Mélanges || O « Massacre de Amapá »: a guerra imperialista que não houve
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Presses Universitaires du Mirail
O «Massacre de Amapá »: a guerra imperialista que não houveAuthor(s): Carlo ROMANISource: Caravelle (1988-), No. 95, Mélanges (2010), pp. 85-118Published by: Presses Universitaires du MirailStable URL: http://www.jstor.org/stable/25822161 .
Accessed: 15/06/2014 00:47
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C.M.H.L.B. Caravelle
n? 95, p. 85-118, Toulouse, 2010
O ? Massacre de Amapd ?: a guerra imperialista que nao houve
PAR
Carlo ROMANI
Universidade Federal do Estado do EJo de Janeiro, UNIRIO
Apresenta^ao
Uma extensa area litigiosa ao longo do rio Oiapoque, na fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa, permaneceu fora da regulacao juridica institucional dos dois paises ate dezembro de 1900 quando foi
definitivamente incorporada ao Brasil. Desde o ano de 1884, varias missoes cientificas de origem francesa com apoio do estado nacional e
financiamento do capital privado incentivaram a prospeccao e a
exploracao dos recursos naturais nessa regiao. A descoberta de grandes jazidas auriferas no rio Calcoene no ano de 1893 trouxe varias empresas para essa regiao seguida de uma intensa migracao de trabalhadores vindos do Caribe e da Amazonia. Esses fatos geraram uma explosao demografica que desestabilizou a vida cotidiana das populacoes nativas. O resultado dessa febre do ouro atingiu seu climax em maio de 1895 no
episodio conhecido como o ? massacre do Amapa ?, um conflito armado entre militares franceses e paramilitares brasileiros no qual pereceram entre 40 e 60 pessoas, dependendo das fontes consultadas, um incidente
nada diplomatico que por pouco nao levou os dois paises a guerra. O lugar de que falamos recebeu o nome de territorio contestado
franco-brasileiro, uma extensa porcao de terras ocupadas sem soberania
definida por mais de duzentos anos. Durante essa fase da expansao
imperialista europeia ao final do seculo XIX, o ?Contestado? tornou-se
espaco privilegiado para se observar os contatos entre os pesquisadores
exploradores, empreendedores industrials e comerciantes e a populacao
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habitante desse lugar. Espaco privilegiado, pois, com a ausencia do poder coercitivo do Estado, na ausencia de um governo national formalmente
estabelecido, os habitantes constituiram seu proprio governo. Desta
forma, foi confrontando uma populacao habitante livre de coercoes que se deu a ocupacao economica intensiva da regiao motivada pela extracao
do ouro.
Para a elaboracao deste artigo foram utilizadas, principalmente, as
fontes encontradas no Centre des Archives D'Outre-Mer, CAOM, em
Aix-en-Provence. Esse arquivo guarda grande parte dos documentos do
periodo colonial frances, especialmente aqueles relativos as colonias mantidas nos seculos XIX e XX. Essa documentacao foi confrontada com fontes anteriormente pesquisadas no Arquivo Publico do Estado do Para e nos arquivos da Comissao Brasileira Demarcadora de Limites, ambos sediados em Belem, e, em menor grau, com as fontes
disponibilizadas para consulta no Arquivo Historico do Itamaraty, no
Rio de Janeiroi.
A descoberta do ouro
A lenda regional com base na tradicao oral transformada em historia oficial do estado do Amapa nos diz que em outubro ou novembro de
1893, dois brasilekos de origem paraense, Germano Ribeiro Pinheiro e Firmino de Tal, bateando nos igarapes do rio Calcoene descobriram um
grande veio de ouro, bem no centro da area litigiosa2. Por outro lado, a
historiografia francesa trabalha com a versao abaixo narrada pelo agente
1 Em relacao a toponfmia utiliza-se o seguinte criterio: a) no texto do artigo escrito
diretamente pelo autor os nomes sao grafados de acordo com a lingua portuguesa atual,
por exemplo, Calcoene; b) nos documentos de epoca em lingua portuguesa manteve-se a
grafia original, exemplo, Calsoene; c) nos documentos de epoca em lingua francesa
transcritos para o portugues, manteve-se a grafia original em frances, Carswene. Para
facilitar o leitor colocamos o nome atual entre colchetes apos o nome original. A
pesquisa no Centre des Archives D'Outre-Mer foi realizada como estagio de pos doutorado financiado pela CAPES. A pesquisa inicial sobre o tema foi conckuda na tese
de doutorado em Historia Cultural: Romani, Carlo, Cleveldndia - Oiapoque. Aqui comefa o
Brasil! Trdnsitos e confinamentos na fronteira com a Guiana Francesa (1900-1927), IFCH/UNICAMP, Universidade Estadual de Campinas, 2003.
2 ? Alem da zona encachoeirada do Calsoene, trinta e cinco quilometros, ou "vinte dias
de jornada", a oeste de "Grand Degrad", em um igarape que corria a margem de uma
montanha (batizada de monte Esperanca). Os dois exploradores, bateando no pequeno curso fluvial, viram na baeta algumas pintas de ouro (la couleur). Prosseguindo nas buscas, os dois atingiram outro igarape onde bateias de 10 a 150 gramas de ouro foram obtidas ?.
Narrativa encontrada em Vieira Jr., Antonio Rodrigues, Ouro no Amapd, Rio de Janeiro, 1934, p. 6. Reproduzida tambem por Meira, Silvio, Fronteiras setentrionais, Belo Horizonte,
Itauaia, 1989.
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sanitario Georges Brousseau, designado no ano de 1896 pelo governo frances para acompanhar os trabalhos da comissao de limites franco brasileira na area litigiosa:
Esta descoberta foi feita por Clement Tamba, um negro iletrado de
Cayenne [Caiena], mas grande comerciante de peles, em associacao com
o dono de uma empresa de cabotagem Pierre Villiers, de Cayenne, no mes de janeiro de 1894. Foi um habitante do Contestado chamado
Germano, quern, de passagem por Cayenne, convenceu esses dois
garimpeiros a fazerem uma expedicao de prospeccao nas nascentes do
Carsewene [Calcoene]. Seu pai que acabara de morrer declarou que um
dia tinha visto em sonho Santo Antonio. Esse bem aventurado lhe afirmou que havia 3 ricas minas de ouro em direcao as nascentes do
Carsewene e que havia chegado o momento de explora-las^.
Os rumores que se espalharam foram suficientes para atrairem milhares de homens em busca da aventura do ouro a partir de maio de 1894 e nos anos seguintes. A area compreendida entre o Calcoene, o
Cassipore e os afluentes de ambos os rios, registrou um fluxo intenso de aventureiros provindos, em sua maioria, de terras mais ao norte das Guianas e do Caribe, mas, tambem, de uma boa quantidade de brasileiros vindos, principalmente, das provincias do Para e do Ceara. Estima-se que aproximadamente 6.000 garimpeiros viviam na regiao do
Contestado no auge da exploracao aurifera. A empresa Societe Francaise
de l'Amerique Equatoriale estabelecida em Calcoene no ano de 1897, construiu 67 km de monorail ligando a vila a regiao dos placers^. No inicio,
praticamente todo o ouro extraido passava pelo porto de Caiena, o mais
proximo e bem aparelhado, onde era classificado e tributado em 10 francos por kg na entrada e em 8% do valor bruto da mercadoria quando de sua saida para a Europa, o que fornecia uma enorme arrecadacao para a colonia francesa5. Contudo, para escapar a tributacao francesa, desde o ano de 1895, grande parte da exportacao do ouro extraido permaneceu sob controle das companhias mineradoras de origem inglesa que
operavam com navios fretados saindo diretamente do rio Cunani e do
Calcoene. Passando ao largo de Caiena, as embarcacoes navegavam em
direcao a Demerara, na Guiana, e a Port Spain, em Trinidad. Desses
portos, o carregamento seguia para Southampton, na Inglaterra, fato que
3 Conference du 26 mars 1899 par M. Georges Brousseau. Bulletin de la Sotiete de
Geographie de Lyon et de la region lyonnaise. Tome quinzieme. Lyon, 1898.
4 Brousseau, Georges, Les richesses de la Guyane Franfaise, Paris, Societe D'Editions
Scientifiques, 1901, p. 194. Computando-se somente os registros oficiais, passaram por Caiena 2.500 kg de ouro em 1894, 1921 kg em 1895, 1831 kg em 1896 e 1015 kg em
1897, ano em que comeca o refluxo da extracao.
5 Oficio de 01/12/1894, de Caiena. Carton 46 E10 (37). Centre des Archives D'Outre
Mer, CAOM.
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provocou um sentimento misto de revolta e inveja na burguesia comercial francesa estabelecida na Guiana. Nesse momento reapareceu o
discurso mais nacionalista que havia sido abandonado com a expansao
imperialista para esta porcao da America. De sua parte, o estado e os
empreendedores brasileiros praticamente permaneceram a margem de todo o processo de extracao mineral realizado no Contestado. Quando se deram
conta das riquezas existentes, ja era tarde. O boom aurifero ocorrido no Amapa foi comparado pelo historiador paraense Manoel Buarque ao de uma nova
California:
Subito, naquelas regioes, ate entao desertas, fundaram-se numerosas
habitaeoes, que ainda existiam em 1900, quando foi decidido o litigio que ti'nhamos com a Franca. Daniel, povoacao cosmopolita, a margem direita
e a 12 milhas da foz de Calsoene [Calcoene], chegou a contar 80 casas
comerciais, sendo algumas delas importantissimas. Em frente a essa
povoacao, havia uma outra de nome Firmino, onde estabeleceu-se a
Anglo-Franco Gold Mining Company, que seguiu depois para o
Plateau6.
Vilas que ficaram conhecidas com os nomes dos proprios
garimpeiros como Firmino o descobridor do ouro no rio Calcoene, e
Lourenco o descobridor de ouro nas cabeceiras do Cassipore. Povoados
que surgiam e anos apos desapareciam. Mais perene que estes, a vila de
Amapa, bem abaixo da foz do rio Calcoene, transformou-se em um
pequeno aglomerado urbano (aproximadamente um milhar de pessoas o
habitava nessa epoca) centro dos negocios brasileiros da regiao. Cunani, Uaca e Aruaca, lugares onde nunca antes havia vivido mais do que uma
centena de pessoas, sofreram o inchaco demografico. Povoados tornados
por garimpeiros numa zona onde nao havia cobranca de impostos e a
influencia dos estados nacionais, tanto o frances como o brasileiro, era
praticamente inexistente, fez com que a populacao flutuante se
organizasse em cada vila escolhendo suas liderancas locais em funcao dos interesses comerciais mais imediatos, geralmente seguindo as
determinates do dono de filao mais poderoso. Cunani era o maior atracadouro de barcos na parte setentrional do
Contestado. Calcoene, parada intermediaria, servia como apoio e acesso aos degrades do alto Calcoene e do Cassipore. Amapa, vila protegida ao
sul do Contestado ligada a atividade pecuaria, fundada e habitada por brasileiros de assumida nacionalidade, servia de acesso as minas de
Tartarugalzinho. A povoacao de Calcoene, minuscula ate a descoberta do
6 Buarque, Manoel, O Amapd, Belem, Papelaria Suisso, 1925, p. 35. Plateau era o nome
com se designava a area interior em cota mais elevada, passando os primeiros saltos
encachoeirados dos rios.
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ouro, viu assistir, nao pacificamente, a uma invasao de Creoles vindos das Guianas.
A disputa pelo controle do territorio
Se tomarmos como referenda a exposicao sumaria feita pelo naturalista Emilio Goeldi ao Ministro do Interior sobre sua viagem ao
territorio contestado no ano de 1895, a regiao mais ao norte seria o foco
de uma ocupacao francesa intensa:
O unico ponto do Territorio Contestado, onde de fato ha uma completa inversao e o Rio Calcoene, formando os crioulos de Cayenne, de
Martinique e Guadeloupe, enfim suditos franceses, decidida
preponderancia numerica. Com este rio a Franca entretem constantes
relacoes, diretas e via Cayenne e Martinique.?
Acompanhando o mapa do Amapa, podemos perceber uma
ocupacao agropecuaria feita por caboclos com um minimo de amparo do
Estado brasileiro, entre o rio Araguari e a vila de Amapa, onde se
encontrava presente um forte sentimento da brasilidade de sua
populacao. Ao norte, entre o Calcoene e o Cassipore, passando pelo Cunani, uma
regiao rica em minerios, encontrava-se uma expressiva
ocupacao humana mais recente, formada por garimpeiros de fala Creole e
assistida por alguns empresarios e fiincionarios a servico do governo frances. Essa nova populacao convivia com uma outra populacao anterior, ja minoritaria, descendente de escravos fujoes do Para, estabelecida em pequenas propriedades agricolas e que pas sou a se sentir acuada ante a invasao demografica
e economica em cur so. Ao retornar a
Belem de sua viagem oficial ao Amapa, a conclusao de Goeldi sobre qual a posicao a ser tomada pelo governo brasileiro em funcao da disputa em
curso, foi clara:
Se o Territorio Contestado se limitasse ao Amapa, Senhor Ministro, nao
Valeria a pena o tempo de brigar. Um limite mais natural e estrategico nao
poderia haver e eu aconselharia tanto ao Brasil, como a Franca, de
dar esta zona de presente; seria uma especie de cavalo Troiano! Mas
como o norte do Contestado e tao bom, como o sul e ruim o litigio e
plenamente justificado e o Brasil deve cuidar de seus legftimos direitos^.
7 Ofkio reservado de Emilio Goeldi ao Ministro Carlos de Carvalho, 21/11/1895.
Arquivo Historico do Itamaraty, AHI, Fundo: Documentacao Rio Branco, Parte III,
Codice 340 - 2 - 13. Gomes, Flavio, e outros (org.), Relates de Fronteiras, Belem,
UFPA/NAEA, 1999, p. 99-100. 8 Id, p. 98.
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Esse era o panorama da divisao territorial do Contestado, tanto em
funcao da ocupacao economica como da simpatia demonstrada pelos habitantes por cada uma das nacoes em litigio. Desde o ?im do ano de
1893, portanto, logo apos os boatos de descoberta de ouro, ambos os
paises enviaram missoes oflciais, religiosas e comerciais tambem com o
objetivo de convencer a populacao local das vantagens em op tar por um ou outro pais. Os ares nacionalistas reclamando por uma atitude do
governo federal tambem tomaram conta da imprensa brasileira. O jornal A Republic^ de Belem, resolveu apelar para a doutrina Monroe ao fazer um historico da regiao do Contestado e denunciar o que julgava ser a
cobica de estrangeiros roubando as riquezas nationals9. Em 24 de setembro de 1894 aportou na vila de Amapa um paquete trazendo uma
missao do governo brasileiro composta por um engenheiro, um medico, um padre e um professor primario, atendendo a uma demanda antiga da
populacao local10. Essa informacao causou reacao no
governador da Guiana Francesa,
M. Camille Charvein, que enviou em dezembro desse mesmo ano um
oficio ao Ministro das Colonias na Franca. Nele, alertava para o risco de
que essas comissoes brasileiras enviadas desde o Para ate o Contestado estivessem recenseando toda a populacao do territorio com o objetivo de faze-la pronunciar-se a favor do Brasil no momento de uma disputa judiciaria. O parecer dado por Charvein sobre a populacao de origem brasileira habitante das terras litigiosas nao foi nada favoravel e apontou para as diferencas essentials existentes entre franceses e brasileiros na
compreensao que ambos os povos teriam sobre o significado da ideia de cidadania e lealdade aos interesses da patria.
Essa populacao, exclusivamente brasilofona e proveniente de refugiados da pior especie, nao podera hesitar em se declarar pela republica vizinha
sob o governo de uma disciplina social mais relaxada, ela mantera ainda
por muito tempo sua independencia selvagem e sua liberdade
desregradal1.
A submissao ao interesse do estado national que ja estaria internalizado no conjunto da populacao francesa atraves de uma
progressiva mecanica disciplinar imposta desde o seculo XVIII, era o
parametro utilizado por Charvein para avaliar o grau de patriotismo e
cidadania de um povo. Essa era uma forma retorica recorrentemente encontrada nos relatos das missoes de origem francesa, tanto nas
religiosas, como nas comerciais, ou ainda, nas militares. A populacao
9 ? A America para os americanos >\A Republica, Belem, 15/07/1894. 10 Carta de 28/09/1894. SG Carton 46 E10 (37). CAOM. 11 Offcio de 12/12/1894. SG Carton 36 D2 (28). CAOM.
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brasileira seria frouxa, indisciplinada, desregrada. E o seria devido a falta de vontade e a incapacidade congenita do estado national em promover o exercicio da disciplina e da civilizacao de seu proletariado nos moldes entendidos como sendo os da civilizacao moderna. Sistema do qual a
Franca, precursora, orgulhosamente se colocava como parametro mundial a ser seguido para a constituicao da cidadania. Entende-se aqui esse discurso sobre a civilidade como sendo o conjunto de disciplinas, relacoes instituidas e internalizadas socialmente na sociedade capitalista, da forma como ele foi explicitado por Michel Foucault em sua
conceituacao sobre a biopolitica12. A civilizacao moderna, voltada para o
trabalho como um fim em si mesmo, onde estado e sociedade constituiram-se numa ampla rede de relacoes de poder marcadas por uma reciprocidade de interesses. A sujeicao da maioria da populacao enraizou-se com as contrapartidas oferecidas, tanto pelo Estado como
pelo Capital, na forma de beneficios privados e direitos sociais, alicercados na crenca de que sua manutencao depende do
comprometimento com o ideal da grandeza da patria atraves da grandeza do cidadao. A partir dessa compreensao, um estado como o brasileiro, funcionaria como o nao estado, a margem da civilizacao moderna,
parametro do pais anedotico, ? ce n'estpas un pays serieux?, nas palavras posteriormente ditas por Charles de Gaulle. Um estado que nem ao menos se mostrava capaz de impedir que os seus suditos fizessem, a
revelia do poder soberano, o que bem entendessem de sua vida, nao
poderia ser, na concepcao dos vizinhos franceses, um estado fadado a
governar terras percebidas como donas de recursos naturals tao ricos. O que talvez nem o governo de Caiena nem os empresarios franceses
esperassem, fosse o fato de que os moradores de origem brasileira residentes ha mais tempo no Territorio Contestado se sentissem incomodados ou, melhor dizendo, literalmente invadidos, com a
exploracao comercial em curso e que nao se interessassem pelo tipo de
desenvolvimento, discutivel, que isso pudesse trazer. Nas estimativas do
proprio governador da Guiana Francesa, quase metade da populacao livre masculina da colonia migrou para o Cunani e o Calcoene, e muitos comecavam a alcancar a vila de Amapa. Terras antes praticamente desertas tornaram-se palco de verdadeiras cidades de faroeste
construidas da noite para o dia. Esse transito de pessoas causou uma
serie de problemas para as antigas famflias moradoras, a comecar pela
chegada da prostituicao e da violencia provocada pelo alcool e pela cobica, que geralmente acompanha a vida mundana nos garimposl^.
12 Foucault, Michel, Naissance de la biopolitique, Paris, Seuil, 2004.
13 Strobel, Michele-Baj, Lesgens de Vor, Petit-Bourge, Guadalupe, Ibis Rouge, 1998.
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A primeira reacao oficial brasileira a essa corrida ao ouro, segundo o Governo de Caiena, teria sido patrocinada por funcionarios publicos vindos de Belem e estabelecidos em Amapa. Ela ocorreu atraves do aviso de interdicao do acesso na entrada dos principals rios do Contestado: os rios Amapa Grande, Cunani e Calcoene. Em setembro de
1894, o capitao Daniel instituiu urn pedagio de 150 francos para todas as embarcacoes que subissem o rio Calcoene. Acusado de ser um bandido insolente pelo engenheiro Fernand Sursin, retrucou ser ele o proprietario das terras e como tal fazia o que bem entendesse. Sursin registrou as
imagens e as levou ate o conhecimento do governador da Guiana Francesa.
Fotografia de Fernand Sursin (engenheiro explorador). Rapport succint sur le Conteste Franco-Bresilien, 1887-1900. SG Carton 38 D2 (41), CAOM.
No mesmo mes, dois empreendedores de Caiena, Nazard e Coillari,
alegaram terem sido impedidos de entrar na vila de Amapa14. Em
Cunani, um negociante de Caiena afirmou que a populacao brasileira, muito numerosa, impediu a resistencia de uma duzia de franceses,
expulsando-os do vilarejo. Os brasileiros lhe teriam dito, que agora seria o proprio Presidente da Republica, o Marechal Floriano Peixoto, a estimular o nacionalismo. Pouco depois, ao final desse ano de 1894, Trajano, o capitao do Cunani simpatico da causa francesa, sentiu-se ameacado com a interdicao de acesso e, com a ajuda de seu amigo Henri
Coudreau, retirou-se para Caiena, onde pediu a criacao de uma policia para a protecao dos franceses moradores da regiao do Contestado.
14 Cam de 28/09/1894, SG Carton 37 E10 (41), CAOM.
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A questao da interdicao do acesso aos garimpeiros franceses e das denuncias feitas por alguns deles em Caiena assumiu contornos de confronto entre estados e populacoes nacionais. Mas, na perspectiva francesa esta nao seria somente uma questao de disputa territorial em
uma regiao sem soberania definida. O que passou a ser discursado nas
tribunas de Caiena era um hipotetico confronto da civilizacao contra a
barbarie. A populacao brasileira, segundo Charvein, deveria ser tratada como se tratam criancas rebeldes e insolentes que desafiam a autoridade
paterna. E como o seu pai, o estado brasileiro, comportava-se como um
pai ausente, incapaz de educar seus proprios filhos, caberia a Franca
levar as nocoes minimas de civilidade a esses filhos rebeldes orfaos da
civilizacao. Para isso, a disciplina deveria ser ministrada como o exemplo que faltaria a esses brasileiros: ? com toda a moderacao da forca, mas
com toda a firmeza da lei?15, da lei francesa, subentenda-se. Este, em
resumo, o teor das reunioes tidas durante o mes de marco de 1895 pelo
governador Charvein com o empresario Daniel Casey, com o Diretor do
Ministerio do Interior e com o comandante da Marinha, em Caienal6. O
objetivo seria o de intimidar a resistencia brasileira a exploracao comercial na regiao litigiosa, fato que infringia a liberdade de circulacao
garantida pela convencao de 1862. Essa resistencia civil com 60 homens
armados de fuzis a tiro rapido estaria sendo organizada a partir da vila de
Amapa por Francisco da Veiga Cabral, alcunhado Cabralzinho, tido
pelos franceses como um tipico caudilho sul-americano, testa de ferro do
governo de Belem. Iniciava-se assim a arquitetura de um piano secreto e
extra-oficial de intervencao militar no Contestado que ficaria conhecido
pelo nome de Missao Casey. Alem de todo o jogo de retorica sobre o que poderia ser considerado
como civilizacao, outro ponto mais importante, o desafio a autoridade
francesa, era o que de fato se colocava como elemento central do piano de intimidacao em curso. A insubordinacao ao texto escrito da
Convencao de 1862, fato citado por Charvein, foi um ato declarado por um pequeno grupo da vila de Amapa, liderado por Veiga Cabral, politico
profissional com aspiracoes a governante do territorio contestado.
Cabral instituiu em dezembro de 1894 um Governo Provisorio do
Amapa em forma de Triunvirato republicano, que tratou de reger a
circulacao de pessoas e mercadorias. Esse novo governo estabeleceu dois
decretos principals, fundamentals para se entender a dinamica dos
negocios no lugar:
15 Oficio de 27/03/1895, SG Carton 37 E10 (41), CAOM. 16 Oficios de 14/03/1895 e de 27/03/1895, SG Carton 37 E10 (41), CAOM.
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DECRETO N ?. 1 - Da Exploracao de Minas no Amapa: Art. 1 ?. Fica desde ja franca a entrada dos Rios do Amapa a todo e
qualquer brasileiro que organize qualquer expedicao para a exploracao de Minas neste Territorio [...] Art. 4 ?. Todos os produtos tirados serao apresentados ao Triunvirato
para serem conferidos a fim de pagar o competente direito [..] Art. 5 ?. Sera expressamente proibido vender-se os produtos tirados
neste Territorio em Cayenna ou qualquer pais estrangeiro [...] Art. 6 ?. E expressamente proibido a entrada de todo e qualquer estrangeiro que vier de Cayenna [Caiena] ou dos pai'ses do norte do Cabo
Orange [...] DECRETO N ?. 2 - Do Triunvirato do Amapa eleito pelo povo: Art. 1 ?. Fica criado um Exercito de Infantaria Defensor do Amapa,
composto de quatro Bm.s tendo cada Batalhao quatro companhias. Art. 2 ?. E nomeado General comandante Geral do Exercito o Sr.
Francisco X. da Veiga Cabral. 17
Os decretos acima praticamente ensejavam uma declaracao de anexacao da area litigiosa do Amapa sob a bandeira da soberania brasileira. Os limites estavam muito bem demarcados seguindo o pleito brasileiro sobre o Contestado ate a foz do rio Oiapoque, o cabo Orange. O Triunvirato se colocava com atributos de estado national para o
exercicio dos poderes de fisco ? a tributacao de impostos geralmente vem a frente dos interesses do estado ? e de policia, com a constituicao de uma Guarda oficial armada. A questao para Caiena era saber de onde
partira tal iniciativa. Se ela fora efetivamente uma atribuicao do governo federal ou do governo do Para, entao, a estrategia de acao deveria ser
tratada atraves do Quai D'Orsay. Mas, se como suspeitavam os
franceses, fosse uma situacao extra-oficial criada pelo proprio tenente
Cabral, entao ela deveria ser tratada como tal. E nesse sentido que, em primeiro de abril de 1895, Daniel Casey
seguiu a frente de uma missao paramilitar e extra-oficial a bordo do navio de guerra Bengali em direcao a vila de Amapa. Segundo o relatorio feito por Casey, eles aportaram na entrada do rio Amapa Grande na
tarde do dia seguinte e esperaram o amanhecer do dia tres de abril para desembarcarem com dois oficiais em duas pirogas ate a vila de Amapa. As instrucoes do comandante eram as de que ele ? partiria no mesmo dia caso encontrasse uma resistencia bem caracterizada e, sobretudo, se a
autoridade do capitao Cabral estivesse apoiada pelo Brasil?. Ao
17 Copia de manuscritos atualmente indisponiveis do Instituto Geografico e Historico
do Para, IGHP, in Reis, Arthur, Territorio do Amapd, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1949, p. 137-41. Bm.s seriam os batalhoes militares nos quais estaria dividida a Infantaria.
O Decreto tinha muito mais um carater simbolico de afirmacao da autoridade de Cabral no Amapa e de intimidacao aos garimpeiros e ao governo da Guiana Francesa do que
capacidade de efetivamente instituir na pratica o que decretava.
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avistarem os militares, a populacao da vila icou a bandeira de quarentena. O comandante percebeu que estavam todos desarmados e entendeu que
aquele seria um truque para evitar a entrada da comitiva e
desembarcaram assim mesmo. Como sempre ocorre nessa epoca do ano
desandou uma chuva torrencial por volta do meio dia o que obrigou a
comitiva francesa, encharcada, a se abrigar em um bar. De la,
acompanhados por um grupo de doze moradores, foram levados ao
senhor Lopez Pereira, o professor primario funcionario piiblico do Para
que, na ausencia de Cabralzinho, cumpria a fiincao de autoridade civil.
Questionado sobre o impedimento do acesso ao Amapa, Pereira
respondeu-lhes que ? os franceses nao podem navegar nos rios nem
desembarcar nas margens porque as terras pertencem aos primeiros ocupantes e que todos se opoem?.l8 E continuou dizendo que essa lei
fora feita por eles mesmos, sancionada pelo governo brasileiro e
promulgada no Jornal do Para. Casey solicitou um documento confirmando a oficialidade da lei, mas nenhum lhe foi apresentado.
Mesmo assim, os visitantes foram convidados a se retirarem de Amapa, o que o comandante, prudentemente, resolveu fazer, retornando a
Caiena no dia seguinte. A presenca militar francesa no Amapa causou desconforto entre a
populacao. Quando do retorno de Cabral vindo de Belem poucos dias
depois, seu grupo resolveu retaliar a acao, investindo contra os
brasileiros defensores do interesse frances no Contestado. Arthur Reis, o
primeiro historiador brasileiro a se dedicar ao nascimento do Amapa enquanto unidade territorial autonoma analisou um conjunto de
documentos manuscritos sobre o Contestado e seus conflitos, guardados no Instituto Historico e Geografico de Belem e concluiu:
O Triunvirato autorizou a reacao armada dos brasileiros que se sentissem
prejudicados na exploracao das minas pelos crioulos da Guiana Francesa.
E deliberou que todo e qualquer individuo que perturbasse a paz, criando diflculdades a acao do Governo ou fomentando o desrespeito a
legislacao que ia sendo decretada fosse deportado por tres anos [...] Em Calcoene, o preto Trajano continuava nos desconcertos [...] O
Triunvirato, informado do que ocorria, decretou a expulsao do traidor,
mandando captura-lo por uma forca do exercito amapaense^.
Para a historiografia brasileira que inaugurou os estudos sobre esse
tema, o conflito entre a Franca e o Brasil resumiu-se a vinganca contra
um velho preto, um escravo fujao, que merecia, ainda que com atraso, ser justicado. Em 28 de abril, uma dezena de homens armados
18 Carta de M. Casey de 08/04/1895 ao Presidente do Conselho Geral da Guiana
Francesa. SG Carton 37 E10 (41). CAOM.
19 Reis, A. op. tit., p. 98-102.
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comandados pelo tenente Luiz Bento desembarcou numa goleta em
Cunani, dando voz de prisao a Benito Trajano, a sua mulher e a
Christino Joao Ferreira, que seria outro amigo da Franca, conduzindo-os ate Amapa. Na falta de uma cadeia, os prisioneiros foram postos a ferros na rua e soltos dias depois por ordem de Cabral, sob a condicao de que nao deixassem mais a vila de Amapa. Trajano teria sido detido por ser um traidor da causa brasileira em favor da Franca20.
Dificil dar um veredicto de traicao patria como sentenca para Benito
Trajano. A vila de Cunani desenvolveu-se desde meados do seculo XIX como um quilombo de escravos fugitivos de fazendas dos municipios paraenses de Salgado e de Cameta, segundo a versao do proprio governo
paraense21. Os trabalhos desenvolvidos por Flavio Gomes e Jose Maia
Neto, apontam para uma serie de quilombos existentes e reconhecidos no Amapa. O quilombo de Cunani, que inicialmente era apenas um
ponto de passagem na rota de fuga em direcao a Guiana, cresceu
demograficamente a partir de 1860 com a diminuicao das idas para a
colonia francesa22. O recenseamento da populacao da vila de Cunani
organizado pelo morador Demetrio Nunes de Souza em dezembro de
1895, permitiu ao cientista Emilio Goeldi escrever o seguinte informe:
A populacao da Vila de Santa Maria, em Counany [Cunani] consiste de 284 pessoas. Sao brasileiros sem excecao alguma: a maioria e de diversas
localidades do Estado do Para (Curua, Macapa, Cintra, Vigia, Curuca,
Para, Sao Caetano, Gurujuba), bem 95% do total. De crioulos de
Cayenna [Caiena] nao encontrei senao uma mulher velha, viuva de um
brasileiro, e um rapaz (Adolfo Gimino) criado em Counany, que me
disse nao ter saudades de Cayenna, estrangeiros encontrei um unico -
Jeronymo Xavier, de nacionalidade portuguesa. Sao, com poucas
excecoes, pretos e mulatos, os mais velhos evidentemente
?mocambistas? (escravos fugidos), do tempo do Imperio, antes da
abolicao da escravidao; a geracao nova consiste de paraense, que
livremente vieram das localidades supramencionadas.2^
20 Tribunal de 1* Instance de Cayenne annee 1895, parquet 369, cabinet de instructions
40. Carton 37 Dossier D2 (31). CAOM.
21 ? Cunany foi a principio simples mocambo de escravos fiigidos, a maior parte da
regiao de Salgado: alguns anos antes da abolicao da escravatura no Brasil, por la aparece Mr. Chaton, e por conta propria da liberdade a todos os escravos e a todos promete a
protecao da Franca; funda com eles a povoacao de Cunany [Cunani], estabelece o
comercio e fornece mesmo a alguns, dinheiro para esse fim ?. Carta-ofTcio de Egidio Leao de Sales ao Governador do Estado do Para, 31/12/1900, in Reis, A. op. tit. 22 Ver: Gomes, Flavio, A Hidra e os pdntanos, Sao Paulo, Companhia das Letras, 2007 e
Bezerra Neto, Jose Maia, Fugindo sempre fugindo, Dissertacao de Mestrado em Historia.
Social, FFLCH/USP, 2000. 23
Exposicao sumaria da viagem de Emilio Goeldi realizada para o Museu Paraense de
Historia Natural e Etnografia ao Territorio Contestado Franco-Brasileiro. AHI - Fundo:
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O ? Massacre de AmapA ? 97
Mas quais teriam sido entao, os desconcertos do negro Trajano a que se referiu Arthur Reis na exposicao anterior? Icar a bandeira tricolor em sua casa e uma suposta queima da bandeira brasileira sao os fatos assinalados. Plagiando Arnaldo Antunes, Trajano nao era brasileiro, nao
era estrangeiro, nao era de lugar nenhum; nenhuma patria o pariu24. Trajano sempre foi um misero recurso humano, um instrumento de trabalho sob o dominio de capatazes e feitores. Porem, ali naquela terra
de ninguem, ele ousou inverter as relacoes de poder. Ali ele se constituiu em um individuo Uvre com poder. Era reconhecido e respeitado ate por um geografo do porte de Henri Coudreau. Percebe-se um forte
preconceito de ordem social e racial na ordem de prisao contra Trajano e
no desdem com que a populacao de Amapa tratou o caso.
Esse fato seria a gota de agua no longo processo de acirramento de tensoes que culminara no confronto armado de Amapa. A opiniao
publica em Caiena, insuflada pelos empresarios locais com negocios no
Contestado e pelo grande numero de garimpeiros em atividade no
Cunani, cobrou uma atitude energica do governo. A prisao de um aliado
da causa francesa por um grupo paramilitar brasileiro em uma regiao de
litigio e ainda sem soberania definida, era uma afronta que nao poderia ser deixada em brancas nuvens sob o risco da repeticao de situacoes
similares a essa no futuro. Assim, o mesmo grupo que montou a
operacao Casey, comecou a organizar
outra mis sao secreta.
O conflito armado de Amapa
Em 10 de maio de 1895, apos a reuniao do Conselho Consultivo ocorrida no dia anterior, o governador Charvein enviou uma longa carta ao comandante da Marinha narrando-lhe a versao dos fatos que lhe fora
passada por Julien, um minerador recem-chegado do Calcoene:
O territorio contestado foi invadido por um bando de delinquentes,
parece que vindos do Para seguindo um tal Cabral. Em vossa ultima
viagem a Mapa [Mapa], esse Cabral encontrava-se ausente e havia ido ao
Amazonas a fim de recrutar o contingente de 100 ou 150 homens com os quais ele opera atualmente na regiao do Contestado... Trajano foi
pego por ele, atacado e jogado em uma canoa brasileira e depois dirigido a Mapa. Ainda mais, a bandeira francesa que tremulava na casa de
Trajano, foi arrancada, rasgada e queimada no chao. Voce viu por voce
Documentacao Rio Branco - parte III, codice 340 - 2 13, in F. Gomes e outros (org.), op.
tit., p. 99-100.
24 ? Lugar nenhum ?, Arnaldo Antunes/Charles Gavin/Marcelo Fromer/ Sergio Britto/
Toni Belloto, Titos Vol. 2, Warner Music Brasil, 1998.
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98 C.M.H.L.B. Caravelle
mesmo esta manha a delegacao da Camara do Comercio, composta do
Presidente e do vice-presidente desta Assembleia, vir me pedir ajuda e
protecao contra os servicos executados por nossos co-nacionais, que na
embocadura dos rios sao apreendidos por grupos de aventureiros
brasileiros e despossuidos do ouro que eles acabaram de recolher.25
A estrategia da burguesia nessa fase avancada da expansao comercial
apos a decada de 1880 nao era caracterizada por uma politica patriotica, uma vez que seus objetivos eram e sao individualistas, nao coincidindo com o nacionalismo do Estado. Nesse pequeno rincao do universo
amazonico, por exemplo, Henri Coudreau preferia ver um Cunani
independente, mais facil para ter seus recursos explorados, a um Cunani frances. As grandes mineradoras la instaladas eram, de fato, sociedades
abertas, consorcios anglo-franceses, cujo capital provinha de acoes
lancadas na Bolsa de Londres, o mercado que nao reconhece nenhuma bandeira. Ha uma clara desvinculacao entre o interesse do estado nacional e do povo enquanto sudito, que se explicita necessariamente na
questao da defesa do territorio ou da patria, do jogo de conquista material ilimitado promovido pela burguesia como o do proprio objetivo da existencia.
Nas colonias, onde a maioria da populacao pouco compartilhava a
ideia patriotica da cidadania, a opiniao publica mostrou-se fragil em
relacao as questoes envolvendo esses sentimentos de nacionalidade; sentidos que soam de modo muito artificial. O proprio governo estabelecido na colonia funcionava como um facilitador dos negocios da
burguesia local, a elite criolla sul-americana, com o capitalista de fora, seja ele metropolitano ou nao. O homem de colonia investido de poder publico trabalhava como um atravessador dentro do mercado,
enriquecendo-se com as comissoes. Nao que isto nao ocorresse tambem
nos paises protagonistas do capitalismo, porem, dada a maior pressao exercida pelo conjunto da populacao sujeitada a intersec^ao dos interesses individuals burgueses com os coletivos do Estado, se fazia
necessario, pelo menos enquanto aparencia, um distanciamento maior entre o interesse do Estado e o do Capital. Nas colonias a relacao dava se de forma um tanto quanto diferente. A opiniao publica, devido a sua
propria fragilidade, torna-se a expressao do grupo burgues dominante, e,
portanto, reagia fortemente quando um interesse individual ou coletivo de seu grupo era atacado. Nesse momento, na Guiana Francesa, o
interesse economico em questao era o da exploracao mineral na regiao do Contestado e ele precisava ser defendido a qualquer custo.
25 Carta de 10/05/1895. SG Carton 36 D2 (28). CAOM. ? Mapa ? era o modo como o atual Amapa era escrito em frances no seculo XIX.
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O ? Massacre de AmapA ? 99
Foi com o surgimento dessas circunstancias conflituosas nas relacoes de exploracao internacionais em que o imperialismo do seculo XIX esbarrou nas limitacoes de poder politico de sua burguesia. O monopolio da forca e da violencia legitimada se encontrava nas maos do estado
nacional, na figura de suas forcas armadas. E o Estado nao pode agir militarmente a nao ser em defesa de sua propria seguranca, por razao de
estado, portanto, agir de forma patriotica. Assim, e nesse conjunto de interesses distintos e contraditorios que deve ser entendida a carta de Charvein ao comandante das forcas francesas na Guiana, apontando para a existencia de um ataque a soberania francesa na imagem da bandeira da fraternidade, da igualdade e da liberdade ardendo em
chamas. A agressao a patria consumada por um bando estrangeiro armado, bandidos! Isso sim, tornava-se um ato merecedor de retaliacao com o sentido de recolocar a ordem subvertida em seu devido lugar. Com base nisso, em defesa dos interesses economicos do grupo que
representava, Charvein pode, mais do que pedir, praticamente, ordenar ao Enseigne de Vaisseau do Bengali uma intervencao armada na zona
litigiosa:
Voce devera muito bem sair do mar sabado 11 de maio corrente, para
ingressar no territorio contestado. Um destacamento de 60 homens da
Infantaria da Marinha, comandados pelo Capitao Lunier, embarcara a
bordo. Voce devera, em primeiro lugar, ingressar no Carsewene
[Calcoene] onde parece que se encontra o posto mais importante... Vossa
missao sera descobrir esse posto dos bandidos e assegurar a seguranca de
nossos co-nacionais alem de liberar a passagem do rio com todos os
meios postos a vossa disposicao. Bem entendido que nao se faca recorrer
a violencia a nao ser em ultimo caso. Aqueles que forem reconhecidos
por terem molestado e pilhado nossos co-nacionais serao conduzidos a
Cayenne [Caiena] e conforme a Convencao de 1862 remetidos a justica local. De Carsewene voce se dirigira a Mapa [Amapa] onde se encontra
prisioneiro o capitao Trajano. Voce tentara com todos os meios pacificos obter sua liberacao. Mas se voce sentir uma recusa obstinada e uma ma
vontade absoluta, voce podera usar a forca no ponto onde ele se
encontra detido e se necessario voce toma alguns refens distintos como
garantia de sua vida e de seus interesses lesados. Nos fomos igualmente avisados que dois vapores brasileiros deverao vir no dia 15 de maio
bloquear o baixo Carsewene e Counani [Cunani]. Eu nao posso crer que o Governo do Para possa se comprometer a autorizar uma violacao tao
flagrante das convencoes... Eu lhe recomendo senhor comandante todo
o tato e prudencia
no cumprimento dessa missao que e uma missao de
policia e nao de guerra. Qualquer ato de repressao somente devera
ocorrer em seguida a fatos delituosos bem constatados e de uma
resistencia material que vos sera impossivel veneer pela persuasao.
Essa era a estrategia de intervencao militar arquitetada, uma questao de policia, nao de guerra, um piano que seria viavel enquanto nao
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100 C.M.H.L.B. Caravelle
houvesse fatores externos ao planejamento efetuado. A operacao militar, como nao se preparou para uma guerra, nao se mostrou capaz de lidar
com o imprevisto que fatalmente tende a ocorrer. A chegada do vapor
Bengali em Calcoene no dia 13 de maio foi tranquila. O navio aportou antes dos saltos e apos uma hora de viagem em canoa, um grupo de
militares chegou ao degrad26. Conversaram com tres garimpeiros de Caiena que lhes disseram que estava tudo calmo, mas que havia receio nas vilas de ataques de brasileiros vindos de Amapa. Segundo eles, os
brasileiros estabelecidos no degrade estariam armados com fuzis de guerra americanos. A maioria dos garimpeiros la instalados no decorrer do ultimo ano, entre 300 e 400, era provinda da Guiana e mantinha forte rivalidade contra um grupo de apenas 30 brasileiros. Estes ultimos seriam liderados pelo capitao Daniel, que apos seu retorno da viagem feita ao Amapa, teria determinado, sob ordens expressas de Cabral, a
expulsao de todos os franceses em busca de ouro em detrimento dos
primeiros habitantes ocupantes do territorio. Em seguida, o
destacamento militar saiu em perseguicao a Daniel, que foi encontrado em frente a sua propria casa e levado a bordo do Bengali para ser
conduzido a julgamento em Caiena, como previa o piano initial. Seus
companheiros Faustino e Germano, tambem procurados, os outros
brasileiros armados citados pelos garimpeiros e os fuzis americanos, nunca foram encontrados27.
Feita essa primeira intervencao conforme o planejamento realizado, o comandante seguiu com o Bengali destino Amapa. Havia uma estrategia
montada: descer de surpresa com os soldados e fazer com que todos os
homens com capacidade de resistencia na vila (haveria em torno de 200 homens nessas condicoes), saissem de suas residencias com as maos
levantadas. No papel tudo se torna possivel, mas na hora da acao, se
requer uma tatica para colocar a estrategia pensada em pratica. O
problema: como chegar de surpresa com um navio do porte do Bengali? Pelo croqui da vila de Amapa feito antes do desembarque aparentemente a Infantaria da Marinha sabia, ou imaginava que sabia, o paradeiro de
Trajano e de Cabral, localizados nas casas indicadas com as letras B e E, e tracou uma estrategia para alcancar esse proposito.
26 Degrad era o nome usado em lingua creole para designar os atracadouros fluviais,
lugares de encontro e residencia, geralmente antes dos saltos encachoeirados, obstaculos naturais nos rios do Amapa, que elevam o rrivel dos rios ate cotas mais altas, o plateau, onde ficava localizada a area de exploracao aurifera. Definicao encontrada em Strobel,
Michele-Baj, op. cit., p. 385.
27 Interrogator^ e prisao de Daniel. Operacoes da gendarmerie no Calcoene 19/05/1895.
SG Carton 37 D2 (32). CAOM.
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O ? Massacre de AmapA ? 101
M. Herard. Croqui da vila de Amapa, 15/05/1895. SG DFC Supplement Guyane. CAOM.
Traducao da legenda no desenho: Escala de 0:001 para 2 metros
A. Ponto onde foi atingido o Capitao Lunier B. Casa inacabada onde foi colocado o
capitao C. Lugar de parada dos marinheiros desembarcados
D. Lugar de desembarque E. Casa do antigo capitao (Cabral)
Para nao demonstrar suspeita, o Bengali ancorou aproximadamente 500 metros antes de chegar ao vilarejo, permanecendo com o
comandante a bordo e alguns marinheiros28. Uma comitiva chefiada pelo capitao Lunier com uma duzia de soldados da infantaria naval e mais 60
marines seguiu em canoas ate
Amapa. Estes ultimos desembarcaram
antes, na altura onde se localiza o cemiterio, e como mostra o mapa
28 Tribunal de 1* Instance de Caiena, ano 1895. parquet 369, cabinet de instructions 40.
Carton 37 Dossie D2 (31). CAOM.
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102 CM.H.L.B. Caravelle
seguiram a trilha que contorna a vila para surpreenderem os habitantes
pelo costado. Lunier desembarcou pelo cais principal assinalado como
ponto D; estava convencido de que nao apresentando todo seu aparato militar dissuadiria os habitantes da vila de uma resistencia, podendo chegar mais facilmente ao encontro de Cabral. Contudo, a casa onde deveria estar Trajano encontrava-se deserta, nenhuma alma se fazia viva e um silencio sepulcral reinava em todo o vilarejo. Lunier, entao, seguiu com seus doze homens pelo caminho da beira-rio ate pouco antes de
chegar a igreja, de onde teria sido interpelado por Cabral e seu bando. Todo o planejamento efetuado caiu por terra quando a vantagem da
surpresa mudou de lado. Em certo momento, do nada, desembestou um
forte tiroteio de ambos os lados em disputa que prosseguiu durante mais de duas horas. O confronto teria se iniciado no ponto A e, enquanto a
armada francesa retornava para seu posto de desembarque Cabral seguia com seu grupo para a mata atras da igreja. Ao final, o tragico resultado
imprevisto. O tenente Lunier estava morto, algumas dezenas de moradores brasileiros e de soldados franceses tambem, alem de um
grande numero de civis e militares feridos. Cabral escapou da prisao e
fugiu para o manguezal. Nesse momento tenso da historia a versao dos acontecimentos sucedidos muda conforme o lado que faz a narrativa.
A armada francesa conseguiu alcancar uma das metas do piano. Tres refens foram feitos prisioneiros: Manoel Gomes Branco, Juan Lopez Perreira e Marcilio Wilson Bevilacqua. Esses tres, junto a Daniel Ferro, foram acusados de ? associacao de malfeitores ?, um termo muito em
voga no final do seculo XIX na Franca, Italia e Espanha. Originalmente cunhado para incriminar os revolutionaries socialistas e anarquistas, particularmente, essa acusacao tornou-se o
grande motivo de
confinamento e deportacao de anarquistas para os bagnes coloniais da Guiana e da Nova Caledonia, na epoca dos grandes atentados29. Alem dessa acusacao padrao o procurador Paul Artaud tambem promoveu no
inquerito aberto o crime de prisao de homem notavel (Trajano) e
homicidio voluntario premeditado (contra o tenente Lunier). Para essa
ultima acusacao, valeu-se do relatorio do comandante das tropas na
Guiana Francesa baseado na narrativa de marines que participaram da acao.
Segundo o relatorio do comandante, Cabral apareceu a uma distancia de uns vinte metros do capitao Lunier acompanhado de uma tropa de uns sessenta homens. Quando ambos se encontraram frente a frente, Lunier ordenou-lhe que soltasse imediatamente Trajano, ao que ouviu
29 Ver o caso do anarquista Eugene Dieudonne, da banda Bonnot, que evadiu da prisao na Guiana e refugiou-se no Brasil. Dieudonne, Eugene, ha vie des formats, Paris, Gallimard, 1932.
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O ? Massacre de AmapA ? 103
como resposta de improviso -?fogo!? Os homens de Cabral
dispararam. Lunier foi o primeiro a tombar sem vida, e todos
rapidamente se dispersaram em retirada, a espera do reforco dos demais
soldados, enquanto comecaram disparos vindos das casas. Cabral deu meia volta e fugiu com seus homens para dentro do mangue deixando a
vila com a forte resistencia dos paisanos comandados por velhos oficiais brasileiros que atiravam indiscriminadamente nos marines por detras das
janelas das casas. O combate durou das 10 e meia as 13 horas ate que a
ultima casa foi tomada e seu ultimo defensor morto. O comandante
vangloriou-se no relatorio de ter tido apenas seis baixas enquanto contabilizaram sessenta mortes do lado do inimigo alem dos covardes
que fugiram para o pantano. Quando foi publicada pelos jornais da colonia, essa versao oficial do
Exercito provocou comocao no enterro do capitao Lunier e dos
soldados realizado no dia 17 de maio. Alem dos mortos, houve outras 18
baixas de feridos entre os soldados, tres deles em estado grave. A
declaracao do chefe do Batalhao de Infantaria da Marinha atribuia
completa responsabilidade ao Brasil nos fatos ocorridos em Amapa e
reclamava ordens de Paris para uma ocupacao militar imediata de todo o
territorio contestado. Nesse relatorio apresentava uma lista dos
principals nomes seguidores de Cabral, encabecados pelo professor Joao Pereira, ja detido em Caiena. Alegava como prova da responsabilidade do governo brasileiro a remessa de dinheiro de Macapa para a fundacao
da escola, acao promovida pelo Dr. Tocantins, fiincionario do governo do Para. Insinuava que as frequentes idas de Cabral a Belem seriam para receber instrucoes e verbas do governo brasileiro para estabelecer o
Governo Provisorio do Amapa. E concluia seu relatorio afirmando que o governo do Para tinha leis, ordens, inteligencia, servico de informacao e homens a disposicao para ocupar o territorio, e que a Franca nao
poderia permanecer patetica, paralisada ante essa afronta. O conteudo do texto do comandante militar na Guiana era quase um pedido de
declaracao de guerra ao Brasil30. Nos autos do processo contra os prisioneiros brasileiros levados ate
Caiena, consta a versao deles sobre o conflito. Segundo Joao Pereira, no
encontro entre os dois grupos rivais, Cabral recebeu voz de prisao sem
que houvesse nenhum dialogo anterior entre as partes, tendo sido logo
capturado pelos soldados da infantaria francesa. Mas, com um golpe, uma cotovelada, conseguiu se desvencilhar, pegando o revolver do
capitao Lunier e atirando contra ele para escapar da prisao. Depois, embrenhou-se com seus homens na floresta de mangue levando Trajano
30 Relatorio do Comandante das Tropas na Guiana Francesa. Dossie Cabral. SG Carton
36 D2 (28). CAOM.
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consigo enquanto comecava o tiroteio pela cidade. Alguns poucos civis
brasileiros armados enfrentando um destacamento da infantaria da
marinha francesa^l.
Ja, a notfcia veiculada pelo Didrio de Noticias quando da chegada de Cabral em Belem trazendo Trajano como prisioneiro de guerra, nao fala
de conflito, mas de um verdadeiro massacre32. Afirma que um navio de
guerra frances aportou em Amapa com cerca de 300 a 400 soldados a
bordo e que uma centena deles desembarcou. Com Cabral, havia apenas 14 ou 15 homens armados na defesa da vila. Foi dada a ordem de prisao contra Cabral que obviamente nao a aceitou. Houve resistencia, Cabral atracou-se com o capitao frances e na luta foi disparado um tiro de
pistola. Conseguindo se livrar dos invasores, Cabral se refugiou numa
residencia de onde comandou a resistencia civil a invasao armada
estrangeira. Apos a inesperada reacao os soldados franceses revidaram de modo desproporcional a alguns tiros que teriam partido de dentro das
casas, uma atitude de legitima defesa da parte de quern fora invadido. Essa reacao, que durou mais de duas horas, atingiu todas as residencias da vila de Amapa. Durante o combate, acuados ante a superioridade numerica e militar, Cabral e seus homens escaparam para a selva. Ao final do confronto, contabilizaram-se 35 mortos sendo: dez mulheres assassinadas dentro de suas casas, duas delas segurando seus filhos
pequenos no colo; tres velhos septuagenarios e um velho enfermo de oitenta anos; 17 homens com idades variando entre 16 e 65 anos; mais
quatro criancas entre sete e 13 anos de idade; alem de 32 feridos durante o combate. Quando de sua chegada a Belem, Cabral foi saudado com
vivas e tiros de foguete pela populacao33. Em Paris, desde 1880 circulava um semanario intitulado Le Brest/,
porta voz da comunidade brasileira residente na Franca. A edicao de 18 de junho de 1895 teve como tema ? Le Conflit de Mapa ?. Valendo-se das noticias chegadas do Brasil, a edicao foi bastante detalhista quanto aos danos materials provocados pela intervencao militar no Amapa. Seu
objetivo era o de se opor ao discurso oficial propagado pela opiniao pubica francesa. Segundo o jornal, praticamente todas as casas
comerciais haviam sido incendiadas ou saqueadas, provocando enormes
prejuizos financeiros para a populacao local. A casa comercial do
portugues Manoel Branco, a maior de Amapa fora completamente destruida. Ele foi levado preso para Caiena e sua mulher, assassinada, deixando quatro criancas orfas. Outras duas casas foram parcialmente
31 Tribunal de 1* Instance de Caiena ano 1895, parquet 369, cabinet de instructions 40.
Carton 37 Dossie D2 (31). CAOM.
32 Didrio deNoticias, Belem, 27/05/1895. 33 Prowncia do Para, Belem, 20/07/1895.
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O ? Massacre de AmapA ? 105
incendiadas e tiveram suas mercadorias saqueadas. Varias canoas da vila foram roubadas ou simplesmente quebradas para impedir qualquer reacao dos moradores. A casa de comercio ?
Lopes, etc. e Irmao ? fora
completamente destrufda, sendo que oito pessoas pereceram em seu
interior. A escola e a casa onde residia o professor Joao Pereira tambem foram incendiadas. E a residencia de Francisco da Veiga Cabral, como nao poderia deixar de ser, fora completamente saqueada tendo sido roubado o ouro e a prata que ele ali guardava: um prejuizo de 30.000 francos. Em resumo, o jornal apresentava uma lista de 21 casas
incendiadas e outras 16 que estariam em situacao precaria. Para concluir
questionou: quern fora a vitima e quern fora o agressor no conflito em
Amapa? Na medida em que os danos humanos e materials comecaram a ser
contabilizados, a reacao patriotica a morte de Lunier comecou a ser
reavaliada. Perez, o chefe das tropas na Guiana, contestou as noticias
publicadas nos jornais brasileiros, afirmando serem caluniosas. A
possibilidade de uma intervencao militar no Amapa foi descartada, mas a
Franca nao admitiu outra versao que nao a oficial para os fatos
ocorridos. O governo frances procurou diminuir a acusacao do
massacre, reclamando a morte de um oficial do Exercito em combate. Do lado brasileiro, o Barao de Marajo acusou o governador Charvein de ser um testa de ferro de um sindicato corporativo formado na Franca
para a exploracao do ouro no
Amapa. Para contornar essa situacao, em
busca de uma solucao diplomatica para o caso, Charvein foi destituido do cargo e em seu lugar foi empossado outro governador, M. Henri
Danel. O Tribunal de Caiena considerou improcedente a acusacao contra Daniel Ferro por ele nao ter agido de vontade propria
? estaria sob as ordens de Cabral ? e logo lhe concedeu alvara de soltura. Em
junho ja se tern noticias de Daniel em sua casa no Calcoene. Os outros tres prisioneiros continuaram detidos e permaneceram sob julgamento
pelo envolvimento na morte de franceses em Amapa. Do outro lado, no dia 9 de junho, Madame Coudreau dirigiu-se ate
Belem do Para para reclamar a soltura de Evaristo Raimundo, o
encarregado da mina de ouro de sua propriedade no Cunani. Ele fora
capturado por sete homens armados enquanto pescava na goleta de um
chines, que conseguiu escapar com seu barco. A famflia Coudreau
sempre gozou de muito prestigio no Brasil e o governo paraense alegou um equivoco. O alvo seria o marujo chines, esse sim o piloto que
acompanhara o Bengali na missao ao Amapa. A retaliacao contra o
massacre em Amapa havia comecado. Evaristo fora levado para a vila de
Amapa, porem nao ha noticias sobre sua futura libertacao. Em Cunani, contudo, eram os habitantes brasileiros do Contestado
que se mostravam receosos em relacao a possiveis represalias dos
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garimpeiros da Guiana. Daniel, por exemplo, em meados de julho fora
preso em sua residencia a mando de Lourenco Gomes, alcunhado Baixa
mar, o homem do ouro no Cassipore, que o libertou apos ver o alvara de
soltura da justica francesa. Pouco depois, Daniel fbi emboscado a tiros e
viu-se obrigado a fugir para Belem. De seis a sete mil homens estariam circulando entre Cunani e Amapa em busca de ouro e, apos ter sido aberto um acesso por terra, estariam trazendo medo e incerteza a todos os agricultores e Pescadores brasileiros habitantes da regiao. Reunidos, enviaram a seguinte peticao ao Governador do Para solicitando
providencias urgentes:
Desesperados (os crioulos) pelo reves de 15 de Maio, que fechou-lhes as
portas do Amapa, sonho el-dorado, vingam-se covardemente nos
brasileiros, pescadores que procuram no rio Calsoene [Calcoene] abrigo para suas canoas de pesca. E preciso que o governo brasileiro tome
providencias para garantir os brasileiros, maltratados pelos pretos de
Cayenna [Caiena] impunemente; e nao vemos motivo nenhum para tanto
escrupulo, quando ainda em 15 de Maio uma forca militar francesa massacrou a populacao indefesa do Amapa, saqueou-lhe as fazendas, incendiou-lhes as casas e conduziu prisioneiros para a cadeia de Cayenna, onde ainda sofrem todos os rigores de um governo despotico. Se o
governo brasileiro mostrar-se indiferente pela sorte de seus concidadaos
residentes no contestado, esses crioulos confiados na impunidade, levarao
mais longe os seus ataques, e talvez brevemente tenhamos de lamentar
hecatombe mais horrorosa que a de 15 de Maio.34
Nos jornais de Belem surgiram seguidas noticias reclamando uma
atitude do governo do Para em relacao aos fatos ocorridos. O Didrio de Noticias continuou reclamando uma resposta sobre os tres homens detidos em Caiena: um portugues com quatro filhos abandonados a
propria sorte; o professor de Amapa e seu ajudante. O jornal perguntava pelo paradeiro, qual a situacao em que se encontrariam e se pelo menos
teria havido providencias do governo brasileiro exigindo sua soltura. Em
julho, o jornal Provincia do Para exaltava no trecho transcrito abaixo, a
heroica resistencia oferecida por Cabral na defesa de um Amapa brasileiro enquanto se ridicularizava Trajano, o ?preto por quern um
oficial frances morreu ?.
Pois este e que e o Trajano? O celebre membro da comissao de limites francesa? Dira o leitor. E por este preto mal encarado, de pe descalco
que a gente do Bengali trucidou tantos brasileiros?! Parece incrfvel! Credula e iludida Franca! Mas e exato. Eis ai o Trajano, por quern metade da Franca, por intermedio de seus jornais, geme de dor e de saudade. Mal sabe assinar o nome, e quanto a fidelidade do croqui
34 Didrio de Noticias, Belem, 03/08/1895.
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O ? Massacre de AmapA ? 107
podemos garantir que foi tirado d'apres nature, em casa de nosso
conterraneo Cabral, a travessa da Queimada, onde Trajano acha-se
aboletado com a famflia... Trajano nunca foi frances; nasceu em Curaca, e de la fugiu, como escravo, vai para trinta e cinco anos. E um velhaco
refinadissimo. Depois que apanhou-se em Counani [Cunani], fez-se
homem livre e ajuntou ao nome de batismo, conforme se ve do fac
simile, o sobrenome Cypriano, ou Superiano como ele escreve, Bentes. A
forca de ameacas casou-se em 1893 com uma rapariga counaniense, de
18 anos de idade, de nome Victoria. Quern o ve falar nao o leva preso. E
de uma labia espantosa.35
Caricatura de Trajano publicada no jornal Provincia do Para, Belem, 24/07/1895.
Em oito de agosto de 1895, Cabral ja estava de volta a Amapa levando seus dois prisioneiros consigo, Trajano e Christino. Isso soou como uma ofensa para os franceses de Caiena, cuja missao militar fora
justamente a de libertar Trajano e deter Cabral, uma missao em vao, com
forte reves humano e diplomatico. E agora? Estava de volta o bandido em pele de heroi nacional brasileiro com os dois prisioneiros a tiracolo como se nada houvesse ocorrido. Para o nacionalista frances era uma
clara afronta a patria, para a burguesia um risco aos seus
empreendimentos. O Consul da Franca em Belem alertou para o clima
35 Provincia do Para, Belem, 24/07/1895.
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108 C.M.H.L.B. Caravelk
nada amistoso contra a Franca que se formara no Para36. Reclamava a
necessidade de solucao imediata do caso antes que houvesse um novo
conflito. Defendia intransigentemente uma tomada de posicao energica do governo frances, com uma acao militar e policial na regiao do
Contestado, pois lhe era inadmissivel a presenca e circulacao livre de um
assassino de um oficial frances. Com o retorno de Emflio Goeldi de sua
viagem ao Amapa, a partir de dezembro de 1895 a impressao que o
governo paraense e a imprensa passaram a ter sobre Cabral mudou.
Goeldi, um cientista acima de qualquer suspeita, apos ter passado alguns dias na vila de Amapa, nao foi nada condescendente com as atitudes do tenente e de seus capangas, presumivelmente pistoleiros provindos em sua maioria do estado do Ceara:
Os abusos, opressoes, vingancas pessoais e represalias cometidas por esta gente sao sem numero. A populacao vive debaixo de uma tirania
nojenta e percebi desde as primeiras horas sintomas serios de
descontentamento, de oposicao. Nao ha uma pessoa, fora do circulo da
famQia e da roda de Cabral, que vive satisfeita e nao se queixe das duras contribuicoes de guerra, que a toda hora sao exigidas em forma de
servicos manuais gratuitos, expedicao em canoa, rezes do campo3??
Goeldi transmitiu uma pessima imagem da roda de jaguncos que circundava Cabral, mas se omitiu na avaliacao pessoal do lider. E concluiu recomendando que se empregassem no Amapa somente as verbas estritamente necessarias, pois temia pelo desvio desse dinheiro
para os interesses pessoais do bando seguidor de Cabral, enquanto nao se definisse a arbitragem sobre o territorio. Em contrapartida, Goeldi fez
muitos elogios ao que chamou de governador do Cunani, Jose da Luz
Sereja. Em Cunani, apesar da proximidade da vila com a area de
garimpagem, a populacao local brasileira demonstraria um
desenvolvimento economico e ?moral? nao encontrado na vila de
Amapa. Segundo Francinete Cardoso, o diretor do Museu Paraense fez uma distincao entre os interesses nacionais, em prol da grandeza da
patria, que movimentariam as acoes de Sereja no Cunani, daqueles meramente oportunistas e individualistas que seriam os objetivos imediatos de exploracao das riquezas minerais do grupo de pessoas envolvidas com Cabral38.
36 SG. Dossie Cabral. Carton 36 D2 (28). CAOM.
37 Exposicao sumaria..., op. tit. p. 103.
38 Cardoso, Francinete, O poder das autoridades e representacoes sobre o territorio
Contestado Franco-Brasileiro, p. 298-9, in Mauro Coelho e outros (org.), Meandros da
Historia, Belem, UNAMAZ, 2005.
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O ? Massacre de AmapA ? 109
Desenho de Cabral publicado no jornal Provmcia do Para, Belem, 24/07/1895.
Durante todo o ano de 1896, houve uma ampla troca de
correspondencia entre os adidos do Ministerio dos Negocios
Estrangeiros da Franca com a Embaixada da Franca em Petropolis e
desta com o Ministerio das Relacoes Exteriores, personalizado na figura de Dionisio de Castro Cerqueira. Contudo, quase nao se encontram
correspondencias entre este ministro com o Governador do Para.
Segundo o agente sanitario frances Georges Brousseau em missao
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110 C.M.H.L.B. Caravelle
ambigua no Calcoene (ao mesmo tempo agente de saude e enviado do
governo frances no Contestado), foragidos do bagne de Caiena estariam associados ao bando de Cabral. Um deles, Guilherm, um ex-oficial da
Legiao Estrangeira, funcionaria como interprete e lideranca intimidadora
junto a populacao de fala francesa. Ainda segundo Brousseau, a vila de Cunani estaria dividida em duas partes, uma ocupada por brasileiros e
outra por franceses e mesmo durante o dia se ouviriam disparos de
fuziP9. Cabral foi visto novamente em Cunani em outubro de 1896, o
que gerou protestos vindos de Paris e dirigidos a embaixada francesa no
Rio de Janeiro. Junto a Jose Pires, seu engenheiro de minas, Cabral teria
ido com armas e municoes para construir rotas de acesso aos garimpos do Calcoene. O caso somente foi solucionado com a intervencao do
governo federal. Segundo Brousseau, em 23 de novembro desse ano, Cabral voltou a Belem por ordem do governador e os ? bandidos ? sob sua direcao teriam sido ? repatriados ? para o Cassipore40. Novamente, desta feita em abril de 1897, continuavam circulando as noticias sobre as
atividades do grupo de Cabral com o recrutamento de baianos para a
garimpagem do ouro no alto Cassipore: 60 homens num primeiro momento e 180 homens ainda por vir. O consul frances em Belem
interpelou o governo do estado do Para para uma atitude energica contra
Cabral, pedido ao que parece ter sido em vao41. Em fevereiro de 1898, um novo caso de policia agitou a Administracao da Justica em Caiena. O
comissario Cazenave relatou o roubo de cinco bois praticado pelo que seria o comandante brasileiro oficial do Calcoene, Sr. Vasconcellos. O assunto foi levado para a embaixada francesa em Petropolis que o
comunicou ao governo brasileiro. A resposta imediata dada pelas autoridades merece destaque pelo seu teor, novamente de carater racista e preconceituoso: ? O governo brasileiro informa que o Sr. Vasconcellos nao passa de um aventureiro sem titulo, nem mandato, um NEGRO ?
provavelmente, que se intitula governador ou prefeito como Cabral ja disse ser42. ? Contudo, o fato e que se encontrava em curso em Calcoene a organizacao de um governo brasileiro pelo Secretario de Estado do
Para, Leao Salles, atribuindo a Vasconcellos autoridade de prefeito com o concurso de quatro franceses que seriam adeptos da causa brasileira. Esse grupo faria propaganda ativa para atrair os Creoles da Martinica e de
Guadalupe a pedir a protecao das autoridades do Brasil. A prova maior
39 SG Carton 6 E10 (43). CAOM. 40 SG Carton 37 D2 (33). CAOM. 41 SG, Carton 38 Serie D2 (36). CAOM. 42 SG Carton 37 D2 (32). Administration de la Justice 01/02/1898. CAOM.
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O ? Massacre de AmapA ? 111
dessa incursao estatal teria sido a instalacao de uma alfandega brasileira em Calcoene para os pagamentos dos direitos de entrada43.
Enquanto isso, Paris e Rio de Janeiro faziam os preparativos necessarios para a criacao de uma comissao mista de gerenciamento do territorio enquanto nao fosse instalado um tribunal arbitral neutro para a
solucao definitiva do litigio. Na perspectiva das capitais, do governo central, os conflitos regionais eram minimizados como disputas locais de aventureiros insanos e bandidos armados, evitando assim, que pequenas rusgas nas disputas pelo poder local provocassem outro incidente de
porte que obrigasse a uma intervencao armada. Brasil e Franca, enquanto nacoes amigas jogaram uma politica imperialista que se resolveu atraves
de um entrevero diplomatico; a guerra nao fez parte do repertorio conflitante de nacoes de longa tradicao em termos de troca intelectual, ou, melhor seria dizer, de influencia intelectual francesa sobre a elite
brasileira.
Porem, la onde o territorio estava em jogo, onde o governo central encontrava-se distante, potentados locais faziam sua articulacao entre a
milicia paramilitar armada e a conivencia dos governos locais: seja o do
estado do Para como o da colonia de Caiena. O interesse do Estado, nesse caso, correspondeu aos interesses dos governantes regionais que melhor articularam um auxilio publico junto as populacoes nativas no
sentido de oferecer-lhes servicos e difundir a lingua patria numa terra
cujo sentido da palavra patria era quase inexistente. E nessa relacao com
os habitantes ja estabelecidos, e nao com os temporarios, foi o estado
brasileiro atraves das acoes do governo paraense que se fez mais
presente, garantindo vantagens na arbitragem internacional que ainda estaria por vir no ano de 1900.
Considera?oes finais
Duas diferentes questoes nos parecem cruciais para elucidar o climax
dos eventos ocorridos. A primeira, fundamental, diz respeito as
diferentes estrategias adotadas por ambos os paises, Brasil e Franca, e
por suas respectivas burguesias em relacao as praticas imperialistas do
seculo XIX, fator desencadeador dos conflitos. A burguesia francesa,
empreendedora, usou de capitais disponiveis em seu pais e em outros, abundantes principalmente na Inglaterra, para dar curso a estrategia de
expansao capitalista em areas fora do controle politico dos modernos
estados nationals. O territorio contestado, com recursos minerals
riquissimos, sem dono nem lei, permanecia, em tese, abandonado ao
43 U ik
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lado de uma colonia francesa ja existente, atendendo facilmente os
objetivos burgueses do laisse^Jaire. Isso se mostra visivel quando, por exemplo, Octavie Coudreau44 veio
a publico denunciar o rapto de seu funcionario e declarou indignada: ?Quern sabe nos retornemos aos heroicos tempos da conquista da America e da descoberta de minas de ouro: alguem descobre uma mina de ouro e o primeiro delinquente aparece a sua frente a mao armada e te
mata45. ? O que o empreendedor moderno queria era um ambiente onde ele tivesse legalmente garantidos seus direitos de livre comercio, de livre
empresa, sem a intervencao do Estado, a nao ser, evidentemente, para
fazer valer a lei, ou melhor, a garantia da seguranca de seus negocios. Portanto, no modelo em que o capitalismo dos paises economicamente mais desenvolvidos se organizou, em torno da questao juridica, da
regulacao normativa em todas as instancias da vida social, que por coincidencia sao permeadas pelas relacoes de capital/trabalho, o direito torna-se o instrumento fundamental para o desenvolvimento das forcas
produtivas. E era esta a grita francesa: pela convencao de 1862, nos temos o direito de circular; pelas leis do mercado, nos temos o direito de
empreender; pelas leis da Franca, nos temos o direito da assistencia do Estado a nossa livre iniciativa.
E que resultado pode ocorrer quando esse tipo de mentalidade encontra uma populacao cuja forma de existencia nao esta regulada pelo
modelo que Michel Foucault definiu como sendo o da biopolitica4^; uma
populacao cujo poder economico para empreender encontra-se ainda bastante limitado, e que, simultaneamente, esta submetida a tutela de um
estado nacional independente como o brasileiro cuja governabilidade nao se caracteriza pelo uso normativo da lei como instrumento regulador das relacoes sociais, a nao ser para aquela pequena parcela da populacao socialmente incorporada a dimensao maior daquilo que se chama cidadania? Um conflito de interesses locais que, mascaradamente, logo se
transformam em interesses nacionais. Na impossibilidade da populacao brasileira (neste caso os moradores locais do Amapa e das areas vizinhas do Para) competir com os franceses numa corrida capitalista pelo ouro, ela defendeu a unica coisa que para ela valia a pena lutar: a sua terra. Ou,
44 Usamos aqui o nome Octavie, conforme o estudo feito pelo biografo de Henri
Coudreau: Benoit, Sebastien, Henri Anatole Coudreau (1859-1899). Dernier explorateurfrancais en Ama^onie, Paris, L'Harmattan, 2000. Na maioria dos livros, artigos e inclusive textos de
jornal encontra-se a grafia do nome como sendo Othile, ou Otile, contudo, optamos por fa2er esta atualizacao da naturalista e exploradora francesa com base na ampla pesquisa realizada pelo historiador do IHEAL/Paris III.
45 ?Le Conflit de Mapa?, Ltf Bresil, Paris, junho de 1895. Semanario publicado desde
1880; nessa edicao reproduz uma noticia extraida do Didrio de Noticias, de Belem. 46
Foucault, Michel, op. cit.
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O ? Massacre de AmapA ? 113
pelo menos, a posse sobre ela, porque nem ao menos a propriedade, juridicamente falando, ela detinha. Mesmo porque, a questao da
propriedade em um estado aristocratico como o brasileiro era algo que nem podia nem devia ser motivo de reclamo de seus suditos.
Num dos primeiros decretos republicanos le-se: ? deve ser empenho do governo da Republica [...] a exploracao de seus produtos naturais e
proletariado agricola nacional, em sua maioria sem meios de empregar, [...] a atividade com que tern ate aqui provido a fortuna publica e a
riqueza do Estado47 ?. O povo nao e cidadao, e peao. Por isso aparecera uma clivagem clara entre o discurso falando sobre a liberdade de circulacao presente na burguesia francesa empreendedora da mineracao, e o discurso dos que chegaram antes, do direito de pedagio pelo acesso
cobrado por um povo que se estabeleceu na unica terra onde o seu pais de nascimento nao o enxotou, justamente por ser uma terra sem Estado.
E agora, chegavam esses estrangeiros causando confusao? E os estados nacionais como se comportaram ante essa disputa? A
metropole francesa, preocupada com seu grande avanco colonial na
Africa, mais lucrativo e mais proximo, procurou fazer de conta que nada tinha a ver com a historia das brigas no Contestado e do ato de guerra em Amapa, sendo essas atitudes isoladas do governo colonial e de
burgueses arrivistas. Ja o estado brasileiro continuou adotando uma
velha estrategia imperialista que remonta ao periodo da America
portuguesa. Trata-se de uma forma de conquista territorial que de fato nao e uma conquista na expressao de uma dominacao efetiva sobre o
lugar e sobre seus habitantes como o termo conquista enseja. E uma
forma de expansao territorial, mas, tambem nao pode ser confundida com a expansao do imperialismo capitalista do seculo XIX, pois este
tinha um claro sentido de exploracao comercial do territorio
conquistado. Com o Brasil nao foi bem assim. O sentido da conquista, dada a pequena capacidade de gestao administrativa do estado sobre um
territorio tao vasto somada ao pequeno contingente populacional ? civilizado ? e a debilidade da burguesia empreendedora nacional, da
conquista do territorio brasileiro e de seus imensos sertoes se reveste na
criacao de ? estoque de espacos de apropriacao futura, os lugares de
realizacao da expansao da colonia ?. As areas de estoque, ou de reserva, foram definidas por Antonio Carlos Robert de Moraes como sendo os
?fundos territorials48?. E essa caracteristica da expansao colonial
portuguesa continuou repetindo-se pelo vasto territorio brasileiro apos a
47 Decreto 164 de janeiro de 1890, reproduzido no ?Boletim da Sociedade Central de
Imigracao?, Imigrafdo n ?. 74, Rio de Janeiro, dezembro, 1890.
48 Moraes, Antonio Carlos Robert de, Territorio e Historia no Brasil, Sao Paulo, Hucitec,
2002, p. 88.
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independencia, seja durante o Imperio seja com a chegada da Republica. A estrategia seguiu semelhante. Avanca-se em direcao aos sertdes,
primeiro o oeste proximo, depois o centro-oeste, a fronteira amazonica, enfim, os ultimos rincoes da Amazonia. A marcha para o oeste, na
apologetica obra de Cassiano Ricardo, ao contrario da conquista do faroeste norte-americano, dos colonizadores com suas carrocas
enfileiradas levando a civilizacao puritana para ser radicada nas terras
ignotas dos indios, e apenas uma marcha, cujo alcance e bastante
passageiro, nao traz consigo o desejo da erradicacao permanente. A formacao historica brasileira legitimada pelo discurso oficial da
historiografia inauguradora da grandeza da patria no seculo XIX foi basicamente geografica. Definiu-se pela ampliacao e apropriacao continua do espaco. A acao do estado brasileiro, desde a independencia, teve como ?tarefa fundamental a defesa da soberania sobre os fundos territorials de seu espaco e por meta sua ocupacao49 ?.
E com base nessa caracteristica especifica do imperialismo brasileiro
que deve ser vista a diferenca de atitude do estado nacional na area em
litigio. O governo do Para, no limite de suas possibilidades, financiou e
incentivou a ocupacao do territorio, que, ambiguamente, nem foi o palco de uma colonizacao permanente, nem se prestou a uma empresa economica de exploracao de seus recursos naturais, caracteristica
principal do interesse burgues europeu na regiao. E assim que deve ser
percebido o mito criado em torno de Cabral. Exaltado como heroi nacional pelos paraenses de Belem, simbolizava o retorno do velho bandeirante destemido com sua espingarda e seus capangas caboclos avancando pelo territorio, enfrentando indios, Creoles e franceses. O bando armado de Cabral cumpriu uma dupla missao. Na impossibilidade do Estado fazer valer militarmente sua soberania num territorio em
conflito, seja por uma questao diplomatica, seja porque a Franca era uma nacao muito mais bem armada, Cabral agiu como se fosse o guerrilheiro defensor dos legitimos interesses patrios ameacados pela potencia estrangeira, por isso visto como caudilho pelos vizinhos do norte. Por outro lado, ao se apresentar como o unico aventureiro brasileiro capaz de ingressar na area do Contestado para empreender economicamente sem ter que se associar a uma companhia mineradora estrangeira, Cabral
protagonizou o recorrente carater individualista da aventura
expansionista brasileira, carater esse criticado pelo disciplinado sui^o Emilio Goeldi.
Propaga-se entao um imaginario heroico que cumpre a funcao de mascarar o proprio fracasso. O Brasil pode nao ter tido um capitalismo desenvolvido como o da Franca, pode nao ter tido uma burguesia
49 Idem, p. 91.
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O ? Massacre de AmapA ? 115
empreendedora como as francesas e inglesas, mas, pelo menos, teve
bravos e corajosos homens que nao se deixaram abater ante o desafio. E esse corolario da bravura do brasileiro, desde outrora, persiste e sempre vem a tona como forma de propaganda em todos os periodos de crise nationals: ? sou brasileiro e nao desisto nunca ?, ? essa gente e de uma raca ?, ? somos um povo de valor ?, etc., um discurso de valorizacao do carater de um povo, sempre surgindo em situacoes ou epocas muito
especificas, que nos faz questionar a quern de fato possa se prestar essa
propaganda. De qualquer forma, se esses valores notaveis da bravura seriam rapidamente abracados por um Nietzsche, infelizmente, eles se tornaram incompativeis com o pragmatismo requerido pelo mundo
burgues em transformacao desde fins do XIX; um mundo que exigia menos valentia e emocao e mais calculo e precisao de seus cidadaos. Cabral projeta assim, um ideario patriotico, artificial, mas necessario nesses momentos de exasperacao das contendas. Apelar para uma
hipotetica defesa de seu territorio e de suas gentes restou como linica
estrategia possivel a uma nacao ainda incapaz de disputar comercialmente, na forma da moderna empresa capitalista, uma fatia
desse mercado nascente. Apesar de um tanto quanto anacronica, essa
aposta na valentia de alguns poucos individuos, mostrou-se acertada durante a arbitragem international de cinco anos mais tarde.
Para encerrar o entendimento sobre os desdobramentos do conflito
do Amapa, a segunda questao apontada refere-se ao modo como esse
tragico climax foi tratado, como seus efeitos foram diminuindo e como seus atores principals foram sendo expurgados. Nas cartas, discursos e
relatos vindos de Caiena, os termos usados para definir os brasileiros
responsaveis pelos acontecimentos foram os de: bandidos, malfeitores,
delinqiientes, marginals; e foi assim que foram tratados oficialmente
pelos franceses. Todos aqueles que foram presos e levados a Caiena, foram processados segundo as acusacoes criminals e assim os jornais, os
trataram, pelo ? crime ? de formacao de quadrilha, nao por outro motivo.
Novamente, o enfoque frances para a analise punitiva de individuos
agindo no Contestado foi o fato de eles estarem agindo de acordo ou em
desacordo com a lei. A perspectiva do Direito era a perspectiva do
estado frances, da regulacao normativa sobre a vida, do modo moderno
de se viver em sociedade. Isto nao significa dizer que o estado de Direito e o cumprimento da lei seja uma garantia de justica, geralmente ocorre o
contrario. A lei e imposta de modo arbitrario e, em regra atende a
perpetuacao dos interesses da burocracia do Estado ou, no caso das
relacoes trabalhistas, promove o interesse do Capital. Alem disso, nas
colonias, a possibilidade de se burlar a lei criada na e para a metropole, tambem e muito maior. Mas, do ponto de vista legal, a questao central
para a Franca, na distensao do conflito no Amapa era a de poder julgar
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116 CM.H.UB. Caravelle
seus prisioneiros e a de nao aceitar terminantemente a presenca de
marginais, no sentido de viverem as margens do direito, dos nao
seguidores da lei, infelizmente da lei que na ausencia da soberania francesa nao podia ser aplicada.
Ja, no caso brasileiro, seja nos artigos em jornais, nas charges, nas
reclamacoes diplomaticas, ou, mais ainda, nas analises feitas pelos primeiros historiadores, o problema colocado partiu de um discurso com
forte conteudo racista. A pequena burguesia caienense que intermediava, via politica, os negocios da mineracao, e a grande maioria da populacao mineradora era composta de negros e Creoles. Os capitaes das vilas que
seguiam o interesse frances eram negros ou pretos. A populacao favoravel a Franca era constituida de mocambistas (escravos fujoes). O
primeiro garimpeiro a ficar milionario, Clement Tamba, um negro
ignorante. E ate o governador Camille Charvein era o prototipo do homem que na linguagem popular e chamado de ?crioulo doido?. Como e possivel entao que sejam esses ? pretos ? a estarem a tomar conta do Amapa e enriquecer com o ouro de seu subsolo? E os
brasileiros, os seus antigos donos e senhores? Poderiam consentir com uma afronta como essa? A questao racial no Contestado, ate agora, nao
foi trabalhada pela historiografia. Os bodes expiatorios do massacre de
Amapa acabaram sendo todos eles negros. Charvein foi deposto de seu
cargo, Trajano nunca mais voltou ao Cunani. E o governo frances, sob o
olhar da imprensa e do governo brasileiro no Para, como ficou? Pelos
ditos, a poderosa e invejada Franca, nem sabia ao certo o que estava
acontecendo, ela se tornara, para a imprensa paraense da epoca, apenas
um joguete nas maos de alguns poucos crioulos.
Assim, com os brancos governantes de paises civilizados retomando a conducao do poder, o derramamento de sangue nao mais continuou. O Brasil desfez o exercito no Amapa e a Franca parou de apoiar negros insensatos como liderancas regionais. ? Pretos ?, ? negros ? e ? crioulos ?
foram tidos como os culpados pelos ? desconcertos ?. Uma Comissao Mista de Limites foi criada para solucionar de forma definitiva a
contenda. A disputa da area litigiosa iria agora para o campo diplomatico numa batalha judicial a ser travada no tribunal internacional de Berna. A
objetividade cientifica do geografo Vidal de La Blache contra a conversa habil do genio de Rio Branco. Diplomata astuto e flexivel, mestre em
retorica, ja ganhara uma causa anterior contra a Argentina. O Barao
pesquisou o assunto durante dois anos, montou seus argumentos, juntou os livros de Joaquim Caetano e entregou tudo aos juizes. No Tribunal
fugiu do caminho que levava a geografia da regiao, terreno ardiloso para se enfrentar La Blache, ingressando no merito do povoamento anterior feito pelos Portugueses, suas missoes jesuiticas e exploracoes militares. Percorreu o caminho das gentes da terra que o frances desconhecia. O
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O ? Massacre de AmapA ? 117
mediador suico, Presidente Hauser, apos ouvir os argumentos do Barao, considerou aquelas terras mais brasileiras do que francesas e deu parecer favoravel ao Brasil.50
Assim, finalmente o Brasil pode estabelecer sua jurisdicao legal do
Oiapoque ao Chui e fazer valer a pena o tempo perdido na briga. Desde dezembro de 1900 a fronteira franco-brasileira passou a ter como divisor o curso do rio Oiapoque. Na pratica, porem, nao mudou muita coisa e
durante as duas primeiras decadas do seculo XX, foi o patois frances falado pelos crioulos da Guiana, a lingua mais utilizada pelas populacoes habitantes daquelas selvas, desde os montes Tumucumaque ate o cabo
Orange.
RESUMO - A area litigiosa na fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa
permaneceu fora da regulaeao juridica institutional dos dois paises ate o ano de 1900. A descoberta de jazidas auriferas levou varias empresas para la. Essa
competicao comercial alcangou o climax em maio de 1895 no episodio conhecido no Brasil por ? massacre do Amapa
?: um conflito entre militares
franceses e brasileiros no qual morreram mais de 40 pessoas.
RESUME - La zone litigieuse a la frontiere entre Bresil et la Guyane Francaise est restee hors de la reglementauon juridique des deux pays jusqu'en 1900. La
decouverte d'or a conduit plusieurs entreprises a s'y installer. Cette concurrence
a atteint son point culminant en mai 1895 dans l'episode connu au Bresil comme
? Le Massacre de TAmapa?: un conflit militaire entre Fran^ais et paysans
bresiliens ayant fait plus de 40 morts.
50 Para um aprofundamento da questao de limites entre o Brasil e a Franca na fronteira
da Guiana, sugerimos consultar, entre outras, as seguintes obras: Rio Branco, Barao do,
Questoes de limites. Guiana Francesa. 1 a. Memoria, Rio de Janeiro, Ministerio das Relacoes
Exteriores, 1945; Rio Branco, Barao do, Frontieres entre le Bresil et la Guyane Francaise. 5
Volumes, Paris, Imprimerie Lahure, 1899; Caetano Da Silva, Joaquim, L'Oiapoc et
lAma^one, Paris, Hachette, 1861; Almeida, Tito de, "Limites do Brasil com a Guiana
Francesa", Revista Amaypnica, Belem, 1884; Brousseau, op. cit.\ Viana Filho, Luis, A vida do
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118 CM.H.L.B. Caravelle
ABSTRACT - The boarding area by along Oiapoque's river was the stage of a
long content litigious amid both country and remained out of legal regulation up to the year 1900. The discovery of golden mine took several enterprises there. That trade competition reached the climax on 1895 May in the episode known in Brazil as
?Amapa's Massacre?: a struggle among French soldiers and
Brazilian people in which around 40 people died.
PALAVRAS CHAVES : Fronteira, Amapa, Guiana Francesa, Imperialismo, Garimpo.
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