Meditações Metafisicas

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Autor: Antônio Rogério da Silva Análise de Texto: DESCARTES, R. Meditações, I, II, III e VI [Ampliado] Talvez a posição filosófica mais radicalmente oposta à tentativa do senso comum em construir um conhecimento, seja aquela tomada pelo francês René Descartes (1596-1650). Além de ter sido pioneiro da geometria analítica, o autor do Discurso sobre o Método foi a expressão máxima do racionalismo de sua época. Descartes partiu da dúvida e não da certeza, como em geral os filósofos anteriores e a maioria das pessoas faziam. Sua dúvida era tida por metódica, pois punha em questão todas as supostas certezas, tanto do conhecimento sensível, quanto do intelectual, sendo ponto de partida para o método cartesiano de investigação científica. Famoso em toda Europa, recebido na corte da rainha Cristina (1626-1689), da Suécia, Descartes acreditava que um raciocínio bem conduzido bastava para chegar ao conhecimento perfeito. Ao duvidar de tudo, ele verifica que duvidando pensa e que pensando existe. A própria certeza sobre a existência depende do pensamento. Sua filosofia torna-se, então, racionalista. O processo de raciocínio empregado por Descartes era basicamente a dedução. Isto é, consistia em partir de conceitos gerais até chegar às noções particulares, usando o princípio racionalista e o método lógico dedutivo do qual quatro princípios seriam suficientes: jamais aceitar como verdadeira coisa alguma que não se conhecesse como evidente, acima de qualquer dúvida; dividir cada dificuldade a

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Autor: Antônio Rogério da Silva

Análise de Texto: DESCARTES, R. Meditações, I, II, III e VI [Ampliado]

Talvez a posição filosófica mais radicalmente oposta à tentativa do senso comum em construir um conhecimento, seja aquela tomada pelo francês René Descartes (1596-1650). Além de ter sido pioneiro da geometria analítica, o autor do Discurso sobre o Método foi a expressão máxima do racionalismo de sua época. Descartes partiu da dúvida e não da certeza, como em geral os filósofos anteriores e a maioria das pessoas faziam. Sua dúvida era tida por metódica, pois punha em questão todas as supostas certezas, tanto do conhecimento sensível, quanto do intelectual, sendo ponto de partida para o método cartesiano de investigação científica.

Famoso em toda Europa, recebido na corte da rainha Cristina (1626-1689), da Suécia, Descartes acreditava que um raciocínio bem conduzido bastava para chegar ao conhecimento perfeito. Ao duvidar de tudo, ele verifica que duvidando pensa e que pensando existe. A própria certeza sobre a existência depende do pensamento. Sua filosofia torna-se, então, racionalista.

O processo de raciocínio empregado por Descartes era basicamente a dedução. Isto é, consistia em partir de conceitos gerais até chegar às noções particulares, usando o princípio racionalista e o método lógico dedutivo do qual quatro princípios seriam suficientes: jamais aceitar como verdadeira coisa alguma que não se conhecesse como evidente, acima de qualquer dúvida; dividir cada dificuldade a ser examinada em tantas partes quanto possível e necessário, a fim de resolvê-las isoladamente; ordenar os pensamentos começando pelos assuntos mais simples até o conhecimento dos mais complexos, na hierarquia em que se seguem; e por último, fazer enumerações tão exatas quanto possível e revê-las para certificar a conclusão total do problema (1).

As Meditações Cartesianas

São seis as famosas Meditações (1641) elaboradas por Descartes. Sua motivação principal era tentar responder as duas questões fundamentais que não permitiam ao senso comum e a filosofia dobrarem os céticos: provar a existência de Deus e a imortalidade da alma. Para resolver essas dificuldades, o método cartesiano, desenvolvido para ser aplicado às ciências naturais, também poderia ser usado na investigação desses assuntos. Na demonstração adotada, ultrapassa-se a certeza e evidência da Geometria e liberta-se dos

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preconceitos provocados pelos sentidos, dando provas da existência de Deus e da diferença entre corpo e alma, de modo exato e indubitável.

Na primeira meditação, a dúvida geral liberta o pensamento dos pré-julgamentos do senso comum e prepara o caminho para o espírito desligar-se dos sentidos, impedindo que haja qualquer dúvida após o estabelecimento da verdade. Na segunda, o espírito descobre que não pode duvidar de si mesmo, por mais radical que seja a dúvida. Aqui, são expostos os conceitos dos quais se tirarão as conclusões que serão verificadas até a quarta meditação. Enquanto isso, cumpre distinguir parte da natureza corpórea; constatar que o espírito é diferente do corpo e que a alma é indivisível. Tais pressuposições, entretanto, dependem de um explicação física que Descartes realizou em outra obra: "Traité du Monde et de la Lumiére (Tratado do Mundo e da Luz), que só foi publicado depois de sua morte, por medo de uma condenação, como a sofrida por Galileu Galilei (1564-1691). A natureza substancial, no entanto, depende de um Deus que garanta sua existência e permanência. O corpo é composto por acidentes, mas a alma, ao contrário, é pura substância, não sendo afetada pelos desejos(2).

Na terceira meditação, Deus é apontado como o autor da ideia de causa perfeita existente em nós, sendo a causa da própria ideia de Deus. A quarta meditação põe claramente que as coisas concebidas pelo método são verdadeiras e explica de onde vem a razão do erro ou falsidade: a fraqueza da constituição finita do homem e o desconhecimento de uma verdade clara e distinta. Na quinta, novas razões são fornecidas para existência de Deus, enquanto se explica a natureza corpórea, provando também que a geometria depende do conhecimento de Deus. Por fim, a sexta meditação distingue a ação do entendimento da ação da imaginação, além de dar-se as provas definitivas da existência das coisas materiais, que não são tão fortes quanto o conhecimento de Deus e da nossa alma.

As Três Primeiras Meditações

O exame das opiniões do senso comum mostra que, quando se tem a condição de reconhecer a falsidade daquilo que se tinha por verdadeiro, é que se deve implantar a incerteza e a dúvida. Para derrubar uma opinião equivocada, deve-se atacar o fundamento do que não é de todo certo, destruindo pela base os erros daí derivados. Com isso, Descartes pretendia que se questionasse tudo que, ao menos uma vez, tenha causado enganos.

De início, pode-se duvidar dos conhecimentos vindos dos sentidos, que frequentemente são enganadores. Porém, nem todos erros provêm dos sentidos, além destes, podemos nos equivocar das coisas pouco sensíveis ou distantes, sendo fonte de erro também a loucura e o sonho que se confunde com o estado de vigília. Esse tipo de dúvida não pode, todavia, atingir a figura

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do objeto, sua quantidade, o espaço e o tempo ocupados. Sob esse aspecto, os sentidos não podem errar. Não podemos duvidar dos sonhos e da imaginação como duvidamos dos sentidos. Além disso, a verdade de ciências, tais como a geometria, só é posta em xeque na suposição da existência de um deus enganador (ou gênio maligno), que faria o sujeito acreditar em tais proposições como se fossem verdadeiras.

Então, é preciso suspender o juízo de tudo que tinha por certo e adotar o ceticismo para combater o hábito de julgar as coisas antecipadamente, sem razões bem fundadas. A possibilidade de um gênio maligno - no lugar de um Deus bom - obriga a tomar-se como duvidoso todo tipo de juízo. Mas para não ser enganado novamente, se deve estar atento à dúvida radical que evita o retorno ao juízos equivocados.

Tais são as meditações metafísicas iniciais feitas por Descartes, sobre as coisas que se podem por em dúvida. Na segunda meditação, logo de início, procura-se algo que seja certo e firme, como um ponto de apoio arquimediano, aonde se funde com firmeza a verdade. Por causa da dúvida radical, nada resta senão ficção. O fato de se imaginar um gênio maligno, capaz de me iludir o tempo todo, leva, no entanto, a uma certeza: que o eu exista, sem dúvida, sempre que o eu pronuncie a expressão "eu sou, eu existo" (3). O próprio gênio maligno é a garantia momentânea de que algo exista para ser enganado: o próprio eu, embora, não conheça exatamente qual "eu" seja.

O conteúdo dessa novo pensamento, não pode ser expresso por intermédio de concepções que não separem o espírito do corpo. Todo conteúdo concreto de um eu só levaria a indagações intermináveis sobre sua condição última, por causa da impossibilidade imediata de atribuir uma natureza corporal ao eu. O pensamento é o único atributo da alma que não pode ser separado de mim. Isso estabelece a existência de um ser pensante, ou seja, um espírito, um entendimento ou razão que até agora era desconhecido. Pois, a natureza do eu exige que seja concebido a partir do que foi aceito como certo: o puro pensar. O eu está, dessa forma, separando corpo e outras faculdades que não o pensamento.

Além do mais, sou o mesmo que sente e imagina tudo que os sentidos e a imaginação dizem que sinto ou imagino, logo, Descartes pôde dizer que tudo isso nada seria se não fosse pensado. Portanto, já sei que existe um ser pensante, que também pensa e imagina. Apesar dessas certezas, nada impede que ainda se reflita sobre as coisas corpóreas como de melhor entendimento que as da minha própria natureza pensante. Essa dúvida sobre a concepção do eu considera os objetos externos mais fáceis de serem compreendidos. Contra isso, o exame detalhado do objeto físico mostra que todas as características do objetos não são dadas pelos sentidos, nem pela imaginação. Uma contra-prova empírica, dada pelo exemplo da cera - objeto que muda suas características

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segundo a temperatura -, revela que o que permanece do objeto é sua ideia e não sua imagem.

Só o espírito é capaz de conhecer o imutável nos corpos mutáveis. Portanto, o conhecimento de algo que existe depende de um eu pensante: o conhecimento do espírito não depende do corpo, enquanto o conhecimento do corpo depende do espírito. Logo, Descartes termina a segunda meditação concluindo que, ao contrário do que pensa o senso comum, é mais fácil conhecer o espírito do que o corpo.

Do pouco que sabe de si mesmo, Descartes sabe que é uma coisa que pensa, duvida, afirma, nega, ama, odeia, deseja, imagina e sente verdadeiramente. A partir disso, na terceira meditação, ele pretende estabelecer uma regra geral para se conhecer outras coisas. Das que existem fora do corpo, o engano surgia quando se pensava que elas podiam ser conhecidas por si mesma, sem um eu. A única coisa da qual nada poderia iludir é que não exista um eu quando este pensa que existe, com ou sem gênio maligno. Para saber mais alguma outra, tem-se de saber primeiro se há um Deus e se ele pode ou não enganar acerca da existência dos objetos.

De imediato, sabe-se que as ideias são pensamentos que formam imagens de coisas, enquanto a ação de sujeitá-las ao espírito ora é vontade, afecção ou juízos. As ideias não são falsas quando são ideias, assim como as afecções ou as vontades. Mas os juízos erram ao relacionar as ideias com algo exterior. Algumas ideias são inatas, outras geradas pela mente e ainda por objetos de fora, por isso é preciso buscar a origem delas. Possivelmente, elas sejam uma inclinação natural para imprimir algo no espírito. Todavia essa inclinação natural não permite distinguir o verdadeiro do falso, como só uma luz natural poderia fazer. As ideias não podem vir de algo fora da mente, pois assim, elas dependeriam de outra coisa que não permitiria o conhecimento total do objeto, já que só o pensamento interno é possível de ser conhecido.

Certas ideias, entretanto, possuem maior perfeição do que aquelas que representam características ou acidentes. Tal grau de perfeição, numa criatura imperfeita, leva à concepção de Deus soberano, eterno, infinito, criador de tudo, que teria maior realidade objetiva - fora do sujeito - do que as coisas finitas. Uma realidade inferior deve derivar de uma superior, por um princípio de causalidade. A realidade da coisa atual depende de algo formal ou eminente que é sua causa. Mesmo a ideia de algo inferior, depende de outra superior, enquanto causa. As ideias que estão no sujeito, são imperfeitas, o sujeito sozinho não poderia fornecer a ideia cuja origem não pode ser reconhecida claramente nele mesmo. Se uma ideia desse tipo for encontrada, então se pode dizer que o sujeito não está sozinho no mundo.

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Algumas ideias são derivadas do próprio eu ou da composição de figuras que aparecem ao sujeito e que poderiam ser materialmente falsas, isto é, não procederiam de nada existente. Porém, a ideia de um Deus não poderia ser criada, sem contradição, por algo finito, a não ser que este fosse de fato infinito. Logo, sua existência deve ser postulada, pois essa ideia teria de ser colocada no ser pensante por uma substância verdadeira e infinita. A realidade da substância infinita é comprovada pela própria imperfeição do ser pensante que duvida e, portanto, carece de perfeição. Destarte, a ideia clara e distinta de Deus é inabalável e certa, sem falsidade material, pois a ideia de Deus é verdadeira. O próprio ser pensante está contido nessa ideia, participando de alguma perfeição. Essa perfeição parcial permite o conhecimento do infinito por estar contido nele.

A luz natural revela que a ideia de Deus foi posta pelo próprio Deus no ser pensante. Se não houvesse Deus, o ser pensante não poderia ser o autor de si mesmo, pois, se assim fosse, seria o próprio Deus. Pois, seria absurdo que o ser pensante não se criasse completo e perfeito. A continuidade das coisas é garantida por Deus. A existência desta ideia independe do ser pensante. O corpo pode ter sua causa em outra causa material, mas o ser pensante só tem sua causa atribuída a Deus. O ser pensante adquiriu esta ideia no momento em que foi gerado e ela é a razão para um ser imperfeito supor a existência de outro perfeito. Por isso, Deus não erraria, dando a entender que ele, como o ser pensante, existam de fato. Eis, então, como, de um modo totalmente diferente dos procedimentos do senso comum, Descartes partindo da dúvida metódica chega à concepção de alma e de um Deus existente e perfeito.

A Sexta Meditação

Depois de duvidar de tudo que fosse enganoso, estabelecer a primeira certeza em uma coisa pensante e a existência de deus, as quarta e quinta meditações procuram resolver os problemas sobre verdade e falsidade das coisas e a essência ontológica de um ser perfeito divino garantidor de tudo que fosse verdadeiro. Para isentar deus de erro, a quarta meditação fixa a clareza e distinção como razões suficientes no sentido de separar as coisas verdadeiras das falsas, enquanto a quinta, através da constatação da natureza imutável e correta da matemática, tenta provar ontologicamente que um deus existe como principal fonte dessas certezas.

Uma vez constatada essas definições, na sexta meditação, Descartes trata de enfrentar o problema da realidade material. As coisas materiais, vistas sob a ótica da geometria, aparecem de forma clara e distinta. O que as tornam passíveis de existirem realmente. A clareza e distinção de uma ideia definem a possibilidade ou não de uma coisa. Quando tais requisitos não são satisfeitos, o juízo deve ser suspenso. Pela imaginação, é permitido afirmar a probabilidade da existência de algo [4].

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A imaginação consegue manifestar a presença de objetos simples ao espírito, enquanto a pura intelecção possibilita conceber coisas mais complexas. Um pentágono, por exemplo, pode ser concebido e ter seus lados e área imaginados claramente. Já um quiliógono só é pensado conceitualmente. Assim, algo, além do espírito, pode ser presumido previamente, quando se une imaginação e intelecção, como faculdades mentais [5].

Uma segunda presunção decorre disso. A imaginação, para existir, depende de uma coisa fora do espírito. A pura intelecção, ao contrário, não depende de mais nada, pois é a essência do ser pensante. No campo das conjecturas, a imaginação permite sustentar a probabilidade de algum corpo existir [6].

Os sentidos, por sua vez, fornecem à imaginação os elementos externos à concepção para formação das coisas corpóreas. Uma investigação mais atenta cabe aqui para esclarecer como essa associação dos sentidos corporais com a mente é efetivada. Primeiro, a união entre corpo e mente gera as sensações de prazer e dor, conforme a comodidade dos apetites em relação aos outros corpos [7].

Essa relação faz crer na existência de outros corpos dos quais participam tais ideias. Estas sensações seriam mais nítidas do que qualquer simulação. As ideias sensíveis formadas pelo espírito não são tão expressivas quanto as dos sentidos. O que dava a impressão de que todas as ideias partiriam dos sentidos, como dirá John Locke (1632 - 1704), anos depois. O próprio corpo parece ser a única fonte dos sentimentos e apetites próprios do indivíduo [8].

A própria natureza ensina as relações aparentemente inexplicáveis entre corpos, prazeres e sensações. Toda formulação do juízo sobre isso, então, parece ser ensinada pela experiência natural. Contudo, como o raciocínio da primeira meditação advertira, não se pode confiar sempre nos dados dos sentidos, pois, as vezes, até mesmo pessoas amputadas sentem dores em suas partes mutiladas. Desde o início, se desconfiou dos estados de vigília que são passíveis de serem representados em sonho, bem como de tudo que, embora parecendo verdadeiro, possa ter sido engendrado de modo ilusório. Mesmo as coisas aprendidas sem intenção do agente podem ter sido originadas internamente pela ação de alguma faculdade ignorada [9].

Apesar dos sentidos estarem sob suspeita, nem tudo do que é ensinado pela percepção deve ser duvidoso. A distinção clara das coisas concebidas é executada por deus, por este saber que o sujeito é separado de todas as outras coisas que não o pensamento. Daí se conclui sua natureza de ser pensante, sem extensão. No entanto, por ser externo, o corpo de um sujeito deve existir distinto do seu pensamento. As faculdades da imaginação e do sentimento são dependentes da substância inteligível [10].

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Outras categorias ou modos substanciais dependem de alguma extensão, mas não da inteligência. A existência de sentimentos revela uma faculdade passível que seria inútil se não houvesse uma outra ativa para formação e produção de ideias. Ao lado da alma, o corpo é a substância portadora dessa faculdade ativa e passível da sensibilidade. Deus não é enganador, mas não envia diretamente as ideias dos corpos materiais, que são apresentadas por meio das coisas corpóreas. Daí seu aspecto enganoso que, não obstante, é prova de sua existência [11].

Assim, do mesmo modo que existe essa faculdade capaz de equívoco, também existe outra apta a corrigi-la. Nos ensinamentos de uma natureza divina (criada por Deus), sempre há algo de verdadeiro, posto que a natureza em seu conjunto deve ser entendida como o próprio deus (um panteísmo cartesiano). Dentre as verdades aprendidas, está a união de um corpo ao ser pensante. O ser pensante de fato encontra-se misturado a seu corpo, formando um único todo. Os sentimentos confusos de dor e prazer decorrem dessa mistura entre corpo e espírito. Por conseguinte, além do próprio corpo, existiriam outros que geram as mais diversas percepções dos sentidos. De tal maneira, que há uma interação entre os outros corpos e o do sujeito. Nesta interação, muitas coisas ensinadas contêm falsidades. Por isso, deve ser definido com precisão o significado do que a natureza ensina. Todo o conhecimento verdadeiro da física depende de um exame cuidadoso que é um atributo exclusivo do espírito, o único capaz de conhecer a verdade. A natureza apenas informa os indícios sensíveis que precisam ser investigados [12].

Com frequência, essa ordem de razões é confundida e as meras informações biológicas são consideradas como regras certas. Os erros de juízo que persistem do ensinamento da natureza ocorrem por causa da incompletude do conhecimento do sujeito sobre todas as coisas. A natureza finita do ser humano não permite que se obtenha um conhecimento perfeito das coisas, apenas limitado. A natureza, entretanto, pode induzir qualquer um ao erro. O corpo humano é uma máquina montada por deus que a dotou de espírito, mas ainda que fosse desprovido de alma seu mero funcionamento mecânico não explicaria suas falhas. É preciso saber porque deus, sendo bom, não impediu que a natureza humana fosse enganadora [13].

Na natureza, tudo é divisível, enquanto o espírito sempre permanece uno. As outras faculdades mentais não se encontram separadas da alma, que funciona por inteiro quando sente, pensa e imagina. Já as coisas materiais podem ser separadas facilmente no pensamento. Através da glândula pineal, por outro lado, o espírito receberia as impressões sensoriais, segundo se acreditava no tempo de Descartes. Sendo assim, todo sistema nervoso estaria encarregado de levar os sinais sensoriais de todas as partes do corpo para o centro nervoso localizado no cérebro. Devido a suas limitações, as ações

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otimizadas pela glândula pineal são geradas, conforme as melhores escolhas determinadas por deus para a sobrevivência do organismo. As dores mais nocivas e prejudiciais, por exemplo, são tratadas primeiro. De acordo com as instruções divinas, as organizações propostas para o indivíduo são as melhores possíveis para sua conservação. Não obstante, os mecanismos, como o da sede, que provocam o movimento do espírito, podem se enganar a respeito de suas necessidades, tendo sede quando está bem hidratado. Apesar da bondade divina, tais movimentos podem ser falsos [14].

Uma intervenção neste processo do sistema nervoso pode provocar equívocos, como no caso da sede desnecessária, já antecipado. A memória, aliada ao entendimento, ajuda a evitar tais erros. Destarte, a dúvida hiperbólica já pode ser afastada, por conta da razão reta. A clareza e distinção permitem ligar os eventos passados aos do presente vivido, se nada houver de impedimento, pois deus não é enganador. Sem um exame apurado, a vida humana está sujeita a falhas por conta de sua acrasia [15].

Em suas Meditações, Descartes procurou desenrolar na seguinte ordem, as doze razões fundamentais que levariam à prova da existência de deus e da separação da alma e do corpo:

1. eu existo;2. ser pensante;3. a mente é mais fácil de se conhecer que o corpo;4. deus existe;5. deus é perfeito;6. constatação do falibilismo;7. há uma vontade livre;8. objetividade das ideias claras e distintas;9. prova ontológica de deus por exigência de suas propriedades essenciais;10.alma distinta do corpo;11.coisas corporais existem;12.união factual do corpo com a alma.

Sem embargo, o esforço racional e seu relativo sucesso em constituir uma filosofia moderna não impediram a crítica subsequente contra o dualismo entre mente e corpo e a sua insatisfatória prova ontológica de deus. Porém, todo um novo movimento iluminista foi fundado em toda Europa, por conta de um novo racionalismo estabelecido por Descartes.

Resumo e Explicação das duas primeiras Meditações Metafísicas de Descartes

By Roberto Kahlmeyer-Mertens | 07/08/2007

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4 Comentários

Do corpo em face da dúvida: explicação das duas primeirasMeditações MetafísicasRoberto S. Kahlmeyer-Mertens [1]

Resumo: O artigo pretende uma apresentação didática das duas primeiras Meditações Metafísicas de René Descartes. Enfoca nos argumentos do filósofo a questão do corpo, considerando a especificidade de sua temática no interior dessa obra. Utiliza-se do comentário de alguns especialistas do filósofo em apreço.Palavras-chave: Filosofia Moderna, Meditações de Filosofia Primeira, Descartes, Corpo.

Que pode haver de mais surpreendente do que assistir ao Proteu interior passar do rigor

ao delírio, procurar na prece a energia de perseverar no caminho das construções

racionais, pedir às pessoas divinas que o sustenham na mais orgulhosa das empresas, e

pretender finalmente que sonhos completamente obscuros lhe sirvam de testemunhas em

favor do seu sistema de idéias claras.

VALERY, Descartes

O presente texto é um estudo interpretativo das duas primeiras Meditações metafísicas de

René Descartes. Tem por propósito apresentar, de maneira resumida, aqueles que seriam

alguns dos principais argumentos da obra dando ênfase à questão do corpo, tendo em

vista a dúvida cartesiana e a sua importância nas Meditações. As idéias consignadas aqui

não serão tratadas como num ensaio; nem como rigorosa reconstrução arquitetônica já

elaborada por diversos autores que explicaram o texto segundo “a ordem de suas razões”.

Referindo-se a esta segunda postura, seriam referências incontestáveis entre a

comunidade cartesiana os nomes de F. Alquié, E. Gilson, M. Gueròult entre outros

(LANDIN FILHO, 1992). À luz destes, não pretendemos uma interpretação exaustiva desta

obra; não temos o objetivo de assumir qualquer das duas posições acima. O texto

pretende-se um roteiro de leitura, capaz de apresentar, de modo geral, o trajeto de

Descartes nas duas primeiras Meditações, além do modo com que a temática do corpo se

apresenta nesta parte do texto. Esta opção justifica-se por ser um tema de pesquisa

recorrente, ocupando também a pauta de alguns dos especialistas no autor, presentes

amiúde neste trabalho.

I

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A filosofia, para Descartes, é o estudo da sabedoria, uma ciência que abrange tudo quanto

o homem pode saber. Contudo, para que esse conhecimento seja assim, deve ser

deduzido de causas primeiras.Para Descartes, a investigação sobre os princípios do

conhecimento é a primeira parte da verdadeira metafísica, esta que tem por desígnio

pesquisar em que limites podem funcionar o intelecto humano e descobrir no interior desse

limite se é possível a obtenção de certezas. Assim, o filósofo tem como objetivo construir

um pensamento que seja capaz de conhecer as coisas em sua verdade, pretendendo

através de seus escritos de metafísica uma filosofia universal, capaz de fornecer

conhecimentos seguros de todas as coisas. Para tanto, esse pensamento deve estar

alicerçado em um solo inabalável, beneficiado por “homens de bem”, que não se deixaram

deformar pelos prejuízos da Escola; pelos homens que não conduzem seu pensamento

exclusivamente através da lógica, mas que são capazes de raciocinar sobre coisas fáceis

e simples e, deste modo, bem conduzir sua razão para descobrir verdades até então

ignoradas (PASCAL, 1990). Esse modo de pensar oferece a possibilidade de o homem

libertar-se das opiniões do senso comum e apossar-se dos seus próprios juízos, através

de um processo rigorosamente regrado.

O parágrafo acima esboça o programa metódico do pensamento cartesiano posto em obra

com suasMeditationes de prima philosophia, cujos motivos e intenções já se mostram

declarados desde de sua edição em 1641, como no seguinte documento:Faz alguns anos já, dei-me conta de que admitira desde a infância muitas coisas falsas por verdadeiras e de quão duvidoso era o que depois sobre elas construí. Era preciso, portanto, que, uma vez na vida, fossem postas abaixo todas as coisas, todas as opiniões em que até então confiara, recomeçando dos primeiros fundamentos, se desejasse estabelecer em algum momento algo firme e permanente nas ciências. Mas, como tal se me afigurasse uma vasta tarefa, esperava alcançar uma idade que fosse bastante madura, que nenhuma outra se lhe seguisse mais apta a executá-la. Por isso, adiei por tanto tempo que, de agora em diante, seria culpado, se consumisse em deliberar o tempo que me resta para agir. É, portanto, em boa hora que, hoje, a mente desligada de todas as preocupações, na serenidade segura deste retiro solitário, dedicar-me-ei por fim a derrubar séria e genericamente minhas antigas opiniões (DESCARTES, 2004, p. 23).

A passagem mostra aquilo que é o propósito primeiro do exercício cartesiano, a busca de

um solo seguro sobre o qual seria possível edificar todo e qualquer conhecimento

científico. Para isto, efetua-se o que o autor chama de inspeção do espírito (mentis

inspectio) sobre os conhecimentos pré-concebidos, tendo por intuito sondar sua

confiabilidade. Tal exame dispõe-se a suspender a validade de todo saber que se constrói

como mera opinião e sua pretensa legitimidade, dando crédito apenas àquilo que pudesse

se estabelecer como um saber sólido. Diante da amplitude desta tarefa, que requisitaria

uma longa verificação de todos os conhecimentos em questão; e da indisponibilidade de

tempo hábil para sua execução plena, urge a necessidade de um método que conduziria o

espírito na busca da verdade das ciências.

O caminho constituído pelo método perfaz-se a partir do exame daquilo que nos vem

mediado pelos pré-conceitos e opiniões, i. e, crenças herdadas de maneira irrefletida,

podendo conter erros que, uma vez tomados equivocamente por certas, fariam fracassar o

empreendimento da ciência, como um edifício que rui por ter suas bases minadas. Para

evitar isto, Descartes cria um recurso que será utilizado em boa parte das meditações: a

dúvida.

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Durante a Primeira Meditação, em seus §§ 1-3, Descartes apresenta aquele que é um dos

mecanismos mais importantes do seu método, o princípio da dúvida. Segundo M. Gueròult

(1968), com esta, Descartes duvida do valor de verdade dos conhecimentos, em uma

medida preventiva aos erros a que estamos sujeitos por meio de nossa apreensão

sensível. Para o autor, enganos são imediatamente oriundos da imperfeição dos sentidos,

fonte de onde provêm a maioria desses conhecimentos. Deste modo, Descartes, por

medida de segurança, não se permite assumir nenhuma pretensa certeza, nem mesmo

quanto às ciências exatas como a matemática. Utilizando esse princípio, Descartes descrê

de tudo que pode ser posto em dúvida. Tal figura apresenta-se e justifica sua utilidade já

na sinopse das Meditações, na qual encontramos as seguintes assertivas:

Expõe-se na Primeira Meditação as causas por que podemos duvidar de todas as coisas,

principalmente das materiais, ao menos enquanto os fundamentos das ciências não forem

diversos dos que temos até agora. E, mesmo que a utilidade de uma dúvida tamanha não

apareça de imediato, é ela, no entanto, muito grande por deixar-nos livres de todos os

preconceitos, por aplainar um caminho em que a mente facilmente se desprenda dos

sentidos e por fazer, enfim, que já não possamos duvidar das coisas que, em seguida se

descubram verdadeiras (DESCARTES, 2004, p. 19).

Com a dúvida, o autor pode mobilizar os argumentos que constituem sua investigação. Assim, a Primeira Meditação é inteiramente dedicada à apresentação desta dúvida, que pode ter suas características elencadas assim:

a)    metafísica: não é uma adjetivação gratuita. Aponta para a ordem das razões e ao

encadeamento com suas proposições. A dúvida em sua funcionalidade tem papel

metódico, sendo peça indispensável ao que Descartes chamou de método de análise.

Para o autor, “o método se resume em ordenar os objetivos quais devemos concentrar o

olho de nosso espírito para descobrir o verdadeiro” (DESCARTESapud COTTINGHAM,

1995). Sendo, assim, o procedimento analítico partindo dos efeitos, regredindo das idéias

complexas às simples, tornando clara e distinta a percepção das noções primeiras em

contraste com as opiniões;

b)   deliberada: a dúvida cartesiana não é espontânea. Difere, assim, da dúvida vulgar por

não a sofremos como quem vacila entre uma ou outra opção. Ela é convencionada,

produto de um ato de vontade. Assim, o autor, decididamente, se reserva o direito de

negar todo conhecimento que ofereça a menor possibilidade de incerteza, duvidando.

Afirmar que a dúvida é deliberada não significa dizer que ela é arbitrária, tampouco uma

afecção cética, pois, na dúvida, opta-se por não acatar as proposições que se nos

apresentam imediatamente, evitando qualquer juízo prévio. Destarte, a dúvida é o que

permite a liberdade do meditador não assumir o duvidoso por certo;

c)    hiperbólica: a dúvida é propositadamente exagerada. É uma hipérbole; isto quer dizer

que, ao examinar o conteúdo dos conhecimentos, ela amplia seu raio de ação, tomando o

incerto já como duvidoso e o duvidoso por falso, suspendendo, antecipadamente, sua

validade, assumindo, a partir de uma generalização, sempre por enganador aquilo que

pode enganar uma vez.

O exagero da dúvida tem seu porquê, visa a reverter a inclinação às opiniões ordinárias,

tomando o partido contrário,[2] fazendo que as inclinações que tendem para o lado do

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dogma, possam receber uma força para seu oposto, assumindo, após esta operação,

a média áurea entre estes dois pontos. É isto que Descartes ilustra na seguinte passagem:Eis porque creio não esteja agindo mal, se, entrando voluntariamente numa direção de todo contrária, passe a me enganar a mim mesmo e finja por algum tempo que essas opiniões são de todo falsas ou imaginárias, até que, finalmente, os pesos das duas ordens de preconceitos tendam, por assim dizer, a igualar-se e já nenhum mau hábito desvie meu juízo da reta percepção das coisas (DESCARTES, 2004, p. 31).

Acrescente-se, ainda o fato de a dúvida ser:

d)   sistemática: ao seguir-se intrinsecamente aos argumentos das meditações; e

e)    retrospectiva: atuando sempre em um conhecimento efetivo, isto é, já dado.

Usando dessas premissas é que Descartes aplica sua dúvida sobre aqueles que

supostamente seriam os conhecimentos e os meios pelos quais estes chegam a nós, a

saber: pelos sentidos. O autor se vale de uma imagem que se pretende imediata à

intelecção do seu leitor: “Por exemplo, que agora estou aqui, sentado junto ao fogo,

vestindo esta roupa de inverno, tendo este papel às mãos e coisas semelhantes”

(DESCARTES, 2004). Abstração que poderia ser trazida para um exemplo ainda mais

próximo de nós quando afirmamos que eu esteja aqui, em pé junto à lousa, vestindo uma

camisa listrada com um lenço no bolso enquanto dou aula, ou que nós estejamos

sentados em classe diante do livro-texto empunhando a caneta. Descartes argumenta que

duvidar disso sem um motivo seria equiparar-se a loucos; contudo, o fato de sermos

humanos, possuindo a necessidade de dormir e ao dormir sonharmos, seria motivo

suficiente para duvidarmos se o que acontece _ agora _ seria realidade ou sonho, que

poderíamos estar enganados pensando-nos dispostos quando, na realidade, apenas

representamos estas experiências em sonhos, pois, “com que freqüência, o sono noturno

não me persuadiu dessas coisas usuais, isto é, que estava aqui, vestindo esta roupa,

sentado junto ao fogo, quando estava, porém, nu, deitado entre as cobertas!”

(DESCARTES, 2004).

O “argumento do sonho”, como ficou conhecido, busca atuar sobre a veracidade dos juízos

feitos a partir dos sentidos, seus conteúdos e mesmo a fonte destes conhecimentos. Este

argumento assevera que não há nada na realidade que nos garanta que esta não seja

ilusória como num sonho ou que “vejo do modo mais manifesto que a vigília nunca pode

ser distinguida do sono por indícios certos, fico estupefato e esse mesmo estupor quase

me confirma na opinião de que estou dormindo” (DESCARTES, 2004).

Contudo, o autor argumenta que, embora não seja real o que há no sonho, o conteúdo do

sonhado possui elementos reais. Isto se confirmaria observando que, ao sonharmos,

representamos coisas tais quais estas se manifestam no real, e, por mais que fossemos

inventivos, o bastante para representarmos criaturas como sereias, centauros etc., ou se

criássemos através da imaginação algo tão extraordinário de modo a nunca termos visto

algo parecido, pelo menos as formas e as cores desta figura seriam reais, bem como sua

extensão, quantidade, duração e lugar que ocupa no espaço. Estas seriam, para o autor,

evidências de que ciências, como a física, a medicina e outras que se ocupariam dessas,

poderiam incorrer em incertezas por depender dessas noções complexas. Diferentemente,

Page 13: Meditações Metafisicas

a aritmética e a geometria, que tratariam de coisas muito simples e gerais e que, por sua

essência matemática, não estariam sujeitas à dúvida, pois, quer eu esteja acordado, quer

esteja dormindo, dois mais três formarão sempre o numero cinco e o quadrado nunca terá

mais do que quatro lados (…). Descartes (2004) assevera que isto não pode estar

submetido a alguma falsidade ou incerteza, não se submetendo a dúvida hiperbólica pelo

recurso do argumento do sonho.

Entretanto, na carta a Mesland, datada de 2 de maio de 1644, Descartes (1970) ressalta

que, nosso espírito, por mais atento que seja, sempre se distrai das razões que não fazem

conhecer as coisas de maneira apropriada. Isto seria motivo para duvidar, suspendendo

nossos juízos. Com isto, o autor pode apontar uma razão para duvidar até mesmo das

idéias matemáticas, por exemplo, dado a estas em sua exatidão ainda não serem

plenamente evidentes.

Assim, o próximo passo das Meditações é submeter mesmo às idéias matemáticas,

inicialmente resguardadas em seu poder de persuasão, também a dúvida. Destarte,

cogita-se a hipótese de Deus, sendo aquele que, entre suas perfeições, contaria com a

onipotência, me enganar a todo instante. O autor formula este argumento da seguinte

maneira:

(…) tenho uma certa velha opinião que há um Deus, que pode todas as coisas e pelo qual fui criado tal qual existo. Mas, de onde sei que ele não tenha feito que não haja de todo terra alguma, céu algum, coisa externa alguma, figura alguma, grandeza alguma, lugar algum e que não obstante eu sinta todas estas coisas e que, no entanto, todas elas não me pareçam existir diferentemente de como me aparecem agora? Mais: do mesmo modo que julgo que os outros às vezes erram acerca de coisas que presumem saber á perfeição, não estaria eu mesmo de igual maneira errando, cada vez que adiciono dois a três ou conto os lados do quadrado ou faço outra coisa que se possa imaginar ainda mais fácil? (DESCARTES, 2004, p. 29).

O argumento busca sustentar que Deus, do mesmo modo com que criou os homens, poderia enganá-los sempre, fazendo que absolutamente tudo que afirmarmos, até mesmo as idéias simples da matemática estivessem sujeitas à dúvida. Afinal, quem asseguraria ao meditador que um triângulo teria, verdadeiramente, três lados? Também esta representação poderia ser enganosa se Deus, onipotente, engana.

No argumento do Deus enganador, Descartes convoca a figura divina para endossar seu sistema de idéias. Entretanto, para o próprio filósofo, este argumento, tal como formulado, ainda não é de todo efetivo. Pois poderia receber a objeção de que a Deus, perfeito em sua essência, não se poderia atribuir o predicado de enganador, ou de embusteiro. Considerando que perfeição é atributo das coisas acabadas (isto é, das que nada falta ou falha) e que a idéia de Deus, para Descartes, não só e plena, mas a “soma de todas as perfeições, isto já seria suficientemente persuasivo para refutar, por contradição, a idéia de um Deus, que, ao enganar, falha; ou seja, que incorre na imperfeição de faltar com a verdade” (DESCARTES apud COTTINGHAM, 1995). Esse argumento pode ser expresso, em outras palavras, assim: ora, se Deus é considerado perfeito, não poderia sofrer dessa imperfeição; logo, Deus não pode ser enganador. A dúvida introduzida por Descartes na crença da existência de Deus não é cabida e sucumbe ao seu próprio caráter duvidoso. Esse argumento nos deixa transparecer que, ainda em Descartes, vige a verdade enquanto adequação (adequatio), consagrada durante toda a filosofia medieval. Prova disso é que o autor se preocupa com que aquilo que seja a realidade venha até ele tal qual

Page 14: Meditações Metafisicas

realmente é, e não como uma representação ou sob o efeito de qualquer outra interferência.Este problema argumentativo se remedeia quando o autor, desconsiderando a hipótese de Deus falhar, reformula o argumento, introduzindo outra figura: o gênio maligno.A justificativa de Descartes se constrói da seguinte maneira: Deus é onipotente, o que confirma que pode, inclusive, enganar-nos. Contudo, este também é perfeito e, como tal, não incorreria na falta de enganar-nos. Isto permite afirmar que, embora Deus possa nos enganar, ele não o quer, por ser perfeito e bom. No entanto, nos enganamos e, se Deus não nos engana talvez outra coisa o faça. Dizendo com o autor: “Suporei, portanto, que há não um Deus ótimo, fonte soberana da verdade, mas algum gênio maligno e, ao mesmo tempo, sumamente poderoso e manhoso, que põe toda a sua indústria em que me engane” (DESCARTES, 2004).

Assim, o gênio maligno é um artifício psicológico que aparece no texto no intuito de eximir Deus da hipótese de ser um embusteiro. Ao gênio maligno, sim, podemos atribuir a alcunha de enganador e, com este argumento, presenciamos a dúvida estendida a todo e qualquer juízo possível, quadro que inspira cuidados quanto ao fato de não tomarmos nada por certo e indubitável, posto que estaríamos tentados a recolher nossas opiniões pregressas, uma vez que estas se tornaram familiares devido à longa convivência que antecedeu a dúvida sistemática. Do mesmo modo, impedido de ignorar o exercício elaborado até então que teriam revelado o quão incerto é o conhecimento possível ao homem, como águas que, uma vez agitadas, trazem à tona suas impurezas agora suspensas em turbidez, apontando a necessidade do tratamento exaustivo do tema e problemas.

II

Tendo sido a dúvida universalizada com o argumento do gênio maligno, Descartes aponta

a impossibilidade do exercício, iniciado com a Primeira Meditação, ser interrompido.

Interromper neste ponto, no qual a dúvida atua de fato sobre tudo, seria incorrer na

impossibilidade de qualquer outra enunciação que se pretenda científica, ou seja, todo

conhecimento reto permaneceria embargado pela iminência desta dúvida implacável. Isto

seria motivo suficiente para dar prosseguimento às meditações que, em seu estado atual

supõe-se “(…) falsas todas as coisas que vejo: creio que nunca existiu nada do que a

memória mendaz representa; não tenho nenhum dos sentidos todos; corpo, figura,

extensão, movimento e lugar são quimeras. Que será, então, verdadeiro?” (DESCARTES,

2004).

Esta proposição resumida traz o saldo parcial do balanço da investigação cartesiana,

descrevendo que o meditador não pode asseverar nada por enquanto, sob pena de que

qualquer afirmativa seja reconduzida ao engano, dada a ação do “grande embusteiro”.

Contudo, é deste exato ponto que parte o próximo argumento.

Descartes está irresistivelmente inclinado a aceitar que é enganado, persuadido de que é

burlado a cada instante em que é. Do mesmo modo que, em cada vez que se engana,

duvida; e que, ao duvidar, é alguma coisa. Afinal, se o enganador engana, o faz com algo

ou alguém. Descartes vê nisso a evidência necessária para afirmar que, enquanto duvida

(o que já seria uma forma de pensar), esteja enganado ou não; ele próprio, efetivamente,

é. Ou seja, enquanto penso, duvido, ou, mesmo, sou enganado; “eu sou, eu existo”

(Descartes, 2004) e isto é indubitável. Esta última proposição encontra sua clássica

formulação como “penso, logo sou” anos antes no Discurso do método (1637) em

Page 15: Meditações Metafisicas

francês: “je pense donc je suis”, mais tarde nos Princípios de filosofia (1644), em

latim, “cogito ergo sum”, é apontada como a primeira e mais certa verdade até agora.

Afirmar que se é (ou existe) na medida em que se pensa (ou duvida) é para o autor uma

proposição necessariamente verdadeira, pois essa resiste às objeções céticas e à dúvida.

Uma vez que, posso duvidar de tudo, menos de que sou, e mesmo enganado pelo gênio

maligno, eu, ainda assim, sou (ou existo) como aquele que é enganado.

O autor, tendo chegado à proposição de que é, ainda não sabe asseverar precisamente o

que é (respeitando o curso de suas meditações), pois:

Com efeito, ocorria-me, em primeiro lugar, que eu tinha um rosto, mãos, braços e toda

essa máquina de membros, que se percebe também em um cadáver e que eu designava

pelo nome de corpo. Além disso, ocorria que me alimentava, andava, sentia e pensava,

ações que eu referia por certo a uma alma. Mas o que essa alma era, ou não o notara ou,

se me detinha em considerá-lo, imaginava um não sei que de diminuto, a exemplo do

vento ou do fogo ou de um éter, infuso em minhas partes mais grosseiras. Sobre o corpo

não tinha, na verdade, dúvida alguma e julgava conhecer-lhe a natureza distintamente.

Tentava-se talvez descrevê-la tal qual minha mente a concebia, explicava-o desta

maneira: entendo por corpo tudo o que pode terminar por alguma figura, estar circunscrito

em algum lugar e preencher um espaço do qual exclui todo outro corpo. É percebido pelo

tato, pela vista, pelo ouvido, pelo gosto, pelo olfato e é, também, movido de muitos modos,

não em verdade por si mesmo, mas por um outro, que o toca e do qual recebe a

impressão. Pois, ter a força de mover-se a si mesmo, de sentir e de pensar, de modo

algum julgava pertencer á natureza do corpo. Ao contrário, ficava antes admirado de

encontrar tais faculdades em certos corpos (DESCARTES, 2004, p. 47).

Do mesmo modo que atributo e faculdade eram tomados como pertencentes ao corpo e,

logo em seguida, a dúvida revelou que estas convicções se sustentariam apenas pela

certeza sensível. Descartes se priva de assumir qualquer resposta imediata para explicar o

ser que é e seu modo de existir. Entre elas aquela que pareceria mais óbvia, a de que é

um homem. Contudo, esta resposta não decorre dos desdobramentos necessários do

argumento das meditações (construído de maneira análoga a uma expressão matemática

que exige obediência à ordem das operações a serem efetuadas).[3] Tal resposta é

“importada” e diz mais do que a pergunta quer saber, responde mais do que a resposta

restrita possibilita, além de acrescentar uma infinidade dificuldades quanto à noção

complexa de homem, que Descartes (2004) considerou uma digressão ao curso da

Meditação.

A pergunta pelo que sou enquanto duvido só pode ter coerentemente a resposta: sou algo

que duvida, ou sou algo que é enquanto duvida (ou pensa). Daí a afirmativa de que:

Não sou essa compaginação destes membros, chamada de corpo humano; não sou

também um ar sutil, infuso nestes membros; não sou um vento, nem um fogo, nem um

vapor, nem um sopro, nem algo que eu possa formar em ficção, pois supus que tais coisas

Page 16: Meditações Metafisicas

nada eram. Permanece, porém, a afirmação: eu mesmo sou, no entanto, algo

(DESCARTES, 2004, p. 49).

Ser algo pensante é o que sustentará, doravante, o argumento de Descartes. Convencido

de que os sentidos podem criar falsas impressões na medida em que corre o risco de estar

dormindo (ainda sob a dúvida do argumento do sonho), o autor pode avaliar como certo

que o que apreende pelos sentidos, isto é, o que vê, ouve e sente nada mais seria que

algo que pensa ver, ouvir e sentir, ou, obedecendo à mesma “mecânica” do argumento

que conclui que existo, vê-se, ouve-se e sente-se na medida em que se pensa. O filósofo

avalia este ponto: “(…) começo a conhecer o que sou com um pouco mais de luz e de

distinção do que anteriormente” (DESCARTES, 2004).

É, precisamente, a partir deste “ponto de luz” que Descartes partirá para a inspeção das

coisas comuns que acreditamos compreender distintamente. Esse exame partirá dos

corpos tal como apreendemos.

III

O conceito de corpo (corpus), tal como tratado por Descartes nas Meditações, possui três

sentidos, referindo-se, inicialmente, aos corpos em geral, como matéria ou substância

extensa manifesta em três dimensões e inscrita no universo físico; aos corpos em sua

incidência individual, determinando um corpo, podendo este ser um elemento da física, um

ente concreto como uma rocha, um monte ou um planeta (corpo celeste) e, ainda, como

o corpo humano, em questão aqui: geralmente presente nas Meditações na forma

distintiva frente à mente, ligado aos sentidos e submetido ao pensamento (COTTINGHAM,

1995). No intuito de tratar esse problema, Descartes não aborda os corpos de maneira

geral; antes, toca um corpo em particular; usa, assim, o exemplo do pedaço de cera. Esta

inspeção deverá revelar que os corpos em sua natureza são mais difíceis de serem

conhecidos que o próprio ser pensante; este último doravante tratado como “cogito”.

Através da experiência feita com um corpo de cera que, em um primeiro momento

apresenta uma série de características naturais e, num segundo, após ter sido aproximado

do fogo, sofre alterações físicas mudando sua extensão (DESCARTES, 2004). Descartes

investiga, para além dos acidentes, o que de substancial haveria nesse, isto é, o que

haveria de constante no corpo a ponto de podermos estabelecer uma relação de

identidade no seu primeiro estado com o segundo, reconhecendo-o como a mesma cera.

O mesmo corpo é visto em ambos os casos, sendo a mesma cera de antes do

experimento. Entretanto, sua percepção não é mais compreendida como algo dado

puramente pelos sentidos “(…), não é um ato de ver, de tocar, de imaginar, e nunca o foi,

embora antes o parecesse, mas é uma inspeção só da mente, que pode ser imperfeita e

confusa, como antes era, ou clara e distinta, como agora, sendo presto menos ou mais

atenção às coisas de que se compõe” (DESCARTES, 2004).

Page 17: Meditações Metafisicas

Com esta afirmativa, o autor se encaminha a afirmar que o conhecimento dos corpos em

suas propriedades, visando, principalmente, à extensão, não ocorre por meio dos sentidos

ou da imaginação (que poderia representar diversas formas para a coisa), mas por outros

meios, cujas causas mostrar-se-iam mais evidentes e distintas. Descartes sustentará que

os elementos que possui para comprovar a existência de objetos externos ao espírito

(como o pedaço de cera e o próprio corpo humano) com muito mais facilidade dão razão

ao conhecimento da natureza do ser pensante, do espírito, da mente.[4] Deste modo, o

autor valida a tese que nomeia a Segunda Meditação ao afirmar categoricamente que não

há evidência maior e mais fácil de se conhecer do que o próprio espírito, assegurando,

ainda, que a descoberta da natureza do cogito pode contribuir também para o

esclarecimento da natureza das coisas que dependem do corpo.[5]

Gueròult considera isso de maneira pontual, ressaltando as verdades sobre as quais o

conhecimento seguro poderia futuramente edificar-se. Enfocando também o papel do

espírito em face do corpo e dos sentidos:

Existo como coisa pensante, tal é a primeira verdade indubitável na ordem das razões.

Mas a natureza não é outra coisa do que o puro pensamento e a pura inteligência,

excluindo todo elemento corporal, tal é a segunda verdade que decorre imediatamente,

segundo a ordem precedente. Eu me conheço, logo, em minha existência e em minha

essência e agora que, nela mesma, o corpo é rejeitado do saber e anulado pelo gênio

maligno, este permanece a mim desconhecido em sua existência e em sua essência.

Donde concluo que, o corpo é menos fácil de conhecer que a alma, porque a alma já é

conhecida antes dele na ordem das razões tal é a terceira verdade. Esta verdade, que

resulta imediatamente da via de ordem, não tem nenhuma necessidade de uma

demonstração suplementar. Todavia, há uma grande diferença entre estar convencido e

estar persuadido. Ora, esta é uma verdade do entendimento puro, aquela que se opõe

rigorosamente a uma persuasão nascida de minha natureza, quer dizer, de minha alma

unida substancialmente ao corpo, provando ao sentimento que esta não fazia um com ele;

sendo desde a imaginação uma tendência a crer que todos meus conhecimentos provêm

dos sentidos, que os corpos que posso ver, tocar, sentir são diretamente apreendidos sem

o menor concurso da inteligência; que eles são, primeiramente, desconhecidos e, por

conseguinte, melhor conhecido que a alma, aquele estado incorpóreo não seria o estar

não sentido, o não tocado, nem visto, mas somente pensado (GUERÒULT, 1968, pp. 119-

120).

A descoberta do cogito como essência pensante da existência divorcia definitivamente a

mente do corpo, passando a ser, o segundo, um traço acidental deste que pensa. O eu

pensante, agora capaz de autodeterminar-se como aquele que é enquanto pensa, não

depende (como poderíamos presumir) do conhecimento dado a nós unicamente por meio

dos sentidos (como atributos do corpo), pois mesmo este já seria determinado

mediatamente pelo espírito (BEYSSADE, 2001). Isto nos permite inferir que o

acontecimento do espírito é mais fácil de ser efetuado e comprovado por ser

imediatamente dado pelo próprio pensamento enquanto pensa, o que não ocorre em se

tratando da idéia derivada e complexa de corpo, motivo pelo qual o corpo permanece em

suspenso, pela dúvida, até que possa ser afirmado, com certeza, na sexta Meditação.

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Pensar o espírito como coisa distinta e, ainda, independente do corpo é realmente

inovador. Contudo, não deixa de estar relacionado com o modo com que estas duas

estruturas aparecem na tradição filosófica, principalmente na escolástica. O próprio

Descartes (1953) viabiliza esta avaliação quando, na carta de 30 de julho de 1640, a

Mersenne se aproxima da doutrina tomista ao defender a posição de que o homem é

composto de espírito e corpo, e não de um corpo usando o espírito.

Inúmeros são os momentos da obra de Descartes em que este aborda a diferença entre

corpo e espírito; autores como J. Marques exploram, de maneira minuciosa, a

problemática de o autor pensar a união entre alma e corpo, considerando este problema

fundamental à própria compreensão de homem em Descartes (MARQUES, 1993). Em

verdade, esta mesma questão oferece para alguns comentadores problemas derivados

logicamente insolúveis no pensamento de Descartes. Como exemplo, podemos tomar a

possibilidade de pensarmos em mentes sem corpo, hipótese comentada por Cottingham

(1999). Este sustenta que, embora não existam mentes sem corpo, a filosofia de

Descartes concede esta possibilidade, afirmativa que causa desconforto entre os filósofos

atuais, uma vez que hoje se sustentar que toda consciência é produto de um sistema

físico-orgânico e incorporado a ela. Tal situação pode ser traduzida em termos mais

pragmáticos com a seguinte analogia: conceber a hipótese da possibilidade da mente sem

um cérebro (ou qualquer estrutura física de natureza similar) seria defender idéia análoga

a de que poderia haver a digestão (compreendida, também como a mente por um produto

fisiológico) sem o estômago ou coisa que a valha. Guardando as devidas proporções que

diferenciam os dois fenômenos, para a abordagem atual, orientada por uma perspectiva

neurologista, tal idéia se apresenta insustentável, embora perfeitamente viável pela

argumentação metafísica, feita por nosso autor. Os desdobramentos deste problema

poderiam delongar-se por mais tempo, o que optamos por não fazer neste trabalho.

Ao final da apresentação das duas primeiras Meditações (que partiram das trevas

absolutas da incerteza para a dúvida capaz de questionar todas as opiniões pré-

concebidas, através do argumento do sonho que, como exposto, pôs em dúvida os

conhecimentos dados a partir do sentido e do conhecimento; a partir do sentido e da

hipótese do gênio maligno, decorrente do Deus enganador) encontrou-se um ponto de luz

que nos permitiria o conhecimento indubitável de si mesmo como algo que pensa.

[6] Assim, tratou-se da natureza da coisa de natureza corpórea, afirmando que a primeira é

mais fácil de conhecer que a segunda.