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ARTIGO ARTICLE 305 O ato de governar as tensões constitutivas do agir em saúde como desafio permanente de algumas estratégias gerenciais Governing tensions in the health action as a permanent challenge of some managerial strategies 1 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp, Cidade Universitária Zeferino Vaz, 13081-970, Campinas, SP, Brasil Emerson Elias Merhy 1 Abstract In the current essay, the author tries to synthesize what has livened him up lately in relation to his thinkings over the act of govern- ing health organizations having several articles and books as a starting point, taking as a chal- lenge the attempt of imprinting changes in the everyday life of the making of health attention models, in the core of the workers practices, even when a great concentration of power is not noticed as for transformation feasibility. There- fore there is a search to understand how and where power may be produced. How to explore terrains of potencies within the health field which are present in the tensional conformation of its action territory, using the managerial tools which are available in the area of science and government techniques – in health. Use managed care to developed analysis. Key words Health Management; Dealing with Changes; Everyday Management in Health Resumo O autor procura sintetizar, neste en- saio, o que tem animado, recentemente, suas re- flexões sobre o ato de governar estabelecimentos de saúde, em vários artigos e livros, tomando como desafio a tentativa de imprimir mudan- ças no dia-a-dia do fabricar os modelos de atenção à saúde, no interior das práticas dos trabalhadores, mesmo não tendo grande con- centração de poder para a transformação, pro- curando então compreender como e por onde produzir poderes. Como explorar terrenos de potências no campo da saúde que estão presen- tes na conformação tensional de seu território de ação, fazendo-se uso das distintas ferramen- tas gerenciais disponíveis no campo das ciências e técnicas de governo, na saúde. Utiliza a aten- ção gerenciada para desenvolver certas análises. Palavras-chave Gestão em Saúde; Governar Mudanças; Gestão do Cotidiano em Saúde

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O ato de governar as tensões constitutivas do agir em saúde como desafio permanente de algumas estratégias gerenciais

Governing tensions in the health action as a permanent challenge of some managerial strategies

1 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas,Unicamp, CidadeUniversitária Zeferino Vaz,13081-970, Campinas,SP, Brasil

Emerson Elias Merhy 1

Abstract In the current essay, the author triesto synthesize what has livened him up lately inrelation to his thinkings over the act of govern-ing health organizations having several articlesand books as a starting point, taking as a chal-lenge the attempt of imprinting changes in theeveryday life of the making of health attentionmodels, in the core of the workers practices,even when a great concentration of power is notnoticed as for transformation feasibility. There-fore there is a search to understand how andwhere power may be produced. How to exploreterrains of potencies within the health fieldwhich are present in the tensional conformationof its action territory, using the managerialtools which are available in the area of scienceand government techniques – in health. Usemanaged care to developed analysis.Key words Health Management; Dealing withChanges; Everyday Management in Health

Resumo O autor procura sintetizar, neste en-saio, o que tem animado, recentemente, suas re-flexões sobre o ato de governar estabelecimentosde saúde, em vários artigos e livros, tomandocomo desafio a tentativa de imprimir mudan-ças no dia-a-dia do fabricar os modelos deatenção à saúde, no interior das práticas dostrabalhadores, mesmo não tendo grande con-centração de poder para a transformação, pro-curando então compreender como e por ondeproduzir poderes. Como explorar terrenos depotências no campo da saúde que estão presen-tes na conformação tensional de seu territóriode ação, fazendo-se uso das distintas ferramen-tas gerenciais disponíveis no campo das ciênciase técnicas de governo, na saúde. Utiliza a aten-ção gerenciada para desenvolver certas análises.Palavras-chave Gestão em Saúde; GovernarMudanças; Gestão do Cotidiano em Saúde

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Introdução

A construção da saúde pública, no século XX,foi marcada pela crescente presença da articu-lação entre saberes que se debruçam sobre o“fenômeno coletivo” da saúde e da doença eaqueles que se orientam para o terreno da or-ganização e administração das ações de saú-de. Ganharam notoriedade, no começo do sé-culo, as “escolas clássicas” que foram adotadascomo paradigmas para pensar a administra-ção pública. O fayolismo permitiu construirum discurso sobre a cientificidade da ação ad-ministrativa na organização dos serviços desaúde, enquanto o taylorismo animou quemmais visava à construção das práticas sanitá-rias (Mascarenhas, 1948; Merhy 1987, 1997;Soraiber, 1993; Merhy & Onocko, 1997).

A expansão da rede de serviços de saúde,com a incorporação da assistência individuale com o alargamento da ação estatal do bem-estar social, vivenciada amplamente após a Se-gunda Guerra, associada ao crescente interes-se do capital no setor prestador de serviços desaúde, ampliou a presença das intervençõesno terreno da administração. Tanto as tecno-burocracias estatais, quanto as do capital, vi-ram-se diante da necessidade de construircompetências nos terrenos da organização eadministração das redes de serviços de saúde,como um todo. O tema da saúde invadiu vá-rios campos disciplinares, e com certo desta-que o da economia (Braga & Goes, 1981).

A consolidação efetiva do setor saúde, co-mo um dos principais campos de ação do Es-tado e do capital, foi criando novas necessida-des para o desenvolvimento genérico e espe-cializado das tecnologias de gestão em saúde.Administrar e/ou governar, tanto processospolíticos implicados com a formulação e de-cisão sobre os caminhos a serem adotados,quanto processos de produção de atos de saú-de, tornaram-se necessidades imperativas pa-ra ordenar as melhores “máquinas organiza-cionais”. Seja na ótica universalista e cidadã deum projeto social-democrata, seja na perspec-tiva mercantil e lucrativa do olhar do capital,a seus modos, todos exigiam mais e melhorcompetência neste novo território.

Os paradigmas da escola clássica da admi-nistração (Chiavenato, 1983), que sempre vi-veram certas dificuldades no plano da eficáciaoperacional no terreno da saúde, mostraram-se mais insuficientes ainda. Novos problemasforam colocados e novos rumos exigidos.

Com certa importância, destaca-se nestesúltimos anos o impacto deste longo processosobre a emergência de novos paradigmas ge-renciais na saúde que estão atados de uma for-ma mais singular ao próprio terreno produti-vo das ações de saúde (Gallo, 1985). Nos anos80/90, vê-se a agenda dos gestores em saúdesendo ocupada por um debate sobre os novosparadigmas gerenciais a serem utilizados nasaúde.

Todos estes processos de busca dialogamsobre um terreno similiar: a natureza das es-pecificidades do campo da saúde, seus impac-tos no âmbito dos processos organizacionais,seus modos de fabricar políticas, e as suas ma-neiras de gerar processos produtores de atosde saúde, desenhando os modelos de atenção.

Um dos grandes desafios que tem sido com-preendido por uma parte dos autores brasilei-ros (Rivera, 1989; Campos, 1992; Mendes, 1993;Cecílio, 1994), nesta temática, refere-se à pos-sibilidade de se atuar em um terreno de polí-ticas e organizações, fortemente instituído pe-la presença de forças políticas hegemônicasmuito bem estruturadas histórica e socialmen-te, como no caso dos modelos médicos e sani-tários de intervenção em saúde, mas que se as-sentam em uma base tensional, que permite al-mejar a exploração de territórios de potênciassingulares a este campo de práticas sociais – asaúde, disparando-se a produção de novos lo-cus de poderes instituintes (Guattari, 1992;Lourau, 1995), e que tornam as organizaçõesde saúde lugares de instabilidades e incertezaspermanentes, que possibilitam a construçãode múltiplos projetos tecno-assistenciais.

Ao trabalhar a temática da micropolíticado trabalho vivo em saúde Merhy (1997), emconcomitância com aqueles autores, traz à to-na a possibilidade de se pensar mais amiúdeesta temática, abrindo-se possibilidades sobrea gestão do cotidiano em saúde, terreno daprodução e cristalização dos modelos de aten-ção à saúde, aos processos de mudanças quepermitem instituir novos “arranjos” no modode fabricar saúde, ao configurarem novos espa-ços de ação e novos sujeitos coletivos, basespara modificar o sentido das ações de saúde,em direção ao campo de necessidades dosusuários finais.

Pensar sobre esta “liga” ou dobra entre oinstituído, lugar de poderes territorializados,e os processos instituintes disparados a partirdesses locus de potências, é o que se visa aquinesta reflexão sobre a gestão em saúde, prin-

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cipalmente considerando-se que qualquerperspectiva de mudança, ou está calcada emalta concentração de poder para movimentarum setor instituído muito bem estruturado, epor isso de alto poder conservador, ou está cal-cado em estratégias que explorem as tensões-potências, para gerar novos desenhos territo-riais (Guattari, 1990) e novas direcionalida-des no agir em saúde.

O agir em saúde é sempre tenso e sua alma é a produção do cuidado individual e/ou coletivo

Em outros textos, o autor (1998a, b), já haviaexplorado a noção de que a grande questãoque está colocada para os trabalhos em saúde,não é quanto às suas finalidades, que inques-tionavelmente são tanto a de promover e pro-teger a saúde, individual e coletiva, quanto ade curar. Mas sim quanto ao modo de se con-seguir isso, considerando-se que em últimainstância o que o trabalho em saúde produz éum certo modo de cuidar, que poderá ou nãoser curador ou promovedor da saúde.

Pode-se dizer que todo processo de traba-lho em saúde, para produzir o cuidado, temque primeiro produzir atos de saúde, e que es-ta relação em si é tensa. Produzir um procedi-mento é produzir um ato de saúde, mas istopode ser feito dentro de um certo modo decuidar, que não é necessariamente “cuidador”.Veja-se isto mais de perto, no diagrama abaixo.

Tal situação nem sempre permite a produ-ção da saúde, pois esta implica que o processoprodutivo impacte ganhos ou recupere graus

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de autonomia no modo do usuário andar nasua vida. As produções de atos de saúde po-dem ser simplesmente centradas em procedi-mento e não nas necessidades de saúde dosusuários, e a finalidade última pela qual estaprodução se realiza esgota-se na produção deum paciente operado, vacinado e ponto final,aliás, o que não é estranho a ninguém que usaserviços de saúde no Brasil.

Ao se olhar com atenção os processos de tra-balho realizados no conjunto das intervençõesassistenciais, vê-se que – além das várias ferra-mentas-máquinas, como raio-x, instrumentospara fazer exames de laboratórios, instrumen-tos para examinar o paciente, ou mesmo, fichá-rios para anotar dados do usuário –, mobili-zam-se intensamente conhecimentos sobre aforma de saberes profissionais bem estrutura-dos, como a clínica do médico, a clínica do den-tista, o saber da enfermagem, do psicólogo, etc.O que permite dizer que há uma tecnologiamenos dura que os aparelhos e as ferramen-tas de trabalho, e que está sempre presente nasatividades de saúde, que denomino de levedu-ra. É leve ao ser um saber que as pessoas ad-quiriram e está inscrito na sua forma de pen-sar os casos de saúde e na maneira de organi-zar uma atuação sobre eles, mas é dura na me-dida que é um saber-fazer bem estruturado,bem organizado, bem protocolado, normali-zável e normalizado. Reparando com maioratenção, vê-se também que, além destas duassituações tecnológicas, há uma terceira, quechamo de leve.

Qualquer abordagem assistencial de um tra-balhador de saúde junto a um usuário-pacien-te, produz-se através de um trabalho vivo em

produzTrabalho em saúde

o cuidado,individual e/ou coletivo

que atua sobre“problemas desaúde”, e

atos de saúde, como procedi-mentos, acolhimentos, ações deresponsabilizações, entre outros

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que produzem

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que se supõe impactar direitos dos usuários finais,tidos como necessidades de saúde, representadas como utilidade para o usuário

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ato, em um processo de relações, isto é, há umencontro entre duas pessoas, que atuam umasobre a outra, e no qual opera um jogo de ex-pectativas e produções, criando-se intersubje-tivamente alguns momentos interessantes co-mo momentos de falas, escutas e interpreta-ções, no qual há a produção de uma acolhidaou não das intenções que estas pessoas colo-cam neste encontro; momentos de possíveiscumplicidades, nos quais pode haver a produ-ção de uma responsabilização em torno do pro-blema que vai ser enfrentado, ou mesmo de mo-mentos de confiabilidade e esperança, nos quaisse produzem relações de vínculo e aceitação.

Diante desta complexa configuração tec-nológica do trabalho em saúde, advoga-se anoção de que só uma conformação adequadada relação entre os três tipos é que pode pro-duzir qualidade no sistema, expressa em ter-mos de resultados, como maior defesa possí-vel da vida do usuário (individual ou coleti-vo); maior controle dos seus riscos de adoecerou agravar seu problema, e desenvolvimentode ações que permitam a produção de ummaior grau de autonomia da relação do usuá-rio no seu modo de estar no mundo.

Assim, é que aqui se fala que os processosde produção do cuidado – processos interces-sores centralmente (Merhy, 1997) – expõem,entre várias dimensões das práticas de saúde,as tensões entre o cuidado centrado nos proce-dimentos ou nos usuários; entre um agir pri-vado e um público, inscrito no modo de ope-rar o trabalho vivo em ato em relações inter-cessoras; e entre as disputas permanentes dedistintas intenções em torno do que são o ob-jeto e o sentido das ações de saúde.

Para quem almeja explorar as tensões-po-tências, constitutivas do campo da saúde, a fimde desenvolver novos poderes que possam de-marcar uma direcionalidade para o modelo deatenção centrada nas necessidades dos usuá-rios, não há como ignorar o desafio de intervir,no campo da gestão, para: a) produzir o cui-dado em saúde de modo centrado no usuário– que mobiliza estrategicamente o territóriodas tecnologias leves e leveduras – sem jogarfora a utilização dos processos de produção deprocedimentos – mobilizador de tecnologiasduras e leveduras e, em regra, centrada no pro-fissional; b) produzir o cuidado em saúde, queestá sempre inscrito em uma dimensão públi-ca de jogos de interesses e representações, semeliminar o exercício privado das produções in-tercessoras, base de constituição de qualquer

ato de saúde, mas tomando o território parti-cular do usuário como eixo de “publicização”dos outros; c) atuar em ambientes organiza-cionais, assentados em muitos grupos de in-teresses, pactuando o do usuário, como se fos-se de todos, em modos coletivos de expressãodas várias intencionalidades.

Sem dar uma resposta direta e que possater uma certa “cara” de receita para as açõesnecessárias ou possíveis, procura-se neste tex-to aprender mais detalhadamente sobre estassituações no fabricar cotidiano dos modelosde atenção à saúde, ao nível dos serviços, ex-plorando suas tensões constitutivas.

A gestão do cotidiano em saúde:as tensões constitutivas do seu agir e suas presenças no dia-a-dia do fabricar as práticas

Muito esquematicamente, pode-se dizer quetodo o conjunto das ações de saúde operamem um terreno de base tensional, constituídopelo menos em três campos. O primeiro é de-marcado pelo fato de que o território das prá-ticas de saúde é um espaço de disputa e deconstituição de políticas, cuja característica éa multiplicidade, desenhado a partir da açãode distintos sujeitos coletivos, que conformeseus interesses e capacidades de agir, aliam-see/ou confrontam-se, na tentativa de afirmar,ou mesmo impor, uma certa conformação deum bem social – a saúde – como objeto deação intencional de políticas – portanto, co-mo uma questão social – que lhe faça sentido,enquanto parte do seu universo de valores deuso (Braga & Goes, 1981; Campos, 1991), e co-mo tal apareça como base para representar, demodo universal, o mundo das necessidadesdos outros nos planos coletivo e individual.

Nesse espaço de ação de sujeitos sociais,que agem para produzir uma certa conforma-ção das necessidades como foco de políticasde saúde, a multiplicidade dos atores envolvi-dos tem mostrado a impossibilidade de se ter,nas políticas instituídas, o abarcamento doconjunto dos interesses constitutivos do setorsaúde, a não ser por pactuação social, expres-sa das formas mais distintas: por mecanismosmais amplos de envolvimento e negociação,ou mesmo por práticas mais impositivas e ex-cluidoras.

Tomar o foco dos usuários dos serviços desaúde, de certos trabalhadores e mesmo dos

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governantes e sua tecnoburocracia, compõeuma base tensional e orgânica do jogo de in-teresses que dá direcionalidade para as políti-cas de saúde, e que estará sempre presente co-mo um interrogador, em potência, dos arran-jos instituídos a operar na cotidianeidade daspráticas.

O outro campo de constituição da lógicatensional de agir em saúde está delimitado pe-lo fato de que hegemonicamente a produção deatos de saúde é um terreno do trabalho vivo emato, que consome trabalho morto, visando aprodução do cuidado (Merhy, 1998a, b).

A micropolítica deste processo produtivo,trabalho vivo dependente e centrado, dá-lhecaracterísticas distintas em relação a outrasconfigurações do ato de produzir, e cuja mar-ca central é entendida como a de ser um pro-cesso de produção sempre a operar em altograu de incerteza, e marcado pela ação terri-torial dos atores em cena, no ato intercessordo agir em saúde (Merhy, 1997).

Esta centralidade do trabalho vivo, no in-terior dos processos de trabalho em saúde, de-fine este como um espaço em aberto para ex-ploração das potências nele inscritas, para aação de dispositivos que possam funcionar co-mo agentes disparadores de novas subjetiva-ções, que conformam as representações da saú-de como bem social, e de novos modos de agirem saúde que busquem articulações distintasdo público e do privado, nele presentes (Fran-co et al., 1998; Malta, 1998).

Por último, o mundo das próprias organi-zações de saúde forma-se como território ten-sional em si, pois se constitui em espaço de in-tervenção de sujeitos coletivos inscritos a par-tir de suas capacidades de se autogovernarem,disputando o caminhar do dia-a-dia, com asnormas e regras instituídas para o controle or-ganizacional.

Esta condição, a de que em qualquer orga-nização produtiva o autogoverno dos traba-lhadores é constitutivo de seu cerne, no terre-no da saúde está elevada a muitas potências.Nos serviços isto é muito perceptível, a partirdo fato de que todos podem exercer o seus tra-balhos vivos em ato, conforme seus modos decompreender os interesses em jogo e de darsentido aos seus agires. A tensão entre auto-nomia e controle é sem dúvida um lugar detensão e, portanto, de potência, constituindo-se em um problema para as intervenções queambicionam governar a produção de um cer-to modelo tecno-assistencial.

Operar sobre as tensões-potências,na possibilidade de construir na saúde novos territórios de poder

Do ponto de vista do campo de ação no coti-diano dos processos concretos, vivenciados nosserviços de saúde, que são focos de atenção es-pecial para os processos de gestão da mudança,apontam-se aqui três “efeitos” que se expres-sam no dia-a-dia dos serviços, conseqüênciasdaqueles campos tensionados, e que devem ser“olhados” como lugares estratégicos alvos pa-ra operações-dipositivos, que podem dispararpotencializações vitais na direção de novos pro-cessos de produção de saúde, e lugares a desa-fiarem os paradigmas e as ferramentas que têmmuniciado os gestores da saúde.

Indicam-se os “efeitos” como vinculadosaos processos de produção do cuidado, quesão a base de expressão do núcleo missioná-rio de qualquer serviço ou sistema de saúde,que por um lado, “refletindo” as tensões cons-titutivas dos agires em saúde, polarizam-se en-tre ser ou uma produção centrada em proce-dimentos, ou uma centrada no usuário; poroutro, expressando o mesmo terreno tensio-nal, também criam polaridade entre o exercí-cio privado do ato produtor do cuidado desaúde e a possibilidade de sua captura por pro-cessos mais publicizantes; e, ainda por um ou-tro, está assentado na ocupação das arenas ins-titucionais por múltiplos agentes concretosque portam distintas intenções, no dia-a-diados serviços, e disputam permanentemente adirecionalidade das ações de saúde.

Estes três “efeitos” apontados marcam osgrandes temas contemporâneos dos debatessobre as práticas da gestão, tanto para os quevisam arranjos institucionais que permitam aestabilização de certos modelos de atenção,quanto para os que apostam na mudança des-tes. Ao seu modo, em qualquer uma destas di-reções, conservar ou mudar, procura-se criarestratégias de ação para impactar os exercíciosprivados dos profissionais, tornando-os maiscontrolados, produzindo com isso serviçosmais centrados ou descentrados das óticas cor-porativas; atuar sobre as disputas que ocor-rem cotidianamente, procurando impor con-trole sobre as mesmas e impor certos interes-ses particulares de alguns, como sendo uni-versais. Um dos paradigmas gerenciais, quevem ocupando cada vez mais a agenda do de-bate entre os vários gestores e dirigentes deserviços de saúde, a atenção gerenciada (AG),

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pode revelar bastante quanto a estas questões,particularmente no que se refere ao desmon-te de uma ótica assistencial fundamentalmen-te centrada na corporação médica.

Aprendendo com a AG:da microdecisão clínica à microdecisãoadministrativa e a gestão cotidiana dos modelos de atenção

A AG toma como foco básico de sua interven-ção o modo como o modelo médico-hegemô-nico construiu um certo agir em saúde, explo-rando a sua base tensional no cotidiano dosserviços e na construção de um outro mode-lo de atenção. Para isso, procura enfrentar alógica privada da produção do cuidado à saú-de, assentada nos exercícios mais autonômosque o trabalho médico adquire naquele mo-delo, impondo mecanismos gerenciais de cap-tura que o publicizem.

Atua, também, sobre estes exercícios pri-vados dos processos produtivos, em particu-lar daqueles que estão no bojo da ação médi-ca centrada no procedimento, microcontro-lando os processos decisórios clínicos desteterreno profissional, que estão profundamen-te implicados com a absorção de tecnologiasduras e com o crescente custo das interven-ções em saúde. A AG explora muito criativa-mente, inclusive adotando várias ferramentasda saúde coletiva, a tensão-potência inscritanos processos de produção do cuidado entreas suas dimensões produtivas centradas nastecnologias leve e dura (Merhy, 1998a, b).

É muito amplo o tema em pauta, inclusi-ve atual, em termos de investigação, o que dáuma certa provisoriedade sobre algumas dasanálises que estão em voga, hoje, em torno dotema. Mas, para efeito do que se está desejan-do com este texto, é possível reflexivamenteaproveitar-se do que vem sendo acumulado.

Em primeiro lugar, o grande confronto dasestratégias da AG é com os modos de produziro cuidado do modelo médico-hegemônico ede todos os indícios mapeados sobre as alter-nativas criadas pela AG para mudar o modelode atenção que aponta para este eixo centralde enfrentamento.

Em um relatório recente de pesquisa sobrea AG na América Latina (Iriart et al., 1995,1997, 1998), há algumas informações que sin-tetizam o que vem sendo implementado emtorno da gestão da mudança do cuidado, sob a

perspectiva da AG, e que serve para ilustrar,com mais detalhe, estas questões.

Como a AG governa a mudança?

Na busca de uma outra maneira de se produ-zir o cuidado à saúde, que não seja centradono procedimento médico e que possa interes-sar aos detentores do capital financeiro da áreada saúde, percebem-se ações estratégicas coma finalidade de a) criar um cenário de dispu-ta entre quatro tipos de sujeitos coletivos pa-ra modificar os processos de regulação dos in-teresses no setor; b) ofertar um outro imagi-nário sobre o “bem social” saúde, visando aoutras modalidades de representação das ne-cessidades de saúde; c) substituir os micropro-cessos decisórios médicos, centrados na clíni-ca, por outros baseados em razões econômi-co-administrativas, focando a modificação domodo como os processos médicos-clínicos, apartir do terreno das tecnologias leveduras,incorporam as tecnologias duras.

Para dar conta destas perspectivas, paradesmontar no dia-a-dia as lógicas dos mode-los médico-hegemônicos, a AG implementauma quantidade significativa de intervenções,sob a direção das seguradoras de saúde, deten-toras do capital financeiro investido no setor.

Em destaque, vale apontar a) uma forteatuação de um setor administrativo, que con-trola os processos microdecisórios das práti-cas clínicas e com isso a necessidade de supe-ração do atual modelo “flexneriano” de práti-ca médica, através da construção de mecanis-mos organizacionais, que ao controlarem a au-tonomia da ação clínica, possibilitam a jun-ção baixo custo e produção de atos de saúde;b) a produção de um “pacote de ações bási-cas”, que visa a dar maior eficácia às interven-ções sobre um certo “padrão de adoecer” deuma determinada população alvo, procura im-pactar o modo de se consumir “atos médicos”mais caros, além de procurar ter seu nível desaúde mais controlado e mantido; c) a procu-ra da “focalização” destas intervenções em gru-pos específicos de consumidores, associadosaos mecanismos de copagamento pelo consu-mo além do padrão estabelecido e que permi-tiria um controle empresarial mais efetivo so-bre os custos das ações; d) a busca incessanteda prevenção do sinistro “doença”, como de-manda de serviços tecnológicos mais especia-lizados, através da exclusão de grupos de alto

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riscos e da ação adscrita sobre grupos popu-lacionais de riscos controláveis ou evitáveis,segmentando explicitamente as intervenções;e) a constituição de um cenário composto porsujeitos coletivos, internos, definidores e cen-trais do setor saúde: os financiadores, os ad-ministradores, os prestadores e os usuários,que atuem de modos separados e com lógicasde regulações, uns sobre os outros, que imi-tam a imagem da competição pela “mão invi-sível do mercado”, no qual, apostam como fa-tor de controle da qualidade e da eficiência dosistema, particularmente através das figurasde um administrador e de um consumidor in-teligente, simbolizados como eixos centrais.

Diante destes destaques, pode-se afirmarque a AG persegue a constituição de um setorsaúde francamente segmentado, por grupospopulacionais específicos, que regulam suasrelações como consumidores finais dos servi-ços prestados, através da presença de interven-ções econômico-financeiras, orientadas poradministradores dos prestadores de serviçosde saúde, financiados pela captação via em-presas seguradoras.

A saúde neste cenário é entendida comoum bem de mercado, referente a cada agenteeconômico por um tipo de racionalidade.

Para o consumidor final: como uma neces-sidade básica colocada em risco pelo seu pró-prio modo de viver a vida, a ser mantida coma compra de um certo bem de serviço, que eleidentifica como capaz ou de lhe evitar proble-mas, ou de solucioná-los, devolvendo-lhe ca-pacidades de andar no seu viver, e cujo parâme-tro de análise, para avaliar a qualidade do queconsome, é a sua satisfação como consumidor.

Para o prestador: como algo que lhe per-mite atuar como possuidor de uma “tecnolo-gia” que pode vender através de uma relaçãomercantil com os administradores.

Para o administrador: como a possibilida-de de atuar em um mercado de compras e ven-das de bens, no qual pode operar com contro-le de custos de produção para obter vantagenscom o preço de venda.

Para o financiador: como a possibilidadede viabilizar o acesso ao bem desejado por suaação como comprador inteligente e como con-trolador da captação financeira.

A partir desta descrição, o que se esta bus-cando aqui é a percepção de que a AG desen-volve um conjunto de “tecnologias” para atuarno terreno das tensões-potências, constituti-vas dos agires em saúde, conseguindo, com is-

so, produzir efetivamente um novo modelo deatenção, que desloca o lugar do trabalho mé-dico, subordinando-o a uma outra lógica, massem perder a sua eficácia na capacidade de re-solver certos problemas de saúde no plano in-dividual e coletivo.

Mesmo que o conjunto destas intervençõesseja em função dos processos de obtenção docapital financeiro, investido na área da saúde,o que se destaca é a produção de novas linhasde poder partindo-se da ação sobre certos lu-gares potências, constitutivos do território doagir em saúde, operando em última instânciano fabricar cotidiano dos modelos de atenção,desmontando a lógica centrada nos procedi-mentos médicos.

Enfim...

A existência efetiva do trabalho vivo em atocomo componente orgânico e instituinte per-manente do processo de trabalho em saúde,sob qualquer que seja sua forma, “atrai” comuma certa particularidade muitos projetos decunho “autonomista” de distintas inspirações.

A bibliografia não tem sido estranha a es-te fato, mesmo que em sua maior parte não oanalise sob o ponto de vista que aqui está seapontando, nem mesmo os relatos das expe-riências vivenciadas junto a serviços de saúdedeixam de destacar esta temática, particular-mente quando percebem a importância da pre-sença do autogoverno dos trabalhadores desaúde, no processo cotidiano de construçãodos modos de intervenção no interior dos dis-tintos serviços de saúde.

A percepção do conjunto das dinâmicas ge-renciais no interior de um serviço de saúde re-vela que o exercício por todos os trabalhado-res, em sua dimensão assistencial, em espaçospróprios de gestão do seu trabalho, se articu-la com a presença de espaços coletivos e públi-cos nos quais os distintos trabalhos se encon-tram, enquanto certas linhas de satisfação denecessidades sejam estas de usuários finais ouintermediários da própria organização.

Estas dimensões revelam como é críticoqualquer processo organizacional em saúdeque procura operar sobre a dinâmica públicoe privado, se não perceber que esta é orgânicaao trabalho em saúde sob qualquer de suas for-mas, e não se reduz somente à temática da ló-gica do mercado, ou ao mau uso do processode trabalho.

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Dentro disto, torna-se um desafio a possi-bilidade de se pensar modelos organizacionaisque permitam operar sobre a privatização dosprocessos decisórios em saúde, no sentido depublicizá-los sem necessariamente trocar umaprivatização por outra, mas também sem apri-sioná-los exclusivamente sob o comando deações coletivas sobre as individuais, e sem per-der o sentido final do trabalho em saúde que éo de defender a vida dos usuários, individuaise/ou coletivos, através da produção do cuida-do.

Parece que estas problemáticas fazem-sepresentes e são mal resolvidas no conjunto dasestratégias adotadas pela AG.

Na perspectiva de criar mecanismos orga-nizacionais que controlem os processos mi-crodecisórios, a AG aponta para mecanismosadministrativos centrados em uma racionali-dade instrumental entre meios e fins a partirde uma ótica exclusiva do controle de custos,mesmo que fale em um ótimo entre ação e re-sultado, pois não há objetivamente – a não sera normatização sobre custos de procedimentos– parâmetros amplamente construídos que es-tabeleçam referências para os administrado-res do que é este ótimo (Waitzkin, 1994).

Neste movimento, em que um médico, porexemplo, para indicar uma tomografia teria queligar para um telefone e receber um ok de umadministrador, o processo privado ocupado pe-la racionalidade da medicina tecnológica, cen-trada em procedimentos, sob comando de al-guns grupos médicos, seria transferido para ode alguns burocratas, mas dentro da ótica ins-trumental do modelo de atenção, estranha aosprocessos cuidadores, só que agora governadanão mais pelo alto custo, mas pelo baixo.

O nó crítico deste processo, para um mode-lo SUS usuário centrado, torna-se como tor-nar pública uma dinâmica microdecisória, atal ponto que os verdadeiramente interessa-dos nesta possam, também, colocar suas ra-zões em jogo. E, assim, este é um problema quepassa a interessar a todo o conjunto do pro-cesso gerencial, tanto no plano da organiza-ção, quanto no processo de trabalho, que pedeuma descaptura do trabalho vivo em ato, noplano da assistência como no da gestão, con-templando a razão do usuário, mesmo que elenão esteja ali.

E que razão pode ser esta, para estar ali co-mo intenção a publicizar as microdecisões?

Considera-se como uma possibilidade pen-sar que no jogo do privado e público em tor-

no dos processos instituintes dos diferentes tra-balhos vivos em ato no interior do processo detrabalho em saúde, a dimensão privada desteprocesso sob a visão do usuário é a que tem acapacidade de publicizar o conjunto dos ou-tros e distintos processos privatizantes, como osdos trabalhadores médicos e administradores.

Publicizar, então, deve ser a possibilidadede permeabilizar os espaços institucionais nointerior dos serviços de saúde, para que nelesatue a força instituinte do usuário, mesmo queele não esteja fisicamente ali. Em sua raciona-lidade instrumental os usuários procuram, aoconsumir produtos do trabalho em saúde, pe-lo menos serem acolhidos neste processo aoponto que na dinâmica do mesmo haja ummomento em que se possa escutá-los nas suasmanifestações – necessidades, que permitamsua expressão do que deseja buscar; ao mes-mo tempo, que possibilitam o início de umprocesso de vinculação com um conjunto detrabalhadores, no sentido de que ali, em ato,se estabeleça uma relação de compromissos eresponsabilizações entre saberes (individuaise coletivos), na busca efetiva de soluções emtorno da defesa de sua vida, que envolvem ati-vidades de promoção, proteção e recuperação,e que almejam em última instância ganhosmaiores de autonomia (Canguilhen, 1971;Campos, 1991). Busca que é colocada para oconjunto dos aparatos institucionais e para oconjunto dos trabalhadores, mas que de fatorealiza-se no ato dos processos intercessores,que se constituem entre usuários e trabalha-dores de saúde em processos imediatos deatenção, tanto para a produção de ações indi-viduais quanto coletivas.

Partindo desta lógica instrumental dosusuários dos serviços de saúde, mesmo admi-tindo suas distintas maneiras de se vincularema este processo, pode-se perceber que é no in-terior do processo de trabalho em saúde quese constitui um modo operatório que intervémneste contexto, modo operatório este do tipode uma tecnologia leve, a tecnologia das rela-ções intertrabalhos vivos em ato, que acaba porser fundante da qualidade e do custo final daintervenção em saúde, pois nele está colocadoo processo de captura do trabalho vivo por cer-tos modelos tecno-assistenciais, como o da me-dicina centrada em procedimento.

Tomar os processos de gestão institucionaldeste universo tecnológico próprio do trabalhovivo em ato que permita submetê-los a pro-cessos de avaliações coletivas e colegiadas no

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cia & Saú

de C

oletiva,4(2):305-314,1999

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interior das equipes de trabalhadores de saú-de, como médicos, enfermeiros, administra-dores e outros, no interior de serviços concre-tos, é colocar em debate o conjunto dos pro-cessos que definem a relação qualidade e cus-to das ações de saúde, tomando como centrodesta avaliação os benefícios que o trabalhoem saúde pode permitir para a qualificação davida e da sobrevida das pessoas adoecidas oucom risco de adoecer.

Portanto, as soluções apregoadas pela AGde trocar o processo microdecisório dos mé-dicos pelo dos administradores, sofrem dasmesmas interrogantes do ponto de vista dosentido do trabalho em saúde: é possível pu-blicizar o conjunto dos processos microdecisó-rios em torno do interesse privado do usuá-rio, dirigido pela eficácia das ações em termosde processos mais acolhedores, vinculantes,resolutivos e autonomizadores?

Ao se olhar para a dinâmica de um únicoserviço, isoladamente, pode-se dizer que omesmo deve, desde que inserido em um siste-ma regulado pela lógica da eficácia da assis-tência e centrado em um controle público pau-tado pelos interesses do usuário-cidadão, or-denar sua gestão em torno da busca de umaotimização entre recursos disponíveis e bene-fícios, cuja possibilidade operacional encon-tra-se em um rico universo de técnicas de ges-tão organizacional.

A AG com suas propostas de controle decustos das ações de saúde não permite a buscade uma efetiva reforma das práticas de saúde,mudando seus referenciais paradigmáticos emtermos tecnológicos, que possibilitariam umanova lógica na relação custo-qualidade (paraalém da simples conotação da eficácia comoser eficiente), que viabilizassem novas moda-lidades de trabalho em saúde, que pudessemdar conta inclusive da des-hospitalização daprodução da saúde, alterando o padrão de in-corporação de tecnologia na produção da as-sistência, sem necessariamente tomar comocontraponto a cesta básica da atenção prima-ríssima em saúde versus a atenção de alto cus-to, e amarradas à defesa implacável da vida in-dividual e coletiva.

Neste sentido, os serviços de saúde devemse apoiar em processos gerenciais autogesto-res, publicamente balizados a partir de con-tratos globais, centrados em resultados e nalógica dos usuários, e dirigidos colegiadamen-te pelo conjunto dos seus trabalhadores (Cecí-lio, 1994), articulados a uma rede de serviços

de saúde, regulada pelo Estado e implicadoscom a produção do cuidado de modo centra-do no usuário (Merhy, 1998a, b).

Sem receitas para o SUS,mas com indicações

Qualquer tentativa de receita para a gestão emsaúde terá de enfrentar a tensão constitutivadeste campo nos terrenos da política e do pro-cesso de trabalho, que conformam as bases pa-ra o conjunto das organizações de saúde, on-de se opera cotidianamente a produção dosmodelos de atenção, e reconhecer que a saú-de é um território de práticas em permanenteestruturação, ontologicamente conflitivo, con-forme os sujeitos coletivos em cena.

Nesta busca de procurar governar os dis-tintos processos inscritos no campo da saúde,marcados pela constitutividade daquelas ba-ses tensionais, os distintos projetos têm de uti-lizar, nas suas várias estratégias gerenciais, co-mo faz a AG, de explorar as potências impli-cadas no agir em saúde, procurando instituirnovas modalidades de políticas e de constru-ção do cuidado. Porém, qualquer que seja oarranjo que se imponha, não há como anularaquele território tenso e aberto do “fazer emsaúde”, não há como não se experimentar, otempo todo, a emergência de novos processosinstituintes que podem ser a chave para a per-manente reforma do próprio campo de práti-cas, o que constitui em si desafios constantespara qualquer paradigma a ser adotado. Estesdesafios, em síntese, expressam-se no terreno1) dos processos de construção da legitimaçãode uma certa política, em um campo altamen-te partilhado e disputado; 2) dos mecanismosde captura dos autogovernos nas organizações,que não podem ser eliminados e; 3) no terre-no das práticas, que procuram ordenar a pro-dução de atos de saúde, que são sempre traba-lho vivo em ato centrado.

E deste modo, seja no rastro da AG ou dequalquer outra experiência de mudança expe-rimentada no SUS (Mendes, 1993; Cecílio,1994), pode-se imaginar que os focos de inter-venção no dia-a-dia do fabricar modelos deatenção usuário centrados estão sempre mar-cados pelas caixas de ferramentas que aumen-tam a capacidade de 1) governar arenas institu-cionais, atravessadas pelas multiplicidades dosatores em cena, com arranjos que se abram pa-ra as suas expressões e decisões; 2) publicizar

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Mer

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o exercício privado do agir, sem matá-lo, comprocessos organizacionais centrados nas com-petências (específicas, profissionais e cuidado-ras) dos múltiplos trabalhadores de saúde, eno reconhecimento da conformação multirre-ferenciada do campo da saúde, tendo como ei-xo o ordenamento a partir do mundo dos in-teresses dos usuários, único ator que pode co-locar seu foco privado para publicizar os ou-tros, na constituição de um modelo descentra-do da lógica dos meios; 3) produzir ganhos deautonomia dos usuários a partir de tutelas cui-dadoras, com configurações tecnológicas doagir em saúde que sejam comandadas pela cen-tralidade das tecnologias leves; 4) não aban-donar as lógicas administrativas que permitama construção de um agir em saúde mais eficien-te, porém não substituindo a racionalidadeprincipal deste agir, que é a cuidadora por umaoutra econômico-centrada, procurando orga-nizar serviços focados nos núcleos cuidadores,

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Por isso, não são quaisquer ferramentas degoverno que permitem agir em um modelo, cen-trado no usuário, que visa a um novo modo deconstruir o cuidado e o forjamento de novos su-jeitos em ação, comprometidos radicalmente coma defesa da vida individual e coletiva dentro deuma ótica de direitos sociais plenos.