isto, porém, é apenas uma primeira etapa. Já vimos que a vida social é uma condição natural ao homem e ao seu aperfeiçoamento, mas também pode ser uma causa de sua diminuição. E o será sempre que, em vez de permanecer um meio, se converta em um fim. A sociedade é o meio natural do homem. Mas, quando de meio se transforma em fim, em vez de servir ao aperfeiçoamento da natureza humana, tolhe o seu desenvolvimento e concorre até para a sua degradação. O homem que vive para a sociedade, isto é, que faz da vida social o seu fim último, é um homem diminuído. E é particularmente um homem incapaz de viver interiormente. A vida interior supõe duas coisas a êsse respeito: supõe a vida social, como preliminar, e supõe, depois, a retirada da vida social.

Page 36: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

A vida social se sobrepõe à vida interior ou impede a sua eclosão, quando não se dá êsse duplo movimento. Não havendo vida social preliminar, o homem permanece um ser bronco, incompleto, pré-humano se pode dizer. E não pode haver vida interior sem haver, previamente, uma vida humana normal e completa. A vida interior não é um mutilação, é uma plenitude. E como plenitude supõe um ser humano que alcançou o melhor e se possível o maior desenvolvimento de tôdas as suas faculdades. Não é um refúgio dos mutilados ou dos impotentes. É uma eclosão total dos que receberam da vida exterior, da vida psicológica e da vida social, tudo o que estas lhe podiam dar. É um aperfeiçoamento, não é uma evasão ou uma mutilação. De modo que a vida social – onde, pelo conhecimento e pela educação, pelo hábito de viver, o homem chega à sua plena humanidade – é uma condição sine qua non para a vida interior. Mas… há um momento em que o próprio dinamismo da vida social se pode voltar contra a vida pessoal. E a vida interior não é em si, vida social (nem anti-social, naturalmente) mas vida pessoal. Se a vida social se torna exagerada, se transborda de suas margens naturais, se se transforma, de instrumento de nosso aperfeiçoamento, em tirania dos nossos hábitos, então a vida social absorve o homem, socializa-o completamente, torna-o um escravo de seus encantos ou de sua fôrça e com isso tolhe tôda a vida interior. É o que chamamos o mundanismo, sob tôdas as suas formas. O mundanismo é o grande inimigo da vida interior, justamente porque subverte a hierarquia natural dos valores e converte o mundo exterior em medida do mundo interior. Quando a verdade é o oposto: o mundo exterior existe para o mundo interior. E o meio, físico ou social, só é uma condição fecunda para a nossa vida interior, quando se respeita a ordem natural dos valores. Quando o meio permanece meio. A sociedade, então, estimula em vez de

Page 37: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

tolher a expansão livre da vida interior. E esta se realiza então através dos três grandes S S S: o silêncio, a solidão e a santidade.

Page 38: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

C a p . 9 . º

SILÊNCIO – I

O primeiro dos três S S S, fundamentos do mundo interior, é o Silêncio.

Há dois silêncios que se completam, mas que não exigem reciprocidade: o silêncio exterior e o silêncio íntimo. O primeiro, como o nome indica, é a ausência de rumor físico. Vivemos, mormente em nossos dias e na vida das grandes cidades, cercados de barulho. Há mesmo, em cidades como o Rio, um desperdício de sons, que toca as raias da verdadeira psicose. Nas cidades mais movimentadas do mundo, como Nova York, os automóveis transitam como se as buzinas não existissem. Na capital do México, barulhenta como o Rio, encontrei uma campanha sistemática contra os abusos dos clacsons. E assim no Canadá como em França, em Portugal como na Itália. Por tôda a parte se começa a reagir contra a tirania das buzinas. Só no Rio os motoristas continuam alucinados pelo som... Mas, sem dúvida o mal é muito mais grave e extenso. É um mal universal dos nossos tempos, agravado ao extremo pelos progressos mais modernos. Os alto-falantes nas ruas, os rádios nas casas, o cinema falado, o rumor das businas para tornar as cidades de hoje verdadeiros antros de ensurdecer. E o silêncio exterior, no entanto, é uma condição preliminar para o equilíbrio da vida. O rumor contínuo das cidades modernas, o martelar das fábricas ou dos estaleiros durante oito horas por dia, quando não durante a noite (como uma fábrica de pregos bem perto de minha casa, que em tempo trabalhou de sol a sol e de sombra a sombra e me fêz fazer a experiência in anima nobili de quanto o silêncio físico é indispensável à

Page 39: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

vida humana), a onda de som estridente, sem sentido ou harmonia, que invade continuamente o nosso ser, é uma destruição lenta, mas implacável, do nosso domínio sôbre nós mesmos. Até a música em excesso é um mal, como observou William James, em seus estudos psicológicos. Vejo hoje, com o rádio, muita gente que inùltilmente, por simples prazer, trabalha ou repousa em casa, ao som do mais contínuo estridular de sambas, anúncios comerciais e notícias articuladas por locutores, tanto mais perniciosos, para a vida interior, quanto mais aveludada e redonda a sua voz desencarnada de oráculos... Tudo isso é uma verdadeira insurreição contra o espírito. Nossa vida mental tôda ela se forma por sensações que recebemos do mundo ambiente. Se vivemos com os ouvidos continuamente solicitados por essa polifonia enlouquecida, só podemos criar, dentro de nós, a confusão, a desordem e o entorpecimento. A mais diabólica consequência do barulho é a passividade do espírito. Solicitado, a cada momento, pelo ruído, de fora, o nosso espírito se vai acomodando a não sentir, a não reagir, a não pensar. Ficamos em um estado de pré-hipnotismo que pode ser o prelúdio da mais insidiosa debilidade mental. O silêncio exterior é uma condição essencial para a atividade da inteligência e da vontade. A própria sensibilidade se anula por uma contínua solicitação do som. E o homem se torna um autômato, quando o ouvido trabalha demais. O silêncio exterior é a primeira condição para a vida exterior. Mas não é a última. Muito mais importante é o silêncio interior. Podemos obtê-lo em parte, mesmo cercados pelo rumor do mundo, embora não por muito tempo. Ao menos à noite é preciso que o homem se cerque de uma auréola de silêncio para que se sinta realmente viver.

Page 40: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

O silêncio interior se abebera em fontes humildes ou transcendentes. Abebera-se na noite, a grande e cotidiana companheira da nossa renovação cotidiana. Abebera-se na solidão. Abebera-se na leitura, como na meditação e , acima de tudo, na graça. O silêncio interior é o que nos leva a deixar viver o espírito em nós. Ao contrário do fôgo, o espírito se alimenta do vazio. Quando enchemos a nossa vida de sensações ou de sons, continuamente absorvidos pelo nosso contato exagerado com o mundo de fora, a vida do espírito começa a decair. Ficamos nesse estado de passividade que caracteriza os automatismos. Deixamo-nos viver. Não vivemos. É preciso fazer o silêncio em nós, para que o espírito comece a viver. É como se a luz espiritual se alimentasse do vácuo. À medida que nos retiramos ao centro de nós mesmos, à medida que cresce êsse silêncio profundo da alma, vão-se delineando as formas do pensamento, o passado ressurge mais claro do esquecimento, a atenção se apura, cresce a agudeza dos juízos, os sentidos interiores ganham forma à medida que se tornam mais discretos os sentidos exteriores, a luz da inteligência se torna mais viva, o calor do espírito se torna mais ardente e a vontade mais firme. Começamos então a sentir melhor o nosso eu, o que fica tantas vêzes escondido em nós, por falta de silêncio, emergir da sombra e cantar então o cântico da alegria que o encontro com as grandes verdades nos leva a entoar. O silêncio então se torna Canto. O silêncio desabrocha em palavras que só anjos escutam, mas que os postos de silêncio das outras almas interiores e ardentes escutam com muito mais profundeza do que os postos de escuta das antenas loquazes das almas extrovertidas. Pois, se a plenitude da palavra é o silêncio, como a da emoção, a plenitude do silêncio é a palavra humana que

Page 41: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

acaba entendendo o mistério do Verbo e dialogando com Deus, como o fazia o Cura d'Ars nas madrugadas da sua humilde capela.

Page 42: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

C a p . 1 0 . º

SILÊNCIO -- II É no silêncio que ouvimos a voz das coisas, como ouvimos as vozes profundas do nosso próprio eu e como chegamos a ouvir a voz de Deus. Ouvimos a voz das coisas e dos animais, ouvimos o sentido que têm as árvores e os rios, o mar e os passarinhos. O silêncio abre os nossos poros sensíveis e a nossa razão e nos torna passíveis, portanto, de penetrar o segrêdo das coisas, pois as coisas guardam consigo o segrêdo de suas origens e a marca invisível que nelas deixamos em nossa passagem. Guardam consigo, na sua imobilidade ou na sua irracionalidade instintiva, muito da Fonte de que prôvem. Deus fala pelas coisas quando nos cercamos de silêncio. Por que razão os "coeli errarant gloriam Dei" (Ps. 18,2), senão porque as coisas guardam consigo, mais intatos do que nós homens, os sinais dos dedos divinos? Porque se refugiam no silêncio dos desertos e das montanhas, dos claustros ou de si próprios, aquêles que querem ouvir a voz de Deus? É porque o silêncio nos torna sensíveis ao segrêdo das coisas. Porque o silêncio nos permite ouvir a voz de deus nas coisas, o sinal do Criador nas suas criaturas. Sem o silêncio, passamos por elas distraídos, como se fôssem realmente uma matéria bruta, inanimada, sem sentido, que nada tem a nos contar. Com o silêncio, ao contrário, as coisas começam a falar, começam a contar-nos histórias maravilhosas, que não estão apenas em nossa imaginação, que não lhes são apenas comunicadas por nós mesmos mas que estão contidas nelas, trancadas em sua imobilidade de pedra, em sua versatilidade de águas, em sua mudez de pássaros, precisamente porque são criaturas de Deus. Foi São Francisco de Assis, mais do que

Page 43: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

qualquer outro poeta do mundo, que soube falar às coisas e aos animais e melhor ouvir as suas vozes! E como o alcançou? Fazendo o silêncio em si e vivendo no silêncio interior. Foi quando deixou a cidade, o tumulto dos prazeres e dos negócios, que começou a dialogar com todos os sêres. E com isso enriquecer para sempre, não só a sua vida ou a daqueles que despiram as vestes do mundo, em todos os séculos para o seguirem, mas a todos os que amam o silêncio e nêle encontram a chave de tôdas as vozes. Porque as coisas, se guardam o sinal do seu Criador, em seu silêncio, guardam também a marca das criaturas que por elas passaram. Os acontecimentos, humildes ou convencionais, históricos ou sem história, deixam nas coisas o sinal da sua passagem. E é da contemplação silenciosa que êsses sinais começam a vir à tona e a nos ensinar a lição do seu passado. O silêncio em que contemplamos as coisas nos traz a voz de Deus e a voz dos homens, do tempo e da eternidade. Como nos traz também o segredo das próprias almas, o mistério do Outro. Só em silêncio podemos chegar à compreensão. É na medida em que fazemos em nós a depuração pelo silêncio, que podemos vencer um pouco das barreiras que nos separam uns dos outros. O Amor nasce do silêncio e só êle o leva de novo à plenitude. Quando Katerine Mansfield morreu, o seu viúvo, o grande crítico Middleton Murry escreveu uma página inesquecível em que fazia, entre outras coisas, essa reflexão tão verdadeira, que a plenitude do amor conjugal é o silêncio lado a lado, e a sintonização sem palavras, é a vivência muda, como a convivência dos anjos. O silêncio é que aproxima os homens que o ruído separa, como é também o caminho da nossa própria compreensão interior. É pelo silêncio que nos encontramos a nós mesmos. Quem não sabe silenciar não se encontra

Page 44: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

jamais. Há homens que vivem divorciados de si mesmos porque nunca fazem em si o silêncio. Não se conhecem porque não procuram ouvir a voz da sua consciência, do seu passado, da sua experiência, do seu mundo interior. Ignoram-se porque falam todo tempo, mesmo quando se calam. Pois o silêncio não é apenas a ausência de palavras ou de ruído, não é apenas uma omissão, uma supressão, uma ausência, um valor negativo, mas, ao contrário, um valor essencialmente positivo. É no silêncio que se constrói a nossa vida interior. É o silêncio que edifica o nosso mundo interior, de modo que a vida sem silêncio é uma vida mancada, como o silêncio sem vida é uma negação do silêncio, é um falso silêncio. Quanto mais temos de viver num mundo martelado pelo Ruído, mais precisamos fazer o silêncio em nós. Não apenas aquêle que nos esvazia para recolhermos a mensagem dos pássaros, das flores, das estrêlas e das cascatas, de tudo o que só fala quando se cala a alma humana, mas ainda aquêle que nos enche, que nos renova, que nos eleva, o silêncio que nos leva à descoberta de nós mesmos, ao amor do próximo, ao diálogo com Deus. Os poetas e os místicos, mais que todos, conhecem o valor do silêncio, porque só nêle podem encontrar o que procuram. Mas não há privilegiados do silêncio. São todos os homens, é cada um de nós, é a própria vida humana, para ser bem vivida, que tem sêde de silêncio, porque só nêle encontra o caminho para a paz e para a sabedoria, para perdoar, para esquecer e, acima de tudo, para amar. Quando procuramos, pois, o silêncio e a solidão e nêles encontramos o que nos nega o tumulto do mundo, é que a nossa alma precisa de silêncio, como o nosso corpo precisa de alimento. E não há vida interior fecunda sem que, em tôrno de nós se possível e sempre dentro de nós, o Silêncio fôr a raiz da Solidão e da Santidade.

Page 45: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

C a p . 1 1 . º

SOLIDÃO Há uma solidão inumana e infecunda. Há mesmo várias. A solidão forçada da prisão só muito raramente inspira um Sílvio Pélico ou, no extremo oposto, um Oscar Wilde. E só quando unida à santidade, dá ao mundo um João Batista ou um Paulo. Em regra, produz apenas amargor e revolta, quando não o servilismo. A solidão da loucura fecha o homem num universo sem o próximo. O outro deixa de existir. Ou então existe como inimigo, como perseguidor. O homem se fecha em seu próprio universo, voltado para dentro de si mesmo, num círculo vicioso sem saída, seja na imobilidade da catatonia, seja na projeção dolorosa da esquizofrenia, seja no mundo negro das depressões e das perseguições. A solidão da misantropia ainda é mais triste. A loucura pode levar à euforia e à megalomania, mas o pessimismo leva à negação. O homem se fecha então voluntariamente. Foge do mundo e dos demais. Vê em tudo o lado mau das coisas. Projeta sôbre a vida a sombra que lhe cobre a alma. Rejeita o rumor das cidades, mas não se alegra com a paz dos campos. O silêncio lhe pesa, como pesa a companhia. Em nada encontra o que louvar, a não ser em si mesmo. E mesmo assim se volta contra a sí próprio, pois quem se insula sistemàticamente dos homens acaba inimigo da sua própria humanidade. Só a solidão do fariseu, a mais inumana das solidões, torna o homem satisfeito de si mesmo... A solidão do desespêro é trágica, pois invade de surprêsa um coração desamparado e leva-o ao pecado sem remissão, a duvidar da própria Misericórdia Divina. É a solidão que leva ao suicídio. Apodera-se de uma alma, por

Page 46: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

vêzes, em plena felicidade, sobretudo quando as almas acreditam demais na felicidade trazida pelas coisas terrenas. E abate-as como um raio abate um cedro, na tempestade. É assim que o amor se transforma violentamente em crime. A vida, em um deserto sem sentido. É a solidão dos que não aprenderam a viver a sós. Há a solidão disfarçada das cidades, que arranca o homem de si mesmo para o entregar ao anonimato dos prazeres, dos rumores, da agitação, do "mundo quebrado" de que fala Gabriel Marcel. É a solidão da vida medíocre do campo, que endurece as almas, torna-as opacas e vegetativas, diminuindo no homem a capacidade de se renovar, mineralizando, pouco a pouco, a sua humanidade. São tôdas formas infecundas e inumanas da solidão, porque inadequadas à sua verdadeira natureza. O homem não foi feito para a solidão, mas a solidão existe para que o homem se encontre a si mesmo. E encontre em si Aquêle que explica o seu mistério. Quando o homem procura a solidão pela solidão ou esta lhe é imposta como uma penalidade ou como uma moléstia, passa ela então a ser uma diminuição e um absurdo, já que o homem é um animal naturalmente sociável. E só na companhia dos outros homens encontra o seu verdadeiro caminho. Mas, quando abusa dessa companhia, quando só sabe viver em sociedade, quando só encontra prazer na conversa, no divertimento, na agitação, no ruído, na atividade, quando não sabe gozar da companhia do silêncio e não sabe conversar consigo mesmo, então é o caso de abrir os olhos ao perigo dêsse desperdício, dêsse esvaziamento, dessa defecção, prelúdio certo do aniquilamento ou da diminuição da personalidade. Só na solidão encontramos o nosso verdadeiro eu. Só na solidão encontramos o verdadeiro sentido da vida. Só na solidão nos abeberamos na fonte da verdadeira renovação. A vida interior não existe sem o amor da

Page 47: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

solidão. A vida ativa não tem sentido se não se renova na solidão. A vida apostólica se deturpa quando não procura na solidão as riquezas que deve levar ao próximo. Todos os grandes Santos, como o Cristo, se refugiaram no deserto antes de pregarem a salvação. "O solitudo, sola beatitudo". O solitário encontra na solidão alguma coisa que está para além da solidão, pois esta, para ser fecunda e humana, tem de ser um meio e não uma finalidade. O verdadeiro solitário encontra na solidão a beatitude. Encontra a felicidade que não passa, porque não é dêste mundo. Encontra o sentido da vida, que só se explica quando não o procuramos apenas nos valores da vida efêmera. Podemos viver solitários em plena multidão, como podemos viver perdidos em plena solidão. podemos levar ao mundo a nossa solidão fecunda, como podemos trazer, para a solidão, todos os pecados do mundo. Pois não basta viver só. É preciso saber viver a sua solidão. Não basta ter consciência de que cada alma é um mundo fechado, impenetrável aos outros mundos fechados, o das almas que nos são mais próximas. É preciso não se deixar vencer pelo desespêro dessa solidão das almas. É preciso vencer êsse isolamento, transpor os muros que fecham as almas uma das outras, para que a convivência das solidões individuais possa levantar então, de modo surpreendente, o nível de uma comunidade doméstica, profissional e sobretudo religiosa. É quando sabemos amar a vida solitária que a vida social começa a se tornar fecunda. É quando sabemos fazer da solidão uma participação ativa nos sofrimentos e nas alegrias alheias que o nosso deserto se povoa e se explica então que aquêles homens que foram a primeira vez para o deserto, sem serem filhos do deserto como os nômades, vivam até hoje para edificação e elevação das almas de gerações sucessivas. É que a sua solidão não era uma fuga, mas uma ablução da alma para

Page 48: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

receber a visita de Deus. E essa solidão nós todos a podemos ter, como podemos levar conosco o silêncio para o rumor do mundo. Essa solidão assim vivida não é nunca uma ausência. É uma presença. É um encontro do homem consigo mesmo, como condição para o encontro do homem com Deus. Os grandes solitários são os verdadeiros mestres da sociabilidade, pois o amor do próximo se nutre dos frutos do deserto. E se o silêncio é a voz de Deus, a solidão é a Sua presença.

Page 49: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

C a p . 1 2 . º

SANTIDADE Os santos não falam da santidade. Vivem-na. Isso nos põe mais à vontade para falar dela. Há, realmente, certos têrmos que infundem mais do que respeito, veneração. Mais do que veneração, uma espécie de intimidação que pode tocar às raias do terror. A santidade é, certamente, um dêsses têrmos e um dêsses temas. São Francisco de Assis chegava a proibir a comemoração das virtudes heróicas dos santos. "Pratiquem-na", dizia êle a seus companheiros. E começava por si, demonstrando assim a própria essência da santidade que é ser um ato, uma vida em atos e não em palavras. E atos que ponham as potências humanas na união maior possível com o Ato em si, com o Ato puro que é Deus. Pois se a santidade, muito mais do que o silêncio e a solidão, é a condição fundamental da vida interior, é que vem de Deus e volta a Êle, sendo, ao mesmo tempo, uma causa, uma condição e um fim, a que podemos fugir ou ser indiferentes ou de que nos podemos aproximar em todos os graus, dos mais elementares aos mais sublimes. Por isso é a santidade, ao mesmo tempo, tão humana e tão sôbre-humana. Por isso a Igreja a pede a todos os fiéis, por mais que sintamos a nossa mediocridade, e no entanto eleva tão poucos à glória dos altares, que os Santos representam, mais do que os Heróis ou os Gênios, os faróis solitários que guiam a humanidade. Iluminam de tão alto, que nos habituamos a considerá-los como sêres de outra espécie, que vivem no passado, de que só temos notícia quando já se encontram em regiões inatingíveis, no espaço e no tempo, e assim nos desculpamos fàcilmente de não os imitar. Como imitar Elias, raptado em seu carro de fogo a

Page 50: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

regiões misteriosas, que os exegetas colocam entre o tempo e a eternidade? Como imitar São Paulo, levado ao terceiro céu e ouvindo palavras que a voz humana não pode reproduzir? Como imitar, no extremo oposto, um São Simão Estilita ou um São Benedito Lázaro, que se confundem de tal maneira com a imobilidade das coisas ou a petrificação da miséria, que os pássaros faziam ninho nos cabelos dos discípulos de São Patrício? E para não ir tão longe, um dia, ali no Palácio São Joaquim, D. Sebastião Leme recebeu a visita de Dom Orione, que voltava do Chile e da Argentina, depois de ter espalhado por lá a obra da Divina Providência, onde milhões de deserdados têm encontrado, no mundo, a única Herança que não se dissipa: o Amor e o Pão. Qual não foi o assombro do nosso Cardeal quando o humílimo religioso saca do bôlso da batina uma disciplina, ajoelha-se antes de falar e começa a flagelar-se, dizendo: "Eminência, eu não sou mais do que um pobre pecador !" Loucura, dirão fàcilmente os bem pensantes. E realmente a santidade, quando vence a tal ponto o respeito humano, toca as fímbrias daquela "loucura da Cruz", de que falava São Paulo e é a plenitude da sabedoria. Mas justamente por não ser unívoca a santidade, é que tem levado aos altares as extravagâncias de São Felipe Néri e a vida igual daquele Irmão jesuíta, de Majorca, que foi apenas porteiro do seu convento e viveu por meio século a santidade cotidiana e humilde da renúncia perfeita, dêsses santos sem nome cujo altar devia existir em tôdas as igrejas e que aliás comemoramos no dia da Comunhão dos Santos, a 1.° de novembro. Não é santidade a veleidade de ser santo. E sim a vontade expressa e sobretudo impressa. Um homem de letras, sem ser teólogo, Georges Duhamel, o demonstrou muito bem no tipo de Salavin, o homem que quis ser santo sem o ser. E alcançou apenas a caricatura da santidade. Porque ela é

Page 51: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

acima de tudo, uma eleição, uma vocação. E a vontade, que adere à Graça divina, não é a veleidade que pode apenas seguir a tentação da vaidade, como os falsos profetas. A santidade é, pois, uma causa, uma condição e um fim da vida interior. É uma causa porque vem de Deus e representa uma seleção a que todos são chamados -- pois não há privilegiados, que se isentem dessa mobilização para a guerra santa, senão fugindo a essa vocação universal -- mas a que fugimos a cada momento, pela nossa mediocridade e pela nossa fraqueza. Essa graça santificante é a causa da nossa vida interior. Sua origem, pois, transcende infinitamente ao nosso simples desejo. É um chamado a que devemos atender, e a que geralmente não atendemos ou atendemos mal. E por isso é tão frágil, geralmente, a nossa vida interior. E tão tumultuosa. Tão reduzida apenas àquelas trevas biológicas e psicológicas que Freud examinou com uma pinça, como os cirurgiões exploram as larvas de um tumor... A vida interior que vem de Deus é clara e simples como um dia de céu azul e sol de fora. Ou nítida e pura como essas noites estreladas, segundo os temperamentos solares ou noturnos. Pois a vida interior, como a santidade, é tão irredutível como a personalidade a um tipo único e inváriavel. É o próprio dominío da liberdade e da variedade. A santidade é também uma condição da vida interior, como o silêncio e a solidão. É a fôrça da renúncia, da mortificação, da humildade, do espírito de sacrifício que, se não é a essência da santidade, é a sua lição. Não é a renúncia à felicidade. É muito mais do que isso. É a alegria do sofrimento. É a riqueza do despojamento. É a vitória dos malogros. É a presença da Ausência. O fogo do batismo pela água. A vida da morte. "Ero mors tua, o mor" (1 Cor. 15, 55). Ó morte, eu serei a tua morte, disse o Santo por excelência, Cristo Senhor nosso. Êsse o

Page 52: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

paradoxo supremo da santidade, a conquista da plenitude pela renúncia, da vitória morrendo e não matando, da riqueza dando e não guardando, da vida pela morte. E é por isso que a santidade é um fim. Todos devemos procurá-la, humildemente, por mais que tenhamos consciência da nossa indignidade, da nossa insuficiência, da nossa pobreza espiritual. Todos devemos procurá-la na vida de cada dia, pois é mais difícil fazer a vontade de Deus nas coisas pequenas que nos grandes feitos. E o que Deus quer, dos homens, é apenas a santidade. Apenas... A vida interior é, pois, uma preparação para a santidade, como esta é uma condição daquela. Assim como a santidade, por sua vez, é uma preparação para a beatitude, para a visão de Deus na eternidade.

Page 53: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

C a p . 1 3 . º

CONSEQÜÊNCIAS Examinamos a natureza e as condições da vida interior. Vejamos agora algumas das suas conseqüências. Uma vida interior bem vivida aguça a sensibilidade, alarga a inteligência e fortalece a contade. Aguça a sensibilidade porque poupa os sentidos. A vida exterior é feita na base da hipertrofia e do exercício contínuo dos sentidos. A vida voltada para fora exige dêles uma atividade incessante, trazendo para o espírito a todo momento as impressões colhidas lá fora. Ora, o exercício exagerado de um órgão ou de uma faculdade produz o mesmo efeito que a sua inatividade: a atrofia. Os sentidos se embotam com a paralisia e com o excesso. A vida em exterioridade, abusando dos sentidos, provoca a sua petrificação. A vida interior, ao contrário, poupando os sentidos, conserva e aumenta a sua agudeza. O envelhecimento prematuro é sempre a conseqüência de um desperdício. A mocidade, uma contenção. A vida interior é, pois, uma condição de rejuvenescimento e de preservação e intensificação da nossa sensibilidade. E, portanto, serve a tôdas as vidas, inclusive à vida extrovertida. Quanto mais agudos os nossos sentidos, na percepção dos elementos que formam a base da nossa vida do espírito, mais ganha o nosso mundo oculto. Uma vida interior bem vivida alarga a inteligência. Alarga-a, não só porque as imagens com que trabalha chegam com mais abundância e mais reais, mas ainda porque se intensifica a faculdade de penetração do intelecto agente. A inteligência é uma luz. Quanto mais intenso fôr o foco, mais provável a possibilidade de penetração no âmago da realidade. Ora, é na vida profunda do nosso espírito que se forma a luz da inteligência.

Page 54: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

Sempre que vivemos voltados pra fora, prejudicamos a formação e a renovação dêsse foco de luz. A inteligência aumenta na proporção direta da interiorização. E na inversa dispersão. A formação da atividade intelectual, como um dínamo sui-generis, exige a concentração da energia mental. Quanto maior fôr a preservação da interioridade, mais provável a elaboração dessa energia. E com ela é que podemos melhor conhecer, tanto o mundo do não eu como o do próprio eu e, acima de tudo, o mundo próprio do Criador do eu e do não eu, o mundo de Deus, a vida sobrenatural. Só a vida interior intensa permite dar calor, luminosidade, penetração à inteligência. Esta se embota, quando nos perdemos na vida exageradamente ativa. Cresce, ao contrário, quando entramos em nós mesmos. Quantas verdades nos são reveladas pelo próprio sono ! Basta que fechemos o circuito com as coisas externas, para que o laboratório secreto dos nossos sentidos internos comece a trabalhar: um nome esquecido volta à tona, a solução de um problema matemático se encontra, um êrro se descobre, só porque deixamos em paz as nossas raízes biológicas. Ora, se isso ocorre com a base física do nosso espírito, que o sono preserva tôdas as noites (quando preserva…) do esquartejamento pela extroversão, quanto mais à medida que passamos ao psíquico e ao espiritual. É então que se processa o verdadeiro encontro com nós mesmos. E que a inteligência descobre o clima necessário para se preparar à grande aventura cotidiana de descortinar o desconhecido. E, com tudo isso, é a vontade também que se fortalece. Tudo está ligado nessa unidade transcendental que constitui a nossa personalidade. Nada se processa em qualquer dos nossos órgãos que não encontre repercussão nos outros. Nada, tão pouco, ocorre com qualquer de nossas faculdades, que não reaja sôbre as demais e delas

Page 55: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

receba também qualquer impulso. Tudo está intimamente ligado em nosso mundo pessoal. A agudeza dos sentidos exteriores enriquece a inteligência através da movimentação dos nossos sentidos internos. E a fôrça da inteligência é que dirige a vontade e comunica-lhe vigor e tenacidade. A operação acompanha o ser, não o precede. Mas por sua vez volta a agir sôbre o ser, numa contínua circulação de energias, físicas, psíquicas e pneumáticas. A sensibilidade alimenta a inteligência, a inteligência alimenta a vontade e a vontade alimenta, de volta, a sensibilidade e a inteligência. Ora, êsse circuito vital é diretamente derivado da riqueza, do equilíbrio, da fôrça, da profundidade da vida interior, sem a qual nem os sentidos se conservam sensíveis, nem o intelecto preserva a inteligência, nem a vontade sabe discernir o bem. Sem vida interior, os sentidos destilam apenas sensualidade, a inteligência se converte em esperteza superficial e a vontade em veleidade. Dá-se uma corrupção geral da nossa vida do espírito e, com isso, da nossa vida de ação. Pois a vontade, orientando tôda a nossa vida, exterior e interior, para a sua finalidade própria, vai receber as conseqüências finais da deturpação da vida sensível e da vida intelectual que a precedem e perde completamente o vigor e o senso da orientação. A ausência de vida interior, portanto, é a causa mais freqüente do desequilíbrio total de nossa vida, em qualquer dos seus momentos, original, central ou final. A preservação, ao contrário, de uma vida interior profunda e pura atua sôbre tôdas as nossas faculdades, sôbre todo o nosso ser. Quanto mais lucidamente entramos nas raízes profundas do nosso ser, mais conseguiremos espantar de lá os morcegos que Freud encontrou, e que só se refugiam nas grutas desertas ou nas casas abandonadas. A verdadeira psicanálise é uma vida intelectual autêntica, pois os demônios e os ídolos só se instalam nos

Page 56: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

lugares onde Deus deserta. Ora, Deus não deserta de lugar algum, a não ser que nós de lá O expulsemos. E o homem, para o seu mal e também para a sua grandeza, possui, em si, até mesmo êsse estranho poder !

Page 57: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

C a p . 1 4 . º

AUSÊNCIA Entre as propriedades acidentais do ser que a vida interior permite sentir, conhecer e querer com mais ou menos intensidade está, sem dúvida, a oposição presença-ausência. Comecemos por esta última. A ausência é uma privação. É, portanto, uma propriedade negativa. Mas, como tôda privação, implica a existência do contrário. O mal só existe porque o bem existe. O feio só existe porque o belo existe, confundido ou não com o bem. O êrro só existe porque a verdade existe. Assim também com a ausência. Não é uma inexistência. É uma negação: a negação da presença. Não é, portanto, nem um valor em si nem uma fantasia. É uma falta que supõe uma realidade. Há, pois, em tôda ausência um reflexo do ser. Uma sombra. Um sinal. E a percepção dêsse reflexo, dessa sombra, dêsse sinal, é que exige de nós uma agudeza de espírito que o grau de vida interior aumenta, diminui ou mesmo suprime. O homem privado de mundo interior é um homem insensível à ausência. Vive satisfeito com o que vê; sente apenas com os sentidos externos. Vive perdido nas coisas. Vive, como as pedras ou as plantas, perfeitamente integrado no mundo exterior. Porque o próprio animal já sente, por vêzes, a falta do dono. É o sinal de uma vida que se aperfeiçoa. E o homem é o animal que sente falta. Quanto mais vive interiormente o homem, mais sente a ausência das coisas e dos sêres. A ausência deixa de se confundir com a inexistência, como ocorre com os sêres inanimados, para pertencer àquela categoria intermediária a que fizemos alusão: o sinal de uma existência oculta ou remota.

Page 58: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

A ausência, que é qualquer coisa de puramente passivo para os sêres insensíveis -- como a ausência de sol para uma planta, que pode provocar a morte -- passa a ter nos sêres sensíveis, e particularmente no homem, uma existência relativamente positiva. É uma privação, sem dúvida, mas uma privação que supõe uma existência e, portanto, leva consigo alguma coisa ou mesmo muito do ser que representa. À medida que nos aproximamos do homem, vai a ausência perdendo a sua passividade. No homem adquire um sentido positivo e até criador. E adquiri-o, como dissemos, na razão direta de sua vida interior. A insensabilidade à ausência é sempre o sinal do homem absorto pela vida exterior, pelo trabalho, pelo prazer, pelas paixões, pelo sofrimento, pelas anomalias de sua natureza, por tudo o que arranque o homem de si mesmo. E, ao contrário, quanto mais o homem entra em si mesmo e cultiva as riquezas secretas do seu eu, mais sensível se torna ao que lhe falta, ao que já teve, ao que tem ao longe, ao que deseja. A ausência vai aumentando então o grau de uma positividade. Até, por vêzes, ultrapassar o limite e absorver o próprio homem, aniquilando-lhe a própria vida interior. E provocando uma inversão de valores por excesso, que pode levar ao desespêro, -- como nos homens sem vida interior, insensíveis, frios, secos, indiferentes, absorvidos pelo mundanismo ou por qualquer forma de exterioridade, provoca uma supressão de valores por deficiência, que os leva a merecer o qualificativa dos salmos: "nati quasi non nati". Há três séculos, um grande moralista fêz da ausência, numa sentença, a mais perfeita análise que já vi. Disse La Rochefoucauld que -- "a ausência é como o vento, que apaga as velas e atiça os incêndios". A fôrça ativa da ausência e o seu duplo efeito nas paixões humanas, frágeis ou fortes, estão aí

Page 59: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

admiràvelmente resumidos. A ausência aparece então, nesse nível, como uma realidade, uma forma secreta de realidade remota, passada ou futura. Por vêzes, como a realidade que nos recobre por tôda a parte, quando saímos do campo limitado dos nossos sentidos e da nossa razão: a realidade do mistério. O mistério é a mais generalizada das ausências. É a que se contém no fundo de cada coisa, quando queremos chegar às suas raízes mais remotas. E por isso é que a sensibilidade mais apurada, a inteligência mais aguda, a vontade mais firme, não se satisfazem com as aparências. Sentem, compreendem, conduzem para lá das superfícies, para lá do imediato. E tocam então êsse mundo secreto das ausências, que nos permite vislumbrar o verdadeiro mundo interior das coisas, do não eu, que corresponde, fora de nós, ao nosso próprio mundo interior. E chegamos então à maior das ausências do mundo, à Ausência em si, a ausência de Deus ! É pela ausência que chegamos à presença de Deus, como é pela ausência que chegamos à presença de tôdas as coisas, abaixo de Deus, e de modo particular às criaturas. E de modo particularíssimo às criaturas que nos são mais caras. Tocamos então a ausência, como se fôsse realmente qualquer coisa de positivo, de real, de imediato. Carregamos conosco essa ausência. Dialogamos com ela. Vivemos com ela. E jamais nos sentimos sós. Deus, o grande Ausente, está sempre conosco. E os ausentes queridos, especialmente quando vistos através do grande Ausente, tornam-se para nós os mais vivos dos companheiros. E é por isso que aquela religiosa do Carmelo de Santa Teresa, a filha de Capistrano de Abreu, pôde escrever um admirável poema de sua presença a todos os movimentos da cidade, da madrugada à noite, tudo através da ausência, tudo através da presença da ausência. Ai dos insensíveis ao calor das coisas ausentes ! Ai daqueles para quem a ausência é o

Page 60: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

sinal da morte ! Quando a ausência, ao contrário, se a sabemos entender, e o grande sinal de vida, o caminho pelo qual os poetas nos levam ao coração das coisas e os corações anulam o pêso intolerável das distâncias ou transpõem os muros intransponíveis das barreiras que nos isolam uns dos outros. Pode ser, até mesmo e a cada momento, o sinal mais vivo da existência de Deus.

Page 61: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

C a p . 1 5 . º

PRESENÇA -- I Se a ausência é uma privação, a presença é mais do que uma existência: é uma coexistência. Mais do que uma coexistência, é uma convivência. Se a ausência é um sinal negativo, a presença é uma realidade duplamente positiva. Se a ausência, portanto, possui, apesar disso, uma riqueza própria, para quem viva uma vida interior profunda, quanto mais a presença, que não só suprime a ausência mas duplica a existência ! Pois a presença não é apenas um sinal de existência. Isso é o privilégio da ausência, já que as aproximações do ser são: a inexistência, a potência, a ausência, o caos e o ser definido e existente em ato. A inexistência é o não-ser, é êsse néant que os existencialistas querem confundir com o ser, agregar ao ser, constituindo êsse êter-avec néant, que nega o princípio de contradição e chega a um panteísmo mais absoluto que o de Spinoza. Êste ainda afirmava que "omnis determinatio negario est". Ao passo que Sartre diria: "omnis determinatio negation non est"... A potência é o ser imperfeito em vias de atualização. A ausência é o ser não presente, mas atuando, de longe, por um sinal que é a própria ausência consciente, pois a ausência inconsciente se confunde, em nós, com a inexistência. O caos é o ser vago e indefinido, que os antigos opunham ao cosmos. E só quando chegamos ao ser determinado, é que a categoria da Presença pode surgir, como uma plenitude do ser, o ser em face do outro ser. Pois a presença é uma relação e não apenas uma noção. É uma relação de contiguidade. É uma existência dupla e próxima e por isso mesmo agindo e reagindo reciprocamente uma sôbre a outra.

Page 62: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

Se o homem é um animal naturalmente "político", como dizia Aristóteles, isto é, sociável, a presença representa para êle uma necessidade natural do seu ser. E se o homem é um ser elevado à ordem sobrenatural, quando dêle não temos uma concepção mutilada, a presença sobrenatural é para êle tão necessária quanto as presenças naturais. E por isso a primeira necessidade de nossa vida sobrenatural é a presença de Deus, como a primeira necessidade de nossa vida natural é a presença do Próximo. A Ausência é apenas um derivativo da presença. É uma aproximação. É um caminho. É um sinal. Só conhecemos a Deus através da Sua ausência, pelas coisas criadas, isto é, por aquilo que não é Deus, mas indica a Sua existência. Daí dizermos que Deus está presente em tudo. Está presente, sem paradoxo, por Sua ausência. Está presente, não porque tudo é uma ausência de deus, isto é, um sinal de Sua existência, embora não de Sua presença real. Essa, a presença real, a Fé no-la dá como um dom, como um presente divino, que torna Deus presente misticamente no mundo pela Eucaristia, como o tornou presente pelo Verbo incarnado. São presenças sobrenaturais que alimentam a nossa condição de ser elevado a uma ordem que transcende substancialmente a ordem da natureza de todos os outros sêres. Só o homem foi elevado à ordem sobrenatural, e por isso mesmo só êle, com tôda a sua iniqüidade, pode gozar dêsse privilégio único de uma Presença Real de Deus em si, que ultrapassa tôdas as possibilidades naturais do seu ser e só existe pela pura gratuidade de um dom divino. Essa é, pois, a maior das presenças de que podemos gozar na terra. Mas a exigência da presença é uma sêde de todo ser, desde os seus mais elementares aspectos. A existência chama a existência e atua sôbre a existência. A ação de presença é um fenômeno químico, a catálise, que

Page 63: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

existe, pois, no próprio mundo dos sêres inanimados. À medida que subimos na escala dos sêres, vamos encontrando um valor novo que aumenta na medida da espiritualidade: a presença. Simples coexistência no mundo vegetal, passa a gregarismo no mundo animal e a sociabilidade no mundo humano. e nesse mundo do homem, a ação e o valor da presença crescem, então, na proporção direta da vida interior. Passa então a ser mais do que uma coexistência, uma presença puramente passiva, para ser, ou pelo menos poder ser uma presença irradiante, e por conseguinte extremamente ativa. A medida dessa passagem da presença, da passividade catalítica, à atividade convivente, é a vida interior. Para o homem privado dela, a presença é indiferente. Ou simplesmente material e acidental. Permanece no plano da presença puramente biológica ou social, que pode ser menos do que a própria ausência. A ausência, para quem vive profundamente, é alguma coisa de muito maior do que a presença para quem vive superficialmente. Em si, a presença é mais do que a ausência. Mas em nós, pode ser menos. Quando carregamos conosco uma ausência querida, estamos muito mais ausentes dos presentes em tôrno de nós, do que presentes ao ausente... São, por exemplo, as abstrações e as distrações do amor. A mãe que tem o filho na guerra, ou mesmo no estrangeiro ou longe de si, está muito mais presente ao seu ausente querido do que aos presentes em tôrno dela. É a realidade que comunica a êsses valores o grau de vida interior. Para quem vive realmente, a presença é a plenitude do ser. A presença tem sempre qualquer coisa de divino. É um aumento de intensidade do ser. É uma aproximação do Ser em si. É uma ante-sala da Visão beatífica. Por isso nada supre a presença. E ela comunica, ao concreto, uma superioridade intrínseca sôbre o abstrato.

Page 64: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

C a p . 1 6 . º

PRESENÇA -- II Dizíamos que a presença comunica ao concreto uma superioridade intrínseca sôbre o abstrato. É porque a presença é uma propriedade do ser determinado e singular. E a abstração é precisamente o esfôrço do espírito para passar do singular ao geral. A abstração, pois, é um método que abole as presenças para nos levar ao conhecimento das essências, dos universais. E com isso nos transporta naturalmente, do terreno das presenças singulares e da coexistência ou da convivência, para o plano das verdades ausentes, isto é, das verdades que transcendem o plano das existências singulares e sensíveis para nos entregar às categorias do universal, físico, matemático ou metafísico. É a abstração que nos leva a subir do simples plano existencial das singularidades a êsses planos superiores, onde tocamos as raízes, as matrizes, as essências dos sêres. É uma ascensão, é um enriquecimento, é um caminho que nos leva a verdades cada vez mais amplas e profundas, mas que se faz à custa de um tremendo ascetismo: a privação da presença. Temos de sacrificar o presente, isto é, o concreto, o singular, coexistente ou convivente, o próximo, o tangível, o conversável, o visível, para subirmos ao conhecimento das essências transcendentais. É um ascetismo, sim, mas um ascetismo compensado, quando essa separação das presenças é provisória e se faz para chegar a uma Presença suprema ou para voltar à convivência incomparável com as presenças humanas e mesmo menos que humanas. A filosofia é a base da vida ou não é filosofia. A abstração é uma volta à presença ou não é verdadeira abstração. Tôda filosofia, tôda ciência, tôda ação, tôda idéia, que nos arranca às presenças para nos levar à abstração pela

Page 65: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

abstração, à ciência materialista, à ação desumanizante, à idéia puramente ideológica, é uma diminuição do nosso ser. E diminuição porque nos arranca ao mundo da presença para nos levar a um mundo sem vida, em que as coisas e os homens vivem apenas como elos passivos de um determinismo cego. Um mundo em que a presença individual perde todo sentido. Quando, ao contrário, o mundo verdadeiro é povoado de presenças. É o mundo em que cada coisa, já não digo cada pessoa, cada coisa tem um valor de presença efetiva, que nenhuma abstração, nenhuma lei, nenhuma idéia pode susbtituir. É o inefável que a presença comunica às coisas e às pessoas e que nada susbtitui. A idéia de uma maçã é coisa completamente distinta de uma maçã. Não que o conceito não nos dê uma noção exata da coisa. Dá-nos. Chegamos à essência do objeto e não apenas ao seu "fenômeno", como pretendem os idealistas. Mas uma coisa é conhecer a essência de uma maçã, outra coisa é ter presente a sua existência. Foi isso o que perturbou os existencialistas ao ponto de confundirem todos os valores no valor existencial. Mas todo extremo é igualmente falso. O conceito de maçã não nos satisfaz inteiramente, porque, como dizia Santo Tomás -- "a realidade transborda do conceito". E essa realidade não é outra coisa senão a presença da maçã. Esta maçã, em minha mão, em meu olfato ou em minha bôca, dando-me a plenitude do conceito e da realidade, é que representa totalmente a maçã. Êsse é o mistério da presença, que enriquece a nossa vida interior, como é por ela enriquecido e nos transborda dessa maçã, que trouxe à humanidade tantas dores de cabeça, ao mais sublime dos presentes que ela permitiu a essa mesma humanidade receber: o dom da Presença real! Nada supre a presença. Uma das cenas mais patéticas do teatro de Ibsen é aquela de Brant, quando o pastor

Page 66: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

obriga a espôsa a desfazer-se dos brinquedos que pertenceram ao filhinho morto. Os objetos vivem uma vida a seu jeito, mas uma vida a que nós ligamos um valor por vêzes infinito. Ou um valor de ausência, como sinal de uma existência querida longe de nós, ou para sempre desaparecida, e representada por aquêle objeto que tanto guarda da sua presença, -- ou a própria presença do objeto em si, que tem uma ação catalítica e psicológica misteriosa sôbre o nosso ser. Por isso carregamos conosco tantos objetos que os outros não podem compreender... Se isso acontece com as coisas, quanto mais com as pessoas. Basta, às vêzes, a presença física sôbre o nosso sono. Acordamos, quando alguém se aproxima de nós. Nem sempre pelo ruído. Pela simples ação da presença de um corpo humano, de uma vida perto de nós. E na medida em que sabemos sentir, conhecer, agir, viver nosso mundo interior, aumenta essa ação da presença. O homem exteriorizado sente fracamente, ou não sente o valor da presença. Ao passo que a vida interior profunda torna a presença do ente querido uma transfiguração, uma iluminação, uma renovação das próprias fontes da vida. Os poetas e os gênios musicais nos contam ou nos fazem sentir a ação do amor sôbre a presença. Os místicos ainda mais. Lembremo-nos do primeiro ato de Tristão e Isolda, quando o filtro comunica o amor e aquêles dois que, mesmo presentes, não se haviam visto, começam a ter pelo olhar (o tema musical em tôrno do qual gira tôda aquela genial orquestração) a revelação da presença do outro. Lembremo-nos de São João da Cruz a nos contar a ascensão da alma à presença crescente de Deus. Tudo é a revelação concreta de que a Presença é uma plenitude a que nada se compara. A abstração pode privar-nos momentâneamente da presença, mas é para no-la restituir, se é verdadeira abstração, em sua plenitude, do íntimo dos sêres onde há sempre uma presença, à própria

Page 67: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

presença de Deus, que é o sentido infinito da nossa própria vida. O final da Nona Sinfonia é um Hino à Alegria e é, por isso mesmo, um Hino à Presença. Pois a esperança do encontro, na terra como no céu, é a alegria suprema que renova continuamente os nossos corações.

Page 68: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

C a p . 1 7 . º

SABEDORIA A vida interior é a sabedoria a quatro dimensões: a evocação ou passado; a antecipação ou futuro; a profundidade ou meditação e a elevação ou prece. É, antes de tudo, um equilíbrio entre essas quatro dimensões. Não um equilíbrio qualquer. É um equilíbrio de fôrças e não de fraquezas. Confundimos, muitas vêzes, equilíbrio com timidez, moderação com mediocridade, temperança com mornura, medida com academismo, prudência com pusilanimidade. Essas virtudes de equilíbrio, moderação, temperança, medida, prudência, à luz da vida interior, têm tôdas um só nome: sabedoria. E essa sabedoria se manifesta como um equilíbrio entre essas quatro dimensões, cada uma das quais com fôrça própria suficiente para arrastar a nossa vontade e por ela fixar o sentido de nossa vida. Se viver interiormente não é viver em surdina ou em câmera lenta, não é tão pouco viver descompensadamente em qualquer das quatro direções a que nos arrasta o mundo exterior, o mundo superior ou o próprio mundo interior. Quando qualquer dessas direções atrai, com exclusividade, o nosso espírito, com isso arrastando também o nosso corpo, uma coisa perdemos pela certa: o equilíbrio. Não se trata de manter o equilíbrio à custa da intensidade de qualquer dêsses apelos. Trata-se, ao contrário, de desenvolver ao máximo todos e cada um dêles separadamente. A vida interior é uma vida em intensidade. Sendo uma vida intensa e não extensa e muito menos cutânea, exige por natureza que tôdas as direções a que é chamada mantenham uma atração considerável sôbre o nosso eu. Há,portanto, duas atitudes negativas e uma positiva no sentido de desenvolver o nosso mundo interior.

Page 69: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

A primeira atitude negativa é impedir o enfraquecimento de qualquer daquelas quatro imantações, se assim nos podemos exprimir. Se assim devemos proceder, preliminarmente, é que existe essa tendência natural a conservar o equilíbrio à custa das fôrças de atração. Se assim procedemos, então, é que nos deixamos levar por aquelas confusões a que acima aludimos. É falsa a virtude alcançada à custa de qualquer espécie de mutilação. Não é suprimindo a tentação, mas vencendo-a que realizamos o nosso destino. E nosso destino é não pecar. Não é suprimir o pecado, coisa que escapa ao nosso poder, pois é da alçada divina. De nossa alçada é evitar o pecado. Assim também, só conseguimos manter o clima de nosso mundo interior se começar-mos por não mutilar nenhum dos quatro apelos que, constantemente, recebemos, do passado, do futuro, do fundo da alma e do alto, para nos dirigirmos a essas direções. A solução fácil é, naturalmente, diminuir a atração para facilitar o equilíbrio e até suprimi-los para alcançar a ataraxia. Mas o equilíbrio só é sabedoria se não fôr ataraxia, se não fôr uma parada ou uma redução do ritmo. Êsse é, portanto, o primeiro esfôrço negativo. O segundo é impedir que um dos apelos seja atendido com exclusividade, em prejuízo dos demais. É também um meio fácil de obter o equilíbrio interno. Ou diminuir a tensão das quatro fôrças exteriores ou conservar apenas uma delas, com exclusão das demais. Ainda aí, se assim o fizermos, haverá desequilíbrio. No primeiro caso será por atenuação da intensidade dos apelos. No segundo será pela mutilação ou supressão de um apêlo, em benefício dos outros. É uma segunda tentação a vencer. Nem enfraquecimento de todos, nem supressão de alguns em benefício dos demais. São dois cuidados preliminares, em sentido negativo, para podermos passar então a uma ação positiva.

Page 70: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

Pois o equilíbrio, essência do mundo interior, não é uma inação, ou uma supressão, ou uma redução. É, ao contrário, a conservação de uma intensidade máxima em cada um dos quatro sentidos a que somos solicitados continuamente, se queremos manter não só intata a nossa integridade, mas desenvolver ao máximo as nossas virtualidades. Dá-se então a intervenção positiva de nossa vontade na elaboração do nosso mundo interior. Os dois passos negativos são preliminares. Preparam apenas o terreno. Limpam as ervas más. Aplainam. Purificam. Impedem a vitória das soluções fáceis. Mas a vida interior só começa com a posição positiva e construtiva. Construímos a nossa vida interior, como Santa Teresa construía os seus castelos espirituais, na direção de Deus. E a primeira tarefa nessa construção íntima é precisamente ter uma noção dinâmica e não passiva do equilíbrio. Equilíbrio só é sabedoria quando é atividade. Quando Bergson comparou a mística oriental e a mística cristã e concluiu, -- êle que vinha do puro evolucionismo naturalista ou quando muito de um hebraísmo hereditário e subconsciente ou racial -- pela superioridade dessa última, encontrou nela como elemento capital o que foi para todos uma surprêsa: a ação. E, no entanto, tinha razão o filósofo. A mística, que é um grau supremo da vida interior, baseia-se também na sabedoria e, portanto, no equilíbrio íntimo. Equilíbrio entre faculdades e, acima de tudo, equilíbrio entre dimensões e fôrças. Pois o que distingue essas dimensões é serem gravitacionais. É possuírem fôrça própria e atraírem, cada qual para seu lado, de fora para dentro. A sabedoria não é, portanto, diminuir ou suprimir essas atrações. É compensá-las, sem qualquer atenuação. É interpentrá-las, sem prejuízo da integridade de cada uma. É realizar, não um encontro, uma encruzilhada, mas uma verdadeira resultante, uma convivência de que deriva a

Page 71: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

mais perfeita das vivências. A sabedoria é, por conseguinte, um equilíbrio instável e dinâmico, que exige uma contínua vigilância. Pois vive em estado de risco. É uma fôrça de equilíbrio e um equilíbrio de fôrças. E a vida interior é o único meio humano de alcançar a sabedoria, confundindo-se com ela.

Page 72: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

C a p . 1 8 . º

SAUDADE

A sabedoria é, portanto, um equilíbrio criador, a quatro dimensões: para trás, para frente, para baixo e para cima. Examinemos cada uma dessas fôrças de atração que atuam sôbre a nossa vida interior e representam para ela elementos essenciais de sua fecundação. Pois já vimos que a vida interior não é uma cisão com o mundo exterior, mas um aproveitamento de tôdas as energias sadias que dêle recebemos para as transformarmos, pela sabedoria, em personalidade. A primeira dessas fôrças é a do passado. Para cada um de nós o passado não é o que passou; é o que não passou. É o que ficou em nós do que passou. O que foi por nós vivido, ou passa de todo, ou fica esquecido ou continua a viver. Se passa de todo, é que morreu. Há um passado morto. Tão morto, por vêzes, que nem mesmo a sua evocação consegue despertá-lo de sua imobilidade de pedra. É como se jamais houvesse existido. Êsse é realmente o passado que passou. Há, em seguida, o que esquecemos. É o que permanece em nós no subconsciente. Dêle temos, por vêzes, uma suspeita vada, como que um rumor longínquo de vagas que ainda se movem, não sabemos em que praia deserta e selvagem do nosso mundo interior, já esquecido, já retomado pelas novas presenças que destroem todo sinal de passagens anteriores, como essas picadas das montanhas por onde ninguém passa e que, em poucos anos, são completamente recobertas pela vegetação selvagem, como se por ali jamais tivesse passado alma viva. Mas seu desaparecimento pode ser apenas aparente. Fica, às vêzes, por baixo da erva rasteira, o caminho

Page 73: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

trilhado e, se algum dia limparmos o mato, a trilha ressurgirá como outrora. Assim se dá com as coisas esquecidas. Ficam na sombra latentes. E um dia, por uma circunstância fortuita ou por um esfôrço de evocação, tudo volta à tona, como se tivesse ocorrido ontem. E as emoções renascem, como se nascessem de novo. Evapora-se o tempo, como se não tivessem passado anos, por vêzes, de esquecimento, e êsse passado esquecido volta a fazer parte ativa do nosso presente mais vivo. E há o passado-presente, há o passado que, longe de ficar esquecido em nós e reviver a um toque qualquer das circunstâncias acidentais,vive conosco a cada momento, como o mais vivo dos presentes. Dêle se não distingue, às vezes baço e longínquo, como o passado. Enquanto êste nos dá de tal modo a ilusão de viver conosco, hic et nunc, que nos surpreendemos, por vêzes, falando em voz alta aos mortos ou aos ausentes, como se estivessem aqui conosco. Êsse passado vivo é que constitui uma das quatro grandes dimensões da nossa vida interior. Por êle é que se processa a continuidade de nosso ser. Nada do que foi nosso, um dia, deixa de o ser, quando teve razões de viver e não cai na vala comum do passado morto. Se teve razões profundas de ser, jamais se perde e continua a atuar sôbre nós, para o bem ou para o mal. Porque o passado em si, mesmo o passado vivo, mesmo essa fôrça que nos afasta do presente, é em si mesmo indiferente ao nosso progresso ou à nossa decadência íntima. Pode ser fecundo, pode ser nocivo. Nocivo se a êle nos prender a evocação do mal. "Nossas obras nos acompanham", diz o Apocalipse. "Opera enim illorum sequuntur illos" (Apoc. XLV, 13). As boas e as más. Essas últimas podem prender-nos como se fôssem paixões presentes. A saudade não é apenas um sentimento de doçura, um dos mais fecundos da nossa vida interior. pode também ser uma paixão entorpecente. Ai daqueles que não conhecem e curtem a poesia profunda da

Page 74: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

saudade. Ai daqueles, também, no extremo oposto, que se deixam vencer por ela. A saudade é um estímulo para a vida interior bem vivida. É o meio de têrmos sempre vivos, em nós, as pessoas e os sentimentos, as lições e as coisas que um dia constituíram as fontes da nossa vida. O homem sem saudade é o homem sem vida interior. É o homem que vive para si, escravo do presente. É o homem que desperdiça as riquezas da vida. É o solitário, no mau sentido do têrmo. O separado, o secionado, o desmemoriado mesmo que tenha memória, mas a memória nêle é um simples reflexo condicionado. Ai do homem sem saudade ! Como ai daquele que se deixa devorar pela saudade. A saudade não é apenas uma melancolia sem conseqüência. É uma paixão tremendamente ativa, que pode abrir à nossa vida interior novos rumos, com a colaboração dessa presença misteriosa do passado e de tudo o que nêle nos enriqueceu espirituralmente, -- como pode levar-nos à mais triste das mortes, à morte em vida. Quando nos deixamos devorar pela saudade, corrompe-se tôda a nossa vida interior. Ficamos envenenados, amargos e até siderados pelo desespêro. O presente perde todo sentido. E a própria vida se torna absurda. A evocação é, portanto, uma fôrça viva quando torna o passado presente e trazendo a êsse presente novas razões de ser. Quando, ao contrário, o passado se converte em uma saudade selvagem que enlaça o presente e o asfixia como um matagal, então essa evocação se volta contra nós e destrói tôda vida interior. É o que acontece quando essa dimensão se torna tão absorvente, que destrói as demais. Viver só no passado, como viver só de saudades, é um dos meios de aniquilar a nossa vida interior. Ao passo que viver com o passado, como ter sempre conosco a inspiradora companhia da saudade, é renovar constantemente o calor dessa vida.

Page 75: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

Não há, portanto, vida interior fecunda sem a convivência do que passou, sem a continuidade no tempo, sem a presença contínua do que, em qualquer momento, foi para nós a alegria da vida.

Page 76: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

C a p . 1 9 . º

FUTURO Se a primeira dimensão da nossa vida interior é o passado, a segunda é o futuro. Para que o passado seja em nós uma fôrça viva, é mister não nos tolha os movimentos para o futuro. Pois a direção normal de nossa vida é para a frente. Não me canso de citar aquelas palavras de Cristo: "Nemo mittens manum suam ad aratrum el respiciens retro aptus est regno Dei" (Luc. IX, 62). Aquêle que puser a mão no arado e olhar para trás, não está preparado para o reino de Deus. O futuro é o norte da nossa vida interior. E esta não é uma água parada, nem uma onda revôlta. É uma corrente. É um movimento que se dirige para alguma coisa que fica à nossa frente. É alguma coisa que cresce. O mundo interior, como o mundo das sementes, é o próprio domínio da finalidade. Como cresce uma semente ? Não no sentido de onde vem, mas no sentido para onde vai, isto é, no da realização de sua própria natureaza. A semente de trigo cresce no sentido da espiga. Esta é o seu futuro. Êste é o seu destino. Para êle tendem tôdas as suas potencialidades. Assim ocorre com a vida puramente animal. No germe mais informe, sem a menor intervenção exterior, já está preformada a sua condição. E, quando se dá qualquer intervenção genética, não é para mudar de espécie. É para aperfeiçoar a espécie. Êsse aperfeiçoamento pode dar-se mesmo depois de nascido. Como pode ocorrer uma degradação, uma parada, uma volta. E sempre que isto se dá, é sinal de que o animal não realizou plenamente a sua forma. Ou não se formou. Ou foi deformado. Na realização de sua forma está a sua finalidade. Com mais razão do que sucede na escala da vida animal, ocorre outrotanto com o ser humano. De todos os

Page 77: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

sêres vivos, o homem é o que começa mais informe e pode chegar à maior plenitude de sua forma. A escala a ser percorrida pelo homem, no caminho de sua finalidade, é a maior de todo o reino animal. É o que parte de mais baixo, pois o recém-nascido não pode sobreviver, fisicamente, se não receber qualquer amparo exterior. E é o que chega mais alto, pois o destino do homem é mover-se no sentido de uma imortalidade, que só a êle toca entre todos os sêres criados, exatamente porque ultrapassa, por natureza, o mundo animal na mesma proporção em que êste ultrapassa o mundo vegetal e êste o mundo mineral. Mas aqui não é dessa dimensão (a elevação) que me quero ocupar e sim da que leva o homem ao seu futuro, no tempo. O futuro é uma dimensão temporal, como o passado. É na linha do tempo que ambas atuam sôbre a nossa vida interior. E o futuro atua em nós sob a forma de vocação. O futuro é um chamado à responsabilidade. Como a responsabilidade é a consciência do dever. Tudo isso são apelos do futuro em nós. É porque ouvimos, em nós, alguma coisa que nos chama à frente e nos obriga a olhar para dentro de nós mesmos e considerar o sentido da nossa marcha, que sentimos tão vivamente, se temos vida interior, o problema da vocação. É na medida da intensidade dessa vida que tomamos consciência do nosso destino e da própria existência de um destino, de um sentido para a nossa vida. É no mundo interior que essa consciência se desenvolve e sentimos mais vivamente o dever de olhar para a frente, e o problema da vocação. O homem sem vida interior deixa-se viver, isto é, deixa-se levar para a vida. O futuro não o preocupa porque não o ocupa. É o fatalismo ou o determinismo que o arrasta, como uma fôlha morta deslizando com o rio. Há uma sadia despreocupação com o futuro, como veremos ao nos ocuparmos com a terceira dimensão do nosso mundo

Page 78: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

interior. Mas não é a que provém de uma recusa do destino, da surdez ao apêlo da vocação. Devemos, sempre, ao contrário, estar atentos ao futuro. Porque todos temos uma missão a realizar no tempo. Todos temos de descobrir a adequação de nossas faculdades com a nossa finalidade. É o problema, central em nossa vida, da vocação, do chamado do destino, da terceira dimensão do nosso mundo íntimo. Há três modos de atender a êsse chamado, como há só um de não atender: o de fechar os olhos ao futuro e deixar-se absorver, completamente, ou pelo presente ou pelo passado. É uma das mutilações da nossa vida interior a que já nos referimos anteriormente. O primeiro dos modos de atender ao chamado é o da displicência. É atender mal. É a indiferença para com o futuro. É a meia tinta, é a água morna, é a preguiça ou o mêdo de corresponder ao chamado. Quantas vêzes fechamos os olhos à evidência de um dever, pelo mêdo das responsabilidades, pelo temor de não estar à altura, pelo respeito humano. Há motivos, muitas vêzes, justos nessas recusas. E há o problema das hesitações, da dúvida, que é um dos males mais cruciantes de nossa vida interior. O primeiro modo, pois, é a indiferença, sintoma de uma fraca vida interior. O segundo é a absorção. Assim como o passado pode apoderar-se, ilegitimamente, de nós, assim pode o futuro. O desespêro da saudade, que pode levar ao crime. O ambicioso é justamente o homem que se deixa oprimir pelo futuro. Transforma essa segunda fôrça em fôrça única e só pensa em vencer, em ser rico, poderoso, forte. O amor da gloríola vence nêle tôda a vida da glória, quarta e suprema fôrça de nossa vida interior. É a suprema força de nossa vida interior. É a negação desta pela escravização do orgulho e à idolatria do poder ou da posse.

Page 79: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

Quanto à maneira justa e fecunda de atender ao apêlo do futuro, é procurar ser fiel à sua vocação. E a virtude que atua para isso é, acima de tudo, a coragem, a fortaleza moral. É a virtude da ação. É a virtude da obediência ao dever. É o heroísmo que vence todos os obstáculos que nos vêm do mêdo e, sobretudo, do amor. Pois assim como a perfeição do ascetismo é renunciar aos prazeres lícitos, a perfeição da fortaleza é vencer a doçura dos afetos mais queridos e mais santos, sem cair na rudeza do coração nem no jansenismo. Eis um dos momentos em que o equilíbrio da vida interior mais e melhor ilumina os nossos passos, no dever de fidelidade ao futuro sem traição ao passado.

Page 80: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

C a p . 2 0 . º

MEDITAÇÃO A terceira dimensão da nossa vida interior é a direção em profundidade. É a densidade dos nossos sentimentos, dos nossos pensamentos, dos nossos atos. Há, em primeiro lugar, uma densidade, por assim dizer física, que obtemos sobretudo pelo apêlo ao tempo. Não devemos jamais viver precipitadamente. A impaciência é a inimiga nata da densidade. Precisamos parar, antes de pensar ou depois de sofrer. Essa detenção do tempo é uma condição tão essencial à densidade de nossa vida interior, como uma barragem é indispensável à retenção e ao aprofundamento das águas de um rio. Tudo, em nós, tem a tendência a passar depressa. Se não contrariarmos essa inclinação, passamos a viver em superfície e renunciamos à vida interior. Se a queremos ter, é preciso começar por obter essa densidade física, pois os sentimentos se tornam mais sentidos se os contemos; os pensamentos mais pensados se os retemos pela atenção; as ações mais ativas se as acumulamos. Refrear os movimentos desencontrados e precipitados do nosso afã de viver é o primeiro meio de tornar mais espessas tôdas as manifestações de nossa vida, servindo assim à terceira dimensão do nosso mundo interior. A essa densidade física, questão de demora e retenção do movimento, vem somar-se uma densidade mais profunda: a intelectual. Não basta viver mais lentamente, para que se viva em profundidade. A lentidão pode ser até um sinal de pobreza interior, de ausência de reação profunda, ou mesmo de preguiça mental. A sonolência tira o sono e só o sono é reparador. Assim também uma densidade física que não seja acompanhada de uma densidade psíquica, é inútil ou contraproducente.

Page 81: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

Se devemos reduzir a velocidade natural dos nossos atos e entreatos, não é para descansar e sim para viver mais, para viver em profundidade. E para isso há uma elaboração intelectual de cada momento de nossa vida, com a qual enriquecemos a sensação do momento, a idéia, a decisão, com tudo aquilo que as outras três dimensões nos fornecem. Eis porque o nome próprio dessa terceira dimensão interior é -- Meditação. Meditar é aprofundar, pela análise e pela síntese, pela observação e pela comparação, pela aplicação da inteligência e também pela descida ao subconsciente, pelo isolamento e pelo silêncio, pela marcha ou pela imobilidade. Meditar é entrar em si. É deixar que o trabalho misterioso da natureza e da graça, em nós, se faça por si, como que independente de nossa vontade e de nossa atenção. Eis porque a meditação exige certas condições exteriores, de silêncio e imobilidade (por vêzes de uma mobilidade regular, como andar de lá para cá, no memso local e de preferência na penumbra, ou deixar que a paisagem passe por nossa imobilidade, como num veículo em velocidade), e certas condições interiores de paz e de despreocupação. A preocupação é a inimiga da meditação e a obsessão é a preocupação doentia, transformada em idéia fixa. Tudo isso pode ser vencido pela meditação, em estado transcendental, como a que os iogues procuram realizar, mas normalmente perturba e impede a meditação como norma comum de vida. Pois o defeito do ioguismo é transformar a meditação num estado extraordinário ou num malabarismo, que pode chegar a grandes alturas, mas não corresponde ao homem normal. A meditação, que a vida interior supõe -- como centro de tôdas as suas dimensões, pois dela deriva diretamente aquêle equilíbrio, a que nos referimos preliminarmente -- essa meditação é a que cada um de nós, simplesmente, cotidianamente,

Page 82: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

normalmente, pode e deve aplicar a todos os seus atos e pensamentos, até durante a agitação ou o trabalho, como centro de gravidade de sua vida interior. Como essa vida interior, já o vimos, é o centro de gravidade de tôda a vida exteriorizada. Há ainda uma terceira medida de densidade que a completa: a densidade moral. Não basta parar. Não basta meditar. É preciso avaliar. A densidade moral é a aplicação de medidas de valor a cada expressão íntima de nossa vida. Os filósofos chamam de sindérese a essa sensibilidade aos valores morais. E Santo Tomás a compara à sutileza e ao ardor de uma chama. É a centelha, diz êle, que escapa à intuição dos anjos e com ela ilumina a inteligência e a faz ver e sentir os valores supremos, de ordem moral e metafísica, que a razão simples, não iluminada, não percebe. Essa densidade moral é essa sindérese, que dá à vida interior uma energia especial e aprecia cada movimento de nossa vida à luz de uma responsabilidade total (com o passado e com o futuro) e, sobretudo, no sentido da quarta direção, que os completa. Devemos, pois, procurar sempre viver em profundidade. Reduzir a nossa pressa, para que cada coisa adquira e revele o seu pêso próprio. Meditar intensamente, a cada passo de maior responsabilidade, de modo a que cada coisa aproveite da riqueza de tôdas as outras coisas, cada ato e cada pensamento, da experiência e do calor de todos os outros pensamentos e atos. E finalmente pesar tudo isso, na balança dos valores morais, cujas cifras são por vêzes um mistério e uma contradição para a prudência da carne e para as medidas do mundo, de modo a viver em profundidade não só física e intelectual, mas espiritual. Só essa vida em profundidade, física, intelectual e moral, pode dar-nos o clima interior indispensável para sofrer sem desesperar e também suportar a boa fortuna

Page 83: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

sem se corromper, pois é tão difícil ser infeliz como ser feliz, sorrir como chorar.

Page 84: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

C a p . 2 1 . º

A ORAÇÃO IMPLÍCITA

A quarta dimensão de nosso mundo interior, finalmente, é a que nos eleva a Deus. É a oração. Mais do que uma dimensão em sua transcendência, a fixação do seu destino final. Sendo o nosso caminho para Deus, é a oração a medida de todo o nosso mundo interior. E por isso mesmo podemos nela distinguir o momento implícito e o momento explícito. A oração implícita é o espírito com que vivemos, em todos os sentidos, tanto em nossa vida interior, em qualquer de suas dimensões, como em nossa vida operativa. Tudo o que sentimos, tudo o que pensamos, tudo o que fazemos, deve ser sentido, pensado e feito em espírito de oração. Tudo o que é sentido, pensado ou feito com perfeição é uma prece, é um meio implícito de união com Deus. E só nos unimos a Deus pela oração. Como esta se encontra implícita em tudo o que realiza a sua finalidade. Todo trabalho bem feito é uma oração. Todo pensamento profundo é uma oração. Tôda sensibilidade aguda e bem ordenada é uma oração. Podemos assim viver a nossa vida interior em sua plenitude -- que é o contato mais íntimo com Deus, desde que vejamos a Deus em tudo o que é bem sentido, bem pensado e bem feito. Podemos assim chegar a uma convivência perene com Deus e viver interiormente no meio do mais penoso dos trabalhos, da mais ruidosa das agitações, da mais perplexa das contradições. E ter sempre o coração em paz e a alegria na alma, qualquer que seja o pêso da vida e a própria aridez do nosso deserto interior. Pois não é necessário sentir para rezar. Basta viver, viver sempre em união, consciente ou inconsciente, explícita ou implícita com o Pai. Essa

Page 85: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

fixação interior é que vence todos os tumultos e tôdas as areias do nosso mar ou do nosso Saara interior. Há uma forma ainda mais perfeita da oração implícita, que é: o sofrimento. Se, normalmente, podemos viver em oração, isto é, na plenitude de nossa vida interior, desde que vivamos os nossos meios em perfeita adequação com os nossos fins, -- podemos, pelo sofrimento, que é uma anomalia perturbadora, viver ainda mais profundamente em união com Deus. O sofrimento é uma anomalia, é uma perturbação no funcionamento de nossa vida física ou moral. Tanto o sofrimento físico como o sofrimento moral constituem a mais perigosa das tentações: a tentação do desespêro. O sofrimento é uma interrupção entre os meios e os fins. É uma descontinuidade. É uma desconformidade. E por isso mesmo é um convite a perdermos a noção do sentido da vida.E, com isso, a nos desligarmos de Deus, como de tudo que constitui a ordem do universo, por conseguinte, a nossa própria ordenação, orgânica ou psíquica. O sofrimento é uma alienação de nós mesmos. É o outro que nos conquista, que nos torna estranho a nós mesmos. Que nos separa do nosso próprio eu. Daí a facilidade com que a dor nos leva à loucura e a essa ante-câmara da loucura, que é o desespêro. Eis porque a vitória sôbre o sofrimento é o caminho mais perfeito da oração implícita. Se conseguirmos vencer a tentação do desespêro, se conseguimos vencer a tentação do acaso, se conseguimos superar encontrar um sentido para o sofrimento, teremos então alcançado um plano superior de oração, a oração da vitória, da conquista, da superação. E o próprio sofrimento, então, se converte em oração e torna-se um meio de subir, de aperfeiçoar-se, de se parecer mais com o próprio Cristo, não só a imagem de Deus, mas o próprio Deus na terra e cuja vida só adquiriu sentido completo pela Paixão e Morte, isto é, pelo

Page 86: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

sofrimento. Transfigurar o sofrimento, encontrar nessa anomalia, nessa diminuição da nossa natureza física ou moral, um sentido de elevação, de transfiguração, é uma forma ainda mais perfeita de rezar, do que a oração implícita da felicidade terrena, do trabalho cotidiano, da monotonia da vida, vivida em união com a vida obscura de Nazaré, onde Deus se preparava em silêncio e na oração, para o sofrimento e para a glória. Pois é a Ressurreição que dá sentido à Cruz, é o repouso que dá sentido ao trabalho, é a Paz que dá sentido às agonias da vida. Quando vivemos assim os nossos sofrimentos, é que alcançamos já uma vida de oração mais perfeita e nos aproximamos da fonte de tôda alegria, que dá sentido à própria privação da alegria, da saúde, do confôrto, da justiça na terra, de companhia dos que nos são mais queridos. Tudo isso é fácil de dizer. Mas é terrível de viver. Merece pois, um perdão muito grande todo aquêle que não consegue chegar a êsse plano de oração, pois só as virtudes heróicas conseguem alcançar a essa perfeição, que São Francisco de Assis traduziu, tão belamente, na parábola da Perfeita Alegria. Já é muito viver a oração implícita em nossa vida normal e cotidiana.

Page 87: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

C a p . 2 2 . º

A ORAÇÃO EXPLÍCITA A oração implícita é a base da oração explícita. É preciso viver, em espírito de oração, o máximo das operações de nossa vida, para podermos fazer da oração consciente não só a cúpula, mas o fundamento e a estrutura de tôda a nossa vida, interior e exterior. Quando a oração explícita e consciente não assenta nessa base preliminar e fundamental da oração implícita e subconsciente, caímos em pleno formalismo. Rezar não é pronunciar certas fórmulas. Essas fórmulas são necessárias, são mesmo essenciais, mas como a Regra é essencial à perfeição de uma vida monástica. A regra pela regra não vale nada. Como a fórmula pela fórmula não tem sentido algum. A Regra só se torna fecunda e fundamental, para a vida de perfeição monástica, quando vivida segundo o seu espírito, como um meio e não como um fim em si. Assim se dá com a vida de oração, com essa quarta dimensão do nosso mundo interior, que fornece a chave do segrêdo de nossa vida total. Se excluímos a oração explícita, caímos no falso misticismo, no subjetivismo autocêntrico, que faz da oração uma ginástica mental ou uma espécie de adoração de si mesmo, num panteísmo que representa o cúmulo do orgulho, a negação de Deus e a falsa deificação do homem. A oração explícita é a conclusão, natural e sobrenatural, da oração implícita. Viver em Deus os nossos atos cotidianos e, mais do que êles, os nossos sofrimentos, físicos e morais, é a preparação para a nossa vida individual como em nossa vida coletiva. Pois são êsses os dois momentos básicos ou antes as duas expansões substânciais da nossa vida coletiva.

Page 88: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

Pois são êsses os dois momentos básicos ou antes as duas expansões substanciais da nossa vida de oração explícita: a oração individual e a oração coletiva. A oração individual é a entrega expressa e explícita de tôda a nossa vida a Deus, como quem restitui a seu dono aquilo de que é depositário. Não somos donos de nossas vidas. Somos apenas guardiães. Temos de dar contas continuadas, cotidianas, minuciosas, ao seu verdadeiro dono. Temos de contar a Deus o que estamos fazendo dêsse imenso tesouro que Êle confiou a cada um de nós, como imagem que somos do próprio Criador. A responsabilidade de cada criatura humana não é apenas a do valor de uma alma, de sua alma, de um pequenino fragmento da Criação. A responsabilidade de cada alma é de tôdas as almas, de tôda a criação. Cada alma que se perde, é o mundo todo das almas que se sacrifica. Daí a comunhão dos méritos, como a comunhão dos pecados. Merecemos por todos e pecamos por todos. A responsabilidade de cada um é total. A oração individual, portanto, não é apenas um colóquio secreto da alma com Deus. É isso e mais alguma coisa. É a confidência, é a intimidade, é a confiança, é o repouso, o pedido, a gratidão. É a colocação de nossa maior intimidade nas mãos do nosso Amigo, a revelação explícita daquilo que Êle já conhece mas que deseja ouvir de novo de nosso próprio coração, no silêncio augusto da prostação pessoal do homem no seio do seu Criador. E é ainda mais do que isso, porque é a entrega de tôda a espécie humana representada, em cada caso, por uma alma individual, nas mãos de Quem a criou e a escolheu para a incarnação do seu próprio Filho. De modo que a oração secreta está intimamente ligada à oração pública, a oração individual se completa naturalmente na oração geral, na prece coletiva, em união com os outros fiéis, com os verdadeiros irmãos em carne e

Page 89: Meditação sobre o Mundo Interior - Alceu Amoroso Lima

em espírito. E é por isso que a oração individual explícita, fruto da preparação preliminar da oração implícita, normal ou excepcional, se realiza plenamente na Missa, na forma mais perfeita de oração, que é a participação dos orantes, uns nos outros e de todos em comunidade, no próprio Cristo, na renovação incruenta do Seu sacrifício único e cruento. A Missa é, pois, a plenitude da vida interior. Nela as exterioridades são meras aparências. Os sinais visíveis, na côr, na mesa, na fumaça, nos gestos, nas palavras rituais, no canto, no Pão e no Vinho, são apenas símbolos da realidade invisível -- na qual se transformam pelo mistério da Transubstanciação --, da verdadeira realidade do Sacrifício do Verbo, que tem, ao mesmo tempo, um sentido totalmente individual, para cada participante, e um sentido universal, de renovação do mistério singular da Incarnação, que vale pela espécie humana, toda ela. A oração coletiva, por conseguinte, especialmente no Côro e na Missa, é a plenitude da vida interior de cada fiel, de cada comungante, de cada participante. Ali a vida exterior se confunde com a vida interior. Desaparece tôda separação. Dentro e fora se interpenetram nessa transfiguração em que vida interior e vida exterior se tornam uma só vida, a Vida do homem oferecida a Deus pelo Cristo, o corpo e sangue de Cristo recebidos pela humanidade na pessoa de cada homem, de cada fiel que leva ao altar a oblação de sua vida interior, como de sua vida exterior, para receber a Vida, pela comunhão, e levá-la ao mundo, ao próximo e a si mesmo, nessa rotação perene de Deus ao homem e do homem a Deus, que só cessará na plenitude dos tempos e será substuída então pela Visão na Glória ou pela perpétua privação do Amor.