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.) •• .~ i":::::" i~ ~ \o ~ !. l , ,. f' ":t' { ~~ e UNtCAlAP UNlVER5IOAOE EsTADUAL DE CAMPINA< Reitor CAALOS HENIlIQUE DE BIlITO CRUZ Coordenador Geral da Universidade Jost TADEU JORGE Pr6 ..Reitor de E.xtemãoe MuntoS Comunic:.irlos RuaEN' MAClfU. f,U1o ~e o 'I ro R ~ ,.: ..... : .. Q:lluelho EdilOri21 ALcl R I'tCOI\A - ANTONIO CARl.OS BANNWART - FABIO MACALHAES GERAUlO DI GIOVANNI - Jo.t A. R. GONTlIO - LUlz DAVLDOVICH LUlz MARQUES - PAULO FIlANCHEm - RJCARDO ANIOO Dirc[or Executivo PAULO FIlANCHE:TT1 ..; (,~ '.; ',I. I.: l'·, i! G I) ..( ii I'i I), n i:.\ I·' i1 li 11 p.j Ij ~) Mel Barros Baptista A FORMAÇÃO DO NOME DUAS INTERROGAÇÕES SOBRE' MACHADO DE AsSIS SBD-FFLCH-USP 1II111I III~ mII~ 1~1I ~fll ~fj 1111 240511 @:Pl l o R A "I:+.+·i:-> /

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Capítuio 7

AUTOR DEFUNTO

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o que é um autor suposto?

Comecemos por um exemplo curioso do procedimento de in-

. trodução do autor suposto e das conseqüências que arrastapara a figurado autor efetivo; .The narra tive of Arthur Gordon Pym ofNantucket, deEdgar Allan P<;Je.O romance abre com um pref*cio assinado pelo pró­prio Arthur Gordon Pym, que nele conta a história do livro nos seguin­

tes termos: regressado aos Estados Unidos depois de uma série de aven­turas, Gordon Pym foi instigado por diversas pessoas a escrever o relatodas suas viagens, que não estava disposto a fazer por diversos motivos, o

principal dos quais consistia no receio de a maior parte dos leitorestomar como descarada mentira a narrativa de acontecimentos tão fan­

tásticos; surge então o sr. Edgar Poe, que se dispõe a contar em seunome, como se de ficção se tratasse, as aventuras de Arthur Pym, basean­do-se naturalmente no relato que este lhe fizera. Mas o inesperado so­brevém: os leitores recusam-se a aceitar como ficção o relato assinado

por Poe. "Disto concluí", escreve Gordon Pyrn no prefácio, "que os

fatos da minha narrativa mostraram-se capazes de conter em si as provasda própria autenticidade, não tendo eu, portanto, nmito a recearda possível

incredulidade do público" (Poe, 1838, pp. 4-5).O sr. Poe é despedido do

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trabalho de escriba, e o herói das aventuras retoma o relato onde ele o

deixara, tendo o cuidado de esclarecer que o leitor notará devidamenteonde acaba o texto de um e começa o outro, uma vez que, diz, "a diferença

em matéria de estilo percebe-seperfeitamente" (poe, op. cit., p. 5). Donde

resulta que o estilo de Poe não afetou o efeito decisivo: a narrativaescrita por Poe não anulava as marcas de autenticidade já presentes nanarrativa que ouvira de Pym. Assim, o processo convencional aparececlaramente invertido: não é a figurado autor suposto que, apoiado na

experiência do que viveu, afirma a autenticidade do que se conta, mas amesma narrativa que se revela capaz de impor a própria autenticidade,

sem garantias prévias e até com indicação manifesta de que se tratava deficção. Pode entender-se tudo isto corno um processo de conjurar ainverossimilhança. Mas está em jogo muito mais.

Está em jogo, desde logo, uma ifuagem de narrativa e de relação

entre ~arrativa e narrador que não s\ ~sgota ~o caso singular de ThenarratIve of Arthur Gordon Pym: uffif narrativa que se reporta a umaeXperiência prévia, podendo transmitir-se de narrador em narrador semperder a autenticidade. E está em jogo; em conseqüência, a imagem doestilo como suplemento ornamental incapaz de lesar a autenticidade,

porque incapaz de dissolver as marcas da presença dessa experiênciaprévia. Essa dupla imagem constitui a primeira ficção, a ficção inauguraldo romance, a qual, ao mesmo tempo que o integra numa tradição de

narrativa (a narrativa de experiências, com o seu tipo de narrador, aquele

que viajou, anterior ao gênero romanesco e diferente dele), caracterizaquer a natureza da narrativa que vai ler-se,quer o tipo de narrador a quepertence Gordon Pym (aquele que não precisa de um estilo apurado,que sabe que "mesmo que o meu livro estivesse mal escrito, a sua extra­vagância, se acaso a tivesse, seria a melhor forma de ser aceito comoverdade" (Poe, op. cit., p. 4)). Resta saber, todavia, se uma tal imagem não

é incompatível com a inscrição de Gordon Pym na posição de autor, istoé, se a sua constituição em autor não o afasta do tipo de narrado r a que

reclama pertencer.

De fato, podemos notar que tudo isto arrasta um efeito parado­xal sobre a condição do autor: se a narrativa gera a própria imagem de .narrador, se as caracteristicas de estilo não lhe afetam a autenticidade,

então, do ponto de vista da recepção da narrativa enquanto narrativa

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autêntica, será indiferente saber quem assina o texto que a transmite. Eé basicamente isto que Goroon Pym aprende com o começo da publicação

em nome de Poe. Por que, então, retómá-Ia em seu nome? Porque ainscrição do nome enquanto nome de autor não é indiferente do pontode vista da fônna de apresentapo da narrativa. O nome de Poe está ligadoa uma forma de apresentação da narrativa como ficção - "para que fossem[os primeiros capítulos) certamente encarados como ficção, o nome do sr.

Poe foi inscrito junto deles no sumário da revista" (ibidem) -, ao passoque o nome de Gordon Pym ficaria ligado a um modo de apresentação danarrativa eTemesmo autêntico, isto é, em que não se atribuiria ao relato

uma natureza diversa da "genuína". Ao retomar a narração em seu nome~

o herói fornece um complemento de autenticidade, anulando a falha quea sagac~dadedos leitores detectou: a narrativa autêntica é apresentada como

narrativa autêntica - por outra narrativa. E compreende-se que o comple­mento de autenticidade a exigiria sempre, porque o gesto essencial deGordon Pym consiste em singularizar a origem da narrativa, anunciando

que as aventuras foram vividas por alguém chamado Gordon Pym, de­pois contadas por alguém chamado Gordon Pym, uma coisa e outraanunciada e garantida por alguém chamado Gordon Pyrn: se a narrativagera, por si própria, uma imagem de narrador, que não é uma imagem

individual, mas um conjunto de traços por ela fornecidos, Gordon Pymesforça-se por inculcar a idéia de que ele, e apenas ele, é portador dessestraços. E é esse esforço de reivindicação da paternidade, de apresentaçãode si mesmo como causa primeira, como origem e garante da narrativa,que faz de Gordon Pyrn um autor. Com a conseqüência inelutável detransformar a narrativa num acontecimento singularizado: é a narrativade alguém, alguém que, por isso, nela inscreve o seu nome próprio, ou

seja, que a assina. Nessa medida, o complemento de <).utenticidaderepre­senta, de fato, um perturbador suplemento de autenticidade. GordonPym arrasta para a narrativa qualquer coisa que lá não estava, a singulari­dade da narração imposta em seu nome e pelo seu nome, e então perdesem remédio a possibilidade de a narrativa provar suficientemente, porsi própria, a sua autenticidade: torna-se narrativa que se diz 'narrativa

que contém em si própria as provas da sua autenticidade". Assim, o ro­mance abre-se dizendo que vai propor-nos uma narrativa que se basta na

demonstração da sua autenticidade, mas, pela mesma operação, mostra

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uma nota final, que é tanto a explicitação da inconclusão da narrativa

escrita pelo punho de Gordon Pym como a notícia da reCUsade Poe ePl

continuá-Ia. E como sabemos que Gordon Pym é um autor suposto?Apenas devido ao fato de o nome de Edgar Allan Poe não ter sido efetiva­

mente removido. E o nome de Poe, di-Io Gordon Pym, garante o estatutoficcÍonal de uma narrativa. .

Assim, lendo o prefácio depois de ter encontrado o nome de

Poe na capa, sabemos que Gordon Pym é, na verdade, uma invençãode Poe, que se apresenta como se não se apresentasse, deixando Gordon

Pym apresentar-se como Setivesse despedido Poe da tarefa de escrever orelato de suas viagens. Sabemos mais, é claro. Sabemos, desde logo, por­que isso é válido para Poe como para Gordon Pym, que Poe se constituiautor ao assumir a responsabilidade da forma de apresentação da narra­

tiva de Pym: a qual consiste, desde logo, na enunciação do título (quediz, recorde-se, que a narrativa é de Gordon Pym) e, depois, na passagemda palavra a Pym, para que apresente a narrativa de maneira tal que oque dela diz seja desmentido pela maneira como o diz e pelas condiçõesem que o diz. Sabemos também que é isso que transforma uma narra­

tiva em romance: a possibilidade de lhe designar uma origem SingUlar_}

delimitando uma proveniência, definindo Uma paternidade e \lma pro­priedade -, de, a partir dessa origem, pressupor uma finalidade, numapalavra, a possibilidade de singularizar a destinação da narrativa recor­

rendo a um nome próprio. E sabemos.> por isso, que um romance f)se!!!E!emais que uma narrativa. Exc~de-a desde o início, porgue o inau(guE a ficção que a apresenta destinando-a ao leitor c narrativ

singular de um autor singular. Decide-se nessa destinação o lugar oautor: e o autor suposto é, então, uma ficção com o inegável e apreciávelmérito de conduzir o leitor a interrogar o estatuto do autor, impedindo

que funcione com valor assumido. Por outras palavras, a figura do au-3

tor suposto constitui um procedimento que transporta a figura do autor .;fi­para o interior da ficção sem o retirar totalmente do exterior da ficção:

torna-o visível nUma linha de fronteira que delimita o romance e exigedo leitor uma decisão interpretativa.

Retenhamos, depois disto e por agora, ao menos uma distinçãoelementar: tal como o romance não é simplesmente uma narrativa, o

autor supost~o é simplesmente ';m narra~emos começar ~a.------~-...-- -----'"

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Depois deste exposé, ver-se-álogo quanto do que segue reclama comoresultado da minha escrita; e perceber-se-átambém que nenhum fatofoi alterado nas poucas primeiras páginas escritaspelo sr.Poe. Mesmopara os leitoresque não as leramno Messcnger, é desnecessárioindicaronde acabaa parte dele e começaa minha: a diferença em matéria de

estilo percebe-seperfeitamente. (Poe, op. cit., p. 5.)

O Exposição exemplar do autor suposto: Gordon Pym acaba por .

dizer que, de certo ponto em diante, quem escreve não é Poe, mas ele,

Gordon Pym. O autor suposto despede o autor efetivo. Não espanta,

\ por isso, que a ficção se encerre incompleta, e que seja preciso um terceiro,,ª"gora anônimo, para, na seqüência da morte de Gordon Pym, escrever

que a autenticidade de uma narrativa ou se aceita ou se inculca, por ser. uma dimensão suplementar e não uma presença inerente e irremoYÍvel.

Compreende-se, então, que o que essencialmente se decide nesteprefácio é menos a autenticidade da narrativa do que a inscrição do'nome de autor, Ou, se se quiser, a estratégia de neutralização da inveros­similhança desenvolve-se através da diferença entre os nomes - o nome

de Poe e o nome do seu herói e autor suposto -, colocada como objetoda ficção que inaugura o romance. Gordon Pym não se constitui autor

.[suposto por ter vivido as aventuras que viveu, nem sequer por aparecer

como narrador dessas aventuras, mas apenas por assumir a paternidadeda narrativa e a responsabilidade da sua forma de apresentação: em seunome. Adquire assim um novo traço de identidade que nem a experiênciadas aventuras nem a narrativa lhe garantiam: torna-se aquele que escr~ve

para o público leitor o relato das aventpras que viveu, que quer que o

p~blico leitor saiba que ~oi_ele que, es~eveu o re1at~ da~ aventuras ~ueY1veu,reclamando a condlçao de ongér; ou causa prImeIra da narrativa,afirmando-se o garante da sua autenticidade. Origem e garante: é b quefaz de alguém um autor, mesmo que através da ficção, isto é, mesmo quesaibamos que a figura em causa não é origem e garante senão ficcio­naImente. Mas, ainda que na ficção, a operação continua a mesma: ainscrição do nome próprio como assinatura do texto. É isso, de resto, quefaz do motivo do autor suposto um processo de escIareçimento romanescoda condição do autor. Só a partir desta operação - a assinatura - elepoderá dizer:

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Sim, era o último dos sete cadernos, com a particularidade de ser omais grosso, mas não fazia parte do MemoriaJ, diário de lembranças

O "editor" anuncia deste módo urna falta decisiva, já que res­peita ao próprio título do caderno, e ainda mais significativa quando sesabe da diferença que separava·o último caderno dos restantes seis:

Quando o conselheiro Aires faleceu, acharam-se-Ihe na secretáriasete cadernos manuscritos, rijamente encapados em papelão. Cadaum dos primeiros seis tinha o seu número de ordem, por algarismosromanos, 1, II, I1I, Iv, V, VI, escritos a tirita encarnada. O sétimotrazia este título: Último.

A razão desta designação especial não se compreendeu então nemdepois. (Oe; vaI. 1,p. 946.)

Uma "advertência" inicial, assumidamente da responsabilidadede um "editor", indica-nos que a narrativa que vamos ler foi de fatoescrita por um certo conselheiro Aires:

2

nome e na personagem, autor suposto e narrador serão sempre duasentidades estruturalmente inconfundíveis, já que este se coilStttul na

~ cantir uma expenêncÍa md1Vldual, enquanto aquele surge para,pela ficção, proclamar a narrativa dessa experiência romanescamenteinteressante. Assim, compreende-se que, no processo interminável do

fingimento, o autor suposto tem disponível a possibilidade perversa deapresentar a sua narrativa como se fosse a narrativa de outro: numa

palavra, a possibilidade de fazer com outro o que o autor efetivo fez

com ele. Resta saber, todavia, se esse processo não implica uma desfigu­ração irremediável do próprio autor suposto.

Vamos encontrar esses problemas num caso complexo de recurso

ao motivo do autor suposto - Esaú eJacó, de Machado de Assis -::..-Q.....

~t~_rá retomar QJ.~.!ren0Sl-ue-nosiuteressa,m:m~w~:a.p'~r-_ceber até que ponto o autor suposto arrasta, já por si, uma desfiguração

irremediá~l do auto~~----_· ------

lOquedistingue o romance de todas as outras formas de prosas ­contos de fada,lendas e mesmo novelas - é que nem procede da tradi­çãooral nem a alimenta. Nissose distingue especialmenteda narrativa.

O narrador retira da experiênciap que ele conta: a sua própria expe-riênciaou a que lhe foi transmitid~.E o que eleconta toma-seexperiên­cia para quem o ouve. O roma .Cistamantém-se distante. A ori em

do,.!.omanceé o indivíduo isola ~, que já ~lar exe~r­mente sobre as suas preocu a ões mais importa ar ue não re­cebe conselhos nem sabe dá·los. creve! um romance significa fi rem ~ma vida-:tüdo o Quenão tem medida

~~enjamin, 1936, p. 201.)

o que daqui se pode retirar, para o que por agora nos interessa,é que a narrativa tradicional se transmitia numa modalidade de apresenta­

ção que se mantinha intacta, de tal forma que proveniência e finalid~garantiam um sentido ao ato da narração: dar conselhos e ouvir conselhos,

90S termos de Benjamin. O romance-;em multiplicar as formas de apre­sentação com a ambição de definir, por seus próprios meios e como se

fosse a primeira vez, o sentido com que oferece a sua narrativa: singula­riza a sua destinação e nesse processo, que dispensa um espaço própriono corpo do romance, podendo permanecer implícito, instala os seusnarradores. A diversidade romanesca dos narradores é, nesse sentido,

solidária ao projeto que retira o interesse do romance da vocação paracontar o que não tem medida comum (sem que isso signifique, como

teremos oportunidade de discutir a propósito de Brás Cubas, que essasingularização da experiência arraste necessariamente a perda da dimensãoexemplar da narrativa). Em conseqüência, ainda que coincidindo no

t

entender a diferença notando que a figura do autor suposto é especifica­mente romanesca, enquanto o mesmo obviamente não acontece com

*tonarrador. Encontramos em Walter Benjamin uma oposição do roman­

ce à narrativa que situa o problema em te~s que ajudam a esclarecero que está aqui em causa. No famoso ensaio sobre o narrador - que é,- - --.:-----:.para ele, como se sabe, fundamentalmente o narrado r tradicional, ou

o::;QtadQ[ de histórias C!l2.azesde se transmitirem ~ tradiªo -, Be~­jamin afirma que o aparecimento do romance é um dos fenômenos queconduz à morte da narrativa:

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a uma enunciação em primeira pessoa e, simultaneamente, outro, onis­

ciente, em 3a pessoa. As digressões e observações sobre o texto vão porconta do primeiro e a narração por conta do segundo" (Brayner, 1979,p. 80). Não se vê, no entanto, como sustentar semelhante partilha depapéis: o~e está o narrado r em "3a pe~soa"? E como conceber umnarrador que, afinal, não narra, apenas divaga e profere observações

sobre o texto? Eis um exemplo enf que não se pode deixar de seguir~&oth.-@ando assegura gue dizer de uma história que ela é-------_.,~...... - .....-.;.- ...•._,.,~

coplª,4~a..PJimeira ou na terceira. pess.o.a_nã~_~osconcede ~~_nhumí~ação inw,ortanre (cf. Booth, 1961b, p. 272), negligenclâii-diga-se de passagem, o fato de que, em rigor, não exist~arrativa senão

rlaPrimeira pessoa. Mas aqui, em Esaú eJaeó, que semelhança se pod-estabelecer entre o narrado r que diz "eu" e o narrador que diz "eu" em

QuinC3s Borba ou em Dom Casmurra Se aquele que diz "eu" em Do~m

Casmurro é o próprio Dom Casmurro, há tanta razão para pensar quaquele que diz "eu" em Esaú eJacó é o conselheiro Aires, como para Sepensar que o "eu" de Qpincas Borba é o próprio Machado de Assi .apenas a razão persistente mas insustentável, da forma mais grosseira,

ou mais ingênua, de identificação, a que leva o leitor a supor que é oautor quem fala sempre güe o romance não instala um narrador definido

por traços individualizadores. Assim, deveremos entender a presença do

conselheiro Aires de outra forma: em Esaú e lacó, o romance reprod~,

pela ficção cf!?.. autor suposto, o processo de constituição dQ narrad~~

útiÍizado em Qpincas Borba. Não há como poupar a leitura ao con-

fronto com uma dupla ficção: a que conta a história d;s dois gêmeos ~ ~~

de Flora, naturalmente, mas ainda, antes dessa e ao mesmo tempo que \essa, acomp'@hando-a, a ficção que apresenta o conselheuo Alres co~/romancist~.

- Ora, é justamente porque fures começa por aparecer na qualidadede romancista que o problema da relaçã'o entre o Memoriaf e a narrativa

se levanta e subsiste sem resolução: a escolha de um narrador que não se

identifica com Aire.s é o primeiro e mais importante indicador de que anarrativa se distingue dos primeiros seis cadernos - trata-se de uma .escolha do próprio fures, que se justifica por uma opção mais vasta,opção pelo romance, que, por sua vez, apenas o próprio Aires poderáapresentar. Ora, a opção pelo romance não é, nos termos da "adver-I

o,"

.~,

que o conselheiro escrevia desde muitos anos e erá a matéria dosseis. Não trazia a mesma .ordem de datas, com indicação da hora edo minuto, como usava neles. Era uma narrativa; e, posto figureaqui o próprio Aires, com o seu nome e título de conselho, e, poralusão, algumas aventuras, nem assim deixava de ser a-narrativaestranha à matéria dos seis cadernos. Úldmo por quê? (Ibidem.)

.,..:.~f

Assim, o Memoria/ e a narrativa são dois produtos distintos doengenho do conselheiro, mas, se nó primeiro o seu estatuto fica claro,no segundo as coisas complicam-se: não se sabe o que Aires pretendiacom ele, e fures está morto, nada pode esclarecer. Acresce uma dificuldade

suplementar: no corpo da narrativa, em momento algum fures aparecepara falar dela no seu todo, dizendo o sentido da composição ou o

destino que lhe projetava, coisa que, para um autor suposto, nada teria

de anormal, como já vimos com Gorfon Pym. Aires aparece, é certo,

mas bem diferentemente, figura co:ne! personagem: que mantém, paracúmulo, um "memorÍal", onde faztcliversas anotações, sem que oMemorial que compunha os seis primeiros cadernos abrigasse, por suavez e a fazer fé no "editor" (que o Memorial não está ainda publicado),

qualquer referência à narrativa. Em suma, o conselheiro Aires não é onarrador.

O narrador, este resulta de uma escolha que, em si mesma, sereconhece e aceita sem dificuldade de maior: fures simplesmente escolheuuma modalidade de narração que o afasta do lugar e da função de

narrador. Os problemas e os equívocos começi1m, porém, quando severifica que essa modalidade retórica consiste, afinal, no chamado "nar­

"radar na primeira pessoa": um narrador que diz "eu", que trata o conse­lheiro Aires como um "ele", que divaga, comenta, interpela o leitor, em

suma, como diria Augusto M~er, um narrador em que parece estar~vo o espírito e o estilo de Brás Cubas. Ora, justamente porque nos

aparece ,um narrador que diz "eu" depois da "adVertência" que instituifures como autor suposto, se não se tiver presente a necessária distinçãoentre autor suposto e narrador, esta situação torna-se incompreensível,

\ ou gera equívocos, que podem macular o discurso crítico mais arguto. Éo que acontece, por exemplo, com .s-.ô.,~~ªBtawr, que sustenta a respeitode Esaú éJaeÓ". "QIanto a Bsaú .eJaeó, há mesmo um desdobramento

na flgura do narrador, um conselheiro Aires pseudo-autor, identificado

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tência", questão ociosa, porque vários elementos concorrem para rela­cionar a narrativa com os seis ..cadernos anteriores: desde logo, a pre­

sença de Aires como personagem, depois, o fato de essa personagemtambém manter um "memorial", mas principalmente o título Oltimo:

afinal. a própria questão da razão de ser do título, que ocupa o grossoda «advertência", resume-se ao problema da opção romanesca de Aires.

"Último" aparece remetendo para os seis cadernos anteriores, ou essaidéia é apenas sugerida pela circunstância ocasional de o caderno se

encontrar junto dos outros, caso em que o sentido de "último" se deveria. procurar exclusivamente na narrativa? Este conjunto de interrogações

incide sobre a unidade global da escrita do conselheiro e emerge exigindo·

as marcas da decisão de fures. Aires, porém, está morto,. nada podeacrescentar ao texto que deixou escrito: e o texto que deixou escrito,

para o. "editor", não. transmite qu~lqu"r decisãr' ~orque subsiste comonarratIva - e narrativa em que Aires e /Suposto nao ser autor.

,,~ " A primeira conseqüência dest~ situação está na impossibilidade&J\V de, em nome do conselheiro Aires, equacionar a relação entre os setecadernos, ou seja, a impossibilidade de estabelecer a relação entre osdois tipos de cadernos fundada no nome próprio do seu autor. Mas anarrativa tem, mesmo nas circunstâncias descritas, a possibilidade de

construir, por seus próprios meios, a figura do seu destinador, de selibertar da relação com os outrOs textos assinados por Aires, adquirindo,em suma, uma existência autônoma, que é, como se compreende, o que

justifica a sua plJblicação separada do Memorial Daí que apenas a nar­rativa se publique, e daí que o título seja alterado. Assim, poder-se-á

defender que o sentido da opção romanesca do pseudo-romancista se dáa ler ao longo da narrativa, e provavelmente não temos outro caminho,

se qu.isermos compreender o alcance estratégico da sua instalação comoautor suposto: só que, e nisso reside o aspecto crucial para o que agora

nos interessa, qualquer decisão nesse campo pertence à esfera de riscodo leitor, que em momento algum encontra quem quer que lha legitime.Falta precisamente uma instância legitimadora, que apareça perante oleitor com autoridade para dizer o sentido da forma com que se apresen­ta a narrativa: mas falta calculadamente, ou melhor, essa instância

legitimadora está delimitada - é o conselheiro Aires enquantoroman­cista -. mas delimitada pela "advertência" como instância em falta.

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Ignora-se, porém, até onde vai essa falta. porque a escolha de um títulodiferente, em conjunção com a natureza do escrito, sugere que a narrati­va está disponível para uma situação de autonomia relativamente aosrestantes cadernos. Tudo se passa como se fures tivesse abandonado anarrativa à sua sorte, qu como se a morte de A1resviesse deixar a narra-

tiva abandonada à sua sorte. Empiricamente morto, na qualidade de,J/h~es está estruturalmente morto na qualidade de romancist~,;9Ç!

e esta última condição permaneceria mesmo gue se descobrisse qu~,Jafinal, não tinha morrido, mas apenas mudara de identidafk..adotand<0o pseudônimo Machado de Assis. Fosse por decisão, fosse por acaso, a

-- """? --

m~ fures deixou a narrativa entregue a si mesma, isto é, disponívelpara se tornar diferente de si mesma.I

- Mas, nos termos da "advertência", não é possível ultrapassar

essa figura de Aires morto: é o seu legado que persiste por interpretar.Percebe-se a dificuldade na posição do "editor"; não tem outro caminho

senão publicar a narrativa legitimada por uma opção que não podefundar em fures. Com a "advertência", reapresenta a narrativa. A "adver­tência", porém, funciona como suplemento que recusa graduar-se emcomplemento: longe de se organizar para suprir plenamente a faltaoriginal, não renuncia ao risco de a sublinhar, delimitando com clareza

o espaço da falha. Altera o título, mas dá notícia do enigmático título.original; liberta a narrativa da origem chamada Aires, mas, pela mes­míssima operação, preserva-a, designando Airescomo origem material

do escrito, origem irremovíve1 e, aO mesmo tempo, inacessível, incapaz, .

portanto, de funcionar como garante do texto. Numa palavra, o "edi-1tor" sublinha que Aires assinou de fato a sua 'narrativa no preciso mo-)mento em que inscreveu o título Último. Daí que a procura do sentidoda opção romanesca de fures se apresente como forma de delimitar osentido com que o nome de Aires aparece a assinar a narrativa: serásempre a opção romanesca de Aires, nunca a do "editor"> mas será sempre

também uma opção construída pelo leitor e atribuída a Aires pelo pró­prio processo da construção - sem garantia ou sequer probabilidade

de coincidência harmoniosa com a presumível opção de Aires. Não há

lugar para a figura do "autor implicado", nos termos em que a defineBooth, porque está vedado, desde a origem, o caminho para o que Booth

chama "a leitura ideal" (cE Booth, 19613, p. 153). Verifica-seuma inversão

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do processo de autorização, porque agora é a necessidade de singula­rizar a destinação da narrativa que obriga a reconfigurar o nome deAires: e então, Aires, ao abandonar a narrativa à sua sorte ou ao ser

obrigado pela morte a abandonar a narrativa à sua sorte, abandonou defato o seu nome, entregando-o aos acidentes de uma destinação inde­

terminada. Abandono, de resto, tão irremediável como anômalo, porqueó nome de Aires, sem deixar de designar a sua presença no texto, fica

disponível para receber as figurações construídas pelo leitor, constituin­do-se conjunto aberto de possibilidades que a origem não permite con­trolar. E é esse ° preço que Aires paga voluntária ou involuntariamente

pela inscrição do seu nome próprio enquanto nome de autor. o sentidodo seu nome dependerá sempre da leitura do texto que assina. Se se quiser,

adotando uma formulação que poderá ter alguma utilidade nas próximas

páginas, o seu nome designa~á, :~quant~ no~e de autor, um morto e oseu legado, sem assegurar a viabIlIdade de acesso entre um e outro: bem

diferentemente, opera a disjunção que o) separa do mesmo passo que osmantém unidos. .

3

Alinhemos agora três tipos de considerações que nos permitirãodelimitar os traços decisivos do procedimento do autor suposto, con·firmando e completando o que já concluíramos através do exemplo

de Gordon Pym.

a) A indicação do nome próprio do autor realiza a função deci­

siva na delimitação do respectivo estatuto: a assinatura. Ora a assinatura

tem eficácia paradoxal: por um lado, o nome de autor designa umaorigem, anterior ao texto e idêntica a si própria - e nessa medida institui

a responsabilidade de destinação da narrativa como responsabilidadeirremovíve1 e intransmissível; por outro lado e na mesma operação, onome de autor, ao inscrever-se como garante da unidade e da singulari­

dade ~o texto, é afetado por uma potencialidade de sentido, assumesignificações que a origem não pode calcular e tampouco controlar - enessa medida define a responsabilidade de destinação da narrativa como

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responsabilidade que se reconfigura para responder ao apelo do leitorcomo se respondesse desde sempre. Assim, não há autor sem assinaturáque imponha a presença do autor, mas o texto assinado separa o nomepróprio do portador, perturba-lhe a referência, de modo que a marca depresença do autor é, ao mesmo tempo, a força que o torna ausente.

Então, se o autor não aparece para, expressamente, reinscrevendoo seu nome, assumir e declarar que assume a responsabilidade de destinar

a narrativa - como era o caso de Gordon Pym -, a simples presença daassinatura cumpre essa função. A responsabilidade de autor é, por isso,rigorosamente intransmissivel, e dai que a única forma viável de trans­missão seja a que justamente nega a transferência: a apropriação, figuragêmea da atribuição, já que uma e outra se fundam na possibilidade de

o nome de autor funcionar como nome de autor na ausência do portadordo nome e na ignorância ou na ocultação das intenções, dos projetos oudas determinações com que o inscreveu no limiar do texto. E daí, sobre­tudo, que a indicação pelo outro do nome de autor seja ainda umaforma de assinatura, porque realiza a mesma função que a indicaçãovoluntária: no fundo, a operação de atribuição funda-se na idéia de queo texto atribuído tem em si as marcas da assinatura do autor, repondo­lhe o nome no lugar convencional como se de lá tivesse sido removidopor acidente. Mas, qualquer que seja a natureza do acidente - nestecaso, a morte de Aires -, o processo está invertido, parte-se do texto parao nome, porque este inscreveu-se disponível para s,e,configurar em res­posta a uma leitura do texto.

Neste ponto, não se seguir Genette quando sustenta que o

fato de "o destiDª®I= _~e...ge autor não ser necessariamente o pró­prio autoó~m . ~. tm a indicação de nome de autor

da assinatur.~_ cf. Genette, 1987, p. 46). D fato, O nome de autor podeser inscritp pel '- --.,----.' . co e ISSO bom exemplo, posto Genette

não o cite: mas exemplo que nos ensina que, ainda que ins-crito pelo editor, o nome próprio enquanto nome de ,autor responsabi·

liza sempre o autor, e, neste caso, o autor está disponível para ser res­

ponsabilizado désde o momento em que inscreveu um título. A assina­tura realiza um ato performativo ao fornecer ao leitor um nome pró­prio capaz de designar a singularidade de uma destinação, e só cumpre

essa função se, como insiste Derrida (cE Derrida, 1971b, pp. 390-92),

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paço que está no liIIl;iar'dos textos, parando o interior do exterioI:,.. _fazendo fronteira, criando uma moldu tecto-urrrÔbJcto

abordável, porque delimitado. A assinatura inscreve-se aí, e por isso nãoé nem simplesmente interior ao texto assinado, nem simplesmente exte­rior: em qualquer dos casos, valeria apenas como simples indicação denome próprio, incapaz de realizar os efeitos específicos do ato de assi­nar, porque a assinatura, inscrevendo um nome próprio, é sempre maisque um nome próprio.

Aires, como vimos, aparece com um estatuto duplo em Esaú e IJacó. enquanto personagem, o seu nome pertence ao interior da na'itãfiVã;,/}

~antoal,!!gr sUP~~J:!!:t"?~9J::xt<;~~~~da na . a "advertência" do "editor'~. O nome da personagem não

1:;. --

chega para o i en Icar como autor, tendo presente que nem sequercoincide com o narrador; mas a inscrição do nome enquanto nome de

autor não fica simplesmente de fora, porque, desde a "advertência", onome de Aires adquire uma duplicidade que não teria sem o processo

da atribuição._~glmJjçida~ gue permit~Jlor ~)Ç~IDQL<?-,_a!~i~r? citadade Sônia Brayner, que aponta UI!!~_5:!i.YÊ~Q,.Q.,a.fjg!lr.a.90. narrador,

-impensável sem a.~1!.~!9E()AQ_P:C?!l:l~,_deautor na "adv~rtêQQ,ª"._e..~~r:n. queessã-íilcIlcãÇãc;se estend~$.~.?:9_纺j!ll.1t~ cl:anan:~~v~.}\l1as,.ao.mesmo

te~po, como ler o texto sem assumir que Aires-Rersona~em não.éAires--'ãutõf; mas umãconstrUaõ-dê-Aí'res-ai:tt~r( É impossível confundi-l os,

poFcausa d~linha que' d~marca o '~;lor de um e o valor de outro: a"advertência" cria um espaço próprio para a assinatura, instituindo umafronteira para além da qual o nome "Aires" se repete permitindo o reconhe­cimento do conselheiro mas tomando-o diferente. Assim, o sentido do

nome de Aires-personagem depende do aparecimento do nome "Aires"como nome de autor, e este, por sua vez, fica determinado pelo apareci­mento do nome uAires" como personagem ..Des~~,m-ºçlo, a ficção, ao

jogar com a iterabilidadedo nome próprio, expõe a nature;~legisladoradessaíronteirnlue-ôel1mít;'·à,- unidiâe- e' a~horfi.ogehêÍdadé·ôa-riâirÚíva-. ".

----j'i·'ti~~~;s-ri;o ci;~omepróp-iio' sêrécóiífígurã-p;r;;~p~n-der ao apelo do leitor. Agora, podemos verificar como a fronteira deli­mitada pela "advertência" radicaliza esse efeito: quer como autor, quercomo personagem, o nome "Aires" desligou-se de vez do indivíduo

chamado Aires, que usava o título de conselheiro e deixou sete cadernos

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( b) O nome próprio do autor marca a responsabilidade indivi­'-~ dual de destinação da narrativa na condição de se inscrever num espaço

~1"ÓPriO. Éesse espaço próprio e a sua natureza especial que Derrida teminterrogado nos trabalhos sobre o parergon (cf., em especial, Derrida,

978a), e que Genette, com outra orientação, chama paratexta. um es-

puder desligar-se de uma intenção presente e singular, porque é dessa0i forma paradoxal que a ligação à origem se efetua e se preserva. A verdade

é que Genette trata as modalidades de indicação do nome de autor no

t L \ que chama "peritexto editorial" sem interrogar o estatuto dos nomes)t ") próprios e, em particular, sem levar em conta o efeito que a indicaçãodo nome produz sobré o próprio autor: justamente porque apenas con­sidera o processo num único sentido, isto é, como fonte de autoridade

e designa~m consciente e voluntária. Num ensaio bemanterior, iÔ1elFouca já notara que o nome próprio de um autor"não é propriamente um nome próprio entre outros" (ef. Foucault,

<~') 1969~, p. ~e os trabalhos de Derrida sobre a assinatu.ra (cf., em:r ) espeC1al,(í5é~ 1971b, 1984b) mostraram que esse funcIOnamentoanômalo~e próprio é afinal a sua condição de possibilidade. Em

particular, no que respeita à literatura e à formação da noção de literatura

mo noção moderna, a assinatura tem~éfeito de performativo jurídico,não apenas no sentido em que o ordenarpento institucional da literaturadela depende, mas ainda porque o texto assinado legisla, estabeleée uma

~mpõe a si próprio e a quem o lê (sobre isto, veja-se,em particular,

/ Derrida~ -SSlmse compreende que a narrativa de Aires se possa publicar

libertada da presença de Aires. E assim se compreende, em especial, que,

\ tal como aconteceria se Aires publicasse a narrativa por sua iniciativa,., , \ e tal como acontece com Machado de Assis ao interpor Aires como

,.·:r~ ) autor suposto, a assinatura possa valer por si própria, sobrepor-se a'. < qualquer intenção e a qualquer projeto, sem deixar de singularizar uma

UdeStinaçãO.Por isso a assinatura se impõe, e o leitor a exige: e por isso a

. literatura resiste à imposição e trapaceia a exigência. O motivo do autor

suposto é uma das armas da resistência e um dos artifícios da trapaça:expõe a condição do autor como origem e garante de um texto para lhe

paralisar o fu,nclonamento. " ,

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na secretária quando morreu, e, ao desligar-se, dividiu-se. Já não é onome que, por si só, assegura a estabilidade de uma designação, são osespaços espeáficos em que o nome ocorre que lhe perturbam a referência,

dividindo-a numa dupla referência problemática: será ix:opossívelencarar

Aires-Eersonagem esquecendo Aires-autor, mas se~ente impo;__ -....:::L

síve1confundi-Ias. .-- .

i Claro que se pg.deci...supo-t-que-.Â:if€s--prmonagemRão passa.4.e..-.~!DP-º-rta-y-º~çllL.d.e....UlD....,y!.~L(ó'@..4LA-ir.es:autor: mas, então, por que

razão fures compõe a narrativa de que é autor figurando nela como senão fosse autor? O problema da distância de Aires a Aires permaneceráinsuperável. Para apreender a narrativa como totalidade unificada queuma dada instância nos destina; é preciso que O nome de fures se dividae depois se reunifique, designando a singularidade dessa destinação: é

preciso reconhecer que ocorre já afetaqo pela divisão, prometendo a

. / possibilidad~ de reun~ficação e, mais .c\d,q~e isso, exigindo-a.'b . O leitor estara sempre, do pfln~lpIo ao fim, a procurar respon­

\ der à questão: de que(m) falamos quando falamos do conselheiro fures?\ Mas não encontrará, no interior da ficção, uma voz autorizada que

~ defina ~ distà:ncia e~tre Aires-autor e Aire~-personagem: daí ~~e tenda. a( procura-Ia no exterIOr da ficção, em maIS um nome, que Ja apareCIa\ __antes: Machado de AssÍs.

/ cl.)1 de fato,..Q. romllpq:. arrasta..uma. 9.A!;ra obrigago E,araguemi lê: não esquecer ~e o seu._~).ltoré,_atiº-ªl~Machado de Assis. Obrigação de

~ta1''ffiodo7o;te-que:à-~ua custa, se tende a~quecer uma outra, não menos

( coerciva: a de pressupor que Machado de Assis não fala senão para instalar! Aires como autor suposto, ficando, nessa medida, colocado no exterior

/ da narrativa. São duas obrigações que já encontramos no jogo com o

: nome próprio e a assinatura de Aires e que sabemos inseparáveis, porque~~. resultam uma e outra da capacidade legisladora da assinatura.

Desta forma, a assinatura de Machado, presente ainda antes da

"advertência", que, aliás, se lhe atribui demasiado depressa, indica-nosque todo o jogo com o nome próprio e a assinatura de Aires constitui oacontecimento inaugural do romance - trata-se de ficção -, mas indica­

nos sobretudo que apenas o nome de Machado nos permite designarEsaú eJaeó como romance que se destina enquanto totalidade unificada.

150

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Aqui chegados e antes de prosseguir, podemos estabelecer umaconclusão decisiva sobre o traço distintivo do autor suposto: o motivo

do autor suposto consiste na exposição ficcional do própn~'&a-;.nnatuliiãe7nífõi. Re roduz a fronteira ~

.---~J:~o, e nessa medida legisla inapelavelmente s·~bre ~ t~"a

atribuído; mas reprodu-Ia no Ínterior da ficção, e nessa medida sofre,

por sua vez, a ação legisladora de uma outra assinatura que necessa­

riamente se apresentou antes da assinatura ficcionaI. Assim, não haveráautor suposto sem essa peculiar ficção em que alguém se apresenta assi­nando um texto e dizendo que o assina depois de uma outra assinatura

se ter proposto à leitura ..E será preciso ter em conta este traço, se se

....9uiser distinguir o autor supo~_toda figuras uito mais freqüentes, aenarradores dramatizados, ou das formas diversas de ocultação o nome

. próprio de autor, comO-a-ps0~deflí~~~as...lõrmas...roiiii?1ex:as-cte

dispersão do autrl.r...f.omo a hetero~a. O motivo do autor sup~t~enfim, nem oculta o autor efetivo, nem anula a ficção de autor: eleassenta na diferença entre dois autores, ou seja, na diferença entre duasassinaturas inscritas num texto úníco.

Assim, se não há autor suposto sem uma fronteira ficcional que o

instale, criando a diferença que o apresenta enquanto construção da res­ponsabilidade de outro e, em conseqüência, gerando as condições para /

que o leitor nele reconheça uma figura ficcional, percebe-se que as exPlica-(ções convencionais do motivo que o relacionam com o problema da

verossimilhança do discurso romanesco se quedam à margem do mais 7importante (o que, aliás, se verificaria facilmente, tendo em conta a \

fecundidade que ainda apresenta e a sua utilização de forma tão inve~ossímil)como a que vamos encontrar em Memórias póstumas de Brás Cubas). O

decisivo está no jogo com a própria noção de autor. Çriando ~çõespara o reconhecimento do autor suposto como figura ficcional, o rn..Qtlvol:emuriu;I~!Eõ.':.Qereversã<T,-ftfetand'O-a-êonaiçao-cropropr;:õ;;t~r efetivo:

c~o do au~tem ãpo;si61iid~dedé,-pela ficÇi;~~~i;~-~processo de constituição de um autor, o estatuto da sua presença no texto

que assina e a natureza da relação que mantém com o seu nome próprio,porque coloca em cena a posição do próprio autor efetivo. Coloca emcena, quer dizer: toma-o objeto de interrogação. Mas uma interrogação

incessante, que não encontrará, em rigor, obstáculo que a sustenha: o que

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a respeito da psicologia da invençâo ou da descoberta, portanto nenhumajasserção sobre a presumível intenção do autor, mas a singularidade da

resolução de um problema» (cf. Ricceur, 1985, p. 235), e é essa resoluçãode um problema que configura o "autor implicado": a singularidade de

um problema recebe um nome próprio, o· do autor. Mas, a partir domomento em que faz entrar em cena o nome próprio, a aproximação de

Ricceur representa um verdadeiro afastamento, que, aliás, revela um pon-to frágil da noção de Booth: o nome próprio já não designa um homemreal construindo uma "versão superior de si mesmo", como o entendia

Booth, mas apenas essa "versão." construída pejo leitor, perdendo-se o

termo de comparação com o homem real. Numa palavra, a leitura apro­pria-se do nome próprio, sem saber que se apropria: assume o texto

como fruto da escolha de alguém, não como existência autônoma, mas,se o texto não estivesse dotado de autonomia que lhe confere a assinatura,não seria possível configurar um "autor implicado". A menção do nomepróprio do autor para designar o "autor implicado" tem justamente o

efeito paradoxal que já conhecemos: marca não a presença, mas a ausên-

cia do homem real, do autor efetivo, ou o que se lhe queira chamar. A

ausência, isto é, a sua perda definitiva: a impossibilidade de, a partir dasua identidade ou da sua escolha enquanto romancista, estabelecer osentido da destinação do romanCe.

O afastamento operado por Ricceur, além da mais, apresentaainda um outro momento, não merios importante: é que o "autor impli­cado" designado pelo nome próprio do autor real estende-se aa conjuntoda obra de autar, operação de modo algum autorizada pela noção deBooth, que entende cada obra como uma versão diferente do autar, ou

seja, cada obra constrói o seu "autor implicado" (cf. Booth, 1961 b, p. 89).

Enquanto o "autor implicado" constitui uma categoria retórica depen­dente da autonamia de cada texto de ficção, o nome próprio é tambémprincípio de unificação e de homogeneização de um conjunto de textos.

Verifica-se, então,. que o caráter incontornável da assinatura se traduz,numa circularidade: cada obra é dotada de autonomia para gerar imagens

de "autor implicado", mas toda a obra derronta, ao mesr'Ío tempo, ima­

gens já constituídas de "autor implicado", que inape1avelmentese importamde outras obras do mesmo autor. O que perturba a autonomia de um

teXto singular não é a categoria do "autor implicado", mas a autonomia

153

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152

implica que colocar em cena é um modQ de colocar em causa, de tomar

irrecuperável a estabilidade do autor c:fetivo.Adotando, para o que aquinos interessa, uma caracterização de Eduardo Prado Coelho a respeito dePessoa, diremos que a instalação do autor suposto e.p.gendra"um processo

generalizado de Iicdonalização que não tem regresso viável, e, por issomesmo, a identidade supostamente real só é recuperável em termos deuma identidade também ela fictícia" Coelho, 1987, .47. Está aí

~~~-ºJ:~diQl~vo...dº-autor suposto: nfuLapen~strói a ficção_~~J1tol:,_cº.m9"transforma o autor real - -

O que está aqui em causa é muito simplesmente a necessidade de

reconhecer que a fronteira ficcional que instala o autor suposto nem porisso se deve entender como fronteira fictícia, porque a nossa leitura nãodispõe de liberdade para proceder como se lá não estivesse. Considerandoainda a "advertência" de Esaú eJacó, cclmpreende-se que essa fronteira

realmente atua: de outro modo, nunca\.saberlamos quem é, ao certo, Oautor efetivo do romance, no estrito sen~do em que nunca saberíamos seBsaú eJacó deveria ou não integrar-se na obra completa de Machado. E é

por essa mesma razão que o nome de Machado pode aparecer como oúnico capaz de designar a destinação do romance enquanto totalidade

unificada. Não há, então, uma única leitura do romance que não assuma,implícita ou explicitamente, o valor efetivo dessa divisão. Importa, no

entanto, assumi-Io para além do ponto suportado pela necessidade deencIausurar o nome de Machado numa significação cristalizada, porque ainformação do nome do destinador não diz, de imediato, o sentido dadestinação. Niss'o reside, aliás, um dos traços da escrita literária: o nome

abandonado a um não-saber; apelando a um. leitor que lhe respeite a

singularidade, designadamente a singularidade com que se abandona aosacasos de uma destinação incerta. Aí, o que se lança ao leitor é c sentido

da destinação enquanto problema c~cial da leitura: sentido que, entre­tanto, o leitor nã.o pode designar senão pelo nome próprio de autor. E é

por eSSarazão que o nome, de uma forma essencial e constitutiva, ficaabal1donado à !õuasorte.

~ Encontramos uma versão deste problema na abordagem da

noção do "autor implicado" por Paul Ricceur. Aproximando a noçãode Booth da noção de estilo de G. Granger, Ricceur defende que "no­

mear uma obra pelo nome do seu autor não implica nenhuma conjeetura

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de outros textos portadores da mesma assinatura, ou, se se quiser, todoo texto vive a sua, autonomia em tensão, obrigado, por um lado, a

impor a sua singularidade no interior de um conjunto e forçado, poroutro, a cumprir as características que fazem a singularidade do conjun­

to. Assim, o texto singular é ao mesmo tempo menor e maior que o

conjunto que integra. O motivo do autor suposto joga, também aqui,

um papel muito especial: a fronteira ficcional que o constitui não selimita a demarcar um interior da ficção, demarca também esse interior

de um exterior já delimitado, isto é, o exterior formado pelo conjuntodas obras do mesmo autor efetivo. Assim, funcionando como fronteira

ficcional, mas não como fronteira fictícia, o motivo do autor suposto

vem pôr em cena e em causa a unidade e ahomogeneidade do conjuntoda obra do romancista que a ele recorra com maior ou menor freqüência,

porque será sempre preciso mostrar q~e a obra singular atribuída aoautor suposto é um dos elementos do cotljunto e não um outro conjunto

dotado de autonomia própria. Nisso s~ joga, assim, todo o peso e todoo valor de uma assinatura: na inscrição de outra que a excede.

4

Não é outra coisa o que se passa com Esaú eJacó.

Se retomarmos o que atrás verificamos, compreendemos que aassinatura de Machado de Assis se constitui dupla garantia: de que

a questão "de que(m) falamos quando falamos do conselheiro fures?",

encontrará uma resposta viável; de que essa resposta se converterá em

resposta a uma outra questão, já nossa conhecida: "de que(m) falamos

quando falamos de Machado de Assi.s?"Mas tais garantias são concedidas

ao leitor pelo mesmo processo que as subverte; porque a criação de umafronteira ficcional no interior da ficção obriga a urna reciprocidade

irremovível: o autor suposto exige a autorização do autor efetivo, ou não

haverá lugar para a reunificação do seu nome dividido, mas o autor efetivo,

ar sua vez, apenas se configura através do autor suposto. O romance

com autor suposto destina-se enquanto totalidade unificada ao lançar ao

leitor o problema da sua apreensão enquanto totalidade unifícada, ou, se

se quiser, a assinatura de Machado apresenta-se para colocar ao leitor o

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problema da presença de Machado enquanto autor efetivo do romance,

ou ainda, o problema .da diferença que o separa de Aires, autor suposto.

!:!m problema eseedfico da escritaJ,ºrnan~ca g~~~. impõe E_um duploco~strangimento: "não es~cer~3ue escrevi tudo isto, não e~q~ec~r~~

,-~~bém que nada disto foi escritop~~·z)i;~';" Não 'exisf~qualCtüer'-m:elO··

de ~~'péfàrêsta-'aupiã lnte~dição: 'senão recusando, à partida, conduzir aolimite as conseqüê'ncias do recurso ao autor suposto. Assim, ao cabo e ao

resto, Machado aparece perante o leitor tão morto quanto o conselheiro

fures: um e outro nos destinam ficções dotadas de capacidade para sesepararem da origem, um e outro abandonam os respectivos nOmes à sua

sorte. Isto não significa que o romance se tome ilegível, que seja impossí­

vel estabelecer uma leitura capaz de equacionar a diferença que separaAires de Machado: significa, sim, e é o fundamental, que o romance seorganiza recusando constituir-se instrumento de decidibilidade da leitura,

e que resistirá sempre a todas as respostas às perguntas "de que(m) falamos

quando falamos do conselheiro fures?" e "de que(m) falamos quandofalamos de Machado de Assis?"

Acresce o outro valor efetivo da fronteira ficcional: separa anarrativa de Aires do exterior formado peI~s outras obras de Machado

de Assis, e, dessa forma, coloca em causa a relação de Esaú eJaeó com oconjunto romanesco rnachadiano. Desde logo, e em um nível de elementarevidência, não é possível assumir simplesmente que o conselheiro Aires é

mais uma versão de Brás Cubas, ou de Dom Casmurro: o que implica quenão é possível assumir simplesmente Aires como mais urna versão de

Machado. Mas é preciso aceitar q1J~ ~ ~ni~ade da obra de Machado sedefine pela pluralidade desses:autores supo~t6s:.~,éa rede de diferenças

que separam entre si fures, BrãS--Cuoás e DóíüCasmurro que permiteaceder a urna unidade que se possa designar com o nome de Machado

de Assis. Por outras palavras, a instalação de um autor SUP()sto,na modali­dade que encontramos em Esaú eJaeó, constitui um traço distintivo da

assinatura de Machado depois de Memórias póstumas de Brás Cubas.

E assÍm se compreende como surge o problema de Augusto Meyer, quepudemos comentar no capítulo anterior. Cada autor suposto ameaça

exceder o autor efetivo, justamente porque todo o autor suposto configura

o autor efetivo, precisando dele, ao mesmo tempo, para se configurar.

Não se trata de repor o velho lugar-çomum do criador dominado pelas

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cri~turas, mas de subli~ar que"nesta forma específica de· ass·inatura, aum~ade e a homogen~ldade da obra assinada por Machado estão, desdea ongem, ~arcadas pelo problema da sua unidade e da sua homogenei­~ade. Ou.amda, a obra romanesca mach~diana destina-se enquanto tota­

hda~e ulllfi~da ao legar ao leitor o problema da sua destinação enquanto

total~d~deumficada. A concepção do pessimismo é apenas uma das formaspoSSIveISde resolução do problema, nem sequer a única capaz de estabilizaro nome de Machado numa referência que funcione como centro de gravi­

dade do discurso crítico: trata-se de uma solução'que se autoriza na tradiçãoe se fortalece com a peculiar sedução daquele pnnápio de desmascaramento

"digno de confiança" de que falamos no caPítulo anterior (no próximocapítulo, entretanto, veremos outra razão para o privilégio da concepção

do pessimismo). No entanto, será impossível ignorar a sólida resistên­

cia que os autores supostos de MachJcio vão oferecendo: por muito

grande que se apresente a convicçãot\iunfante, o autor suposto insis­te - e nessa insistência pode encontrar-~e sempre um pequeno ponto em

que a resistência se contornou ilusoriamente.í Encontramos um bom exemplo destas dificuldades num estudode E;tgê~io ..Ç2mes, "O.....testamento estético de M~chado de Assi~, um/ dos momentos fundamentais da tradição critica machadiana. O objetivo

\ de Eugênio Gomes consiste na demonstração da unidade de uma "tetralogia\ romanesca" de Machado, que se iniciaria em Memórias póstumas de Brás

\ Cubas e teria em Esaú eJacó o momento terminal. O estudo ineide, por

isso, neste último romance e, como não podia deixar de ser, debate-se

com a figura do conselheiro fures. A este respeito, a tese de EugênioGomes parece enquadrar-se pacificamente na tradição: o conselheiroseria um alter ego de Machado. Mas um alter ego particular, justamen­

te aquele que lhe. permite defender que toda a obra romanesca de Ma­chado, do Brás Cubas em diante, se entende como tetraLogia que obedece

a um "principio metafisico", o qual se encontra, segundo Eugênio Gomes,na filosofia de Schopenhauer: «Embora houvesse procurado retrair-se asubordinar as suas criações a determinada tese. a verdade é que Machado

de Assis, em seus quatro principais romances, mantém-se fiel àquele

pensamento [de Schopenhauer], e outro não haveria de ser o 'pensa-­mento interior e único' que presidiu à elaboração de baú eJacô' (Go-

mes, 1958c, p. 1.116).

156

~:

o que é e donde vem esse "pensamento interior e único"? Trata­

se de uma expressão que encontramos na "advertência" de baú eJacó:

a cJ.adopasso, o "editor" afirma que o conselheiro Aires escreveu a nar­rativa com "um pensamento interior e único". Ora, essa expressão vaiser o centro da gravidade do e es, que procurarásaber em que consiste esse ensamento interior e únic " convencido

de que, uma vez encontrado, o.po erá atribuir 'sem mais a Machado.

Todo o ensaio ficaria preju9icado se o ensaísta não assumisse, sem qual­

quer demonstração em apoio, que o "pensamento interior e único" é o

pensamento do próprio Machado e o pensamentQ que subordina ;;­organiza toda a ficção de Machado. E di-Io logo de entrada: "o 'pen­samento interior e único\ que presidiu à elaboração de Esaú e Jacó'

(idem, op. cit., p. 1.099); ou mais claramente, atribuindo-o a Machado:"por trás desse conflito psicológico (a oposição entre os caracteres dos

dois gêmeosl ~tá o pensameIito do aU!QL_.º.~~m~nto interior e

único', que ele atribuiu ao Conselheiro Air~" (idem, op. cit., p. 1.101).Nestes termos, mesmo que aceitemos, deixando sem discussão, que afigura do conselheiro Aires é claramente um a/ter ego de Machado, queo confronto entre lS gemeos a O mais angustiante teste­

munho daquela or de viver' que Scho enhauer diagnosticou tão bem

através da sua doutrina filosófica" (idem, op, cit., p. 1.112) e que tudoisso contribui para delimitar o conteúdo do tal "pensamento interior e, . ') _ '" . " . ~ . J'.,,.

UntCO,~.~.?se ve como assumIr gue esse pensamento mtenor e UfilCOdeva ser atribuído a Machado nos termos em que Eugênio Gomes o

.atribui, isto é, como sentido global da destinação dos quatro roman"CeS

que formam-;'"~t~~rõg}a" cfUiye-fáfà o ensáí:5.!A:DeIãtõ:-flcãrá semprepor demonstrar a natUreza da relação de Machado enquanto autor efetivo

com o "pensamento interior e único" que o "editor" anuncia na narrativade Aires e, a partjr do momento em que essa questão se coloca, a genera­lização ao conjunto dos quatro romances ficará seriamente afetada. °ensaio de Eugênio Gomes acaba por mostrar, afinal, que a dificuldade

maior não está em estabelecer qual seja o dito «pensamento interior e

único", mas em assegurar uma relação estável que o ligue a uma origemchamada Machado de ASSIS. É o ponto em que se colocam algumasperguntas CÍnicas ou ingênuas, consoante o gosto: se esse "pensamento

interior e único" se apresenta como "pensamento interior e único" do

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Page 14: Mel Barros Baptista...que sabe que "mesmo que o meu livro estivesse mal escrito, a sua extra vagância, se acaso a tivesse, seria a melhor forma de ser aceito como verdade" (Poe, …

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nos termos estabelecidos por Eugênio Gomes, a resposta à segundaresulta numa nova.questão: não pura e simplesmente a transferênciâ

do "pensamento interior e único" para Machado, mas a questão doefeito romanesco da invenção de um autor suposto que escreve umanarrativa dotada de um "pensamento interior e único".

Não custa verificar que o alcance dessa questão, apesar de tudo, .foi entendido por Eugênio Gomes. Em primeiro lugar, está em causauma concepção de romance que 'recusa subordiná-lo "a uma determi­

nada tese". Atendendo ao processo de instalação do· autor suposto em

Bsaú eJacó, não há viabilidade de definir um sentido para a destinaçãomachadiana do romance que não passe por uma concepção de romance;em termos rápidos, a concepção que recusa ao discurso romanesco a

capacidade e a vocação para transmitir ou ilustrar concepções do mun­do. De outro modo, e visto que aí o ensaio de Eugênio Gomes coloca osproblemas, no nível de "um ponto de vista intelectual sobre a vida e o

destino", não se compreenderia todo o processo' de fingimento queneutraliza o mecanismo da atribuição e deixa o leitor num não-saber

irremovível: ninguém lhe diz em que consiste a concepção do mundode Aires, que idéia dela fazia o "editor", ninguém lhe diz sequer seMachado procurou, com o romance, transmiti-Ia, criticá-Ia, relativizá­

Ia ou parodiá-Ia. Machado obriga o leitor a pensar a natureza do dis­

curso romanesco ao recu!;ar-Ihe, desde o início, trânsito fácil no cami­nho que liga o divertimento romanesco a uma concepção do mundo

ou a uma plural idade de concepções do mundo. Mas, pór outro lado,

dificultando o trânsito, não nega a existência do caminho: bem pelo

contrário~ insinua-o. E é esse o tema maior do ensaio de EugênioGomes: a alegoria. Não precisamos seguir os termos do ensaísta brasi­

leiro, mas podemos sublinhar o problema de que esses termos procuramdar conta: o romance machadiano sugere a relação com uma visão da

vida e do mundo, mas a sugere pelo processo da alegoria, isto é, pondoem cena uma experiência singular e dispersando sinais disponíveispara serem lidos como indicação de que a destina enquanto experiência

exemplar. A dificuldade surge precisamente na passagem do sentidoliteral ao sentido próprio da alegoria: porque o romance machadiano

fortalece insistentemente a singularida,de da experiência que apresen­ta, levando-a ao ponto de a propor como experiência singular da escrita.

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próprio Machado, para que i.nte~por Aires na qualidade de autor suposto?E se Machado, de modo contrário, não partilha com Aires o "pensa­

mento interior e único", por que razão procura centrar nele a atençãodo leitor sem do mesmo passo se demarcar? No fundo, a pergunta é

apenas uma: por que motivo o "editor" ammCia uma narr;1tiva escritacom um "pensamento interior e único" sem dizer qual seja?

tl Como é evidente, estas perguntas não encontrarão resposta numdiscurso crítico ocupado com o conteúdo do "pensamento interior eúnico": são pergUntas que já o entendem subordinado a outro tipo derazões, de específica natureza romanesca, que fazem com queEsaú eJacó

não se reduza à transmissão de um "pensamento interior e único", ainda

que romanescamente atribuído ao autor suposto. Trata-se da ficção em

que alguém apresenta outro que terá escrito uma narrativa dotada de Um

"pensamento interior e único". Trata-t de uma idéia de romance. emconcreto, um dos momentos do proc~Jo de instalação do autor suposto,

justamente o momento que Eugênio pomes contornou demasiado de:pressa, mas que persiste, neutralizando o proCesso das atribuições.

No entanto, convém não andar com a mesma pressa supondojá que Eugênio Gomes leu mal. Deixando de lado o fato, importante

.mas agora negligenciável, de o seu esforço crítico se integrar numa estra­tégia de leitura da obra machadiana empenhada em secundarizar a ficção

de autores - e não tomando em conta as diferenças de perspectiva crítica,cujo concurso, como é evidente, será sempre decisivo na diferença de

leituras -, a verdade é que, escolhendo o "pensamento interior e único"

para centro de gravidade do ensaio, Eugênio Gomes esteve longe detomar uma decisão infundada, porque justamente aquela expressão ga­

rante, junto do leitor, a homogeneidade, a unidade e a,coesão do textoque·vai ler e que supostamente Aires escreveu. Por outras palavras, nessaexpressão se reafirma o que mais atrás entendemos como garantia for­

necida ao leitor pela assinatura de Machado: a garantia de que a questão"de que(m) falamos quando falamos do conselheiro Aires?" encontrará

resposta viável. Daí o salto imediato para·a outra garantia que tambémvimos estar ligada à primeira: de-que a resposta, uma vez encontrada,

se converterá em resposta à questão "de que(m) falamos quando falamosde Machado de Assis?" Mas esse salto torna-se ponto frágil do ensaio,

porque, mesmo admitindo que a resposta à primeira questão se aceita

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Capítulo 8

1

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DEFUNTO AUTOR

Os leitores familiarizados com a bibliografia crítica machadiana

conhecem um dos lugares"Comuns mais persistentes na apreciação dos

autores supostos de Machado: a idéia de que não têm preocupaçõesliterárias e qe que exibem uma cultura literária inferior., Num estudo

;!cente, pode ler-se uma apreciação como esta' "Brá.LC!!..bas goza o~.E.!ivílégios de escrever <obra ds: finado' , Não-se.pode.-c~s..s..~ naJ!ador,

--pensar em preocupações lite.cáriaS'.' (Muricy, 1988. p. 114). E logo aseguir, generalizando o conjunto dos romances da "segunda fase":"Sem ambições literárias, livres da opinião pública, os narradores des­ses romances' escrevem para <matar o tempo', para preencher o ócio dé

uma escrita íntima, de diário" (idem. op. cit., pp. 114-15). Este tipo deapreciação depende, em estreita solidariedade, da redução de Brás Cubas,Aires ou Dom Casmurro à condição de "narradores", e. no caso con­

creto acima citado, seria válido para a ficção de Memorial de AÍres,não fosse Aires o autor suposto de Esaú eJaeó, mas não o é de forma

~guma para qualquer dos outros, porque todos apresentam autoressupostos preocupados com a literatura, fundamentando-e~crltérios

d~-natureza literária as decisões que tomam nOR~ocess9 deõrganlzação

do discurso. De um modo ou de outro, comportam-se' tod~~~or:n:os-e

-fossem a última instância destinadora do texto, como se ninguém

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160

Como escreveuJorge de Sena, "a ação dos romances é o .ato de eles serem

escritos" (Sena. 1969. p. 333). Donde resulta qu'e é, o próprio autor supostoque aparece afetado de uma'vocação alegórica manifesta: ou 'seja,o próprioprocesso de destinação de uma narrativa exemplar é ele mesmo singula­

rizado. proposto à leitura com uma singularidade que resiste sempre aqualquer esforço para a transportar para o nível de exemplaridade. Assim

se compreende a importância dos nomes próprios nos romances ma­chadianos: note-se apenas que. nos cinco romances decisivos. não há

um único que não tenha um nome próprio no título. O caso de Dom

Casmurro. aliás, é verdadeiramente exemplar a esse respeito: o título 'coincide com a assinatura'do autor suposto, e todo o drama consiste na

divisão sem reunific~ção possível do seu-nome; daí que o romance abracom a "explicação do título", que é múito mais a história de uma mu­

dança de nome. Os nomes próprios s;ao os corpos estranhos da linguaque asseguram o máximo de singu.Ilrização possível: e também, em

"

conseqüência, a resistência máxima à'(passagem para um plano de exem-plaridade. A força do motivo do autor sUpOsto não ~em outra razão de

ser: um nome próprIO resiste sempre, reconfigu;;:;e, acolhe novas sigID:_',iiciçoés,~ma;~~ --:--..-...._--~----

, Neste quadro se reforça a idéia que mais atrás aEresentamos: oromance com autor suposto destina-se enquanto totalidade unificadaao lançar ao leitor. o problema da sua apreensão enquanto totalidadeunificada. A alegoria é a figura dessa destinação: apresenta uma e;Kperiên­

cia singular e sugere uma dimensão em que se constituiexperiênáaexemplar. Mas, a uni-Ias, está uma disjunção que o romance cuida denão anular: esse cuidado constitui a marca indelével da responsabilidade

de Machado. Nela se decide a concepção machadiana do romance, a

forma específica da assinatura de Machado ou ainda, se se quiser. a sua

relação com o carhp'o das concepções do mundo que todo'o romance

tI]defronta se,fi nele se dissolver: nela se decide, enfim, o lugar decisivo de

1ft Machado na literatura brasileira, que, como justamente sublinhou José

, Guilherme Merquior.consiste J??-Jntrodu -o de uma orienta ~o roble­, matizadora até ele desconhecida cf. Merquior. 1977, pp. 153-54).

Ora, vamos vê-Io agora, tudo isso se inaugura num episódio

famoso: o aparecimento de Brás Cubas, autor suposto.