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Este curso tem por objetivo oferecer um panorama dos mitos das sociedades indígenas que vivem no Brasil. É breve e pouco tem de sistemático. Apoia-se sobretudo em minha experiência com o tema. Por isso, retira seus exemplos sobretudo das sociedades craô e marubo, com as quais tive contato direto. Antes de passar à interpretação dos mitos, convém dizer algumas palavras sobre dois autores que tiveram grande influência nos estudos sobre mitos da segunda metade do século XX. Malinowski Um desses autores foi Bronislaw Malinowski. Ele reuniu suas idéias sobre mito no ensaio Myth in Primitive Psychology, publicado pela primeira vez em 1926, e do qual existe tradução para o espanhol no volume Estudios de Psicologia Primitiva (Buenos Aires: Paidos, 1949). Malinowski inicia esse trabalho distinguindo três conjuntos de teorias referentes a mitos. Um deles seria a escola de mitologia da natureza, segundo a qual os mitos constituiriam tentativas de explicar os fenômenos naturais. Dentro dessa escola havia divergências, admitindo certos pesquisadores que a Lua seria o principal motivo estimulador dos mitos; entre eles se contaria Paul Ehrenreich (que no século passado esteve no alto Xingu, na ilha de Bananal e no rio Purus). Outros, entre os quais o africanista Leo Frobenius, tinham o Sol como foco da atenção dos mitos. E havia ainda os estudiosos que associavam os mitos a fenômenos meteorológicos. Esses pequisadores faziam parte da Sociedade de Estudos Comparados do Mito, fundada em Berlim em 1906. Havia também uma escola histórica, presente na Alemanha e nos Estados Unidos, e da qual Rivers seria o representante na Inglaterra, que tomava o mito como um relato sagrado equivalente a um repositório verídico do passado. Malinowski se coloca num terceiro conjunto de pesquisadores, que faz uma íntima associação entre mito e ritual, entre a tradição sagrada e as normas da estrutura social, ao qual também pertenceriam o psicólogo Wundt, o sociólogo Durkheim, o antropólogo Mauss, o historiador Hubert, todos de algum modo influenciados por James Frazer. Porém, Malinowski quer mais, quer trazer a atenção do leitor para as contribuições do trabalho de campo, no caso o seu, nas ilhas Trobiand, para o cotidiano da vida dos nativos que contam os mitos. Um dos trechos de grande interesse do ensaio de Malinowski é a apresentação de uma classificação das narrativas feita pelos próprios trobiandeses. Elas se distribuem em três categorias: Kukwanebu — São contos populares (folk tales) que devem ser narrados por seus próprios "donos", geralmente por volta de novembro, no começo da estação das chuvas. Além de servirem para entretenimento, acreditam os trobiandeses que o ato de narrá-los tem influxo benéfico sobre o desenvolvimento das plantas recentemente semeadas; por isso, a narrativa deve terminar com uma cantilena que faz alusão a certas plantas silvestres muito férteis. Apreciam os narradores que demonstram habilidade para contá-los, sabendo comover, fazer rir, entoar as partes que devem ser cantadas, mudar a voz na reprodução dos diálogos. Para Malinowski não basta reproduzir apenas o conto; o etnólogo precisa estudar todos esses outros elementos que cercam a sua narração. Libwogwo — Incluem o relato histórico, isto é, presenciado pelo narrador ou assegurado por alguém que merece fé por sua boa memória; a lenda, que, apesar da falta de testemunho, cai dentro dos acontecimentos que normalmente integram a experiência dos nativos; e o ouvir dizer, referente a lugares distantes e a acontecimentos antigos fora do âmbito da cultura atual. Não têm estação apropriada e nem modo estereotipado de narração, a qual também não produz

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Este curso tem por objetivo oferecer um panorama dos mitos das sociedades indígenas que vivem no Brasil. É breve e pouco tem de sistemático. Apoia-se sobretudo em minha experiência com o tema. Por isso, retira seus exemplos sobretudo das sociedades craô e marubo, com as quais tive contato direto.

Antes de passar à interpretação dos mitos, convém dizer algumas palavras sobre dois autores que tiveram grande influência nos estudos sobre mitos da segunda metade do século XX.

Malinowski Um desses autores foi Bronislaw Malinowski. Ele reuniu suas idéias sobre mito no ensaio

Myth in Primitive Psychology, publicado pela primeira vez em 1926, e do qual existe tradução para o espanhol no volume Estudios de Psicologia Primitiva (Buenos Aires: Paidos, 1949).

Malinowski inicia esse trabalho distinguindo três conjuntos de teorias referentes a mitos. Um deles seria a escola de mitologia da natureza, segundo a qual os mitos constituiriam tentativas de explicar os fenômenos naturais. Dentro dessa escola havia divergências, admitindo certos pesquisadores que a Lua seria o principal motivo estimulador dos mitos; entre eles se contaria Paul Ehrenreich (que no século passado esteve no alto Xingu, na ilha de Bananal e no rio Purus). Outros, entre os quais o africanista Leo Frobenius, tinham o Sol como foco da atenção dos mitos. E havia ainda os estudiosos que associavam os mitos a fenômenos meteorológicos. Esses pequisadores faziam parte da Sociedade de Estudos Comparados do Mito, fundada em Berlim em 1906.

Havia também uma escola histórica, presente na Alemanha e nos Estados Unidos, e da qual Rivers seria o representante na Inglaterra, que tomava o mito como um relato sagrado equivalente a um repositório verídico do passado.

Malinowski se coloca num terceiro conjunto de pesquisadores, que faz uma íntima associação entre mito e ritual, entre a tradição sagrada e as normas da estrutura social, ao qual também pertenceriam o psicólogo Wundt, o sociólogo Durkheim, o antropólogo Mauss, o historiador Hubert, todos de algum modo influenciados por James Frazer. Porém, Malinowski quer mais, quer trazer a atenção do leitor para as contribuições do trabalho de campo, no caso o seu, nas ilhas Trobiand, para o cotidiano da vida dos nativos que contam os mitos.

Um dos trechos de grande interesse do ensaio de Malinowski é a apresentação de uma classificação das narrativas feita pelos próprios trobiandeses. Elas se distribuem em três categorias:

• Kukwanebu — São contos populares (folk tales) que devem ser narrados por seus próprios "donos", geralmente por volta de novembro, no começo da estação das chuvas. Além de servirem para entretenimento, acreditam os trobiandeses que o ato de narrá-los tem influxo benéfico sobre o desenvolvimento das plantas recentemente semeadas; por isso, a narrativa deve terminar com uma cantilena que faz alusão a certas plantas silvestres muito férteis. Apreciam os narradores que demonstram habilidade para contá-los, sabendo comover, fazer rir, entoar as partes que devem ser cantadas, mudar a voz na reprodução dos diálogos. Para Malinowski não basta reproduzir apenas o conto; o etnólogo precisa estudar todos esses outros elementos que cercam a sua narração.

• Libwogwo — Incluem o relato histórico, isto é, presenciado pelo narrador ou assegurado por alguém que merece fé por sua boa memória; a lenda, que, apesar da falta de testemunho, cai dentro dos acontecimentos que normalmente integram a experiência dos nativos; e o ouvir dizer, referente a lugares distantes e a acontecimentos antigos fora do âmbito da cultura atual. Não têm estação apropriada e nem modo estereotipado de narração, a qual também não produz

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efeitos mágicos. Geralmente acompanham as informações proporcionadas pelos mais velhos, quando solicitados pelos mais jovens nas expedições, diante de novas paisagens e costumes de comunidades estranhas.

• Liliu — São os relatos sagrados ou mitos. O mito é narrado quando uma cerimônia, uma regra moral reclama a confirmação de sua antiguidade, veracidade e antiguidade. Seu conhecimento fundamenta os atos morais e rituais e assinala como se deve praticá-los.

Lévi-Strauss Claude Lévi-Strauss, sem negar a contribuição de Malinowski, uma vez que também ele

admite a relação dos mitos com a organização social e os outros aspectos da cultura do povo que os guarda, abriu uma nova janela para o exame dessas narrativas.

Quero aqui pôr em destaque algumas das propostas de Lévi-Strauss, feitas no seu artigo "A estrutura dos mitos", publicado pela primeira vez em inglês no Journal of American Folklore (vol. 28, nº 270, pp. 428-444, 1955) e divulgado em português no volume Antropologia Estrutural (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967), que mais contribuiram para dar um novo rumo à análise dos mitos:

a. A interpretação dos mitos deve estar mais voltada para os seus aspectos cognitivos do que para os emocionais.

b. Não há versões autênticas ou originais de um mito, umas completam as outras e a análise deve levar em conta todas elas.

c. Além das unidades lingüísticas que podem ser isoladas a partir dos enunciados emitidos em uma língua — fonemas, morfemas, tagmemas —, o mito se compõe de unidades mais abrangentes, a que Lévi-Strauss deu o nome de "mitemas". Para explicar o que são mitemas, ficou famosa analogia feita por Lévi-Strauss do mito com uma partitura de orquestra. Tomando como exemplo o mito de Édipo, ele o dispõe em mitemas conforme o Quadro anexo.

d. Todo mito, considerado como o conjunto de suas versões, se reduz a uma relação do tipo:

Fx (a) : Fy (b) :: Fx (b) : F1/a (y) Esta fórmula é conclusão da parte mais difícil do artigo de Lévi-Strauss porque se apóia em

várias versões de um mito do sudoeste norte-americano, nenhuma das quais é resumida para o leitor. Na verdade, nos trabalhos subseqüentes, Lévi-Strauss não aplica sistematicamente essa fórmula, que é apenas vez por outra lembrada, quando ele quer mostrar que ela funciona.

Um texto bem didático e que não faz menção essa fórmula é "A gesta de Asdiwal", cuja tradução para o português está em duas publicações distintas: Mito e Linguagem Social (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970 ) e Antropologia Estrutural Dois (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976 ). Ele mostra como esse mito, tomado de sociedades indígenas do litoral noroestino da América do Norte, se desdobra em quatro aspectos que se apresentam simultaneamente, uns em relação direta e outros inversa com a realidade: o geográfico, o cosmológico, o econômico e o sociológico.

O exemplo mais rico da análise estrutural dos mitos é a coleção de quatro volumes que Lévi-Strauss denominou de Mythologiques, da qual o primeiro volume, O Cru e o Cozido, está traduzido para o português (São Paulo: Brasiliense, 1991). Nela são encadeados um grande número de mitos, a partir de mito bororo até alcançar o noroeste da América do Norte.

Mito de Édipo Quadro dos mitemas

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Análise com foco no discurso Uma outra maneira de abordar os mitos pode ser exemplificada pelos dois livros de Ellen

Basso, A Musical View of the Universe (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1985) e In Favor of Deceit (Tucson: The University of Arizona Press, 1987), nos quais examina as narrativas dos calapalos, do alto Xingu.

Além do conteúdo do mito, nesta abordagem leva-se me consideração a maneira de contá-lo. No caso particular dos calapalos, quem conta, quando, em que situações; a modulação da voz; as repetições das frases, de modo idêntico ou com ligeira variação; a indispensabilidade de um ouvinte privilegiado, que faz perguntas, pede esclarecimentos; a atenção às onomatopéias; a predominância da reprodução dos diálogos entre os personagens; a entrega da palavra pelo narrador a uma mulher, quando um cântico a ser reproduzido é entoado por um personagem feminino.

Ao invés de se fixar apenas nos aspectos cognitivos da narrativa, esta abordagem abre caminho ao exame das manifestações emotivas, seja dos ouvintes, seja dos próprios personagens.

Suponho ser essa abordagem uma revalorização das preocupações do velho Malinowski acrescida de um aprimoramento das técnicas de análise. Ela exige cuidados muito especiais de gravação e transcrição dos mitos e um bom conhecimento da língua dos nativos.

Mas, dadas as minhas preferências pessoais e o fato de melhor se adaptar a mitos coletados nem sempre com as técnicas mais aprimoradas, como muitas das versões aqui referidas, inclusive as colhidas por mim, neste curso a abordagem de Lévi-Strauss será a privilegiada.

A divulgação dos mitos indígenas no Brasil São raras, no Brasil, as publicações de mitos indígenas para o grande público. Das que têm

um caráter mais geral vale lembrar o volume Estórias e Lendas dos Índios, com seleção e introdução de Herbert Baldus e ilustrações de J. Lanzellotti (São Paulo: Literart, 1960). Há também Lendas do Índio Brasileiro, organizado por Alberto da Costa e Silva (Rio de Janeiro: Ediouro). Com foco em regiões específicas se contam as coletâneas publicadas por Orlando e Claudio Villas Boas, como Xingu — Os Índios, Seus Mitos (Rio de Janeiro: Zahar, 1970). E também as mais recentemente publicadas publicadas por Betty Mindlin, relativas aos pequenos grupos indígenas do centro-sul de Rondônia: Tuparis e Tarupás (São Paulo: Brasiliense, EDUSP e IAMÁ, 1993), Moqueca de Maridos (Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos [Record], 1997), Terra Grávida (Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos [Record], 1999). Os organizadores desses volumes não se ocupam, entretanto, em comentar os mitos que apresentam.

Dentre as coletâneas voltadas para povos específicos, deve-se contar agora também com aquelas redigidas pelos por autores pertencentes ao grupo étnico de cujo acervo elas fazem parte. Elas tiveram início com o volume Antes o Mundo não Existia, redigido pelos dessanas Umúsin Panlõn Kumu e Tolamãn Kenhíri, com uma introdução de Berta Ribeiro, que providenciou a publicação (São Paulo: Livraria Cultura Editora, 1980). O Instituto Socioambiental abrigou a segunda edição dessa obra e passou a estimular a autores da mesma e de outras etnias indígenas do alto rio Negro a redigirem também suas coletâneas. E publicou com o apoio da ORSTOM A Mitologia Sagrada dos Antigos Desana do Grupo Wari Dihputiro Põrã, redigido por Diakuru e Kisibi (Povoado Cucura: UNIRT e São Gabriel da Cachoeira: FOIRN, 1996; e com o apoio da IIZ, Waferinaipe Ianhere - A Sabedoria dos Nossos Antepassados — Histórias dos Hohodene e dos Walipere-Dakenai do Rio Aiari, de diversos narradores (Rio Aiari: ACIRA e São Gabriel da Cachoeira: FOIRN, 1999).

No mais, os mitos são geralmente encontrados em trabalhos referentes a povos específicos, seja na forma de pura e simples reprodução das narrativas em periódicos de etnologia, seja em meio a descrição e análise de uma cultura como um todo em mografias etnográficas. Dos trabalhos

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voltados para leitores com alguma formação na área de humanidades, e que reúnem textos ou análise de mitos de várias regiões, há, além da já referida tradução do primeiro volume das Mythologiques de Lévi-Strauss e do já aludido Mito e Linguagem Social (em que Roberto Cardoso de Oliveira, Roque Laraia, Roberto DaMatta e eu contribuímos cada qual com um artigo); e não se pode esquecer de A Mitologia Heróica de Tribos Indígenas do Brasil, de Egon Schaden (Rio de Janeiro: MEC-Serviço de Documentação, 1959).

O Ovo Cósmico e o Cataclismo Incial

Julio Cezar Melatti

Março de 2001

Sumári

o de

Mitos Indígenas

Pági

na inicial

Vou apresentar aqui, resumidamente, como alguns grupos indígenas contam a origem do

universo: os dessanas do alto rio Negro (fronteira Brasil-Colômbia), os iecuanas da fronteira Brasil-Venezuela, os pirahãs do médio Madeira, os araras e os arauetés do médio Xingu.

Dessana do alto rio Negro Para apresentar a origem do Universo conforme os dessanas, vou usar o livro escrito por

dois membros desse grupo indígena, Umúsin Panlõn Kumu e Tolamãn Kenhíri, Antes o Mundo não Existia, publicado pela primeira vez pela Livraria Cultura Editora (São Paulo, 1980), com o incentivo e apoio de Berta Ribeiro, que escreveu a Introdução, e republicado posteriormente pelo Instituto Socioambiental. Em suma, vou resumir o primeiro capítulo, "Como apareceu Yebá bëló do nada" (pp. 49-58).

A princípio não havia nada e as trevas cobriam tudo. Uma mulher, Yebá bëló, se fez a si mesma a partir de seis coisas invisíveis: bancos, suportes de panela, cuias, cuias de ipadu (coca), pés de maniva e cigarros. Na sua morada de quartzo, enquanto mascava ipadu e fumava cigarro, começou a pensar em como deveria ser feito o mundo. Seu pensamento começou a tomar forma de uma esfera, culminando com uma torre. A esfera incorporou a escuridão. Ainda não havia luz, a não ser no compartimento onde estava a mulher, que era todo branco, de quartzo.

Voltou a mascar ipadu e a fumar cigarro, então invisíveis, tirou o ipadu da boca e o transformou em homens, os cinco trovões, imortais, e deu a cada um deles um compartimento na esfera. Na extremidade da torre ficava um morcego de asas enormes. Esses compartimentos tornaram-se casas, e só neles havia luz, como no compartimento de Yebá bëló. Esta encarregou os trovões de fazerem o mundo, criarem a luz, os rios e a futura humanidade.

A casa do primeiro trovão ficava no sul. A do segundo, no leste, na cachoeira Tunuí, no rio Içana. A do terceiro ficava no alto; nesta é que ficavam as riquezas, os enfeites de dançam, mágicos, para formar a futura humanidade. A casa do quarto trovão ficava a oeste, no rio Apaporis. A do quinto, no norte, na cabeceira.

Os trovões só fizeram os rios, mas não conseguiram fazer a luz e nem a humanidade. Então Yebá bëló resolveu fazer um outro ser. Mascou ipadu e fumou cigarro e da fumaça deste fez surgir um ser invisível, Ëmëko sulãn Palãmin, e deu-lhe a ordem de fazer as camadas do universo e a futura humanidade.

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Erguendo seu bastão-chocalho, Yebá bëló elevou Ëmëko sulãn Palãmin até a torre do grande morcego. Colocando enfeites masculinos e femininos na ponta do bastão nessa torre, fez a ponta assumir um rosto humano, que deu luz até os confins do mundo; era o Sol que acabava de ser criado.

Com exceção do terceiro, os trovões ficaram enciumados com o poder de Ëmëko sulãn Palãmin. Este, percebendo que eles queriam destruir sua obra, apaziguou-os com oferta de ipadu e cigarros, que eram seu alimento.

Yebá bëló tirou do seio esquerdo sementes de tabaco e as espalhou sobre esteiras para formar a terra. Depois tirou leite do seio direito e espalhou em cima, para adubá-la. Subindo por seu bastão invisível, na direção da casa do terceiro trovão, Ëmëko sulãn Palãmin cortou a terra e o espaço em camadas sucessivas. O quarto de Yebá bëló fica abaixo de todas as camadas. No segundo patamar, não se sabe o que existe. A terceira camada é a superfície da terra. A quarta é o firmamento. Acima dela, fica a casa do terceiro trovão.

Foi para a casa do terceiro trovão que se dirigiu Ëmëko sulãn Palãmin. Ao abrir a porta, apareceu Ëmëko mahsãn Boléka, o chefe dos dessanas, que seria como um irmão. Os dois entraram na casa. Saudados de longe pelo terceiro trovão, foram primeiro recebidos pelo cigarro dele, depois pelo seu ipadu, em seguida pelo ipadu de tapioca. Uma vez que soube para que vinham, o terceiro trovão disse que lhes daria as riquezas que procuravam e aproximou-se para recebê-los.

O terceiro trovão estendeu a esteira, apertou a barriga e de sua boca saltaram diversas riquezas sobre a esteira. Eram enfeites. Cada par de enfeites representava um homem e uma mulher. O trovão ensinou o rito para transformá-los em seres humanos. No mesmo instante as riquezas se transformaram em gente; deram uma volta na casa e voltaram a se transformar em riquezas, que futuramente viriam a constituir a humanidade. O trovão recomendou que procedessem assim quando fossem colocar as casas de transformar gente.

O trovão recomendou então que cada um colhesse uma folha nova de ipadu de um pé que havia no pátio e a engolisse. Quando sentissem dor na barriga, deveriam acender o turi (madeira produtora de fogo), molhá-lo numa cuia d'água e beberem o conteúdo, em seguida vomitarem em um só buraco do rio. Assim fizeram os dois heróis e apareceram duas mulheres muito bonitas. Então Ëmëko sulãn Palãmin disse a seu irmão Ëmëko mahsãn Boléka para puxá-las para fora da água. O segundo assim fez, dizendo: "Minhas filhas!". O vômito deles era como um parto que fez surgir as primeiras mulheres. Os dois heróis as levaram à casa do terceiro trovão, que verificou que eles sabiam fazer as coisas direito. E decidiu acompanhá-los para ajudá-los a formar a futura humanidade.

A formação da humanidade segundo os dessanas ficará para a aula seguinte. É só depois da criação da humanidade que o mito faz menção a três destruições que ela sofreu.

A primeira destruição foi pelo fogo e está descrita no capítulo VIII do mesmo livro; foi motivada pelo descontrole da fogueira onde se queimou o herói Guelamum yé. Uma vez queimado e esfriado o mundo, a humanidade ressurgiu de repente e o encheu de novo. No local onde o herói foi queimado, surgiu a palmeira paxiúba, da qual são feitas as flautas sagradas.

A segunda destruição também foi pelo fogo e está descrita no capítulo X. Deveu-se à queima do herói Nungu yé. Depois dela a humanidade renovou-se outra vez.

A terceira destruição foi causada por uma inundação, provocada pelo Criador, Noagmãn, para destruir onças e cobras que dizimavam a humanidade. Está descrita no capítulo XI. Como Sen pinlun, o encarregado de efetuá-la, ultrapassou as medidas, as águas subiram mais do que o planejado. Um verão muito forte fez as águas secarem, que por sua vez pegaram fogo, iniciando mais um grande incêndio. Uma chuva lavou o carvão, a mata se recuperou e a humanidade tornou a surgir.

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Antes dessas três grandes destruições, a humanidade foi dizimada também pelas andanças do herói Ëmëkho mahsãn Boléka e o seu séquito de onças, como está descrito no capítulo IV.

Araras, da bacia do Xingu No livro Ieipari (São Paulo: Hucitec e Anpocs, Curitiba: Editora UFPR, 1997), Márnio Teixeira

Pinto apresenta, no 2° capítulo, na pp. 133-139, como os araras contam os primórdios da humanidade.

No começo havia somente o céu e a água que o circundava. Uma casca separava o céu da água e servia de chão para seus habitantes. Os seres humanos, então estrelas, presididos pela divindade Akuanduba, aí viviam apenas a fazer coisas simples e boas: comer, beber, namorar e dormir. Quando havia excessos, a divindade, tocando uma flauta, chamava a atenção de todos e os trazia à boa ordem.

Do lado de fora da casca, na água, havia somente seres atrozes e maléficos.

Um dia, porém, houve uma grande briga motivada por roubo e/ou egoísmo e, por mais que Akuanduba tocasse a sua flauta, não conseguia apaziguar aqueles que teimosamente insistiam em pelejar. Tanto fizeram que a casca do céu se rompeu e todos foram lançados na água.

Velhos e crianças morreram afogados ou com o choque da queda. Uns poucos homens e menos ainda mulheres sobraram. As aves psitacídeos levaram alguns de volta para o céu, onde voltaram a ser estrelas. A própria Lua, que havia despencado, foi levada de volta a muito custo por uma curica que, depois de tão grande trabalho, bicou um canto do astro, cuja marca ainda hoje se vê de certo ângulo, proporcionado pelo movimento dos pedaços de casca do céu que flutuam nas águas, habitados pelos homens. Ainda hoje os índios araras, o "povo das araras", ainda assobiam para essas aves quando passam aos bandos. Elas, porém, achando-os grandes demais, nem tentam levá-los.

Os seres maléficos que já existiam nas águas antes da catástrofe se transfiguraram nos índios hostis aos araras (caiapós, jurunas, xipaias, assurinis e quiçá os mundurucus) Outros seres apareceram, que penetram o corpo humano para comer-lhe ou queimar-lhe as entranhas. A própria divindade se transformou na terrível onça preta e também se manifesta sob a forma de outros felinos. A classificação dos seres conforme os araras, nas pp. 136-7, não foi apresentada de modo sistemático de modo a possibilitar o ordenamento completo dos seres distinguidos no mesmo capítulo.

O bicho-preguiça minorou a desgraça dos humanos. Ensinou-lhes a primeira festa, destinada a trazer-lhes novos filhos, a fazer flautas, a cantar, a tecer fibras de algodão e palhas, e povoou a mata com animais comestíveis. Da lontra os araras roubaram o fogo.

O bicho-preguiça, tendo encomendado uma festa aos araras, acabou por zangar-se, porque a bebida, que ele mesmo consumira em grande quantidade, havia terminado. Voltou sozinho para a floresta e perdeu tudo o que tinha. Envelheceu e morreu, indo para o que restou dos céus, lugar que aguarda também os humanos após a morte.

Pirahãs, da bacia do Madeira No livro O Significado do Nome (Rio de Janeiro: Setta Letras, 1993), Marco Antonio Gonçalves

diz que, para os pirahãs, o universo é constituído de cinco patamares, sendo o do meio o chão em que vivemos. No início, o patamar imediatamente acima deste chão ficava bem mais próximo e a Lua aparecia bem baixinha. Uma noite um homem subiu a uma árvore e atirou uma flecha contra a Lua, atingindo-a. O sangue da Lua começou a jorrar, esgotou-se e ela acabou. O céu começou a desabar e os homens cortaram compridos troncos para escorá-lo, o que conseguiram, mas não puderam evitar a escuridão. Os animais da floresta se aproximaram dos pirahãs, que, com medo,

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passaram a morar no alto das árvores. Os rios secaram, os animais começaram a morrer de sede, e os pirahãs só obtinham água de um cipó e comiam apenas uma espécie de cobra que vive na lama. Igagai, o ser supremo, passou a jogar-lhes animais do patamar superior. Como não acertasse jogar os peixes nos rios, encarregou o boto de criá-los. Igagai fez uma nova lua e também fez um buraco no patamar superior para que a água corresse para este chão.

Os pirahãs brigavam muito com outros índios da região, de modo que todos os seus homens acabaram e só restaram três mulheres. Igagai lhes deu a fruta sorvinha para engravidarem e terem filhos homens. Estes nasciam sem pênis e Igagai lhes fez pênis de palha. Atendendo ao clamor das mulheres, que só comiam cru, Igagai lhes deu o fogo.

Iecuanas, da fronteira Brasil-Venezuela No livro Watunna, coleção de mitos dos índios iecuanas (ou maquiritares, maiongong ou,

como eles mesmos se chamam, sotos) organizada por Marc de Civrieux (San Francisco: North Point Press, 1980; tradução editada para o inglês por David Guss do original espanhol publicado em Caracas: Ávila Editores, 1970), a narrativa dos tempos primordiais é bastante longa.

Quero apenas pôr em destaque aqui um episódio do mito. O criador, Wanadi, no céu, enviou à terra sucessivamente, seres também chamados Wanadi, que eram outras formas de seu próprio espírito.

O primeiro Wanadi enviado trouxe conhecimento, tabaco, maracá e cristal de quartzo. Fumou, cantou e fez o antigo povo. Mas, erradamente, ele enterrou a placenta do espírito (não esclarecido, seriam os primeiros seres humanos?) que nasceu, que por isso foi comida pelos vermes e apodreceu. Dela nasceu Odosha (também chamado Kahu ou Kahushava), uma criatura humana feia, má, invejosa e coberta de pêlos como um animal. Por causa de Odosha existe a fome, a doença, a guerra e a morte. Odosha ensinou os primeiros homens a matar seus semelhantes, e por isso foram punidos, transformando-se em animais. Wanadi, tendo a sua criação assim prejudicada, teve de voltar ao céu.

O segundo Wanadi enviado à terra queria mostrar que a morte era uma ilusão. Ele trouxe do céu Huehanna, que era uma enorme bola oca com uma casca grossa e dura como pedra. Oriundos de seu interior se ouviam ruídos, palavras, cânticos, risos, gritos. Ela estava cheia de gente, que conversava, feliz, porque ia nascer. Wanadi ia abri-la. Mas temia que Odosha matasse esses novos seres. Por isso, Wanadi já havia experimentado matar e ressuscitar sua própria mãe, que aliás ele próprio criara, usando tabaco e sonhando, para averiguar se tinha poder contra a morte. Ele havia matado mãe novamente, e sepultado. Quando ela começasse a levantar-se da sepultura, Huehanna se abriria e a humanidade nasceria. Porém, na ausência de Wanadi, Odosha convenceu o ajudante daquele, que viria a ser um macaco cebídeo branco, a abrir a bolsa dele, de onde saiu a noite. Aproveitando-se do escuro, Odosha entregou sua urina a um ajudante seu e mandou que com ela regasse o corpo da mãe de Wanadi, que começava a sair da terra. Essa urina queimou e desmembrou o corpo, impedindo que revivesse. Odosha ainda tentou quebrar a grande bola onde estava a futura humanidade, para matá-la, mas não conseguiu. Wanadi então resolveu não abrir Huehanna e levou a grande bola para o monte Waruma. Ela somente se abrirá quando desaparecer o mal da terra e Odosha morrer.

Será a partir do terceiro Wanadi enviado à terra que alguns seres humanos começarão a existir seja criados por ocasião da construção das casas, seja recuperados a partir dos animais em que haviam se transformado aqueles que o primeiro enviado havia feito surgir. O terceiro enviado é que fará surgir o Sol, a Lua e as estrelas, debelando a escuridão permanente em que estava mergulhada a terra, uma vez que ela já não recebe luz direta do Wanadi primordial que está no ápice dos céus.

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Arauetés, do médio Xingu Eduardo Viveiros de Castro, no seu livro Araweté - Os deuses canibais (Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, São Paulo: ANPOCS, 1986) faz uma descrição da gênese e da forma do universo conforme os arauetés (pp.184-96).

Segundo os arauetés, além da superfície em que vivemos, há duas camadas celestes e uma subterrânea. Essa disposição teve início quando um marido indignado por um insulto da esposa, pôs-se a cantar, fumando e sacudindo o chocalho de xamã. Desse modo o solo de pedra se ergueu e formou a abóbada celeste. Uma parte dos habitantes desta superfície subiram, e vieram a se tornar os deuses. Outros subiram ainda mais e foram morar num patamar mais alto, o céu vermelho. A terra, privada das pedras, dissolveu-se nas águas e os moradores que nela permaneceram foram devorados por uma piranha e um jacaré gigantescos. Apenas dois homens e uma mulher que subiram numa bacabeira sobreviveram. Outros moradores submergiram e se tornaram habitantes do mundo inferior, nas ilhas de um grande rio.

Apenas um sol ilumina os diferentes patamares, mas cada qual tem suas estrelas e sua lua. A Lua, pelo menos a que ilumina o chão em que vivemos, é um ser masculino que fez menstruar as mulheres por ter copulado com elas; o sangue delas ainda se vê no seu ocasional halo vermelho. Além disso, a Lua não é perene; suas fases retratam uma diminuição que sofre até acabar, pois é retalhada a machado por um espírito feminino. Um caminho sai da aldeia, na direção leste até o horizonte, onde toca a primeira camada superior, subindo-a até o centro. É o caminho percorrido pelos xamãs, pelos deuses quando vêm à terra, pelas almas dos mortos que já se transformaram em deuses. Outro caminho vai da aldeia até o oeste, onde toca o primeiro céu, e leva até à margem do mesmo. É o caminho percorrido pelas almas daqueles que acabam de morrer.

O aumento do número de mortos tornará a primeira camada celeste cada vez mais pesada e ela terminará por desabar, matando muita gente e restabelecendo a indiferenciação entre viventes, almas dos mortos divinizadas e deuses oriundos da catástrofe anterior.

3a aula A Subida do Rio

Julio Cezar Melatti

Março de 2001

Sumári

o de

Mitos Indígenas

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na inicial

Nesta aula serão focalizados os mitos de duas regiões referentes ao aparecimento dos seres

humanos: um do alto rio Negro (noroeste da Amazônia), representado pelos dessanas; outro, dos panos do sudoeste da Amazônia, representados pelos marubos. Alto rio Negro

Retomarei aqui o resumo do mito que inicia o livro Antes o Mundo não Existia, apresentado na aula anterior. O que será apresentado agora está nos Capítulo II e III.

A viagem no trovão-cobra-canoa até a cachoeira de Ipanoré. Resumindo o Capítulo II :

Uma vez conseguidas as riquezas na casa do terceiro trovão, Ëmëkho sulãn Palãmin retornou a sua morada e depois subiu ao patamar correspondente à superfície da terra e chegou

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a um grande lago que deve ser o oceano. O terceiro trovão, por sua vez, desceu até atingir esse lago e aí se transformou numa cobra gigantesca, a canoa transformadora da humanidade. Ëmëkho sulãn Palãmin e Ëmëkho mahsãn Boléka eram os comandantes dessa cobra-gigante-canoa.

A canoa encostou na casa do primeiro trovão, onde os dois heróis entraram e agiram conforme o terceiro trovão havia ensinado. Repetiu-se o que havia acontecido anteriormente (os enfeites transformaram-se em seres humanos). E daí subiram, colocando casas de transformar gente. Na outra margem do lago, sem o conhecimento do irmão, Ëmëkho mahsãn Boléka, o primeiro grande pajé, colocou a morada guardiã do paricá, que viria a ser a sua própria casa e a de outros pajés que o sucederiam. Na mesma margem em que haviam estabelecido a 1a casa, os dois heróis povoaram outras três. Faziam sempre da mesma maneira: ao chegarem a uma casa, abriam a esteira que continha os enfeites e eles se transformavam em gente. A canoa navegava por debaixo d'água e as casas continuavam submersas, de modo que os seres humanos surgiram como peixes. Saindo do lago, a 5a casa foi instalada no que seria o litoral brasileiro, tal como as subseqüentes. Entrando pelo rio Amazonas, chegaram à 13a casa, que estaria onde hoje se ergue Manaus.

Entraram pelo rio Negro e a 15a casa se localizava onde hoje é a cidade de Barcelos. Na 16a casa Ëmëkho mahsãn Boléka se separou de seu irmão em meio a visões de caapi (ayahuasca, yagé) e passou a fazer a viagem fora da canoa, com sua gente, dessana. Ele ia estabelecendo as casas dessanas, enquanto seu irmão, que ia atrás, na canoa, instalava as casas dos tucanos.

E assim Ëmëkho mahsãn Boléka foi entrando nas casas desde a 17a até a 30a, sendo que a 19a ficava onde hoje é a Missão Salesiana de Tapuruquara; a 21a, 22a e 23a estavam onde atualmente se ergue a cidade de São Gabriel da Cachoeira; a 24a no atual povoado da ilha das Flores, na foz do rio Uaupés; a 26a, em Itapinima, no rio Uaupés.

Na 30a casa ocorreram grandes acontecimentos. Ëmëkho sulãn Palãmin havia resolvido que era tempo da humanidade começar a falar. Por isso, enviou seu bastão invisível para deter seu irmão, que ia na frente, de modo a fazer com que ele voltasse para essa casa. Os dois fizeram um rito para as duas mulheres que haviam sido originadas dos vômitos deles. Uma delas fumou um cigarro e deu à luz Gahpi (caapi, ayahuasca, iagé) mahsãn (pessoa). A outra mascou ipadu e deu à luz araras, japus e outras aves que têm penas coloridas de modo a proporcionar a todos bonitos enfeites.

Quando a mulher que gerou Gahpi mahsãn começou a sentir as dores do parto, suas pernas tremeram e acendou fogo para esquentar-se; seu tremor, seu arrepio e o calor do fogo passaram aos homens que estavam na 30a casa. Para receber a criança, colocou no chão trançados de arumã de diversas cores. A multiplicidade dos desenhos desses trançados penetrou nos olhos da humanidade. Enquanto tomavam o caapi, o mestre de canto, o kumu e os dançarinos viam os desenhos; e o kumu recitava os nomes deles, para que fossem lembrados. O sangue que a mulher perdeu impregnou os olhos da humanidade; o cordão umbilical cortado lhe apareceu sob a forma de pequenas cobras. Quando a criança estremeceu de frio no banho, o tremor passou para o homens. Quando a mãe pintou o rosto da criança com branco, vermelho e amarelo, essas cores apareceram na visão dos homens. Quando a mãe entrou com o filho na maloca onde estava a humanidade, as visões eram tantas que não viam mais nada, não podiam reconhecer-se. Cada qual começou a falar uma língua diferente.

Nesse preciso momento, Ëmëkho sulãn Palãmin chamou pela primeira vez Ëmëkho mahsãn Boléka de cunhado, embora fossem irmãos. E estabeleceu que os tucanos poderiam casar com os dessanas, ou melhor, estabeleceu as regras de exogamia e descendência.

Continuaram a subir, entrando nas casas, desde a 31a até a 39a, quando entraram no rio Tiquié. Aí, na 40a casa, as mulheres tiveram a primeira menstruação. Elas tinham chegado à adolescência. Ëmëkho sulãn Palãmin cercou a casa com um pari e manteve as mulheres atrás dele.

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Só os homens continuaram a subir. Na 41a casa, Ëmëkho sulãn Palãmin açoitou os meninos, para que crescessem e ficassem fortes. Na 43a, ele cortou o cabelo das moças que tinham tido a primeira menstruação.

Continuaram a subir, entrando nas casas, da 44a até a 52a. A 47a ficava no lugar chamado Uirá-Poço. A 52a, na atual Missão de Pari-Cachoeira. Nesse ponto Ëmëkho sulãn Palãmin fez descer da canoa os tuiucas, cubeus, barassanas, caviries, yepá mahsá, mucuras e outras tribos, que subiram sozinhas, colocando suas casas. Em Cachoeira Comprida emergiram e subiram à superfície da terra.

A canoa-transformadora submergiu novamente e com ela desceram o rio os dessanas, tucanos, pirás-tapuias, sirianas, macus e os brancos, retornando à 40a casa, onde haviam ficado as mulheres. Elas foram levadas até à 43a casa, onde tiveram seus cabelos cortados. A humanidade tinha até então cabelos brancos; na 45a, Ëmëkho sulãn Palãmin deu a todos cabelos pretos.

Voltaram então à 39a casa, em frente à foz do rio Tiquié. E foram entrando nas casas, desde a 53a até a 56a. A 53a ficava onde é atualmente a Missão de Taracuá. Foi na 56a, situada na grande cachoeira de Ipanoré, que pisaram na terra pela primeira vez, pois tinham viajado até aí debaixo d'água.

Da cachoeira de Ipanoré para cima. Resumindo o Capítulo III :

À medida que a humanidade ia saindo para a superfície da terra, Ëmëkho sulãn Palãmin a ia dividindo. Por isso em Ipanoré há tantos buracos nas pedras.

Cada qual saiu acompanhado de sua mulher. O primeiro a sair foi Waúro, chefe dos tucanos. O segundo foi Ëmëkho mahsãn Boléka, chefe dos dessanas. O terceiro foi o pirá-tapuia; o quarto, o siriana. O quinto, o baniua. Este saiu com arco e flecha, e logo retesou o arco para experimentá-lo. Por isso os baniuas são bravos. O sexto foi o macu. A todos Ëmëkho sulãn Palãmin dava as riquezas das quais nasceram, recomendando-lhes serem mansos, fazerem grandes festas com danças e reunindo muita gente, não fazerem a guerra.

O sétimo a sair foi o branco, com a espingarda na mão. Ëmëkho sulãn Palãmin lhe disse: "Você é o último; dei aos primeiros todos os bens que eu tinha. Como é o último, deve ser uma pessoa sem medo. Você deverá fazer a guerra para tirar a riqueza dos outros. Com isso encontrará dinheiro." Depois de ouvir isso, o branco virou as costas, deu um tiro com a espingarda e foi para o sul, para a 21a casa, em São Gabriel da Cachoeira. Aí mesmo começou a fazer guerrra. Para o branco, a guerra é como uma festa. O oitavo a sair foi o padre, com o livro na mão, e Ëmëkho sulãn Palãmin mandou que ele ficasse com o branco.

Ainda saiu mais um ser invisível. Como os outros dissessem que era wahtin, ele não é como os seres humanos, é um fantasma ou demônio da mata.

Ëmëkho sulãn Palãmin e o terceiro trovão voltaram para suas habitações originais. A humanidade prosseguiu rio acima, após ter saído em Ipanoré. Entraram na 57a, 58a e 59a casa, mas já eram gente madura e faziam poucos ritos. A 59a casa era na cachoeira de Iauareté, onde hoje é a sede da Missão do mesmo nome, na foz do rio Papuri. Nesse ponto entraram no rio Papuri os dessanas, sirianas, tucanos e pirás-tapuias. Os baniuas, cubeus e uananas subiram o Uaupés a partir de Iauareté.

Os que subiram o Papuri, continuaram a entrar em casas, da 60a à 64a. A 61a ficava em Terezita, na Colômbia. Aí entraram no rio Macu, em cujas cabeceiras estava a 62a casa. As outras seguintes estavam no meio da mata. Caminhavam por dentro da terra.

Cruzaram a mata e chegaram de novo ao Uaupés, ingressando na 65a casa, na altura da atual povoação de Santa Cruz de Aracapuri, na fronteira com a Colômbia, acima da foz do rio Querari. Então desceram o Uaupés, entrando na 66a e 67a casa, esta na grande cachoeira de

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Caruru, acima de Iauareté. E daí voltaram à cachoeira de Ipanoré, passando pela 59a, 58a, 57a e 56a casa.

Depois disso houve três grande desastres: dois incêndios e um dilúvio. A cada um deles corresponde uma destruição e uma nova criação da humanidade. A que existe atualmente é a quarta, que não será mais castigada por Ëmëkho sulãn Palãmin, pois dá muito trabalho começar tudo de novo.

Comentário. Esta versão do mito, como qualquer outra, é narrada de um ponto de vista. Neste caso, do ponto de vista dos dessanas ou mais precisamente, do grupo patrilinear Tolaman Kenhíri, a que pertencem os narradores, e que tem por sede a povoação de São João, no rio Tiquié, lugar em que se erguia a 50a casa do mito. Por isso a versão deixa em aberto a dispersão de outras etnias por lugares afastados deste ponto. Nada diz do rio Içana, onde se concentram os baníuas. Refere-se ao desembarque dos tuiucas, cubeus, barassanas, caviries, yehpá mahsá e mucuras, que deixam o trovão-cobra-canoa em Pari Cachoeira (52a casa) e caminham por debaixo da água, emergindo na cachoeira Comprida, que fica no rio Tiquié, justamente no ponto em que entra no Brasil. Mas, nada mais informa sobre eles: "Os nomes de suas casas, somente eles é que conhecem" (p. 69). Da mesma maneira são tratados os baníuas, cubeus, uananas que sobem o rio Uaupés a partir de Iauareté (59a casa): só eles conhecem os nomes delas (p. 75).

Na direção oposta, rio-abaixo, o mito foi certamente adaptado a conhecimentos recentes relativos a regiões distantes conseguidos no contato com os brancos. As quatro primeiras casas são colocadas num lago de leite e as sete seguintes num rio de leite que com ele se comunica. Nenhuma delas tem uma referência geográfica moderna; estão num espaço puramente mítico. A primeira correspondência com locais hoje reconhecíveis ocorre com a 12a casa, que ficava junto à foz do rio Amazonas. Entretanto, toda a extensão deste rio desde o mar até a confluência com o rio Negro é ignorada, pois a 13a casa corresponde a Manaus. A partir desta cidade, bem conhecida, freqüentada e alvo migratório dos atuais índios do noroeste da Amazônia, a distância entre cada casa mítica e a seguinte diminui.

"A futura humanidade se transformava, crescendo, casa por casa, como a criança cresce, ano trás ano" (p. 62). De fato,

• as primeiras casas ficam sugestivamente num lago e num rio de leite;

• os nomes da 1a, da 3a e da 4a casa, respectivamente "leite", "engatinhar" e "olhar para trás", sugerem o exercício dos primeiros movimentos do bebê (p. 62, nota 10);

• na 30a casa, começam a falar e aprendem a usar os termos de parentesco;

• na 40a casa, as moças têm a primeira menstruação;

• na 41a casa, os meninos são açoitados;

• na 43a casa, as mulheres que tiveram sua primeira menstruação têm seus cabelos cortados;

• na 45a casa, todos passam a ter cabelos pretos; • na 56a casa, afloram à terra, pois até então tinham viajado dentro da água;

• na 57a, na 58a e na 59a casa, já eram gente madura.

Esse crescimento físico é marcado ritualmente. O trovão-cobra-canoa interrompe a subida do rio Uaupés para entrar no rio Tiquié no qual faz um certo movimento de vaivém. É nas casas que se dispõem ao longo do rio Tiquié, desde a foz até o alto curso, numa série que tem a casa inicial e a final com o mesmo nome, "gaviões" (a 39a e a 51a), que ocorrem os eventos que sugerem a iniciação dos rapazes e moças. Só depois delas, na 52a, é que se dá a primeira saída do trovão-cobra-canoa. Mais precisamente, enquanto as mulheres, que tinham tido a primeira menstruação, permanciam reclusas na 40a casa atrás de um pari (cerca de talas e varas para apanhar peixes), só os homens subiram o rio, sendo os rapazes açoitados na 41a casa. Quando os homens retornam do alto curso

Casas míticas

no

noroeste da Amazônia

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do Tiquié, as jovens são então levadas à 43a casa para terem seus cabelos cortados. E daí é que foram todos à 45a casa para ganhar cabelos pretos.

Antes mesmo da iniciação, a humanidade começa a se diversificar socialmente; na 30a casa, no rio Uaupés, pouco abaixo da foz do Tiquié, ocorre a diferenciação das línguas e o estabelecimento das relações de afinidade.

Uma outra volta dão os seres humanos depois de formados, saindo de Ipanoré (56a casa) e para aí retornando, depois de subir o rio Papuri, o rio Macu, atravessando por terra para o Uaupés e descendo-o. Mas não há como dizer se tal percurso corresponde a alguma outra etapa do ciclo de vida individual.

Cada uma dessas 67 casas (ou mais, pois aquela criada por Boléka no lago de leite sem o conhecimento de Palãmin, e uma outra, entre a cabeceira do rio Macu e o curso do Uaupés, não foram numeradas) tem um nome que sugere algo, claramente ou não. Valeria um trabalho etnográfico em que o pesquisador percorresse os locais atuais a elas correspondentes, ouvindo o que têm os indígenas a falar sobre eles.

Wenía: origem do povo e da cultura marubos Quando fiz pesquisa entre os índios marubos, no entre 1974 e 1983, tive como co-participante

a etnóloga Delvair Montagner, que depois desse período continuou a visitá-los. Tomamos então três versões do mito de Wenía, que é constituído de vários episódios. Também colhemos versões de episódios narrados isoladamente.

Fiz uma análise deste mito no trabalho "Wenía: a origem mitológica da cultura marubo" (Série Antropologia, n° 54. Brasília: UnB-Departamento de Antropologia, 1986), no qual foram consideradas todas as versões e também os episódios narrados isoladamente. Nenhuma versão, entretanto, foi apresentada por inteiro e foram utilizados fartamente quadros para resumi-las.

Na verdade, há tantos detalhes nesse mito que é impossível resumi-lo. Vou simplesmente comentar seus episódios. O mito de Wenía conta como surgiram os marubos e como aprenderam durante a sua caminhada ao longo de um grande rio, da foz para a cabeceira, importantes itens de sua cultura: os nomes pessoais e a maneira de transmiti-los, a aplicação dos termos de parentesco, a prática do parto, a proibição do incesto, o modo correto de chorar, a comestibilidade da pupunha, a "injeção de sapo", a origem das plantas, a maneira de cultivá-las.

As seções saem do chão. Os marubos estão divididos em unidades exogâmicas matrilineares. Cada uma dessas unidades se divide em duas seções, as quais são compostas pelas gerações alternadas da unidade. Apesar disso, os marubos tratam as seções como autônomas, como exemplifica o próprio episódio de sua origem, em que cada qual sai sozinha de um buraco. O afloramento de cada uma segue o padrão das demais: as flores de um vegetal, pedacinhos de seu tronco picados ou roídos por um animal, penas ou fezes de uma ave, ou outros fragmentos, se espalham pelo chão, às vezes movidos pelo vento: não raro o solo é embebido pelo "sangue" de um vegetal. Dentro do chão, por debaixo desses fragmentos espalhados, os membros da seção começam a gemer. E saem por um buraco, subindo por uma escada feita de osso de anta. Homens e mulheres saem enfeitados com contas e diademas de penas que como que iluminam tudo. Acompanha-os um líder e às vezes sua irmã. Dirigem-se para um campo e aí dançam. A movimentação de cada seção estimula uma outra a sair.

Início da caminhada, visagens. É um episódio obscuro. Conta como as seções vão encontrando certos seres - vegetais, animais, lagos - que falam ou cantam. Mas, quando os caminhantes chegam perto deles, ou ordenam as mulheres que conversem com eles, tais seres se deslocam, indo para o norte, o leste, o oeste, ou então mostram que não passam de um simples vegetal, sem capacidade de fala ou cântico.

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Descoberta da pupunha comestível. Ordena-se a uma velha que experimente cada um de vários vegetais que vão sendo encontrados. Em cada experiência ela padece de algum dano: inflama a garganta, a fruta se prende na goela, parte o lábio. Até que encontra a verdadeira pupunha comestível.

Aprendizado dos termos de parentesco. As seções vão encontrando sapopemas, sapos cururus, montes de terra, açaizeiros, pupunheiras, a que chamam por termos de parentesco, conversam com eles, reconhecem se são membros ou não da mesma seção, oferecem-lhes ornamentos.

Disposição dos cadáveres. O episódio se resume numa série de casos semelhantes em que um velho ou velha se cansa e não pode mais andar, o que significa dizer que morreu. Seu corpo é então colocado entre as sapopemas, isto é, raízes tabulares de uma árvore, transformando-se numa casa de tapiba, uma espécie de cupim; ou num buraco raso, virando embaúba.

Dizimação por ferroadas e choques elétricos. Membros das diferentes seções são ferroados por tocandeiras, formigas de fogo, ou levam choques em pontes de tronco de palmeira, e viram macacos pregos, balseiros. Muitos foram os que saíram do chão, mas foram aí dizimados.

Aprendizado dos cânticos de cura e feitiço. Os cânticos de cura e de "maltratar" são ensinados a cada seção por sucurijus, chamadas Ĩpe ou por camaleões (Kẽchi). Enquanto cada um deles ensina, um outro ser chamado Osa Rono Yochĩ (rono é termo genérico para cobra; yochĩ é nome dado a espíritos geralmente malévolos), coloca-se atrás, dizendo besteiras e manipulando o próprio pênis, provocando o riso dos aprendizes.

Descoberta da "injeção de sapo". Os marubos, como vários outros grupos indígenas da sua região, usam a secreção da perereca Phyllomedusa bicolor como remédio contra a preguiça e o panema. Ela é aplicada sobre um par de pequenas queimaduras feitas com as pontas em brasa de cipó titica, provocando vômitos imediatamente, que somente cessam com um banho. Diz uma versão do mito o que segue. Encontraram Noa irí (irí = sapo parecido com o cururu). Aí tiraram leite do sapo e a velha experimentou para tomar injeção de sapo. Aí ela caiu. Estava morta. Até que ela acordou de novo. Quando ela se levantou: "Esse remédio não é bom, meu filho, quase vou para o céu. Não faz mais isso, não é bom." Continuaram para a frente. Experimentaram também o sapo Noa Kãpo. Aí a velha experimentou de novo. Tomou injeção de sapo e caiu no chão. "Agora esse kãpo pode usar, esse é bom. Eu estou velha, mas fiquei leve; deu mais saúde". Era assim que falava a velha.

Origem dos nomes pessoais. As seções encontram um homem chamado Wa Mãni e sua esposa, Wa Maya. Cada seção sentou-se num tronco caído e recebeu os nomes pessoais para seus membros. Os homens receberam-nos de Wa Mãni; as mulheres, de Wa Maya.

Remédio para a menstruação. Os homens pensavam que a menstruação era o resultado de um ferimento. Por isso, tiravam raspas de uma árvore chamada shai mashó para fazerem curativos nas mulheres.

Aprendizado do ato sexual. Os membros de uma seção encontraram Tama Kãke, que era um macaco-prego (chino). Perceberam que estava brincando, achando graça. Foram observá-lo devagarinho. Viram que estava copulando com sua companheira. Tendo assim aprendido o que não sabiam fazer, voltaram correndo. Uma mulher estava varrendo o terreiro e um deles logo pegou-a de teve relações sexuais com ela. Mas passaram a copular indiscriminadamente, pois não sabiam que certas parentas deviam ser evitadas. Os chefes Võko Kama, Vari Rare e Shane Rare observavam; eles sabiam como devia ser feito.

Relações sexuais com seres estranhos. Algumas mulheres-vegetal foram encontradas. Elas estavam nuas e tinham abundantes pêlos no que corresponderia à púbis. Para serem penetradas fazia-se necessário manter suas vulvas abertas com auxílio de uma cunha ou estaca. Mesmo assim, elas quase sempre se fechava, prendendo os homens pelo pênis. Os assim

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apanhados eram transformados em vegetais e eram abandonados pelos demais. Alguns se casaram com corujas, como no trecho a seguir de uma das versões.

Continuaram abeirando o rio. Continuaram para a frente. Chegaram lá a Vari Chichi (coruja). Casaram com ela. Chichi Shavo chorava na boca da noite. Chorava quando gente ia morrer. Ela sabia que gente morreu. Assim que todo dia ela fazia.

Shanevakenáwavo também casou com Shane Chichi Shavo, que também chorava. Aí passaram e continuaram para a frente.

Tribo de Varivakenáwavo casou com Shao Txori Shavo (coruja). Chorava de noite também. Aí deixaram e continuaram para a frente.

A tribo de Inovakenáwavo também. Casaram com Vari Popo Shavo (coruja). Casaram com ela e aí ficaram lá. Ela tirava o couro da cabeça, botava no joelho e aí comia piolho. Aí ela falou para ele, ensinou para ele: "Quando você vier chegando perto, chega aí e bate sapopema para mim." Para ela saber e colocar o couro na cabeça. Todo o dia ela fazia isso. Aí quando ele chegava na sapopema, batia na sapopema. Aí ela colocava o couro na cabeça. Assim que ela fazia. Aí o marido pensou: "O que que ela tem?" Quando ele foi para o mato, quando voltou, não bateu, veio devagar para saber como ela fazia. Viu ela tirar o couro da cabeça, botar no joelho e comer piolho. Aí chegou lá, vindo devagar, chegou até ela. Ela se espantou, pegou o couro e "calçou" ao contrário (a orelha ficou ao contrário). Por isso é que coruja tem orelha assim, ao contrário. Aí continuaram para a frente, e a coruja ficou. Continuaram a andar, abeirando o rio.

A ponte-jacaré e a eliminação dos incestuosos. Sobre a dramática travessia vou transcrever uma das versões do mito.

Continuaram de novo para a frente. Rovovakenáwavo aprenderam o que Tama Kãke fazia e aí fizeram em todo o mundo. Aí foram namorando com irmã, irmão. Quando fizeram isso, Vari Rare viu. Vari Rare falou para eles: "Não façam isso, vocês estão fazendo errado." Aí, quando falou isso, não ouviram nada. Vari Rare pensou, falou com outro chefe irmão (Vari Võkó): "Esse povo que está fazendo errado, e agora, o que nós fazemos?" E Waka Veka também falou com a mulherada, mas não ouviram suas palavras. Vari Veka e Mema Nia também falaram com a mulherada. Falaram também, mas não as ouviram. Pensaram: "Nós falamos, mas elas não ouviram nada. Võkó Kama e Waka Võkó pegaram e deram (bateram) neles, naqueles que não ouviam a palavra. Fugiram, andando na beira do rio.

Aqueles que estavam andando na beira do rio ouviram aquela zoada de água. Viram uma ponte atravessada no rio. Viram aquela ponte e voltaram para trás. Voltaram, correndo, atrás do chefe. Chegaram lá com ele e contaram: "O que nós fazemos? É uma ponte atravessada no rio." O chefe falou para eles: "Aquele que falava é ponte de jacaré (Kapé Tapã)." O chefe foi olhar. O chefe falou para eles: "Bem, vamos limpar essa ponte, nós vamos atravessar para o outro lado do rio."

Acharam outro tapã também: Rovo Sheke Tapã, encontrado por Rovovakenáwavo. Esta ponte não agüentava peso e arriava quando a gente subia.

Só acharam Rovo Kapé Tapã (a primeira a que se referiu). O chefe falou: "Esse é Kapé Tapã." Tem também uma embaúba (tsãtse võkó) na bunda de Kapé Tapã. No meio também pimenta (kapé itsa yotxi = pimenta catinga do jacaré; antigamente se chamava võkó toá). Tem outra pimenta, chamada toro yotxi (toro = redondo). No ouvido de Kapé Tapã tem uma abelha (ino teva). Viram ino teva. No nariz de Kapé Tapã também tinha caba; chamava-se sheta vina.

Shanevakenáwavo, Varivakenáwavo, Rovovakenáwavo, o chefe os mandou, todas as tribos, limpar o Kapé Tapã. Aí os parentes deles capinando por cima do jacaré (Kapé Tapã), e Waka Veka

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e Vari Veka atrás dos homens, varrendo. Shane Veka também (todas três, mulheres). Varrendo em cima do Kapé Tapã.

Assim, trabalhando, e mulheres também, todas doidas, namorando todo o mundo na frente do Kapé Tapã. Namoravam com tia e sobrinha, e mulherada namorando tio, irmão, tudo isso na frente do Kapé Tapã. Quando fizeram isso, fazendo errado, o chefe não olhou para eles não, só olhando para a frente. Ele não disse nada. Ele pensou: "Fica guardando aí, depois o que que eu faço?"

Terminaram o trabalho de limpar Kapé Tapã. Aí, quando quer atravessar para o outro lado, o chefe procurou tribo de Varináwavo, aquele que era mais sabido passava. O chefe é que estava ajuntando gente boa, que não estava fazendo errado. Tribo de Shanenáwavo, Varináwavo, também o chefe procurava qual que errado. Aquele errado fica lá, aí na beira. Rovovakenáwavo está aí também fazendo errado, aí na frente de Kapé Tapã. Inovakenáwavo, Satavakenáwavo, Txonavakenáwavo, Wanivakenáwavo, dessas tribos também procurou qual gente boa.

Queria atravessar, pegaram arame (mane sheo). Pegaram jacaré (Kapé Tapã) e amarraram a boca, para não morder. Kapé Tapã falou para eles: "Vocês querem atravessar em cima de mim; eu estou sentindo fome." Pegaram um [daqueles que faziam coisa errada] da tribo Varináwavo e jogaram para Kapé Tapã comer. Kapé Tapã falou: "Eu não enchi nada." Mataram txasho também e deram para Kapé Tapã comer. Aí ele comeu e depois falou: "Eu não enchi. Eu quero comer irmão de vocês mesmo." Aí pensaram: "O que nós fazemos?" Quando Kapé Tapã falou isso, pegaram Awá Nawa Mavi e deram para o jacaré comer. Pegaram-no, fazendo força mesmo, arrastando-o. Até que abriu a boca do jacaré. Quando abriu, jogaram lá dentro da boca do jacaré. Quando abriu a boca do jacaré, viram que lá dentro tinha fogo. Chamava-se txi rãta. O jacaré falou de novo: "Eu não enchi nada." Pegaram também Tsitsa Nawa Mavi, pegaram arrastando, fazendo força, até que jogaram lá dentro do jacaré. "Agora eu já enchi", o jacaré falou.

Quando acabou de comer, aquele Kapé Tapã falou: "Podem atravessar por cima de mim." Mama Nia (chefe de mulheres) animou a mulherada. Dançaram na frente de Kapé Tapã. Varivakenáwavo, Txonavakenáwavo, Satavakenáwavo, continuaram para atravessar. Mulherada também, foi saindo dançando em cima de Kapé Tapã. Atravessou muita gente. Atravessaram para o outro lado, dançando.

Aí o chefe falou para aqueles errados: "Vocês ficam aqui, depois vocês atravessam; agora nós vamos na frente." Quando atravessaram, aqueles Varináwavo, Wani; aí Rovovakenáwavo, aqueles errados, vinham atrás. Quando os errados estavam no meio, Waka Võkó e Waka Panã pegaram o machado e deram com o machado no Kapé Tapã. Rolaram Kapé Tapã e este virou. Quando virou, a gente caiu toda na água. Acabaram-se aqueles errados.

Quando caíram na água, as piranhas comeram-nos todinhos; ene kewã (piraíra?) também. Quando rolaram, o Kapé Tapã foi na água e misturou com sangue dos Rovonáwavo. [Não havia apenas Rovonáwavo errados; de outros grupos também]. Rovõvakeshávovo tiraram aquele sangue da água. Tiraram o sangue da água, tocaram na boca, sopraram e falaram: "A nossa tribo acabou, e por isso que pegamos aquela água." Sopraram para o oeste. Quando aquelas sopraram, o sangue foi embora para o lugar que chama Veno Pei (veno = coruja). Caiu aí; não gostou do lugar, levantou de novo e foi embora para o lugar do Roe ika (tribo de branco, americano, por aí assim, no oeste, onde é fábrica do machado) (são os incas). Virou Roe Isko (virou branco).

Pegaram o sangue e sopraram para o fundo da água. Foi para uma árvore que chama ene voá potache (árvore dentro da água; ene = água). Virou ene isko. Assim que fizeram.

Tiraram sangue e sopraram. O sangue foi para Noa Mató Wetsa. Virou Rovo isko (é branco).

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Os espíritos dos mortos também saíram e foram para Noa Mató Wetsa. Viraram chino (não é chino não, é civilizado, porque pintaram com vepache, apagado, passando na testa). Os espíritos dos mortos foram embora para o Noa Mató Wetsa e viraram outro Rovo chino.

Acabaram de fazer isso, dançaram.

Aprendizado do parto. Se foi o macaco-prego que ensinou aos primeiros homens o ato sexual, foi a mulher do macaco-prego (Tama Kãke aivo) que ensinou a fazer o parto. Quando a mulher estava a ponto de dar à luz, seus parentes choravam. Depois cortavam-lhe o ventre, tiraram a criança e a mulher morria. Tama Kãke aivo então se apresentou com uma criança em cada braço e lhes ensinou como fazer o parto, fazendo a mulher apoiar-se num pau e, colocando-se atrás dela, segurou-a por debaixo dos braços e mandou que fizesse força.

Como é comum que cada um desses episódios seja repetido para cada seção, aparecem também outros personagens que ensinam o parto: Shane Makõ Aivo, Nane Makõ Aivo, Ino Makõ.

Aprendizado dos remédios para crianças. É um casal de velhos que ensina os remédios para curar os males que afetam as crianças. Procuram-nos no mato e os ensinam. Esses remédios servem para curar disenteria, côr amarela e doenças provocadas pelo sereno, por visagens e pelo consumo de animais como porco-queixada, tatu, jacu, mutum, inhambu, cujubim, jacamim.

Aprendizado do choro e da cremação dos cadáveres. Cada seção aprendeu a chorar de maneira correta com um ser diferente: os Varináwavo, com a mãe-da-lua; os Rovonáwavo, com o grilo; os Inonáwavo, com o cujubim; os Txonavo, com o mutum. Um ser chamado Koá Koá Sheni (koá é queimar, sheni é velho) ensinou a cremar os mortos e também como se chora.

O mutum dá a conhecer as plantas cultivadas. Os homens não sabiam qual era caça boa, só comiam passarinho. Cozinhavam embira para tirar banha. E queimavam casca do vegetal agarra-pé para comer com anta. Um homem que foi procurar agarra-pé, escutou um mutum e resolveu flechá-lo. O mutum lhe disse que ele não podia fazer isso e perguntou-lhe o que fazia. Quando soube que ele procurava agarra-pé para comer, o mutum levou-o para a casa dele e lá lhe deu milho, macaxeira, maniva, banana, muda de banana e lhe recomendou a fazer roça e plantá-los.

A versão desse episódio incorre em contradições, pois começa dizendo que os homens só comiam passarinho e em seguida diz que tiravam agarra-pé para comer com anta e mostra o homem a tomar o mutum como caça.

Oni Weshti cria as plantas cultiváveis. Os caminhantes continuaram para a frente. Chegaram lá aonde estava Oni Weshti, sentado em cima de um toco de kapi. Oni Weshti recusou-se a conversar com os membros das seções à quais ele não pertencia. Recebeu bem os Varináwavo e os Shanenáwavo, dizendo-se parente deles.

Oni Weshti era casado com quatro esposas: uma mulher-cururu, uma mulher-caranguejo (era Shoma Wetsa), uma mulher-inhambu e uma mulher sapo (achá). Todas elas preparam bebida para os recém-chegados.

Depois, respondendo às perguntas dos visitantes, Oni Weshti contou como criou os vegetais cultivados, como está no trecho de uma das versões, a seguir.

(Os Varivakenáwavo) Perguntaram: "O que é a plantação de você? Oni Weshti disse que matou um tiçu-açu (shoa sheke, um calango). Matou-o, plantou o tronco. Virou mamão (shõpa). Quando carregando fruta, a gente que quiser, cozinha, faz caiçuma. Outro que quiser come cru, quando maduro. Assim que ensinou.

Plantou chona awá (anta). Matou anta, plantou tronco, nasceu banana (awá mani). Quando carrega cacho, quando madura, a gente que quiser come crua; tira verde, come assada. Quando tem muito madura, a gente faz caiçuma. "Essas plantas, banana, vocês podem criar com seus filhos, é alimento bom."

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Perguntaram: "Como você plantou essas plantas?" Aí Oni Weshti falou que que matou chona yawa (queixada), plantou, nasceu macaxeira (yawa mato atsa). Quando tira batata, gente que quiser faz, cozinha aquela batata, faz caiçuma também.

Perguntaram os Varináwavo e os Shanenáwavo: "Como você plantou isso, nosso velho?" Ele falou: "Matei chona iso, plantei o tronco, virou macaxeira (iso ina atsa). Todas as plantações contou para eles, para saberem.

Perguntaram sobre outra macaxeira: "Como você plantou isso?" "Tirei um galho de pai komã (uma árvore), plantei aquele galho. Virou koma atsa."

Matou vata nawa (tribo), plantou osso do vata nawa e virou macaxeira (vata atsa).

Matou queixada (chona yawa), tirou osso de queixada, plantou e virou macaxeira (vochni atsa; vochni = o cabelo da nuca do queixada). Assim que ensinou.

Falou Oni Weshti: "Essa planta é veroch atsa (veroch = olho, parece). Quando tem batata, a gente come cozida." Ensinou todas as plantas que a gente precisa comer.

Perguntaram de novo: "Oh nosso velho, como você plantou isso aí." "Matei chona pano, tirei tronco, plantei, nasceu banana (pano shavá mani) [bananeira baixinha, de folha graúda]. Quando madura, come-se crua." Ensinou a plantação. Assim que ele fazia.

Matou poraquê (chona koní), plantou o tronco, nasceu banana (chiko mani).

Matou anta magra (txo awá), plantou, nasceu banana (txo mani). Ensinou plantação.

Matou macaco careca (mãko chino), plantou, virou koro yovi. Ensinou plantação.

Matou chona kai. Plantou tronco, nasceu banana (kai mani = banana roxa, banana-guariba). Ensinou planta. "Quando tem madura, a gente come crua." Ensinou planta.

Matou chona mapi. Tirou a criança que tinha dentro do mapi (camarão), plantou, nasceu mapi kari. Aí lhes ensinou.

Matou traíra (Noa tismã), tirou criança da traíra, plantou, nasceu tismã poa. Ensinou planta.

Matou chona awá. Tirou pá, ombro, plantou, virou poa (awá pesho poa; pesho = pá ou ombro).

4a aula Sol e Lua

Julio Cezar Melatti

Março de 2001

Sumári

o de

Mitos Indígenas

Pági

na inicial

O mito craô de Sol e Lua Para os craôs, do Estado do Tocantins, assim como para os demais timbiras, Sol e Lua são

ambos do sexo masculino. O mito é o mesmo entre todos os timbiras, embora nem todos os narradores apresentem todos os episódios e a mesma riqueza de detalhes. Podem-se encontrar divergências acentuadas entre versões tomadas de um mesmo narrador em ocasiões diferentes.

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Por exemplo, a versão apresentada em seguida foi narrada em português por José Aurélio frente a um gravador em 1963. O mesmo José Aurélio, tempos depois, ditando este mesmo mito em língua craô, nele incluiu episódios da história de Pedro Malasartes, do folclore sertanejo. Isso é explicável, uma vez que os craôs identificam Lua com São Pedro, Pedro II e Pedro Malasartes (ver 15ª aula), ao passo que o Sol, também é chamado de Papam (nosso pai) ou Deus.

Diz-se que foi assim. Não havia gente nesses tempos, não havia povo nenhum. O Sol e a Lua, diz-se que eram gente mesmo. E Pït [Sol] fazia toda a coisa, fazia toda a coisa. Aí Pïdluré [Lua] chegava: "Não, não é assim, não é assim, vai ficar assim!" Então diz-se que o Sol estava comendo buriti, aí Pïdluré, diz-se que andava, andava também. Diz-se que Pïdluré é assim, por isso é que nós chamamos Pedro.

Não havia ninguém, aí foi conversar com o Sol: "Compadre, como é que nós vamos fazer, nós andamos assim sem mulher, é ruim, nós andamos sozinhos, assim está muito ruim para nós, é preciso que tenhamos mulher". O Sol respondeu: "Está bem, não direi nada para você não, daqui mais adiante você vai ver". O Sol foi fazer um buraco numa cabaça, uma cabaça bonita, apanhou-a e foi jogar dentro d'água; furou e jogou dentro d'água. Passou um pedacinho aí lá, banhando no ribeirão, assim como nós, banhando e tocando borá e cantando - e aí lá se vem mulher do Sol, primeiro. Diz-se que chegou a mulher do Sol, primeiro. Chegou a mulher do Sol, virada da cabaça. Pïdluré estava olhando: "Ah, já existe a mulher do compadre, agora sim, é mesmo, já existe mulher do compadre. Como é que eu vou ter também minha mulher? Eu preciso de uma mulher também; deixe estar. Eu vou pedir ao compadre". Aí o Sol já tinha mulher; já combinava a casa, a mulher dele já fazia de comer para ele. Depois é que Pïdluré foi lá: "Compadre, eu quero mulher também". E o Sol só ficou escutando e não dizendo nada para ele. Aí o Sol foi atrás de uma cabaça também, e diz-se que apanhou uma cabaça, assim feia, não era assim bonita não, como a mulher do Sol; uma cabaça assim feia já, por causa da broca, mas apanhou assim mesmo, mas estava bem. Aí furou e foi jogar dentro d'água. Aí foi embora. Quando passou pedaço, estava banhando também, e batendo, tocando borá e cantando. Aí Lua falou para o Sol: "Compadre, quem é que está tocando borá?" (Ah, esse é já no começo da mulher do Sol, Pïdluré perguntou no começo, que não sabia). Pïdluré ficou só esperando, só escutando, estava olhando toda a vida para o caminho, olhando toda a vida para o caminho. Aí daí a um pouco lá se veio a mulher do Pïdluré, mulher de Lua, vem chegando já perto. Aí diz-se que Lua falou, chamou-a: "Ei, mulher, chega cá, vem cá, aqui, aqui é que é minha casa, a casa de meu compadre é acolá, aqui é que é minha casa, pode vir para cá, eu estou aqui". Aí diz-se que chegou; ficou alegre, por causa da mulher, porque o Sol também fez mulher para ele, agora cada um deles tinha mulher, agora estavam passando, né?

Agora o Sol ficou assim pensando: "Como é que eu vou fazer, eu não vou trabalhar mais compadre assim de braço, não, eu vou fazer outra coisa". Aí o Sol ajuntou um bocado de ferro, machado, facão, levou e marcou um pedaço de chão, assim no mato mesmo, para fazer roça. Marcou um bocado de chão, assim vinte tarefas ou mais e aí botou o machado, o facão e aí foi embora. Com um pouco o machado estava trabalhando e o facão também estava trabalhando; o machado derrubando os paus, assim como a gente derruba, e o facão também ia roçando. Aí diz-se que Lua ficou assim assuntando: "Quem é que está trabalhando acolá, batendo machado, não sei o que, eu vou já olhar. Foi e aí, quando foi chegando as ferramentas, aí ficou tudo virado, caído, aí parou. Aí pronto: "Não!" Lua disse: "Não, não é assim não. A gente faz assim!" Diz-se que apanhou machado e foi descer no pau. Oh, mas atrapalhou tudo! Diz-se que se não fosse assim, diz-se que as ferramentas mesmo trabalhariam. Aí a gente não trabalharia com a força não, com o braço não. Diz-se que as ferramentas mesmo trabalhariam. Aí foram embora. Com um pouco o Sol ficou zangado com Lua: "Mas compadre, mas para que você foi fazer uma coisa dessa, agora é preciso de que nós mesmo trabalhemos, nós mesmos vamos trabalhar porque você foi parar o movimento acolá; pois nós precisamos de trabalhar de braço mesmo, com o braço mesmo; é preciso que saia o nosso suor do nosso corpo.

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Aí lá se foi, lá se aquietou e foi indo, foi indo e disse que o Sol adoeceu, assim, com tanta tristeza de ter de trabalhar. Aí diz-se que imaginou diz-se que pensou: "Como é que eu vou fazer? Viver, eu não vou mais viver, não. Se morrer, o mundo vai se acabar, não vai haver mais não, não vai haver o mundo". Aí o Sol falou para Lua: "Compadre, vamos acolá, ao rio?" "Então vamos!" Foram lá para o rio. O Sol apanhou uma laranja e foi chupando, foi chupando, até que chegou ao rio. Aí o Sol falou para Lua: "Compadre, como é que nós vamos fazer, se nós morrermos, como é que faremos? Lua falou para o Sol: "Compadre, não sei como, não; pode fazer uma idéia, como nós vamos fazer". Aí o Sol falou para Lua: "Pois compadre, se nós morrermos, nós vamos fazer assim". Aí apanhou a laranja, jogou dentro d'água, dentro do rio. A laranja afundou e tornou a subir. Aí falou para Lua: "Olhe compadre nós vamos fazer assim, quando nós morrermos, nós vamos fazer assim, do jeitinho da laranja". Aí a Lua falou: "Não, compadre, assim não presta não; é bom é assim, você quer ver?" Apanhou pedra, jogou dentro d'água e a pedra afundou. "Pronto! Não sai mais". O Sol ficou assim triste, assim pensando: "Não sei não, acho que é isso mesmo. Compadre quer assim desse jeito, está certo". Aí diz-se que foram embora, lá para a casa, passou o dia, aí... Aí eles combinam outra vez: "Compadre, como é que nós vamos fazer?" "Não sei não, compadre, não sei não". "Compadre, eu estou doente, não sei como é que eu vou fazer não, não sei se eu morro, não sei não". Lua adoeceu; aí diz-se que Lua morreu. Morreu... e o Sol chegou lá e ficou assim com pena dele: "Não, não quero que o compadre vá ficar assim desse jeito não, que eu ando sozinho, eu preciso de meu companheiro, mas eu não vou deixar o compadre não voltar; eu vou fazê-lo voltar". Aí levou para o mato e o botou no pé de uma árvore, botou muita folha assim por cima dele e, não sei se é verdade que esse povo conta, de antigo, aí diz-se que cobriu com um bocado de folha, para o Sol não queimar, e foi embora; e daí a um pouco lá se veio Lua, diz-se que levantou, viveu outra vez; viveu. A Lua viveu outra vez e foi embora. Chegou. Aí falou para o Sol: "Compadre eu já cheguei, já voltei, não queria assim, não. Mas o compadre já me fez eu voltar!" Aí diz-se que foi passando muito tempo, passando muitos dias aí quando o Sol adoeceu outra vez, aí Pedro ficou assim, olhando-o, até que o Sol morreu. Lua apanhou: "Não sei como é que eu vou fazer com o compadre!" Apanhou o cavador, a enxada e levou. Fez sepultura. Levou o Sol para enterrar; enterrou e cobriu mesmo. Quando o Sol viveu, lá dentro do chão, da sepultura, aí não tinha por onde sair. Aí, virou aquele calanguinho miudinho; foi cavando, cavando, cavando, até que furou o buraco e saiu e foi embora; diz-se que foi embora. "Mas para que que o compadre fez assim comigo, eu não queria assim não, fosse com outro que não sabia, não teria voltado; mas é assim mesmo, não tem nada".

Pois bem, foram passando os dias, passando os tempos, outra vez, foi indo, aí diz-se que o Sol foi comer buriti. Havia só um pé de buriti; foi comer no pé de buriti. Aí foi comendo buriti e defecava só buriti; as fezes saiam assim com outra qualidade, aí Lua chegava olhava as fezes dele: "Mas as fezes do compadre são assim desse jeito, de outra qualidade, assim laranja e bonita, como é que é, que é que o compadre come?" Aí Lua chegou ao Sol e perguntou: "Compadre, que é que o compadre come, que fica com as fezes bonitas, assim desse jeito? Eu quero que o compadre me ensine esta comida para eu também comer, para que eu fique com as fezes assim do jeitinho das fezes do compadre". O Sol respondeu: "Compadre, olhe!" Apontou o dedo para Lua: "É aquela flor, é aquela flor de pau que eu estou comendo. Pode o compadre comer até que as fezes saiam como as minhas fezes saem. Aí Lua foi comer flor de pau; foi comendo, foi comendo... Aí, quando Lua foi defecar, as fezes saíram assim de outra qualidade, de outro jeito, feias, como Lua não queria que fosse; e aí foi falar: "Não, compadre, você me ensinou errado, não foi aquilo que você comeu não, foi outra coisa". Aí depois é que foi reparar, foi reparar Sol até que Sol foi comer buriti: "Ah, compadre, você me enganou, mas agora você não me engana mais não, eu também vou comer". Quando Sol foi embora, ele acompanhou o rastro do Sol, e foi chegar no pé de buriti. Lua apanhou buriti que não era bem mole como ele comia; era assim a metade mole, a metade dura e ficou assim até que Lua zangou: "Mas porque você não se amolece bem para eu comer assim como compadre come você; espera aí, é já que

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você amolece!". Diz-se que apanhou um buriti e atirou no pé de buriti. O pé de buriti alteou, assim como nós estamos vendo. Alteou o pé de buriti. Aí, quando o Sol chegou ele já estava lá em cima, e não podia chegar e não sei como que não cai assim no chão. Aí o Sol olhou e ficou zangado com Lua, mas não falou nada não.

(O narrador repete o episódio das ferramentas que trabalhavam sozinhas).

Aí chegou ficou assim pensando: "Como é que vou fazer?" Aí ficou assim sem fazer, sem pensar noutra coisa e foi indo, foi indo, foi indo, aí diz-se que chamou: "Compadre vamos caçar". Aí diz que foi embora (...) Quando foi para o mato, Lua falou para o Sol: "Compadre, eu quero que você me arranje um enfeite também para mim, como você tem enfeite, que estou gostando desse enfeite". Aí foram lá ao pé do céu. Aí lá se vai, pica-pau. Diz-se que quer derrubar o pé do céu. (Não sei se é verdade, que povo conta, de primeiro antigo). Foi indo, chegou lá, aí falou: "Oh compadre pica-pau, eu quero que você jogue aí um enfeite muito bonito para mim!" "Você quer?" "Eu quero". "Você quer enfeite?" "Quero enfeite, bem bonito!" Aí falou: "Pois bem, eu vou mandar, mas é última vez que eu mando esse enfeite, mas outra vez eu não mando; você pode assuntar e pode ficar ciente que eu não mando mais nenhum; eu já mandei um, agora vou mandar esse e mais nada, que eu não mando mais. E você, olhe lá, você pegue, você tenha coragem para pegar, se você não pegar, se cair no chão, aí nós vamos acabar, nós vamos acabar o mundo e o mundo vai se acabar, que o fogo pega mesmo, se você deixar cair..." Aí o Sol falou para Lua: "Olhe, compadre, agora você fique bem aí, deixe eu pegar para você, eu não vou ficar com o enfeite não, eu vou pegar e entrego para você, aí você toma conta de seu enfeite". "Não, não compadre, eu não quero que você pegue, eu mesmo vou pegar porque já é meu e eu mesmo pego. Não quero que compadre pegue, senão suja. Eu quero pegar eu mesmo". "Não compadre, você não pega não". "Não, compadre, eu pego!" "Olhe lá compadre, você pegue, se você não pegar, se ele cair no chão, se triscar no chão, aí vai levantar o fogo e nós vamos queimar, nós queimamos". Aí diz-se que o Sol foi ficou lá longe; Lua ficou no sol, aparando assim a mão, para pegar lá em cima. Aí o pica-pau soltou o enfeite, que veio já com fogo mesmo. Aí Lua ficou com medo de pegar. Quando caiu no chão, levantou fogo. Aí o Sol correu. Lua correu atrás também: "Eu morro, eu morro, eu queimo, eu não queimo, mas por que foi que eu não deixei nem o compadre pegar, eu podia ter deixado, o compadre mesmo pegaria para mim, mas é assim mesmo; sei que morro". Aí foi entrar no buraco do peba. Não sei como foi que não morreu assim lá dentro, assim de fumaça. Aí foi, o Sol foi embora e Lua entrou no buraco do peba. Aí o Sol foi se esconder lá na casa do marimbondo, aquele marimbondo da casa de barro, uma casa de marimbondo que é feita mesma de barro, aí foi esconder; quando o fogo passou, aí o Sol, falou assim: "Ele, meu compadre, queimou agora; agora eu vou ficar sem compadre". Aí foi gritando: "Compadre! Compadre!" Aí Lua respondeu. Lua respondeu, aí lá se veio Lua. Aí chegou: "Eh compadre, mas para que você deixou, compadre, quase nós morríamos, mas não tem mais nada não, vamos embora, agora nós vamos procurar carne, alguma caça sapecada nós vamos achar e nós vamos levar".

Aí foram indo, foram procurando, procurando, até que acharam capivara queimada, sapecada. "Compadre, esta é nossa caça, esta é boa; é caça boa, nós vamos levar esta caça. Arranjaram um lugarzinho, num olho d'aguinha, arrancharam e fizeram moquém. Foram tratar capivara. Aí o Sol falou para Lua: "Compadre, agora você tira a sua, pode tirar qualquer uma que você quiser, porque talvez eu dê uma que o compadre não queira; eu não quero assim não. Pode o compadre mesmo escolher, qual a que o compadre vai querer". Lua respondeu: "Eu vou ficar com a fêmea". Tirou, afastou. "Pode tratar!" Aí Lua tratou, tratou, diz-se que era assim meio gorda, não era assim gorda não, não tinha muita gordura. Aí achou de tratar, aí falou para o Sol: "Pronto, compadre, já pode o compadre tratar a dele". O Sol foi tratar a dele, mas era gordura demais. Lua ficou assim olhando-a: "Oh, podia eu ter ficado com esta aí, mas não tem nada não, vai ficar assim mesmo. (O Sol) tirou gordura, salgou e espetou e guardou. Quando foi moquear o moquém, Lua teve sono. Foi dormir. O Sol estava assando gordura, um pedaço de

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carne gorda, estava assado no jeito; quando já estava bem quente, bem quente mesmo, apanhou, levou ao Lua e botou bem na barriga: "Pega, compadre, levanta, vamos comer carne gorda!" Lua levantou assim avexado: "Compadre, você me queimou, porque o compadre fez assim comigo?" Oh, como é que eu me esfrio, eu morro de quente!" E foi assim cair no olho d'aguinha. Estava tudo rasinho; estava cavando, cavando, para afundar, para poder mergulhar. Diz-se que estava cavando, cavando, daí a um pouco achou uma tartaruga. Chamou o Sol: "Compadre, está aqui uma tartaruga, nós vamos tirar, vem cá, vamos tirar a tartaruga". "Não compadre, não tira não, senão nós acabaremos!" Mas Lua arrancou a tartaruga do olho d'água, aí lá se vai o rio. Saiu tudo de uma vez, foi uma água danada e foi no rio. Aí foi, carregou Lua, foi carregando, foi carregando. O Sol ficou assim esperando: "Não, eu preciso tirar, acudir meu compadre, senão eu fico sem companheiro!" Cortou um braço do buriti comprido, e foi ficar lá embaixo, foi tomar lá embaixo. Aí, lá se vem Lua, batendo água: "Ai compadre, ei compadre, eu morro compadre, me acode, compadre!" Aí o Sol jogou o braço de buriti, aí afastou até que saiu fora. Ficou cansado! Aí, quando descansou, foi embora para o riacho. "Vamos embora, vamos aonde está nossa casa". Aí foram, foram, foram, foram, foram, aí chegaram. Aí falou: "Meu compadre, quase eu morria ... mesmo cansadinho". "É, eu não mandei o compadre tirar tartaruga que ficou aí no olho d'água para criar água. Bem que compadre foi tirar. Agora está um rio. Quase você morria mesmo. Mas eu não mandei, eu não sou culpado, o culpado é o compadre mesmo". Aí levaram carne de capivara lá para a casa. Agora, quando chegaram à casa, acho que retalharam, não sei, retalharam não, porque já estava moqueada, estava assada.

(O narrador repete o episódio da origem da mulher).

Os episódios desse mito, nem todos presentes na versão que acabo de apresentar, quase sempre mostram o Sol querendo reter só para si aquilo que descobre ou cria. Lua só consegue o mesmo depois de lhe pedir ou de procurar insistentemente. Entretanto, nunca ouvi os craôs reprovarem a sovinice do Sol. Mas não poupam críticas ao comportamento desajeitado e desastroso de Lua. Mesmo assim, as escolhas de Lua não são de todo reprovadas: se a morte resulta de uma escolha de Lua, vale lembrar o argumento craô de que, se os homens não morressem, a população cresceria tanto e se tornaria tão pesada que o chão desabaria sobre o mundo subterrâneo.

Este mito sempre me evoca a peça de Jean Paul Sartre Entre Quatro Paredes, que se encerra com a conclusão de que "o inferno são os outros". É certo que Sol e Lua não estão encerrados num pequeno compartimento; pelo contrário, suas peripécias têm por palco a ampla superfície do mundo. Mas eles estão sozinhos e um só tem o outro para interagir. Para o Sol, e talvez também para quem narra e para quem ouve o mito, Lua é o outro, alguém que constantemente o observa, inveja e aborrece. Mas o mito vai além da referida peça e parece admitir também, como, se não me engano, Millor Fernandes disse em algum lugar, que "o paraíso também são os outros". De fato, apesar de às vezes agredir Lua, o Sol não deseja o seu desaparecimento, a julgar pelo seu brado, quando aquele é arrastado pela grande inundação: "Não, eu preciso tirar, acudir meu compadre, senão eu fico sem companheiro!"

O mito mundurucu dos dois sóis O mito que aqui vou resumir está publicado nas pp. 83-86 do livro de Robert Murphy,

Mundurucú Religion (Berkeley e Los Angeles: University of California Press,1958).

Karuetaouibö e Wakurumpö eram homens casados cada um com a irmã do outro. Karuetaouibö era tão feio que sua mulher não o queria mais, recusava peixe e caça que trazia, e ainda tinha relações com um outro homem.

Um dia, depois de uma pescaria coletiva com timbó, Karuetaouibö não retornou à aldeia com os outros e ficou no abrigo que havia lhes servido, a pensar na sua triste situação. O Sol e sua esposa chegaram e lhe perguntaram o que fazia ali. Karuetaouibö contou-lhes seu problema.

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Querendo averiguar a verdade, o Sol ordenou a sua esposa que tivesse relações sexuais com Karuetaouibö, de modo a saber se ele podia dar prazer a uma mulher. Ela tentou, mas o pênis dele continuou flácido e ele nada conseguiu. Ela relatou ao Sol o ocorrido e este examinou bem o corpo da esposa, mas nenhum vestígio de sêmen encontrou.

Querendo ajudá-lo, o Sol tornou o corpo de Karuetaouibö muito pequeno e o introduziu no útero da esposa. Após três dias ele voltou a nascer como um homem extremamente belo. O Sol entregou-lhe um cesto cheio de peixes e recomendou-lhe que retornasse à aldeia, mas não voltasse para sua mulher, mas procurasse uma viúva que vivia a chorar por seu marido que morrera em combate.

Na aldeia todos se admiraram da beleza de Karuetaouibö. Sua esposa começou a lhe mostrar atenção, mas ele a repudiou e foi propor casamento à viúva, que o aceitou.

Apesar de Wakurumpö não ser feio e de ser querido pela esposa, invejou a beleza de Karuetaouibö e quis saber como ele conseguira mudar tanto. Este não quis contar, mas Wakurumpö tanto insistiu que o outro lhe contou tudo o que lhe sucedera. Wakurumpö deixou-se então ficar sozinho depois de uma pescaria coletiva com timbó, como se fosse feio e desprezado pela esposa. O Sol chegou e tudo se repetiu. Ofereceu-lhe sua esposa para copular, e Wakurumpö teve com ela relações sexuais satisfatórias (pois Karuetaouibö não lhe tinha narrado essa parte de sua história). O Sol então o fez bem pequenino e o colocou no útero de sua esposa. Três dias depois ele renasceu, mas muito feio e corcunda. O Sol ordenou que ele voltasse para sua esposa, mas não lhe deu peixes e ele mesmo teve que pescá-los. Todos os que o viam chegar estranhavam a sua feiura. Mas sua esposa o aceitou de volta. Quando ele foi dependurar sua rede na casa-dos-homens, lá estava Karuetaouibö, que tocava flauta e entoava um cântico que fazia alusão à curiosidade de Wakurumpö pela vagina da mãe.

Wakurumpö, que era um poderoso xamã, resolveu um dia esconder o sol. Por meio de feitiçaria, pintou com jenipapo a face do sol. Também provocou fortes chuvas simplesmente girando seus dedos na direção do sol. Assim, estava todo o tempo escuro, ou chuvoso. Os outros xamãs se reuniram e tentaram fazer o sol brilhar, usando para isso penas de arara. Mas só conseguiram que se iluminasse o lugar onde estavam sentados. Todo o restante continuava escuro. Então, Wakurumpö fez uma faca de bambu e enviou-a ao céu para raspar o jenipapo da face do sol. E este voltou a brilhar outra vez.

Wakurumpö e Karuetaouibö foram mortos pelos inimigos e tiveram suas cabeças colocadas no topo de postes. Um menino gordinho foi encarregado de vigiá-las. Ele tinha herdado poderes xamânicos, mas ninguém sabia, nem mesmo ele. Um dia ele viu e ouviu as cabeças conversarem e se perguntarem quando subiriam aos céus. Ele gritou para os mais velhos, avisando-os, mas ninguém acreditou. Isso se repetiu várias vezes, mas os velhos achavam que o menino estava mentindo. Os homens enfeitaram as cabeças com urucu e penas. Alguns dias depois, elas disseram uma para a outra que naquele dia iriam subir. O menino deu o alarme, mas debalde. Ao meio-dia, elas começaram a subir, acompanhadas de suas esposas. Karuetaouibö e sua esposa subiram rapidamente, mas Wakurumpö ia devagar, porque sua esposa estava grávida. Os homens atiraram flechas contra os fugitivos, mas só a disparada pelo menino atingiu Wakurumpö, nos olhos.

Hoje, Karuetaouibö e Wakurumpö são o sol que percorre os céus. A lua é a esposa de Wakurumpö. Nos dias claros, é Karuetaouibö que está nos céus, bonito e de olhos vermelhos fulgurantes. Nos dias nublados é Wakurumpö, que se esconde envergonhado de sua feiura e de seus olhos opacos.

No mito que acabo de resumir, vale a pena sublinhar alguns aspectos. O primeiro é o caráter explicitamente edipiano de Wakurumpö: ele tem relações sexuais com a mulher que vai ser sua segunda mãe, aliás de modo curioso, pois o incesto precede a relação de parentesco; o cântico de

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Karuetaouibö chama a atenção para esse incesto. E tal como Édipo, Wakurumpö tem os olhos atingidos no final.

Em segundo lugar, o mito reitera a associação de Wakurumpö com os dias escuros: como xamã ele escurece o disco solar e mais tarde é sua própria cabeça que vai se transformar no sol dos dias nublados.

Em terceiro lugar, o sol se apresenta de quatro maneiras: o que brilha no céu inicialmente; o personificado que transforma Karuetaouibö em homem bonito e Wakurumpö em homem feio; e esses dois heróis cujas cabeças vão tomar o lugar do astro.

Finalmente, Lua tem aqui um lugar discreto: é apenas a esposa de Wakurumpö, o que veio a ser o sol dos dias nublados; mas que antes usou o jenipapo para escurer o disco solar, tal como Lua em outros mitos indígenas teve seu rosto manchado por jenipapo, quando sua irmã tentava identificar quem era seu amante. Ou seja, se em outros mitos Lua é o incestuoso, aqui é a esposa de um homem incestuoso.

O mito de Lua dos marubos O par Sol e Lua não é considerado pelos marubos, do sudoeste da Amazônia. O Sol (Vari) dá

nome a uma de suas seções, componente de um grupo exogâmico: a dos Varináwavo. Mas não aparece em nenhum mito. Somente Lua (Oshe) tem lugar na mitologia, e apresento a seguir uma versão do mito de sua origem. É a mesma que foi publicada nas nas pp. 107-110 do "Relatório sobre os Índios Marubo", de Delvair Montagner e de Julio Cezar Melatti, Série Antropologia 13 (Brasília: FUB, 1975). Não está exatamente igual à citada publicação, porque fiz aqui pequenas modificações de modo a tornar o texto mais claro e contornar algumas obscuridades do português do prestimoso marubo, César, que a traduziu.

Primeiro Lua (Temitxóki) era gente. Queria fazer sopa de urucu. "Quem acabou meu urucu?" disse Temitxóki. Fez um tapiri para cuidar urucu. Ele viu do rio abaixo virem Nomã Sheta e suas irmãs Nomã Peko, Nomã Eva e Nomã Mashe. Viu-as chegando. Temitxóki pensara que era bicho que pegara seu urucu. Mas apareceu gente. Temitxóki estava sentado no tapiri. Tinha um galho de urucu curvado, baixinho. Mashe tirou aquele urucu. Tinha flor. Pintou a perna. Pintou dos lados dos olhos. Nomã Peko subiu no urucuzeiro. Eva, Mashe e Sheta estavam no chão. Temitxóki pegou Peko. Peko falou para Temitxóki: "Sai daí do chão, eu vou descer." Queria descer, mas Temitxóki correu para junto do urucuzeiro. Quando desceu, pegou Peko. Ela não correu. Falou para Temitxóki: "Pode me pegar, se não tem esposa. Se tiver esposa, não quero você não. Então eu vou catar seus piolhos." (Se Temitxóki não tivesse piolho, seria sinal de que tinha esposa). Quando mexeu no cabelo dele, tinha um piolho. O piolho tinha asa. Estava voando. O piolho foi aonde o urubu (chete vorokéne) está voando. Entrou embaixo da pena do urubu e ficou lá. Virou piolho de urubu. Então Peko falou para Temitxóki: "Vou casar com você, pois não tem mulher." "Sem mulher eu não tenho quem faça comida para mim", lhe disse Temitxóki.

Nomã Peko era mulher sabida. Ninguém via o que ela fazia. Fez uma pulseira de aruá, fez um colar, fez pendentes de orelha. Temitxóki mandou: "Você faz uma caiçuma." Ela não fez nada, mas tinha uma panelona, fechou com uma peneira. Pegou uma casca de banana madura e esfregou lá dentro da panelona. Pegou um caroço de milho, mastigou e jogou dentro da panelona. Fez e fechou com a peneira. Quando Temitxóki foi caçar, entrou e falou para ela: "Já fez caiçuma?" "Já, eu fiz." Quando levantou a peneira, viu caiçuma boa, com uma nata rachada na superfície. As velhas disseram: "Ela não fez nada, mas como será que conseguiu? Será possível que ela trabalhou?" Não sabiam ainda como ela fazia. "Eu não fiz nada desse trabalho", ela falou para outra mulher. "Nós fazemos muito serviço. Ela não fez nada, como que ela fez assim?"

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Peko ficou grávida. Nasceu o filho dela. "Eu vou tomar banho", ela disse, "vocês cuidem do meu filho." Ela deu o filho a outra mulher. A criança chorou. A mãe do menino foi tomar banho no terreiro, mas a outra pensou que ela fora longe. "Não chora criança, você não é mulher, você é homem, mas como você criou sobrancelha de sua mãe. A criança não tem o rosto do pai, só o da mãe dela." A mãe da criança escutou essas palavras. Falou para a criança: "Vem para cá, meu rosto, não tem rosto do seu pai." A criança estava chorando; pegou o filho, foi brincando com ele. Ela foi pelo mesmo caminho pelo qual o marido tinha ido caçar. Estava brincando com a criança. Enquanto esperava o marido dela, atravessou o rio para o outro lado, que tinha praia. Estava brincando com a criança na praia. Quando ela atravessou, entrou o marido dela na casa. Perguntou: "Aonde foi minha mulher?" "Não sei, nós vimos quando estava aqui brincando com o filho dela." Ele foi procurá-la e viu-a do outro lado, sentada na praia. Falou para a mulher: "O que você foi fazer aí?" "Eu trouxe meu filho", disse a mulher, "porque disseram que ele não tem o rosto do pai, só tem o da mãe. E eu fiquei com vergonha. Eu já vou-me embora, onde meu pai está, eu tenho vergonha de entrar em casa. Se você quiser, vamos comigo até lá, na casa de meu pai. Tem no toco do pau uma folha de sanivotxosti. Eu deixei no toco do pau. Pega aquela folha, esfrega, pinga nos olhos, fecha os olhos, pensa aonde eu estou". Ele pegou a folha, esfregou, pingou em cada olho e pensou. A mulher estava longe. Quando pingou, fechou os olhos. Quando olhou, ele estava pertinho da mulher. "Vamos embora olhar minha mãe e meu pai."

Ela viu um verme, tirou-o. Ela disse que a minhoca era boa para preparar com sopa de milho. O marido fez paneiro de folha de açaí para a mulher. Botou dentro dele a minhoca. Chegaram lá aonde o pai dela está. A mãe dela ficou animada. "Mãe, cozinhe o poraquê, faça sopa para nós comermos." Ela chamava a minhoca de poraquê. "Eu procurei, mas não achei desse poraquê", o pai falou para ela. Fizeram sopa de poraquê e a tomaram. A mãe falou para ela: "Será que ele (Temitxóki) come?" "Ele não come, ele tem muito medo de poraquê", disse ela. Acabaram de tomar a sopa.

Ele viu Neã Tove, Neã Rasi e Neã Sina. Vêm brigando, cortando-se ao meio; quem era cortado, era emendado pelos outros. "Saia do meio você, pois eu não morro", disse a mulher para ele. "Eu já estou acostumada com isso", ela falou para seu marido. E fechou o marido dela dentro da casa. Quando ele viu cortarem sua mulher, ele correu com pena dela, queria olhá-la. Cortaram-no também. Quando cortaram, ele caiu; sua mulher correu e o emendou. "Vá embora, eu já estou acostumada com essa briga", disse a mulher para ele. A mulher o botou dentro de casa. Cortaram-no de novo. Cortaram a perna e pegaram-na. A mulher dele não o emendou mais. Os três levaram a perna de Temitxóki. Tiraram os testículos. Levaram da cintura para baixo. Botaram no ombro e levaram. Jogaram num lago. A perna de Temitxóki virou poraquê. Os testículos viraram caramujo aruá. A outra perna virou sucuriju. Ficou só o tronco da cintura para cima, com braços e cabeça. Assim reduzido, Temitxóki voltou. Caiu na água, foi embora para o fundo. Quando um peixe veio comer a perna dele, Temitxóki pegou-o.

Chegou lá na casa da mãe dele. Quando falou "Mãe!" ela abriu a porta. A mãe viu só tronco, sem pernas. Tinha peixe seguro na mão. Falou para a mãe: "Pega o peixe, mamãe; me mataram. Neã Rasi e Neã Tove é que me mataram." A mãe só ficou com o peixe. Ele lhe deu o peixe. "Meu filho está cortado". "Só peixe que eu trouxe."

Ele estava sentado no terreiro. Fez sopa de peixe. Acabou de comer. Sentado, Temitxóki falou: "Mamãe, o que eu viro?" Pensando nisso, falou: "Eu vou virar uma cabeça de terra. O que eu vou virar? Mãe, pensa para mim. Eu vou virar remanso. Eu vou virar um pau duro. Eu vou virar uma terra." Assim ele falava.

Andava "namorando" com cachorro, com mãe, irmã, tudo ele queria "mexer". Quando a pessoa dormia, ele ia cutucar e pegar o "negócio" da mulher. A irmã dele fez jenipapo misturado com água. Por isso que Lua tem meio sujo assim, de um tapa que levou.

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Até que disse: "Mãe, eu vou virar Lua." Matou anta, cortou perna, colocou-a nele próprio, cortou pênis da anta e colocou nele. Matou uma arara e com o rabo fez uma picunha. Tinha um açaizeiro, subiu nele. Passou por um caminho (Nei Maspõ). Subiu, ficou lá no céu. Virou Lua.

Primeiro ele era gente. Cortaram-no. Virou outro jeito. Assim que virou Lua. Com toda a gente ele copula; cachorro, anta, veado, também ele "namora". Dentro da água tem gente que ele "namora".

Noma, termo que compõe o nome das moças que colhiam frutos no urucuzeiro de Temitxóki, quer dizer "juriti" e denomina uma desaparecida seção dos marubos, a dos Nomãnáwavo. Por sua vez, Nea, que compõe o nome dos três estranhos personagens que se decepavam mutuamente e depois tinham seus corpos emendados, quer dizer "jacamim", mas não dá nome da nenhuma seção marubo, do presente ou do passado.

No mito marubo, o caráter incestuoso, para não dizer totalmente promíscuo, de Lua contrasta com o dos personagens correspondentes nos mitos mundurucu (em que Lua é mulher, mas esposa de um incestuoso sui generis) e craô (em que Lua não comete incesto, mas está relacionado à menstruação). Entretanto, na versão apresentada, o episódio, comum a várias mitologias indígenas, da mulher que suja o rosto do amante desconhecido com jenipapo para descobrir no dia seguinte que ele é o seu irmão, está demasiadamente sucinto.

5a aula Matriarcas e Amazonas

Julio Cezar Melatti

Março de 2001

Sumári

o de

Mitos Indígenas

Pági

na inicial

Reservei esta aula para apresentar dois tipos semelhantes de mitos. Um deles corresponde

àqueles mitos que contam como as mulheres detinham ou usurparam privilégios políticos e rituais que as colocavam como hieraquicamente superiores aos homens e como estes se revoltaram, despojando-as ou reconquistando sua posição. Mitos desse tipo foram considerados na argumentação de antropólogos evolucionistas do século XIX, que postularam a existência de uma fase matriarcal na história da humanidade. O outro tipo inclui os mitos referentes a sociedades constituídas exclusivamente de mulheres.

O ensaio matriarcal As mulheres dessanas se apoderam das flautas sagrad as. Voltemos ao livro Antes o

Mundo não Existia, escrito por dois índios dessanas. O capítulo IX conta como as mulheres detiveram temporariamente as flautas que eram destinadas aos homens.

O pé de paxiúba, osso do herói Guelamun yé, foi distribuído por toda a humanidade, e os dessanas foram procurar o que lhes cabia. Um dessana chamado Abé (Sol ou Lua), encontrou a paxiúba e cortou dois pedaços, levando-os para sua casa, que ficava no rio Papuri, abaixo do

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lugar onde está hoje a Missão colombiana de Piracuara. Deixou-os no porto, junto a uma árvore e com um cipó que serve para provocar vômito.

De madrugada, Abé tentou acordar o filho, encarregando-o de ir ao porto e começar a fazer as flautas sagradas (talósu waí-ngoá). Mas o filho voltava sempre a dormir, até que as filhas de Abé, ouvindo o pai sussurrar algo relativo a cipó, ofereceram-se para irem buscá-lo, o que o pai, sem poder mais disfarçar, consentiu.

Ao chegarem ao porto, as moças encontraram os dois pedaços de paxiúba, que acharam belos e se perguntavam para que poderiam servir, enfiando-os inclusive na vagina. Os peixes que vinham subindo para ensinar como fazer e tocar as flautas, vendo as mulheres, voltaram. Por fim chegou um peixe que ensinou as moças como soprá-los e elas começaram a tocá-los.

O mundo inteiro ouviu o som das flautas e gente de toda parte se reuniu para comemorar o dia do açoite, como fazia Guelamun yé. Os homens, ao verem as mulheres como donas das flautas, afastaram-se aterrorizados. Outras mulheres chegaram e todas juntas foram reunir-se na casa de Abé. As mulheres chegaram à casa pelas dez horas da manhã. Os homens varriam e faziam todo serviço de mulher. Quando elas entraram, todos eles, inclusive Abé, sairam e se esconderam.

Dando-se conta que as mulheres haviam se apoderado das flautas sagradas, os homens, irados, xingaram o rapaz dorminhoco. Tiraram cerne de outra espécie de paxiúba, usada para fazer pari de pesca, e confeccionaram uma flauta chamada bariseron bëguë (pai da fruta japurá). Deram pimenta ao dorminhoco para mastigar e cuspir um fio de saliva bem comprido, que se tornou um cipó, o qual foi partido em pequenos pedaços, usados para acompanhar a música da flauta que acabavam de confeccionar. O dorminhoco foi encarregado de tocá-la. Esse rapaz caiu duas vezes fulminado e duas vezes foi ressuscitado: uma, quando lhe saiu o fio de saliva da boca; outra, quando uma de suas irmãs levou a mão à orelha para escutar o som da flauta bariseron bëguë.

Irritados, os homens, inclusive o dorminhoco, pensam em matar todas as mulheres. Abé era contra essa idéia, no que foi apoiado por uma intervenção do Criador, Ngoamãn (Ëmëkho sulãn Panlãmin). A flauta bariseron bëguë foi apontada na direção da vagina de uma das filhas de Abé, para que seu som nela penetrasse e a explodisse, junto com todas as outras mulheres, que estavam cobertas de enfeites masculinos. Ngoamãn, porém, ergueu a flauta na direção do peito da mulher e ele mesmo soprou.

O som desarvorou as mulheres, que caíram desacordadas e acabaram por fugir da casa, abandonando as flautas sagradas (talósu waí-ngoá). Uma das filhas de Abé levou, entretanto, consigo um pedacinho de uma dessas flautas que escondeu na vagina. Os homens retomaram a maloca e se apoderaram das flautas sagradas. As duas filhas de Abé fugiram chorando para o sul e nunca mais voltaram. Numa pedra em Itapinima, no rio Uaupés, abaixo de Taracuá, escreveram a história de sua conquista das flautas sagradas.

As mulheres mundurucus descobrem as trombetas sagra das. O mito que agora vou resumir está nas pp. 89-91 do livro Mundurucú Religion, de Robert Murphy (Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1958).

Havia três mulheres que, quando iam buscar lenha, ouviam uma música, que acabaram descobrindo vir de um lago que até então desconheciam. Mas nele apenas encontraram peixes jejus. Com ajuda de redes em cujas bocas esfregaram uma noz que fazia os peixes dormirem, cada mulher conseguiu apanhar apenas um peixe, e eles se transformaram em trombetas cilíndricas e ocas. Os outros peixes fugiram (por isso hoje a casa-dos-homens tem apenas três trombetas). As mulheres esconderam as trombetas na floresta e todos os dias, secretamente, iam tocá-las.

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As três mulheres passaram a se devotar exclusivamente às trombetas e abandonaram seus maridos e o serviço doméstico para tocá-las. Os homens ficaram muito desconfiados e Marimarebö, irmão de uma delas, as seguiu e descobriu seu segredo, embora não tenha chegado a ver as trombetas. Ele contou aos outros homens. Quando as mulheres voltaram, Marimarebö lhes indagou se elas tinham instrumentos musicais na floresta, e elas confirmaram. Então ele lhes disse que elas deveriam tocar os instrumentos em casa e não na floresta. As três mulheres concordaram.

Entretanto, como possuidoras das trombetas, as mulheres já tinham ganhado ascendência sobre os homens: eles é que apanhavam lenha e buscavam água, e também tinham de fazer beijus. Mas a inversão das tarefas não se fizera totalmente: era preciso oferecer carne às trombetas, o que dependia dos homens, que continuavam a caçar, enquanto as mulheres só ofereciam aos instrumentos uma bebida feita de macaxeira. Por isso, Marimarebö queria que os homens tomassem as trombetas das mulheres, mas eles temiam fazê-lo.

No dia aprazado para as mulheres trazerem as trombetas para a aldeia, elas mandaram os homens irem caçar, enquanto elas faziam a bebida de macaxeira. Quando eles retornaram, as três descobridoras conduziram as outras mulheres para buscar as trombetas. A irmã de Marimarebö, líder das mulheres, enviou uma delas à aldeia para ordenar aos homens que se encerrassem nas casas de habitação, mas eles se recusaram a deixar a casa-dos-homens. Então a própria líder veio para fazer com que cumprissem a ordem. Marimarebö então respondeu que eles iriam ficar nas casas de habitação apenas uma noite; que os homens queriam as trombetas e iriam tomá-las no dia seguinte; se as mulheres não as entregassem, então eles não iriam caçar e não haveria carne para oferecer à trombetas. A líder concordou, pois sabia que não podia caçar para as trombetas e para os hóspedes das cerimônias.

Os homens se encerraram nas habitações e as mulheres desfilaram em torno da aldeia, tocando as trombetas. Depois entraram na casa-dos-homens para pernoitar e lá instalaram os instrumentos. Em seguida, durante toda a noite, uma por uma, as mulheres foram às habitações e forçaram os homens a terem relações sexuais com elas. Os homens não podiam recusar (como hoje as mulheres não podem se recusar aos desejos masculinos).

No dia seguinte, os homens tomaram as trombetas, e forçaram as mulheres a voltarem para suas habitações. As mulheres choraram sua perda.

As amazonas Conforme os craôs. Há quase quarenta anos (15-11-63) o craô Esteves me contou o mito

que resumo abaixo.

Havia uma aldeia só de mulheres. Só havia dois homens para reproduzir. Aqueles que não eram bons para copular ou que procuravam pouco as mulheres eram mortos.

Dois rapazes craôs foram visitar a aldeia. Chegaram quando as mulheres vinham correndo com toras. Elas tinham conseguido muita carne de caça. Tinham também muita produção agrícola. Deram muita comida para eles.

De manhã as mulheres estavam fazendo machado. Os rapazes chegaram a uma casa. Duas moças os convidaram para ter relações sexuais, mas os advertiram de que ainda eram virgens. Elas tinham peitinhos durinhos e naquela época não usavam pano. Cada uma escolheu um deles, desafiando-o para uma corrida, desde o pátio central da aldeia até o local do banho. O primeiro casal correu e o rapaz chegou na frente. A moça se entregou a ele. Ele descansou um pouco e a levou para o mato, onde a deflorou. A segunda moça também perdeu a corrida e o outro rapaz fez o mesmo.

No dia seguinte, correram de novo bem cedo. Cada casal copulou duas vezes. Os rapazes passaram uns três dias e resolveram ir embora, antes que alguma mulher os passasse na corrida

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e os matasse. As mulheres deram muitas coisas para eles comerem na estrada. E um machado de pedra para cada um. E eles foram embora.

E contaram sua aventura na aldeia das mulheres. Mas os outros não foram lá, eram ruins de correr e tiveram medo. Mas uma nação brava demais veio e matou todas as mulheres, ficando só mesmo a tapera. Outros rapazes craôs foram até lá e só viram os ossos.

Conforme os marubos. Há também duas versões marubos de um mito sobre uma sociedade de mulheres. Elas foram colhidas por Delvair Montagner em 1978. Ambas são obscuras nos seus detalhes, mas é possível dar uma idéia das mesmas. Uma foi contada por Firmino e a outra por Rita. O que mais impressiona é que uma das versões, a de Rita, também associa a sociedade de mulheres com o machado, que não era fabricado pelas mulheres, mas pelo Inca, em cujo caminho elas viviam.

As duas versões as situam em lugares diferentes: uma na primeira camada celeste e também no Noa Ataire. Caso este nome tenha sido anotado defeituosamente no lugar de Noa Tae, elas estariam na desembocadura do grande rio mítico. A outra as coloca coerentemente a oeste, na direção do Inca. Ambas as versões as reconhecem como muito hábeis no uso do arco, pois abatiam araras e papagaios em pleno vôo, quando passavam sobre o local em que viviam. Na versão de Rita, as mulheres são grandes, sem filhos. Na de Firmino, são cantadoras e entram no corpo do pajé nas sessões xamânicas.

Ambas as versões falam dos cuidados que tomavam os homens antes de alcançar o lugar dessas mulheres. Tiravam pênis de quati, rabo ou pênis de jacaré, esquentavam-nos no fogo. Uma versão diz que eles esquentavam os próprio pênis. Assim se preparavam para ter relações sexuais com elas. Certamente eram cuidados para manterem uma prolongada ereção.

Os homens faziam todo esforço para manterem muitas relações sexuais com elas. Aqueles cujo desempenho elas consideravam fraco, eram perseguidos e mortos.

Na versão de Rita, depois de passarem por essas mulheres é que os homens alcançavam o Inca, que lhes dava os machados.

6a aula As Fronteiras da Sociedade

Julio Cezar Melatti

Março de 2001

Sumári

o de

Mitos Indígenas

Pági

na inicial

Há um mito dos pacaás novos (que chamam a si mesmos de Wari', que grafarei como "uári")

que parece jogar com os mesmos elementos de dois mitos craôs. São mitos que acentuam o afastamento espacial entre os indivíduos que vêm a se unir sexualmente ou, mais ainda, matrimonialmente.

A mulher que vive muito longe

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Denise Maldi, de saudosa memória, nas pp. 332-40 de sua dissertação de mestrado, Os Pakaas-Novos, defendida na Universidade de Brasília em 1986, apresentou três versões de um mito sobre uma mulher que vivia muito longe e que foi procurada por um homem feio. Elas foram tomadas de dois subgrupos uáris: duas dos Oro Dao e uma dos Oro Bone.

Versão dos Oro Dao. Conta a primeira versão que:

Um homem, desprezado pela esposa por ser feio, escutou um dia, enquanto caçava inhambu-galinha, uma voz feminina a cantar. Como não visse ninguém por perto, no dia seguinte, escutando novamente a voz, transformou-se em patinho e entrou numa cuia de cabaça, deixando-se flutuar ao sabor da corrente do rio. Pernoitou num barranco da margem e continuou a descer no dia seguinte. Passou por uma aldeia de gaviões, que tentaram flechá-lo, mas sem conseguir. No dia seguinte, passou por uma aldeia de corujas, que também quiseram atingi-lo com suas flechas, mas sem êxito. Depois de pernoitar, encontrou um aldeia de gaviões grandes, que também não lograram atingi-lo. Um dia depois, passou pela aldeia dos urubus, que enfiaram varas no rio, fazendo-o secar, mas como o patinho lhes escapasse, retiraram as varas e o rio voltou a se encher.

Finalmente chegou à casa da mulher que cantava, que tinha filhas muito bonitas. Ofereceram-lhe chicha e depois o esconderam debaixo de um grande pote de barro. Então a casa foi visitada pelos japus, depois pelos urubus junto com os gaviões grandes, e depois por todas essas aves juntas. A cada visita as aves sentiam cheiro de gente, mas a mulher não deixava que chegassem perto do pote. Na última vez chegaram a mexer no pote, mas a mulher se zangou e as expulsou. Elas lhe deixaram coisas para comer: os gaviões grandes, macacos-pretos; os outros gaviões, carne de cobra; os japus, ratos; e os urubus, carne podre. A mulher não gostava de nada disso e jogou tudo fora.

À noite, a mulher tirou o homem de dentro do pote e massageou-o. Ele, excitado, teve relações sexuais com ela. E ele ficou bonito. Ele resolveu então retornar para sua casa, mas foi por terra, não pelo rio. Chegando à aldeia, foi direto para a casa dos solteiros. O irmão, ao trazer-lhe chicha, reparou que ele estava bonito. Ao saberem do que lhe tinha acontecido, vários homens quiseram também procurar a mulher. Guiados por ele até o rio para ouvir a voz dela, um deles pegou a cuia e partiu imediatamente. A viagem correu da mesma maneira como tinha acontecido com o primeiro.

Mas à noite, quando ele estava com a mulher, esta o advertiu que não a penetrasse muito, sob pena de seu pênis ficar muito grande. Ele, entretanto, não lhe deu ouvidos e, quando terminou o ato sexual, seu pênis tinha se tornado uma corda enorme. E ele teve de fazer uma cesta para recolhê-lo. Foi deste jeito que retornou à aldeia, tornando-se objeto de riso e sem poder nunca mais ter uma mulher.

Outra versão dos Oro Dao. Na segunda versão, o homem, também feio e despezado pela esposa, não ouve voz nenhuma. Ele resolve subir, não descer, o rio em busca de uma outra mulher. Ele se transforma em patinho só depois de se sentar na cuia de cabaça. Na sua viagem, só passa pela casa dos urubus, que tentam pegá-lo sem sucesso. Ao chegar à casa da mulher, é escondido num paneiro. Um urubu vem à casa e tem relações sexuais com a mulher, dando-lhe depois alimentos podres. Depois que o urubu vai-se embora, a mulher retira o homem do paneiro, ele lhe conta suas desventuras e pede para fazê-lo bonito. A mulher lhe dá várias ordens: andar, ficar de quatro, subir em árvore, descer. Finalmente tem relações sexuais com ele, recomendando-lhe que só introduzisse o pênis até a metade. Ele assim o fez. Depois, ele ainda teve de fazer todo o trabalho da casa. O urubu volta, torna a sentir cheiro de gente. O homem então retorna para sua casa por um caminho diferente, para não passar pela casa dos urubus. Ao chegar à aldeia, sua esposa o achou bonito, fez tudo para agradá-lo, quis morar com ele, mas ele não mais a aceitou.

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Daqui por diante a segunda versão se torna mais diferente da primeira. Três irmãos do homem foram procurar a mulher para ficarem bonitos. Dois seguiram as advertências dela, mas o terceiro não e, por isso, ficou com o pênis enorme.

Três outros irmãos foram procurá-la. Mas os urubus mataram os dois mais velhos e deixaram o mais novo para criar. Ofereceram-lhe como alimento a carne podre dos seus irmãos, mas ele não aceitou, e nem os gongos que trouxeram para ele, quando ficou doente. Um dos urubus viu a mãe do rapaz chorando por ele, e eles resolveram levá-lo de volta. Um urubu voou com ele e o deixou desmaiado junto a sua mãe. Recuperado, o rapaz se casou com a viúva de um dos irmãos.

Os urubus haviam dado ao rapaz duas varas: uma para secar os rios e apanhar peixes; outra para jogar no mato e fazer derrubadas. Ele começou a fazer uso de uma e outra. A roça que ele abriu era tão grande que o estoque de grãos de milho não foi suficiente para plantá-la toda. Ele então subiu a um açaizeiro, tirou uma fruta e jogou-a do alto, plantando assim novos açarizeiros. Dentro do caroço desses novos açaizeiros se encontraram sementes de milho roxo.

Outras pessoas foram lhe pedir a vara emprestada para abrir suas roças. Porém não obedeceram sua recomendação de que não rissem. A roça não deu. Por isso tiveram de usar o machado para abri-la, como fazem até hoje.

Versão dos Oro Bone. Passando para a terceira versão, notam-se outras diferenças. Nela o homem que caçava, depois de um pau cair-lhe na cabeça, ouve o som de um tambor de mulher. No dia seguinte volta a ouvi-lo, anda na sua direção até um rio grande. Apronta uma canoa e sobe o rio. Passa pela tribo dos mutuns, em seguida dos gaviões e depois dos gaviões grandes. Não há referência a urubus no seu percurso. Ao chegar à tribo das mulheres, elas o acham muito feio, e uma delas passa a mão pelo seu rosto e põe os ossos no lugar. Ele quis ter relações com ela, que concordou, sempre com a recomendação de não penetrar muito. No dia seguinte, mutuns, gaviões e japus chegaram para visitar. A mulher escondeu o homem numa panela de barro. As aves sentiram cheiro de gente, cheiro de ossos. A mulher recomendou que as aves não mexessem na panela porque havia uma cobra dentro. E as aves foram embora.

Ao anoitecer o homem foi embora. Viajou a noite inteira até chegar a sua aldeia. Sua beleza foi notada e as mulheres passaram a gostar dele. Sabendo do que lhe sucedera, outros quiseram repetir a façanha e dois irmãos resolveram partir imediatamente. Um deles foi morto pelos urubus, que esperaram sua carne apodrecer para depois comê-la com farinha de milho. Ofereceram para o outro irmão, que não aceitou. Passou mal. Os urubus ofereceram-lhe gongos. Quando melhorou, quis voltar para sua aldeia. Um urubu foi levá-lo e o deixou numa árvore de galhos secos. Daí foi descido pelos moradores da aldeia.

Ele ganhara uma borduna dos urubus, que lhe haviam ensinado a fazer roça grande. Esperou o estio e apanhou muitos peixes (não está explícito que foi com a ajuda da borduna). Com a borduna ele abriu uma roça enorme. Moradores de outras aldeias vieram pedir-lhe ajuda para abrir suas roças. Apesar da advertidos, alguém riu quando a borduna exercia seu trabalho e ela caiu. Daquele dia em diante só puderam derrubar roças a machado.

A mulher-estrela O mito da mulher-estrela é contado pelos vários grupos timbiras. Há várias versões

disponíveis. Só Harald Schultz, em suas "Lendas dos índios Krahó" (Revista do Museu Paulista, Nova Série, volume 4, 1959) publicou três versões dos craôs (pp. 75- 86), dos quais eu tomei mais duas. Nimuendaju divulgou uma versão canela, na p. 245 de The Eastern Timbira (Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1946) e uma apinajé, nas pp. 124-6 de "Os Apinayé" (Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, tomo 12, 1950).

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Uma versão craô. Cada uma dessas versões traz algum detalhe importante e ao mesmo tempo omite ou dilui outros. Mas seria demasiado longo transcrever todas elas aqui. Por conseguinte, vou limitar-me a apresentar apenas uma, ainda não divulgada, que colhi dos craôs, e depois acrescentar detalhes divergentes ou esclarecedores que aparecem nas outras.

Havia um rapaz que não tinha casado nunca e os seus colegas já haviam casado todos. De vez em quando ele dormia no centro da aldeia, cantando toda a noite. Katxeré (uma estrela) pensou lá em cima: "Ah, eu vou casar-me com esse rapaz, porque ele não arranjou mulher; vou descer".

Na noite seguinte ele estava deitado no pátio e Katxeré desceu. O rapaz já estava dormindo. Ela se transformou em sapinho e veio pulando. Sentou-se na goela dele. Ele pegou-a com a mão e atirou-a para longe de si. Ela tornou a vir sentar-se na goela dele. Ele a jogou outra vez. Ela veio de novo. Ele jogou. Então Katxeré lhe disse: "Sou eu quem está vindo aqui e você me está jogando longe". Ela já se tinha transformado numa mulher alva, na praça da aldeia. O rapaz lhe respondeu: "Ah, eu estava pensando que era um sapo!". "Agora nós vamos deitar". Katxeré deitou e perguntou ao rapaz: "Você é rapaz solteiro?" "Sou solteiro". "Você não tem noiva não?" "Está me desgostando porque eu nunca achei noiva e estou solteiro todo o tempo". Katxeré disse: "Você é solteiro, eu sou também, eu não arranjei marido por lá, e toda a noite vejo você sozinho, e então eu vim até você para conversar, saber se você me quer e então nós casaremos". "É, dá certo para nós casarmos, porque, como você não arranjou, eu também não tenho, eu não faço questão, porque eu estou no tempo de casar, não acho mulher e agora estou achando". "Bem, agora nós dormimos". Dormiram.

Quando já estava amanhecendo, Katxeré falou: "Agora, você tem uma cumbuquinha?" "Tenho". O rapaz escondeu Katxeré na cumbuquinha, tampou-a, pendurou-a e foi para o mato. Quando voltou, destampou a cumbuca e Katxeré estava rindo para ele. Passaram-se muitos dias, ele sempe destampando a cumbuquinha e ela sempre rindo para ele e, de noite, ele a tirava da cumbuca e ia dormir com ela lá fora. Quando o dia vinha clareando, ele a colocava na cumbuquinha e ia banhar-se. A irmã do rapaz já estava cansada de ver ele tirar a tampa da cumbuca e rir: "Mas porque é que meu irmão ri para a cumbuquinha; talvez haja alguém. Quando ele for para o mato, eu vou destampar a cumbuca. Sempre que volta para casa, destampa a cumbuca e ri; talvez haja alguma coisa para ele". Quando ele saiu para o mato, a irmã foi falar com a mãe. "Oh mãe, eu quero subir e tirar a cumbuquinha para ver o que é que tem, porque todo o dia, quando ele chega do mato, destampa a cumbuca e ri". A mãe respondeu: "Não, não mexa com as coisas de seu irmão; ele pode chegar e ver mal fechada a tampa e vai zangar-se". A irmã do rapaz respondeu: "Não, não vou mexer em nada não, vou apenas ver". Subiu, apanhou, destampou e Katxeré riu; era bonitinha mesmo!" Aí a irmã tampou novamente, porém mal; desceu e foi contar para a mãe: "Oh, mãe, há uma coisa bonitinha mesmo, alvinha mesmo, destampei, ela riu para mim, conheceu, baixou o rosto; por isso é que seu filho destampa para rir para a cumbuca". Aí o irmão chegou, viu a tampa da cumbuca e falou, zangado: "Oh mãe, quem mexeu na cumbuca?" "Foi sua irmã. Ela mexeu, eu briguei e ela foi embora".

Quando já ia escurecendo, Katxeré falou ao rapaz: "Agora você manda fazer cama e eu vou sair, porque sua irmã já me viu". E o homem falou (com a mãe?): "Agora você vai fazer cama aí mesmo para mim, porque eu não vou mais dormir no pátio". Ela fez a cama. Ele tirou a cumbuca, desceu, destampou-a, saiu a moça. Ela conversou com a velha, com a cunhada. Não ia mais esconder-se não. O povo de outra casa veio e comentou: "Eta! Aquele rapaz casou com moça bonita mesmo". Nesse tempo os índios comiam toda espécie de coisa ruim do mato. Não havia mandioca, nem milho, nem arroz etc. Aí o rapaz já havia "mexido" (copulado) a moça (Katxeré), já a tinha emprenhado, e outro "ajudou" (a engravidá-la). Então nasceu o menino.

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Havia pés de milho na fonte e os periquitos gritavam nos pés de milho. Katxeré perguntou: "Onde é o banheiro (local de tomar banho) aqui?" O rapaz levou-a para a fonte e ela viu o pé de milho, com os galhos cheios de espiga. Ela viu os caroços no chão, que periquito tirava. Katxeré falou: "Vá buscar fogo, porque eu quero fazer paparuto desse milho, porque é comida boa". O marido foi até a casa e de lá trouxe o fogo. Ela acendeu, juntou milho, ralou no ralador de pedra, pisou, fez quatro paparutos grandes, moqueou e, quando estavam assados, tirou. Quebrou um pedaço e deu para o marido. Este não quis comer, com medo de morrer. Ela insistiu. O marido experimentou, comeu bem, bebeu. Levaram o paparuto para a casa. Mostraram-no aos outros e juntaram-se muitos para verem o paparuto. Comeram muito. A mulher falou: "Há muito (milho) aí, vão fazer paparuto, é comida boa, vocês estão comendo comida ruim, que não serve". Ensinou aos outros a fazerem paparuto e todos acharam bom.

Havia uma aldeia longe e Katxeré mandou buscar lá um machado. Mandou dois rapazes (de uns 20 anos de idade). No meio da estrada eles encontraram um velhinho (ficara velho porque tinha comido uma certa caça), na beira da estrada. Os rapazes lhes disseram: "Como vai, kederé?" "Como vão?" "Que está assando?" "Eu estou assando uma caça". "Nós queremos comer também!" "Não, sigam a viagem, se vocês comerem, ficarão velhos assim mesmo!" "Não, nós vamos comer porque estamos com fome". "Então arranjem uns paus, para depois poderem caminhar". "Vamos tirar, nós não vamos ficar velhos não, é mentira". Tiraram os paus, trouxeram e deixaram. Quando a caça estava assada, o velho a tirou da cinza, esfriou e repartiu, dando uma banda para os rapazes. Eles comeram. Deitaram para descansar. Dormiram. Quando acordaram, já eram velhinhos, caducos, não prestando mais para caminhar ligeiro. O velho lhes disse: "Eu estava dizendo para vocês! Agora vocês voltam para trás, vocês vão custar a chegar, não chegarão hoje, só daqui a três dias". E eles voltaram. Passaram dois dias, veio outro (rapaz) e encontrou com eles, soube da história e foi buscar o ferro (machado). No mesmo dia voltou, ainda passou de novo pelos dois velhos e chegou à aldeia antes deles. E lá disse: "Os dois velhos não chegam já não!" "Que velhos?" "Aqueles rapazes que foram, já estão velhinhos!" Mais tarde eles chegaram. Falaram-lhes: "Oh, por que fizeram isso! Foram comer a caça do velho, poderiam ter passado por ele sem parar; vocês não vão mais andar como antes!"

De manhã o povo foi cortar pé de milho; quebraram muito milho. Fizeram paparuto, pão de milho. Katxeré falou ao marido: "Agora você fazer uma roça para você ver eu plantar". Ele brocou, derrubou e, quando secou, queimou. Katxeré foi buscar semente lá em cima (no céu). Subiu daqui mesmo. Trouxe amendoim, abóbora, melancia, batata, inhame, mandioca, banana, fava, trouxe semente de tudo, arroz, olho de cana. Ela desceu e ensinou o marido a plantar tudo. A roça estava cheia de "legumes".

O filho de Katxeré nasceu e aquele que "ajudou" o marido dela (a fazer a criança) estava comendo coisa ruim, o que fez mal à barriga do menino. Katxeré se zangou. Foi fazer "remédio" para os dois "ajudantes" do marido. Tirou timbó (cipó que mata peixe) machucou no cuião, tirou a água (suco) do timbó, água escura, chamou-os e lhes deu para beber. Eles beberam e o timbó lhes fez mal à barriga, que inchou. Eles morreram. O filho de Katxeré morreu. E ela voltou para o koikwá (céu). O marido ficou na terra solteiro.

Ela ensinou ao marido tudinho o que se fazia com a semente quando estivesse boa e ele tomou conta da plantação até o tempo da colheita e colheu os "legumes" todos. Colheu arroz, milho, amendoim, batata, inhame etc. Todos os anos, daí por diante, punha roça. Os outros começaram a fazer roça também, porque essa era comida boa. Os outros aprenderam e já estavam fazendo roça e plantando aquelas coisas.

Comparação com outras versões e com o mito uári. Antes de mais nada é preciso esclarecer por que razão apresentei este mito timbira logo após o mito uári. É que ambos tratam das relações de um homem com uma mulher que mora muito longe; no mito anterior, no mesmo plano horizontal e, neste, no sentido vertical. Na verdade, essa direções devem ser relativizadas,

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pois no mito uári as aves que vão sendo encontradas pelo homem feio durante a sua viagem estão mais ou menos ordenadas das que voam baixo para as que voam alto. Assim, na primeira versão OroDao, o homem que caçava inhambu-galinha, ao empreeender a viagem vai encontrar gaviões, corujas, gaviões grandes e urubus, nessa ordem. A segunda versão limita-se a citar os urubus. Mas a versão Oro Bone, para o homem que caçava inhambus, dispõe as aves encontradas durante a viagem na seguinte ordem: mutuns, gaviões, gaviões grandes e japus. Os urubus aparecem depois, mas não durante o percurso. Por conseguinte, a mulher que o homem feio ouve ao longe do mito uári está numa posição equivalente à da mulher-estrela do mito timbira.

A versão canela do mito da mulher-estrela esclarece melhor o motivo de o rapaz não ter casado e estar sozinho a dormir no pátio central da aldeia: ele era muito feio e por isso as mulheres não o queriam. E, sem querer discutir aqui se o preconceito racial presente na sociedade brasileira contaminou as tradições timbiras, o rapaz tinha pele escura e chamava-se 'Tïkti, que significa "preto". Ora, no mito uári é também um homem muito feio que vai procurar a mulher que vive muito longe.

Quase todas as versões timbiras admitem que o milho era produzido por uma árvore que ficava junto ao local de banho usado pela aldeia. Excetuam-se a versão aqui apresentada e a canela, nas quais o milho crescia em alguns pés, tais como os de hoje, mas também à beira d'água; apenas se desconhecia sua comestibilidade. A segunda versão craô tomada por Schultz oscila entre duas suposições: dava numa roça de civilizado ou, sem se saber que era comida, se "plantava de boniteza". As versões apinajé e canela só falam do milho. Mas as craôs também dizem como a mulher-estrela introduziu o uso dos outros alimentos vegetais. Com exceção de uma, que admite que esses vegetais já existiam na terra, mas não eram conhecidos como alimento, as outras contam que a mulher-estrela voltou ao céu para de lá trazer sementes e mudas.

A mulher que vive longe, do mito uári, não ensina o uso dos vegetais comestíveis, como a mulher-estrela dos timbiras. Entretanto, as aves que vivem mais perto dela dão a um dos homens que tentam alcançá-la uma vara, conforme a segunda versão Oro Dao, ou uma borduna, conforme a versão Oro Bone, que, jogada na mata, derruba as árvores, de modo a abrir uma roça. Naquela versão, a clareira aberta com ajuda da vara doada pelos urubus era tão grande que faltou milho para cultivá-la. Por isso o homem plantou magicamente açaizeiros e de um caroço (ou mais?) de açaí, tirou os grãos de milho roxo. Por conseguinte, os uáris não deixam de ter também o tema da árvore do milho, embora de modo atenuado: o milho já existia, do açaí se tira apenas uma nova variedade.

Mas os urubus também dispunham de varas para fazer secar o rio de modo a permitir apanhar os peixes, conforme as versões Oro Dao. Na versão Oro Bone, eles dão uma borduna ao homem que pouparam, com a mesma propriedade, talvez a mesma borduna que derrubava árvores. Essa vara ou borduna lembra o timbó, cipó cuja seiva é usada nas pescarias coletivas para matar peixes. Obviamente o timbó não faz secar os rios, mas ele só pode ser utilizado quando as águas estão bem baixas e correm vagarosamente. Se esta associação da vara ou borduna dos urubus com o timbó é válida, então é possível apontar mais uma correspondência com o mito da mulher-estrela timbira. De fato, a versão que apresentei diz que a mulher-estrela matou os homens que tinham contribuído com o marido para fazerem seu filho, dando-lhes timbó, porque eles não estavam atentos às restrições alimentares. A primeira versão tomada por Schultz diz que ela ofereceu aos moradores da aldeia, para beber, uma grande cuia com uma infusão feita com raspas das casca do vegetal moyatoti, matando um grande número deles, porque um rapaz a tinha deflorado, antes que seu marido a tivesse tocado. Na terceira versão de Schultz, ela matou os cinco rapazes que a forçaram sexualmente cuspindo-lhes na boca enquanto dormiam. As versões canela e apinajé não contêm esse episódio; a canela apenas alega que a mulher-estrela teria ficado mais tempo e ensinado mais coisas se o seu marido não tivesse pressa em manter relações sexuais. Por conseguinte, a mulher-estrela manipula venenos, embora não seja para matar peixes, mas para vingar- se. E o motivo é quase sempre um abuso que envolve sexo: não preocupar-se com o bem

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estar daquele que ajudou a gerar, preceder o marido no defloramento. Isso não deixa de lembrar o desmesurado alongamento do pênis daqueles que ultrapassavam o limite recomendado para a penetração, no mito uári. Esses homens de longos pênis têm um correspondente no personagem no mito que será apresentado mais abaixo.

Na versão do mito da mulher-estrela que apresentei, há ainda o episódio dos dois rapazes que envelheceram ao comer a carne de um certo animal, cujo nome não é explicitado. Mas as versões canela e apinajé deixam claro que esse animal é a mucura (gambá, sarigüê). A versão apinajé atenua a desventura dos rapazes, dizendo que um curandeiro os fez voltar novamente à juventude lavando-os com uma grande quantidade de água. Porém, o mais surpreendente nessa versão é que a mulher-estrela se transforma em mucura para chamar a atenção da sogra para a árvore do milho e é na forma desse animal que sobe a árvore para derrubar as espigas.

Enfim, se a mulher-estrela traz o conhecimento dos vegetais cultivados, está por outro lado associada, pelo uso do veneno, à morte, e, identificando-se com a mucura, ao fedorento, ao podre. E isso a aproxima dos urubus do mito uári da mulher longínqua.

A mulher que se afasta para longe O primeiro mito aqui abordado, dos uáris, se refere a uma mulher que vive muito longe e

que é procurada por homens que querem ficar bonitos. O segundo, dos timbiras, trata de uma mulher que vem do alto do céu para se casar com um rapaz que não conseguiu esposa, por ser feio. O que vai ser abordado agora, também dos timbiras, tem por tema uma moça que se afasta cada vez mais da aldeia, até se tornar a origem de toda uma aldeia nova.

O mito foi registrado entre os craôs e os canelas. A versão mais extensa foi colhida entre os craôs por Harald Schultz e publicada nas pp. 144-151 do seu já referido trabalho "Lendas dos índios Krahó". Eu colhi duas outras versões craôs, uma delas publicada e outra referida nas pp. 318-21 do meu livro Ritos de uma Tribo Timbira. Dos canelas existe uma versão publicada por Pompeu Sobrinho nas pp. 200-3 de "Lendas Mehin" (Revista do Instituto do Ceará, tomo 49, 1935, pp. 189-217).

A versão de Basílio. Vou relatar aqui uma das versões craôs a que eu apenas fiz referências no meu livro. Ela me foi narrada por Basílio, durante uma caminhada, em 24 de janeiro de 1965, e eu a anotei depois, de memória.

Um homem tinha um filho e três filhas. O filho teve relações sexuais com a própria mãe. O pai, com vergonha, resolveu sair da aldeia e convidou as filhas para acompanhá-lo, se quisessem. Uma das filhas respondeu: "Eu vou também, pois não quero morar com cachorros" (referindo-se ao irmão e à mãe).

O pai transformou-se em cavalo e as duas filhas mais velhas em éguas. A caçula não conseguiu. Transformado em cavalo, o pai deflorou as duas filhas mais velhas. Já se havia esquecido do que lhe acontecera em casa.

Chegaram aonde Autxetpïruré estava tinguijando peixe. Autxetpïruré era um peba com um pênis compridíssimo, que enrolava em torno da cintura e do pescoço. O pai e as filhas, transformados, parece, em tep'kriti (martim-pescador), começaram a apanhar peixe. Autxetpïruré estava zangado porque aqueles passarinhos não o tinham ajudado a bater timbó e, no entanto, aproveitavam-se de seu trabalho.

A filha caçula, que não se transformara, foi apanhar peixe assim mesmo. Autxetpïruré pensou então que era ela quem estava apanhando peixe, gostou de sua pintura e perguntou-lhe como era que se fazia. Ela respondeu que moqueando- se. Autxetpïruré também quis moquear-se e ela lhe fez a vontade.

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Foram embora. A caçula voltou para ver Autxetpïruré, que lhe perguntou se já estava bom. Ela respondeu que tinha de ficar mais algum tempo. Pouco depois ele pediu para sair e ela o tirou. A água de seus "grãos" (testículos) e do seu pênis tinha esfriado as pedras.

Autxetpïruré os perseguiu. O pai fez um pé de buriti abaixar-se, subiu nele com as três filhas e ele alteou-se. Quando Autxetpïruré chegou perto, a filha mais nova cuspiu lá de cima e ele os percebeu. Perguntou como tinham subido. Respondeu o pai que por uma corda. Pediu Autxetpïruré que o içassem. Eles o içaram até o meio e depois o deixaram cair.

Autxetpïruré transformou-se então em paiti ("companheiro"do caranguejo d'água). O pai e as filhas desceram e se transformaram em veados campeiros. O pai continuava a ter relações sexuais com as filhas. Depois transformaram-se em emas. E o pai continuava a ter relações sexuais com as filhas mais velhas.

A caçula não conseguia transformar-se. Achou o caminho das seriemas e o seguiu. Ficou no alto de uma árvore. Um menino seriema veio buscar água e ela, com cuspe, parece, partiu a cabaça. O menino voltou para a casa. Os seriemas- machos não queriam dar-lhe comida. O menino então lhes falou: "Se vocês não me derem comida, não lhes direi onde está uma moça bonita para vocês terem relações sexuais." Os machos logo lhe deram comida. Quando estava comendo, o menino disse: "Era mentira, não há moça nenhuma!" Então os machos lhe tiraram a comida. O menino tornou a dizer: "Se não me derem comida, não lhes digo onde está uma moça bonita!" Deram-lhe a comida novamente. Ele comeu e depois foi mostrar.

Um macho logo ordenou que a moça descesse. Assim que ela desceu, ele derrubou-a e foi logo introduzindo o pênis. Os outros também foram introduzindo os pênis em toda parte do corpo da moça: entre os dedos dos pés, no olho, atrás da orelha, no sovaco. A moça morreu da catinga.

Eles então tomaram o clitóris e o dividiram em muitos pedacinhos. Cada macho colocou um pedacinho numa forquilha. As forquilhas estavam colocadas em círculo. Foram caçar, parece. Quando voltaram, os pedacinhos do clitóris se tinham transformado, cada um numa mulher e cada mulher estava fazendo sua casa. O pedaço de clitóris daquele que tinha apertado mais a moça não se tinha transformado. Então ele o molhou e foi embora. Quando voltou, já se tinha transformado em mulher. Os filhos dessas seriemas-machos com essas mulheres nasceram seriemas.

Comparação com outras versões e com os mitos antece dentes. O personagem mais estranho do mito que acaba de ser apresentado é Autxetpïruré. Seu nome seria composto dos termos autxet, que é o tatupeba, e iapï, que significa rabo, cauda. Não sei exatamente o que significa ruré, apenas que a partícula ré indica diminutivo. É possível, portanto, que esse nome queira dizer "Rabinho de Tatupeba", o que seria uma maneira irônica de se referir à principal característica do personagem que é a posse de um pênis descomunal. Essa característica nos remete imediatamente àquele homem, do mito uári, que não obedece à recomendação da mulher que vive longe de não penetrá-la muito profundamente. Se no mito da mulher longínqua o enorme pênis é o resultado malogrado do homem que foi em busca da beleza, no mito craô, Autxetpïruré, apesar de já marcado por esse aleijão, quer embelezar-se com a pintura corporal da moça, e, enganado, aceita deitar-se no moquém, isto é, entre camadas de pedras incandecentes. Nas outras versões não é a moça, mas sim o pai dela que o engana. Além disso, ao invés de ir em busca de uma mulher que está longe, Autxetpïruré, perseguindo a moça, afasta- a cada vez mais de sua casa, até um buriti, onde ela acaba também por perder-se de seu pai e irmãs, já transformados em animais.

Mas quem é essa moça? Ela está com o corpo pintado. Embora a versão aqui apresentada seja omissa quanto a isto, a moça traz consigo um objeto: uma pequena cuia de cabaça, na versão que publiquei em meu livro; uma pulseira, na versão canela; um pente, segundo uma informação

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avulsa de um craô, que também assegurou que, se ela o abandonasse, conseguiria transformar-se me animal como seu pai e irmãs, pois, como disse Varela, um outro craô, cavalo não leva enfeite. A marca da sociedade está tão gravada nessa moça, com pintura corporal e portadora de um artefato quiçá ritual, que mesmo após sua morte seu órgão sexual dá origem ao círculo de casas, habitadas por mulheres, de uma aldeia. Talvez não seja uma aldeia qualquer, mas a primeira aldeia, a julgar por uma observação do mesmo Varela, que admitiu que este mito, tal como o de Sol e Lua e o de Adão e Eva, explica a origem do homem.

Este mito parece se desenvolver ao longo de uma linha em cujas extremidades há dificuldade no estabelecimento de relações de parentesco adequadas. Numa, a do ponto de partida da narrativa, há como que um excesso de parceiros sexuais, uma vez que a regra do incesto não é respeitada. Na outra, o ponto de chegada, onde vivem as seriemas, não há parceiros sexuais, uma vez que as aves são todas machos. Essa observação não tem apoio unânime de todas as versões. Na versão tomada por Schultz, a mulher que dá motivo ao afastamento dos membros de sua família não é incestuosa, mas simplesmente adúltera. E na versão canela, suas relações extramaritais têm um ar de incesto, pois são com o genro. De qualquer modo, a mulher tem um excesso de parceiros. A versão que publiquei em meu livro omite as relações sexuais do pai com as filhas depois que se transformam em animais; o mesmo acontece com a versão canela. Na versão de Schultz, só os leitores familiarizados com o português falado pelos craôs podem percebê-las na frase: "E pai dele já tava também fazendo nos menino dele." Quanto ao episódio final, a versão de Schultz diverge das que tomei por mostrar explicitamente a presença de seriemas fêmeas; e mais: junto com as seriemas estão também gaviões, urubus e urubus-reis. E na versão canela, a moça não encontra seriemas e sim gaviões, sem nada que possa sugerir que fossem apenas machos; sem dizer que falta a transformação final do sexo da moça em casas habitadas por mulheres. Em suma, a falta de parceiros sexuais entre as seriemas só pode ser deduzida das versões que tomei. Mas reforçam essa impressão a voracidade com que as seriemas- machos se lançam sobre a moça, sem dizer do comportamento anômalo entre parentes cognáticos, que, pela exigência de retribuição imediata, mas parece de afins. Enfim, a moça instala ou reestabelece a ordem social entre as seriemas.

Se o mito timbira da mulher-estrela se desenvolve segundo um eixo céu-terra e o mito uári da mulher longínqua segundo um eixo horizontal, mas equivalente àquele, a julgar pelas aves que estão ao longo do mesmo, o mito da moça que foi deslocada para longe parece desenvolver-se numa linha horizontal. Os animais em que o pai e as filhas se transformam são sempre terrestres e corredores: cavalos, veados campeiros, emas. Os animais que a moça vem finalmente a encontrar, as seriemas, também são terrestres e corredores. Na versão divulgada por Schultz, a moça é ainda por duas vezes ajudada a atravessar um rio por um jacaré, que depois a persegue. Entretanto, há duas figuras no mito associadas ao mundo subterrâneo: Autxetpïruré e o buriti. No livro Ritos de uma Tribo Timbira, discutindo os grupos da praça craôs, cheguei a propor que o grupo Autxet (Tatupeba) seria o inverso do grupo Txon (Urubu). Assim como o urubu é a ave que voa mais alto, os craôs admitem que o tatupeba é o animal que cava mais fundo. Se os membros do grupo Urubu são aqueles que apanham os meninos para colocá-los em reclusão num determinado rito, os membros do grupo Tatupeba, são aqueles que, num outro rito, vão conduzindo os reclusos para cada vez mais longe da aldeia, até serem detidos por parentes e amigos formais dos jovens. O buriti, que é o último ponto em que o pai e as filhas transformados em animais ficam juntos com a filha que não consegue transformar-se, por sua vez é o vegetal que recobre o mundo subterrâneo, habitado pelos porcos queixadas, que, entretanto, não aparecem neste mito.

Enfim, vale a pena chamar a atenção para o nome pessoal do pai da moça, o marido da mulher incestuosa: Pëdwö. É o nome de um instrumento sonoro, uma buzina ou berrante, formado por uma cabaça comprida, furada nas duas extremidades, no bojo e no pedúnculo. O furo do pedúnculo é encaixado a um gomo de taquara, aberto na extremidade conectada à cabaça e fechado por um nó da outra extremidade, junto à qual está entalhado um furo retangular lateral,

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pelo qual o instrumento é soprado. Com ele não se toca nenhuma melodia, mas é acionado por jovens quando desfilam pelo caminho circular da aldeia para convidarem as mulheres a irem cantar no pátio central, pelos jovens que pulam diante das mulheres que cantam, por visitantes que se aproximam da aldeia ou pelos anfitriões que os aguardam. A mulher-estrela, por sua vez, depois de descer do céu, mas antes de ser apresentada à família do marido, é escondida por este numa cabaça, que tem uma tampa, amarrada por um nó; na segunda versão tomada por Schultz, essa cabaça é chamada de pëdwö, porque é acompridada, tal como as usadas para confecionar o instrumento sonoro. Já em duas versões do mito da mulher longínqua, o homem que vai procurá-la senta-se num recipiente de cabaça e transforma-se num patinho. Não fica claro se o patinho fica dentro da cabaça, que lhe serve de canoa, ou se, ao entrar na cabaça, o conjunto homem-cabaça se metamorfoseia por inteiro num patinho.

É um pouco difícil, entretanto, atinar com algo em comum referente à cabaça nos três mitos: embarcação na grande viagem do mito uári, enconderijo nos primeiros dias dentro de uma casa estranha no mito da mulher-estrela, e o nome do pai que conduz as filhas que se afastam de casa no último mito apresentado. Como nome de instrumento sonoro, pëdwö evoca o cântico ou o toque de tambor da mulher longínqua no mito uári. A moça violentada pelas seriemas morre por causa de sua catinga; por causa da zoada e cansaço, diz a versão que publiquei no livro; de medo dos pênis, diz a versão de Schultz. Por outro lado, as aves que visitavam a casa da mulher longínqua, sentiam o cheiro do homem escondido debaixo do pote de cerâmica ou do paneiro. No que tange a sons e odores, o mito da mulher-estrela é omisso.

Relação dos mitos com a estrutura social Os mitos aqui examinados referem-se aos vegetais comestíveis, à agricultura, ao veneno de

pesca, à brevidade da vida, mas também, talvez com mais clareza no último, à organização da própria sociedade. Seria preciso reler com muita atenção a dissertação de Denise Maldi para averiguar se ela incluiu uma idéia que aflorou durante as conversas que tive com ela durante a elaboração da mesma. Essa idéia seria a de interpretar a feiura do personagem do mito uári como a impossibilidade de encontrar cônjuges permitidos entre as pessoas que lhe estavam próximas, daí ter de procurar uma mulher distante. O retorno do personagem transformado num belo homem corresponderia à reabertura de possibilidades matrimoniais entre os próximos até então proibidas. E isso estaria relacionado à operação da terminologia de parentesco de tipo Crow mantida pelos uáris, bem como por grupos indígenas vizinhos seus, e ainda pelos timbiras.

Mostrar com mais detalhes essa correspondência exigiria uma explicação detalhada da terminologia Crow, que não cabe aqui. Vou tentar fazê-lo com poucas palavras e com o esquema abaixo. É irônico que, para deixar claro o que quero mostrar, eu tenha de lançar mão de um esquema que também preciso de explicar. Para começar, ao contrário dos esquemas normalmente apresentados nos textos etnológicos, este tem mais de um "ego" (a figura que representa aquele que diz os termos de parentesco). Mas foi a maneira que encontrei para representar graficamente a forte identificação, no uso dos termos de parentesco, entre os membros do mesmo clã, linhagem, casa ou qualquer outra unidade matrilinear ou matrilocal. No esquema, cada uma dessas unidades está marcada por uma cor diferente.

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Se um homem (representado por um triângulo) da geração mais antiga da unidade "preta" estabelece uma relação matrimonial (representada por uma linha grossa vermelha) com uma mulher (representada por um círculo) da mesma geração da unidade "azul" e passa a chamá-la de "esposa", todos os demais homens dessa mesma unidade "preta" também chamarão a dita mulher de "esposa". Conseqüentemente, chamarão as mulheres da unidade "azul" das gerações subseqüentes de "filha", "neta", "bisneta" (se houver termo equivalente a este último na sociedade em questão). O homem da geração seguinte da unidade "preta" não poderá se casar com a mulher de sua geração da unidade "azul", a que chamará de "filha", nem com a da geração seguinte, que será sua "neta". Casa-se então com uma mulher de uma outra unidade, a "verde". A esta mulher também todos os homens da unidade "preta" chamarão de "esposa" e, às das gerações seguintes, de "filha" e de "neta". Isso tornará impossível ao homem da terceira geração da unidade "preta" encontrar esposa na unidade "verde" e ele a procurará na "amarela".

Em resumo, cada casamento de um homem da unidade "preta" fecha as possibilidades matrimoniais dos homens da mesma unidade das gerações seguintes na unidade em que aquele se casou. Assim haverá um momento em que todas as unidades estarão fechadas para um homem da unidade "preta" (o da base do esquema) e ele somente poderá encontar esposa fora da sociedade, no caso aquela representada no esquema com um círculo púrpura e a ele unida por uma linha vermelha tracejada. Esta vem a ser a mulher longínqua dos mitos examinados. Como a relação com ela não é viável, o homem se casa com uma mulher da unidade "azul", quebrando o bloqueio

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instaurado pelo casamento do homem da geração mais antiga da unidade "preta" e reiniciando o ciclo.

Esse movimento de afastamento e retorno é que parece estar refletido no personagem mítico que vai feio e volta bonito. Como a mulher longínqua do mito está nas bordas do mundo social, penetrá-la demasiado pode ser uma maneira de ultrapassar os limites, de cair do outro lado. O longo pênis resulta da inércia de um movimento na direção das bordas do social que não foi retido a tempo.

Convém alertar que esse esquema é fruto de uma certa precipitação em explicar esses mitos. É por demais simplificado e não leva em conta alguns aspectos etnográficos importantes. Em primeiro lugar, a própria limitação de espaço impede que se desenhe mais de um irmão ou irmã em cada geração de cada unidade. Dois ou mais irmãos poderiam se casar em unidades distintas. Isso faria com que as possibilidades matrimoniais se fechassem mais rapidamente. Em compensação, uma sociedade real poderia ter muito mais unidades do que as representadas no esquema. Outra dificuldade é que nem todas as sociedades que contam esses mitos têm unidades matrilineares ou matrilocais. Além disso, outras instituições relacionadas ao sistema Crow, como a transmissão de nomes pessoais, não foram consideradas. No que tange aos timbiras, as dificuldades do esquema convidam (a mim inclusive) a uma nova leitura da dissertação de mestrado de Maria Elisa Ladeira, A Troca de Nomes e a Troca de Cônjuges, defendida na Universidade de São Paulo em 1982.

Outras transformações Eu poderia parar por aqui. Mas apenas para mostrar como há um sem número de maneiras

de um mito transformar-se, vou referir-me a mais duas narrativas. Tantas transformações chegam a pedir a sistematização de uma nomenclatura: inversão, simetria, contraste, avesso etc. Mas de que? De características de um herói, num caso; das relações entre os personagens, noutro; das disposições do palco, num terceiro.

O clitóris alongado. Trata-se de um mito macurap incluído nas pp. 29-32 da coletânea de Betty Mindlin, Moqueca de Maridos (Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos [Record], 1997), a que ela deu o título de "O amante txopokod e a menina do pinguelo gigante". Os macurap vivem em Rondônia, falam uma língua da mesma família da língua dos tuparis, dos quais são vizinhos, e também não vivem longe dos uáris. Aqui vai o resumo do mito:

Uma mulher casada que não gostava do marido tinha encontro com um amante da mesma aldeia na floresta. Para evitar as investidas do marido, passou a dormir à noite longe dos demais, junto à parede de palha da maloca. Uma noite sentiu seu corpo acariciado por alguém que, de fora da maloca, introduzia os braços através da parede de palha. Pensando tratar-se do namorado, ela se deixou acariciar. Isso passou a acontecer todas as noites. As mãos que procuravam seu corpo demoravam-se mais no clitóris, puxando-o e repuxando-o. Ela começou a notar que seu clitóris ficava cada vez mais comprido e passou a esconder-se dos demais para que não o percebessem.

Como ele ficasse cada vez maior e já se arrastasse pelo chão, ela resolveu procurar ajuda junto a sua mãe, contando-lhe tudo. A mãe logo percebeu que não poderia ser o amante que se comportava dessa maneira, e disse à filha que só poderia ser um espírito, um fantasma, txopokod. A mãe então convocou os parentes para darem cabo do txopokod. A mulher foi dormir no mesmo lugar e, quando sentiu-se acariciada, ela agarrou o braço de quem a tocava e deu o alarme. Os homens da casa acorreram e cortaram o braço. Houve um estrondo e o txopokod fugiu.

O braço, todo enfeitado, foi colocado numa panela de cerâmica para cozinhar. Entretanto, por mais que fervesse, não amolecia. Pior ainda, a noite não terminava, o dia não vinha. Os

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moradores com medo dos txopokod, que devoram os seres humanos no escuro, começaram a providenciar mais lenha, até que essa veio a faltar. Lançaram mão do milho e da mandioca para queimar. Os txopokod aumentavam de número no terreiro. Os coelhos vieram ajudar o moradores, cantando para distrair os txopokod. Os moradores tentaram pisar o braço num pilão, mas nem ele e nem seus enfeites se quebravam.

Os moradores então atiraram o braço no terreiro. O txopokod do qual ele tinha sido amputado pegou-o e colocou-o no lugar. Mas ele estava quentíssimo. Por isso o txopokod mergulhou num igarapé, depois passou para outro e assim por diante até chegar a um que terminou de esfriá-lo. Esse episódio explica as diferenças de temperatura das águas dos igarapés da região. O dia amanheceu. O clitóris da mulher foi cortado e jogado na água, onde virou o poraquê. A cuia usada para transportá-lo virou caranguejo.

Ao invés do homem de longo pênis dos mitos uári ou craô, aqui temos uma mulher de clitóris imenso. Ele não resulta de uma penetração profunda depois de uma longa viagem; mas sim de uma manipulação repetida nas bordas da maloca, onde ela dorme afastada dos outros moradores. A parede de palha é como que o limite entre o social e o não-social: de um lado, os moradores, a luz do fogo; do outro, o escuro, a noite, os txopokod. O txopokod e a mulher que ele acaricia invertem cada qual em um aspecto moça craô que não conseguia transformar-se em animal: a moça craô arrasta o domínio do social consigo, para onde quer que vá; o txopokod está tão ligado à noite e ao não-social que guardar o seu braço impede que o dia amanheça. E se o clitóris longo dá origem ao poraquê, o sexo da moça craô dá origem ao círculo de casas habitadas da aldeia. E um detalhe final: a cuia que transportou o clitóris alongado transformou-se em caranguejo, tal como Autxetpïruré ao cair do buriti.

Origem do Sete-estrelo. Nas pp. 333-9 de "Folclore Krahó" (Revista do Museu Paulista, Nova Série, vol. 13, 1961/2, pp. 333-75), Vilma Chiara apresenta um mito que constitui uma clara transformação daquele da moça que foi afastada para longe. Segue o resumo.

Um homem, sua mulher e seus sete filhos, todos do sexo masculino, estavam morando sozinhos, fora da aldeia. O pai foi caçar. Os filhos, na falta de outras mulheres, resolveram ter relações sexuais com a própria mãe. O caçula não queria, mas acabou cedendo à pressão dos mais velhos. Quando a mãe chegou com batatas, eles lhe disseram que preferiam outra coisa e, percebendo do que se tratava, ela aquiesceu. Todos compularam com ela.

O caçula, entretanto, envergonhado de seu ato, contou tudo ao pai, quando este chegou da caçada. Diante do acontecido, o pai preferiu primeiro fazer sua refeição, depois dormiu e, no dia seguinte, providenciou um feixe de cipós, com que surrou cada um dos filhos, inclusive o caçula. Em seguida, ele se trancou na casa e incendiou-a, dela saindo transformado em gavião, daqueles que não pegam pinto, mas gostam de comer lagartas ("curicá", segundo o texto). A mãe resolveu também transformar-se em gavião e foi embora com o pai.

Os irmãos arrumaram suas coisas e viajaram. No caminho o caçula ficou com sede e eles cavaram na cabeceira de um brejo à procura de água. A água borbulhou e saiu em quantidade, formando um grande ribeirão. Os irmãos o atravessaram, menos o caçula, que ficou com medo. O irmão do meio o estimulou a atravessar, esperando-o na outra margem, e ele mergulhou. Um jacaré o pegou e o levou para o fundo, deixando escapar seu arco, que boiou. O caçula, alegando frio e necesidade de esquentar-se, conseguiu convencer o jacaré a aproximar-se da margem, onde ele agarrou um galho e escapou, correndo para a casa do inhambu, onde estavam seus outros irmãos.

O jacaré o perseguiu. O caçula conseguiu que o inhambu o escondesse debaixo de um monte de mato que havia capinado. Quando o jacaré foi embora, o inhambu incentivou o caçula a xingá-lo e ele retomou a perseguição. Uma ema socorreu o caçula, escondendo-o debaixo da asa. O jacaré se afastou mas o caçula o xingou novamente. Outra vez perseguido, foi encondido

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por um macaco debaixo das cascas de jatobá que ele estava quebrando. A cena se repete: o jacaré desiste, o menino o xinga e ele retoma a perseguição. O menino pede socorro ao gambá (cangambá), que levanta o rabo, "mija" no jacaré, matando-o com sua catinga. O cangambá encarregou o inhambu de rolar o jacaré para dentro do rio.

O caçula retoma a viagem com seus irmãos. Chegaram a um ribeirão muito grande, talvez o mar, e nele mergulharam numa certa ordem, ficando o caçula por último. Assim formaram o Sete-estrelo (Krodré).

No mês de junho, quando o Sete-estrelo mergulha (desaparece a oeste), escuta-se um grande barulho, brrrrão! No mês de julho, volta a apresentar-se do outro lado (leste).

Tal como o mito da moça que foi afastada para longe, este se inicia com um incesto. Entretanto, se naquele o ato reprovável resulta numa separação de mãe e filho incestuosos de um lado e pai e filhas de outro, neste o pai e a mãe vão para um lado e os filhos para o outro. Naquele mito, a mocinha caçula não conseguia se transformar em animais, como as irmãs e o pai. Neste, o rapazinho caçula, ainda que a contragosto ou medo, sempre acaba por acompanhar seus irmãos. Neste mito não existe um personagem perseguidor com pênis longo que contribui para afastar os outros personagens para longe. A perseguição fica a cargo do jacaré, também presente naquele outro mito, em episódio bastante similar. O último animal encontrado pelos irmãos antes da chegada ao destino celeste, o cangambá, é marcado pelo mau odor, tal como os urubus da mulher que mora longe do mito uári, a mucura, que se identifica com a mulher-estrela do mito timbira, ou as seriemas que matam com a sua catinga a moça que violentam. Nesse lugar longínquo também não falta a contrapartida sonora, o grande barulho que faz o Sete-estrelo ao mergulhar a oeste, tal como o canto ou tambor da mulher longínqua do mito uári, ou a zoada das seriemas, também citada como alternativa para explicar a morte da moça violentada.

Sumári

o de

Mitos Indígenas

Pági

na inicial

7a aula Os Irmãos no Sudoeste da Amazônia

Julio Cezar Melatti

Modificado em abril de 2003

Sumári

o de

Mitos Indígenas

Pági

na inicial

Em 1989 publiquei "Dos Alicerces Somáticos das Culturas Panos Considerados por Elas

Próprias", na Série Antropologia 78 (Brasília: UnB-IH-DAN). Uma versão ampliada e modificada do mesmo foi incluída no volume Roberto Cardoso de Oliveira — Homenagem (Campinas: IFCH-Unicamp, 1992, 143-166) com o título "Enigmas do corpo e soluções dos panos".

Nesse trabalho comparo entre si um rito dos matis, um mito dos marubos e três mitos dos caxinauás, que envolvem idéias relativas ao corpo humano e ao seu desenvolvimento, mantidas pelos índios que falam línguas da família pano, do

Versão

ampliada

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sudoeste da Amazônia. Em todos os mitos abordados, mas não no rito, está explícita a disputa entre irmãos (primos paralelos inclusive) pelas mesmas mulheres. Aqui faço apenas uma apresentação resumida e modificada do artigo.

Os Mariwin , dos matis No artigo "Pères Fouettards en Amazonie. Bats-moi, mais Tout Doucement" (L'Univers du

Vivant, n° 20, pp. 99-115, Paris,1987) Philippe Erikson descreve e analisa personagens rituais, os Mariwin, que visitam as malocas dos matis, índios da família lingüística pano, habitantes do curso médio do Ituí, um sub-afluente da margem direita do Javari, o rio cujo leito assinala a fronteira entre o Brasil e o Peru.

Rostos cobertos com máscaras de cerâmica, corpos untados com lama e guarnecidos com folhas de samambaias rasteiras, os Mariwin irrompem na maloca, caminhando agachados e trazendo feixes de varas de palmeira. Eles não falam, apenas emitem um grito grave e prolongado e se comunicam com os moradores através de grunhidos e gestos. Com as varas golpeiam as crianças cujas idades estejam na faixa entre dois anos e a adolescência. Aquelas que não se oferecem espontaneamente aos golpes, sobretudo as menores, que correm aterrorizadas e se escondem, são levadas à força, geralmente pelos adolescentes, de modo que os Mariwin as alcancem. Cada vara serve apenas para um só golpe; quando os feixes se acabam, os Mariwin vão-se embora, caminhando de costas e agachados.

Acreditam os matis que as varadas combatem a preguiça. Quanto às crianças com menos de dois anos de idade, os Mariwin se limitam a incitá-las a andar, tocando-lhes os pés com bastões curtos envolvidos em folhas. O rito, por conseguinte, se realizaria em favor do desenvolvimento e bem-estar das crianças. Os Mariwin também batem nas mulheres grávidas, o que, tal como os golpes simulados pela "madrinha" no recém-nascido, ou aplicados pelo tio materno na mulher que entra na menopausa, se relaciona com o crescimento e a fertilidade.

Erikson contrasta a ação dos Mariwin com a maneira paciente e cheia de compreensão com que os pais e outros adultos matis tratam as crianças na vida cotidiana, mostrando como este rito seria um modo de discipliná-las indiretamente, o que o leva a lembrar a semelhança daqueles com os Pères Fouettards do folclore francês.

No passado os Mariwin apareciam sobretudo no rito da tatuagem dos jovens, quando se consumia bebida fermentada de milho. Como os Mariwin são também chamados de "espírito dos artefatos de madeira de pupunheira", o pesquisador mostra como o rito se articula em torno de um eixo que tem como polos os dois vegetais: o milho, planta de roça recém-aberta e de crescimento rápido, e a pupunheira, que sucede ao primeiro, dominando as roças antigas, fornecedora dos espinhos para tatuagem, e exemplo de acumulação de força ao longo dos anos, cada vegetal com características desejáveis, respectivamente, para a juventude e a maturidade humanas.

Wasa, dos marubos Quando pela primeira vez bati os olhos nas fotografias que ilustram o artigo de Erikson,

chamaram-me a atenção os tufos de algodão que as máscaras dos Mariwin trazem em torno da boca. Eles me lembraram de Wasa, herói da mitologia marubo, cujo nome é o do macaco-de-cheiro (Saimiri sciureus), também chamado jurupixuna, termo tomado à língua geral, ou pela tradução boca-preta, denominação que certamente decorre da mancha preta que traz ao redor da boca, conforme a descrição de Rodolpho von Ihering no seu Dicionário dos Animais do Brasil (São Paulo: Editora Universidade de Brasília, 1968). Vizinhos meridionais dos matis, falantes de um idioma da mesma família lingüística, moradores das cabeceiras do mesmo rio Ituí e de outro afluente do

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Javari, o Curuçá, os marubos contam a história de Wasa como um dos episódios do mito de Wenía, que descreve a origem de sua sociedade e de sua cultura.

Wasa, ou Ni Wasa, se lhe acrescentarmos o prefixo indicador de pertinência da seção dos Nináwavo, era o nome de um homem que não podia sustentar-se sobre as pernas. Por isso, seu irmão, Shopa ou Neshopa, quiçá Ni Shopa, costumava carregá-lo às costas.

Tendo Shopa construído uma nova maloca e plantado uma roça, resolveu convidar os moradores de outras malocas para uma festa. Enquanto ele se ausenta para buscar os convidados, Wasa, chorando, sentado debaixo da rede dela, tenta seduzir Maya, esposa do irmão. Aconselhada pela mãe de Wasa, ela o recebe na rede. E Wasa dela retira os pelos pubianos, cortando-os com os dentes. Shopa chega de volta, canta como uma onça, senta- se nos bancos paralelos junto à entrada da maloca e ordena à mulher que lhe traga caiçuma. Maya o atende, procurando esconder o púbis com a cuia. Mesmo assim Shopa percebe e reconhece a obra de Wasa.

Os convidados chegam, pulando, e Shopa lhes oferece alimento. Em seguida ele (ou Wasa) lhes toma as flechas, os cavadores de madeira de pupunheira, as lanças, os adornos plumários de cabeça. Muito provavelmente se tratava do rito de Wakayá ou Tamaméa, em que os convidados chegam derrubando plantas da roça, esburacando o quintal e mesmo cortando a palha da cobertura da maloca até que o anfitrião lhes peça para cessar os estragos e, durante a refeição que então lhes oferece, lhes tome o que trazem.

Depois que os visitantes se retiraram, Shopa tomou dentes de onça, aqueceu-os e bateu com eles nos joelhos de Wasa. Em seguida o pôs sentado sobre um ninho de formigas ima e, depois, em cima de um ninho de tocandeiras. A mãe então pediu a Shopa que o poupasse.

Wasa se levanta com ajuda de um pau, apoiando-se também nos bancos paralelos. Andando de joelhos, sai da maloca pela porta da frente e torna a entrar pela de trás. Apanha uma lança para apoiar-se. Pega Maya pela mão, convidando-a para tomar banho com ele, ainda que ela já o tivesse feito com o marido. Dançou com ela dentro da maloca e continuou dançando a caminho do local do banho. Aí chegando, atravessaram para o outro lado. Chegaram à arvorezinha chiwã shosho. Wasa limpou todo o platô e foi ajuntando flores de chiwã, frutas de barreiro (piti eshe) de que quatipuru comera, frutas de matá-matá (niwã), flores de marajá (chini), flores de tachizeiro, leite de samaúma, asas de cigarra. Tomou chá de tabaco. Tirou cauda de japu, juntou com caroços e fez frio. Todas essas coisas que ele ajuntou se transformaram, viraram gente, os Chaináwavo, Nináwavo, Yenenáwavo. Wasa foi-se embora, apoiado em osso de anta. Pôs enfeite de contas em cima de folhas de muru- muru, que se transformaram em marimbondos. Fez (cinto de?) cauda de onça. E foi-se embora.

Até aqui um resumo de versões autônomas da história de Wasa. Porém, quando ela é tomada como um episódio dentro do mito maior de Wenía, não se faz referência à disputa com o irmão. Conta-se como a seção dos Nináwavo, tal como as outras seções marubos, saiu do chão, sendo Wasa o primeiro a emergir, seguido de sua irmã Tẽpe. Os membros da seção traziam diademas de penas de cauda de japu e os homens traziam rabos de onça na cintura. Wasa fez um campo. Depois tirou olho de babaçu. Em seguida amarrou cipó em torno do campo, partiu a palha do babaçu e pendurou-a no cipó. Apanhou flores de tachizeiro, flores de chiwã, fazendo um monte de flores em cima do campo. Então afastou-se, gritou, fez vento, que espalhou as flores, girou com elas, e os Chaináwavo sairam das flores. Depois Wasa foi-se embora, na direção onde o sol entra, indo morar perto de Kana Mari.

Minha impressão inicial de semelhança entre os personagens matis e marubo, a julgar pelo detalhe que a provocou, não parece à primeira vista receber apoio da interpretação de Erikson. De fato, eu suponho, sem o socorro de nenhuma informação indígena, que o nome do herói mítico marubo se deva a uma correspondência entre o círculo negro em torno da boca do macaco-de-cheiro e a depilação do púbis de Maya. Por sua vez, considerando que a máscara do Mariwin

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dispensa a maioria dos adornos do rosto matis para concentrar-se apenas nos dois mais importantes — os furos no rosto aos lados das narinas guarnecidos por batoques que, por vezes, nas máscaras são substituídos por duas grandes penas de arara, e os furos em torno dos lábios, acentuados nas máscaras pelos tufos brancos (e não pretos, de se esperar caso estivessem relacionados com o ato de Wasa) —, Erikson o coloca numa posição de superhomem, alguém que estaria numa classe de idade superior às demais (Erikson 1987: 113). O andar agachado, pois o Mariwin somente se ergue no momento de vibrar o golpe, é tomado pelos matis, não como uma deficiência, mas como um sinal de perfeição, pois é nessa posição que um homem deixa seu banco para distribuir a carne, gesto valorizado e sociável por excelência.

Ora, diante do superhomem Mariwin, Wasa nos aparece inicialmente como um aleijado e marcado pelo gesto não sociável de cobiçar a esposa do próprio irmão. Não obstante há muito em comum entre os dois personagens. Assim, se os Mariwin vivem em buracos e são considerados como ancestrais, Wasa é o primeiro a sair do chão, à frente da seção dos Nináwavo. Além disso, há uma distinção entre os Mariwin: os negros seriam mais velhos e viveriam longe dos matis, em buracos à beira dos rios, enquanto os vermelhos, mais novos, habitariam mais próximos, também em buracos, nas roças abandonadas. Essas posições nos lembram vagamente o longo percurso dos ancestrais dos marubos, desde os buracos onde se originaram, junto à boca de um grande rio, subindo até o lugar onde hoje vivem.

Por outro lado, se os Mariwin disciplinam indiretamente as crianças, Wasa é punido diretamente pelo irmão. E ainda, se as varadas dos Mariwin contribuem para combater a preguiça e promover a fertilidade e o crescimento, a punição sofrida por Wasa o leva a procurar meios de locomover- se por conta própria e a criar novas seções marubos.

Curiosamente vegetais e animais capazes de agredir e provocar dor são usados tanto para castigar Wasa (dentes de onça; formigas ima e tocandeira) como para este criar novas seções (o marajá, espinhoso; o taxizeiro, árvore desde broto permanentemente coberta pelas formigas taxis).

Mas é o grito de Wasa, provocando um vento que rodopia com as flores e outros materiais ajuntados por ele, que faz surgirem as seções. Aliás, segundo uma informação, Wasa grita o nome dessas seções. Por conseguinte, Wasa, além de chorar, também fala, enquanto os Mariwin mujem, grunhem, mas não falam. O grito de Wasa é fecundo, talvez por tomar chá de tabaco, substância importante no xamanismo e nos ritos de cura marubos, mas também, quem sabe, por ter posto sua boca em contato com o púbis de uma mulher. E mais, acreditam os Marubos que seu idioma provém da língua falada pelos membros da seção dos Chaináwavo, hoje extinta, uma das criadas pelo grito de Wasa. Os Mariwin, embora não falem, têm seus adornos em volta da boca e do nariz. Não assinalariam eles a importância social da boca e do nariz, tal como Anthony Seeger, no capítulo 2 de seu livro Os Índios e Nós (Rio de Janeiro: Campus, 1980) apontou a relação entre os adornos suiás e o valor social de certos sentidos?

Antes de passar adiante, convém abrir um parêntesis para assinalar que os marubos também dispõem de uma máscara, chamada Sheni (o velho), usada pelos rapazes para assustar os meninos que vagabundeiam pela mata. O exemplar visto por Delvair Montagner tinha cabeça de cabaça, dentes de casco de tatu, vestido de trapos, que poderia ser também de entrecasca. Nem ela nem eu a vimos em uso. Não tem pois a mesma importância que os Mariwin para os matis. Há outras maneiras marubos de fazer medo às crianças. Mas o que talvez mais se aproxima, entre os marubos, das varadas dos Mariwin é o uso de um vegetal cultivado cujo nome, vakise, se traduz por "urtiga". Os espinhos finos e flexíveis que guarnecem os caules macios desse arbusto produzem uma sensação de queimadura ao mais leve toque. E' usado para tirar a preguiça da criança, pela mãe ou outra pessoa solicitada a fazê-lo, sendo aplicado nos braços e nas costas. Supõem os marubos que a criança assim recebe as qualidades de dedicação ao trabalho da pessoa que aplica. Nas viagens, a "urtiga" é aplicada nas pernas das crianças para andarem bem. Diferentemente dos matis, que compensam sua condescendência para com as crianças entregando

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seu disciplinamento aos Mariwin, os marubos ameaçam e tratam com "urtiga" o menino ou menina chorão, brigão ou desobediente. Muitas vezes a mãe faz cessar um choro, uma briga, simplesmente ostentando o caule da "urtiga". Este vegetal é usado também no rito da colheita do milho, aplicado nos braços dos homens antes da expedição de caça, para lhes tirar o panema. E' digno de nota que nesse rito a "urtiga" pode ser substituída por formigas tocandeiras, uma das espécies presentes na punição de Wasa, cada uma segura entre as fendas de um palito. Se realmente a substituem, devem servir para tirar o panema. Mas sua finalidade é testar os caçadores: aqueles que, picados por elas, não sonharem com seu bom sucesso na caçada estão com panema.

Inkanchasho, dos caxinauás Também os caxinauás, falantes de uma língua da família pano, como os matís e os marubos,

e que vivem na região onde os afluentes dos Purus e do Juruá se aproximam, de um e outro lado do paralelo 10, ou seja, tanto no Brasil, mais especificamente no Acre, como no Peru, têm três personagens míticos que lembram os Mariwin e Wasa, a julgar pelas narrativas apresentadas em La Verdadera Biblia de los Cashinahua, por André-Marcel d'Ans (Lima: Mosca Azul, 1975).

Um deles, Inkanchasho, era paralítico de nascença. Rígido da cintura aos joelhos, caminhava com passos curtos e arrastados. Era também algo idiota e não falava, comunicando-se por monossílabos. Vivia à custa dos irmãos e, quando eles saíam para longas caçadas, ficava em casa a cuidar das cunhadas e da mãe.

Numa dessas vezes, foi notificado por duas cunhadas sobre um local onde havia frutos (guayos, no espanhol da selva peruana) caídos e semicomidos por animais. Embora nunca tivesse caçado, decidiu fazê-lo. Confeccionou suas armas com utensílios de tecelagem de suas cunhadas: com uma longa lâmina de madeira de palmeira, que serve para assentar o tecido, fez o arco; com fios de rede, fez a corda do arco; com outras peças de tear, fez o talo e as pontas das flechas. Construiu um esconderijo e matou inicialmente uma perdiz, que levou às cunhadas, causando alvoroço entre as demais mulheres do grupo local, que lhes invejaram a sorte.

No dia seguinte, Inkanchasho foi para o esconderijo e matou muitos animais, avisando em seguida as mulheres para irem buscá-los e manifestando o desejo de que eles fossem divididos por todas as mulheres do grupo local.

Após tal sucesso, as cunhadas lhe pediram para lhes cortar lenha, o que fez de modo tão eficiente que levou as outras mulheres a pedir-lhe o mesmo, sendo também atendidas. Enquanto ele trabalhava, duas mulheres resolveram ter relações sexuais com ele, mas, apesar de sua insistência, não conseguiram que as atendesse, não só devido à ineficiência de seus movimentos, como por não parecer interessado.

Ao retornar a casa, Inkanchasho, num supremo esforço, conseguiu queixar-se a suas cunhadas, perguntando-lhes quem teria tido a idéia de mandar as duas mulheres oferecer-lhe suas horríveis bocas barbudas. Diante da zombaria das cunhadas, Inkanchasho passou a mentir, dizendo-lhes que as mulheres é que tinham fugido de seus assédios, o que provocou mais riso delas.

Quando os caçadores regressaram, souberam de tudo o que acontecera através das mulheres, e lhes recomendaram que Inkanchasho deveria ser respeitado como um verdadeiro homem. E ele continuou a caçar e prestar serviços às cunhadas e à mãe na ausência de seus irmãos.

As semelhanças de Inkanchasho com Wasa são mais visíveis do que com os Mariwin. Certamente ele não é um ancestral, como esses dois últimos, mas, tal como Wasa, Inkanchasho supera suas próprias deficiências. E' certo que nem mesmo tenta ter relações sexuais. Se Wasa mantém intimidade sexual com a mulher do irmão, ainda que de modo exdrúxulo, a intimidade de Inkanchasho com as mulheres de seus irmãos se faz através da transformação inventiva do

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material de tecelagem delas. Alimentando com carne suas cunhadas e as outras mulheres do grupo local durante a ausência dos irmãos, Inkanchasho se associa de alguma forma à fecundidade e ao crescimento, como os outros dois personagens. Aliás, como repara Erikson, a chegada dos Mariwin é acompanhada de uma refeição de carne (ainda que não fornecida pelos Mariwin). Finalmente, ao invés de punido, como Wasa, Inkanchasho recebe o reconhecimento respeitoso dos seus irmãos.

Existe uma versão do mito transcrita na linhas numeradas 3620-3691 por João Capistrano de Abreu no seu célebre Rã-txa hu-ni-ku-i (Rio de Janeiro: Sociedade Capistrano de Abreu e Livraria Briguiet, 1941), com menos detalhes do que a resumida aqui, e um tanto diferente. Nada é dito sobre a incapacidade de falar do personagem. Não há referência à confecção de armas com utensílios femininos. Mas parece que o herói usa tripa como corda do arco e, das caças que entrega às mulheres (pelo menos é o caso da anta), só quer para si as tripas. Inkanchasho morre quando uma mulher lhe rasga o ligamento que unia suas coxas, ao tentar manter com ele relações sexuais.

Iba Roa, também dos caxinauás Os caxinauás contam também a história de Iba Roa, hábil caçador que, numa expedição de

caça para realização de uma festa, ao apoderar-se de um fruto (shapaja, no espanhol da selva peruana) quente, atirado por aquele que o assava, e cravar-lhe os dentes para lhe retirar a semente, teve seus lábios e gengivas queimados por um jato de polpa líquida e escaldante. Socorrido com plantas medicinais por seus companheiros, Iba Roa conseguiu a cicatrização da queimadura, mas de tal modo que ficou com os lábios soldados, não podendo mais que murmurar o que queria dizer, e com uma horrível deformação no rosto. Foi assim, evitando encontrar-se com os que aguardavam os expedicionários, sobretudo com sua namorada, que era mulher de um de seus primos paralelos, que Iba Roa entrou na aldeia, dirigindo-se diretamente para junto de sua esposa. Não saiu de casa durante o dia e somente à noite foi participar da festa, mas procurando ficar sempre distante de sua namorada. Esta, depois de muito procurá-lo e de saber do ocorrido através de seu marido, que na informação fez direta alusão à relação adúltera que mantinha com seu primo, achou Iba Roa. Apiedou-se de seu estado e continuou sua relação amorosa com ele.

Contrariamente aos três personagens já examinados, Iba Roa anda normalmente. Um acidente, entretanto, o torna quase mudo, o que o faz parecido aos Mariwin e a Inkanchasho, e justamente numa caçada preparatória de uma festa Chirín, em que, conforme Marcel d'Ans, pessoas iniciadas entoam cânticos, que são explicados aos demais, referentes à essência, origem e destino dos homens. Outra semelhança, agora com Wasa e Inkanchasho, está na intimidade com a esposa de um primo paralelo, que certamente deve ser considerado como um irmão. Porém, quanto à superação de suas deficiências, ela está menos nos esforços de Iba Roa do que na abnegação de sua namorada.

Saninwanka Banë, ainda dos caxinauás Creio que não seria inconveniente acrescentar um terceiro personagem caxinauá, Saninwanka

Banë, irmão mais velho de Ako Roa, embora mais baixo que ele. Solteiro, morava com seu irmão, que era casado. Quando um ia à roça, o outro ia caçar, alternadamente. Saninwanka Banë sempre arranjava um meio de ficar a sós com a esposa do irmão, sendo ora sexualmente bem recebido ora rechaçado. Quando ela o recebia bem, deixando-o expressar todas as suas fantasias eróticas, Saninwanka Banë retornava à atividade de caça ou de pesca que interrompera e compensava seu atraso de tal modo que superava os demais na obtenção de carne ou peixe. Se rechaçado, ficava desacoroçoado e de mau humor.

Apesar de Ako Roa ser complacente com seu irmão e sua esposa, mesmo diante das visíveis mostras de adultério, um dia perdeu a paciência com uma peça que este lhe pregou e, furioso, surpreendeu a ambos em plena atividade sexual. Vibrou em seu irmão forte pancada com o arco e

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deu uma tremenda surra na esposa. Saninwanka Banë, dias depois, foi visitar suas irmãs e, ao aproximar-se, mascou urucu, de modo que a saliva avermelhada lhe escorresse pela boca, e, passou a arrastar-se no chão e a gemer. Procurava assim indispô-las contra o outro irmão. E a narrativa contém outros episódios sem que chegue propriamente a um desfecho.

Há dois textos transcritos por Capistrano de Abreu que lembram as aventuras de Saninwanka Banë. O primeiro (linhas 3757-3793), que não cita o nome dos dois irmãos, é mais parecido que o segundo (linhas 3794-3901), no qual Makari mata seu irmão solteiro Banö, por ter mantido relações sexuais com sua mulher, engravidando-a.

A não ser as relações íntimas com a mulher do irmão, e a surra que leva deste, nada parece aproximar Saninwanka Banë dos personagens anteriores, a menos que se tome em conta a burla do herói, aproximando-se de suas irmãs arrastando-se no chão, como se não pudesse andar, e com urucu escorrendo da boca à guisa de sangue, como se não pudesse falar.

Mas há um detalhe que parece ser esclarecedor também para as narrativas anteriores: era depois de relações sexuais satisfatórias com a esposa do irmão que Saninwanka Banë conseguia um excepcional êxito na caça ou na pesca. Não seriam então as relações com a esposa do irmão um fator importante do poder criador de Wasa, ao afastar-se da maloca dançando com ela para criar novas seções, e do fabuloso desempenho de Inkanchasho, ao utilizar-se de armas feitas com utensílios das cunhadas?

Provavelmente Saninwanka Banë apenas exacerbasse de modo canhestro um comportamento comum aos demais caxinauás, pois em artigo no volume The Cashinahua of Eastern Peru, organizado por Jane Powell Dwyer (Brown University-The Haffenreffer Museum of Anthropology, 1975) assegura Kenneth Kensinger que: "A caça, quase tanto quanto o sexo, é a maior paixão da vida do homem caxinauá. E' através da caça e de sua habilidade como caçador que ele faz seu nome como bom provedor, que ele ganha reputação de generosidade por causa da carne que suas esposas distribuem, que ele assenta as bases para seus tão desejados affairs sexuais, e que ele reune os dados básicos para as histórias que contará quando senta junto ao fogo ou às cuias de comida ao anoitecer, trocando contos de caça com seus parentes. Ele se considera antes de tudo um caçador e somente secundariamente um agricultor" (p. 25). A versão apresentada não entra em detalhes sobre a natureza dos jogos eróticos de que Saninwanka Banë fruia com sua cunhada, mas Kensinger e também Phyllis Rabineau fazem menção a diademas usados nos ritos de fertilidade pelos homens caxinauás, nos quais prendem pelos pubianos de suas esposas e amantes; as mulheres procuram tomar tais diademas, os xani maiti, e destruí-los (pp. 79 e 105; fig. 84). Ainda segundo Kensinger, aos caxinauás aborrecem os pelos corporais, e arrancá-los, inclusive os pubianos, não raro faz parte dos jogos sexuais (p. 83, nota 8). Como, ainda de acordo com Kensinger, as relações sexuais extramaritais são esperadas e permitidas, contanto que mantidas com discrição, de modo a não se tornarem de conhecimento público e embaraçosas para os cônjuges dos amantes, o pecado de Saninwanka Banë não estava no affair com a cunhada e nem nos jogos eróticos, mas na indiscrição produzida por seu comportamento estouvado. Por sua vez, se os jogos sexuais dos caxinauás forem também conhecidos dos marubos, o ato de Wasa não lhes parecerá tão estranho.

O desenvolvimento corporal diante das expectativas culturais

Apesar de não haver dúvidas quanto às semelhanças entre esses personagens, ainda é difícil dizer algo de conclusivo como resultado da comparação de uns com os outros.

Penso que nada há a objetar quanto ao fato de se comparar personagens conhecidos sobretudo através de um rito, os Mariwin, com outros que figuram em narrativas. Há, sim, uma dificuldade em comparar os Mariwin com os demais, porém ela se deve a uma outra razão. E' que,

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enquanto os Mariwin estariam numa categoria de idade (ou até duas categorias, se considerarmos a diferença entre os pretos e os vermelhos) acima daquelas a que pertencem os matis comuns, os demais personagens parecem todos se colocarem como jovens que não podem passar a se comportarem como adultos, seja devido a deficiências físicass, como Inkanchasho, seja por falta de maturidade psico-moral, como Saninwanka Banë, este apesar de mais velho que o irmão casado (deixando-se à margem o caso de Iba Roa, cuja deficiência decorre de um acidente ocorrido após chegar à idade adulta).

Com respeito a essa questão, o caso de Wasa parece fazer uma ponte entre os Mariwin e os demais personagens. De fato, o mito de Wenía focaliza Wasa como um ancestral, o primeiro a sair do chão à frente dos membros de sua seção. Nenhuma alusão a deficiência física, a intimidade com a cunhada, a punição pelo irmão. Esses detalhes estão nas versões autônomas, que, por sua vez, omitem a saída de Wasa do chão. Tanto no Wenía como numa das versões autônomas, entretanto, Wasa é um criador de outra ou outras seções que não a sua. Desse modo, Wasa estaria tanto numa posição de ancestral, como os Mariwin, como na de um jovem com dificuldade em assumir a maturidade por causa de sua deficiência física. Pode, portanto, situar-se em mais de uma categoria de idade. De qualquer modo, essa discussão torna patente que esses personagens têm algo a ver com o ciclo de vida e as categorias de idade.

As deficiências dos personagens marubo e caxinauás os põem numa como que reclusão. Wasa e Inkanchasho não podem andar, o que os faz permanecer na maloca em intimidade com as esposas dos irmãos. Saninwanka Banë sente irresistível atração pela esposa do irmão, o que o leva a abandonar qualquer atividade para voltar à maloca e estar sozinho com ela. Iba Roa mantém-se afastado dos moradores da aldeia durante o dia por causa da deformidade do rosto e a impossibilidade de falar decorrentes do acidente que sofreu, ainda que não perca o amor da esposa do primo paralelo. Ao contrário desses personagens, os Mariwin, ao invés de reclusos, são visitantes. Sua maneira peculiar de andar não é interpretada como deficiência, mas como um modo altamente digno de deslocar- se.

Visitas que são, não sei se há dados sobre suas relações em suas próprias moradas e como se comportam para com as esposas dos irmãos. Todos os outros personagens têm algum modo de intimidade com elas, e, mais, tal intimidade desencadeia a superação de suas limitações. Por isso, talvez, sejam elucidativas as informações, se as houver, entre os Mariwin e suas cunhadas. Por outro lado, embora se saiba que irmãos tenham as mesmas mulheres como possíveis esposas, faltam-me dados sobre o comportamento do homem marubo para com as mulheres efetivamente casadas com seus irmãos.

Por sua vez Iba Roa e Saninwanka Banë parecem desempenhar as atividades sexuais normalmente, o segundo até com imaginosa desenvoltura. Mas a intimidade de Inkanchasho com as mulheres se faz através dos instrumentos e artefatos delas. Aliás, o instrumento feminino que esse herói caxinauá usa para fazer seu arco, a lâmina de madeira de palmeira que serve para assentar o tecido, é chamado de txíate pelos marubos, objeto que entre estes acompanha a mulher à sepultura e com o qual sua alma combate o Macaco Preto, um dos seres que, no Caminho do Perigo, tenta impedi-la de alcançar a camada celeste a que se destina, conforme Delvair Montagner em seu artigo "Simbolismo dos Adornos Corporais Marúbo" (Revista do Museu Paulista, Nova Série, vol. 31, 1986). Sua associação simbólica com a mulher e seu trabalho parece tão forte entre os marubos como é o twinte, instrumento para mexer a bebida fermentada no ato de sua preparação, com as mulheres matis, conforme Phillipe Erikson no seu artigo "Of Maize and Women: near beer of the Amazonian Matis" (ms.).

Por sua vez, a solução de Wasa, fazendo conexão entre sexo e boca, além da conseqüente fecundidade verbal do herói, parece confirmar algumas correspondências apontadas por Erikson em outro artigo "Les Ornements Matis: prolongements de la physiologie, préludes à la

Quadro

comparativo

dos personagens

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cosmologie" (ms.), resumidas nesta referência aos tufos brancos (kwiashak) cujos suportes se enfiam em torno da boca da máscara do Mariwin: "Os kwiashak são, pois, simultaneamente uma barba branca (marca de senioridade), uma dentição e flechinhas de curare, simultaneamente assimiladas a uma hipertrofia de mananukit e de kwiot". O kwiot é um adorno usado por ambos os sexos, a partir dos 12 anos, num orifício no lábio inferior; os mananukit são bastões, inicialmente de pupunha, depois de patauá, enfiados em orifícios na face, aos lados do nariz, usados pelos homens a partir dos 17-19 anos. Se a isso acrescentarmos a equivalência apontada por Erikson entre adornos e pelos, adornos e energia, e adornos e a gradual inserção na sociedade, o ato de Wasa, ao cortar com os dentes os pelos pubianos da cunhada, se torna mais compreensível. Tal como nos kwiashak dos matis, aí também pelos e dentes se confundem. Falta apenas a associação com as flechinhas de curare, veneno que os marubos não fazem, pois também não usam atualmente a zarabatana. Mas convém lembrar que uma outra heroína da mitologia marubo, Shetã Veká (note-se que sheta é "dente") tinha em seus pelos pubianos formigas de fogo e outro bichinho associado ao cipó que abriga a formiga tracuá, animais que ferroam e mordem de modo doloroso. Seria ainda o caso de lembrar os animais usados no castigo de Wasa e os animais e vegetais de que este se utiliza para criar novas seções.

Finalmente, esses personagens constituiriam o resultado e o estímulo de uma reflexão sobre algumas das bases somáticas sobre as quais as culturas panos se constroem. Tais bases seriam os movimentos dos membros inferiores, a atividade sexual, os movimentos dos membros superiores e a boca, aqui enumerados segundo a ordem em que parecem ganhar importância social ao longo do ciclo de vida.

Sumári

o de

Mitos Indígenas

Pági

na inicial

8a aula A Grande Árvore

Julio Cezar Melatti

Março de 2001

Sumári

o de

Mitos Indígenas

Pági

na inicial

O mito da grande árvore está presente no repertório de muitas sociedades indígenas. Pode

ser uma árvore que sustenta o firmamento, ou então que dá origem ao milho ou outra planta importante para o grupo social que o narra. Vou passar aqui por alguns exemplos desse mito.

O pé-do-céu e a árvore do milho dos timbiras No mito timbira do Sol e Lua, já apresentado (4a aula), há um episódio em que o segundo

quer um enfeite, um cocar, igual ao que o primeiro tem. Esse enfeite foi conseguido do pica-pau. E o Sol leva Lua até o pé-do-céu, para conseguir do pica-pau um enfeite também para ele. É possível acrescentar alguns detalhes não explicitados naquela versão. O pé-do- céu fica a leste. O pica-pau quer derrubá-lo. Mas quando sai para comer ou para beber, a parte já escavada se recompõe, e

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assim, nunca consegue derrubá-lo. Há quem admita que são vários os pés do céu, e mais de um pica-pau trabalham a perfurá-los.

Um craô disse que o pé-do-céu é como o pé de milho, duro por fora e macio por centro. Essa comparação o torna equivalente à árvore do milho, do mito da mulher-estrela, também já apresentado (6a aula). Se o pica-pau tenta em vão derrubar o pé-do- céu, a árvore do milho, por outro lado, é efetivamente derrubada.

A árvore do milho e os nomes das mulheres xavantes No seu livro Nomes e Amigos (São Paulo: USP- FFLCH, 1986), Aracy Lopes da Silva diz que a

atribuição dos nomes femininos xavantes segue regras distintas da atribuição dos masculinos. A mulher só recebe um nome verdadeiro, um nome de adulto, após o casamento. Qualquer nome feminino é precedido por um de cinco radicais, conforme a categoria de idade masculina que o confere, que significam "macaco" (dado pelos moradores da casa dos solteiros), "periquito" (dado por uma parte dos iniciados), "quero-quero" (dado por outra parte dos iniciados), "guanandi" (dado pelos patrocinadores de iniciação) e "peixe" (dado pelos homens maduros). A autora associa o rito de atribuição de nomes às mulheres ao ciclo do milho, à estação chuvosa e à fertilidade. Na resenha que fiz desse livro no Anuário Antropológico/87 (pp. 281-284) defendi a idéia de que encontraríamos uma correspondência entre a árvore do milho e os nomes femininos se fossem dispostos num quadro as categorias de idade masculinas, das mais novas para as mais velhas (excluídas aquelas não envolvidas na transmissão dos nomes femininos), os radicais dos nomes femininos que lhes correspondem, as características distintivas apontadas pelos índios referentes aos animais que significam e as características físicas das mulheres distribuídas segundo esses radicais.

Nesse quadro, conforme passamos das categorias de idade mais novas para as mais velhas, os animais e o vegetal que lhes correspondem parecem se dispor no sentido alto-baixo e arbóreo-terrestre-aquático. Não há dados suficientes para se saber se o quero-quero é a ave da família Charadriidae, que nidifica no chão, ou o papagaio-de-peito-roxo. Quanto ao guanandi ou landi, trata-se do Callophilum brasiliensis, também conhecido como jacareúba, vegetal de áreas pantanosas ou inundáveis. Os animais também se colocam em um continuum, conforme suas características somáticas, estando num dos pólos o de pêlos, no outro o sem pêlos, e nas posições intermediárias os de penas (e o vegetal, obviamente, de folhas), pondo-se em destaque as penas de uma região do corpo, a testa ou o peito. Finalmente, as mulheres passam de altas a pequenas, sendo as das extremidades gordas e as intermediárias magrinhas (o termo "grande" parece aqui sinônimo de "gorda").

Categorias de

idade masculinas

Radicais dos

nomes femininos

Características dos animais

e vegetal

Características físicas

das mulheres

moradores da casa

dos solteiros macaco

bicho bacana com cabelo

bonito altas e gordas

iniciados

periquito pena vermelha na testa

bonita como urucum altas

quero-quero grita bonito, penas cinzentas

no peito pequenas e magrinhas

patrocinadores de

iniciação guanandi com folhas bonitas pequenas e magrinhas

maduros peixe sem cabelos, couro bonito gordas, grandes

Ora, lendo o mito xavante da origem do milho, publicado nas pp. 61-72 do livro Jerônimo Xavante Conta, de Bartolomeu Giaccaria e Adalberto Heide (Campo Grande: Museu Regional Dom Bosco, 1975), tenho a impressão de que há uma certa correspondência entre o quadro que montei e

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a disposição das partes e dos assediadores da fabulosa árvore do milho. Assim, no momento em que os homens se reúnem para recolher as espigas da árvore, os mais velhos ficam no chão apanhando os grãos que os periquitos já haviam deixado cair, enquanto os mais novos sobem, citando-se explicitamente duas de suas categorias de idade. Considerando-se que quanto menor a idade mais leve o indivíduo, podemos supor que as categorias de idade se disporiam na árvore conforme estão meu quadro, ordenadas de cima para baixo da mais jovem para a mais velha.

É certo que os únicos animais freqüentadores da árvore citados no mito eram os periquitos e que ela, muito provavelmente, não era um guanandi. Mas, tratando-se de uma árvore fabulosa, por que não admitir que o macaco, que figura no alto do quadro, e do qual se alude à beleza dos cabelos, não corresponde ao cabelo do milho? Que o periquito, o quero-quero e o guanandi, dispostos no meio do quadro, e dos quais se faz referência a certas penas ou à beleza das folhas, não corresponderiam às folhas da árvore, que seriam também as folhas do milho? Já o peixe, da base do quadro, de que se põe em destaque a ausência de cabelos e a beleza do couro, não corresponderia ao tronco da árvore, chamada no mito de "pau trançado", característica acentuada no desenho que acompanha o texto? Quanto à coluna das características físicas das mulheres, não estaria em relação com o fato de as espigas maiores darem nos galhos superiores, enquanto as menores crescerem nos galhos que saíam do meio do tronco?

A árvore do milho e o loureiro, dos marubos Chama a atenção no mito da mulher-estrela dos timbiras que o milho tem uma origem

diferente da dos outros vegetais cultivados. O milho dá numa árvore, nesta camada terrestre, junto a uma corrente d'água. Os demais vegetais são trazidos do céu. Essa origem separada do milho também ocorre na mitologia marubo, do sudoeste da Amazônia: o milho dá numa árvore; a origem das demais plantas é narrada em outros dois episódios do mito de Wenía (3a aula). Um deles conta que foi Oni Weshti que os criou, a partir de parte dos corpos dos animais que ele matava, e ensinou sua utilização aos marubos quando eles passaram pelo lugar onde vivia. O outro diz que o uso dos vegetais cultivados foi ensinado pelo mutum.

Uma versão sobre a árvore do milho, colhida por Delvair Montagner do marubo Firmino, conta que a árvore do milho foi cortada com ajuda de machado feito com âmago de madeira. Dá os nomes de quatro dos cortadores. Como eles paravam a tarefa ao entardecer para irem para casa dormir, no dia seguinte encontravam o tronco recuperado de novo. Resolveram então trabalharem todo o tempo, usando breu para iluminarem à noite. Na árvore estavam um mutum branco, uma arara. O periquito comia milho. E o cachorro olhava os homens a cortar o tronco. O pau disse aos cortadores que, quando caísse, iria lhes pôr nome. E dizia para uma outra árvore que, quando caísse, iria nascer de novo. A árvore caiu, no oeste. Os homens ficaram alegres. Num galho havia milho branco; em outro, milho amarelo; noutro, milho preto; noutro, milho do sangue. Depois os homens acharam filhotes de cachorro e levaram para casa. A casca da árvore foi embora para o poente, caiu na água e virou o peixe tambaqui. Os homens plantaram o milho e comeram.

Vemos aqui a mesma idéia do pé do céu do mito craô, que se recupera quando o seu corte é interrompido.

Conforme as pp. 32-3 do livro de Delvair Montagner, A Morada das Almas (Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1996), os marubos admitem também a existência de um loureiro, Torá Tama, situado entre duas camadas celestes: suas raízes estão no Claro das Árvores e o seu topo toca o Céu da Névoa. Essa árvore é um caminho percorrido pelos xamãs. Seus galhos têm potes de diferentes alucinógenos. Nas suas folhas moram espíritos benévolos, que cantam e curam. Sua copa é cônica e seus tronco é pintado com desenhos. Um desenho feito por um marubo acompanha o texto.

A árvore do amendoim, dos tuparis

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Na coletânea de Betty Mindlin, Tuparis e Tapurás (São Paulo: Brasiliense, EDUSP e IAMÁ) há duas versões do mito da árvore do amendoim, uma colhida por ela (pp. 48-52) e outra, mas antiga, por Franz Caspar (pp. 53-57). Eis, num resumo, a versão tomada por Mindlin:

Waledjat e Wap nasceram do estouro de uma pedra e foram criados por uma velha. Eles só comiam fruto de apuí, inadequado para alimentação, enquanto a velha comia amendoim cozido às escondidas. O amendoim vinha de uma árvore que segurava o céu, e a velha tinha medo que alguém viesse a cortá-la, fazendo o céu desabar. Toda vez que eles matavam uma anta, e a entregavam à velha para abri-la e destripá-la, ela o fazia, ao mesmo tempo em que comia, disfarçadamente, amendoim.

Um dia um dos irmãos encontrou uma casca de amendoim no chão, cheirou-a, gostou e mostrou-a ao outro. Procuraram até encontrar uma panelinha com amendoim cozido debaixo da lenha. Deixaram-na no mesmo lugar e resolveram espreitar a velha para ver de onde ela o colhia. Assim eles a encontraram a colher amendoins caídos da árvore. Araras e periquitos se fartavam com eles.

Resolvidos a derrubar a árvore, foram à procura do pica-pau, que tinha um machado. Para fazer o pica-pau soltar o machado, Wap virou mutuca e o picou nas costas, mas sem resultado. Então Waledjat fez o mesmo e picou-o com mais força. O pica-pau soltou o machado e caiu desmaiado. Os irmãos tiraram todas as penas do pica-pau. Este, ao voltar a si, ficou furioso e pediu ao fogo que o vingasse. Soprou o fogo até encostar no céu. O fogo queimou tudo.

Wap se refugiou no oco de uma embaúba; Waledjat, num buraco de aranha. A aranha tinha uma filha e estava fazendo rede. Ofereceram uma rede a Waledjat para se deitar. Enquanto ele cochilava, peidou, mas pela boca, pois não tinha ânus, somente rabo. Tomando conhecimento do comentário feito pela filha da aranha, Waledjat pediu para que elas lhe fizessem um ânus. A aranha estava com medo de fazer, pois temia que ele, com a dor, batesse nela com a mão e a matasse. A aranha cortou o rabo de Waledjat com os dentes e depois fez o orifício do ânus com o dedo; saiu uma grande quantidade de fezes.

Waledjat porcurou o irmão, encontrou-o e este reparou a mudança que se fez em seu corpo e quis também ter um ânus. Voltaram à casa da aranha e finalmente conseguiram que ela aceitasse repetir a operação, com a diferença que, desta vez, Wap, com a dor, bateu com mão na aranha.

Voltaram para casa e a velha chorava. E chorou ainda mais quando soube que eles iam derrubar a árvore. Choveu todo o dia, uma chuva fina. De tarde a árvore caiu, mas seu tronco dividiu-se em vários, escorando o céu, que não arriou de todo. E ficaram apanhando amendoim. Fizeram uma casa para cada um e as encheram de amendoim.

Waledjat resolveu fazer uma mulher, e a fez de madeira. Pintou-lhe o sexo por dentro com urucu. O irmão, ao ver a mulher, quis ter uma também. Waledjat fez uma para Wap, mas ficou feia, e não tinha sexo.

Waledjat pôs muitas onças para guardar o amendoim, no caminho da Via Látea. As onças tomam conta das crianças que vão nascer. Há onças pintadas, brancas, negras, vermelhas. As crianças que vão nascer ficam dentro da sapopema da árvore do amendoim, e brigam por causa dele. Cada estrela, que é um buraco do céu, é uma criança. Quando uma mulher não engravida, o pajé toma rapé e, por meio de sonho, faz a mulher engravidar, tirando uma criança lá de cima. Em retribuição, a mulher lhe dá presentes, como brincos e colares.

A versão tomada por Caspar, guardados os pequenos detalhes, diz o mesmo. Mas ela esclarece que a velha que criava os dois irmãos era um pássaro que Waledjat tinha transformado em mulher para ser a mãe deles.

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Após o episódio da confecção da mulher, a versão de Carpar diverge. Diz da tentativa frustrada de Wap ter relações sexuais com a filha de um mago, o que Waledjat conseguiu facilmente. Diz também que, além do amendoim, Waledjat também trouxe (mas não diz de onde) a castanha-do-pará, a taquara, o milho e provavelmente outras plantas; descobriu o arco e flecha e a produção de resina.

Conta também que a mulher de Waledjat teve um filho. Ele o deixou com a grande serpente mansa enquanto ia colher castanha-do-pará. Mas a serpente mordeu o menino quando ele quis alimentá-la e ele morreu. Wap viu a serpente desaparecer no céu. O menino foi chorado e enterrado. De noite ele apareceu e chamou o pai e a mãe,. Estes porém não acordaram. E Wap o mandou embora.. Ao saber do ocorrido, Waledjat ficou furioso com o ato do irmão e tentou por magia trazer de volta o filho, mas em vão. Ele então fez chover muito, inundou a terra e muita gente afogou-se. Um relato alternativo desse episódio diz que Waledjat, um dia, numa caçada, encontrou o falecido filho. Mas ele o advertiu de que agora pertencia ao outro lado, ao oeste, e que não podia mais voltar para casa. Wap também achou que o garoto não devia voltar. E ambos retornaram sem o menino.

Um outro mago, então, resolveu desembarçar-se de Waledjat e Wap, para que não provocassem novos infortúnios. Convidou-os para apanhar resina no alto de uma árvore. O mago tapou-lhes os olhos, narinas e mãos e encarregou dois mutuns de os levarem embora, o que não conseguiram. Então incumbiu dois pássaros waikua, que os levaram para o norte, onde fizeram uma casa de pedra, onde moram até hoje. Toda vez que Waledjat fica furioso, chove.

Alguns episódios do mito de Waledjat e Wap lembram o mito de Sol e Lua dos timbiras. O pica-pau, por exemplo, que neste tenta derrubar o pé-do-céu, naquele tem um machado que, roubado, será usado para derrubar a árvore do amendoim. Também é o pica-pau que provoca o grande incêndio, em ambos os mitos: para vingar-se em um; porque Lua deixa seu cocar cair no chão, no outro. Ambos também relatam uma grande inundação: por chuva desencadeada por Waledjat em um; porque Lua retira a tartaruga que servia de tampa à água subterrânea, no outro. Decisões tomadas pelo menos por Wap, em um, e por Lua, no outro, instalam a morte entre os homens.

Já a confecção da mulher de madeira faz o mito tupari aproximar-se do mito xinguano do Kwarip, mas com uma diferença: Waledjat faz para si uma esposa, enquanto o herói xinguano faz substitutas das filhas para mandá-las para casar com o jaguar.

O mito tupari também se aproxima do mito da mulher- estrela dos timbiras, uma vez que, conforme a versão de Caspar, além da origem do amendoim, refere-se à origem dos outros vegetais cultivados.

A grande samaumeira, dos ticunas Nas pp. 72-75 do livro Nosso Povo (Rio de Janeiro: Museu Nacional , 1985), escrito por índios

ticunas, estão os episódios míticos "Como apareceu o dia" e "O coração da samaumeira", que resumo a seguir.

Como apareceu o dia. Naquele tempo era sempre noite. Os galhos da samaumeira cobriam o mundo, escurecendo tudo. Os irmãos Yoi e Ipi tentaram abrir um buraco na copa da árvore, jogando-lhe caroços de araratucupi, mas sem resultado. Chamaram o pica-pau, que tentou cortar o tronco com o bico, mas não conseguiu. Resolveram então tirar o machado da cutia. Ipi colou penas em todo o corpo e ficou deitado de boca aberta no caminho da cutia. A cutia estranhou a figura que encontrou no caminho e começou a fazer-lhe perguntas. Como Ipi não respondesse, ameaçou urinar na boca dele, cortar-lhe a língua, até que ele respondeu, dizendo que podia arrancá-la. Ela se aproximou e Ipi arrancou-lhe a paleta, a perna de trás, que era o seu machado.A cutia perseguiu Ipi mancando e gritou-lhe que, quando fizesse roça, não

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dissesse o nome dela, e que ela iria cobrar-lhe o roubo, furtando nas roças que fizesse. É o que a cutia faz até hoje. A cutia não pode mais plantar. Só cutia pequena ainda tem o machado.

De posse do machado, Ipi começou a cortar a árvore. Mas o corte se tornava a fechar. Yoi então tentou cortar e, onde ele batia, o corte se mantinha aberto. Quando se cansou, entregou o machado a Ipi, que continuou a cortar, mas agora o corte não se fechava mais. Apesar de o tronco estar bem fino, a árvore não caía. Olhando para cima, viram que era uma preguiça que a segurava. O quatipuru, convidado para subir e tirar a mão da perguiça do galho, foi até a metade e desceu, com medo da altura. O quatipuru pequeno aceitou subir com formigas de fogo para jogar nos olhos da preguiça. Ele subiu e conseguiu atingir os olhos da preguiça. Deu então um pulo para trás, e caiu, machucando o rabo no machado. Por isso o quatipuruzinho tem o rabo dobrado nas costas. A samaumeira caiu, e daí por diante se pôde ver o sol, o céu, as estrelas. Como recompensa, Yoi e Ipoi deram sua irmã para casar com o quatipuruzinho.

O coração da samaumeira. Depois de algum tempo Ipi foi até a árvore derrubada para ver se já tinha apodrecido. Mas ela estava viva, tinha começado a brotar de novo. Ipi ouviu batidas de coração e resolveu tirá-lo. E começou a cortar com o machado. Ipi e Yoi disputavam o machado, cada qual querendo a tarefa de tirar o coração da samaumeira. Finalmente um golpe de Yoi fez o coração pular fora. Um calango o engoliu e ele ficou parado na garganta. Ipi encostou um tição na garganta do calango e o coração pulou fora. Mas uma grande borboleta azul engoliu o coração. Ipi queimou a asa da borboleta com o mesmo tição e ela vomitou. Por isso as borboletas azuis de hoje têm manchas na asa. O coração caiu num buraco muito apertado. Yoi então mandou a cotia roer o coração pelo lado direito, trazer o caroço e plantar no terreiro. Passado algum tempo, daí nasceu a árvore de umari.

O mito da grande samaumeira e o de seu coração também estão divulgados em O Livro das Árvores (Benjamin Constant: OGPTB, 1997), um volume escrito e ilustrado pelos professores indígenas ticunas, que trata da importância das árvores na vida e cultura de seu povo. Entre as suas muitas ilustrações, há um desenho da árvore Tchaparane, que produzia terçados. Ela ficava em Cujaru, um lugar perto do rio Jacurapá, e as pessoas iam até lá e esperavam que caíssem no chão.

As árvores Tamoromu e Uaijána, dos uapixanas Nas pp. 172-4 de "Lendas dos índios Vapidiana" (Revista do Museu Paulista, Nova Série, vol. 4,

1950, pp. 165-216), Mauro Wirth apresenta dois mitos referentes a grandes árvores, e que vou resumir abaixo.

A árvore Tamoromu. O homem criou uma cutia que, enquanto era pequena, não saía de casa, mas depois que cresceu passou a andar pelo mato. Ela encontrou uma grande árvore carregada de frutos. Como ela não sabia subir, só comia os que caíam no chão. Desde então passou a recusar a comida de casa e só comia no mato.

Uma vez, indagada sobre o que fazia e comia no mato, ela negou que fizesse qualquer coisa. Mas ela adormeceu, peidou e sua bunda falou: "Bum! Amendoim! Bum! Banana maçã! Bum! Banana comprida! Bum! Mandioca! Bum! Cana! Bum! Banana najá! Bum! Banana cheirosa! Bum! Banana grossa! Bum! Milho! Bum! Arroz! Bum! Feijão! Bum! Cará! Bum! Abóbora! Bum! Inhame! Bum! Melancia! Bum! Banana São Tomé branca! Bum! Banana São Tomé roxa! Bum! Banana iaiá! Bum! Banana sapo!" O dono ouviu, chamou a mulher para ouvir e mandou seus filhos acordarem bem cedo para verem aonde ia a cutia. Os homens então não sabiam onde ficava essa árvore e só comiam frutos do mato.

As crianças levantaram-se antes do clarear do dia. Viram a cutia acordar e ir direto para o mato. As crianças então chamaram o pai, que foi atrás dela e a encontrou comendo. O homem

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viu que cada galho da árvore estava curvado e produzia uma espécie diferente. O homem retornou e contou o que vira a parentes e vizinhos.

Todos amolaram seus machados e foram derrubar a árvore para tirar as sementes e plantá-las. Ao meio-dia a árvore caiu. Eles apanharam os frutos, foram para a casa e depois plantaram as sementes. Depois apareceu Tuminikare, que lhes disse que eles não deveriam ter derrubado a árvore, pois agora teriam de trabalhar todo dia. O toco da árvore virou pedra.

A árvore Uaijána. Tuminikare plantou a árvore Uaijána, que tinha todos os frutos. Não havia então outra gente a não ser uma mulher, na idade de casar, e seus quatro irmãos. Ela encontrou a árvore, que estava ainda pequena, e tirou frutos dela. E contou a seus irmãos.

Estes, quando chegaram à árvore, ela já estava muito alta. Por isso, cortaram-na para comer-lhe os frutos. Dentro da árvore havia muita água doce, que se derramou. Eles a fecharam com uma tampa. O irmão mais novo viu um peixinho na água derramada e quis ver se havia outros peixes no interior da árvore. Levantou a tampa e a água saiu com força. Alagou o mundo todo. O céu escureceu. Não se podia ver o sol, a lua e as estrelas. Tudo acabou, nada ficou.

O mundo ficou enxuto. Tuminikare criou gente e animais novos. Havia toda espécie de frutos, que os homens podiam apanhar. Mas até hoje o monte Roraima é chamado Mãe da Água Doce.

A árvore Wazaká, dos pemons Os índios uapixanas, cujos mitos referentes a grandes árvores acabei de resumir, falam uma

língua da família aruaque. Eles são vizinhos de um conjunto de outras sociedades indígenas conhecidas como pemon (um nome pouco usado no Brasil), que fala uma língua da família caribe. Os pemons incluem os taulipang, os arecunás e os camaracotos. Esses três grupos vivem no sul da Venezuela, sendo que o primeiro também tem representantes no Brasil, no Estado de Roraima. No segundo volume de seu livro Vom Roroima zum Orinoco, Theodor Koch-Grünberg publicou mitos dos pemon, que foram trazidos para o português e publicados como "Mitos e lendas dos índios Taulipáng e Arekuná" (Revista do Museu Paulista, Nova Série, vol. 7, 1953, pp. 9- 202). Nessa coleção há duas versões do mito da grande árvore, um contado por um arecuná (pp.45-48) e outra narrada por um taulipang (pp. 48-50). Esta última é mais fácil de resumir e vou começar por ela.

Versão taulipang. Havia outrora cinco irmãos, um dos quais era Makunaíma e outro, o mais velho, era Ma'nápe. Este não valia nada. Os irmãos viviam com muita fome e nada tinham para comer. Um homem chamado Akúli achou na floresta uma árvore carregada com todas as frutas boas, todas as espécies de banana, mamão, caju, laranja e milho. Mas ele comia sozinho, sem dizer nada aos demais. Makunaíma, querendo saber por que todos os dias Akúli voltava de barriga cheia, levantou o lábio dele enquanto dormia e achou um pedacinho de fruta na boca de Akúli. Saboreou-o e descobriu que era banana. Akúli nada percebeu.

No dia seguinte, Makunaíma mandou um homem chamado Kalí para tentar achar as frutas. Ele chegou com Akúli até perto do lugar onde muitos periquitos e papagaios comiam as frutas, mas Akúli não quis mostrar a árvore. Então mandou também seu irmão acompanhar Akúli, mas este o enganou, deixando-o junto a uma outra árvore, enquanto ia somente com Kalí para a árvore verdadeira.

Embora Akúli recomendasse que ele só comesse as frutas do chão, pois nos galhos da árvore havia vespas, Kalí insistiu em subir. Mas foi picado por elas nas pálpebras e caiu da árvore. Makunaíma desconfiou porque viu as pálpebras inchadas de Kalí e recomendou a Ma'nápe que se escondesse no caminho para ver onde os dois escondiam as frutas que traziam da árvore. Mas foi em vão, pois, quando os dois passaram, já haviam escondido as bananas. Então Makunaíma recomendou a seu irmão mais velho que acompanhasse mesmo os dois até a árvore.

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Ma'nápe assim fez e descobriu a árvore. Ele comeu muitas bananas e ainda encheu um cesto para levar para casa, apesar que Akúli tentar assustá-lo dizendo que tinha vespas. Em casa, Makunaíma comeu as bananas com seus irmãos.

Então Ma'nápe resolveu derrubar a árvore. Akúli, inteligente e que previa tudo, alertou que não deveriam derrubá-la, pois haveria uma grande enchente. Mas o teimoso Ma'nápe golpeou o tronco dizendo palavras que faziam o tronco amolecer, de modo que o machado penetrava cada vez mais. Akúli continuou advertindo e pegava cera de abelha e cascas de frutas para tapar todas as fendas que Ma'nápe ia fazendo. Mas este continuou golpeando e dizendo palavras para amolecer o tronco. Quando só estava faltando um pouquinho, um outro irmão de Makunaíma, chamado Anzikílan, disse o nome de uma árvore de madeira dura e o tronco endureceu, não permitindo o machado entrar. Mas Ma'nápe voltou a dizer as palavras que amoleciam e a árvore foi derrubada.

A árvore caiu para o norte (o lado da Venezuela). Por isso lá existem muitos bananais que ninguém plantou e que pertencem aos demônios mauarí, cujas casas são as montanhas, Roraima inclusive, como dizem os médicos-feiticeiros, que são os únicos que podem vê-los e falar com eles. O toco da árvore derrubada é o monte Roraima. Ao cair, também saiu uma grande quantidade de água e muitos peixes. Os maiores foram para o norte, uma espécie de traíra muito grande, piraíba, surubim. Para o sul (Brasil), somente peixes pequenos e poucos.

Versão arecuná. Não vou resumir esta versão, mas apenas compará-la com a taulipang. Na versão arecuná, Akúli é também o único que sabe da existência de uma árvore que dá frutas, Pupú, que, uma vez descoberta por Makunaíma e seus irmãos, é derrubada por eles. Encontram perto a árvore Ná-yég, de que comem também todas as frutas. E é então que Akúli, separando-se deles, encontra a árvore Wazaká, carregada de todas as frutas boas que existem.

O relato se interrompe para dizer como Macunaíma e seus irmãos roubaram o fogo do pássaro Mutúg (Prionites momota).

A versão continua mais ou menos da mesma maneira que a outra. Mas nela o irmão mais velho de Makunaíma se chama Jigué. É Makunaíma que quer derrubar a árvore, apesar do parecer contrário de Akúli, até que Jigué, cansado, concorda com o irmão. Mas, quando a árvore está sendo cortada, ele pronuncia o nome de uma madeira dura. Porém Makunaíma golpeava mais depressa, pronunciando o nome de bananeiras, o que fazia o tronco ficar mole. Finalmente a árvore caiu, para o norte. Seu toco é o monte Roraima e as duas outras árvores sobre as quais caiu formam outras montanhas da região. Os troncos das três árvores caíram transversalmente sobre o rio Caroni, afluente do Orenoco, formando os rochedos que fazem as quedas d'água desse rio.

Jigué tentou vedar o toco com um cesto e Akúli, com frutas e lenha. Mas Makunaíma pediu que fosse levantado o cesto para sair um pouco mais de peixes para os riachos. Então a água saiu com toda a força e não conseguiram mais tapar a saída.

A versão termina com dois episódios não presentes na anterior. Um é de como Jigué e Makunaíma criaram cada qual seu inajá. E o outro, de como Akúli se escondeu da enchente dentro do próprio tronco da árvore derrubada, onde tinha escondido bananas, mas o fogo que fez para se aquecer pegou no seu traseiro, o que explica por que hoje ele tem cabelos ruivos nessa parte do corpo (seria Akúli um animal? A cutia da versão uapixana?).

A árvore dos cânticos, dos ianomâmis Na pp. 138-152 de sua tese de doutorado, O Corpo Cósmico (Brasília: UnB, 1999), Maria Inês

Smiljanic se refere à árvore dos cânticos da cosmologia dos ianomaes, um ramo ianomâmi do alto curso do rio Toototobi, no Estado do Roraima. Essa árvore teria existido em tempos remotos no chão em que pisam os ianomaes, mas depois afastou e hoje está no "peito do céu". Ela cantava e dançava, sendo particularmente sensível ao canto das mulheres. Um grande galho da árvore é

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guardado pela preguiça, que cede seus ramos aos espíritos auxiliares dos xamãs, que assim podem entoar os cânticos que estão nesses ramos. A preguiça, entretanto, é muito sovina e nem sempre é convencida a conceder ramos da árvore. Os xamãs também podem tentar o acesso à própria árvore, uma vez que podem deslocar-se no espaço e no tempo.

Segundo o mito, numa grande festa o sapo coaxava e pensava estar entoando um belo cântico. A preguiça gigante irritou-se com a feiura do cântico e repreendeu o sapo por estar cantando tão mal. Então Yorixiriamori ensinou aos demais como se devia cantar. Seu canto era muito belo e as mulheres ficaram encantadas. Os outros homens, com inveja dele, tentaram matá-lo e por isso ele fugiu, transformado no pássaro yorixiri a. As mulheres, apaixonadas, correram atrás dele, mas não conseguiram atravessar o rio que ele cruzou. Ao fugir, Yorixiriamori jogou fora o galho da árvore dos cânticos e a preguiça o pegou.

A árvore dos cânticos sumiu deste mundo porque a aranha, ao aproximar-se dela, cobriu a cabeça e apontou o dedo. Por isso o som silenciou e ela desapareceu.

Sumári

o de

Mitos Indígenas

Pági

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9a aula Conquista e Perda do Fogo

Julio Cezar Melatti

Março de 2001

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Há muitos mitos da origem do fogo. Mas aqui vou tratar apenas de dois: um, dos craôs, e dos

demais timbiras, que admitem ser a onça a dona original do fogo; o outro, dos marubos, que mostra como os homens, ao perderem o fogo, viraram onças. Ou seja, um é o inverso do outro.

Versão craô do mito do fogo Nas pp. 325-7 do livro Ritos de uma Tribo Timbira (São Paulo: Ática, 1978) eu apresentei uma

versão craô da origem do fogo, que vou resumir.

Os índios antigos não tinham fogo; comiam carne crua seca ao sol. Um deles viu um ninho de arara num buraco de uma encosta e levou o irmão da esposa, que era novinho, para apanhar os filhotes. Cortou um pau comprido e fez escada para o menino subir. Este, entretanto, ficou com medo da arara, que estava brava. O marido da irmã recomendou-lhe que fizesse um ganchinho com um ramo para puxá-la pelo pescoço. Mas a arara quebrou o ganchinho. Apesar da insistência do cunhado, o menino não conseguia puxar a arara e jogá-la pra baixo. Por isso, aquele se zangou, fez cair a escada e deixou o irmão da esposa lá em cima. Foi embora, nada contou em casa e nem a mulher perguntou pelo irmão.

O menino ficou passando fome e sede. Aos poucos a arara que trazia alimento para os filhotes se acostumou com ele, e o menino comia o buriti que ela trazia. E assim agüentou por dois meses.

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Então, um jaguar que estava caçando chegou ao pé da encosta. O jaguar, vendo sua sombra projetada no chão, tentou por duas vezes pegá-la, até que se deu conta que era do menino que estava no alto. Tendo lhe perguntado por que lá estava, o jaguar ouviu-lhe a história e depois ofereceu-se para apará-lo, se ele de lá pulasse. O menino se recusou, alegando que o jaguar o comeria. O jaguar então pediu-lhe que jogasse os filhotes de arara. O menino jogou um e depois outro, e o jaguar os comeu. Então insistiu que o menino pulasse e assegurou que não o comeria, pois já tinha comido as araras. O menino fechou os olhos e pulou.

O menino estava com fome, sede e todo sujo de excrementos de arara. O jaguar o levou a um brejo, onde ele bebeu e se lavou. Depois o jaguar o levou para casa, onde o apresentou à esposa, que queria comer logo o menino. O marido, porém, disse que iriam criá-lo.

Depois de uns dias, o jaguar saiu para caçar e deixou o menino com a mulher. A onça o ameaçou com as garras e os dentes e o menino fugiu em busca do jaguar, que teve de voltar da caçada sem nada e recomendar à esposa que não fizesse mais assim. E saiu de novo. Porém, por mais por duas vezes teve de voltar porque sua mulher de novo assustava o menino e ele corria em busca de seu socorro. Só conseguiu trazer um tatupeba, que mal serviu para a refeição.

No dia seguinte o jaguar foi caçar de novo, e mais uma vez teve sua atividade interrompida pela fuga do menino ameaçado pela onça. O marido então endireitou flechas no fogo, fez um arco para o menino e recomendou-lhe que, se fosse ameaçado, flechasse a onça bem na mão e corresse para sua aldeia, que era logo depois do morro e do riacho; a onça não o persegueria porque estava grávida. Uma vez ausente o jaguar, a onça ameaçou novamente o menino, que a flechou em ambas as mãos e correu para sua aldeia.

Na aldeia, o menino contou ao pai que a onça tinha o fogo. Os moradores foram então à casa da onça e roubaram-lhe o fogo, que ficou gritando que pelo menos deixassem uma brasinha para ela.

A perda do fogo, na versão marubo Vou aqui fazer um resumo da versão que publiquei nas pp. 160-2 de "A origem dos brancos

no mito de Shoma Wetsa" (Anuário Antropológico/84, 1985, pp. 109-73). Nesse resumo vou incorporar entre colchetes esclarecimentos e dados tomados de outras versões, mais obscuras ainda do que esta, de modo a chegar a um resultado um pouco mais compreensível.

Os Inovakenáwavo ou Inonáwavo (gente da onça, nome de uma seção) dormiram entre as sapopemas da samaúma e tiveram seus olhos extraídos por Ino Rĩki [ou Rẽki, que era um macaco-prego. Os cegos, dando-se as mãos, foram para um igapó, onde viraram buritis]. Os que foram poupados encontraram a mulher Rovoshavo [a qual, não tendo querido seguir o irmão, Võnea Shane, este apagou o fogo, abandonou-a, e virou capivara]. Ela mandou o macaco-preto que criava ir buscar o fogo e ele o trouxe. [Mais detalhadamente, ela primeiro mandou o periquito (txoké) ir buscar o fogo, mas ele queimou o bico e deixou-o cair no mato; o periquito, que tinha bico grande, hoje tem bico pequeno. Então ela mandou o macaco barrigudo, que o trouxe com o rabo, que queimou, passou-o para a mão, mas o fogo queimou-lhe as mãos e os polegares; por isso ele tem as mãos pretas e sem os polegares. Então ela mandou o macaco preto, que também queimou o rabo, que hoje é mais curto, e queimou os polegares, mas conseguiu entregar o fogo à mulher.] Os Kamanáwavo (a mesma gente da onça) nela puseram o nome de Tome [na verdade outra mulher, havendo também as chamadas Taokaté e Rami].

Os Inonáwavo foram caçar e deixaram Taokaté cuidando do fogo. Chegaram com queixada. Depois de cozido, deram para Taokaté um pedaço do fígado e o focinho.

Os Inonáwavo encontraram um surubim. Acharam bonita a sua pintura e resolveram se pintar do mesmo modo. Por isso é que a onça é pintada.

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Saíram outras vezes para matar queixada, deixando Taokaté para cuidar do fogo e, quando voltavam, davam às mulheres um pedaço do fígado, o pé, o mocotó ou o focinho.

As mulheres pintaram os homens com o desenho do surubim. O primeiro que acabou de ser pintado foi Ino Wirẽ. Ele foi secar sua pintura no sol e encontrou um bando de queixadas. Voltou para chamar os outros, que iam começar a ser pintados. As mulheres então recomendaram a estes que se pintassem no caminho com a flor bem novinha do urucu.

Enquanto os homens perseguiam os queixadas, as mulheres resolveram apagar o fogo. Rovoshavo virou bacurau; Tome, cutiara (ou quatiara?); Rami, cutia. Taokaté virou maracanã e levou o fogo. O fogo restante foi apagado.

Os homens voltaram depois de matarem queixada e não encontraram ninguém. Chamaram Rovoshavo, perguntando-lhe pelo fogo, mas a viram voar na frente deles já transformada em bacurau. Eles caçoaram dela, aludindo a seus olhos protuberantes. Viram Taokaté já transformada em maracanã pousada numa árvore.

[Os homens pedem ao macaco preto para roubar o fogo de Taokaté. Ele subiu na árvore e pediu-lhe o fogo. Ela negou, mas ele mesmo foi apanhar. Ela então lhe arrancou os dedões; por isso o macaco tem quatro dedos. Ele foi embora e não voltou aos homens.]

Ino Wirẽ pôs a carne de queixada no terreiro para secar ao sol. A carne secou e ele cortou-a com a faca e comeu. E disse que tinham de se transformar em algo diferente, pois já não tinham fogo e tinham de comer cru. Foi embora chorando pela beira do barranco, chegou à raiz da ayahuasca e ficou morando lá. Os outros homens fizeram o mesmo, saíram chorando pela beira do barranco e foram morar em outro lugar: Ino Namã, na raiz da árvore tĩpa; Ino Kene, na raiz da samaúma; um outro Ino Namã, também na samaúma; Ino Tae, na raiz da taboca; Ino Metsa, também junto à taboca; um outro Ino Tae, em cima do capim. Ino Kene resolveu ir morar no Ino kenã teké. Um outro foi morar em cima da raiz do tabaco. [Ino Wirẽ virou onça pintada; os demais, onças vermelhas].

Por conseguinte, esse mito marubo insiste na focalização da perda do fogo: primeiro é a mulher Rovoshavo que o perde quando abandonada pelo irmão, mas o recupera com ajuda do macaco preto. Depois são os homens que o perdem quando as mulheres os abandonam e dessa vez nem mesmo o macaco preto consegue trazê-lo de volta.

Se, o mito craô ensina que o homem tomou o fogo da onça, o mito marubo ainda vai mais longe, mostrando que homem sem fogo é onça.

Os mitos marubos mostram ainda um antagonismo entre onça e fogo. A mulher canibal Shoma Wetsa, identificada com a onça, de corpo invulnerável, somente pôde ser destruída pelo fogo (13a aula). Um outro mito também publicado nas pp. 157-8 do meu referido trabalho "A origem dos brancos no mito de Shoma Wetsa" termina com a quase total destruição das onças pelo fogo.

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Há muitos mitos da origem do fogo. Mas aqui vou tratar apenas de dois: um, dos craôs, e dos

demais timbiras, que admitem ser a onça a dona original do fogo; o outro, dos marubos, que mostra como os homens, ao perderem o fogo, viraram onças. Ou seja, um é o inverso do outro.

Versão craô do mito do fogo Nas pp. 325-7 do livro Ritos de uma Tribo Timbira (São Paulo: Ática, 1978) eu apresentei uma

versão craô da origem do fogo, que vou resumir.

Os índios antigos não tinham fogo; comiam carne crua seca ao sol. Um deles viu um ninho de arara num buraco de uma encosta e levou o irmão da esposa, que era novinho, para apanhar os filhotes. Cortou um pau comprido e fez escada para o menino subir. Este, entretanto, ficou com medo da arara, que estava brava. O marido da irmã recomendou-lhe que fizesse um ganchinho com um ramo para puxá-la pelo pescoço. Mas a arara quebrou o ganchinho. Apesar da insistência do cunhado, o menino não conseguia puxar a arara e jogá-la pra baixo. Por isso, aquele se zangou, fez cair a escada e deixou o irmão da esposa lá em cima. Foi embora, nada contou em casa e nem a mulher perguntou pelo irmão.

O menino ficou passando fome e sede. Aos poucos a arara que trazia alimento para os filhotes se acostumou com ele, e o menino comia o buriti que ela trazia. E assim agüentou por dois meses.

Então, um jaguar que estava caçando chegou ao pé da encosta. O jaguar, vendo sua sombra projetada no chão, tentou por duas vezes pegá-la, até que se deu conta que era do menino que estava no alto. Tendo lhe perguntado por que lá estava, o jaguar ouviu-lhe a história e depois ofereceu-se para apará-lo, se ele de lá pulasse. O menino se recusou, alegando que o jaguar o comeria. O jaguar então pediu-lhe que jogasse os filhotes de arara. O menino jogou um e depois outro, e o jaguar os comeu. Então insistiu que o menino pulasse e assegurou que não o comeria, pois já tinha comido as araras. O menino fechou os olhos e pulou.

O menino estava com fome, sede e todo sujo de excrementos de arara. O jaguar o levou a um brejo, onde ele bebeu e se lavou. Depois o jaguar o levou para casa, onde o apresentou à esposa, que queria comer logo o menino. O marido, porém, disse que iriam criá-lo.

Depois de uns dias, o jaguar saiu para caçar e deixou o menino com a mulher. A onça o ameaçou com as garras e os dentes e o menino fugiu em busca do jaguar, que teve de voltar da caçada sem nada e recomendar à esposa que não fizesse mais assim. E saiu de novo. Porém, por mais por duas vezes teve de voltar porque sua mulher de novo assustava o menino e ele corria em busca de seu socorro. Só conseguiu trazer um tatupeba, que mal serviu para a refeição.

No dia seguinte o jaguar foi caçar de novo, e mais uma vez teve sua atividade interrompida pela fuga do menino ameaçado pela onça. O marido então endireitou flechas no fogo, fez um arco para o menino e recomendou-lhe que, se fosse ameaçado, flechasse a onça bem na mão e corresse para sua aldeia, que era logo depois do morro e do riacho; a onça não o

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persegueria porque estava grávida. Uma vez ausente o jaguar, a onça ameaçou novamente o menino, que a flechou em ambas as mãos e correu para sua aldeia.

Na aldeia, o menino contou ao pai que a onça tinha o fogo. Os moradores foram então à casa da onça e roubaram-lhe o fogo, que ficou gritando que pelo menos deixassem uma brasinha para ela.

A perda do fogo, na versão marubo Vou aqui fazer um resumo da versão que publiquei nas pp. 160-2 de "A origem dos brancos

no mito de Shoma Wetsa" (Anuário Antropológico/84, 1985, pp. 109-73). Nesse resumo vou incorporar entre colchetes esclarecimentos e dados tomados de outras versões, mais obscuras ainda do que esta, de modo a chegar a um resultado um pouco mais compreensível.

Os Inovakenáwavo ou Inonáwavo (gente da onça, nome de uma seção) dormiram entre as sapopemas da samaúma e tiveram seus olhos extraídos por Ino Rĩki [ou Rẽki, que era um macaco-prego. Os cegos, dando-se as mãos, foram para um igapó, onde viraram buritis]. Os que foram poupados encontraram a mulher Rovoshavo [a qual, não tendo querido seguir o irmão, Võnea Shane, este apagou o fogo, abandonou-a, e virou capivara]. Ela mandou o macaco-preto que criava ir buscar o fogo e ele o trouxe. [Mais detalhadamente, ela primeiro mandou o periquito (txoké) ir buscar o fogo, mas ele queimou o bico e deixou-o cair no mato; o periquito, que tinha bico grande, hoje tem bico pequeno. Então ela mandou o macaco barrigudo, que o trouxe com o rabo, que queimou, passou-o para a mão, mas o fogo queimou-lhe as mãos e os polegares; por isso ele tem as mãos pretas e sem os polegares. Então ela mandou o macaco preto, que também queimou o rabo, que hoje é mais curto, e queimou os polegares, mas conseguiu entregar o fogo à mulher.] Os Kamanáwavo (a mesma gente da onça) nela puseram o nome de Tome [na verdade outra mulher, havendo também as chamadas Taokaté e Rami].

Os Inonáwavo foram caçar e deixaram Taokaté cuidando do fogo. Chegaram com queixada. Depois de cozido, deram para Taokaté um pedaço do fígado e o focinho.

Os Inonáwavo encontraram um surubim. Acharam bonita a sua pintura e resolveram se pintar do mesmo modo. Por isso é que a onça é pintada.

Saíram outras vezes para matar queixada, deixando Taokaté para cuidar do fogo e, quando voltavam, davam às mulheres um pedaço do fígado, o pé, o mocotó ou o focinho.

As mulheres pintaram os homens com o desenho do surubim. O primeiro que acabou de ser pintado foi Ino Wirẽ. Ele foi secar sua pintura no sol e encontrou um bando de queixadas. Voltou para chamar os outros, que iam começar a ser pintados. As mulheres então recomendaram a estes que se pintassem no caminho com a flor bem novinha do urucu.

Enquanto os homens perseguiam os queixadas, as mulheres resolveram apagar o fogo. Rovoshavo virou bacurau; Tome, cutiara (ou quatiara?); Rami, cutia. Taokaté virou maracanã e levou o fogo. O fogo restante foi apagado.

Os homens voltaram depois de matarem queixada e não encontraram ninguém. Chamaram Rovoshavo, perguntando-lhe pelo fogo, mas a viram voar na frente deles já transformada em bacurau. Eles caçoaram dela, aludindo a seus olhos protuberantes. Viram Taokaté já transformada em maracanã pousada numa árvore.

[Os homens pedem ao macaco preto para roubar o fogo de Taokaté. Ele subiu na árvore e pediu-lhe o fogo. Ela negou, mas ele mesmo foi apanhar. Ela então lhe arrancou os dedões; por isso o macaco tem quatro dedos. Ele foi embora e não voltou aos homens.]

Ino Wirẽ pôs a carne de queixada no terreiro para secar ao sol. A carne secou e ele cortou-a com a faca e comeu. E disse que tinham de se transformar em algo diferente, pois já não tinham fogo e tinham de comer cru. Foi embora chorando pela beira do barranco, chegou à raiz da

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ayahuasca e ficou morando lá. Os outros homens fizeram o mesmo, saíram chorando pela beira do barranco e foram morar em outro lugar: Ino Namã, na raiz da árvore tĩpa; Ino Kene, na raiz da samaúma; um outro Ino Namã, também na samaúma; Ino Tae, na raiz da taboca; Ino Metsa, também junto à taboca; um outro Ino Tae, em cima do capim. Ino Kene resolveu ir morar no Ino kenã teké. Um outro foi morar em cima da raiz do tabaco. [Ino Wirẽ virou onça pintada; os demais, onças vermelhas].

Por conseguinte, esse mito marubo insiste na focalização da perda do fogo: primeiro é a mulher Rovoshavo que o perde quando abandonada pelo irmão, mas o recupera com ajuda do macaco preto. Depois são os homens que o perdem quando as mulheres os abandonam e dessa vez nem mesmo o macaco preto consegue trazê-lo de volta.

Se, o mito craô ensina que o homem tomou o fogo da onça, o mito marubo ainda vai mais longe, mostrando que homem sem fogo é onça.

Os mitos marubos mostram ainda um antagonismo entre onça e fogo. A mulher canibal Shoma Wetsa, identificada com a onça, de corpo invulnerável, somente pôde ser destruída pelo fogo (13a aula). Um outro mito também publicado nas pp. 157-8 do meu referido trabalho "A origem dos brancos no mito de Shoma Wetsa" termina com a quase total destruição das onças pelo fogo.

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10a aula O Caminho das Almas

Julio Cezar Melatti

Março de 2001

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Nem sempre as descrições etnográficas se detêm naquelas crenças religiosas que operam no

sentido de coagir os membros de uma sociedade indígena a pautarem seu comportamento por um código moral. Alguns casos dão até a impressão que a imposição desse código fica por conta da operação das próprias regras sociais com pouca ou nenhuma interferência de sanções sobrenaturais. É o que nos faz supor o exemplo dos timbiras, entre os quais os méritos e as faltas individuais são premiados ou punidos pelo reconhecimento ou reação dos demais. Assim, o homem brigão tem de mostrar que também é valente, pois fatalmente será escolhido, num certo rito, para quebrar uma casa de marimbondos; o homem trabalhador tem geralmente um filho ou uma filha investidos num papel ritual muito honroso; e, num meio social em que homens e mulheres não restringem a sexualidade aos laços matrimoniais, a barreira ao incesto se faz pela procura de um equilíbrio regulado pela norma segundo a qual tudo o que é feito para os parceiros sexuais, inclusive oferta de alimentos, é contabilizado e fatalmente cobrado. Punições e prêmios na vida após a morte não existem. As almas dos mortos vivem algum tempo em aldeia própria, com uma vida social pobre e menos aprazível que a deste mundo; cada alma, a seu tempo, também morre e se transforma em animal de caça, não consumido pelos vivos, pois é reconhecido pela

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falta de gordura e pelo mau odor; este animal morre e se transforma num inseto, que também vem a morrer, virando um toco de pau. Este, quando o cerrado pega fogo, desaparece.

O caminho dos perigos, dos marubos Há, porém, sociedades que dão importância a sanções sobrenaturais, que se aplicam até

depois da morte. É o caso dos marubos, do sudoeste do Estado do Amazonas. Os marubos admitem que cada indivíduo tem várias almas, mas elas se resumem a duas: a do lado direito e a do lado esquerdo. Após a morte, esta última fica nesta camada terrestre, mas a outra, a da direita, também chamada do coração, enceta sua viagem para a segunda camada celeste e, se conseguir alcançá-la, aí se tornará imortal. Para lá chegar, deve percorrer um caminho, o Vei Vai.

Vei Vai quer dizer caminho (vai) da névoa (vei), certamente porque atravessa uma região cósmica em que outras camadas também têm seu nome precedido por vei, como esta terra em que se vive (Vei Mai) e a primeira camada celeste (Vei Nai), que ele ultrapassa para chegar à camada celeste seguinte, chamada Shoko Nai. A alma que o percorre encontra vários obstáculos ou perigos, aos quais não pode sucumbir, sob pena de se transformar numa casa de cupim ou num desses obstáculos e aí mesmo ficar para sempre.

Os obstáculos. Uma descrição sumária desses obstáculos pode ser encontrada nas pp. 34-43 do livro A Morada das Almas, de Delvair Montagner (Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1996), que parece prometer um texto especial sobre o Vei Vai, uma vez que não pode explorar toda a sua complexidade no referido livro. Um desenho feito por um jovem marubo, reproduzido na p. 36, mostra alguns desses obstáculos, talvez menos da metade do número deles. Vou usar o desenho para colocar os perigos numa ordem de apresentação, embora outros marubos entrevistados pela autora ofereçam descrições divergentes. O próprio texto da autora, no qual me apóio, não segue a mesma ordem do desenho.

Conforme o desenho, o primeiro perigo encontrado é a Lama (Vei Matsá), sobre a qual a alma deve saltar, sob pena de aí ficar mergulhada para sempre. Têm dificuldade em ultrapassá-la sobretudo as almas daqueles que "namoraram errado", ou seja, membros de seções proibidas.

Em seguida está a Rede (Vei Pani). Na verdade, a julgar pelo texto do livro, essa Rede faz parte de um conjunto constituído por uma Maloca, sobre a qual está um Macaco-Preto e uma Juriti, e dentro dela uma Mulher, a Rede e um Poço de Água Fervente. Em torno da Maloca há Urtigas. A alma aí ficará se usar a Rede para descansar, ou será atirada na Água Fervente ou ainda se entristecerá com o canto da Juriti.

Depois, conforme o desenho, está a Goiabeira (Vei Yõká). Refere-se o texto a outras árvores frutíferas do caminho. A alma não deve parar para comê-las. Se tiver fome, pega algumas e delas come apenas a metade, jogando o restante fora. Assim não se transforma numa delas.

Em seguida o desenhista pôs o Macaco Preto e a Maloca, já referidos acima.

Depois está o Jabuti, que pode quebrar os tornozelos da alma com seu casco, ou impedir-lhe a caminhada negando-lhe passagem pela sua maloca.

Prosseguindo, está Vei Maya, linda mulher que atrai as almas masculinas para relações sexuais e as transforma em cupinzeiros. Há também belos homens, que o desenho não mostra, que fazem o mesmo com as almas femininas. As almas daqueles que em vida respondiam facilmente aos apelos sexuais aí sucumbem.

O desenho mostra, depois, a Coruja (Vei Popo), armada comum arco, e que ameaça atirar flechas na alma.

Depois dela o caminho se bifurca, um destinado às almas dos marubos e outro às dos civilizados.

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Na p. 42 o livro deveria apresentar um esquema do Vei Vai desenhado por um outro marubo, mas, infelizmente, uma falha da oficina gráfica o omitiu, deixando apenas a legenda. Por ela se sabe que depois da Coruja há também o Japiim, que anuncia a chegada da alma a seus parentes já presentes na camada Shoko Nai. Conforme o texto do livro, nesse final do caminho também estão o Japu Pequeno, que indica à alma o caminho próprio de sua seção. Aí também fica um Papagaio fêmea.

Nem o desenho e nem o esquema apresentam todos os obstáculos. O texto do livro refere-se a mais alguns. Por exemplo, há uma Ponte sobre um Rio. A Ponte se encolhe quando a alma tenta atravessá-la. Se ela cai no Rio, que tem Água Fria, será ferida pelo Grande Camarão ou pelo Caranguejo. A alma de mulher usa, para puxar a Ponte, um pequeno estile usado outrora nos orifícios feitos nas abas do nariz, ou a espátula para compactar o tecido no tear. Há Gente que agarra homens e mulheres que tiveram relações extraconjugais. Na beira do Vei Vai também crescem palmeiras com Contas para enfeites e Cestas; a alma não deve se demorar aí a catar essas coisas, sob pena de se transformar em cupinzeiro. Há uma Fogueira que deve ser pulada, e o seu fogo sabe distinguir as almas daqueles que foram trabalhadores, hospitaleiros, cumpridores dos deveres do parentesco, das demais. Há o Sangue, cujo mau odor faz a alma daquele que foi flechado ou baleado enfraquecer-se. Existe também o Sangue de Anta, que ferve num buraco e ameaça as almas das mulheres que morreram de hemorragia genital. Tanto um como o outro Sangue podem ser evitados se a alma utiliza uma pena para fazer uma ponte sobre eles. A Abelha é mais um obstáculo; ela ferroa e urina sobre as almas masculinas e as deixa cansadas. Mas as almas dos homens que usaram rapé e ayahuasca produzirão um vento que as fará voar e afastará a Abelha para o lado; uma asa de arara também poderá afastar a Abelha e o cheiro de urina.

O Caminho da Água. A julgar pelos motivos que fazem os obstáculos operarem e os recursos utilizados pela alma para deles escapar, espera-se que a alma se comporte no Caminho da mesma forma como a pessoa se comportava em vida, o que fará com que se salve ou se perca. Por um lado, tanto os atos reprováveis praticados em vida quanto as circunstâncias da morte (morrer baleado, flechado, com hemorragia genital) podem tornar os obstáculos mais ameaçadores, o que nos deixa em dúvida se o julgamento dos mortos é pautado apenas por um código moral. Por outro, mais do que um comportamento irrepreensível, o que parece militar em favor da salvação do morto é a posse de um conhecimento que procurou cultivar em vida e que lhe oferece recursos para contornar os perigos do Caminho.

Mesmo assim, nem todos os mortos estão sujeitos a julgamento pelo mesmo tribunal. As almas dos mortos da seção dos Satanáwavo (sata significa "lontra") e da seção que com ela constitui uma unidade exogâmica matrilinear dirigem-se à camada Shoko Nai pelo Caminho da Água (Ene Vai), que não lhes oferece perigo.

Origem do Caminho dos Perigos. Segundo mitologia marubo, esse Caminho foi criado justamente devido ao comportamento reprovável de um marido para com a sua esposa, chamada Maya. As versões disponíveis do mito variam entre si. Mas em suas linhas gerais contam que o marido batia muito em Maya. E tanto bateu que ela saiu a pedir que a onça ou a cobra a matassem. Uma cobra a picou e ela morreu. Sua alma então procurou os espíritos Shono Yové Nawavo e Shai Nawavo e pediu-lhes que fizessem um caminho por onde as almas dos mortos devessem passar e aí sofressem, a começar pela alma do marido. Até então os mortos usavam o caminho chamado Yové Vai, que lhes permitia ir e voltar, ou seja, reviver novamente neste mundo. Os espíritos solicitados fizeram o caminho usando do mesmo procedimento aplicado por outros heróis míticos que fizeram a terra, os rios e os seres que os habitam, os vegetais cultivados: matando animais e transformando partes de seus corpos no caminho e nos obstáculos que existem ao longo do mesmo. Não é o caso de me deter aqui nos detalhes da construção do caminho, por estarem ainda sob a forma de dados brutos e não analisados à espera do texto prometido por Delvair Montagner. A própria Maya veio a se tornar um dos obstáculos do Vei Vai: a mulher que se oferece às almas masculinas, que, se deitarem com ela, transformam-se em cupinzeiros.

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Mitos complementares. É digno de nota que a alma, depois de passar pelos obstáculos de um caminho criado por motivo de uma relação conjugal insustentável, vá viver para todo sempre com seus parentes já falecidos da mesma seção, ou seja, com quem não pode se casar.

A qualidade da relação conjugal também é focalizada num outro mito relativo ao destino das almas. Conta que um homem era casado com duas mulheres, irmãs entre si. Uma o amava e respeitava; a outra não gostava e zombava dele. Ele morreu e passou pelo rito funerário, sepultado numa versão, cremado noutra. Algum tempo depois, o filho (ou dois filhos, conforme a versão), quando brincava com flechas nas vizinhanças da maloca, viu o falecido pai sentado num tronco ou monte de lenha. Depois de alguma insistência do menino, a mãe, que não acreditava no que ele contava, foi pessoalmente averiguar e constatou que seu marido havia realmente voltado do céu. Bem recebido por uma das esposas e desdenhado pela outra, que já tinha outro marido, o homem resolveu levar a primeira e seu filho para o céu. Fez a mulher subir por um fio, até o céu; depois, seu filho. Disse à mulher que o desdenhava, e que queria subir também, que ele iria primeiro e ela ficaria para o fim. Ele então subiu e depois içou a segunda mulher. Quando ela já estava bem alto, ele cortou a linha.

Há um outro mito que não se refere à morte, mas a algo que não falta nos ritos funerários, que é o choro (rona). Também ele envolve uma relação conjugal problemática. Conta que uma mulher, Rona Maya, era casada com um homem que, junto com os irmãos dele, comia bananas o tempo todo. A mulher ouvia o tempo todo o barulho da mastigação. Os irmãos do marido contaram a ele que a mulher não gostava deles, pois eram gulosos. Fingiram que saíam para uma caçada, mas resolvidos a não voltar mais. O marido deixou sua mãe e o seu filho com a mulher dele. Instalaram-se longe, numa casa abandonada. Eles caçavam, comiam, choravam de pena da mãe que estava sem comer carne. Quando trovejava, choravam. Quando ouviam a juriti, choravam. Choravam todos os dias. Os homens faziam a comida, pois não tinham mulher. O marido fazia arco, flechas, pentes e chorava com pena da mulher. Tristes batiam o trocano. A mulher, por sua vez, ouviu o canto da coruja (veno) e tomou-o prenúncio do retorno dos caçadores. Colheu muita banana, fez mingau e esperou. O mingau se estragou e eles não retornaram. Fez mais mingau, mas eles não vieram. E ela chorava pensando no marido, no filho que sentia falta do pai.

O mito da perda do fogo, já comentado na 9a aula, também pode ser contado entre aqueles que partem de uma relação marital problemática.

Enfim, todos esses mitos que começam com uma relação conflituosa entre marido e mulher terminam com uma perda: o fogo; as divisão sexual do trabalho, no mito do choro; a possibilidade de retorno ao mundo dos vivos nos mitos do marido falecido que voltou e no do Vei Vai, este com o agravante da ameaça de perdição perante seus obstáculos.

No vale do Guaporé Nas pp. 213-41 da coletânea de mitos Terra Grávida, organizada por Betty Mindlin (Rio de

Janeiro: Rosa dos Ventos [Record], 1999) estão reunidas algumas narrativas dos macurap, ajurus, aruás, aricapus e jabutis referentes ao destino das almas dos mortos. Todas essas etnias são de falantes de línguas do tronco tupi, mas de diferentes famílias: os macurap e ajurus são da família tupari; os aruás, da família mondé; os aricapus e jabutis, da família jabuti. Junto com outras etnias, quase todas também tupis, são remanescentes de grupos outrora mais populosos que hoje se agregam em duas terras indígenas: Rio Branco e Guaporé, no Estado de Rondônia.

Segundo os macurap (pp. 217-9), a alma do morto deve seguir por um caminho até a maloca dos espíritos Dowari. No seu percurso tem de atravessar um largo rio sobre uma ponte, que é a cobra Botxatô, ou arco-íris. Uma vez sobre a cobra, esta vai para as alturas, para o céu. Embora a cobra não seja hostil, os seres que a alma encontra ao longo da travessia são ameaçadores: a Garça que quer comê-la; o Pato Velho que dispara flechas, porque quer comer-lhe o fígado e só não

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acerta se a alma está protegida pelos pajés da aldeia ou é amada pelos espíritos protetores; a Aranha, o Piolho, o Carrapato, o pássaro Narabowawá tentam agarrá-la e dos quais só escapa se ficar temporariamente pequenininha. Há outros seres horrendos que a ameaçam e a alma os enfrenta chorando, chamando pelo pai e pela mãe. A chegar próximo à maloca dos Dowari, na serra do céu, a alma fica chorando como um nenezinho debaixo de um pé de urucu. Passa a noite sob a ameaça de abelhas e formigas que querem comê-la. Quando os Dowari dão-se conta de sua chegada, ela é socorrida pela irmã da mãe. Ela já está como um nenê, mas tem cabelos, cotovelos, joelhos e queixo compridos. A tia apara essas partes do corpo, fazendo-a bonita de novo.

Para os ajurus (pp. 221-3), a alma do morto segue para oriente pelo caminho chamado Djapé. Encontra um tronco grosso, que não consegue pular e aí é assediada por aranhas caranguejeiras e formigas tocandeiras. Se ela gritar, o tronco aumenta ainda mais de tamanho. Espíritos protetores a aconselham a ficar calada. Se consegue manter o silêncio, o tronco diminui apenas um instante e ela deve aproveitar para pulá-lo. Depois encontra o Gavião, que, sujo, fétido, lhe pede para catar seus piolhos. Ela deve estalar o piolho e fingir que o come, mas sem fazê-lo. E ainda deve responder afirmativamente, quando o Gavião lhe pergunta se é cheiroso. Deve agüentar sua repugnância e só vomitar depois de ter passado pelo Gavião, pois, caso o faça na sua frente, será comida por ele. Em seguida tem de atravessar um rio largo, usando uma ponte que é uma cobra. A cobra fica distante cerca de um metro da outra margem e a alma tem de pular para a beirada sem cair na água, o que levaria a cobra a comê-la. Ao chegar ao reino dos mortos, o Guiaé, a alma desmaia, e a alma de um pajé a faz voltar a si. E ela aí se instala, inclusive com família. Durante o percurso desse longo caminho, muito cansativo para a alma, uma pajé aqui da terra vai lhe dando assistência.

Ainda segundo os ajurus, o caminho Djapé é percorrido pelos mortos de todos os povos: ajurus, macurap, tuparis, atuás, jabutis, aricapus, canoês. Mas há uma distinção sobre a qual o texto não dá maiores detalhes: os que morreram de doença vão pelo Pawi-apé e os que morreram assassinados, pelo Wainko- apé.

Conforme os jabutis (pp. 234-5), as almas dos mortos atravessam um lago ou um rio largo sobre uma ponte que é uma jibóia chamada Neru. A cobra somente emerge quando há alguém para passar. Por ela a alma chega ao reino dos mortos, chamado Beroné, onde o sol é menos quente que aqui. Há também um caminho dos mortos, chamado Hinowid, mas o texto é omisso sobre o modo como está conectado à ponte Neru. É um caminho cheio de perigos e coisas ruins. Nele está o monstro Berapariti, que tem dedo comprido e come os passantes. A alma que o percorre se esconde do monstro; ele a chama; mas só quem for muito bobo o atende.

O depoimento de um outro índio jabuti (pp. 239-41) dá três nomes diferentes para o caminho dos mortos, nenhum dos quais coincide com o nome já referido. A alma sobe, encontra uma nuvem semelhante a algodão, abre-a e a atravessa como se fosse um mosquiteiro. Ao passar para o outro lado, a alma sabe que seu corpo já morreu. Os mortos que a precederam vêm buscá-la e fazem rapé para ela. Parece que é a partir daí que há um lago grande, que deve ser atravessado por uma ponte, que é uma cobra vermelha, grande e comprida. Depois da ponte há um pé de urucu e uma árvore de cheiro bom que produz uma tinta branca. É preciso pintar o corpo com a mistura de urucu com essa tinta. Daqui para frente o depoimento é confuso, pois a visão tradicional é complementada pela experiência pessoal de xamã do narrador. Diz que entre a nuvem e o Beroné, que é o ponto final do percurso, há muitos caminhos e a alma tem de escolher o certo. Caso escolha algum outro, depara-se com espíritos maus que a matam e comem, como Kubiranoti e Wakanotí, um gaviãozinho que, a julgar pelo seu grito "waká, waká", é o mesmo Gavião do caminho descrito pelos ajurus.

Comparação

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Tanto a mitologia marubo quanto a dos grupos tupis do vale do Guaporé admite que antes da existência do caminho das almas, havia a possibilidade de os mortos retornarem à vida neste mundo. Para os marubos, essa possibilidade teve fim quando Maya se vingou dos maltratos que recebeu em vida do marido, ou quando o marido desdenhado pela segunda esposa cortou a linha por onde ela subia ao céu. No vale do Guaporé, os macurap (pp. 213-6) e os aruás (pp. 226-30) contam o mito de Kambiô, que também se refere ao encerramento dessa possibilidade. As duas versões não são iguais, mas contam que Kambiô morreu, e ressuscitou como criancinha dias depois. A mãe o alimentava com batata, muita batata, e ia toda hora à roça para colher mais batatas. Na ausência da mãe, uma velha pedia batatas a Kambiô, que as cedia. Quando Kambiô não pôde atender seu pedido, dizendo-lhe que esperava pela mãe para trazer-lhe mais batatas, a velha chamou-o de sovina e disse que ele deveria ter morrido de vez. Kambiô zangou-se e foi embora. A mãe foi à dua procura e entrou na aldeia dos Dowari, sob protestos de que vivos ali não podiam entrar. Kambiô então pediu-lhe para ir buscar um pente que ele havia esquecido. Enquanto ela procurava o pente nas palhas da maloca, um escorpião (numa das versões o próprio pente transformado) a picou e ela morreu. Então ela pôde ficar com o filho na aldeia dos Dowari. Estes, para não serem importunados, resolveram ir para mais longe e explicaram aos pajés que, quando alguém morresse de agora em diante, haveria muito sofrimento, uma vez que os vivos teriam de realizar rito trabalhoso e com ingestão de muito rapé. Na versão aruá, após as pessoas começarem a morrer de modo definitivo, os mortos eram convidados a visitar os vivos e recebiam presentes. Porém uma moça viva insistiu em namorar um rapaz morto e morreu quando os mortos deixavam a aldeia depois de uma visita. Por isso Kambiô e os demais mortos resolveram ir morar muito mais longe e hoje é difícil fazer contato com eles.

Se o morto marubo se vale dos conhecimentos que adquiriu em vida para evitar os perigos do caminho Vei Vai, as almas dos ajurus e macurap são ajudadas no seu percurso pelos pajés que as assistem daqui da terra; as dos últimos também recebem ajuda de espíritos protetores.

Para os marubos, depois de passar pelos perigos, há um caminho para os marubos e outro para os civilizados. O dos marubos, por sua vez se abre em leque, dando origem a um caminho para cada seção. Já foi dito acima que os ajurus admitem a existência de um caminho para os mortos por doença e outro para os assassinados; dizem ainda (pp. 224-5) que seu(s) caminho(s) é (são) para o poente, enquanto o dos jabutis é para o oriente. Para os jabutis, as almas de cada etnia têm um caminho; o dos jabutis fica para oriente; o dos ajurus e o dos macurap, para outras direções.

Acreditam os marubos que a alma que consegue chegar ao final do caminho tem sua pele trocada por Roka, que vive na camada Shoko Nai, tornando-se imortal; as almas dos civilizados são recebidas por Nawa Roka. Para os aruás (pp. 226-7), as almas daqueles dentre os seus que morreram de doença são conduzidas a Paricot por um pajé, usando uma estrada no céu; as dos assassinados vão para a casa de Zagapuy, que é aqui mesmo, não vão para canto nenhum.

Segundo a mitologia marubo, a peça principal com que o caminho Vei Vai foi construído é um corpo de uma cobra que para isso foi abatida. Para os macurap e os jabutis a ponte sobre a qual passa a alma também é uma cobra, mas viva.

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11a aula Festa do Mel e Arte Plumária

Julio Cezar Melatti

Março de 2001

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Origem da festa do mel Nas pp. 148-9 de seu livro Os Índios Tenetehara, Charles Wagley e Eduardo Galvão

apresentam um mito com que os guajajaras explicam como começou a sua festa do mel. Os guajajaras são o ramo dos teneteharas que vivem no Maranhão; o outro ramo, os tembés, vivem no Pará.

Um homem chamado Aruwê construiu um esconderijo no alto de uma árvore para matar araras. Matou muitas delas. Quando se preparava para descer, percebeu que as onças se aproximavam da árvore para colher mel das muitas colmeias que aí existiam. Ele se escondeu e só foi embora depois que elas já se haviam retirado. No dia seguinte ele foi à árvore e aconteceu a mesma coisa.

O irmão de Aruwê, entusiasmado com o sucesso dele, pediu que lhe emprestasse o esconderijo na árvore, pois ele queria conseguir penas para fazer um ornato de cabeça. Aruwê aquiesceu, mas recomendou-lhe que somente se retirasse depois de as onças terem deixado a árvore. O irmão, porém, depois de matar araras, decidiu enfrentar as onças que chegavam. Disparou várias flechas sem conseguir atingir nenhuma delas. Uma onça, porém, subiu na árvore e matou o rapaz.

Aruwê, depois de esperar algum tempo, foi à procura do irmão, e junto à árvore achou sangue e vestígios de luta. Seguiu os rastros e viu que desapareciam junto a um formigueiro. Aruwê, que era pajé, retornou à maloca, preparou um cigarrão de tabaco e tauari, e, voltando à abertura do formigueiro, transformou-se em formiga e penetrou no buraco. Chegou assim a uma grande aldeia, habitada pelas onças. Encontrou uma mulher, que o convidou a morar com ela. Os parentes dela gostaram muito de Aruwê. Fora o pai dela que matara o irmão dele.

Aruwê observou que diariamente as onças deixavam a aldeia para voltarem de tarde com cabaças cheias de mel que penduravam nos esteios de uma casa. De noite entoavam cânticos muito bonitos junto à mesma casa. Depois de estocarem uma boa quantidade de mel, reuniram-se para fazer a Festa do Mel. A festa durou dias seguidos, do amanhecer ao pôr-do-sol; as onças cantavam e dançavam e bebiam o mel misturado com água. Só terminou quando o mel acabou. Aruwê aprendeu todo o cerimonial e os cânticos.

Com saudades de sua mulher e de seu filho, Aruwê pediu às onças consentimento para partir. Sua mulher-onça o acompanhou até à aldeia guajajara e ficou esperando por ele nas vizinhanças, enquanto ele a visitava. Sua esposa guajajara o recebeu com muita alegria e foi preparar um mingau de mandiocaba. Como demorou demais, quando Aruwê foi procurar pela mulher- onça, ela já havia partido e ainda tinha tido o cuidado de tapar a abertura do formigueiro, para que ele não mais a encontrasse.

Então Aruwê voltou a viver na aldeia com seus companheiros humanos e lhes ensinou a festa a que tinha assistido na aldeia das onças.

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Comentário. Em minhas aulas no curso de graduação, ao apresentar aos alunos a maneira de trabalhar com o método estruturalista, eu costumava fazer com que lessem em classe o mito que acabo de resumir e depois lhes pedia que o comentassem. Na discussão que se seguia, chamava-se a atenção para o fato de Aruwê atacar animais alados, as araras, assim como as onças, que tiravam o mel das abelhas. Já o irmão dele mostrava um comportamento ambíguo, atacando tanto animais de cima, araras, como de baixo, onças. Estas, estavam tão associadas à parte de baixo que moravam numa aldeia subterrânea. Aruwê, transformando-se em formiga e depois casando-se com uma onça, estava indiscutivelmente associado também à parte de baixo.

Apontava-se também a estranheza do esquecimento de Aruwê, que, tendo ido em busca do irmão, não somente o esquece quando entra na aldeia das onças como ainda se casa com a filha daquele que o matou.

A filha do gavião Pedia então aos alunos que lessem com atenção um outro mito, tirado do mesmo livro, das

pp. 151-2, que vou apresentar agora.

Dois irmãos construíram um andaime numa árvore para roubar o filhote de um ninho de gavião. O irmão solteiro propôs ao casado que subisse primeiro. Enquanto este subia, a mulher dele se ofereceu ao solteiro. O marido percebeu, desceu e disse ao irmão que subisse na frente. Quando chegaram perto do ninho, o casado desceu, mas cortou os cipós que prendiam o andaime, deixando o irmão solteiro preso no alto da árvore.

O solteiro ficou lá chorando, até que chegou o gavião trazendo uma preguiça para dar de comer ao filhote. O gavião ouviu sua história, chamou sua esposa e ambos decidiram que o rapaz ia criar o filhote, que era fêmea, e mais tarde casar com ele. No dia seguinte trouxeram um guariba e encarregaram o rapaz de alimentar o filhote, mas como este não tinha bico e garras para rasgar a caça, o casal de gaviões começou a bater asas ao redor do rapaz, até que este se transformou também num gavião. Ele então passou a caçar para dar de comer a sua pequena companheira. Até que ela cresceu e os dois se casaram. O casal mais antigo os deixou e voou para sua aldeia, lá no céu.

Um dia o jovem estava voando com sua mulher-gavião quando avistou a aldeia onde morara. Decidiu matar o irmão que o abandonara no alto da árvore. Transformou-se num gaviãozinho e pousou junto à casa dele. A mulher chamou o marido para flechá-lo, mas ele, apesar de sua excelente pontaria, errou o alvo. Então o gaviãozinho transformou-se no gavião maior e carregou o irmão com suas garras, levando-o para seus cunhados-gaviões, que o reduziram a pedaços e atiraram os ossos sobre a aldeia.

Os pais guajajaras ficaram muito tristes por ter perdido seus dois filhos. O guajajara-gavião voltou à aldeia em forma de gente e apresentou-se aos pais mandando que chamassem todos os moradores para acompanhá-lo a um lugar que só ele conhecia. De manhãzinha ele começou a cantar e insistiu que todos acompanhassem as cantigas. Mas só os pais o fizeram. Ao pôr-do-sol, a casa levantou-se do chão e os levou para a aldeia dos gaviões, no céu. A aldeia foi inundada e os guajajaras que haviam se recusado a cantar se transformaram em passarinhos para serem caçados pelos gaviões.

Comparação com o mito anterior. Eu então comparava com os alunos os dois mitos, procurando as semelhanças e contrastes como no quadro abaixo, e mostrava como no segundo a relação de indiferença entre os irmãos passava a franca hostilidade.

Origem da festa do mel A filha do gavião

Animais caçados pelos irmãos: araras, aves

vegetarianas.

Animais caçados pelos irmãos: gaviões, aves

carnívoras.

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Produto animal extraído pelas onças: mel. Animais caçados pelos gaviões: preguiça, guariba,

quadrúpedes arbóreos e vegetarianos.

Irmão, provavelmente solteiro, é morto pelas onças. Irmão solteiro é salvo pelos gaviões.

Irmão já casado se casa também com onça. Irmão solteiro se casa com gavião.

Esquecimento do irmão, provavelmente solteiro, morto

pelo sogro-onça.

Entrega do irmão casado para ser despedaçado pelos

cunhados-gaviões.

Aldeia ganha a festa do mel, oriunda do mundo

subterrâneo. Aldeia se recusa a transferir-se para o céu.

Aldeia humana e aldeia das onças permanecem, e

mantêm distância e respeito.

Aldeia humana é destruída pela enchente e seus

moradores viram passarinhos para serem comida dos gaviões

da aldeia celeste.

Origem do cocar O Apêndice 2 (pp. 275-7) do livro de Roque Laraia, Tupi: Índios do Brasil Atual (São Paulo:

USP-FFLCH, 1986), contém o "Mito de Aé", contado pelos índios caapor, do Maranhão. Como o leitor poderá averiguar pelo resumo a seguir, trata-se de uma variação do mito da origem da festa do mel, dos guajajaras, aliás seus vizinhos. Entretanto, ao invés da festa do mel, com ele os caapor explicam a origem do cocar.

Um homem sabia matar aé e dos ossos de um deles, que parecem contas, fez um colar para sua mulher. Sua cunhada viu o colar e quis que o marido dela também matasse um aé. Este então saiu numa noite de luar, que é quando os aé andam como o vento sobre a copa das árvores, e foi esperá-los debaixo de um pé de ypu?y, de onde aé tira o mel das flores com pequenas cabaças. À meia noite veio o aé, e o homem atingiu-o com duas flechas, uma em cada ombro. Mas ele não morreu; pelo contrário, o aé é que matou o homem.

No dia seguinte, como não retornasse, o irmão foi a sua procura e achou apenas uma poça de sangue debaixo do pé de ypu?y. Ele chorou muito e foi procurar um pajé, que lhe ensinou como achar o caminho para o lugar onde mora o aé, debaixo da terra: seria um buraco muito fino sobre um morro. Depois de muito o procurar, encontrou o buraco. Chamou outros índios, que cavaram bastante e depois o desceram por uma corda muito comprida. Lá embaixo encontrou o caminho de aé e seguiu-o até a aldeia.

Aé estava sozinho; as onças estavam caçando. Ele ofereceu um banco ao homem e conversaram. Depois de algum tempo o homem perguntou- lhe se ele tinha matado um índio. Aé confirmou e mostrou uma grande panela onde seus pedaços estavam sendo cozidos. O homem viu com horror que era a cabeça de seu irmão que boiava por cima. Aé convidou-o para dançar, e colocou o cocar, empunhou o tacape e cantou e dançou. O homem pediu-lhe o cocar e o tacape para dançar também. E aé os emprestou. O homem cantou e dançou, aproximando-se cada vez mais de aé, e de repente o matou com o tacape.

Nesse momento as onças chegavam da caçada e o perseguiram. E fugiu, alcançou a ponta da corda, seus companheiros o içaram rapidamente. Uma onça ainda chegou a arranhar-lhe as pernas. Despejando várias panelas de água fervente, os companheiros detiveram as onças que subiam pelo buraco. O homem morreu, mas o pajé soprou-lhe baforadas de fumo e ele viveu novamente, e contou que tinha matado aé. O pajé mandou colocar paus sobre o buraco e sobre estes pôs terra. Depois soprou e ficou parecendo chão novamente.

O homem estava com o cocar de aé. Assim os índios aprenderam a fazer cocar.

Comparação com o mito da festa do mel. No mito que acabo de resumir há um tipo de ser, aé, que também tira mel. Mas tira mel das flores e não das colmeias, como fazem as onças do mito guajajara. O aé anda de noite, como o vento pela copa das árvores, mas mora em aldeia

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subterrânea, junto com onças. Seria o aé algo como uma abelha ou será também uma onça? De qualquer modo, o mito nada diz do destino dado ao mel.

Diferentemente do mito guajajara, no caapor o homem vai procurar o irmão e não se esquece dele. Vinga-o, mata mesmo o aé e não se casa com nenhuma mulher do mundo subterrâneo.

Ao invés do conhecimento da festa do mel, como no mito guajajara, neste o homem traz um cocar, a partir do qual os caapor aprendem a fazê-lo. A propósito, convém notar que os caapor são muito conhecidos pela beleza e delicadeza de seus adornos plumários, uma arte na qual os guajajaras não se destacam, o que em parte se explica pelo fato de estarem em contato com os civilizados há muito mais tempo, podendo terem perdido muito da mesma. Se os delicados enfeites de penas dos caapor são inconfundíveis, a festa do mel, já decadente no tempo da pesquisa de Wagley e Galvão, não parece ter, salvo engano, paralelo entre outras sociedades tupis.

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12a aula A Mangaba e o Pequi

Julio Cezar Melatti

Março de 2001

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No artigo "O julgamento dos mitos", que publiquei na revista Ciência Hoje (nº 84, 1992), fiz

uma breve análise de seis pequenos mitos que me foram contados pelos craôs, do norte do Estado do Tocantins. Todos eles narravam como os habitantes de uma aldeia tinham aniquilado seres, alguns fisicamente monstruosos ou mutilados, que os vinham dizimando. Alguns desses seres eram transformações de indivíduos que haviam deixado a aldeia.

Vou retomar um desses mitos para mostrar como um pequeno detalhe do mesmo ecoa em mitos, ritos e jogos de povos que vivem afastados dos craôs e dos demais timbiras, mas ao longo de uma faixa que se estende em diagonal pelo mapa do Brasil: do sul do Maranhão e norte do Tocantins, passando pelo alto Xingu e alto Juruena no norte do Mato Grosso, até alcançar o rio Guaporé em Rondônia.

Entre os timbiras Trata-se do mito de um personagem conhecido na literatura etnológica como o "Perna de

Lança". Resumo a seguir a versão que me foi narrada por Gregório (irmão de Ambrosinho, ambos já falecidos) em 1963.

Um homem saiu acompanhado do cunhado para matar gaviões na queimada nova, de modo a obter penas para fazer flechas. Saíram já muito tarde. De noite fizeram fogo. Aí, perto de dormir, o cunhado (ipiayõ, marido da irmã) botou o pé no fogo, que cortou-lhe o pé. Ele atirou fora o pé e disse para o companheiro: "Vai buscar o pequi!" O outro procurou o pequi, mas não achou nada. O cunhado percebeu que ele já estava quase dormindo e fez ponta no osso

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da própria perna, que ficara exposto com a queda do pé. E furou o chão com a ponta. Então o companheiro se levantou, pois percebera que o cunhado queria furá-lo. O companheiro se deitou outra vez, mas o outro tentou furá-lo novamente. Então o companheiro correu, virou rato, foi-se embora para a aldeia, mas lá não contou nadinha do que acontecera.

O falecido etnólogo e fotógrafo Harald Schultz já havia divulgado uma versão muito mais detalhada desse mito, na sua coletânea "Lendas dos índios Krahó" (Revista do Museu Paulista, Nova Série, 1950). Na sua versão (pp. 119-23), o personagem é chamado de Hitéwa ("dente da perna de osso"; hi = osso, té = perna, wa = dente). Na que eu colhi, é chamado de Téwaré (té = perna, wa = dente, ré = diminutivo). Na verdade, trata-se do mesmo nome, considerando-se o acréscimo da partícula indicadora do diminutivo e que não raro os craôs omitem a primeira sílaba. A versão tomada por Schultz conta também que Téwaré tenta matar o cunhado, primeiro com seu osso aguçado, depois com fogo, quando este se transforma em preá e se esconde num cupinzeiro, conseguindo finalmente escapar para a aldeia. Téwaré passa então a matar, com a ponta do osso da perna, caçadores solitários ou que saíam em duplas, e até rapazes que dormiam, à noite, na praça da aldeia. Um velho aconselha os habitantes da aldeia a fazerem um boneco de casca de jatobá, de modo a enganar Téwaré. Este ataca o boneco pensando ser um homem, e não consegue mais retirar o osso que nele tinha fincado. Os habitantes da aldeia então o matam.

Por sua vez, um pesquisador ainda mais antigo, o famoso etnólogo Curt Nimuendajú, publicou no seu livro The Eastern Timbira (Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1946) uma versão do mesmo mito contado pelos canelas, índios timbiras do Maranhão. Essa versão (p. 248) não adianta muito mais do que a que ouvi dos craôs: chega até a tentativa de matar o cunhado com fogo, atacando a árvore no interior da qual este se escondera, penetrando por um buraco, sob a forma de rato.

Mas Curt Nimuendajú também publicou num outro livro, "Os Apinayé" (Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, tomo 12, 1956), a versão dos apinajés, índios timbiras da confluência do Tocantins com o Araguaia. Essa versão (pp. 131-2) avança mais longe que todas as outras. Após narrar que os moradores da aldeia mataram Tetxware (isto é, Téwaré) a cacetadas, diz que o degolaram e jogaram sua cabeça para um lado. Mas ela fugiu aos pulos. Voltou, porém, mais tarde e matava os homens, saltando-lhes sobre a nuca. Depois de tentativas fracassadas para matá-la, fizeram profundos buracos ao longo e aos lados de um caminho, e a chamaram, de modo que ela veio a cair dentro de um deles, não conseguindo mais sair. Aí então foi morta e depois sepultada num buraco mais fundo. De sua cova nasceu uma mangabeira de cujo látex se fizeram as primeiras bolas para a cerimônia de Peny-tág, que constitui parte integrante do rito de iniciação Pemb-kumrédy, correspondente ao Pembye dos canelas e ao já desaparecido Ikhréré dos craôs.

O detalhe que me interessa nesse mito é o seguinte: Téwaré, ao queimar e destacar o pé de sua perna, quer que seu cunhado o confunda com uma fruta de pequi que acaba de cair da árvore. Trata-se de uma brincadeira, aliás de mau gosto, que mereceria pouca atenção se não fosse o caso de estar presente em todas as versões até aqui mencionadas. Afinal de contas, se o pé deve ser confundido com um pequi, que cai pesadamente, a cabeça do personagem é saltadora e, depois de morta, dá origem a uma árvore, a mangabeira, que fornece látex para fazer bolas que igualmente saltam.

Na versão apinajé, o nome da cabeça saltadora que se destaca do corpo do "Perna de Lança" é Krã-grogrôd-re (ou, como aparece também no texto, Krã-grogród-re), que Nimuendajú traduz como "cabeça de maracá". Guardadas as diferenças de grafia e dialeto, esse nome parece o mesmo de um monstro de um outro mito que também comentei no referido artigo em Ciência Hoje: Khrãkhró'khrógré. Ainda que possa se tratar do mesmo ser, há diferenças a considerar: no mito apinajé, o ser mata batendo na nuca; no mito craô, cortando a parte póstero-inferior da perna (o que lembra mais uma vez a oposição entre a cabeça e o pé). No mito apinajé é uma bola saltadora; no craô tem pés, que são sua parte mais vulnerável, e em cujas plantas estão os olhos.

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Quanto ao ninho da abelha arapuá, arapuã ou irapuã (Trigona rufricus), com que as crianças o confundiram inicialmente no mito craô, diz-nos Rodolfo von Ihering em seu Dicionário dos Animais do Brasil (São Paulo: Editora UnB, 1968), na p. 358:

"O ninho é uma bola de meio metro de diâmetro, revestida exteriormente por algumas camadas de material folhado, quebradiço, que envolve não só o ninho propriamente dito (células e potes de mel), como ainda um anexo, às vezes considerável, constituído por uma massa compacta de barro e cera. Esta última parte do ninho não é habitada, pois nem há canais que a atravessem e assim parece que tem unicamente a função de dar peso ao ninho, para que este não balance com o vento. É uma das poucas espécies dos nossos meliponídeos que fazem ninho dependurado nas árvores (veja também 'iraxim') e não em cavidades."

O ninho de arapuá nos faz lembrar um outro mito, de dois irmãos, que está relacionado com a origem do rito Pembye dos canelas ou Ikhréré dos craôs: quando o irmão menos hábil é degolado pela grande coruja, o outro — conforme a versão divulgada por Harald Schultz na coletânea já referida — põe a cabeça dele numa forquilha de árvore, e sugere que ela se transforme num ninho de arapuá. Assim, a cabeça do irmão morto continua viva, ainda que transformada, enquanto o corpo jaz inerte no chão. Essa oposição entre uma parte superior do corpo ativa e uma parte inferior imóvel ainda se faz presente num outro mito, que apresentei também no artigo publicado em Ciência Hoje, no qual um homem, que teve seu corpo dividido ao meio por um sapo, abandonou a parte inferior do seu corpo e passou a andar de cabeça para baixo, sobre as mãos, com o coração e muito sangue à mostra.

Curt Nimuendajú, no seu livro "Os Apinayé", faz uma detalhada descrição da cerimônia de Peny-tág (pp. 50-4), desde a coleta do látex da mangabeira, que era passado nos corpos, braços e pernas dos reclusos (os Pemb), de modo a se obter fitas para a confecção das bolas de diferentes tamanhos, que posteriormente seriam passadas de um para outro pelos membros das metades Kolti e Kolré, dispostas num caminho radial, que partia do leste da aldeia para a praça central. Vale lembrar que os craôs também realizavam um rito com bolas de mangaba, denominado Pe(n)nhok (ape(n)n = mangaba; hok = seiva, leite, látex). Como já o abandonaram, não pude vê-lo, mas reuni as informações que obtive sobre o mesmo nas pp. 175-6 do livro Ritos de uma Tribo Timbira (São Paulo: Ática, 1978). Era diferente do rito apinajé, mas, tal como neste, as bolas eram adornadas com penas e rebatidas com instrumentos de madeira.

Nimuendajú se recusava a aceitar a associação que os apinajés estabelecem entre a cerimônia de Peny-tág e um mito que faz convergir dois motivos que em outras mitologias indígenas se acham separados: o do "Perna de Lança" e o do "Crânio Rolador". Preferia relacioná-lo ao que supunha ser um culto solar dos apinajés, admitindo que estes já teriam perdido a consciência de semelhante conexão. Essa observação leva- me à suposição de que Nimuendajú admitia a existência de versões míticas mais adequadas ou mais fidedignas do que outras, um modo de pensar que os etnólogos acabaram por abandonar após Claude Lévi-Strauss ter mostrado que a viabilidade de interpretação de um mito se amplia se suas diferentes versões forem consideradas como igualmente válidas e tomadas como complementares.

No alto Xingu Na área vizinha, a do alto Xingu, os motivos do "Perna de Lança" e da "Cabeça Roladora"

também estão presentes, mas não num mesmo mito. A versão do "Perna de Lança" que Ellen Basso colheu entre os calapalos, transcrita nas pp. 187-8 de seu livro A Musical View of the Universe (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1985), não associa esse personagem, aí chamado de Fitsifitsi, nem mesmo com o pequi. Ele resulta da transformação de um homem que foi coletar caramujos com um companheiro e demorou-se em raspar a carne de uma das pernas com uma concha e afiar o osso assim posto à mostra. O companheiro, percebendo que algo muito estranho acontecia, fugiu aterrorizado para a aldeia, fechando a porta da maloca. O "Perna de Lança" aproximou-se e pediu para lhe abrirem a porta, não sendo atendido; no dia seguinte voltou e

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também não foi atendido. Então ele furou a porta com seu osso afiado, dizendo aos moradores que era assim que os mataria. E foi embora. No mesmo volume, logo em seguida a essa versão, está o mito de Aulati (pp. 188-92), que lembra o tema da "Cabeça Roladora", e que resumo a seguir.

Um jovem que saiu com sua irmã e o marido dela para tirar mel. Ele subiu para cortar a colmeia e o mel começou a cair no pote que sua irmã pôs ao pé da árvore. As abelhas vieram agarrar-se a seus cabelos e começaram a picá-lo, e a comer seus olhos e cabelos. Seu sangue começou a pingar sobre o mel, que escorria em grande quantidade. Sua irmã e seu cunhado mergulharam os dedos no mel e sentiram gosto de sangue. Pensando que algo terrível acontecia, o casal fugiu. Mas antes o cunhado deixou seus batoques auriculares junto ao pote, de modo que eles respondiam quando o jovem o chamava lá de cima. Ele já não tinha carne na cabeça, nem lábios, era todo sangue. Saiu atrás do cunhado, mas encontrou a porta da casa fechada e ninguém a abriu. Passou a ir lá todos os dias, ao anoitecer, mas ninguém lhe abria a porta. O cunhado não saía para tomar banho, nem urinar. Depois de algum tempo, o cunhado saiu para o banho. O jovem então pulou sobre suas costas e nela ficou agarrado. E passou a comer e a beber tudo o que o cunhado ia levar à boca. Se o cunhado ia pescar, apoderava-se dos peixes assim ele os tirava da água ou da armadilha e os comia crus. O cunhado definhava cada vez mais. Alegando estar com muito frio, o cunhado conseguiu se desvencilhar dele, entrou numa corrente de água e fugiu pela cabeceira. Abandonado, Aulati pulou sobre um tapir, chamando-o de cunhado, e começou a tomar-lhe tudo o que ia comer, até que o animal morreu. Apareceu então Ñafïgï, (uma mulher trickster, prima de um outro trickster, Taugi, o Sol) que ele agarrou, chamando-a de cunhado e ordenando que o carregasse. Ela porém se negou e propôs que se tornasse marido dela e o levou para sua casa.

Fisicamente, Aulati é como o inverso da "Cabeça Roladora": é um corpo animado quase sem cabeça, uma vez que não tem olhos, lábios e nem os tecidos moles sobre o crânio. Aparentemente não há nenhuma relação do personagem deste mito com a mangabeira. Entretanto, talvez haja uma relação indireta, pois as abelhas que atacam a cabeça de Aulati são chamadas de aga pelos calapalos e Ellen Basso as identifica como Trigona spinipes (p. 212), certamente uma espécie próxima da arapuá (Trigona rufricus), cujo ninho, como já foi mostrado, tem relação com a cabeça saltadora que dá origem à mangabeira no mito apinajé.

Mesmo que não haja evidência de uma relação da mangabeira com a "Cabeça Roladora", a bola feita com seu látex está presente nos mitos xinguanos. Em seu livro Kwarìp (São Paulo: EPU e EDUSP, 1974), diz o etnólogo Pedro Agostinho que, no tempo de sua pesquisa, centrada nos camaiurás, aí também havia um jogo de bola, em vias de ser abandonado (p. 8). Num mito apresentado no mesmo livro há referência a um jogo de bola praticado pelas onças (p. 172). O etnólogo Etienne Samain, no seu livro Moroneta Kamayurá (Rio de Janeiro: Lidador, 1991), também transcreve um mito em que as onças disputam num jogo com bolas de látex de mangabeira (pp. 195-197). Infelizmente, não é possível reconstituir o jogo a partir do mito, pois este se refere a participantes, onças e humanos, que procuram atingir um ao outro também com bolas de pedra. Mas fica claro que as bolas de látex (e também as de pedra) são atiradas com as mãos, e não rebatidas com palhetas ou cilindros de madeira como entre os timbiras. Ao contrário do que acontece com os timbiras, é mais um jogo do que um rito, com vencedores e perdedores.

Além disso, no seu livro, Pedro Agostinho faz menção a algumas crenças e mitos xinguanos referentes à mangaba e ao pequi que lembram a mitologia timbira e a alguns detalhes que põem os dois vegetais em oposição. Assim, depois do encerramento do rito do Kwarìp, as castanhas de pequi que sobraram são socadas e misturadas ao peixe cozido, resultante de uma pescaria especialmente realizada para isso, que é servido com beiju aos homens e mulheres casados. "Desses, entretanto, é conveniente que se abstenham os mais novos e com poucos filhos, pois se não o fizerem ficarão sentindo os pés como queimados; mesmo os já maduros e com dois filhos sentirão os pés doerem ao viajar" (pp. 107-108). É clara a identificação entre pé queimado e pequi. Segundo os xinguanos, o pequizeiro surgiu das cinzas de um jacaré, enterradas por suas duas

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amantes, que o queimaram, após ele ter sido abatido pelo marido delas. Elas passaram a viver junto ao pequizeiro. Como as frutas dessa árvore não tinham cheiro, um homem, que se considerava dono do Murená (a área de confluência dos rios Ronuro, Batovi e Culuene, onde ocorreram os episódios míticos primordiais relativos à formação dos seres humanos), tomou um pequi e deitou-se na porta da casa delas. Quando cada uma delas abria as pernas para cruzar a porta por sobre o corpo dele, o homem passava o pequi no sexo dela. Assim, o odor que era anteriormente do sexo das mulheres transferiu-se para o pequi (pp. 186-189). Se o pequi se relaciona com uma abertura inferior do corpo da mulher, a mangaba se associa a uma abertura superior: foi com as sementes de mangaba que Mavutsini(n) fez os dentes das mulheres (pp. 162 e 172). E esse detalhe se desdobra numa nova oposição, desta vez entre a parte anterior da boca das mulheres e a posterior da boca das onças: são os espinhos de pequi, misturados pelas mulheres na comida que deram aos parentes da onça, ferindo-lhes as gargantas, que fizeram com que perdessem a voz e passassem a roncar (pp. 164 e 173).

Vale ainda apontar mais uma oposição entre a mangaba e o pequi, mas entre diferentes regiões. Em contrapartida à evidente relação entre o pequi e o sexo das mulheres xinguanas, a mangaba associa-se ao sexo dos homens apinajés: conforme o já citado trabalho de Nimuendajú (p. 50), se, na confecção das bolas, o látex não aderir à pele de algum dos iniciandos e juntar-se em pequenos fios ao invés de formar faixas largas, isso é tido como prova de que ele transgrediu a abstinência sexual, sendo por isso derrubado e esfregado com areia.

Antes de passar para outra área, quero fazer uma observação sobre a versão calapalo da origem do pequi, presente nas pp. 185-92 do livro de Ellen Basso In Favor of Deceit (Tucson: The University of Arizona Press, 1987). Tal como na versão camaiurá, o pequizeiro nasceu dos restos de um jacaré morto pelo marido das mulheres com as quais aquele tinha relações sexuais. Na versão calapalo, as mulheres são cinco irmãs, cigarras; o marido delas é o inhambu (possivelmente o Crypturellus parvirostris, inhambuxororó). Denunciado pela cotia, o jacaré é morto pelo marido. As mulheres o sepultam; não há referência à queima do jacaré. No lugar onde foi enterrado nasce o pequizeiro. É uma das mulheres que, cortando o fruto com uma fita de palha que antes passou por sua vulva, dá ao pequi o seu perfume. A versão calapalo vai além do episódio do perfume (onde a camaiurá termina): diz como as mulheres aprenderam a conservar a polpa do pequi. Tendo experimentado vários procedimentos (secá-la ao sol, moqueá-la, assá-la sobre o fogo) que não deram certo, elas consultam Taugi, o trickster, sobre o que devem fazer. Este lhes pergunta de onde ele (o pequi, o jacaré) veio. Elas lhe respondem que da água. Então conclui ele que a polpa deveria ser colocada na água. E as mulheres então colocam a polpa em cestos forrados com folhas, na água, tal como se processa hoje o pequi no alto Xingu. E o mito continua, dizendo da fascinação de Taugi pelo gosto do pequi, e de uma disputa com o grilo (que seria ele próprio), que ele esmaga com um fruto de pequi. Em suma, ao invés de associar o pequi com pé queimado, como os timbiras ou os camaiurás, o mito calapalo privilegia sua relação com a água.

No alto Juruena e no Guaporé O jogo da bola também existe no alto Juruena (e alto Paraguai), entre os parecis e

nambiquaras, e entre os índios de diferentes famílias tupis do rio Guaporé. Na dissertação de mestrado do etnólogo Aderval Costa Filho, "Mansos por Natureza" (Brasília: UnB, 1996), há uma referência à realização desse jogo pelos parecis: "Só por ocasião dos jogos de bola de mangaba — futebol de cabeça —, os jogadores apostam e trocam bens como roupas, caixa de fósforo, anzol, sabonete, pente etc."... (p. 92). O ex-presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt, que fez uma expedição pelos vales do Madeira e do Tapajós em 1914, presenciou o jogo realizado pelos parecis e o descreveu no seu livro Através do Sertão do Brasil (São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1944, Col. Brasiliana, vol. 232). Diz ele que a bola tinha cerca de 20 centímetros de diâmetro. Colocada no chão entre os dois times, de oito, dez ou mais jogadores cada um, recebia uma cabeçada inicial de um dos participantes, que, para tanto, tinha de mergulhar de barriga no solo, uma vez que ela

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não podia ser tocada por pés, mãos ou outra parte do corpo, a não ser o alto da cabeça. Um jogador do time oposto a rebatia da mesma maneira, mas de tal modo que ela se elevava do solo. E assim ela ia sendo projetada de um time para outro, cada vez mais alta até que passava fora do alcance das cabeças dos jogadores de um dos times, caindo atrás deles, o que era saudado com gritos de triunfo pelos adversários. Recomeçava-se tudo outra vez (pp. 199-200).

Os nambiquaras, vizinhos dos parecis, parecem jogar bola da mesma maneira, a julgar pelo que é mostrado, de modo breve, no vídeo de Vincent Carelli A Festa da Moça (18 min., VHS, NTSC; São Paulo: Centro de Trabalho Indigenista, 1987). Quanto ao vale do Guaporé, Franz Caspar, em seu livro Tupari (São Paulo: Edições Melhoramentos), assim descreve o jogo da bola entre os tuparis, entre os quais esteve em 1948:

"Assim estávamos essas semanas — até que enfim viria a chuva e daria o sinal para o plantio — fartamente ocupados com a queimada e plantação das roças, caçadas e envenenamento de peixes. Se, por acaso, se intercalava uma manhã ociosa então os homens se dedicavam com entusiasmo a dar cabeçadas na bola. Enfrentaram-se em dois partidos, jogavam a bola de borracha de lá e para cá; quando a bola caía no chão, ou um jogador a tocava com a mão ou pé, seu partido perdia um ponto. Segundo sua sorte e destreza, os índios perdiam ou ganhavam no jogo muitas flechas. Antes de apostarem tais flechas, esfregavam-nas com fervor sob a axilas:

— Ela tem meu cheiro, e assim voltará outra vez para mim!"

Se no vale do Guaporé existe o jogo da bola, os motivos do "Perna de Lança" e da "Cabeça Roladora", aí também presentes, não convergem num mesmo mito, como mostram as coletâneas organizadas pela etnóloga Betty Mindlin. O motivo da "Cabeça Roladora" aparece na versões tuparis nas pp. 69 e 106-7 do volume Tuparis e Tarupás (São Paulo: Brasiliense, EDUSP e IAMÁ, 1993), nas versões macurap, ajuru, jabuti e aruá respectivamente nas pp. 63-5, 159-61, 180-4 e 227-8 do volume Moqueca de Maridos (Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997) e na versão macurap nas pp. 180-2 do volume Terra Grávida (Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1999). Por sua vez, o motivo do "Perna de Lança" aparece em versões aruá, tupari e macurap, respectivamente nas pp. 173-6, 177-8 e 178-9 do volume Terra Grávida.

Nessas versões do vale do Guaporé, a "Cabeça Roladora" nunca dá origem à mangaba. Em quase todas as versões, a cabeça é de uma mulher, que dormia na rede com o marido e deixava o corpo à noite para comer; descoberta, a mulher tem seu corpo queimado quando a cabeça está ausente. O marido tem então de fazer repetidas tentativas para livrar-se da cabeça da mulher, que insiste em acompanhá-lo ou mesmo prender-se ao corpo dele. Quanto às versões do "Perna de Lança", nunca há alusão ao pequi. O homem que perde as pernas no fogo (numa das versões são os ratos que as comem) transforma-se numa ave que não corresponde a nenhuma espécie conhecida ou num fenômeno celeste não muito bem identificado. A própria expressão "Perna de Lança" perde o sentido quando aplicada aos personagens míticos desta região, pois os ossos das pernas queimadas não são aguçados de modo a formar uma arma.

Mas é entre os nambiquaras que a mangaba e o pequi voltam a aparecer, não nos mitos, e nem relacionados à "Cabeça Roladora" ou ao "Perna de Lança", mas sim no âmbito do cerimonial. No artigo "Miriam's Awakening" (The Word & I, maio de 1989), o falecido etnólogo David Price descreveu o festival de puberdade que se realizou por ocasião da primeira menstruação de uma jovem nambiquara no final de 1973. Nos cânticos desse rito (pp. 686-7), naqueles versos que se referem à situação de passividade da mocinha dentro da choça de reclusão, há uma insistente invocação a um ser sobrenatural denominado "Donzela Pequi"; depois os cânticos passam a referir-se à quebra dessa passividade e então aludem à derrubada do pequi pela reclusa; finalmente aludem à maturidade sexual que ela acaba de atingir, sendo que um dos versos diz: "Donzela, comamos o fruto da mangaba." Infelizmente, o texto não oferece elementos para identificar o pássaro da família dos turdídios a que a mocinha é comparada e nem a espécie da abelha cujo ninho os cânticos mencionam.

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Price também se refere a bolas constituídas de uma mistura de carne e pequi esmagados no pilão oferecidas pelo pai da moça reclusa aos participantes da cerimônia (p. 682), o que lembra a já referida mistura de castanhas de pequi socadas adicionadas ao peixe cozido no Xingu. Mas não faz qualquer alusão a efeitos produzidos naqueles que comem esse alimento.

Resumindo Em suma, à medida que a observação se desloca de nordeste para sudoeste ao longo da faixa

que inicialmente indicamos, do sul do Maranhão ao sul de Rondônia, as relações entre os elementos ligados à mangaba e ao pequi passam por transformações que parecem constituir um sistema. A oposição mangaba/pequi entre os timbiras contrapõe a cabeça ao pé no corpo masculino, no alto Xingu opõe a boca ao sexo no corpo feminino, para finalmente entre os nambiquaras distinguir entre a passividade da donzela reclusa e o seu desabrochar sexual. A bola de mangaba, por sua vez, é o artefato central de um rito entre os timbiras e peça de um jogo nas demais regiões abordadas; enquanto objeto ritual, é adornada com penas, mas não nas disputas esportivas. A maneira de operar com as bolas também se transforma ao longo dessa faixa geográfica: rebatidas com palhetas ou cilindros de madeira entre os timbiras, são atiradas com as mãos no alto Xingu, e finalmente cabeceadas pelos parecis, nambiquaras e índios do vale do Guaporé. Quanto à relação da mangaba e do pequi com os temas da "Cabeça Roladora" e do "Perna de Lança", ela só parece existir entre os timbiras, e de modo mais completo entre os apinajés, perdendo-se quando se avança para sudoeste.

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13a aula O Jaguar e a Sucuriju

Julio Cezar Melatti

Março de 2001

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na inicial

Há dois temas de presença muito difundida nas mitologias de sociedades indígenas, não raro

afastadas entre si espacial e culturalmente. Um deles é o dos gêmeos retirados com vida do corpo da mãe após ter sido morta por uma onça em cuja casa estava abrigada ou exercia o papel de esposa. O outro é o dos seres, humanos ou não, gerados por uma grande cobra em uma mulher, de cujo ventre saíam e a ele retornavam. Embora apareçam em mitos distintos, há casos em que se combinam num mesmo mito.

Os gêmeos na mitologia guarani No apêndice se seu famoso livro As Lendas da Criação e Destruição do Mundo como

Fundamentos da Religião dos Apapocuva-Guarani (São Paulo: HUCITEC e EDUSP, 1987; publicado originalmente em alemão em 1914), Curt Nimuendaju apresenta o mito guarani dos primórdios, onde os gêmeos são personagens importantes. Aqui resumo uma parte dele:

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Após ter criado a primeira mulher, o ser supremo Ñanderuvuçú e seu companheiro Ñanderu Mbaecuaá nela geraram cada qual um filho, e os dois estavam no ventre dela. Como a mulher duvidasse da palavra de Ñanderuvuçú, que lhe tinha ordenado ir colher milho na roça logo após ele ter voltado do plantio, ele zangado foi embora. Não encontrando o marido em casa, a mulher foi procurá-lo. Do interior de seu ventre, o filho do ser supremo falava com ela, ora pedindo-lhe para colher certa flor, ora lhe ensinado o caminho que levava à casa do pai. Como uma vespa picou a mulher ao apanhar uma flor solicitada, ela repreendeu o filho por pedir-lhe flores e este, zangado, quando outra vez solicitado a ensinar o caminho, mostrou o atalho do Jaguar Eterno.

Ao lá chegar, foi escondida por uma velha onça, para que não fosse encontrada pelos seus netos quando voltassem da caçada, pois eram extremamente bravos. Quando estes, retornaram, um deles atirou-se sobre a bacia sob a qual se escondia a mulher e a matou. A avó, alegando que não tinha dentes, pediu ao neto que retirasse os gêmeos e os colocasse em água quente, para ela comê-los. Porém, não foi possível nem cozê-los na água quente, nem pisá-los no pilão e nem assá-los na cinza. Foram então criados pela velha onça.

Cresceram rapidamente. Aprenderam a caçar. Um jacu alvejado por eles perguntou-lhes por que o matavam para alimentar aqueles que havia matado a mãe deles. Um papagaio confirmou a informação. Eles choraram. O irmão menor queria mamar, e o maior tendo encontrado os ossos da mãe, refez o corpo dela. Mas, após o menino ter mamado, o corpo dela foi destruído.

Fingindo brincar com um mundéu, os irmãos foram matando os jaguares um a um , atirando-os num abismo. A velha onça e outros jaguares foram atraídos por eles sob pretexto de colher certa fruta de modo a atravessarem uma corrente d'água. Um cabresto manipulado pelo irmão menor, precipitou os jaguares na água, onde foram devorados pelos animais aquáticos. Somente uma onça prenhe conseguiu atravessar para o outro lado e por isso continuam a existir jaguares.

Os gêmeos conforme os guajajaras Charles Wagley e Eduardo Galvão, no seu livro Os Índios Tenetehara (Ministério da Educação

e Cultura, Serviço de Documentação, 1961), apresentam também o mito dos gêmeos (pp. 141-4), contado pelos guajajaras (os teneteharas do Maranhão; os do Pará são os tembés). A mulher aqui é esposa de Maíra e sai à procura dele (o episódio da desconfiança da mulher sobre seu poder de fazer as plantas crescerem depressa está em outra narrativa). Na versão guajajara, o filho também orienta a mãe sobre o caminho correto; também lhe pede flores. Quando a mãe se zanga por bater numa casa de marimbondos, ele se cala e por isso ela, perdida vai chegar à casa de Mukwura (mucura, gambá). Este, fazendo furos no teto de modo que a água da chuva atinja a rede da mulher, faz com que ela acabe dormindo junto com ele na mesma rede. Assim é gerado o segundo gêmeo. Se o primeiro é Maíra-Yra, o segundo é Mukwura-Yra. Ao chegar à casa do jaguar, é aí também escondida por uma onça velha. O jaguar, filho da velha, descobre a mulher, persegue-a mata-a, retira-lhe os gêmeos do ventre e faz várias tentativas fracassadas de cozinhá-los.

A onça velha então resolveu criá-los. Eles brincam tomando a forma de diversos animais e até uma vez brincaram com a cabeça da velha, jogando-a um para o outro. Um jacu contou-lhes como tinha sido a morte da mãe deles, e os gêmeos resolveram se vingar.

Fizeram uma ponte sobre uma lagoa que eles próprios criaram cheia de piranhas que eles também criaram. Convidando as onças para uma pescaria, derrubaram a ponte quando elas a atravessavam.

A versão guajajara, tal como a guarani, termina com o encontro do pai, depois de passar por outros episódios.

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Os gêmeos, no alto Xingu Roque Laraia, em seu artigo "O Sol e a Lua na mitologia xinguana", no volume Mito e

Linguagem Social (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970, pp. 107-34) apresenta três versões do mito dos gêmeos: uma contada pelos bacairis, recolhida por Karl von den Steinen no final do século XIX; outra colhida dos calapalos pelo zoólogo José Cândido de Carvalho em meados do século XX; e a terceira, dos camaiurás, por ele próprio.

As três versões apresentam diferenças entre si, mas concordam em suas linhas gerais. Elas se assemelham às versões guarani e guajajara nos episódios da morte da mulher grávida, na criação dos gêmeos por uma onça velha, na revelação do segredo da morte da mãe aos gêmeos por um animal, na vingança dos gêmeos. Mas diferem quanto à relação entre a mãe dos gêmeos e o ser supremo: ela é esposa do ser supremo nas versões guarani e guajajara, mas é como que uma filha dele nas versões xinguanas. O alto Xingu, o criador dos seres humanos, cujo nome varia com a língua da sociedade xinguana que narra o mito, escapa das garras do jaguar prometendo- lhe as filhas em casamento. Como estas relutam em cumprir a promessa do pai, este confecciona cerca de meia dúzia de mulheres de madeira, que ganham vida e são enviadas ao jaguar. Várias ocorrências no caminho vão diminuindo o número de mulheres: ingestão de água não potável, relações sexuais com o tapir de enorme pênis, queda de palmeira, matam algumas delas, de modo que somente chegam duas à casa do jaguar, com quem se unem. Esses acidentes substituem a desavença entre mãe e filho, ainda no útero, das versões guarani e guajajara.

O pai dos gêmeos varia com as versões: pode ser o próprio jaguar, ou ossos dos dedos de um bacairi trazidos pelo jaguar que uma das esposas come. Uma das mulheres fica grávida, a outra não. Numa das versões xinguanas, a mulher que não engravidou na casa do jaguar engravidará depois do assassinato da irmã, fazendo-se instrumento da vingança dos gêmeos: comendo cinza de taquari, ela dá origem aos índios bravos, como os caiapós e os suiás, que ajudarão os gêmeos a aniquilar as onças. Nessa mesma versão, que é a calapalo, antes do combate, um dos gêmeos faz seu pai jaguar sentar-se num arco retesado, despedindo-o para o céu. É curioso esse episódio porque afasta e ao mesmo tempo aproxima a versão calapalo da guarani; afasta porque o pai do gêmeo é o jaguar, e não o criador; mas aproxima porque coloca no céu um jaguar, tal como os guaranis acreditam num grande jaguar azul que devorará os homens no final dos tempos, quiçá o mesmo Jaguar Eterno de que fala a versão guarani. Por outro lado, esse episódio também aproxima a versão calapalo de todas as versões desse mito em geral, nos quais a destruição dos jaguares nunca é total, sempre escapa algum para dar continuidade a sua existência.

Vale notar que, mais recentemente, Ellen Basso, nas pp. 29- 81 de seu livro In Favor of Deceit (Tucson: The University of Arizona Press, 1987), publicou mais uma versão calapalo, cuidadosamente colhida e traduzida, do mito dos gêmeos.

As versões xinguanas ainda têm uma peculiaridade não compartilhada com a guarani e a guajajara que é a associação deste mito com o Kwa'rip, rito funerário e ao mesmo tempo relacionado à iniciação das jovens e que ainda dá ocasião ao congraçamento entre aldeias de diferentes etnias, onde os troncos que representam os mortos também aludem à confecção das mulheres de madeira.

A mulher bororo e a sucuriju Passando ao outro tema, o das relações de uma mulher com uma serpente, resumirei

rapidamente um mito bororo publicado nas pp. 197-9 do livro Os Bororos Orientais, de Antonio Colbacchinni e Cesar Albisetti (São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1942; o original em italiano é de 1927).

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Um homem, tendo abatido uma sucuriju, deu a sua mulher um grande pedaço da cobra para transportá-lo para a aldeia. Mal colocado às costas da mulher, o sangue que escorria da cobra penetrou nela e a fecundou.

Um dia, sozinha diante de um jenipapeiro, quando se perguntava quem podia nele trepar para tirar os frutos para ela, o ser gerado pelo sangue se ofereceu para fazê-lo e, saindo da mulher sob a forma de serpente, subiu na árvore, tirou os jenipapos e voltou para o corpo da mulher. Assustada, ela comunicou o ocorrido aos irmãos. Eles lhe recomendaram que voltasse à árvore acompanhada por eles. Ela tornou a repetir a mesma pergunta diante da árvore e a serpente novamente saiu de dentro de seu corpo para colher os frutos. Mas ao descer da árvore, não conseguiu entrar novamente no corpo dela, pois os irmãos da mulher a abateram a pauladas. Queimaram a cobra numa fogueira e retornaram à aldeia.

Quando voltaram ao local, viram que das cinzas da cobra haviam nascido o urucuzeiro, a resina de almécega, o tabaco, o milho e o algodão, elementos muito importantes como alimento, matéria-prima para ornamentos e fonte de prazer dos bororos.

A mulher mundurucu e a serpente verde Se no mito bororo, a morte da sucuriju trouxe uma contribuição importante para a cultura do

grupo, no mito mundurucu, que resumirei agora, o resultado é negativo, gerando apenas vingança. Ele foi publicado nas pp. 125-6 do livro Mundurucú Religion, de Robert Murphy (Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1958).

Diferentemente da mulher mito bororo, a personagem mundurucu não se sente molestada pela cobra, pelo contrário, procura- a.

É uma serpente verde que vive no alto da sorveira. A mulher costuma ir freqüentemente até aí, chama a serpente, tem relações sexuais com ela, depois ganha os frutos da árvore e as leva para a casa. Aí diz aos parentes que colheu os frutos dos galhos quebrados que tombaram no chão. Finalmente fica grávida.

Um irmão desconfia da assiduidade com que ela vai a floresta e do seu constante sucesso na coleta da sorva. Escondendo-se, vai atrás dela para observar. Retorna e conta à mãe o que viu e ainda recomenda aos moradores da aldeia que evitem os frutos trazidos pela irmã, já que não foram colhidos por gente. Resolvido a matar a serpente, o irmão vai até ao pé de sorva. Imitando a irmã, chama a cobra e, quando ela desce, mata-a. Enrola-a em torno da base do tronco, de modo a parecer que a serpente está apenas dormindo.

Quando volta a procurar a serpente, a mulher a encontra morta, e retorna à aldeia sem frutos de sorva. Procura então um homem que conhecia uma fruta que dava a habilidade a quem a comesse de ver as coisas tal como realmente acontecem. Ela come a fruta möriapa e vê que foi o irmão quem matou a cobra. Espera seu filho, gerado com a serpente, nascer e crescer. Conta-lhe então que seu tio materno fora quem matara o pai dele. O rapaz pede então ao tio que faça flechas para ele, e o mata com as próprias flechas que fizera.

Os xamãs, percebendo que qualquer um podia dispor de seus poderes, para impedi-lo tornam a fruta möriapa venenosa.

Digressão: uma transformação do mito anterior Um mito é como uma encruzilhada de onde partem muitos caminhos. Embora não seja a

vereda que eu queira tomar no momento, acho que vale a pena fazer uma referência ao mito da origem da citada fruta que faz ver a verdade, pois, sem ser propriamente o inverso do mito da serpente verde, ele o transforma. Ele está publicado no mesmo livro (pp. 124-5) e precede o que acabei de resumir.

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Trata-se da história de um homem que tinha relações sexuais com uma preguiça. Ele saía com seu irmão mais novo para a roça, ali dizia a ele que ia caçar pássaros, ia sozinho em busca da preguiça, que vivia no alto de uma árvore. Chamava-a, fazia-a descer e tinha relações sexuais com ela. Ao retornar ele declarava não ter encontrado um único pássaro. Desconfiado, o irmão foi atrás dele para ver o que realmente estava acontecendo. Tendo descoberto, contou para a cunhada, mas prometeu-lhe que ia matar a preguiça. Foi até a preguiça e chamou-a como se fosse o irmão. Ela desceu e ele a matou com um porrete. Depois colocou um grande galho sobre a sua cabeça para dar a impressão de que ela morrera por acidente.

Quando o amante da preguiça foi procurá-la, interpretou sua morte como realmente um acidente, mas ficou desesperado e gritou até ficar quase sem voz. De volta para casa, recusou a comida oferecida por sua esposa, dizendo-lhe que o jaguar havia roubado a sua voz. Resolveu então suicidar e experimentou todas as variedades de plantas não comestíveis, na esperança de ingerir alguma que fosse venenosa.

E foi assim que veio a conhecer o fruto da möriapa, que habilitava a quem o comesse ver as coisas como realmente eram. Comeu o fruto e caiu em transe, durante o qual viu que o irmão tinha matado a preguiça. Quando voltou a si, matou o irmão.

A mulher timbira e a cobra Seria um nunca acabar se eu resolvesse apresentar aqui todos os mitos conhecidos em que

uma mulher tem relações sexuais com uma serpente. Mas vale a pena fazer uma referência ainda àquele que é talvez o mais conhecido, por ser um dos mais focalizados nos trabalhos etnográficos. O mito timbira de Aukê ou da origem dos civilizados. Vários autores publicaram versões desse mito. Só Roberto DaMatta o toma duas vezes para análise: uma, no artigo "Mito e autoridade doméstica", no volume Ensaios de Antropologia Estrutural (Petrópolis: Vozes, 1973, pp. 19-61); outra no artigo "Mito e anti-mito entre os Timbira", no já referido volume Mito e Linguagem Social (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970, pp. 77-106). Eu mesmo publiquei mais de uma versão no livro O Messianismo Krahó (São Paulo: Herder [atual EPU] e EDUSP, 1972), também divulgado na internet: http://www.geocities.com/juliomelatti/livro72/mess.htm

É, com muitas variações, a história de uma mulher que teve relações sexuais com uma cobra, ou um outro ser, ficou grávida, e, quando ia tomar banho no ribeirão, seu filho saía do ventre para brincar, tomando a forma de vários animais. Depois que nasceu, continuou a transformar-se, apresentando-se como um ser humano de idade igual à daquele que dele se aproximava. Amedrontados, os moradores da aldeia decidem matá-lo, com a permissão e ajuda do irmão da mãe (ou do pai da mãe). Depois de algumas tentativas frustradas, conseguem queimá-lo numa fogueira. Posteriormente, quando voltam ao local, seus parentes próximos verificam que ele transformou-se no primeiro homem branco, com sua fazenda, seu gado, suas mercadorias, seus policiais ou jagunços. Indo todos visitá- los, são intimados por Aukê a escolher entre o arco e a espingarda. Como preferiram o primeiro, permaneceram índios.

A combinação dos dois temas num mito marubo O mito da origem dos brancos contado pelos marubos também começa com as relações entre

a mulher e a cobra, mas logo o combina com o tema inicialmente tratado, o das relações entre a mulher e o jaguar. Apresentei três versões desse mito quando o analisei no artigo "A origem dos brancos no mito de Shoma Wetsa" (Anuário Antropológico/84, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro), e voltei a tratar dele no artigo "Shoma Wetsa: A história de um mito" (Ciência Hoje nº 53, pp. 56-61, 1989).

É a história de uma mulher que tinha relações com as lombrigas, num canto da maloca e também com duas grandes cobras que ficavam numa árvore próxima. Descobertas, a mãe e os

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irmãos da mulher acabam com umas e outras. Zangada, a mulher abandona a maloca, pedindo em altos brados que a onça venha comê-la. Um homem que caçava pássaros, esperando-os num andaime no alto de uma árvore, ouve os gritos e desce. Quer fazer da mulher a sua esposa, mas antes trata de livrar as partes genitais dela de todos os perigos que podem ameaçá-lo. E assim, da vagina ou dos pêlos pubianos saem vários animais de picada dolorosa ou peçonhentos (formiga-de-fogo, lacraia, arraia), outros mágica ou fisicamente perigosos (alma-de-gato, peitica, sucuriju), e ainda a Estrela d'Alva e Vésper.

O homem apresenta a mulher a sua mãe, Shoma Wetsa, que não gosta da união, alegando que ele deveria se casar com uma prima, uma parenta mais próxima. Shoma Wetsa era uma mulher canibal, com o corpo de metal e grandes lâminas a saírem de seus cotovelos. Tinha apenas um seio. Começam a nascer os filhos do casal e Shoma Wetsa vai comendo um a um, a cada vez que aceita a incumbência de tomar conta deles. Revoltado, o filho de Shoma Wetsa decide matá-la, fazendo-a dançar em torno de um buraco com uma fogueira no centro da maloca. Ajudado por uma alavanca, derruba-a no buraco.

Antes de morrer Shoma Wetsa faz algumas recomendações ao filho, como a de tomar certo tipo de ayahuasca e de não recebê-la com a palavra nawa (civilizado), quando ela retornasse trazendo de volta os netos que havia comido. Sua identificação com a onça fica mais clara nesse momento, quando o lugar em que morreu é visitado por animais noturnos, inclusive a onça. Como o filho e a nora recebem Shoma Wetsa dizendo a palavra proibida, ela e os que a seguiam voltam para traz e vêm a tornar-se os civilizados.

A diferença entre Shoma Wetsa e a velha onça dos mitos guarani, guajajara e xinguano, é que ela poupa a nora e come os netos. Além disso, os netos não são gêmeos. Se gêmeos há, eles são Estrela d'Alva e Vésper, filhos anteriores ao casamento com o filho de Shoma Wetsa. De certa maneira eles são diferentes dos animais peçonhentos que surgem junto com eles. Devem ter forma humana, pois são responsáveis respectivamente pelo amanhecer e o anoitecer, quando erguem no horizonte, oriental ou ocidental, seus escudos de couro de anta branca ou de anta preta.

A combinação dos dois temas no mito iecuana Impressionante é a combinação dos dois temas na mitologia iecuana, a que se agregam

também outros temas clássicos nas narrativas indígenas sul-americanas. Volto aqui ao livro Watunna, organizado por Marc de Civrieux, a que recorri quando tratei da formação do universo e da humanidade. Refiro-me a um conjunto de narrativas que fazem parte de um conjunto referente aos gêmeos, um dos quais se chama Iureke (pp. 45-82).

Conforme a mitologia iecuana, como já foi dito, o ser supremo Wanadi enviou à terra, sucessivamente, alguns seres chamados também Wanadi, que eram outras formas de seu espírito, para criarem a humanidade. Todos esses Wanadi tiveram seu trabalho dificultado pela criatura maléfica Odosha (obra não intencional do primeiro Wanadi enviado), que desejava ter a terra somente para si.

O terceiro enviado Wanadi, depois de criar o Sol, a Lua e as estrelas, quer criar a humanidade independente daqueles remanescentes das tentativas anteriores que ficaram sob o domínio de Odosha. Vai então buscar junto ao ser supremo a bola Huehanna, que contém os futuros humanos, semelhante àquela de mesmo nome que o segundo Wanadi, depois de seu fracasso, foi obrigado a guardar no alto de uma montanha. Eis que ele também é prejudicado, por uma criatura sua, Lua, que vai ao céu primeiro, fazendo-se passar por ele. Lua traz a grande bola, cheia de gente dançando e cantando. Mas sua intenção não era instalar a humanidade sobre a terra, mas sim comer os seres humanos quando saíssem da bola.

A irmã de Lua, entretanto, não quer que seu irmão coma os seres humanos, quer protegê-los, quer ser sua mãe. E para esconder a bola, ela a introduz em sua vagina, guardando-a no seu

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ventre. Ao voltar, Lua não tem resposta da irmã sobre o destino da bola, mesmo batendo nela; percebe então a alteração no corpo da irmã e imagina onde ela a escondeu. Espera que durma. À noite, aproxima-se da rede da irmã e apalpa seu corpo, tenta abrir suas pernas, introduzir a mão pela sua vagina. A irmã de Lua não sabe quem é que está fazendo isso. Resolvida a identificar o responsável, antes de deitar passa jenipapo por todo o seu corpo. Lua se aproxima de novo, tenta por todos os meios reaver a bola, chegou a fazê-la sangrar (o que certamente é uma alusão à origem da menstruação) mas sem conseguir seu intento. No dia seguinte, a irmã percebe que foi ele que chegou a sua rede de noite. Esse episódio é muito interessante porque é a transformação de um tema presente em muitas mitologias sul-americanas; entretanto, nos mitos das outras sociedades indígenas, Lua chega à rede da irmã para ter relações sexuais com ela, que ela aceita, sem saber de quem se trata. Querendo identificar o amante secreto, passa-lhe no rosto suco de jenipapo, para saber no dia seguinte que cometeu incesto. No mito iecuana, Lua não quer relações sexuais, quer a bola de volta, e nessa procura aproxima-se demasiado do corpo da irmã. As manchas que hoje se vêem no astro, tanto para os iecuanas como para vários outros grupos indígenas, são as manchas do jenipapo passado pela irmã.

A irmã de Lua foge. Chega ao rio Orenoco. Transforma-se na Grande Serpente, a Mãe do Rio, a Dona das Águas. E se esconde no fundo da correnteza.

O terceiro enviado Wanadi procura a bola; vai atrás de Lua, de quem sabe que está com a irmã deste. Wanadi chama então seu irmão, Müdo (urutau), que era noivo da irmã de Lua e pede que consiga dela a bola de volta. Falhando em convencê-la a entregar a bola, ele manda atacar a Grande Serpente com flechas. Procuram-na, identificam pelo arco-íris, sua grande coroa de penas que seca ao sol. Crivam-na de flechas, mas não conseguem reaver a bola, que se quebra contra as pedras. Aqueles que estavam dentro da bola, transformam-se em ovas. E delas saem peixes, jacarés, sucurijus, todos os animais da água.

A Grande Serpente deixou seu corpo inerte na margem do rio. Seu espírito foi para o céu, onde é esposa do lago Akuena. Seu corpo foi comido por todos, que tinham feito a primeira caçada e estavam comendo a primeira carne. Foi o jaguar que deu a primeira dentada. Quando todos tinham ido embora só o jaguar e sua esposa permaneciam. Esta encontrou duas ovas que não tinham sido abertas. Ela resolveu recolhê-las para criar. Delas nasceram dois meninos.

Por conseguinte, cá estamos de novo com dois meninos criados por alguém que lhes matou a mãe. Mas não se trata de um casal de onças; o marido é um jaguar, mas a esposa é uma sapa. Uma sapa que guarda o fogo no seu estômago. E que o usa para cozinhar, mas só o faz quando está sozinha. Nem o marido sabe que ela tem o fogo. Estamos, pois, também diante do mito de origem do fogo dos timbiras e outros jês, mas transformado. Para os jês, ambos os cônjuges que têm o fogo são onças, e o fogo não fica no interior do corpo.

Os meninos eram extremamente travessos e um dia, entrando no rio, chegaram até a casa que fora da Grande Serpente. Aí deitaram e sonharam. E no sonho a Grande Serpente lhes revela a sua história. Depois de várias peripécias os meninos descobrem o segredo do fogo, matam a sapa, preparam com ela uma sopa para o marido jaguar comer. O fogo passou a ser produzido pela fricção de duas madeiras cujas árvores serviram de esconderijo aos gêmeos quando o jaguar se aproximava da casa; uma delas é o urucuzeiro. O jaguar, que encontra a casa vazia, toma a sopa sozinho, pensando que era carne dos meninos, que ele tinha encarregado a mulher de matar e preparar, e somente no fim descobre o logro, quando encontra a cabeça da esposa no fundo do pote. O jaguar ainda passa por várias aventuras, é enganado por vários animais, faz uma troca de olhos e acaba sendo precipitado nas bordas do mundo pelos gêmeos, mas não consta que tenha morrido.

Os dois temas no rio Negro

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O capítulo XIV do já referido volume Antes o Mundo não Existia, escrito por dois índios dessanas, constitui o relato de um mito que também combina os dois temas.

O mito começa por fazer referência às aves que cantam a horas certas, como os inhambus, jacamins, jacus, socós e mutuns. O herói inicial, sob a forma de um belo homem, de voz bonita e conhecedor de belos cânticos, é o inhambu primordial, que penetrava nas casas transformadoras da humanidade e executava um rito propiciador do crescimento da fruta umari. O inhambu também estava à procura de mulheres para se casar.

Até que chegou à 30ª casa transformadora, aquela onde as tribos haviam recebido cada qual sua língua. O dono dessa casa tinha nomes que se traduzem como "cobra" e "peixe". Ele tinha duas filhas que estavam muito interessadas em conhecer o inhambu, mas esconde-as, para que não o vejam, até que, dada a sua persistência, elas conseguem vê-lo e ficam muito interessadas por ele, e ele por elas. Mas comparece à casa também o gambá, homem feio e de mau cheiro, que quer de todos os modos ficar com as moças e se intromete todo o tempo para saber o que o inhambu diz a elas. E por isso ouve o inhambu ensinar a elas como chegar à casa dele, e como evitar o caminho da esquerda, que leva à casa do gambá (mucura), no rio Tiquié (na serra do Mucura, acima da atual povoação de Fátima), devendo tomar o da direita, que leva à casa dele, inhambu, no Uaupés.

O gambá, precedendo as moças, troca as penas de aves que o inhambu tinha colocado na encruzilhada, para melhor marcar o caminho que deveriam tomar, e assim consegue que elas, confundidas, cheguem a sua casa, onde ele morava somente com a avó, embora todo o tempo ele tente dar a entender que mora com mais gente e tem auxiliares macus, ou seja, que é pessoa de prestígio. Levadas pela situação, numa casa pobre, com comida inadequada e sem redes sobressalentes, elas têm de dormir na mesma rede com o gambá, que tenta toda a noite ter relações sexuais com elas, até que a mais velha o aceita.

De manhã, ao ouvirem o som do trocano que vinha da casa do inhambu, fogem para lá. Para chegar à casa do inhambu, têm de atravessar o rio, mas o martim-pescador e, depois, o patinho se recusam a dar-lhes passagem, devido ao mau cheiro que exalavam. Finalmente o jacaré as atravessa na sua velha canoa. Na casa do inhambu, também devido ao mau cheiro, foram recebidas pela porta dos fundos; por isso, é por essa porta que as mulheres são recebidas até hoje. As mulheres da casa lavaram as moças com plantas aromáticas para lhes tirar o mau cheiro. Mesmo assim, ainda ficou um pouquinho do odor nas axilas, que os seres humanos têm até hoje.

O gambá resolve ir atrás das moças para recuperá-las, mas antes deixa com a avó uma cuia, dizendo-lhe que, se aparecesse sangue na mesma, seria sinal de que teria sido morto. Na casa no inhambu, o gambá se comporta de maneira extremamente inconveniente, insistindo em levar de volta as moças ou, pelo menos, uma delas. Tanto faz e insiste que o inhambu, irritado, ordenou a seus auxiliares (garças, socós, garças-reais), que o levassem para fora e o matassem, o que fizeram.

Na casa do gambá, sua avó olhou a cuia e viu que estava cheia de sangue. Chorando, disse que o inhambu também tinha de morrer. Ao tocar a cuia, o sangue se transformou em dois grandes gaviões-reais, que ela mandou agarrar o inhambu.

O inhambu dormiu com as duas moças e teve relações com elas. Ele e elas já estavam se considerando casados. Levou-as para o banho de manhã. O sol já estava alto. A mais velha quis que o inhambu cantasse. Ele respondeu que aquela não era a sua hora de cantar. Mas ela insistiu muito, apesar de a mais nova tentar dissuadi-la. E ele cantou uma vez. Ela insistiu de novo que ele cantasse outra vez. E ele o fez. Então os dois gaviões-reais o localizaram e o agarraram e o levaram pelos ares.

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A avó do inhambu, ao ver o que acontecia, pediu que os gaviões-reais jogassem pelo menos um pena dele. Eles então jogaram a última pena da asa. E desta pena a velha fez o inhambu que existe hoje em dia. A avó também pediu ao marido dela, que era um marimbondo, e pajé, que tentasse tirar alguma coisa do corpo do neto, para que não desaparecesse. Ele então compareceu à casa das onças, onde hoje é a Missão de Iauareté, e para onde os gaviões-reais haviam levado o corpo do inhambu, para que todos se banqueteassem. Como as onças e os gaviões-reais resolveram que deveriam comer o corpo socado no pilão, o velho ofereceu-se para socar e nesse serviço retirou o osso direito da perna (ou da perna direita?) e o jogou longe. O osso do inhambu caiu num lago próximo da casa dos avós dele e se transformou em dois peixinhos, chamados Diloá (plural de Diloë).

Abrindo um parêntesis, note-se que, os gêmeos aqui são dois peixes, e não passam por nenhum útero, real ou metafórico, como nos mitos abordados anteriormente; derivam de um osso do "pai". Na procura do verdadeiro marido, as duas irmãs dão na casa do gambá (mucura), tal como a mulher mãe dos gêmeos do mito guajajara. Mas elas não origem a nenhum filho e não mais aparecem no mito após a morte do inhambu. Note-se também que a serpente tem uma presença discreta neste mito. As duas moças não têm relações com uma serpente, mas são filhas de um homem que tem "cobra" (e também "peixe") em seu nome. Logo é o inhambu que tem relações com serpentes e é ele que "pare" os gêmeos.

Voltando aos gêmeos, os peixinhos foram encontrados no lago pela avó do inhambu. Não somente foi difícil apanhá-los, como o casal de velhos manteve com eles uma relação ambígua: queriam criá-los, mas se irritavam com suas brincadeiras e tentavam por isso matá-los. Colocados num cesto de defumar pimenta, transformaram-se em grilos e comiam a pimenta torrada; e ainda levavam os grãozinhos de pimenta para colocar nos olhos da velha. Roeram os punhos das redes dos velhos, derrubando-os. Para prepará-los para a vingança contra os matadores do "pai", a velha os colocou debaixo do pote que estava assando, bem como no meio da roça que estava queimando, mas eles escaparam ilesos em um e outro caso.

Ao saberem como tinha sido a morte do pai, os Diloá foram à casa do gambá, onde viviam os gaviões-reais. Com ajuda de redes invisíveis, e fazendo a avó do gambá atraí-los com o toque de flautas de osso, eles os apanharam. Retiraram-lhes os ossos e fizeram flautas para si. A avó do gambá, quando os viu capturados, pediu aos Diloá que lhe dessem as últimas penas da asa. Jogaram-lhe uma pena, que ela transformou no gavião-real dos dias de hoje.

Um dia que foram ajudar a avó (do inhambu) colher formigas maniuaras, subindo a uma árvore, contra a vontade dela viram a roça das onças. Quando faltou tapioca para fazer mingau e beiju, convenceram a avó de ir pedi-la aos donos da roça que tinham avistado. Providenciaram peixes para darem em troca. A avó encheu dois cestos e quis ir sozinha, mas eles se transformaram em passarinhos e não somente multiplicaram os peixes no caminho, como ajudaram a avó a rearrumá-los num só cesto. Chegando ao destino, tiveram relações com as moças de lá e ainda voltaram para a casa antes da velha.

Ajudando ao avô marimbondo a tecer balaios, inventaram os desenhos que eles trazem hoje. Também o avô ia levar os balaios para a casa das onças, mas não queria levar os gêmeos e usou como desculpa que os cestos ocupavam toda a canoa. Os gêmeos rearrumaram a carga da canoa e impuseram sua companhia aos avós.

Na casa das onças, passaram alguns dias, durante os quais os moradores deram-se conta de que eles eram inimigos dos gêmeos, pois tinham comido o "pai" deles. Por isso, fizeram tentativas de matá-los, mas não conseguiram. Os gêmeos, por sua vez, convidando os filhos das onças para brincadeiras traiçoeiras (jogando pião, atravessando um rio cheio de piranhas sobre feixes de capim), iam pouco a pouco matando a todos.

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No preparo da festa de despedida, os gêmeos foram ajudar o avô a conseguir peixes, e o confundiram, mandando-o procurá-los num local onde eles tinham colocado uma imensa cobra. Indo uma segunda vez ao mesmo local, ele encontrou amontoados os peixes que deveria limpar.

É a segunda e última referência do mito a serpente.

Enfim, com a ajuda do espinhaço do terceiro trovão, durante a festa os gêmeos acabaram com as onças, que tinham a intenção de matá-los na mesma festa. Tinham escondido a avó (do inhambu) debaixo de um pote, para protegê-la dos raios. Mas ela, curiosa, levantou o pote para ver o que acontecia, e foi atingida, morrendo. Depois de destruir as onças, eles tentaram fazer reviver a avó, mas quando ela voltava a si, as onças também ressuscitavam. Dando-se conta que isso acontecia porque a avó também era uma onça, eles decidiram que ela deveria morrer também e com mais raios aniquilaram todas as onças, inclusive a avó.

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14a aula O Mito nas Crises Cósmicas, Sociais e Pessoais

Julio Cezar Melatti

Abril de 2003

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Sabe-se que a mitologia de qualquer povo sempre está relacionada aos outros aspectos de

sua cultura, o que geralmente é mais notório nos ritos, ainda que estes não sejam mera repetição de mitos. Na 13a aula já fiz alusão à relação do rito do Quarup aos mito alto-xinguano das mulheres confeccionada com madeira enviadas a casar com o jaguar. Os índios timbiras (canelas, apaniecrás, craôs e outros) explicam a origem de cada um de seus principais ritos com um mito, podendo-se identificar naquele uma ou outra alusão a algum episódio deste. Assim, entre os craôs, em duas das maneira de se realizar o rito de Pembkahëk, é um homem do grupo ritual Urubu que serapara os jovens que deverão passar pela iniciação, o que lembra o episódio mítico (apresentado abaixo) da assunção do herói Tïrkrẽ, levado aos céus pelos urubus.

Motivos artísticos também se inspiram em relatos míticos, como os desenhos das rodas-de-teto e da cestaria dos aparaís e dos uaianas, do norte do Pará, que reproduzem segundo seus respectivos pontos de vista a ornamentação corporal de um ser mitológico, conforme Lúcia van Velthem no seu artigo "Representações gráficas Wayâna-Aparaí" (Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Nova Série, Antropologia, n° 64, 1976). Por sua vez, entre os índios ticunas, da fronteira Brasil-Colômbia-Peru é comum a representação da luta mítica entre a onça e o tamanduá esculpida em madeira, assim como a fazem também em seus moderno desenhos de gouache sobre papel (ver, por exemplo, o desenho de Manuel Alfredo Rosindo, Nhamaitücü, no calendário do ano 2000 dos Gráficos Burti, folha do mês de setembro).

Também nos céus os índios vêem personagens ou ações míticas. Na 6a aula já foi mostrada a versão craô de um mito que identifica o Sete-Estrelo (as Plêiades) com um grupo de irmãos

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incestuosos. Os ticunas, por sua vez, vêem a luta da onça com o tamanduá, há pouco referida, junto à cauda da costelação do Escorpião, em que as silhuetas dos corpos desses animais são formadas por dois "sacos de carvão" sobre a Via Látea. Acompanhando o movimento aparente dos astros em torno do pólo sul celeste, a onça a princípio está sobre o tamanduá, como que levando vantagem na luta; mas os animais vão girando ao longo da noite até que o tamanduá fica por cima da onça, vencendo o combate.

Curt Nimuendaju, no seu livro The Tukuna (Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1952), apresenta, nas pp. 143-4, o mito, uma escultura e o mapa celeste do episódio, do qual fiz uma cópia mais nítida, na figura anexa.

Como os ritos se repetem conforme um ciclo, que pode ser anual ou regido por um outro critério periódico, mantêm de modo estável e esperado as ações e personagens míticos a que aludem. O mesmo acontece com os heróis e episódios desenhados nos céus. Os artesão também tendem a reproduzi-los indefinidamente.

Mas os indígenas também podem recorrer aos mitos na busca de modelos ou fontes de explicação nas situações ou acontecimentos inesperados ou crises, de modo a orientar seu comportamento individual ou coletivo. É o que vou tentar mostrar a seguir.

Crises cósmicas Várias mitologias indígenas prevêem a destruição deste mundo ou admitem a possibilidade

de tal coisa acontecer se algumas condições ameaçadoras se concretizarem. Muitas vezes a ameaça não chega a ter um caráter apocalíptico, mas pode trazer conseqüências muito desastrosas, se as medidas rituais apropriadas não forem tomadas. É o caso dos eclipses para os uaurás do alto Xingu. A etnóloga Vera Penteado Coelho estava na aldeia deles no dia 10 de agosto de 1980, quando ocorreu no final da tarde um eclipse anular do Sol, parcialmente visível na região. Em "Um eclipse do Sol na aldeia Waurá" (Journal de la Societé des Américanistes, tomo 69, pp. 149-167, 1983) ela descreve como os índios se comportaram por ocasião desse evento.

Notou ela que os índios surpreendidos pelo eclipse fora da aldeia mostraram um grande medo, ao contrário dos que estavam nela; estes, apesar da inquietação e gritaria, mostravam maior controle de si, talvez por se sentirem mais seguros junto às casas e os companheiros. Supõe ela que o terror dos que estavam fora estaria relacionado a um de seus mitos, no qual um ancestral dos auetis, surpreendido por um eclipse longe da aldeia, se transformou em uma estátua de pedra. Na aldeia, os moradores falavam alto e a esposa do chefe e sua nora repreendiam o Sol, algo que em situações normais um uaurá não faz com ninguém, mesmo que se julgue extremamente prejudicado.

Respondendo a pergunta da etnóloga sobre o que estava havendo no céu, alguém lhe respondeu que o Sol tinha feito bobagem e agora estava com sangue, como mulher. Como insistisse em indagar o que tinha sido essa bobagem, foi-lhe informado que o Sol havia mantido coito anal. Nada lhe foi dito sobre quem teria sido o parceiro do Sol nesse ato, mas a etnóloga supõe que teria sido Lua, seu irmão, recorrendo ao mito gêmeos dos guaranis, apesar de estes viverem bem mais ao sul, mas apoiada no fato de que se trata de um mito de ampla difusão, alcançando até mesmo o alto Xingu. Trata-se do episódio clássico, presente em várias mitologias, já referido na 13a aula, em que Lua se aproveita da escuridão da noite para ir à rede de sua irmã. Querendo saber a identidade do amante que sempre ia assim procurá-la, ela suja seu rosto com suco de jenipapo, para saber no dia seguinte da dura verdade. Mas no caso do mito guarani a que recorre a etnóloga, ao invés da irmã, Lua procura o irmão Sol. As manchas de jenipapo no rosto de Lua é que explicam as manchas que hoje se vêem no astro. Talvez isso esteja relacionado com a pintura de corpo providência pelos uaurás nessa ocasião.

Onça versus

Tamanduá no céu

segundo os ticunas

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De fato, homens e crianças tiveram seus corpos pintados de preto para não ficarem com manchas na pele. As mulheres não se pintaram, talvez por serem elas próprias sujeitas à menstruação de que os demais devem se proteger. A etnóloga ainda soube que outrora também faziam uso do escarificador nessas ocasiões. Os homens jovens e as crianças começaram a correr pela aldeia fazendo o maior barulho possível. Vários adultos tinham arcos e flechas nas mãos e um deles dava tiros de espingarda para o ar. Esse mesmo homem passou a tocar uma flauta curta e grossa, chamada "flauta de Laptauana", pois, segundo um mito, um personagem com este nome tocou essa flauta durante a noite inteira por ocasião de um eclipse e ficou todo manchado. Essa é a flauta que um uaurá escuta quando vai morrer. O chefe da aldeia, acompanhado de outros homens, dançaram e cantaram voltados para o Sol.

No pátio da aldeia uma cerca baixa de troncos justapostos fincados no chão marcava o lugar da sepultura de uma mulher jovem para a qual em futuro próximo se deveria realizar um Quarup. Ali foram colocados dois pares de flechas cruzadas e uma mão de pilão. Supõe a etnóloga eles estariam relacionados ao combate entre pássaros bravios sobrenaturais e as almas dos mortos ocorridos em episódios de um mito marcados por eclipses.

À noite os homens fizeram sua reunião habitual para fumar e conversar na praça. As crianças ficaram na praça, como sempre fazem, mas nessa noite, ao invés dos brinquedos costumeiros, atiravam para o céu flechas incendiárias. Pelas oito e meia da noite todos foram dormir.

No dia seguinte, todos tomaram um banho coletivo na lagoa, para se purificarem. Os que estavam de luto foram banhados mais tarde, separadamente, dentro do espaço marcado pela cerca em torno da sepultura.

Os xamãs se reuniram na casa-dos-homens. Ali substituiram os fios de algodão dos colares próprios de suas atividades e os cabos de seus maracás. Fizeram a limpeza dos objetos de seus estojos e os cobriram com óleo. Mascaram uma semente de akukute de seus colares e passaram nos objetos. E ainda passaram óleo de pequi nas mãos, no rosto e no peito. Então fumaram, pigarreando muito forte e em seguida, um de cada vez, mas nem todos, cantaram. Em seguida, percorreram as casas da aldeia, curando as crianças, mesmo que não parecessem estarem a necessitar desse cuidado, e uns poucos adultos que realmente tinham problemas de saúde. Receberam em retribuição roupas, sapatos, sabão e outros artigos.

As mulheres, percorrendo as casas da aldeia, faziam trocas de objetos. Simultaneamente os homens que não eram xamãs faziam também suas trocas. A etnóloga intrepreta essas trocas, tal como a limpeza dos objetos substituição de cabos e fios pelos xamãs, como uma forma de purificação: na impossibilidade de jogá-los fora, se afastariam deles pela troca. Ou então a troca seria uma forma de reforçar os laços sociais perante a desordem provocada pelo Sol. Apesar de afirmarem que nessas ocasiões se joga toda a comida fora, que está suja com o sangue do Sol, a etnóloga não viu essa medida ser tomada, acreditando que ela tenha sido simplesmente posta algum tempo fora da casa para ser purificada.

As flautas conhecidas como "taquaras" foram tocadas por cinco jovens desde as 10 da manhã até as três da tarde, provavelmente também com fins curativos.

No fim da tarde, cânticos e danças do Quarup foram praticados junto à cerca de troncos da sepultura, como que a dizer que também a alma da morta podia retomar seu caminho após se ter consertado a desordem provocada pelo ato do Sol. Será que a etnóloga estaria se referindo à luta dos mortos com os pássaros sobrenaturais, que está associada aos eclipses?

Crises sociais Os mitos também estão presentes nos movimentos messiânicos, fenômenos de caráter

político e religioso que geralmente ocorrem quando as sociedades indígenas atravessam situações difíceis, quase sempre quando a sociedade hegemônica impõe exigências ou ameaça de modo

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intolerável desintegrá-las. Houve vários movimentos messiânicos indígenas no Brasil e tomo aqui como exemplo aqueles que tiveram lugar no noroeste da Amazônia na segunda metade do século XIX. O etnólogo Robin Wright tem se dedicado a seu estudo e já publicou vários trabalhos a respeito deles. Em uma parte do seu pequeno mas abrangente artigo "Uma história de resistência: os heróis Baniwa e suas lutas" (Revista de Antropologia, vols. 30/31/32, pp. 355-381; São Paulo, 1987/88/89) aponta algumas correspondências entre a história do líder messiânico Venâncio Cristo e o mito do criador Yaperikuli e seu filho Kuai.

As medidas tomadas pela nova província do Amazonas, criada em 1853, reativavam o sistema de diretores de índios (aliás, geral a todo o Brasil no reinado do segundo imperador) e a obrigação de os chefes indígenas enviarem a Manaus trabalhadores para as obras e serviços públicos e crianças para serem educadas e civilizadas. Esse programa era agravado com abusos que conduziam à captura de índios adultos e crianças que chegavam a ser vendidos. Os documentos de 1853 a 1857 atestam as queixas dos baníuas contra esses abusos e ainda a fome e miséria que deles decorriam. É nesse contexto que se inicia a atuação de Venâncio Cristo como líder espiritual e político.

Venâncio Aniceto Kamiko (esse era originalmente seu nome) nasceu no início do século XIX no rio Guainía, numa aldeia entre Maroa e San Carlos. Guainía é o nome do rio que, ao entrar em território brasileiro, toma o nome de Negro. Foi criado por um homem muito religioso que, dado o seu talento para as práticas litúrgicas, foi apelidado de Padre Arnaoud. Como madeireiro de uma indústria para construção de barcos perto de San Carlos, Venâncio contraiu dívidas e foi ameaçado de prisão por inadimplência, o que o fez fugir para o rio Içana (afluente do Negro), no Brasil. Aí, trabalhando para um regatão, voltou a endividar-se.

Em 1857, numa aldeia baníua, começou a pregar na presença de um crucifixo. Sofria de uma catalepsia que afetava outros moradores da região, mas conseguiu sobreviver, o que atribuiu a uma chamada divina. Afirmava que, durante seus ataques catalépticos, morria, viajava para o céu, conversava com Deus, que lhe transmitiu a ordem de ninguém mais cortar madeira, de serem perdoadas as dívidas de todos e que se dessem presentes a ele, Venâncio. E começou a ser chamado de "santo". Pouco depois passou a se intitular Cristo, aqui tomado como um sinônimo de Yaperikuli, o criador- transformador da mitologia baníua, uarequena e de outros povos aruaques da região, que livra o mundo das forças que ameaçam destruí-lo, superando-as com seus poderes milagrosos. Assim se consideram também os xamãs baníuas conhecidos como "Donos de Onças".

A fama de Venâncio se espalhou e centenas de índios e caboclos iam visitá-lo, pedir-lhe proteção e levar-lhe presentes. Seus seguidores mais próximos receberam títulos sagrados como Santa Maria, São Lourenço e Padre Santo. Venâncio ensinava, ouvia confissões, fazia casamentos, batizava, promovia danças rituais com cruzes e bebidas. E ainda enviava mensageiros a procurar novos adeptos.

Venâncio então anunciou que o fim do mundo ocorreria no dia de São João, 24 de junho de 1858. O mundo terminaria num fogaréu e Deus desceria para fazer o Juízo Final. Todos deveriam lhe dar suas posses, parar suas atividades econômicas e dançar. Só o rio Içana não queimaria e seriam salvos aqueles que dançassem pronunciando as palavras "graça! graça!" repetindo-as o tempo todo. Em troca de seus bens materiais Venâncio prometia a seus adeptos a libertação doi jugo político e econômico dos brancos. O Céu compensaria os jejuns e o abandono das roças.

Em 1857 o Diretor de Índios do Içana providenciou a repressão do movimento, enviando vinte canoas cheias de soldados. Houve depredações, fugas e prisão dos três seguidores mais próximos de Venâncio. Este fugiu para San Carlos, na Venezuela, onde foi aprisionado por um de seus credores e levado para a cadeia em San Fernando de Atabapo. Ele, porém, conseguiu escapar e refugiou-se nos rios Acque e Tiriquem, onde continuou a ser visitado por mais de quarenta anos por índios da Venezuela e do Brasil, que lhe levavam presentes e recebiam conselhos e proteção espiritual. Morreu em 1902.

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A forma como Venâncio previa a destruição do mundo fazia convergir tanto uma vertente cristã, pois seria no dia de São João, um dia de purificação e renovação espiritual, como uma vertente baníua, pois lembrava a grande fogaréu que queimou Kuai, o filho de Yaperikuli. Mas Kuai deixou as flautas sagradas, que simbolizam a imortalidade, e outros instrumentos dos ritos de iniciação. Kuai é também o dono mítico das festas e cerimônias das frutas silvestres, que amadurecem no mês de junho.

Kuai é certamente o herói mítico correspondente a Guelamum yé, dos dessanas do rio Uaupés, outro afluente do rio Negro, a que fiz referência na 2a e na 5a aula. Nesse rio atuou na mesma época um outro líder messiânico, conhecido como Alexandre Cristo, que Robin Wright focaliza em outro artigo: "'Uma conspiração contra os civilizados': História, política e ideologias dos movimentos milenaristas dos Arawak e Tukano do noroeste da Amazônia" (Anuário Antropológico/89, pp. 191-231, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992).

Crises pessoais Quando estive pela primeira vez entre os craôs, no norte do atual Estado do Tocantins,

perguntei ao xamã Zezinho quem lhe havia ensinado a curar, e ele respondeu que fora um gavião. Minha primeira reação à sua resposta foi tomar gavião como um etnônimo, como alguém das etnias pucobiê ou crincati do Maranhão também conhecidas como gavião. O prosseguimento da conversa me fez perceber que ele se referia a uma ave. Ao perceber meu espanto, ele retrucou: "E não foi o gavião quem ensinou a Tïrkrẽ?" Referia-se ao herói mitológico que foi levado aos céus pelos urubus. Sua resposta me estimulou a fazer a mesma pergunta a outros xamãs.

As informações deles colhidas me permitiram redigir uma comunicação para a VI Reunião Brasileira de Antropologia, realizada em 1963, como o título "O mito e o xamã", que comparava a iniciação de alguns indivíduos no xamanismo com o mito de Tïrkrẽ.

Ela foi publicada na Revista do Museu Paulista (Nova Série, vol. 14, 1963, pp. 60-70) e ainda no volume Mito e Linguagem Social (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970, pp. 65-76). Posteriormente sua tradução para o inglês foi incluída na coletânea de Patricia Lyon Native South Americans (Boston: Little, Brown and Company, pp. 267-275). Voltei a divulgar o texto original da comunicação neste site.

Uma era a história do próprio Zezinho (Ha'pôro Wakêt), o provocador de minha pesquisa sobre o tema. Contou- me que, certa vez, quando ainda morava na Aldeia de Canto Grande, ficou doente. Ninguém ia caçar para ele. Resolveu sair mesmo sozinho à procura de algum animal para matar. Apesar das recomendações da mulher, partiu para a chapada. Sentia-se cada vez pior e, por isso, deitou-se com o corpo muito quente. Um gavião apareceu-lhe e se informou de suas atribulações. Retirou-se e voltou pouco depois com uma juriti, que Zezinho teve de comer crua mesmo. O gavião ordenou então que vomitasse; ele obedeceu e saiu uma pequena bola de sangue. Fez depois Zezinho ver a aldeia e a seguir recomendou-lhe cuidar, daí por diante, de todos aqueles que adoecessem.

Outro era o depoimento de Clóvis (Põhï'toro Iatxï Tumai), irmão da mulher de Zezinho e que morava na mesma casa. Disse-me ter começado sua carreira de xamã nas proximidades da própria aldeia do Posto. Em certa ocasião adoeceu. Mesmo assim resolveu ir pescar, malgrado a oposição de sua irmã. Dirigiu-se ao Ribeirão dos Cavalos. Não conseguia pescar nada, mas os peixes e os jacarés ajuntavam cada vez mais à sua volta. Ficou com medo e quase correu. Por trás dele, no entanto, apareceu um peixe transformado em índio. Clóvis assustou-se, mas o peixe o acalmou. Talvez fora Deus (nome com que os craôs costumam se referir a Pït, o Sol) quem o enviara, segundo o informante, pois estava doente... O peixe pediu que lhe fizesse um cigarro e em seguida o defumou por algum tempo até sair de seu corpo gordura de porco, causa de todo o seu mal. O peixe demonstrou então desejo de torná-lo um curador. Em primeiro lugar, porém, quis saciar-lhe a fome e, por isso, tirando uma mesa, uma toalha, uma colher, um prato, arroz, carne de boi,

O Mito

e o Xamã

(texto completo)

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galinha e, inclusive, café, de seu próprio corpo, serviu-lhe uma copiosa refeição. Enquanto comia, Clóvis olhava para a mulher do peixe e a desejava, mas nada podia fazer. Tendo-se fartado, viu a mesa e tudo o que continha desaparecer. O peixe então citou-lhe uma série de alimentos a serem evitados até a próxima lua nova. Depois introduziu uma porção de coisas no corpo de Clóvis, inclusive um rádio, uma faca, uma tigela, arroz, carne de diversos animais etc. Clóvis começou a ver dali mesmo a aldeia dos canelas, a dos apinajés, Conceição do Araguaia, Carolina, enfim, todos os lugares. O peixe ordenou ainda que experimentasse os poderes dele recebidos antes de se retirar. Clóvis tomou um pouco de algodão e o jogou nas árvores: elas imediatamente pegaram fogo e ressoou uma trovoada. Voltou então para casa. Por ter quebrado os tabus alimentares que lhe foram impostos, perdeu todos os poderes. Antes de perdê-los, porém, esteve certa vez no céu. Subiu uma noite. Lá em cima viu as mesmas coisas que há aqui embaixo; notou a presença de índios, civilizados e também de animais. Todavia tudo era limpo e não havia folhas caídas pelo chão. Desceu logo a seguir.

Por sua vez o jovem Ituëp contou-me que foi um xupé, uma espécie de abelha, quem lhe doou poderes xamanísticos. Ele era ainda menino e morava na Aldeia de Canto Grande. Certo dia foi caçar veado. Estava olhando para uma serra, quando surgiu-lhe um xupé, que, inteirando-se dos motivos de sua presença naquele local, aconselhou-o a procurar caça em outra parte. Ituëp voltou para a aldeia e adoeceu: sentia o corpo quente demais. À noite o xupé veio até sua casa; transformou-se num homem preto de cabelos lisos e atirou-lhe uma substância na cabeça, no coração e nos braços, curando-o. Esta substância servia também para que Ituëp fizesse sarar as enfermidades de outros indivíduos. Ele, porém, nunca curou e nem fez mal a ninguém. Não quis mais ser curador e o xupé veio de novo até sua casa para reaver a substância mágica.

Finalmente incluí a história do xamã Aniceto (Mãpôk Romró Intxotuk Kamonko). Certa vez, ele adoeceu. A cabeça lhe doía. Mandou então sua mulher para a casa do irmão dela e ficou sozinho, chorando... Uma seriema aproximou-se da casa, chegou à porta e cumprimentou Aniceto. Inteirada de sua enfermidade, doou- lhe "coisas" e marcou-lhe um encontro para dois dias depois. Aniceto foi procurá-la no local combinado e, com seu auxílio, curou-se. Para experimentar os poderes de Aniceto, a seriema pôs um feitiço em seu próprio filhote e pediu a ele que o retirasse. O índio extraiu um ovo de calango do pequeno animal e ele ficou bom.

Inspirado na leitura do artigo "A estrutura dos mitos" (Antropologia Estrutural, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967), então ainda não traduzido para o português, reduzi os quatro depoimentos ao seguinte esquema geral, ainda que os itens 8 e 9 não constassem de todos eles:

a. um homem adoece;

b. o homem está sozinho; c. um animal aparece ao homem;

d. o animal cura a enfermidade do homem;

e. o animal alimenta o homem;

f. o animal dá poderes mágicos ao homem;

g. o homem experimenta os poderes recebidos;

h. o homem sobe aos céus;

i. o homem perde os poderes recebidos.

Apresentei então o resumo do mito de Tïrkrẽ, conforme me foi contado por Messias (Hawôt Krëk Pïrïpôk):

Existiu outrora um índio chamado Tïrkrẽ. Certo dia dirigiu-se à roça, colheu raízes de mandioca, ralou-as e, terminado o serviço, adormeceu. Uma formiga, porém, entrou-lhe na orelha, que começou a inchar continuamente. Nesta ocasião sua aldeia estava mudando de sítio. A mulher dele, que o enganava, mantendo relações sexuais com o irmão do marido, pediu-lhe

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para esperá-la até que terminasse um jirau na nova aldeia. Tïrkrẽ, todavia, ficou esquecido e abandonado.

Um bando de urubus o encontrou e resolveram cuidar do enfermo. Chamaram vários passarinhos, até que um deles conseguiu extrair a formiga de sua orelha. Em seguida os urubus o levaram para o céu, não sem antes discutirem com os urubus-reis, que se diziam mais resistentes para levantar o homem, o que os urubus negavam.

Tendo chegado lá em cima, um gavião, muito bom curador, saiu para caçar e trouxe um jaó, o qual, Tïrkrẽ teve de comer cru. Depois o gavião caçou uma ema nova e ele comeu outra vez do mesmo modo. Em seguida um urubu desceu à terra e apanhou excrementos humanos, mas o índio recusou-se a comer. Tïrkrẽ ficou bom.

Realizou-se, então, no céu a festa de Pembkahëk; os índios naquela época não sabiam fazê-la; Tïrkrẽ é que lhes ensinaria ao voltar do céu. Mais tarde, o gavião levou-o para visitar o raio (Akrãti). Este tomou buriti seco, acendeu-o no fogo e depois atirou-o para dentro de um rio, fazendo ressoar uma trovoada. Resolveu-se então experimentar os poderes de Tïrkrẽ: um pássaro, Tepkriti (martim- pescador), desceu e capturou dois peixes, colocando-os em cima de um "toro". Tïrkrẽ transformou-se em lontra e os comeu. Em seguida metamorfoseou-se em Tututi (pomba).

O gavião desconfiou que o índio queria voltar para casa. Mandou que os urubus lhe trouxessem os pertences para baixo e o próprio Tïrkrẽ desceu transformado em folha de sambaíba. Ficou em casa de sua mãe.

Bom curador, percebendo agora que sua mulher o enganava com seu irmão, surpreendendo-os juntos um dia, transformou-se em formigão e picou a ambos nas partes sexuais. Mais tarde, quando eles sem o saberem vieram-lhe queixar-se do animal que os ferira, Tïrkrẽ os curou. Como sua mulher estava grávida mas teimasse em negá-lo, ele fez-lhe sair o filho do ventre. Um outro curador, chamado Khwök, desafiou Tïrkrẽ a mostrar seus poderes. Ele então se transformou em diversas aves, enquanto o desafiador não conseguiu nada.

Há uma outra versão desse mito em que o episódio final, o da disputa entre xamãs, é omitido e onde Tïrkrẽ é convidado a repetir o ato de Akrãti, jogando também buriti incendiado ao rio e provocando trovoada. Diversas informações isoladas acrescentam que no céu um gavião ensinou Tïrkrẽ a ser curador.

A comparação das experiências iniciais dos xamãs com esse mito me conduzia à conclusão de que alguns indivíduos, se não todos, ao se tornarem xamãs, reviveriam o mito de Tïrkrẽ.

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15a aula Mito Indígena e Folclore Sertanejo

Julio Cezar Melatti

Retocado em abril de 2003

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Em 1978, quando descia o rio Curuçá, afluente do Javari, após uma etapa de pesquisa de

campo entre os marubos, pedi ao regatão, dono do barco em que eu viajava desde o posto indígena, que me contasse algumas histórias relativas ao percurso que fazíamos. Minha intenção era recolher informações que contribuíssem para reconstituir o passado da exploração desses rios que ficaram fora do itinerário dos antigos naturalistas e missionários que nos deixaram crônicas sobre a Amazônia. Não demorou muito para perceber que o regatão estava atendendo a meu pedido narrando-me contos de fadas de origem européia.

Civilizados que mantêm contatos freqüentes com os índios, como no caso desse regatão, são conhecedores de um bom número de contos, não somente de fadas, mas também do folclore regional, alguns dos quais acabam sendo incorporados ao acervo das narrativas indígenas. Essa incorporação não é passiva, pois os índios introduzem modificações nesses contos.

Apesar de registrá-los, nem sempre os etnólogos analisam esses contos modificados pelos índios. Alguns chegam mesmo a pô- los de lado, como aconteceu com os organizadores de uma coleção de narrativas indígenas que não publicaram, do lote que lhes remeti, as referentes a Adão e Eva e um conto de guerra que incluía um fazendeiro, a quem os craôs ajudaram no combate a um outro grupo indígena.

João e Maria O conhecido conto de João e Maria parece estar bastante difundido entre os indígenas e vou

me deter aqui em três versões publicadas: uma craô, outra guajajara e ainda uma outra mundurucu.

A versão craô. Uma das poucas análises de narrativas ocidentais modificadas pelos indígenas é o artigo "O velho cego" de Luís Roberto Cardoso de Oliveira (Série Antropologia 112, Brasília: UnB, 1991) e republicado nas pp. 71- 93 do AnuárioAntropológico/99 (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002). Refere-se ao conto de João e Maria, publicado por Vilma Chiara nas pp. 352-6 de seu "Folclore Krahó" (Revista do Museu Paulista, Nova Série, vol 13, 1961/2, pp. 333-75), uma reunião de narrativas e informações colhidas por ela de um craô que estava em visita a São Paulo. O resumo do conto é o seguinte.

A esposa de um índio morreu, deixando três filhos, dos quais um menino e uma menina foram dados a um outro casal para criar. Como a mãe adotiva estava com preguiça, o pai adotivo levou-os para tirar mel, mas na verdade para abandoná-los. Deixou-os esperando num ponto da mata e, quando eles o chamavam, era a cumbuca que ele havia deixado num outro ponto que respondia. Até que as crianças deram com o logro.

Elas caminharam até chegarem à casa de um velho cego, que não tinha nenhuma criação doméstica, porém muito amendoim plantado, e espantava os passarinhos com uma vara. O menino desviava-se da vara do velho e apanhava amendoim, levando-o para a irmã. Quando a menina resolveu ela mesma apanhar amendoim, a vara pegou no braço dela e o velho descobriu as crianças.

O velho trancou-as num quarto e lhes dava alimento. Dois meses depois examinou-lhes os dedos por um buraco da parede. Quatro meses depois foi fazer o mesmo e o menino mostrou os rabos, mais grossos, de duas largatixas que matara, saindo pelo telhado. Tempos depois, o menino mostrou os rabos de dois calangos, que também matara. O velho achou que já estavam bem grandes e soltou- os, mandando que rachassem lenha e enchessem um tacho com água.

Papam (Deus) apareceu e explicou às crianças que o velho as estava enganando e recomendou que, quando o velho mandasse que elas dançassem em volta do fogo, que elas pedissem para ele ensinar primeiro. E assim foi feito. Quando o velho dançou, as crianças o empurraram para dentro do tacho que estava no fogo, com água fervendo. Ele segurou-se nas

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bordas do tacho, mas o menino deu-lhe umas pancadas nos dedos e ele caiu na água. O tacho continuou no fogo até a água secar e o velho virar cinza.

Deus mandou que as crianças fizessem dois bolos iguais com a cinza e jogassem o restante em cima da casa. Da cinza (de cima da casa?) saiu um galo cantando com muitas galinhas e pintinhos. Depois, (dos bolos de cinza?) saíram dois cachorros grandes e bonitos, um macho e outro fêmea.

A menina pôs pregos nas orelhas dos cachorros para eles não escutarem. O menino matou dois jacus que estavam numa árvore e, como ficassem presos lá cima, subiu para buscá-los. Um bicho feio veio comê-lo e mandou que ele descesse. Ele não quis e o bicho abocanhou um grande pedaço do tronco. O menino gritou tanto que os cachorros, apesar dos pregos nas orelhas, acabaram escutando. A cadela brigou com o bicho até cansá-lo. Depois chegou o cachorro e o matou.

O irmão ficou muito zangado com a irmã. Cozinharam os jacus, comeram e dormiram. Resolveram procurar um lugar melhor para morar. Levaram frito de frango como merenda e os pintos para criar.

Pararam numa tapera. O rapaz foi caçar, achou jacus e a cena do bicho feio morto com a ajuda dos cachorros se repete. Junto à tapera havia um buraco muito fundo no qual o rapaz desceu, por um cipó, para buscar água. Passam dois rapazes, acham a moça bonita, convencem-na a acompanhá-los, e ela vai embora, deixando o irmão no fundo do buraco, pois os rapazes cortaram o cipó. Ele ficou lá, sofrendo de um frio intenso.

Muitos dias depois, passaram uns homens por ali, escutaram os cachorros e procuraram pelo dono. Achando-o no fundo do buraco, retiram-no e foram embora. Os cachorros, alegres, lamberam-no inteirinho, até que ele abriu os olhos. Depois de comer o frito que estava escondido, muito zangado com a irmã, o rapaz saiu procurando, perguntando por ela nas casas dos moradores que encontrava. Encontrou-a numa grande fazenda. Deu-lhe uma surra de chicote e deixou-a lá.

Chegou a uma cidade grande que tinha um problema: um bicho comia gente na rua. Um homem rico da cidade propôs pagar-lhe uma grande quantia se ele, com ajuda de seus cachorros, matasse o bicho ruim. Ele aceitou a proposta. De noite o rapaz aguardou o bicho feio de boca grande. Quando ele apareceu, o rapaz mandou a cadela atacá-lo e ela brigou com ele até cansá-lo. Depois mandou o cachorro macho, que o agarrou pelo pescoço, brigando. Finalmente, o rapaz atirou com sua arma e matou o bicho. O povo saiu todo para a rua, para espiar o bicho feio e os cachorros. E o rapaz ganhou a quantia combinada, ficando muito rico.

Luís Roberto Cardoso de Oliveira repara que o conto pode ser dividido em duas partes. Na primeira, que vai até o episódio do abandono do rapaz no fundo do buraco, a ação se dá no âmbito da sociedade craô. Na segunda, o rapaz vai se integrando no mundo dos brancos. Nota também que os dois irmãos crescem ao longo da narrativa: chamados de menino e menina no início, passam a ser referidos como rapaz e moça depois da morte do velho. Mais ainda: é a partir desse momento que a irmã começa a afastar-se do irmão, pondo pregos nas orelhas dos cachorros, para que estes não o socorram e abandonando-o num buraco para acompanhar dois estranhos. Essa hostilidade da irmã pode ser interpretada, como faz muito bem o referido autor, como um modo de evitar o incesto a que estavam sendo conduzidos fatalmente o irmão e a irmã, sozinhos e tendo atingido a puberdade. Na vida normal da aldeia indígena, nessa idade, o rapaz deixa de passar a noite dentro da casa materna, indo dormir ao relento, no pátio central.

Cardoso de Oliveira compara corretamente a situação do velho cego como a de alguém em processo de tornar-se xamã, uma vez que é um indivíduo, não doente, mas com uma deficiência física e isolado dos demais moradores da aldeia. Apenas o velho não completou o processo, pois nem se tornou xamã e nem voltou ao convívio social. Uma outra interpretação, que não nega a

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primeira, mas a complementa, seria tomar o velho como um monstro, como mais um dos "bichos" que figuram no conto. É uma possibilidade endossada por outros mitos craôs cujos protagonistas são indivíduos que se afastaram da aldeia e se transformaram em perigosos seres anti-sociais (ver, como exemplo, o "Perna de Lança", na 12a aula).

Cardoso de Oliveira também poderia ter lembrado que esse xamã malogrado fez as crianças passarem pela caricatura pervertida de um rito de iniciação. Os timbiras, entre os quais se incluem os craôs, têm mais de um rito de iniciação. Num deles, que os craôs já não mais realizam, o jovem fica recluso num quartinho fechado dentro da casa materna. Ali ele recebe muito alimento e é freqüentemente banhado pelas parentas de idade para que cresça depressa e volte a integrar-se como adulto na vida da aldeia. O velho cego, porém, tranca o irmão com a irmã, quando só os indivíduos do sexo masculino passam pelo rito tradicional, e seu objetivo é fazer com que cresçam para poderem ser comidos e não para transformá-los em adultos. Se o velho é mal intencionado, o menino ingenuamente intrepreta sua reclusão segundo a expectativa tradicional, pois mostra primeiro o rabo de lagartixa e depois o rabo de calango, que é maior (já no conto europeu, o menino mostra o rabo de um rato para enganar que continua magrinho). Apesar de perversa, a reclusão é ritualmente eficaz, pois as crianças dela saem como rapaz e moça, não para voltarem à vida na aldeia, mas para continuarem a caminho do mundo dos brancos.

O velho também se transforma. De suas cinzas saem os cachorros e a criação de galinhas. Aqui o conto lembra o mito de Aukê (ver 16a aula), o menino que, queimado, transformou-se no primeiro homem branco. O velho, por sua vez, vira animais domésticos que fazem parte do mundo dos brancos.

É possível ainda achar a conexão deste conto com mais um mito timbira. O abandono do rapaz dentro de um buraco fundo lembra o menino abandonado junto a um ninho de araras no alto de um despenhadeiro no mito da origem do fogo (ver 9a aula). Se no mito do fogo é o marido da irmã que derruba a escada, no conto, são os dois rapazes, possíveis parceiros sexuais da irmã, que cortam o cipó. No mito, o menino fica isolado no alto; no conto, bem no fundo do buraco. Naquele é o jaguar que salva o menino; neste, alguns homens, certamente brancos. Naquele, o menino retorna à aldeia indígena com o conhecimento do fogo; neste, o rapaz instala-se definitivamente na cidade com muito dinheiro.

Do percurso feito ao longo da narrativa — aldeia indígena, casa do velho cego, tapera do buraco fundo, casas isoladas de moradores, fazenda, cidade — a irmã termina na fazenda e o irmão na cidade. Certamente a irmã não é dona da fazenda, dada a maneira como o irmão a trata, com uma surra; talvez seja uma serviçal. O irmão, ao contrário, torna-se um homem rico da cidade. Enfim, o conto mostra um novo caminho que pode ser tomado por aqueles que abandonam sua aldeia indígena, o do mundo dos brancos. No passado, as únicas possibilidades abertas eram integrar-se ou morrer numa aldeia indígena estranha (como no caso de Katamrik, 16a aula) ou virar ser anti-social (como no caso do "Perna de Lança", 12a aula).

A versão guajajara. Nas pp. 166-8 do livro Os Índios Tenetehara (MEC-Serviço de Documentação, 1961), Charles Wagley e Eduardo Galvão apresentam a versão guajajara do conto de João e Maria. Não vou resumi-la, mas apenas fazer um comentário, contrastando-a com a versão craô já discutida.

Na versão guajajara, não entram pais adotivos. É o próprio pai que, tendo muitos filhos e não tendo como alimentá-los, leva dois deles, João e Maria, para buscar mel. Maria vai debulhando milho para marcar o rumo, mas esse detalhe não tem nenhum prosseguimento na narrativa. Tal como na versão craô, há uma cabacinha, que o pai pendura, e ela assobia ao sopro do vento, dando a impressão às crianças de que ele está presente.

Abandonadas, a casa que as crianças encontram é de uma velha que estava fazendo beijus. O menino rouba um para a irmã e outro para si. Entretanto ela ri quando a velha, sem saber quem

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era o ladrão, grita : "Sai daí gato!" Descobertos, são trancados num quarto da casa, tendo de mostrar o dedo todos os dias. João arranjou um rabo de rato, mas a menina tinha de mostra o próprio dedo.

Ao invés de Deus, quem alerta as crianças para as intenções da velha é uma rolinha, que as aconselha a empurrar a velha nas chamas, quando dançasse em torno do fogo e, quando pedisse água, que trouxessem azeite. Deveriam ainda emborcar um cocho sobre as cinzas da velha, debaixo do qual encontrariam quatro cachorros no dia seguinte. Assim fizeram e assim aconteceu.

João e Maria então foram embora e chegaram a uma aldeia abandonada dos zurupari. Enquanto João ia buscar bacaba, Maria percorreu a aldeia e encontrou, em casas diferentes, duas bandas de gente. Uma delas pediu a Maria que a juntasse com a outra. Uma vez reunidas, formaram um rapaz, um zurupari, que cortejou-a e deitou-se com ela. Ele propôs que matassem João para poderem viver juntos. João porém apareceu com os cachorros, que se lançaram sobre o zurupari e o mataram. Maria, por ter traído o irmão, também foi morta. Provavelmente, se o zurupari fosse realmente gente, ao invés de um espírito, e, dada a sua proposta gratuita de assassinato, malévolo, a ação poderia ter um outro rumo, uma vez que João, como irmão, não poderia disputar com ele o papel de marido. Tal como na versão craô, os irmãos, ao deixarem a casa onde estavam presos, já não são mais crianças.

João, seguido pelos cachorros, viajou duas luas, e encontrou uma casa onde uma moça chorava porque deveria ser devorada por uma cobra. João aguardou a cobra e lançou sobre ela seus cachorros, que a mataram. Ele cortou a língua da cobra com uma faca, enrolou-a numa folha e jogou-a para um dos cachorros. Saiu, prometendo à moça retornar.

Um preto, que presenciara tudo, arrancou o restante da língua da cobra e apresentou-se ao pai da moça, declarando-se como seu salvador. O pai da moça era o "Governo" e morava numa casa grande. Certamente "Governo" aqui substitui a figura do rei dos contos de fada e a casa grande é o seu palácio; nesse caso, a cobra seria o dragão. A moça, entretanto, não queria casar com o preto, pois não dizia a verdade. João então apresentou-se ao "Governo" e, mostrando a língua da cobra, provou ter sido o verdadeiro salvador. O "Governo" mandou então que o preto fosse amarrado a dois cavalos e esquartejado. A escolha de um preto para vilão do conto denuncia que o preconceito racial dos civilizados também passou para os guajajaras.

João casou-se com a moça. Os cachorros ficaram muito tristes, a uivar. Disseram a João que iriam para sua casa no céu e anunciariam sua chegada com um trovão. Na mesma noite um longínquo trovão foi ouvido. João chorou de tristeza. Desde então troveja sempre que os cachorros têm saudades de João.

A versão mundurucu. Robert Murphy também publicou uma versão deste conto nas pp. 130-2 de Mundurucú Religion (Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1958).

A família é de aranhas, um detalhe não mais lembrado no restante do conto. Os filhos eram tantos e tal a dificuldade em alimentá-los que o pai resolve abandonar na floresta dois deles, um menino e uma menina. Aqui também o pretexto é a busca de mel e o pai também usa o expediente da cabaça no alto de um árvore, que, soprada pelo vento e não pelo pai, atraiu as crianças na direção errada.

Encontram uma velha, como na versão guajajara, mas quase cega, o que lembra a versão craô. Sua casa tinha farinha e bananas e ela a guardava com uma vara que balançava para frente e para trás através da porta. Como nas outras versões, o menino apanha comida sem a velha perceber, mas a menina falha ao tentar. A velha era um zurupari e esconde as crianças de outros zurupari que chegaram de passagem. Quando eles vão embora, prende as crianças num quarto e as alimenta bem e todos os meses apalpava seus dedos e braços. Nesta versão, as crianças não usam de nenhum subterfúgio para escapar a esse exame.

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É um papagaio que lhes revela as verdadeiras intenções da velha, quando elas colhiam uma grande quantidade de lenha. Recomenda-lhes que peçam à velha que as ensine a dançar quando fossem instadas a fazê-lo e a empurrassem no fogo. Previu que os olhos da velha explodiriam e deles sairiam dois cachorros.

Uma vez liquidada a velha, as crianças continuam a tirar alimento das casas que encontram, mas com o cuidado de averiguar se os moradores estão ausentes. Depois de muito tempo a irmã morreu e o irmão continuou a perambular sozinho com os cachorros. Diferentemente das outras versões, por conseguinte, nada muda para os irmãos e os próprios cachorros em nada os ajudam a não ser acompanhá-los. A narrativa mundurucu não conduz ao mundo dos brancos, com João transformado em homem rico da cidade, como na versão craô, ou genro do "Governo", como na versão guajajara.

O êxito individual do irmão no mundo dos brancos e o fracasso individual da irmã são substituídos, na versão mundurucu, por uma conquista coletiva: numa casa abandonada os dois irmãos encontraram sementes de melancia, que eles espalharam por toda a região. Por isso os mundurucus hoje têm melancias. Vale reparar que esse detalhe talvez seja um modificação daquele recurso utilizado por Maria, no conto tal como narrado às crianças civilizadas, de ir deixando pedrinhas ou sementes pelo chão, para saber voltar à casa do pai. A versão craô ignora esse detalhe; a versão guajajara apenas alude a ele, sem dar-lhe o motivo; e a versão mundurucu o transfere do início para o final do conto e lhe dá um outro desenvolvimento.

Por que os craôs chamam Lua de Pedro? Na 4a aula já foi comentado que os craôs chamam o herói mítico Pït, o Sol, também de Papam

(Nosso Pai) e Deus e, por sua vez chamam o herói mítico Pïdluré, Lua, também de Pedro. Esses heróis, ambos do sexo masculino, são os transformadores de um mundo incriado. O Sol dispõe de certos conhecimentos que esconde de Lua: as ferramentas que abrem e cultivam a roça sozinhas, a palmeira que produzia buriti, o cocar vermelho e brilhante dado pelo pica-pau, a mulher... Lua tanto insistia em gozar também desses benefícios que o Sol os cedia de má vontade, quando o próprio companheiro não os descobria depois de muito procurar. Mas Lua lograva seus intentos de maneira tão desajeitada que daí redundavam sérias conseqüências para os seres humanos: a morte, os animais venenosos ou de picada incômoda, a menstruação, o trabalho. Apesar da sovinice do Sol é o comportamento de Lua que os craôs criticam como canhestro e malévolo.

Quero aqui levantar as razões que levam os craôs a identificarem Lua com Pedro. Na verdade, quando os craôs falam em Pedro podem estar se referindo, além de Lua, a três figuras para nós distintas: Pedro II, São Pedro e Pedro Malasartes.

Pedro II. Uma vez o velho Marcão, chefe de uma pequena aldeia craô, menos sequioso por presentes que seus companheiros, fez-me um pedido singular: queria que eu, numa futura visita a sua aldeia, lhe levasse um retrato de Pedro II, para pendurá-lo num dos postes de sua casa de palha. Por mais fácil que fosse atender a sua solicitação (afinal de contas eu então residia na mesma cidade onde se ergue o Museu Imperial), fui adiando de tal maneira a obtenção do retrato, que Marcão morreu sem recebê-lo. Pior ainda: não me lembro de ter tido suficiente presença de espírito para imediatamente crivá-lo de perguntas sobre a importância que tinha para ele a figura de Pedro II, cerca de oitenta anos depois da queda do Império.

Mais de uma vez ouvi dos craôs referências ao último imperador e também a sua esposa. Curiosamente nunca me fizeram alusão a qualquer presidente da Primeira República. Desse período apenas se lembram dos "Revoltosos", ou seja, a Coluna Prestes, que passou pela região. Não sei se é desta data que alguns deles viram também Rondon. Talvez o longo reinado de Pedro II em contraste com os curtos mandatos dos primeiros presidentes tenha contribuído para essa seleção. De qualquer modo, Pedro II era muito mais do que um mero ser humano, como demonstram as indagações de um outro craô, o velho Gabriel, nascido certamente no começo do

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século. Numa conversa em 1963, ele me perguntou por São Pedro, de quem Getúlio Vargas tomara o palácio. Comentou que no tempo de São Pedro não havia prefeitos, só diretores, e tudo era barato. E ainda pediu-me notícias de Cristina, mãe dos índios, que morava no Rio de Janeiro, declarando não saber se ela e São Pedro já tinham morrido. Com essas observações Gabriel não somente suprimia a Primeira República, como também dotava Pedro II de extrema longevidade, quiçá imortalidade, e ainda o confundia com um santo.

Mas o que teria de comum Dom Pedro II com Lua? Talvez a chave esteja na versão do mito de Aukê (16a aula) contada pelos Canelas, que são timbiras comos os craôs. Esse menino que se transformava em diversos animais e em pessoas de idades diferentes acabou sendo queimado pelos índios e de suas cinzas surgiu o primeiro homem civilizado. Ora, a versão canela, que ganhou ainda mais divulgação por ter sido republicada no início do livro As Barbas do Imperador, de Lilian Schwarks (São Paulo: Companhia das Letras, 199...), termina afirmando que Aukê era o imperador Pedro II. As constantes mutações por que passava o menino Aukê, por sua vez, lembram as fases do satélite terrestre que é identificado com o herói Lua. Além disso, como chefe supremo dos civilizados, Pedro II, deveria partilhar com eles o caráter importuno de seu comportamento nas relações interétnicas, o que lembra a malevolência e inabilidade de Lua.

São Pedro. O nome do último imperador era tomado de um santo, São Pedro de Alcântara. Mas quando os craôs o confundiam com São Pedro, estavam na verdade pensando em outro, no apóstolo.

A ambigüidade de São Pedro está presente no próprio texto bíblico. Chamado de Satanás por Jesus (Mateus 16: 21-32, Marcos 8: 31-33) e tendo-o negado por três vezes numa mesma noite antes do galo cantar (Mateus 26: 33-35 e 69-75), foi entretanto o primeiro dos discípulos a reconhecer Jesus como o Filho de Deus Vivo, e distinguido pelo mesmo como o sustentáculo de sua Igreja (Mateus 16: 13-20). Primeiro pontífice dos católicos e porteiro do céu na tradição popular, São Pedro é um personagem espertalhão, tanto nos contos pios sertanejos como nas anedotas ímpias urbanas, sem dizer das cantigas das festas juninas.

Pedro Malasartes. Na única vez que tomei um mito na própria língua craô, o narrador, além das conhecidas aventuras de Sol e Lua na tradição indígena, continuou a narrativa atribuindo ao segundo as peripécias de Pedro Malasartes. Nunca ouvi nenhum sertanejo da região contar sobre o desonesto e astuto Malasartes, mas entre os craôs anotei os seguintes episódios: a venda de uma raposa como se fosse cão de caça, a venda de uma panela que cozinhava sem fogo, a venda de um pé de dinheiro.

Adão e Eva O texto bíblico relativo à criação do homem também se transforma quando apropriado pelos

narradores indígenas, como podemos averiguar pelos dois exemplos que apresento a seguir.

Versão timbira. Em 1963, Luís Baú, que vivia entre os craôs, sobrevivente da aldeia quencatejê aniquilada por um fazendeiro em 1913, contou-me uma versão do mito de Adão e Eva, que publiquei no Apêndice do livro O Messianismo Krahó (São Paulo: Herder e EDUSP, 1972).

Havia apenas Papam e Pïdrï (isto é, Pït, Sol, e Pïdrï, Lua). Os dois fizeram este Brasil todo. Aqui, não havia nem kupẽ (civilizado), nem mehim (índio). Então, Pït pensou: "Eu vou fazer outras coisas, pois viverem só dois assim é ruim". Não se sabe como foi que ele fez Adão, que andava nuzinho. Então pensou: "Eu vou fazer mulher para Adão, porque ele anda sozinho e não fala com os outros". Ao meio-dia, Adão chegou e Papam lhe disse: "Adão, vem comer!". Adão comeu e depois foi cochilar. Queria dormir e dormiu logo. Então Pït puxou uma costela de Adão, limpou-a e colocou no quarto onde Adão dormia. Adão acordou. Pït lhe disse: "Vá espiar o quarto onde você dorme". A mulher já estava lá, inteirinha e bonitinha. Pït disse: "Adão, você já tem mulher, agora você não copule com Bruta (Bruta é o nome de uma fruta que

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os craôs chamam de Waka´tẽti; Bruta era o nome de Eva). Ela já é sua e eu direi quando você pode copular. Pode ir com ela". E eles foram para o mato. Eva estava nuazinha; só pôs umas folhas sobre o sexo. Dormiram até de manhã.

De manhãzinha, Papam os chamou: "Adão, chegue aqui para tomar café". E ele se aproximou com sua mulher. Tomaram café e voltaram para o mato. E Papam estava imaginando: "Como é que vou fazer com Adão e Eva? Vou mandá-los para o Brasil". De tarde, chegaram Adão e Eva. De manhãzinha, tornou Papam a convidá-lo: "Adão, vem tomar café!". Apanhou machado, facão e deu a Adão, ordenando-lhe: "Agora você desce, faça uma grande roça, enquanto sua mulher fica aqui". E lhe deu farinha e carne, ordenando: "Dentro de duas semanas você vem". Adão disse: "Adeus mulher, pode esperar duas semanas aqui". Aí, ele desceu do céu, indo lá para onde os estrangeiros moram. Naquele lugar, fez roça, derrubando tudo. Fez casa grande, toda fechada, colocou porta, fazendo muitos quartos. E Papam o estava olhando: "Ah, Adão é bom mesmo, não tem descanso; eu gosto de ver homem assim". Passaram-se duas semanas e Adão subiu ao céu outra vez. E teve um diálogo com Papam: "Fez roça?". "Fiz". "Fez casa?" "Fiz". "Está bom. No mês de agosto, você vai queimar". Chegou o tempo de queimar a roça. "Agora é tempo de roça; aqui está caroço de algodão, mamona, arroz, fava, feijão, pimenta do reino, alho, maniva, milho". E, de cada um, dava um carocinho. E disse: "Pois aí está, Adão, este é seu serviço e este é o de Eva. Vocês têm de dar comida a seus meninos". "Adeus, meu pai!". "Adeus", disse Papam. E Adão desceu lá do estrangeiro. Plantou toda a roça. Era muita fartura.

Papam pensou: "Eu vou dar muitos filhos para ele". E Adão já estava copulando com a mulher. Com apenas dois coitos, ela já ficava grávida e de madrugada dava à luz. Papam pensou: "Agora, vou dar-lhes filhos a todo momento, para aumentarem depressa". Eva dava à luz de manhã, de tarde e de noite. Até que encheu quatro quartos de filhos. Papam estava olhando para eles: "São poucos ainda, pois estão faltando os mehim (índios). E tornou a lhes dar mais filhos. Até que se encheram dez quartos. E disse Papam: "Agora vou fazer parar os filhos de Adão". E Eva não deu mais à luz. A casa estava cheia.

Então Papam pensou: "Agora vou fazer um padre para batizá-los". Esse padre era o Papa. Arranjou, para o padre, um burro com sela e tudo, arranjou comida e tudo. Esse padre, esse Papa, não morre nunca, pois foi Papam mesmo quem o fez. O padre montou no burro e Papam lhe falou: "Espero você dentro de dois dias". E o padre desceu do céu para o estrangeiro. Estava montado e já de manhã chegou à casa de Adão, gritando: "Oh de casa!". "Oh de fora! Apeie, cidadão!" O padre apeou. Adão pegou o burro, tirou a sela e levou-a para dentro de casa. Apanhou uma cadeira para o padre sentar. Perguntou ao padre: "Para onde vai, cidadão?" O padre respondeu: "Eu venho batizando meninos, alcancei você e pergunto se tem menino para batizar". O padre o estava enganando, pois, nesse mundo, não havia outros senão os meninos de Adão. "Eu venho batizar seus meninos", continou o padre. "Eu tenho só quatro", disse Adão, enganando o padre. E o padre estava olhando, porque todos os quartos estavam cheios. E Adão disse: "Eu só tenho quatro". O padre respondeu: "Não tem importância, pois eu já estou batizando neste mundo. Eu vou passar dois dias com você e vou-me embora". Adão fez comida para o padre, pois já tinha muita criação: porco, galinha, pato, galinha-d'angola. De manhãzinha, o padre falou: "Está na hora, seu Adão, vamos batizar os meninos". Foram conversando, conversando, até que o sol saiu. À sombra de uma árvore, o padre pôs água numa bacia e pôs remédio e disse: "Vamos ver, chame os meninos". E saíram dois meninos, depois quatro, depois cinco, depois dez, depois vinte, depois quarenta, e o padre foi batizando todos. E perguntou: "Acabaram?", "Acabaram", respondeu Adão. Abriu-se outra porta e sairam dez. "Só? Não há mais?". E o padre batizou todos. "Ainda há?" "Há". E batizou mais vinte; e vieram mais dez. O padre batizou todos. E vieram mais vinte e mais. "Acabaram?" "Acabaram". E a mulher de Adão lhe disse: "Adão, eu já estou com vergonha!" Adão respondeu: "Não, não tenha vergonha não, deixe-o batizar todos". A mulher respondeu: "Os dois últimos quartos ele não

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batiza não". Eva já estava pensando: "Agora esses dois quartos estão reservados para serem mehim (índios) e kupẽtugré (negros)". O padre só batizou ingleses, americanos, estrangeiros, alemães, russos. O padre disse: "Adão, não tenha vergonha não, eu vou batizar todo o mundo!". Adão respondeu: "Não, não há mais meninos não!". O padre já estava dizendo: "Não, deixe ficar, esses aí são mehim (índios)".

Já era meio-dia. O calor era grande. Os que estavam ainda nos quartos abriram as portas para se olharem na água da bacia. Os índios é que se fizeram índios, pois passaram água com terra no corpo. Os kupẽtugré (negros) saíram e passaram terra molhada só nas mãos; por isso é que somente suas mãos são brancas. E passaram carvão no corpo inteiro e só ficou a mão alvinha.

E o padre pensou: "Como é que vou fazer? Eu vou pôr nome neles". Chamou primeiro o estrangeiro: "Que fala você quer?" "Você é que sabe". Então o padre falou para eles, eles aprenderam e indicou-lhes o lugar de morada. Depois fez o mesmo com o americano, recomendando: "Não vá embora já não. Quando eu acabar a distribuição você vai". E depois deu fala para o russo, o inglês, o alemão. Então chamou o português (kupẽ). E chamou o índio, e fez a mesma coisa, dizendo-lhe: "Agora você é mehim (índio); seu nome para os kupẽ (civilizados) é patrício e índio. Para os mehim é craô. E esse negro é negro no português e kupẽtugré na língua do mehim".

Então, o padre entrou no quarto, pegou a espingarda, chamou o craô, e mandou que atirasse na mãe dele. Mas o craô não sabia atirar. Chamou o inglês e ordenou que matasse a mãe. E ele matou. Então, o padre rezou e a mãe se levantou. O padre então disse ao inglês: "Tome a espingarda que já é sua e desses seus companheiros. Não vá brigar com seus irmãos". Aí, o padre pegou o arco, bonito, bem feito, e chamou o estrangeiro, ordenando-lhe: "Mate sua mãe". Mas ele não sabia. Chamou então o craô e este matou a mãe. O padre rezou e Eva se levantou. O padre disse ao craô: "Pois o arco já é seu, não o deixe". E apanhou um arco e deu para o negro e este flechou Eva. O padre tirou a flecha, rezou e Eva se levantou. Então, o padre disse ao estrangeiro, ao americano, ao russo, ao inglês, ao alemão, bem com ao craô e ao negro qual era o lugar que habitaria cada um. E aí terminou.

O padre então falou com Adão e Eva: "Vocês podem ficar aqui toda a vida. Vocês não morrerão nunca. Eu vou para o céu e depois volto para ficar aqui e não morrer nunca". E montou no burro, andou uma certa distância e subiu. O padre ficou sendo o Papa. Foi Deus mesmo que lhe pôs esse nome. Disse-lhe: "Se eu fizer alguma coisa, você fica sabendo. Escreva aqui para eu ver!". O padre escreveu. "Ah, agora você pode ir para a terra, não morrerá nunca". Só os filhos é que morrem, mas o Papa, Adão e Eva não morrerão nunca.

Versão mundurucu. Nas pp. 80-1 do já referido livro Mundurucú Religion, Robert Murphy também inclui a narrativa referente a Adão e Eva, da qual farei aqui um resumo, juntando as três seções em que ele a dividiu.

Karusakaibö, ou Tupã, como dizem os padres, fez bonecas de barro e guardou-as numa casinha. Quando a abriu, elas tinham virado moças. Um dos homens, que já existiam, descobriu as moças e seduziu uma delas. Karusakaibö obrigou-o a se casar com ela. Ele deu uma moça para cada homem. Mas não sobrou parceiro para uma delas, Eva. Enquanto ela dormia, Karusakaibö tirou-lhe uma costela e transformou-a num homem. De manhã ela acordou com Adão a seu lado. Karusakaibö disse a Adão que Eva era dada a ele para ajudá-lo. Entregou-lhes uma certa quantidade de frutos, mas proibiu-os de comê-los.

Karusakaibö mandou Adão abrir uma roça na floresta. E deu-lhe facões que trabalhariam por si mesmos, contanto que Adão não os espiasse. Mas Adão foi olhá-los e eles se quebraram. Por isso ele e seus filhos tiveram de trabalhar. Karusakaibö deu-lhe machados com a mesma instrução, mas Adão espiou-os e eles se quebraram. Então mandou que Adão ele próprio

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cortasse as árvores. O machado de Adão cortava os troncos, que se abriam com facilidade como se fossem melões. Mas as árvores gritavam e Adão não quis continuar. Karusakaibö mandou então que ele cuspisse no machado. Ele o fez e os troncos se tornaram duros e nodosos. Também as enxadas que deu Karusakaibö faziam o trabalho sozinhas. Mas Adão as espiou e por isso teve de fazer ele próprio o trabalho.

Quando a mandioca amadureceu, Karusakaibö mandou Adão colhê-la e fazer farinha. Como Adão insistisse que os pés estavam muito baixos e a mandioca ainda não estava madura, Karusakaibö mandou que ele batesse com o pé duas vezes no chão e tocasse o tubérculo com o dedo do pé. Ele assim fez e os pés cresceram e a roça se tornou copada e confusa como é hoje em dia.

Karusakaibö, muito zangado com a desobediência de Adão, queimou-o para purificá-lo.

Adão não sabia o que fazer com uma mulher e como procriar. Ele pensava que a vagina de Eva fosse uma ferida e tentava curá-la com tratamento medicinal. A serpente disfarçada em forma humana ensinou a Adão o que fazer e estimulou-o a experimentar. Ele e Eva gostaram tanto da experiência que eles e a humanidade a seguiram praticando até hoje.

Depois a serpente incentivou Eva a comer o fruto. Karusakaibö soube disso e mandou embora ela e Adão.

Decepcionado com Adão e Eva, Karusakaibö resolveu subir ao céu. No caminho passou pelas terras abaixo do rio Tapajós. Achou gente mais receptiva que os mundurucus, que o ouviu e seguiu. Ensinou a essa gente muitas coisas maravilhosas. Por isso, os mundurucus têm pouco conhecimento e são pobres em coisas materiais, e o povo que vive abaixo tem tanto e tão maravilhoso.

Uma outra versão desse final diz que, depois de ter transformado o tatu Daiïrú na árvore apoi, que sustenta do céu, Karusakaibö voltou a sua morada em Uacupari. As pessoas estavam com muito medo de seu poder e decidiram matá-lo como feiticeiro. Porém Karusakaibö despertava a compaixão deles transformando-se uma vez num velho que não podia andar, outra vez numa velha. Mas na terceira vez que ele quis se passar por velho, os homens o mataram com flechas. Alguns dias depois os homens visitaram a sepultura de Karusakaibö e o encontraram sentado no chão, vivo e jovem. Ele então os deixou e subiu ao céu. Desde então é perigoso viver na antiga aldeia de Karusakaibö, Uacupari, porque abaixo dela está o mundo subterrâneo de onde as pesssoas foram tiradas, e o chão pode ceder fazendo brotar um rio. Neste subterrâneo há cidades, embarcações a vapor e outras coisas maravilhosas.

Há ainda uma terceira versão desse final. Morto a flechadas por aqueles que temiam seu grande poder e sepultado sob espinhos e grandes pedras, Karusakaibö ressuscitou e saiu da tumba com tal força que formou as colinas da região dos mundurucus. Está agora no céu. No caminho visitou os Estados Unidos e a Alemanha. Para cruzar a água tornou-a salgada ou em gelo. Criou muitas espécies de animais. Uma vez matou uma galinha, dividiu e pôs no fogo. Cortou uma das metades em muitos pedaços e soprou sobre eles. Cada um virou uma galinha ou galo e voou. Quando voava embora, um dos galos viu Karusakaibö e gritou: "Lá vai Santo Antônio subindo!"

Conta ainda a mesma versão que Karusakaibö chegou a uma casa e pediu por água e farinha de mandioca. Os moradores não sabiam quem era e só lhe deram água. Ele disse: "A roça deles vai crescer." Foi embora e a roça virou pedra. Chegou a uma outra casa, onde lhe deram farinha de mandioca e água. Ele disse: "Esta roça ficará toda coberta de mato". Mas o contrário aconteceu e ela produziu abundantemente. Os primeiros o tomaram como um feiticeiro, mas os últimos o chamaram de seu avô e acharam que era muito bom.

Comparação. A versão timbira (quencatejê/craô) não diz que de que maneira Deus fez Adão e Eva. A versão mundurucu inverte a narrativa bíblica: Karusakaibö faz mulheres de barro,

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que dá a homens já existentes; como falta homem para uma delas, Eva, tira-lhe uma costela para fazer Adão.

A versão mundurucu atribui a origem do trabalho ao fato de Adão desobedecer a ordem de não olhar as ferramentas trabalharem sozinhas. Pelo mesmo motivo Lua dá origem ao trabalho na mitologia timbira (ver 4a aula). Mas curiosamente a versão timbira do mito de Adão e Eva não considera o trabalho um castigo. Adão simplesmente obedece a ordem de fazer uma roça e ainda é elogiado por ser bom trabalhador.

Segundo a versão mundurucu, por ter Eva comido o fruto proibido, o casal é mandado embora. Na versão timbira, não existe o fruto proibido. Se há uma expulsão do paraíso, é a dos filhos negros e índios do casal, que não foram batizados. Quanto a este detalhe, a versão timbira retoma ainda a escolha entre a espingarda e o arco, do mito de Aukê (ver 16a aula).

A recusa de Adão em reconhecer que a mandioca estava madura lembra a mesma atitude da mãe dos gêmeos nos mitos guarani e guajajara (ver 13a aula).

O final da versão mundurucu e suas duas alternativas já não identificam Karusakaibö com Deus Pai, mas com Jesus Cristo, e se inspiram no tema evangélico da sua morte, ressurreição e ascensão. A multiplicação das galinhas lembra a multiplicação dos pães e peixes. E o final da última alternativa lembra aqueles contos sertanejos relativos à visita de Jesus aos moradores, disfarçado de pobre, castigando os que o maltratavam e abençoando aqueles que o ajudavam.

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16a aula Mito e História

Julio Cezar Melatti

Março de 2001

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Mito e antimito Roberto DaMatta, no seu artigo "Mito e antimito entre os Timbira", publicado no volume

Mito e Linguagem Social (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970, pp. 77-106), comparou as versões canelas de dois mitos já comentados neste curso: o da conquista do fogo (9a aula) e o da origem dos civilizados (13a aula).

Ele nos mostra muito bem como os dois mitos são muito semelhantes em sua estrutura, mas no entanto divergem fundamentalmente. Num deles, os canelas tiram da esposa do jaguar o fogo e o incorporam seu uso ao seu cotidiano; é inegavelmente um ganho. No outro, ao expulsarem o menino Aukê, queimando- o numa fogueira, perdem a oportunidade de dispor dos bens e técnicas dos civilizados. As trajetórias dos meninos protagonistas dos dois mitos são o inverso uma da outra. Assim, o menino que irá conseguir o conhecimento do fogo, sai da sociedade, abandonado que é no alto do penhasco junto ao ninho das araras, é salvo pela onça macho, permanece durante algum tempo com o casal de onças que fazem uso do fogo de cozinha e finalmente foge de volta

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para a sociedade depois de flechar na mão a onça fêmea, quando esta insiste em mostrar-se ameaçadora. Já Aukê, a cujo genitor masculino a versão utilizada não faz referência, transforma-se em animais antes do nascimento, continua a transformar-se neles mesmo depois de entrar na sociedade pelo nascimento, sendo finalmente afastado para fora da mesma.

Roberto DaMatta cunhou o termo "antimito" para caracterizar a narrativa das aventuras de Aukê. Mas isso não foi pelo motivo de esse personagem fazer a trajetória inversa à do personagem do mito do fogo. Chamou de antimito porque se trata de um primeiro esforço da sociedade indígena encontrar um lugar para um conjunto de experiências até então desconhecidas desencadeadas com o aparecimento do homem branco; uma tomada de consciência de um mundo novo cheio de contradições; um mito de caráter mais dinâmico, que possibilita a criação de categorias novas e a passagem para uma ordem mais complexa, a da ideologia política. Assim, as trajetória dos meninos personagens não apenas se invertem, como ilustram os dois gráficos que acompanham o artigo (pp. 92 e 99). Um mostra o percurso feito pelo menino no mito do fogo, saindo da sociedade para a natureza e retornando à sociedade. O outro, ao contrário, mostra Aukê saindo da natureza para a sociedade e voltando à natureza. Porém essa volta não é para a mesma natureza; é para uma natureza alterada pelo seu próprio retorno, que cria o mundo do homem branco e instala o tempo histórico.

Aponta ainda Roberto DaMatta para dois detalhes que fazem do antimito mais do que o inverso do mito do fogo. Um é ambigüidade ou falta de coerência de seus personagens, a começar pelo próprio Aukê, que inexplicavelmente se transforma em outros seres e ao mesmo tempo se mostra passivo diante das várias tentativas do tio materno para matá-lo. A mãe de Aukê, por sua vez, não alerta os parentes e moradores da aldeia para o comportamento estranho do seu feto, mas se recusa a aceitar a criança quando ela nasce. É sua avó materna que a salva. Mas é a mãe que volta a se interessar por ela depois que é queimada. O outro detalhe é a divisão do antimito em duas partes: na primeira, até a queima de Aukê, a narrativa mantém uma estrutura mais rígida, apenas invertendo o mito do fogo; na segunda, há mais discrepância entre os narradores, que mais livremente introduzem variações relativas às características do homem branco.

Mito e história Nas considerações de Roberto DaMatta há como que uma certa associação, quiçá

inadvertida, entre o aparecimento do homem branco e o advento do tempo histórico. Essa associação não é necessária, como mostram os contos de guerra, narrados tanto pelos canelas como pelos craôs, também timbiras.

Colhi doze desses contos de guerra entre os craôs. Na verdade, essa expressão, "contos de guerra", não me foi transmitida pelos craôs. Eu a tomei do artigo de William Crocker, "Estórias das Épocas de Pré e Pós-pacificação dos Ramkókamekra e Apâniekra- Canelas" (Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Nova Série, Antropologia, n° 68, Belém, 1978). Infelizmente, não fiz como Malinowski, que obteve dos trobiandeses uma classificação de suas narrativas em três categorias (1a aula). Não tenho uma classificação craô de suas narrativas. Mas a distinção entre mitos e contos de guerra, usada por mim e não proposta pelos craôs, ajuda a traçar uma distinção da qual me dei conta, não durante, mas depois do trabalho de campo. Os contos de guerra não contêm nenhum episódio que os membros de nossa própria sociedade poderiam considerar como fabuloso ou sobrenatural: neles os animais não falam e nem se transformam em seres humanos; estes, por sua vez, não se transformam em animais; os homens não sobem aos céus e seres celestes não descem à terra; os instrumentos não trabalham sozinhos e os objetos rituais não cantam. Esses contos também não relatam a origem dos homens, da agricultura, do fogo e nem dos ritos. É certo que não se pode classificar uma narrativa como mítica ou não simplesmente pela consideração de seu conteúdo como imaginário ou real pelo pesquisador.

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Mas há algo mais que distingue os contos de guerra dos mitos. É que, embora não se possa assegurar que os acontecimentos que narram tenham realmente ocorrido, eles os apresentam conforme uma idéia diferente de tempo. Dando um exemplo, no mito do Sol e Lua se conta que o primeiro fazia as ferramentas, como machado, facão, enxadas, trabalharem sozinhas na roça. Ao narrador, pouco importa que esses instrumentos de ferro introduzidos após o contato com os brancos estejam presentes num episódio colocado no início dos tempos. Nos contos de guerra, por outro lado, o narrador tem o cuidado de fazer referência a técnicas e costumes que não mais vigem nos dias de hoje: viajar com um cesto de batatas-doces assadas, tirar parte das penas das flechas para não permitir ao inimigo prever a sua trajetória, advinhar o resultado de um combate iminente pela direção do sangue de um animal abatido na caça, entre outros.

Explicando melhor, ambos os tipos de narrativa lidam com o tempo, mas de modo diferente. Nos mitos, conta-se a incorporação à cultura de algum item que lhe veio de fora: uma técnica, um conhecimento, um rito. A consideração do tempo se limita a um "antes" e um "depois" dessa incorporação: antes e depois da obtenção do fogo, antes e depois do conhecimento dos vegetais cultivados; antes e depois da introdução do rito de Tépyarkwá. Não se coloca o problema de ordenar esses diferentes mitos numa ordem cronológica, e certos episódios de um mito como o do Sol e Lua podem vir indiferentemente antes ou depois de outros. É como se houvesse um "antes" e "depois" para cada item criado ou incorporado. Quanto aos contos de guerra, embora também não seja possível ordenar os doze recolhidos, há uma preocupação em mostrar que no tempo em que ocorreram as aventuras neles narradas, os craôs não viviam exatamente como vivem hoje.

Os doze contos foram publicados em "Reflexões sobre Algumas Narrativas Krahó" (Série Antropologia, n° 8, Departamento de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, 1974), um trabalho que voltei a divulgar, neste site, com algumas modificações, inclusive no título, como "Contos de guerra dos índios craôs", em http://www.geocities.com/juliomelatti/contos/contosum.htm. Esses mesmos contos, com exceção de um, foram publicados em inglês no volume Folk Literature of the Gê Indians, Volume One, organizado por Johannes Wilbert e Karin Simoneau (Los Angeles: University of California, 1984).

Seria demasiado longo repetir aqui os doze contos a que estou me referindo. Mas vale a pena sentir como diferem dos mitos. Por isso transcreverei apenas dois deles. Um é a história de um homem chamado Iõhe, que foi aprisionado por um povo conhecido como kokham'khiere.

Iõhe saiu para a caçada. Tinha ido à casa de sua irmã e não recebera nada. Sua esposa comentou: "Nem parente teu tem coragem de te dar um pedacinho de carne!" "É, mas eu vou caçar." De madrugada saiu. Falou à mulher: "Eu vou neste caminho; chegando lá no carrasco (tipo de vegetação), bem no pé de sucupira, eu ponho minha comida e saio. Se encontrar uma caça, eu pego, e volto para pegar minha comida, e volto." Pendurou o alimento e entrou no mato. Viu um mutum e matou. Mais adiante viu muitos guaribas. Flechou um, que morreu lá em cima; flechou outro e aconteceu a mesma coisa; flechou outro, e a mesma coisa. "Ora, mas por que?" Botou o arco o chão, dependurou o khëiré (machado de pedra semilunar) e subiu. Quando já estava bem no meio do pau, chegaram os kokham'khiere, uma outra nação. Talvez sejam os carajás, porque se diz que os carajás sabem mergulhar. Mandaram Iõhe descer. Iõhe desceu e queria correr, mas os kokham'khiere o pegaram. Perguntaram-lhe o nome e ele disse. Mandaram-no subir e ele subiu e tirou todos os guaribas. Os kokham'khiere pegaram os guaribas. Iõhe acompanhou os kokham'khiere para a aldeia deles. E foram fazendo acampamentos pelo caminho.

Depois de três dias, o irmão veio perguntar por ele à mulher. Ela disse: "Ele foi fazer uma caçada naquele carrasco, mas por onde foi tapou a estrada." Aí o irmão saiu de madrugada e chegou onde estava a comida de Iõhe. Era no verão; ainda havia rastro. Chegou lá, viu trilhado

Contos

de Guerra

dos Índios Craôs

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(rastro de muita gente) debaixo da árvore. Continuou a rastejar e viu rastro de Iõhe bem no meio do dos kokham'khiere. Chegou ao acampamento e viu rastro e aí voltou para a aldeia, onde contou a história. Avisou à irmã. A irmã convidou os homens. Fizeram comida e saíram no mesmo dia. Foram no trilhado (rastro) de Iõhe. E dormiram aí onde os kokham'khiere o tinham pegado. Foi a metade da aldeia procurar Iõhe. Bem cedo saiu o irmão de Iõhe e encontrou o lugar do rancho. O irmão de Iõhe ia sempre na frente e voltava para avisar ao povo, atrás. Encontrou dois lugares de dormida. Depois encontrou dormida com fogo aceso. Estavam perto.

Os kokham'khiere chegaram à beira de um rio grande, nela arranchando. O portador dos kokham'khiere já fora avisar aos outros (que estavam na aldeia deles) para virem, para matarem Iõhe e irem embora. Quando o portador saiu, o irmão de Iõhe se aproximou. Iõhe cantava e fazia sinal de que os kokham'khiere estavam todos dormindo. Fez sinal para os cercarem. O irmão voltou e encontrou o pessoal a uma distância de uns seis quilômetros; avisou a eles e voltou. Olhou para Iõhe e este fez sinal para vir logo. Quando chegaram perto, dividiram-se em grupos para cercar. O chefe dos kokham'khiere estava com khëiré no braço. Iõhe pegou o khëiré e o chefe viu: "Iõhe pegou o khëiré; eu quero que ele cante muito; eu estou com sono." Iõhe respondeu: "É, eu estou assim solto, eu estou maneiro (leve), eu quero pegar khëiré para cantar pesado." O chefe dos kokham'khiere tornou a dormir logo. Iõhe deu na testa do chefe com o khëire mesmo. O pessoal matou todos os kokham'khiere. Só um escapuliu. Alguém lhe bateu na perna, mas ele mergulhou e foi embora.

No fim havia carne de caça e de gente. Iõhe resolveu pegar carne de caça. Pegou carne de veado, ema, anta e deu para o povo. Aí, acabaram de comer e retornaram. Viajaram dois dias e chegaram. O pessoal falou para Iõhe: "Agora nós queremos sua irmã, para conversar com ela." Era moça ainda. Iõhe foi pegar a irmã dele pelo braço e trouxe. Fizeram roda, taparam de toras e todo o mundo copulou com a moça. Era o pagamento da viagem. Antigamente era assim.

Comentando brevemente, nota-se em primeiro lugar, que esse conto começa com um desentendimento entre um irmão e uma irmã casada. Outros três contos que colhi também se iniciam assim. Normalmente é a recusa da irmã em dar alimento ao irmão, alegando que tem de usá-lo para satisfazer uma outra obrigação, que não raro envolve o próprio irmão. O irmão não entende as razões da irmã e sai da aldeia, neste caso para caçar, no de outras narrativas para procurar a morte. Em compensação, é uma irmã, talvez a mesma, que convida os outros homens da aldeia para irem salvar Iõhe. E é ainda uma outra irmã, desta vez virgem, que é requisitada pelos homens, na volta da expedição, para ter relações sexuais com eles, como retribuição de seus serviços. O sexo serial, de muitos homens com uma só mulher, era prática comum entre os timbiras do passado, e está sendo objeto de uma pesquisa, baseada na memória dos mais velhos, de William Crocker entre os canelas.

Iõhe tinha levado um machado de pedra semilunar, um instrumento de origem arqueológica que os craôs não fazem, mas acham e nele põem cabo e ornamentos. Normalmente não é usado para cortar, e sim para ser ostentado pelo cantor. Talvez por isso o chefe dos kokham'khiere, que havia se apropriado do machado, não se preocupa quando Iõhe o apanha para cantar, sendo inesperadamente atingido por ele, usado como arma.

O conto também pode dar a oportunidade ao narrador de fazer alusões zombeteiras como: "No fim havia carne de caça e de gente." Considerando que os craôs não são e nunca foram canibais, trata-se simplesmente da comparação dos inimigos vencidos com animais de caça.

A desavença inicial entre irmão e irmã tem motivo mais claro em outro conto. Trata-se da dificuldade de satisfazer obrigações conflitantes ligadas a dois tipos de relação. É o caso dese conto em que três personagens têm o mesmo nome: Katamrik.

O pessoal de uma aldeia saiu caçando. E fazia acampamentos durante o percurso. Fizeram um último acampamento antes de retornar à aldeia. Dali deveriam partir em direção à mesma,

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correndo com toras. Os caçadores combinaram comer com seus ikhïonõ no pátio do acampamento. Katamrik foi buscar um pedaço de carne na cabana de sua irmã. Ela respondeu que não podia dar, pois já tinha destinado todos os pedaços para os ikritxua dele e não sobrara nenhum. Katamrik zangou-se. Foi para o pátio, mas não aceitou comer junto com o seu ikhïonõ, embora este insistisse. Katamrik dizia que ele comeria carne de seu ikhïonõ, mas este nada comeria dele.

Katamrik negou-se a ir para a aldeia com os outros e mandou chamar seu nominador (logo, também chamado Katamrik). Este veio e lhe trouxe alimento. Quando Katamrik lhe disse que não pretendia mais voltar à aldeia, mas sair numa direção qualquer, o nominador prontificou-se em acompanhá-lo. E saíram. Andaram. Encontraram então um rapaz de uma outra aldeia junto das toras com que iam fazer corrida. Quando disseram o seu nome, o rapaz respondeu que Katamrik também era o nome de seu pai. Por isso, eles foram levados para a casa de Katamrik. Este guardou-os em casa.

O pessoal da aldeia queria matar os dois estranhos. Com o fito de matá-los, convidaram-nos para jogar flechas, mas o anfitrião lhes disse que os visitantes estavam cansados da viagem. Convidaram-nos para cantar. Como aquele que veio convidar era hõpin de Katamrik, o anfitrião, este consentiu. E assim os dois visitantes Katamrik foram mortos. Katamrik, o anfitrião, ficou zangado. Não recebeu seus genros em casa, uma vez que estes não tinham evitado o assassinato. Parece que saiu para a roça e de lá mesmo foi com seu filho para a aldeia dos Katamrik assassinados. Trouxe o pessoal dessa aldeia para atacar sua própria aldeia, que destruiu. E ficou morando com seu filho na aldeia daqueles dois Katamrik que morreram.

Neste conto a irmã fica entre dois tipos de relação em que seu irmão está envolvido: seus amigos espontâneos (ikhïonõ) e seus amigos formais (hõpin, ikritxua). Também o velho Katamrik entra em conflito, entre proteger os dois visitantes que têm seu nome ou deixar que os moradores de sua aldeia os matem. Sua resistência é, porém, liquidada por um pedido do amigo formal, que é impossível recusar.

A crítica do mito conduz à história? Na 3a aula foi apresentado o mito de Wenía, que conta a origem dos marubos e de sua

cultura. Um dos episódios desse mito é a travessia do rio sobre um grande jacaré, que tinha a cabeça numa das margens e a ponta da cauda na outra. Os líderes que conduziam os marubos fizeram com que os que cometiam atos incestuosos ficassem para o fim e quando estes caminhavam sobre o réptil, aqueles o abateram, precipitando-os nas águas. Conforme a dissertação de mestrado de Edilene Coffaci de Lima, Katukina: História e Organização Social de um Grupo Pano no Alto Juruá (São Paulo: USP, 1994), os índios catuquinas-panos, que vivem próximo a Cruzeiro do Sul, no Estado do Acre, também contam o episódio mítico em que eles atravessam um grande rio sobre as costas de um enorme jacaré. Quando uma parte do povo já estava na outra margem, o jacaré percebeu que um dos homens que então atravessava comera carne de jacaré, pelos vestígios que trazia entre os dentes, e precipitou nas águas os que estavam sobre ele. Segundo os catuquinas-panos, o grande rio era o Juruá, e aqueles que não conseguiram atravessar vieram a tornar-se os índios panos, inclusive os marubos, que vivem ao norte, no Estado do Amazonas.

Em 1992, alguns catuquinas-panos, ouvindo um grupo de pessoas a conversar em língua semelhante à sua, na cidade de Cruzeiro do Sul, aproximaram-se e fizeram amizade com os marubos. Além da semelhança da língua vieram a saber que os marubos também se dividiam em unidades sociais com os mesmos nomes das suas. Vindo a conhecerem-se melhor por meio de algumas visitas de uns a terra dos outros, os catuquinas-panos ficaram cada vez mais convencidos que os marubos conservavam o mesmo modo de vida que eles tiveram no passado. Apesar de a língua marubo ser mais distante que a de outros vizinhos como os iauanauas, os catuquinas-panos

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identificaram-se de tal modo com os marubos, como se constituíssem um mesmo povo, que se dividira no episódio mítico da ponte-jacaré.

Surgia, entretanto, um problema: por que os marubos contavam o episódio mítico de maneira diferente? Os marubos diziam que eles tinham atravessado sobre a ponte jacaré, mas a tradição catuquina-pano admitia que os marubos estavam entre aqueles que não tinham atravessado o rio. Teriam os marubos atravessado o rio numa segunda tentativa? Ou não teria sido o Juruá o rio referido nesse episódio? A ponte-jacaré acabou por ser abandonada como explicação da separação entre os catuquinas-panos e os marubos. Eles teriam atravessado juntos sobre o jacaré e a sua separação se devia às correrias que se seguiram na sua luta com um povo indígena inimigo chamado Ushunawa. Apesar de ushu (osho, na grafia marubo) ter por significado a cor branca, esses inimigos não eram identificados com os civilizados, pois, embora sua pele e seus olhos fossem claros, usavam bordunas.

Em suma, não parece que o conflito entre as duas tradições míticas tenha resultado numa solução que satisfaça plenamente a um modo de ver histórico, mas sem dúvida o encontro com os marubos, com os quais arbitrariamente se identificaram de preferência a outros grupos panos, fomentou entre os catuquinas-panos uma grande vontade de conhecê-los, a ponto de um deles ter assim explicado a Edilene Coffaci de Lima o motivo de sua viagem ao outro lado do Juruá: "fui estudar com os Marubo" (p. 141). Se, por um lado, essa afirmação evoca uma etnografia feita por indígenas, por outro, implica em tomar os marubos como modelo, o que condiz mais com o mito do que com a história.

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