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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP Melquisedec Chaves do Nascimento Circunstancialidade da invenção em A Varanda do Frangipani, de Mia Couto: entre a letra e a voz PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA SÃO PAULO 2009

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP

Melquisedec Chaves do Nascimento

Circunstancialidade da invenção em A Varanda do Frangipani, de Mia Couto: entre a letra e a voz

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

SÃO PAULO 2009

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MELQUISEDEC CHAVES DO NASCIMENTO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Literatura e Crítica Literária sob a orientação da Profa. Dra. Beatriz Berrini

São Paulo

2009

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Banca Examinadora

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Aos meus pais, Celestino Nascimento e Hilda Chaves.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha orientadora, professora. Dra. Beatriz Berrini, pela atenção

dedicada a este trabalho, que sempre, de maneira carinhosa, sugeriu, corrigiu,

cobrou e permitiu, assim, que, juntos, descobríssemos um pouco mais de Mia Couto

Mia Couto.

À professora Dra. Maria José Pereira Gordo Palo, pela generosa atenção a

este trabalho desde o pré-projeto, pela participação e contribuições na banca de

qualificação e por mostrar em suas aulas o que é, de fato, uma pesquisa.

À professora Dra. Vima Lia de Rossi Martin, pela participação e contribuições

na banca de qualificação, além de suas aulas apresentadas no curso “Literatura e

marginalidade”, na USP, em 2006, no qual tive o privilégio de participar, fruir e ver a

literatura africana de língua portuguesa com outros olhos.

À professora e coordenadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em

Literatura e Crítica Literária, Dra. Maria Aparecida Junqueira, pelas aulas e pelo

carinho com que acolhe os alunos do Programa.

À professora Dra. Maria Rosa, pelas aulas.

À Ana, secretária do Programa, pelos esclarecimentos e palavras de apoio.

Aos amigos que, pelo convívio, tornaram-se vozes presentes neste trabalho:

Antonio Carlos, Ana Paula dos Santos, Geraldo de Souza Dias, Douglas, Joelice,

Jussara Trindade, Camila, Ralph, Luis Miguel de Malta Louceiro, Wagner Leite

Viana, Gisele e outros.

À Diretoria de Ensino de Itapevi, especialmente aos colegas da oficina

pedagógica.

À Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, pelo incentivo financeiro

do Programa Bolsa Mestrado.

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“Nunca escrevi, sou apenas um tradutor de silêncios(...)”

Mia Couto, em Raiz de Orvalho e Outros Poemas

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RESUMO

O objetivo deste trabalho é analisar o romance A varanda do Frangipani, do moçambicano Mia Couto. Baseado nas proposições do estudioso da oralidade Paul Zumthor, procura-se, por meio das estratégias narrativas presentes no romance, indícios de performance, conceito discutido por Zumthor, que remetem a uma encenação virtual no espaço da enunciação. Nessa perspectiva, oralidade está para vocalidade, pois rastrea-se, nesta análise, não os traços de falas que indicariam um uso corrente em determinada comunidade de falantes, mas os gestos virtuais presentes no discurso, que são percebidos no fenômeno da leitura-audição. Assim, o leitor estaria mais para um performer: ele é co-autor da obra. A hipótese geral indica que o discurso de A Varanda do Frangipani está permeado por gestos vocais e performáticos. O primeiro capítulo, intitulado “Entre a letra e a voz”, apresenta o conceito de performance. Tal conceito sustenta a hipótese geral desta investigação. O leitor, frente ao texto literário, também é objeto de discussão neste capítulo: nota-se que o “contrato prévio” entre leitor e obra é o que lhe possibilita vivenciar a performance. Ainda no primeiro capítulo é apresentada a biografia literária de Mia Couto. No segundo capítulo, “A Memória coletiva e a espacialidade discursiva”, discute-se a diferenciação entre oralidade e escrita, principalmente a partir dos estudos de Walter Ong: essas duas modalidades possuem traços distintos, sendo que podem ser entendidos dentro de suas lógicas sob o ponto de vista cultural. Discute-se, também, como leitor e ouvinte situam-se na espacialidade discursiva. No último capítulo, “Da voz que canta à palavra que narra”, é apresentada a fortuna crítica do autor, sob três perspectivas diferentes, tais críticas não deixam de fazer referência à oralidade em Mia Couto. Por fim, a análise do romance a partir das falas das personagens e as considerações sobre as estratégias narrativas dos narradores. A presente pesquisa indica que encontra se virtualmente no espaço da enunciação autor, narrador, leitor-ouvinte, realizando, assim, o que Zumthor chama de performance: virtualmente A Varanda do Frangipani é encenada. Isto é possível a partir das marcas enunciativas percebidas pelo leitor-ouvinte, que mesmo no silêncio do narrador, apresenta, os gestos, olhares, movimentos, lapsos, ironias. Palavras Chave: Literatura Moçambicana, Mia Couto, A Varanda do Frangipani, Oralidade, Vocalidade, Performance.

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ABSTRACT

This aims of this paper is to analyze the novel “A Varanda do Frangipani” by mozabican writer Mia Couto. Based on researches about orality made by Paul Zumthor, is researched some signs of performance through discursive strategies used by narrators. Such concept presented by Zumthor relates a virtual performance on the space of enunciation. In this perspective, orality is in the place of vocality, because is looked in this paper, not traces of speaks that could signs a frequent use in some communities, but virtual gestures presents in the discourse, that could be possible to realize in the phenomenon of reading and listening. For this reason, the reader is like a performer of the work’s art, he is co-author of the work. The general hypothesis signs that a discourse of “A Varanda do Frangipani” is crowded of vocal and performing gestures. The first chapter, entitled “Between letter and voice”, is presented the concept of performance. That concept supports the general hypothesis. The reader, in face of the literary text, as well is object of discussion in this chapter: a “previous deal” between the reader and the work possibilities himself to live the performance. In this chapter is presented a literary biography of Mia Couto. In the second chapter, entitled, “Collective Memory and the discursive space”, is discussed the difference between orality and write, mainly based at the Walter Ong’s researches: these both modalities has distinct traces, and it could be understood through of the own logic and under in a cultural perception point of view. Still is discussed how is the discursive space where there are reader and listener. In the last chapter, “From the voice that sing to the word that tells”, is presented a critical fortune about Mia Couto’s work under three different perspectives, such critical relates different ways to treat the orality in Mia Couto’s work. Finally, is made the analysis of novel through of the narrator voices. The present paper signs that there there are in the enunciation’s virtual space: author, narrator, reader-listener, allows what Zumthor calls performance: “A Varanda do Frangipani” novel is virtually act. This is possible based in the enunciative context realized by reader/listener, that, despite of narrator’ silence, are present gestures, looking, movements, lapse, irony. Key words: Mozambican Literature, Mia Couto, A Varanda do Frangipani, Orality, Vocality, Performance.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................10

CAPÍTULO I - Entre a letra voz: da palavra à experiência estética.............17

1.1 - A palavra vocalizada: Ler ou ouvir?.....................................................18

1.2 - A aproximação estética entre leitor e narrador.....................................27

1.3 – Mia Couto e as escrevências inventosas............................................32

CAPÍTULO ll - A memória coletiva e a espacialidade do discurso..............36

2.1– Faces em convergência: oralidade e escrita........................................37

2.2 – Espaço do leitor-ouvinte e do narrador-contador................................47

2.3- O “entre-espaço” como acontecimento poético.....................................50

CAPÍTULO III - Da voz que canta à palavra que narra................................57

3.1- A estória recontada como história.........................................................58

3.2 – A crítica................................................................................................62

3.3 – Territórios em mediação inventosa......................................................69

CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................85

BIBLIOGRAFIA.............................................................................................89

.

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INTRODUÇÃO

Esta dissertação tem como objetivo a análise do romance A Varanda do

Frangipani, do moçambicano Mia Couto, publicado em 19961.

Muitos pesquisadores têm se debruçado sobre a obra de Mia Couto, quer

através dos estudos culturais; quer através de análises comparativas que

apresentem contato entre a obra do moçambicano e a do brasileiro Guimarães

Rosa; quer, ainda, através de estudos que evidenciem elementos formais que dão

caráter mágico à construção estética de Mia Couto; quer através de estudo que

discuta a tradição e modernidade, ou ainda, a maneira como ele re-elabora a

linguagem por meio de elementos da oralidade. Ainda que nosso trabalho não se

distancie muito dessas propostas, sua diferenciação reside em tratar da oralidade,

segundo as proposições do estudioso da literatura oral e medievalista, Paul

Zumthor.

Situado na linha de pesquisa das poéticas literárias, este trabalho tem como

enfoque a identificação dos processos de narratividade contidos no romance A

Varanda do Frangipani2, e o modo como os narradores se presentificam na estória3.

Esta obra de Mia Couto aborda a investigação de uma morte ocorrida num forte. A

hipótese que norteia a pesquisa é que esta estória se desenvolve no discurso dos

narradores por meio da vocalidade, termo mais abrangente que oralidade, pois se

constitui do silêncio, entonação, gesto, etc.: um fenônemo que acontece na

realização da perfomance, termo este, que na perspectiva zumthoriana, designa

...é a ação complexa pela qual a mensagem poética é

simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida. Locutor,

destinatário, e circunstâncias (quer o texto, por outra via, com a ajuda

1 Para esse trabalho, é utilizada a 7ª- edição, publicada em 2003 pela Editora Caminho.

2 Vamos nos referir ao romance em questão como A Varanda. 3 O dicionário Aurélio recomenda que se utilize o termo história, tanto para narrativa ficcional quanto para a ciência histórica. A diferenciação entre estória e história foi proposta em 1919 por João Ribeiro, membro da Academia Brasileira de Letras, para designar, no folclore, a narrativa popular. Guimarães Rosa, através de sua literatura ratificou e ampliou o uso do termo. Mia Couto, como Guimarães, refere-se às suas narrativas como estórias, termo este que utilizaremos em nosso trabalho.

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de meios lingüísticos as represente ou não) se encontram

concretamente confrontados, indiscutíveis. (ZUMTHOR, 1997, p.33)

O que nos interessa é o modo como estrutura-se esta narrativa, os recursos

que os narradores utilizam para contar a estória, e a maneira como alguns

elementos da tradição oral se manifestam neste romance por meio da vocalidade.

Para tanto, nós nos colocaremos na posição de leitor-ouvinte com o objetivo de

discutir, a partir da leitura do romance, alguns elementos vocais que se apresentam

nessa ação complexa presente na perfomance, conceito que discutiremos

pormenorizadamente em capítulo oportuno.

Faremos um levantamento do que se tem discutido sobre alguns aspectos da

oralidade referente à literatura africana, privilegiando os estudos de Ana Mafalda

Leite sobre o tema; recorreremos a outros pesquisadores que discutem tal temática

a fim de que nos auxiliem na leitura de A Varanda. Tais como José de Souza Miguel

Lopes, que discute o aspecto acústico da palavra em Moçambique, Walter Ong,

sobre a oralidade, a escrita e seus fenômenos e, também, Pareyson, que trata da

experiência estética na leitura do objeto artístico. Como aporte teórico, utilizaremos

as proposições de Paul Zumthor acerca dos conceitos de performance e vocalidade.

Narrar é viver. Mia Couto parece ter consciência disto e evidencia isso em seu

projeto literário. Ao colocar em A Varanda a investigação de um assassinato,

ocorrido num asilo, como tema, sendo que a estória se realiza por meio de

depoimentos tomados por um narrador-autor, percebemos o indício de que o leit

motiv dessa obra é a discussão sobre como manter viva a tradição oral. Isto nos

instiga a buscar outros elementos que hipoteticamente estão presentes no discurso

do narrador.

A estória do narrador é explorada com maestria por meio de vários recursos

narrativos, trabalhados no diálogo entre o narrador e o autor Mia Couto. Tal recurso

parece colocar o leitor-ouvinte em um ambiente permeado por vidas e estórias

diversas. O leitor-ouvinte se vê como parte da discussão entre tradição e

modernidade, proposta pelas vozes dos narradores que são colocados em cena.

Cenário composto de personagens autônomas, no qual as vivências são vocalizadas

e compartilhadas com o espectador-leitor num espaço de intercâmbio. Ambiente

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permeado de gestos e vozes, inscritas na formação do escritor Mia Couto, como ele

próprio diz:

O princípio da minha escrita é essa imagem que se formou em mim,

na minha infância, do contador de estórias. O contador de estórias lá

onde eu nasci, na Beira, contava estórias em várias línguas

diferentes e mesmo quando eu assistia essas estórias contadas

numa língua que eu não entendesse, havia um encantamento

contínuo... (COUTO, apud SILVA, 2000, p. 36-37).

O autor trabalha o fenômeno vivido na experiência de ouvinte, a partir do texto

da tradição oral, via audição, e o incorpora em sua narrativa via elementos que

dêem conta dessa experiência ouvinte-participante e “contador”. A princípio,

fenômeno este somente possível na presença daquele narrador em sua infância,

mas capaz de ser revivida também no contato com o texto poético pois: “entre o

consumo, se posso empregar essa palavra, de um texto poético escrito e um texto

transmitido oralmente, a diferença só reside na intensidade da presença”

(ZUMTHOR, 2000, p. 81).

A consciência de que essas estórias fazem parte de sua formação literária,

leva o autor a tentar traduzir como se dava o contato com aquelas narrativas orais,

no momento em que vivenciava aquele fenômeno:

Aquilo era um momento mágico: é isso que é a poesia – a força da

palavra e do gesto: era tão contagiante que aquilo se transformava

numa cerimônia e eu me encantava (...). Ainda hoje, as estórias que

eu mais me lembro da infância – apesar de principalmente minha

mãe ter sido uma boa contadora de estórias – as estórias que eu

lembro, que me marcaram mais são as outras estórias que foram

contadas por esses contadores de estórias. Eu acho que aquilo ficou

como uma espécie de uma inspiração, de uma força. Eu acho que

trago tudo isso na minha escrita. (COUTO, apud SILVA, 2000, p. 36-

37).

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Estamos de acordo com Ana Mafalda Leite, a respeito da produção literária

do poeta moçambicano, José Craveirinha, (1922-2003) ao se referir à relação deste

autor com a música em seu processo formativo. Vincularemos sua consideração a

respeito do poeta à obra de Mia Couto, mas pelo viés da formação deste e de sua

experiência como ouvinte de estórias na sua infância em Moçambique:

A intencionalidade comunicativa, por via da oralidade, da poesia do

nosso autor liga-se estreitamente ao papel temático da música na

sua obra poética e explica, ainda, o seu especial afecto e vinculação

à prática oral-musical, preponderantemente na oratura

moçambicana. (LEITE, 2002 p. 24)

Nesta observação da autora, vislumbramos em Mia Couto a intencionalidade

comunicativa por via da oralidade e esse aspecto vocal relacionados à sua

participação na infância como espectador daquela “contação” de estórias. Processo

este inscrito em sua formação, como vimos em seu relato acerca da infância em

Moçambique.

Em entrevista à pesquisadora Vera Maquêa, quando questionado se sua

escrita seria uma língua em trânsito, Mia Couto fala de sua experiência como leitor

de Guimarães Rosa e de sua admiração por Adélia Prado, a qual considera uma

mestra:

(...) para mim ela é outro mestre, quando eu chamo mestre é porque

são textos que roubam daquilo que seria o verbo ‘ler’. O que se sente

é o seguinte: eu não os posso ler, compreendes? é uma confissão

que raramente faço, mas eu adoro é livros que eu não consigo ler

desse ponto de vista de que aquilo que estou a fazer não é ‘ler’, é

uma outra coisa, tem de se inventar um verbo pra isso. Porque

acontece quando estou a ler o Guimarães Rosa ou a Adélia Prado,

certos textos me atiram para fora da página, eu tenho que parar

porque começo escutando vozes que disputam o que está fora do

registro gráfico, está para além da página. Eu entro em transe, em

transito, nesse sentido. (COUTO, 2005, p. 214)

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Com isso, Mia Couto problematiza sua experiência de leitor-ouvinte em duas

manifestações de performance distintas, mas apenas no modo em que se

apresentam: o de ouvinte das “contações” de estória, quando pequeno, e o de

ouvinte dos textos literários na fase adulta, em face da escrita de Guimarães Rosa e

Adélia Prado, fazendo valer a afirmação de Cecília Meireles de que “o gosto de

ouvir, é como o gosto de ler” (MEIRELES, 1979 p. 42).

Chama-nos a atenção a experiência do autor com a oralidade in loco e da

leitura de um texto roseano e adeliano. Essa dualidade: oralidade-escrita, presente

no depoimento de Mia Couto, se evidenciou pelo fato de nossa leitura crítica de sua

obra se dar pelo enfoque da vocalidade no texto escrito, pois

A escritura não basta para fixar o texto e, a todo instante, a boca do

leitor se prepara para remanejá-lo ou até refazê-lo. Donde isto que,

desde muitos anos, diversos estudos pretendem ter revelado: a

influência que as formas de expressão oral teriam sobre a escritura

(ZUMTHOR, 1993, p. 218)

Para Zumthor, a oralidade não se reduz à ação da voz. Ela é a expansão do

corpo, o que implica em tudo o que, em nós, se endereça ao outro: seja um gesto

mudo, um olhar, etc.

Entendemos que não basta buscar, na análise da obra, apenas marcas da

oralidade, mas fenômenos que comportem o “engajamento do corpo”, uma vez que

a voz, segundo Zumthor, emana do corpo, o qual é constituído de gestos e

expressões dotadas de significados. Nossa hipótese é a de que o romance em

questão, através de seu narrador principal e dos narradores interlocutores, está

permeado por gestos vocais, e isto permite a presentificação no narrar.

No romance A Varanda, percebe-se a discussão entre tradição e

modernidade. O narrador é um morto que, à maneira machadiana, conta sua

estória. Como não teve o devido funeral, segundo manda a tradição, por estar

trabalhando longe de sua comunidade, fica em estado de xipoco, alma penada, sem

rumo. Foi enterrado junto a uma frangipaneira4 no forte onde prestava serviço como

4 “O género Plumeria, tal como os outros membros da família Apocynaceae, tem flores cerosas exibindo pétalas levemente sobrepostas e torcidas como as pás de uma hélice concede-lhe a

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carpinteiro. Certo dia, é acordado com golpes em sua cova, o governo queria fazer

dele uma estátua, é quando o narrador recorre ao pangolin e, então, é aconselhado

por este halacavuma5 a retornar à vida, por seis dias, na pessoa de um investigador.

Em quase todo o romance o narrador-autor acompanha a investigação no corpo do

policial, Izidine Naíta.

Coloca-se em primeira pessoa na cena narrativa e diz: “Sou morto. Se eu

tivesse cruz ou mármore nele estaria escrito: Ermelino Mucanga. Mas eu faleci com

meu nome faz duas décadas” (COUTO, 2003, p. 11). Vislumbra-se, assim, um

discurso que traz a presença do narrador tal qual um contador de estória diante do

espectador.

Ao longo da narrativa, nós, leitores-ouvintes, somos convidados a fazer parte

de um jogo no qual é possível compreender as instâncias discursivas em que se

situa esse narrador: evidencia-se, então, um discurso que se constrói por meio da

performance: corpo-a-corpo/leitor-ouvinte e narrador-contador na espacialidade

polifônica existente entre texto e voz.

Embora Brasil e Moçambique tenham em comum a língua portuguesa, o

contexto dessa literatura difere do contexto no qual estão situados os escritores

brasileiros. Moçambique vivenciou um processo de colonização e libertação

diferente do nosso; isso tudo permeia a literatura de Mia Couto. Em A Varanda, a

discussão entre tradição e modernidade é o fio pelo qual é tecida a estória, pois os

personagens-narradores trazem essa marca em seus discursos. Embora não seja

objeto de nossa análise, esse aspecto será colocado em discussão, não só pela

relação desse procedimento com a história sócio-política, mas pelo modo como a

literatura dá conta dessas discussões pela palavra do narrador. Pois, inserida em um

contexto em que a tradição oral e a memória intervêm no modo como se apresenta

esta literatura, tem-se aí a matriz a que o autor recorre. Entretanto, não

analisaremos a sociedade moçambicana e as manifestações diversas da tradição

através do olhar do narrador, já que, mesmo que Mia Couto busque esses

designação frangipani, do antropónimo Muzio Frangipani, nobre italiano do século XVI que lançou a moda de se usar em luvas e outras vestimentas de pele o perfume desta planta. São estas as flores que compõem os famosos colares havaianos, os leis.” Disponível em: http://dias-com-arvores.blogspot.com/2005/10/frangipani.html> Acessado em 10 jan. 2009. 5 Pangolim: mamífero coberto de escamas que se alimenta de formigas. Em todo o Moçambique se acredita que o pangolim habita os céus, descendo a terra para transmitir aos chefes tradicionais as novidades sobre o futuro. (COUTO, 1996, p. 153). Assemelha-se ao tatu-bola.

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elementos para trabalhar a palavra poética em sua literatura, “o texto literário deve

ser olhado já não como reprodutor de elementos culturais, mas antes como um

campo prismático de interacção entre discursos culturais e literários” (LEITE, 2003,

p. 46)

Desta forma, o foco de nossa pesquisa é a análise da estruturação da

narrativa “contada” pelos narradores e como os fenômenos vocais manifestam-se

em performance.

No primeiro capítulo, intitulado “Entre a letra e a voz”, discute-se o conceito de

performance à luz das teorias da poética oral, de Paul Zumthor. Essa discussão é

importante para se comprovar, na análise do romance, as hipóteses que norteiam

este trabalho. Em outro momento, a partir da reflexão de Pareyson, apresentam-se a

ampliação do termo estética e o modo como o leitor contemporâneo se comporta em

face do texto literário. Apresenta-se, também, a biografia de Mia Couto e a

importância de sua literatura para a Língua Portuguesa.

Na segunda parte, “A memória coletiva e a espacialidade discursiva”,

expõem-se alguns estudos sobre o fenômeno da oralidade e da escrita. Os estudos

de Walter J. Ong, permite, sob o ponto de vista cultura, contrastar duas lógicas

diferentes: da comunidade que tem, e a da que não tem acesso à escrita. Faz-se, no

segundo momento, uma reflexão a fim de aclarar a tensão existente na experiência

de leitura-audição do leitor, em face de um texto que se quer vocalizado. No final

deste capítulo, discute-se como se dá o espaço situado pelo leitor/ouvinte de A

Varanda, e o modo como essa espacialidade discursiva indica a performance,

prevendo sons, imagens, hibridização entre prosa e poesia, etc.

Na terceira e última parte, “Da voz que canta à palavra que narra”, apresenta-

se o resumo de A Varanda. Destacam-se, também, três pesquisas que compõem a

fortuna crítica de Mia Couto a fim mostrar o que se discute sobre Mia Couto e pontos

de contato com esta investigação. Por fim, buscar-se, na obra, indícios que

evidenciam a vocalidade e a performance em A Varanda. Ao final deste trabalho

faremos as considerações finais sobre os resultados obtidos nesta investigação

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CAPÍTULO l

Entre a letra e a voz: da palavra à experiência estética

“A voz jaz no silêncio; às vezes ela sai dele, e é como um nascimento. Ela emerge de

seu silêncio matricial. Ora, neste silêncio ela amarra os laços com uma porção de

realidades que escapam à nossa atenção despertada; ela assume os valores

profundos que vão em seguida, em todas as atividades, dar cor àquilo que, por seu

intermédio, é dito ou cantado.” (ZUMTHOR, 2005, p. 63)

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1.1. A palavra vocalizada: ler ou ouvir?

Para o desenvolvimento deste trabalho, faz-se necessário a definição do

conceito de performance, proposto por Paul Zumthor.

Antes de discorrer pormenorizadamente sobre o conceito de performance,

é importante discutir qual o percurso utilizado pelo pensador para a utilização deste

termo. Para empregá-lo, o autor parte da etnologia. Ele observa que o termo

performance, de modo geral, refere-se a um acontecimento oral e gestual. Mas

escolhe o termo a partir da etnologia e se propõe a extrair a substância do uso

desse termo naquela área de estudo, o que lhe permite reempregá-lo em sua

pesquisa. Zumthor observa ainda que, independentemente da origem da

terminologia, o elemento irredutível que reside na performance é a presença de um

corpo.

Entretanto, para definir esse conceito sob sua perspectiva, observa que o

corpo existente enquanto relação, a cada momento recriado, do eu ao seu ser físico,

é da ordem pessoal. Nesse sentido, a noção geral de performance, cristalizada em

torno da presença de um corpo que necessita do comprometimento empírico, perde

a pertinência de ser; desde que não se considere somente a integridade de um ser

particular numa dada situação. Para exemplificar, o autor relata que, na

adolescência, a canção que ouvia do cantor ambulante implicava, pelo ritmo, as

pulsações do seu corpo, dele e também de quem a ouvia; e isso fazia com que a

canção o submetesse ao seu próprio ritmo, em outras palavras, a canção o

embalava. Experiência que o colocava diante duma energia que nem ele nem o

cantor estavam conscientes: a energia propriamente poética e “...sem o saber,

reproduzíamos todos juntos, em perfeita união laica um mistério primitivo e sacral”

(2000, p. 46)

Para tirar o termo da generalidade e forjá-lo à sua maneira, Paul Zumthor

afirma que a performance não se liga ao corpo, mas por ele, ao espaço. Assim,

remete-se ao artigo de Josette Féral, de 1988, do qual ele se apropria de alguns

conceitos para ressaltar que o corpo do ator não é o elemento único, nem mesmo o

critério para “teatralidade” ; o que mais conta é o reconhecimento de um espaço de

ficção. Assim, a performance não pode ser entendida de maneira genérica, “só pode

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ser apreendida por meio de suas manifestações específicas, ela partilha nisso com a

poesia (...) um traço definidor fundamental” (2000, p. 52)

Para Zumthor, a recepção, que é um termo de compreensão histórica,

designa um processo. O que implica a consideração de uma duração e exige a

existência real de um texto no seio de uma comunidade de leitores e ouvintes e os

efeitos que aquele tem sobre a comunidade. Já a performance é um termo

antropológico, não histórico. É aquilo que os alemães, a propósito da recepção,

chamam de “concretização”, pois

A performance designa um ato de comunicação como tal; refere-se a

um momento tomado como presente. A palavra significa a presença

concreta de participantes implicados nesse ato de maneira imediata.

[...] A performance é então um momento da recepção: momento

privilegiado, em que um enunciado é realmente percebido. (2000, p.

59)

Nessa perspectiva, a performance torna-se uma espécie de catarse vivida

pelo leitor no ato da leitura. Uma entrega das percepções sensórias pelo leitor-

ouvinte na leitura-audição do texto literário. “Comunicar [...] não consiste somente

em fazer passar uma informação; é tentar mudar aquele a quem se dirige; receber

uma comunicação é necessariamente sofrer uma transformação” (2000, p. 61)

No início de A Letra e a Voz, o pensador genebrino pontua em que campo

tecerá seu estudo sobre a voz. Embora tenha como objeto de estudo a literatura

medieval, apresenta questões inovadoras e fundamentais para se compreender a

narrativa contemporânea. No início da referida obra, ele menciona seu trabalho

intitulado, Essai de poétique mediévále (1985) e afirma que, se antes seu trabalho

assinalava o aspecto “teatral” de toda poesia medieval, baseado no texto, agora, em

A Letra e a Voz, visa definir essa teatralidade de maneira mais abrangente, pois seu

ponto de vista é o da obra inteira, esta...

(...) concretizada pelas circunstâncias de sua transmissão pela

presença simultânea, num espaço e lugar dados, dos participantes

dessa ação. A obra contém e realiza o texto; ela não suprime nada

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porque, desde que tenha poesia, tem, de uma maneira qualquer,

textualidade (ZUNTHOR, 1993, p. 11)

Nesta afirmação, o estudioso indicia sua tese de que a performance só é

possível dado o contexto em que esta se realiza, experiência irrealizável sem a

presença do leitor, pois “o ouvinte-espectador, é de algum modo co-autor da obra.”

(1993, p. 222). A obra se realiza nessa dialética: contexto da enunciação e

espectador-leitor.

É importante esclarecer que Zumthor distingue texto e obra. Para ele, o

texto escrito, assinado e datado por um autor, exige uma leitura solitária e

interiorizada, ele é “uma seqüência lingüística que tende ao fechamento, e tal que o

sentido global não é redutível à soma dos efeitos de sentidos particulares produzidos

por seus sucessivos componentes”. Já a obra é uma ação vocal: “o que é

poeticamente comunicado aqui e agora – texto, sonoridade, ritmo, elementos

visuais; o termo compreende a totalidade dos fatores da performance” (1993, p.

220). Se o texto é legível, a obra é, ao mesmo tempo, audível e visível. No texto, a

voz em performance realiza a obra. Sonoridade, ritmo, elementos visuais emanam

do texto em performance, o que possibilita a realização da obra. É na ação vocal,

na experiência da leitura-audição, que a obra se realiza. Leitura esta que coloca o

corpo-leitor e o corpo-texto em interação. È na proximidade entre o narrador,

intérprete e autor que se dá a performance, pois ao ler o texto, a obra se realiza.

Nesse sentido, mediada pela escrita, mesmo na leitura silenciosa, a fala é

colocada em ação e se torna virtualmente presente no momento da recepção. Com

efeito, o termo oralidade não responde aos diversos elementos que constitui a

transmissão da palavra poética, por isso, Zumthor prefere o termo vocalidade, uma

vez que:

Oralidade é um termo histórico, designa um fato que diz respeito às

modalidades de transmissão: significa simplesmente que uma

mensagem é transmitida por intermédio da voz e do ouvido, aí não

há problema. Vocalidade, por sua vez, parece-me uma noção

antropológica, não histórica, relativas aos valores que estão ligados à

voz como voz, e, portanto, encontram-se integrados ao texto que ela

transmite. (ZUMTHOR, 2005, p. 117)

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Desta forma, a voz se apresenta na experiência da leitura-audição em

performance. Portanto, nessa perspectiva, mesmo na leitura solitária, a palavra

emana vocalmente do texto.

O pensador nos traz ainda em sua reflexão o leitor face ao texto poético e

a dificuldade que ele teria em compreender a historicidade da voz e do tempo

“coagulado no espaço da página ou do livro”. O texto literário seria uma voz que está

dentro do suporte escrito, mediada, torna-se representação. Nessa perspectiva, é

por meio da co-participação; no reconhecimento dos elementos vocais presentes no

texto que se apreende a obra, o que é possível mediante...

cruzamento de feixes e informações, por deslocamento de

perspectiva e de visada, a partir de um ponto de vista intuitivamente

escolhido, esforçamos-nos para sugerir um novo acontecimento: o

acontecimento-texto; representar o texto em ato, integrar essa

representação no prazer da leitura. Nossos textos só nos oferecem a

forma vazia, e sem dúvida profundamente alterada, do que, em outro

contexto sensório-motor, foi palavra viva” (ZUMTHOR, 1993, p. 221)

Para participar de A Varanda como ouvinte, o leitor precisa de uma nova

postura. Não se pode mais pressupor um texto silencioso, fixo, percorrido somente

pelos olhos, pois o discurso do narrador é sempre performático. O acontecimento-

texto se dá no momento da recepção da palavra poética. O locutor-narrador,

mediante a expressão e presença corporal assume a voz. O destinatário também se

inclui como presença corporal dentro da performance. Desse modo, o leitor não

interpreta o texto, mas o recria. No dizer de Umberto Eco (1994, p. 118), “ler é como

uma aposta. Apostamos que seremos fiéis às sugestões de uma voz que não diz

explicitamente o que está sugerindo”. Portanto, o texto guarda em si as

virtualidades da voz, porém, só no momento da “atualização” a obra é corporificada.

O que requer um leitor ativo, que participa desse acontecimento performático e

apreende virtualmente a voz mediada pela escrita, pois,

Nossa percepção do real é freqüentada pelo conhecimento virtual,

resultante da acumulação memorial do corpo, eu o repito. Desse

modo, o virtual aflora em todo discurso. No discurso recebido como

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poético, invade tudo. Está aí, ao nível do leitor, uma das marcas do

“poético”. (ZUMTHOR, 2000, p. 96)

Sobre o romance moderno, Anatol Rosenfeld faz uma consideração

importante para compreendermos a postura do leitor-ouvinte diante do texto literário:

A irrupção, no momento atual, do passado remoto e das imagens

obsessivas do futuro não pode ser afirmada como num tratado de

psicologia. Ela tem de processar-se no próprio contexto narrativo em

cuja estrutura os níveis temporais passam a confundir-se sem

demarcação nítida entre passado, presente e futuro. Desta forma, o

leitor - que não teme esse esforço - tem de participar da própria

experiência da personagem. (ROSENFELD, 1996, p. 83)

Essa assertiva se aplica à leitura do romance A Varanda. É somente através

da aceitação do que ele nos oferece que podemos nos debruçar sobre seus

aspectos implícitos como, posição, perspectiva do narrador diante do interlocutor-

personagem frente ao ouvinte, aqui entendido como receptor desse texto poético. É

por meio do contexto narrativo que compreendemos os índices vocais, estes

assinalados na exposição do narrador da estória. Enredo que vai se construindo

mediante a co-participação do leitor-ouvinte, a partir das instâncias enunciativas.

Estas são construídas pela estratégia do narrador com que o leitor-ouvinte se

depara no tempo e espaço ficcional, nos quais é estabelecida uma relação

interlocutiva, “contador” – “ouvinte”.

Assim, a presença do narrador, vista nesse novo quadro, pode ser

compartilhada com a do leitor, a fim de que se apreenda o que está implícito no

discurso. Dessa maneira, o leitor pode reconhecer nesta experiência a presença de

gestos, sonoridade, silêncio, ritmos emanados do contexto de onde o narrador

“conta” a estória, pois “a voz, utilizando a linguagem para dizer alguma coisa, se diz

a si própria, se coloca como presença” (ZUMTHOR, 2000, p. 13)

O medievalista ainda discute em seu livro, Performance Recepção e Leitura

(2000) sua hipótese de partida, que diferencia a performance oral pura e a

performance na leitura. A primeira, refere-se àquela que relatamos na introdução,

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sobre a audição das estórias na infância de Mia Couto, a segunda, sobre a

experiência do autor como leitor de Adélia Prado e de Guimarães Rosa.

Zumthor entende que, enquanto a performance na experiência in loco é realidade

provada, pois o sujeito está diante do fenômeno, na experiência da leitura ela

acontece na ordem do desejo. Essas duas experiências se apresentam

superficialmente diferentes nesses contextos, mas com um pequeno número de

traços idênticos e em ambas constata-se uma forte implicação do corpo,

Nesse sentido, o texto em performance, ou seja, o texto poético no ato da

leitura-audição, exige a presença de um corpo psicofísico que vai vivenciar a escuta

do que ele tem a “dizer”. Isto requer um corpo ativo “(...) de um sujeito em sua

plenitude psicofisiológica particular, sua maneira própria de existir no espaço e no

tempo e que ouve, vê, respira, abre-se aos perfumes, ao tato das coisas”

(ZUMTHOR, 2000, p. 41). Após considerar esses itens, presentes no momento da

performance, Zumthor observa mais a frente que é este engajamento do corpo que

possibilita a instauração do poético:

Que um texto seja reconhecido por poético (literário) ou não depende

do sentimento que nosso corpo tem. Necessidades para produzir

seus efeitos; isto é, para nos dar prazer. É este a meu ver um critério

absoluto. Quando não há prazer - ou ele cessa - o texto muda de

natureza. (ZUNTHOR, 2000, p. 41)

Desse modo, o prazer da leitura está nessa relação do ser leitor com o objeto

lido. È aí que a linguagem evidencia a voz poética que reside no texto gráfico. A

mediação o corpo do leitor dotado dos sentidos psíquicos e físicos o leva a viver a

poesia. Na experiência corpórea entre o leitor-performer e o corpo texto instaura-se

a poético.

A palavra emana do texto e passa pela percepção visual e auditiva do leitor,

pois no contato deste com o texto literário, ela é vocalizada. Nessa perspectiva, a

palavra carrega a tonalidade, o cheiro, a cor, o peso, o silêncio, o gesto, elementos

que Zumthor entende como reconhecível pela tatilidade contida na palavra poética.

Consoante com a reflexão de Zumthor, o filósofo italiano, Pareyson, faz

uma brilhante observação sobre o que é a poesia, quando executada na leitura:

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E não consegue apreciar a poesia quem, ao lê-la, não a sonorizar

interiormente, isto é, não a proferir dentro de si como acredita que ela

queira ser pronunciada, por que as palavras não são

verdadeiramente tais se estão desacompanhadas da sua condição

corpórea, se não restituídas àquela voz que originalmente as

proferiu, se não interpretadas com a ênfase, a entonação, a mímica

que elas reclamam e em que desejam ser encarnadas. (PAREYSON,

2001, p. 215)

O texto carece do leitor que, ao sentar-se para ler o texto escrito, torna-se

ouvinte da poesia disposta no papel. O mesmo pensador observa que “se uma

poesia exige ser recitada, é porque o autor a concebeu como realidade sonora, de

modo que o seu sentido espiritual se concretizasse com todos os componentes

físicos da voz e do gesto” (PAREYSON, 2001, p. 216).

A espiritualidade da poesia é perceptível por meio dos movimentos do

corpo, ela se encontra lá no texto, mas só pode ser apreendida por meio de

movimentos que passam pela via corporal. O modo como nós nos portamos frente a

um texto poético possibilita o resgate dessa espiritualidade de que nos fala

Pareyson. Podemos afirmar que a materialização da espiritualidade contida no texto,

é o que Zumthor entende por performance, já que “o texto vibra, o leitor o estabiliza,

integrando-o àquilo que é ele próprio. Então, é ele que vibra, de corpo e alma”

(2000, p. 63)

Enquanto a etnologia se refere aos conteúdos e formas de transmissão

da performance, Zumthor retoma este conceito, mas em relação aos hábitos

receptivos, que comportam uma série de elementos para a percepção da presença

do corpo virtual inscrito no texto literário.

Assim, quando eu digo: ler possui uma reiterabilidade própria, remeto

a um hábito de leitura, entendo não apenas a repetição de uma ação

visual mas o conjunto de disposições fisiológicas, psíquicas e

exigências de ambiente (como uma boa cadeira, o silêncio...)...A

posição de seu corpo no ato da leitura é determinada, em grande

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medida, pela pesquisa de uma capacidade máxima de percepção.

(ZUMTHOR, 2000, p. 37-38)

O leitor procura a maneira mais adequada para receber o que lhe será

transmitido pelo texto. Segundo ele, independentemente da posição do leitor, os

ritmos sanguíneos são afetados e, nessa perspectiva, ilustra como seria possível

aquela percepção sensorial do leitor na experiência da leitura “É verdade que mal

conceberíamos que, lendo em seu quarto, você se ponha a dançar e, no entanto, a

dança é o resultado normal da audição poética! A diferença porém aqui é apenas de

grau.” (2000, p. 38). A voz emerge do texto e transforma o corpo físico, psíquico e

social do leitor, pois:

È ele que eu sinto reagir, ao contato saboroso dos textos que amo;

ele que vibra em mim, uma presença que chega à opressão. O corpo

é o peso sentido na experiência que faço dos textos. Meu corpo é a

materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que

determina minha relação com o mundo [...] Conjunto de tecidos e

órgãos, suporte da vida psíquica, sofrendo também, as pressões do

social, do institucional, do jurídico, os quais, sem dúvida pervertem

nele o impulso primeiro (ZUMTHOR, 2000, p. 28)

Desse modo, temos o leitor, que na experiência da leitura, segundo a

perspectiva Zumthoriana, ouve o que lhe é transmitido naquele momento. A entrega

do corpo leitor, no ato da leitura, permite que exista uma simbiose entre o leitor-

ouvinte e o texto transmitido por meio do intérprete-narrador. Assim, a troca

estabelecida entre o ouvinte e o intérprete do texto literário possibilita que, mesmo

que não haja a experiência empírica, a performance seja possível nesse diálogo.

Desse modo, temos a condição para discutirmos o romance coutiano sob essa

perspectiva.

Abordamos, até aqui, a relação existente entre o fenômeno da

performance baseado no texto literário e como se constitui essa relação, leitor-

ouvinte/texto-“performer”. Devemos, então, observar essas relações do ponto de

vista da recepção do romance contemporâneo, a mudança na concepção de estética

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e o que ela implica para se compreender o gesto vocal indiciado na obra de Mia

Couto.

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1.2. A aproximação estética entre leitor e narrador

Pareyson, em seu livro Os Problemas da Estética (1997), faz uma reflexão

sobre a concepção de arte, descreve-a na sua natureza e discute o modo como o

termo estética assume determinadas características e extensões, desde a

antigüidade clássica, e se propõe a esboçar uma delimitação mais precisa sobre o

termo. Ele inicia seu ensaio mostrando que na antigüidade clássica não havia a

distinção entre a poética e a teoria da arte. No século XVIII, por influência do

romantismo, se atribuía à teoria do belo uma doutrina da sensibilidade e à filosofia

da arte uma teoria do sentimento.

Assim, o autor discute a preocupação dos filósofos alemães, no início do

século XX, em diferenciar da estética uma “teoria geral da arte” na qual se pretendia

estudar a arte nos seus aspectos técnicos, sociais, psicológicos, etc. Ele afirma que

essa tentativa por parte dos alemães leva em consideração que a “arte moderna não

se preocupa com o ‘belo’, no sentido clássico e tradicional do termo, mas, com

freqüência, persegue deliberadamente o ‘feio’” (1989, p. 15). Ou seja, a beleza se

reduz ao acontecimento artístico, independentemente da idéia convencional de

beleza, isto é, o belo é o resultado da arte, e não objeto da arte. Pareyson entende

que essas extensões não dão conta do que ele entende por estética, já que elas

podem levar a interpretações de que estética é toda teoria que se refira à beleza ou

à arte.

Se considerarmos a concepção do belo na antigüidade em contraste com a

que temos na modernidade, o crítico literário, Luiz Costa Lima, parece estar de

acordo com o Pareyson, pois “(...) a obra, principalmente a da modernidade, só pode

ser acolhida se o leitor acatar a “agressão” que dela recebe. A experiência estética

não é reconhecedora, reafirmadora, mas questionamento do antes aceito.” (LlMA,

1981, p. 204). Ou seja, antes, se considerava a beleza como objeto do

conhecimento estético confuso e sentível. Hoje, não é a beleza na obra de arte que

autoriza o conceito de estética, mas o aceite dessa “agressão” por parte do receptor

do trabalho artístico, uma vez que, beleza, no sentido tradicional do termo, não é

mais entendida como sinônimo de resultado estético. Nessa perspectiva, o que

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podemos dizer de uma referência estética da modernidade que é apenas um urinol,

objeto alterado ao estatuto de arte por Duchamp?

Partindo dessa dicotomia: obra de arte clássica x moderna, o autor propõe

uma definição mais precisa do que é estética e busca uma delimitação. Para tanto,

ele retoma concepções históricas que situam a estética como reflexão filosófica ou

reflexão empírica. Nesse sentido, aponta uma série de crenças recorrentes sobre o

que seria estética. De um lado, há quem diga que estética é filosofia quando procura

definir o que é ou deve ser arte, quando se baseia em princípios filosóficos para

justificar as conseqüências no estético, ou ainda, ao considerar o pressuposto de

que filosofia é especulação, não leva em conta a experiência direta do crítico ou do

artista. Há ainda quem defenda que estética não é filosofia, ou porque é

intermediária entre a filosofia e a história da arte, ou porque não se encarrega de dar

uma definição geral da arte.

Após apontar essas perspectivas, acerca do termo estética, Pareyson

propõe uma reflexão menos arbitrária, colada à realidade dos fatos e ao teste

concreto da experiência. É nesse ponto que o pensador italiano começa a esboçar

sua tese. Ele entende que o filósofo que se propõe a discursar sobre um campo

artístico negligenciando a experiência estética, deixa de atuar no campo filosófico e

passa a “falar por falar”. A reflexão filosófica é especulativa, não normativa, ou seja,

ela não dita regras:

A estética, portanto, não pode pretender estabelecer o que deve ser

a arte ou o belo, mas, pelo contrário, tem a incumbência de dar conta

do significado, da estrutura, da possibilidade e do alcance metafísico

dos fenômenos que se apresentam na experiência estética. (1989, p.

17)

Ao fazer essa afirmação, o filósofo dá o mote de sua tese; a de que

estética não parte da filosofia, mas é a filosofia inteira, já que ela está empenhada

em refletir sobre os problemas da beleza e da arte, não ditar o que deve ser o belo.

Para ele, não há nada intermediário entre a filosofia e a experiência e propõe que:

A estética é filosofia justamente porque é reflexão especulativa sobre

a experiência estética, na qual entra toda experiência que tenha a ver

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com o belo e com a arte: a experiência do artista, do leitor, do crítico,

do historiador, do técnico da arte e daquele que desfruta de qualquer

beleza. (1989, p. 17)

Com efeito, o autor ressalta a relevância do trabalho do artista, do crítico,

do historiador, já que estes contribuem a partir da consciência que têm da

experiência estética e dão subsídio ao filósofo da arte para refletir sobre essas

experiências no âmbito estético. Assim, ele entende que o filósofo prolonga o

discurso do artista ou do crítico no plano especulativo: “Em todo caso, o estético

deve tirar o partido da experiência de arte, quer ele se inspire numa própria e

eventual experiência direta, quer ele se atenha ao testemunho alheio, devidamente

aprofundado e interpretado” (1989, p.20).

Assim, o autor vê a estética como um frutífero ponto de encontro no qual

os que tratam da arte tenham voz, desde que se considere “o ponto em que a

experiência e filosofia se tocam, a experiência para estimular e verificar, a filosofia e

a filosofia para explicar e fundamentar a experiência”. (1989, p.21).

Pareyson ainda ressalta que a realização estética acontece apenas

mediante a experiência do receptor da obra de arte, ou por meio do testemunho

alheio, desde que se interprete esse fenômeno. Ou seja, o modo como o leitor

apreende a obra é que a eleva ao estatuto de estético, de objeto passível de fruição.

A partir dessa perspectiva, ampliaremos essa discussão tendo como foco o leitor do

romance contemporâneo.

O alemão Theodor Adorno (1903-1969) nos traz em seu clássico ensaio,

intitulado: Posições do narrador no romance contemporâneo, sua reflexão sobre a

transformação do romance, de Dom Quixote a outros clássicos da literatura

universal. Adorno assinala que o romance perdeu muitas das suas funções

tradicionais depois do surgimento do cinema. Desse modo, “O romance precisaria se

concentrar naquilo que não é possível dar conta por meio do relato” (ADORNO,

2003, p. 56). Isso resulta no aparecimento de um narrador despersonalizado, que

não dava conta mais de narrar suas experiências num contexto permeado pela

mesmice. Ele observa que, do mesmo modo como a fotografia tirou muito da pintura

de suas tarefas tradicionais, a mídia e o cinema subtraíram muito do romance. Isso

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fez com que o romance se apresentasse de outra maneira para trazer aquilo que o

relato apenas não dava conta.

Ele exemplifica que, em Proust, o comentário está de tal forma

entrelaçado na ação que a distinção entre ambos desaparece, o narrador está

atacando um componente fundamental de sua relação com o leitor: a distância

estética.

Diferentemente da apresentação estética existente no romance

tradicional, em que a distância entre narrador e leitor era fixa, na contemporaneidade

o texto pede uma nova postura do leitor. Isto leva esse leitor ao choque, ou a

“agressão” mencionada anteriormente por Luis Costa Lima. A quebra do

distanciamento entre o leitor e o narrador tira dele a tranqüilidade em face da coisa

lida, chocando-o, como ocorre com a forma adotada por Kafka, quando este encurta

completamente a distância entre o narrador e o leitor.

Na contemporaneidade, o leitor, em face desse novo narrador, tem de ser

um sujeito ativo, que reconheça nas entrelinhas, na ironia, a construção do texto. A

apreensão do que é dito pelo narrador só é possível por meio do entrecruzar do

enunciado e da enunciação para então se reconhecer a veracidade dos fatos. O

leitor, tem de participar da construção dos sentidos ao se deparar com os artifícios

do narrador moderno. Este agora mais próximo e, ao mesmo tempo, exigente de

uma presença de um corpo leitor mais engajado.

Desse modo, nos apropriamos dessas discussões para vinculá-la à

proposta de análise de A Varanda. Ao definir estética e apresentar-nos a leitura do

termo na antigüidade até a modernidade, vislumbramos a ampliação do que se

entende por estética. Se antes o belo era o que se denominava de estético, na

modernidade podemos nos deparar com o trabalho de Duchanp e participar dele

numa experiência estética, agora não mais ligada à idéia de beleza, mas a

expressividade da forma. Adorno ratifica essa visão do ponto de vista da recepção

da obra. A literatura contemporânea tende a chocar o leitor. Em A Varanda,

vislumbra-se esse corpo-a-corpo com o leitor-ouvinte na experiência estética; esta

vivenciada em contato com a palavra do narrador.

Percebe-se em A Varanda uma proposta de trabalho artístico que

corrobora com as reflexões de Pareyson e de Adorno, pois a palavra do narrador

traz uma série de imagens carregadas de poeticidade e de momentos de suspense,

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temos um narrador que “agride” o leitor, pois ele não está morto, como fantasma, se

incorpora em um policial, sente o que ele sente, sai e entra de cena ao longo da

narrativa. Nesse sentido, muda-se a concepção de estética e muda também a

postura do leitor, pois este tem de inferir o não dito, visualizar os gestos do narrador

e o modo como esse conduz a narrativa. Apresenta-se nessa nova literatura uma

intertextualidade com as artes cinematográficas e visuais, pois o narrador em

performance mais parece pegar o leitor-ouvinte pela mão para conduzi-lo pelo

espaço ficcional.

Nesse processo, está o escritor, que, no processo criativo não se furta de

pensar esses artifícios narrativos e prever um leitor que fará sua recriação a partir

daquele trabalho estético trabalhado literariamente. Para isso, o escritor recorre à

inventividade, a transgressão de certas normas; é isso que observaremos a seguir

sobre Mia Couto.

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1.3. Mia Couto e as escrevências inventosas

Mia Couto é um autor de quem não se pode dizer que se é poeta ou prosador.

Muitos críticos afirmam que ele é, por excelência, contista. Entretanto, isso não

significa que tenha abandonado a poesia. Por diversas vezes ele próprio ressalta

que não acredita no limite entre prosa e poesia. Podemos dizer que ele é um

prosador que escreve por meio da poesia.

Filho do português, jornalista e poeta Fernando Couto, Mia Couto nasceu em

Moçambique, na cidade da Beira em 1955. Publicou os primeiros poemas no Notícia

da Beira aos 14 anos. Embora muitos críticos afirmem que Couto recebera

diretamente a influência do pai para se tornar escritor, ele afirma que sua mãe,

através das histórias que ela contava, foi quem realmente o conduz a escrever.

Minha mãe teve mais influência sobre nós - eu e meus irmãos -, do

que propriamente meu pai. As pessoas fazem uma ligação com o pai

que é da área das Letras, acham que isso deve ter sido

determinante. Eu acho que não. Olhando para trás, eu acho que não:

minha mãe contava história cujo fascínio nos prendia todo o ser. Ela

nos dava a possibilidade de encantamento por via da palavra, era

nosso momento à beira da fogueira à noite. Ela resgatava a relação

divina com a palavra por via das histórias. (COUTO, 2005, p. 206)

Embora tenha iniciado o curso de medicina em 1972, abandoná-lo-ia para

dedicar-se ao jornalismo. Em 1985 regressou à Universidade Eduardo Mondlane

para se formar em Biologia. Hoje, paralelamente à atividade de biólogo dedica-se à

literatura. Em entrevista ao Jornalista Jonas Furtado, da revista Isto É, questionado

sobre como divide seu tempo entre as duas atividades, responde o autor “(...) sou

sempre escritor, mesmo quando trabalho como biólogo. Para mim, a Biologia é uma

porta, uma janela que me permite falar com as pessoas, ir para o campo e receber

histórias. Nunca sou simplesmente só uma coisa.”6

6 Disponível em: <http://www.terra.com.br/istoe/edicoes/1978/artigo62007-2.htm>. Acesso em 12 nov. 2008

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Mia Couto transita entre vários gêneros literários. Romancista, contista,

cronista, poeta; tem também publicações para o público infantil. Tendo estreado na

literatura em 1983 com o livro de poemas Raiz de orvalho, em 1986, publica o livro

de conto Vozes Anoitecidas; o livro de crônicas Cronicando, em 1988, e seu primeiro

romance em 1992, Terra Sonâmbula. Além desses, o autor possui, pelo menos, 13

títulos publicados.

Com sua criatividade no trato da palavra poética, provocou polêmica em

Moçambique “pelo facto de não se aceitar nalguns meios, que se pudesse criar uma

linguagem simuladora da oralidade, eloqüência e ingenuidade populares, mas

requintadamente construída, como língua literária própria” (LARANJEIRA, 1995, p.

313). A crítica se dava na justificativa de que ninguém fala ou raciocina como as

personagens de Vozes Anoitecidas; portanto, a criatividade e liberdade na escrita

literária nesses contos comprometiam uma ampla adesão de leitores. A esse

respeito, Mia Couto escreve uma belíssima crônica, intitulada Escrevências

desinventosas.

(...) Agora acusar-me de inventeiro, isso é que não. Porque sei muito

bem o perigo da imagináutica. Às duas por triz basta uma simples

letra para alterar tudo. Um pequeno 'd' muda o esperto em desperto.

Um simples 'f' vira o útil em fútil. E outros tantíssimos infindáveis

exemplos. (COUTO, 2006, p. 163)

Na crônica, o autor ironiza o fato de criticarem sua liberdade criadora. Assim,

ironicamente, se coloca como voluntário para vigiar as transgressões na língua

portuguesa cometidas por alguns escritores:

Se forem criados tais postos eu mesmo me voluntario. Uma espécie

de milícia da língua, com braçadeira, a mandar parar falantes e

escreventes. A revistar-lhes o vocabulário, a inspeccionar-lhes o

saco da gramática.

-Vem de onde essa palavra?

E mesmo antes da resposta, eu, arrogancioso:

-Não pode passar. Deixa ficar tudo aqui no posto. (COUTO, 2006, p.

164)

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Desse modo, metalinguisticamente, o autor constrói sua poética. A qual

requer a liberdade de se imaginar sem policiamento. Para, então, fazer da língua

portuguesa um pouco do que fez Guimarães Rosa, Manoel de Barros e Luandino

Vieira. Uma poética validada pelos “mais velhos” como José Craveirinha, o qual

prefacia o livro Escrevências desinventosas e observa que Mia Couto, branco, dá

conta de compor harmonicamente o mosaico étnico de que é constituído o país na

sua literatura, sem cair no exotismo.

Enquanto militante ativo da FRELIMO dirigiu esse anseio de liberdade que

defende na literatura e o colocou em prática no seu engajamento para a libertação

do país.

Em entrevista, disse que herdou o apelido Mia pelo amor aos gatos, pois vivia

a imitá-los quando pequeno, somando a isso, seu irmão mais novo tinha dificuldade

em chamá-lo de Emílio. Esse nome já trouxe algumas situações inusitadas ao

escritor. Certa feita, ele foi a Cuba junto à comitiva de Samora Machel7 visitar Fidel

Castro. Este o presenteou com saias, colares e brincos acreditando tratar-se de

mulher.

Sócio Correspondente da Academia Brasileira de Letras desde 1998, tem

recebido diversos prêmios ao redor do mundo. Entre os mais importantes, estão o

Prêmio Vergílio Ferreira, pelo conjunto da obra em 1999; Prêmio União Latina de

Literaturas Românicas; Prêmio Zaffari e Bourbon em 2007. È o autor mais traduzido

e divulgado fora de Moçambique e seus livros estão entre os mais vendidos em

Portugal.

Colaborador do grupo de teatro Mutumbela Gogo, teve muitos de seus

contos, e o livro A Varanda do Frangipani, adaptado para o teatro. Além de Terra

Sonâmbula, que recebeu uma adaptação cinematográfica em longa-metragem.

Embora não seja um escritor comum a muitos leitores brasileiros, percebe-se

um crescente interesse por seus textos, tanto que, recentemente, vários títulos têm

sido publicados pela editora brasileira Companhia das Letras. Mia Couto tem sido

referência para uma literatura africana, não só em países de língua portuguesa. Em

7 Líder revolucionário para a libertação de Moçambique e primeiro presidente do país, após sua independência em 1975.

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julho de 2007 esteve no COLE, Congresso de Leitores do Brasil, na UNICAMP, onde

falou sobre a tarefa do escritor, e de sua maneira de “Ser em trânsito”.

Se há uma felicidade que a escrita me deu, uma é fazer amigos, é

encontrar pessoas, outra; é poder viajar entre identidades que estão

dentro de mim (...) Já fui mulher, como o cantor Chico Cesar diz: “já

fui mulher eu sei”. Já fui mulher, já fui velho, já fui criança, já fui de

todas as raças. E isso, é isso que a literatura dá, não só a quem

escreve, mas a quem lê, que é a possibilidade de poder transitar de

vidas. Podemos ser múltiplos e, não vale à pena saber ler, ou saber

escrever, se não for pra isso: se não for para deixarmos dissolver em

outras identidades.8

Podemos considerar que estamos diante de um escritor que transita entre

identidades, tal qual transita nos modos de se apresentar sua literatura. Por isso,

não se pode categorizá-lo. Seja na escrita, ou numa simples fala, sua tônica é

acentuada pela poesia.

8 Em palestra proferida no 16º- Congresso de Leitura do Brasil no dia 05/07/2007 na UNICAMP. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=3mqMZIipwd4>. Acesso em: 20 set. 2008

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CAPÍTULO II

A memória coletiva e a espacialidade do discurso

“Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria” Manoel de

Barros, em O livro sobre nada.

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2.1. Faces em convergência: oralidade e escrita

Para discutir os aspectos que permeiam a oralidade e a escrita precisaríamos

de outro trabalho e, mesmo assim, não se esgotaria as possibilidades de

abordagens que pudessem ser colocadas em diálogo com a literatura para se

compreender, de maneira mais ampla, esse instigante fenômeno. Traremos aqui

algumas discussões sobre o tema, para visualizarmos melhor uma abordagem que

contemple a reflexão sobre os modos desse fenômeno se apresentar na literatura.

Walter J. Ong, em seu livro: Oralidade e cultura escrita, apropria-se de

conceitos discutidos por teóricos, como Parry, Havelock, McLuhan, entre outros, e

faz sua leitura sobre as particularidades e as relações entre oralidade e cultura

escrita.

O estudo do americano se torna relevante para nosso trabalho por contemplar

a maneira como o pensamento e a expressão de ambas as modalidades se

diferenciam. Se num primeiro momento buscamos em Zumthor os elementos

constituintes do que ele entende como performance e vocalidade, aqui pretendemos

discutir, a partir de Walter Ong, as transformações da cultura oral para a cultura

escrita, fundamentalmente, como o próprio pesquisador propõe, a respeito da

mentalidade existente entre culturas orais e escritas.

A respeito da importância de se compreender a cultura oral e o processo de

criação literária a partir dessa matriz, Lourenço do Rosário, em 1986, na conclusão

do seu trabalho de doutoramento sobre as narrativas tradicionais moçambicanas,

afirma:

O estudo da literatura moçambicana obriga-nos a que, antes de nos

virarmos para a sua componente escrita, não nos esqueçamos que

quase 90% da sua população se rege pelo sistema oral. E mesmo os

escritores mais representativos da nova literatura escrita não

escapam ao peso do sistema oral. Em Moçambique só

entenderemos cabalmente a literatura escrita se formos capazes de

passar pela literatura de tradição oral. È essa a nossa convicção

mais profunda. (ROSÁRIO, 1989, p. 326)

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Embora saibamos que essa dinâmica social tenha sofrido alteração nas duas

últimas décadas, decorrente da massificação da imagem e informação, as línguas

pertencentes ao grupo bantu constituem-se no principal e mais amplo substrato

lingüístico e, ao contrário do que possa parecer, segundo Armando Jorge Lopes,

apenas 3% da população total nascem tendo o português como língua materna.

As observações dos pesquisadores acima são pertinentes para nossa

pesquisa, uma vez que, ao buscarmos, nos estudos de Walter Ong, os modos de se

apresentar a cultura oral e a cultura escrita, estendemos sua leitura ao universo da

cultura oral moçambicana, prioritariamente sob o olhar em que se manifesta a

oralidade em A Varanda, notadamente a partir da perspectiva zumthoriana sobre o

conceito de vocalidade.

Antes de se debruçar sobre os aspectos que diferenciam a oralidade da

escrita, Walter Ong ressalta a importância das proposições do lingüista Saussure e

do seu contemporâneo Henry Sweet, por chamarem a atenção em seus estudos

para a dimensão sonora das palavras. Assim, Ong aponta que Saussure apresentou

o modo como a linguagem está enraizada no som, e que, já anteriormente, Sweet

observara que as palavras são feitas não de som, mas de unidades sonoras

funcionais, ou fonemas.

Ong distingue oralidade primária e sociedade quirográfica. Enquanto a

primeira ocorre fundamentalmente em culturas que não possuem a escrita, a

segunda constitui-se de comunidades onde a escrita se desenvolveu e

posteriormente, adotaram a impressão. Nessas variantes, Ong considera que

ocorrem transformações na consciência de uma comunidade, que recorre a escrita

se comparada à comunidade de cultura oral.

Ao delinear os traços que distingue a oralidade da escrita, ele faz uma

afirmação que vai de encontro às proposições de Paul Zumthor, acerca da palavra

escrita e suas características vocais, pois considera que, de forma alguma a escrita

rompe o caráter oral da palavra.

Todos os textos escritos devem, de algum modo, estar direta ou

indiretamente relacionados ao mundo sonoro, habitát natural da

linguagem, para comunicar seus significados. ‘Ler’ um texto significa

convertê-lo em som, em voz alta ou na imaginação, sílaba por sílaba

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na leitura lenta ou de modo superficial na leitura rápida. (ONG, p. 16,

1998)

Nessa perspectiva, podemos vislumbrar traços da leitura que Zumthor chama

de vocalidade, uma vez que, apesar do registro escrito, no ato da leitura a voz pode

emanar do registro escrito, caracterizando-se virtualmente a audição do que é

transmitido mediante o narrar. Outro aspecto observado por Ong, ainda nessa

perspectiva, é que “A escrita nunca pode prescindir da oralidade”, e pontua que “A

expressão oral pode existir - e na maioria das vezes existiu - sem qualquer escrita;

mas nunca a escrita sem oralidade” (ONG, p.16, 1998)

O texto escrito nasce da voz, e para convertê-lo em som novamente, a partir

da escrita, é necessária a presença de um “performer”, cuja leitura/audição trará a

corporeidade vocal presente na obra.

Walter Ong observa ainda que, apesar da raiz oral de toda verbalização, as

pesquisas que privilegiaram o estudo científico e literário da linguagem, por séculos,

rejeitou a oralidade, inclusive, por considerar as criações orais como variantes da

produção escrita. Desse modo, ele aponta que o foco para essa discussão, nas

últimas décadas, tem origem na relação do próprio estudo sobre a escrita. Pois,

enquanto nas culturas orais primárias a relação com a oralidade se faz por meio da

repetição, memorização, recombinação de provérbios, baseada no coletivo, na

prática cotidiana; no estudo formal em culturas quirográficas essa experiência se dá

se dá por meio da escrita.

Para esclarecer sua proposição sobre cultura oral primária, Walter Ong

exemplifica o modo como ela funciona, a partir do que ele entende por

psicodinâmica da oralidade:

Toda sensação ocorre no tempo, mas o som ocorre possui uma

relação especial com ele, diferente das que existe em outros campos

registrados na sensação humana. O som existe apenas quando está

deixando de existir. Ele não é apenas perecível, mas é

essencialmente evanescente e percebido como evanescente.

Quando pronuncio a palavra “permanência”, no momento em que

chego a ‘-nência’, ‘perma-’ desapareceu e tem de desaparecer.

(1998, p. 42)

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O caráter evanescente da palavra é que pede, mesmo na experiência da

leitura/audição de um texto literário, uma percepção voltada para o aqui agora da

experiência estética do ouvir.

O estudioso considera que os povos orais comumente vêem a palavra como

dotada de grande poder. Para ilustrar, coloca uma situação problematizadora, a fim

de mostrar a dinamicidade da palavra: se o caçador está diante de um búfalo inerte

e o toca, o cheira, está, de certo modo, tudo bem; entretanto, se este caçador ouve o

búfalo, é melhor tomar cuidado, pois algo está acontecendo, e “nesse sentido, todo

som-especialmente a enunciação oral, que vem de dentro dos organismos vivos- é

‘dinâmico’” (ONG, 1998, p. 43)

Outro ponto observado por Ong, é que, a compreensão por parte dos povos

de cultura oral de que as palavras são dotadas de uma potencialidade mágica, está

relacionada diretamente a percepção delas como necessariamente faladas e,

quando proferidas, são dotada de poder, pois “numa cultura oral, a redução das

palavras a sons determina não os modos de expressão, mas também os processos

mentais” (ONG, 1998, p. 44.)

Para aclarar essa diferenciação entre a mentalidade de um povo que possui o

recurso da escrita e dos povos que não tem esse acesso, o pesquisador enfatiza a

importância da memória nessas comunidades. Memória esta que molda o

pensamento de um povo de oralidade primária, pois “o pensamento apoiado em uma

cultura oral está preso à comunicação”

Nessa perspectiva, Ong observa que a recorrência do uso de parábolas,

repetições, etc. permite aos povos da cultura escrita reter os saberes culturais,

caracterizando uma forma desse pensamento se apresentar:

Numa cultura oral primária, para resolver efetivamente o problema da

retenção e da recuperação do pensamento cuidadosamente

articulado, é preciso exercê-lo segundo padrões mnemônicos,

moldados para uma pronta repetição oral. O pensamento deve surgir

em padrões fortemente rítmicos, equilibrados, em repetições ou

antíteses, em aliterações e assonâncias, em expressões formulares,

em conjuntos temáticos padronizados (a assembléia, a refeição, o

duelo, o “ajudante” dos heróis e assim por diante), em provérbios que

são constantemente ouvidos por todos, de forma a vir prontamente

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ao espírito, e que são eles próprios modelados para a retenção e a

rápida recordação - ou em outra forma mnemônica. As reflexões e os

métodos de memorização estão entrelaçados. A mnemônica deve

determinar até mesmo a sintaxe (1998 , p. 45)

A afirmação do estudioso sintetiza o processo mental que se faz presente

numa cultura oral. Percebe-se que esse processo cognitivo difere da maneira como

o discurso escrito se dá na sociedade quirográfica, na qual a escrita requer uma

gramática mais fixa do que no discurso oral.

Com efeito, o processo mnemônico, como se vê na assertiva de Ong, é o

suporte para transmissão da palavra. Dessa maneira, na memória estão presentes

essas fórmulas que implementam o discurso rítmico e possibilita o apoio dos

processos mnemônicos. São fórmulas que ocorrem como expressões fixas, que

circulam pelas bocas e ouvidos de todos. Portanto, o significado se dá no uso da

estrutura lingüística própria do discurso oral, o que envolve o contexto, e independe,

de certa forma, de uma gramática que determina o enunciado. Essas fórmulas,

como provérbios, parábolas etc., são o que, com o apoio mnemônico, implementam

o discurso rítmico. Elas se instalam em provérbios como: “errar é humano, perdoar é

divino”, “expulsai a natureza e ela voltará a galope” etc. Para Ong, essas fórmulas,

embora se encontre em livros de adágios, seu uso nas culturas orais é constante e,

desse modo, elas “formam a substancia do próprio pensamento”.

Já Paul Zumthor, apresenta o texto oral como um bem coletivo, o que lhe dá

mais concretude em relação ao texto escrito:

O texto oral, devido a seu modo de conservação, é menos

apropriável que o escrito; ele constitui um bem comum no grupo

social em que é produzido. Nesse sentido, ele é mais concreto que o

escrito: os fragmentos discursivos pré-fabricados que ele veicula são,

ao mesmo tempo, mais numerosos e semanticamente mais estáveis.

(ZUMTHOR, 1997, p. 258)

David. R. Olson, ilustra bem o uso da linguagem oral em um determinado

contexto e seu imbricamento na forma e no significado:

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Na linguagem oral, a forma e o significado formam um par

indissolúvel. Quando não entendemos algo que foi dito, normalmente

perguntamos: “O que você quer dizer?”, em vez de: “O que isso

significa?”, concentramos na pessoa que realiza a comunicação, e

não na sentença. Além disso, usamos muito mais que a forma

lingüística para a ligação das intenções da pessoa com o resultado, o

que torna virtualmente impossível distinguir o que já foi dito e o que é

por ela significado, ou seja, o próprio significado (OLSON, 1995, p.

167)

Não podemos deixar de nos deter no aspecto acústico presentes nas culturas

orais. Esse aspecto, é motivo de um trabalho de doutoramento do pesquisador José

de Souza Miguel Lopes, em seu livro, Cultura acústica e letramento em

Moçambique.

Também recorrendo aos estudos de Walter Ong, ele afirma que:

A força da palavra é um fato inerente às culturas acústicas, enquanto

nas culturas letradas predomina a força do texto. Em um caso é – se

governado por leis, decretos, tratados; no outro por uma tradição

ancestral que não se inscreve nos livros, mas na memória social.

(LOPES, 2004, p. 186)

A força da oralidade de que fala Lopes, evidentemente aparece na obra de

Mia Couto.

Como a matéria coutiana é a palavra oral presente em Moçambique,

trabalhada literariamente pelo autor, nota-se em seu trabalho um grande número de

crenças oriundas da cultura moçambicana.

Mia Couto, por trabalhar junto às comunidades moçambicanas na função de

Biólogo, acaba por incorporar os valores da comunidade rural moçambicana na voz

dos seus personagens. A pesquisadora Fernanda Cavacas seleciona algumas falas

das personagens coutiana e as relaciona com as crenças, sinais, rituais e imagens,

que traduzem a religiosidade tradicional moçambicana. Religiosidade esta composta

de símbolos como: Água, Deus, Espíritos, Família, etc.

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Baseada em pesquisa de campo, ela aponta em seu livro Mia Couto:

Acrediteísmos, passagens de várias obras de Mia Couto e as compara com valores

existentes em diversas etnias moçambicanas, como, a título de ilustração, nesse

excerto de A Varanda.

O curandeiro me perguntou qualquer coisa em xi-ndau, língua que eu

desconhecia [...] Mas alguém, dentro de mim, me ocupou a voz e

respondeu nesse estranho idioma. Os ossinhos da adivinhação

disseram que me devia ser posto um xi-tsungulo. Rodeou-me o

pescoço com esse colar de panos. Eu não sabia, mas, dentro dos

panos estavam os remédios contra a tristeza. Esse feitiço me haveria

de defender contra o tempo. (COUTO, 2003, p. 32)

A autora, coloca o trecho acima na categoria “Espírito” e relaciona essa fala

de Navaia Caetano com a crença dos povos tsonga do sul de Moçambique. A partir

de sua pesquisa de campo, demonstra três leituras possíveis para o excerto acima:

1ª -o grande meio dos antepassados revelarem suas vontades é por meio da

coleção dos ossos divinatórios, que se deitam em todas as e se chamam Bula, a

Palavra. 2ª -além das drogas protetoras, o exorcismo usa o colar feito com

pedacinhos dum cipó rastejante, ligados por um pequeno cordão, com ele, deve

“acalmar os deuses” e dispersá-los quando eles quiserem fazer-lhe violências. 3ª -

os ossículos divinatórios constituem um sistema admirável de adivinhação e o papel

que desempenham na tribo é de grande importância.

De fato, a tradição se faz presente em diversos momentos de A Varanda. O

trabalho de Fernanda Cavacas evidencia uma poética coutiana que privilegia a

lógica moçambicana, apesar dele se utilizar de uma língua de origem européia. Com

efeito, esse trabalho artístico faz de Mia Couto um autor que consegue captar a

cosmovisão africana e transformá-la em momentos poéticos que se manifestam

constantemente no romance.

Esse importante elemento da tradição africana: a Palavra, não é apenas um

elemento pragmático, mas é carregada de valores. Proferir uma palavra, é trazer as

crenças, os valores ancestrais. Há uma energia vital na palavra; daí a importância da

fala, como bem explana Hampatá Bâ:

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44

A fala é, portanto, considerada como materialização, ou

exteriorização, das forças. (...) Lá onde não existe a escrita, o

homem está ligado à palavra que profere. Está comprometido por

ela. Ele é a palavra, e a palavra encerra um testamento daquilo que

ele é. A própria coesão da sociedade repousa no valor e no respeito

pela palavra. (HAMPATÁ BÂ, 1982)

Desse modo, diferentemente do pensamento europeu atual, em que a palavra

pode muito bem estar dissociada de elementos ligados a religiosidade, na tradição

africana a palavra é o próprio sujeito: é ela que possibilita manter o equilíbrio social:

a palavra inscreve-se na tradição.

Nas culturas orais, a própria lei está encerrada em adágios

formulares, provérbios, que não constituem meros adornos jurídicos,

mas são, em si mesmos, a lei. Numa cultura oral, um juiz é muitas

vezes chamado para articular um conjunto de provérbios relevantes

dos quais ele pode obter decisões justas nos processos de litígios

formais que devem julgar (ONG, 1998, p. 46)

Em A Varanda, por meio da criação, Mia Couto milita em favor dessa tradição.

Ao colocar os velhos isolados numa fortaleza colonial, antes utilizada para proteger

os portugueses, transforma-se em espaço de manutenção da tradição. A respeito de

se compreender a lógica de outro modo de ver a tradição e a importância da

valorização de tal herança em África, diz o maliano Hampatá Bâ:

Quando falamos de tradição em relação à história africana, referimo-

nos à tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar a história e o

espírito dos povos africanos terá validade a menos que se apóie

nessa herança de conhecimento de toda espécie, pacientemente

transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos

séculos. Essa herança ainda não se perdeu e reside na última

geração de grandes depositários, de quem pode se dizer são

memórias vivas da áfrica. (HAMPATÉ BA, 1982 p. 181)

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Essa mundividência difere de um povo que recorre à escrita para reger as

leis, informações, etc: da palavra intimamente ligada à divindade, bem como

relacionada às atividades humanas. Além disso, como já vimos, ela é fonte de

conhecimento, ainda mais num continente que se faz presente a célebre frase,

atribuída a Hampaté Bá, na qual diz que “Cada ancião que morre é uma biblioteca

que se perde.”

O valor da palavra e da transmissão do conhecimento de geração a geração

presente numa cultura acústica, está no gesto de contar estórias, na dança, na

oralidade rítmica, mediados pelo corpo na percepção oral-auditiva. Nessa

perspectiva, há de se distinguir o ouvir do escutar. Segundo Lopes,

Ouvir é um fenômeno fisiológico: escutar um ato psicológico. No

primeiro nível nada distingue o homem do animal, enquanto o

segundo é um ato de decifração, e nesse processo de escuta

começa a desenvolver-se um espaço intersubjetivo, em que “escuto”,

também quer dizer “escuta-me” (LOPES, 2004, p. 178)

Assim, na percepção acústica presente em tal espaço intersubjetivo ocorre o

diálogo de si para si, em que eu preciso me ver como outro, para “escutar-me”. Do

mesmo modo, num diálogo, a comunicação só ocorre se meus canais auditivos

estão receptivos em relação àquilo que quero ouvir: ocorre, então, a dialética entre

mim e eu mesmo e, eu e o outro, percepção que se diferencia quando estou diante

de um texto escrito.

Apesar de haver essa diferenciação, a obra literária em performance, permite

que essa habilidade psicológica do escutar seja acionada, pois, como nos disse

Zumthor, o espaço, o modo e onde me sento para ler um livro, o ambiente, tudo isso

interfere na minha audição poética.

Outro ponto importante a se observar, segundo Ong, é que a cultura oral é

mais agregativa do que analítica. Os epítetos, que na sociedade letrada seriam

considerados redundantes, na cultura oral é o que auxilia o processo mnemônico.

Por isso segundo Ong, a preferência no discurso formal não é pelo soldado, apenas,

mas pelo soldado valente; não pelo carvalho, mas pelo carvalho robusto, etc.

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Ao passear pelos aspectos que diferenciam uma cultura oral da escrita,

percebemos indícios que podem interferir no modo como o leitor-ouvinte recebe

essa matéria, a língua, trabalhada literariamente pelo escritor. Entre a palavra escrita

e a oralidade cria-se uma tensão que faz com que o espaço de mediação da poesia,

seja concretizado em uma espacialidade não convencional: a que gera a poesia e o

prazer estético da fruição e apreensão das vozes que emergem da tensão oralidade-

escrita. È isto que discutiremos a seguir.

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Espaço do leitor-ouvinte e do narrador-contador

Partindo do pressuposto de que o desenrolar de A Varanda ocorre a partir do

suporte vocal do narrador, percebe-se que a palavra proferida torna-se

acontecimento. O discurso, ao ser presentificado, na proximidade entre contador e

ouvinte não soa como algo que aconteceu no passado, pois a maneira do contar faz

com que a memória do narrador resgate as circunstâncias em que ocorreram os

fatos, e a voz, mediada pelo corpo, com suas qualidades psicofísicas, torna-se

presente. Nesse sentido, há um entre-lugar em que se situam o contador e o

leitor/ouvinte.

Nesse entre-lugar, nem o espaço e, principalmente, nem o tempo são

mensuráveis. São perceptíveis, sim, somente a partir da relação leitor-contador, na

qual a linguagem se torna, metaforicamente, protagonista da estória. Nesse entre-

lugar, é que se situa o leitor/ouvinte.

Nesse sentido, os movimentos que indicam o tempo da memória, o tempo

decorrido dos fatos contados no romance, o tempo extra-textual que remete à

História de Moçambique são absorvidos no tempo ficcional, um jogo de vai e vem

que tensiona a narrativa e torna-se ponto importante da modalidade oral. Não há,

portanto, necessidade de uma fixidez com começo, meio e fim, que seria esperado

de um romance. O discurso atemporal se tece pela maneira do contar, que mais se

aproxima do mostrar por imagens. Nessa perspectiva, é também, como disse Laura

Padilha, um “entrelugar que fica num ponto de confluência sígnica onde se dá o

encontro da magia da voz com a artesania da letra” (PADILHA, 1995 p.14). O narrar

imagético mostra o cenário circunstancial em que é realizado o romance.

No “narrar-mostrando” o discurso se apresenta como um acontecimento

virtual. O tempo da estória é o tempo sensível, o não-tempo, pois não interessa

nessa audição o tempo decorrido da ação, desde a morte do narrador, mas o tempo

em que o corpo do ouvinte se co-relaciona com a obra. Nesse jogo dialógico, o

leitor/ouvinte, dotado de suas características próprias de sujeito social, vê-se diante

da audição da estória com sua experiência de mundo. Portanto, sua memória, o

imaginário de que é composto esse sujeito ouvinte, apresenta-se na tensão do

ler/ouvir.

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O narrador-autor também se apresenta num corpo dotado de memória,

sensível; suporte que tece a estória de sua vida ficcional. Dessa maneira, traz outros

personagens para formar o coro de experiências que são cantadas ao longo de A

Varanda. Ao permitir a autonomia dos outros personagens, que narram também

suas experiências vinculadas à construção da estória maior, o narrador-autor coloca

em cena novos cantos, formando um coro na composição do romance.

No campo do discurso ocorre a performance. Desse modo, o que está em

jogo nessa relação contador/ouvinte é o acontecimento estético da leitura, na qual

se dá o surgimento da imagem poética no ato de ouvir: acontecimento estético

situado no aqui-agora da obra.

È nesse tempo que emerge a voz do contador, a ambigüidade, o gesto, as

tensões, a ironia, que chegam ao ouvinte pelo sensível e por meio das inflexões nas

quais lhe permite recriar o gesto vocal. Dessa maneira, o ouvinte adentra na

atmosfera em que se desenrola a trama em seus diversos aspectos. Cabe ao

ouvinte situar-se nos “entre-espaços”, e nele desvendar esses fenômenos sutilmente

implícitos no tempo do contar.

O pesquisador Wagner Leite Viana em sua dissertação de mestrado, faz uma

leitura pertinente sobre o ser na experiência estética e no estar “entre”.

Apropriaremos-nos de sua leitura, na perspectiva de que o leitor/ouvinte se encontra

no “aqui-agora” da performance, espaço discursivo em que se apresenta um jogo de

tensão na tríade, contador/ouvinte/autor.

O olhar do leitor inventor que vê a partir de um campo de forças,

também é um ver-se “entre”, pressionado, deslocado, em estado de

estranhamento, um ver que tensiona a obra e tensiona a si. Um

desejo de significar, que também é in-tensão e ex-tensão, forças de

espacialização do encontro com a obra que inventa habitats, e , ao

ocupar espaços, faz conviver num mesmo plano de força a

experiência do reconhecimento e da novidade na obra. (VIANA,

2008, p 17)

Como já foi dito, nesse “entre” encontra-se o corpo leitor e o corpo lido, este

entendido como uma obra que, pelo sensível, possibilita àquele a percepção de

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movimentos, gestos, sons, mudanças de timbre; materialidade da voz trazida pelo

gesto narrativo. Nesse viés, o ouvinte pode percerber a imaterialidade da qual se

constitui o gesto vocal presente na ironia, no uso de parábolas, nas repetições

presentes na linguagem poética do narrador. È aí que reside o acontecimento

poético, como veremos a seguir.

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2.3. O “entre-espaço” como acontecimento poético

Em cenário de prosa mesclado à poesia, as estórias aspiram ao canto, já que,

em cada capítulo do livro as personagens apresentam-se para dar seus

depoimentos e cantam suas estórias, moduladas por experiências simbólicas,

carregadas de imagens.

Percebe-se também a subversão de outra forma escrita, a saber: o relato oral

presente no depoimento policial, é aquele o que Mia Couto nomeia de confissão.

Isso acaba por gerar uma tensão, uma vez que os depoimentos dos diversos

personagens são “fantasiosos”; cada um reivindicando o assassinato do dono do

asilo para si, a partir do detalhamento das circunstâncias em que ele foi morto.

Consta no dicionário Aurélio, que confissão é a “declaração da própria fé”, ou

“ato de confessar”. Há a subversão do uso corrente de confissão, pois, ao aspirar

serem ouvidos naquele espaço, tornam-se autores ficcionais de um homicídio que

não cometeram. Assim, a escolha do léxico “confissão”, acaba por significar a

verdade dos viventes no asilo.

O discurso poético, por natureza, não é o discurso do dia-a-dia. Daí a

liberdade dessa transgressão discursiva pelos narradores. Se considerarmos que a

fortaleza se localiza em um local isolado, metaforicamente um espaço de

sobrevivência, vislumbra-se uma estratégia narrativa, pois, ao dar o depoimento,

cada um deixa no registro escrito as crenças e modo de pensar daquela

comunidade.

Embora saibamos que a linguagem literária de Mia Couto assume marcas de

uma sociedade em que a oralidade se faz presente na maioria da população, em A

Varanda, nota-se que, esta marca não é apresentada ao ouvinte como discurso

corrente em Moçambique, pois a linguagem poética diferencia-se da linguagem

cotidiana, calcada no pragmatismo. Mas, através do contar, no trabalho realizado

pelo artista Mia Couto, as falas presentes não apresentam narradores reais, mas

narradores que fazem do uso da voz, um anti-discurso, uma vez que a voz

transgride o uso da oralidade corrente na cultura moçambicana: nesse “transgredir”

manifesta-se o poético. Podemos afirmar que, é justamente nessa transgressão que

o escritor, a partir dessa realidade com leis próprias, presente no enredo, remete o

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leitor a realidade externa da obra, colocando este leitor-ouvinte em contraste com a

sua realidade e a realidade percebida artista.

A pesquisadora Fernanda Cavacas debruçou-se na recolha de falares

correntes no Sul de Moçambique, e catalogou, à maneira de um dicionário, em sua

pesquisa, intitulada, Pensatempos e improvérbios, os provérbios utilizados por Mia

Couto, cujo trabalho estético apresenta aqueles falares revestidos de uma nova

roupagem. Assim, busca nos romances de Mia Couto provérbios e tenta apresentar

uma nova leitura para tais provérbios, como, por exemplo em: “Quem fala

consente? Fiquei calado.” A autora aproxima esta fala ao provérbio, usado no

dialeto changana, como se percebe a seguir: Ouvir dá vida, ver dá morte, ou seja,

[=Se te avisares dum perigo não queiras experimentá-lo.]

Desse modo, nota-se em A Varanda a presença de elementos de matriz oral,

como provérbios, adágios. Nessa perspectiva, encontra-se, em A Varanda, a

tradição discutida poeticamente na voz de Nãozinha, a feiticeira que se converte em

água à noite; Navaia Caetano, o velho que está condenado à morte, caso conte a

história da sua vida, etc. Tudo acaba por apresentar os elementos fantásticos

originários das cosmogonias e da cultura oral africana, e “a obra de arte, na tentativa

de revelar o mundo que o artista percebe, conhece e apreende, coloca seu receptor

mais próximo da realidade que lhe é externa.” (SALES, 2007, p. 139). Neste

deslocamento, encontra-se o ouvinte, adentrando numa realidade que não faz parte

do seu repertório.

Ao narrar, as personagens de A Varanda, tornam-se autores. Em seus gestos

narrativos é perceptível o trabalho de uma voz autoral, voz esta que por vezes está

“entre” o autor Mia Couto e tais narradores. O próprio gesto de oralidade, está

presente no projeto estético de Mia Couto, que, no processo de criação, vislumbra o

indispensável aspecto sonoro da palavra. Em face do criar, nasce uma voz

autônoma. Do gesto criador de Mia Couto nasce o gesto narrador. As vozes

proferidas pelos contadores, tornam-se autônomas. Percebe-se no romance,

narradores que, aparentemente, possuem suas biografias além da ficção,

parecendo que utilizam o livro para serem ouvidos: vozes que exigem um ouvido

sempre atento. A título de ilustração, vejamos o alerta dado por Navaia Caetano ao

investigador, Izildine Naita : “Neste asilo, o senhor se aumente de muita orelha. É

que nós aqui vivemos muito oralmente” (COUTO, 2003, p. 28)

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A fala desse personagem, apresenta a tônica do romance, pois não é apenas

esse narrador que vê na fala/audição a possibilidade de existência, mas a

comunidade de todo o asilo. Ao alertar o policial para que privilegie o meio acústico,

por extensão, o velho carece da atenção do ouvinte/leitor, que deve se desprender

da mentalidade pautada pela escrita e dar atenção ao que ele tem a contar.

Temos assim, o discurso como acontecimento, ou o que Zumthor prefere

chamar de prosopopéia do vivido. A maestria com que o narrador utiliza a palavra,

recorrendo ao uso de parábolas e máximas presentes na comunidade

moçambicana, evidenciam alguns gestos que orientam o ouvinte no espaço

narrativo e indiciam um tempo que é o da memória, como podemos ver na fala do

narrador-autor:

Izildine tinha um plano: entrevistaria, em cada noite, um dos velhos

sobreviventes. De dia procederia a investigação no terreno. Depois

de jantar, se sentaria junto a fogueira a escutar o testemunho de

cada um. Na manhã seguinte, anotaria tudo o que escutara na noite

anterior. Assim, surgiu um pequeno livro de notas, este caderno com

a letra do inspector fixando a fala dos mais velhos e que eu levo

comigo agora para o fundo de minha sepultura. O livrinho

apodrecerá com meus restos. Os bichos se alimentarão dessas

vozes antigas. (COUTO, 2003, p. 25-26)

Sobre tal aspecto “presentificante” da palavra, Walter Ong busca traduzir a

palavra grega “dabar” que, segundo ele, “significa ‘palavra’, que significa também

‘acontecimento’ e, desse modo, refere-se diretamente a palavra falada. “A palavra

falada é sempre um acontecimento, um movimento no tempo.”

Esse movimento no tempo está presente em A Varanda, pois o narrador

pressupõe a existência de um ouvinte e se coloca diante de uma platéia que anseia

ouvir a estória, “quando o orador se dirige ao público, os ouvintes normalmente

formam uma unidade, consigo mesmos e com o orador” (ONG, 1998, p. 88)

Na audição poética, há o espaço do narrador, físico, geográfico, e o espaço

poético: o “entre”: espaço-acontecimento, possível de ser co-vivenciado no contar,

em que a “redundância, a repetição do já dito, mantêm tanto o falante quanto o

ouvinte na pista certa” (ONG, 1998, p. 51)

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O narrador-autor de A Varanda, busca em sua memória o que vivenciou no

forte colonial e compartilha suas lembranças com o ouvinte. O leitor/ouvinte, mesmo

que este não faça parte daquela comunidade, se vê como parte integrante desse

diálogo.

Ana Mafalda Leite fala sobre o papel do leitor/ouvinte que se vê diante de um

texto que lhe apresenta uma mundividência diferente da que ele pertence,

especificamente do leitor ocidental em face de um texto literário de Àfrica:

A leitura de um texto de literatura africana torna-se, assim, um lugar

de múltiplas filtragens, desfigurações e reconfigurações. Se a escrita

é uma prática social, com uma função social, bem precisa, em África,

herança que subjaz, parcialmente, da oratura, sugere a possibilidade

de que, também, o sentido seja uma construção social, caracterizada

pela participação do escritor e do leitor no acontecimento do

discurso. No entanto, a diferença que o registro do texto africano

arrasta consigo passa por essa relação autor/leitor; a prática da

leitura, no ocidente, da textualidade africana de língua portuguesa,

dialoga a partir de dois lugares diferentes, o lugar da enunciação,

cultural/nacional de quem escreve, e o lugar daquele que lê. (LEITE

2003, p. 37-38)

Desse modo, a construção de sentido é resultado do entrosamento entre

narrador-autor-leitor, independentemente da realidade social em que estas partes

estão inseridas.

Tal espacialidade também comporta a poesia, talvez uma harmonia entre

prosa e poesia. O ritmo vocalizado na escrita de Mia Couto evidencia o hibridismo

entre prosa e poesia. No trânsito do discurso elas fundem-se. A respeito dessas

duas modalidades, Cohen aponta que...

A prosa literária não é senão uma poesia moderada em que a

poesia, por assim dizer, constitui uma forma veemente da literatura, o

grau paroxístico do estilo. O estilo é uno. Apresenta um número finito

de figuras, sempre as mesmas. Da prosa para a poesia, e de um

estado de poesia para outro, a diferença está na audácia com que a

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linguagem utiliza os processos virtualmente inscritos na sua estrutura

(COHEN, 1978, p. 121).

No romance em questão, a recorrência no uso de provérbios, adágios, etc.,

evidencia a poeticidade da narrativa, permeada de imagens e sons. Aí que reside a

audácia de Mia Couto, de compor estórias que estão entre a prosa e a poesia, dado

o ritmo inerente à poesia e marcadamente presente na fala das personagens. Paul

Valéry, diz que “a tarefa do poeta é nos dar a sensação de união íntima entre a

palavra e o espírito”. O mesmo autor observa que este é um resultado maravilhoso,

tal qual nos séculos em que a poesia era destinada a encantamentos, aquele

receptor, deveria “necessariamente acreditar no poder da palavra e muito mais na

eficácia do som desta palavra do que em seu significado”. (VALÉRY, 1999, p. 206)

Ler/ouvir A Varanda, é como reviver essa experiência, a sonoridade presente

no discurso dos narradores possibilita ao leitor vivenciar e intuir o significado por

meio do discurso rítmico e imagético.

Bakhtin ressalta a qualidade condensativa que há na poesia, e retoma seu

aspecto sonoro, como vimos durante as discussões anteriores, e o modo como se

pode explorar a língua ao máximo, utilizando-se da linguagem poética.

Nenhum domínio da cultura, exceto a poesia, precisa da língua em

sua totalidade: o conhecimento não tem nenhuma necessidade da

complexa originalidade da face sonora da palavra no seu aspecto

qualitativo e quantitativo, da multiplicidade das entonações possíveis,

do sentido do movimento dos órgãos de articulação, etc.; pode-se

dizer o mesmo dos outros domínios da criação cultural; todos eles

não vivem sem a língua, mas tiram dela muito pouco. (BAKHTIN,

1988, p. 48)

È aí que acontece a intervenção do artista. No esmerar da matéria prima, a

língua torna-se carregada de imagens e traz o gesto vocal nos enunciados. A

narrativa em A Varanda, como já dissemos, perpassa pela memória que é atualizada

no contar. Zumthor fala da duração da performance, pelo viés da memória, a qual

ocupa um papel fundamental para a concretização da performance, como afirma o

estudioso:

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A obra transmitida na performance, desenrolada no espaço, escapa,

de certa maneira, ao tempo. Enquanto oral, não é jamais reiterável: a

função de nossa mídia é de suprir essa incapacidade. Uma reprise é

sempre possível; de fato, é excepcional que uma obra não seja

objeto de várias performances: ela não é, forçosamente, nunca a

mesma. (ZUNTHOR, 1997, p. 259)

Ou seja, uma vez uma pessoa conhece e conta alguma estória, ela nunca

será contada da mesma maneira, mas esse arquivo estará lá, arquivado na sua

memória, pronto para ser performatizada. Para a obra literária, fica mais evidente

esse fenômeno. Sendo ela fruto da poeticidade no momento em que lemos a obra,

outra leitura que fizermos do mesmo texto, jamais será a mesma. Se pensarmos que

em A Varanda o narrador tem como suporte a memória, podemos ver indícios de

que uma das discussões dessa obra é a memória como depositária da voz que o

narrador se utiliza. Dessa maneira, problematiza-se, na obra, a importância da

memória. Um dos argumentos da enfermeira Marta Gimo, ao não dar detalhes do

que ocorre naquele asilo ao policial, é que o crime maior não é o que ele está

investigando, mas o crime é “que estão a matar o antigamente”, por isso, “os velhos

estão morrendo dentro de nós”.

Ao falar sobre tradição em África, estamos falando em memória coletiva. A

memória que é discutida em A Varanda, é sobre o saber e a preservação dessa

tradição. Sendo assim, coletiva, a memória do narrador autor também é a da

tradição, ou seja, o narrador não é o dono daquela estória, mas depositário de

outras estórias que resultam na composição de um mosaico de vozes presentes na

tradição. Nesta perspectiva, podemos vincular esse fenômeno da voz narrativa ao

homem que fala, de que nos diz Bakhtin, pois o narrador estiliza essa oralidade a

sua maneira e não deixa de trazer à luz, no romance, a tradição universal africana,

uma vez que este homem que narra é essencialmente social.

Consideramos, então, que, a memória do narrador traz o universo

moçambicano, trabalhado poeticamente pelo escritor e que permite o status de

literatura para A Varanda, já que no espaço poético do que chamamos “entre”, está

a vocalidade, a memória, o artista e o “ouvinte” do texto literário. Espaço também de

ludicidade, pois o rito da narrativa permite colocar em jogo todos os personagens, o

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leitor e o escritor como participantes de um projeto literário que só se realiza no ato

da performance, ou seja, a obra requer alguém que a executa, termo utilizado por

Pareyson e que indica a realização do acontecimento poético-estético de uma obra

de arte.

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CAPITULO III

Da voz que canta à palavra que narra

“Tudo que não invento é falso” Manuel de Barros, em Livro sobre nada

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3.1. A estória recontada como história

A primeira edição de A Varanda do Frangipani foi publicada pela editora

portuguesa, Caminho, em 1996. O romance está na 8ª- edição. A edição que

usamos é a 7ª-, de 2003. O livro teve os direitos de publicação cedidos para editoras

da Alemanha, Andorra, França Itália, Noruega Reino Unido Suécia. A partir de 2007,

passou a ser publicado pela editora brasileira Companhia das Letras.

Composta de quinze capítulos, a estória deste romance é “contada” por um

narrador-defunto-autor. Em alguns momentos ele fica à espreita enquanto um dos

depoentes narra, tentando provar como matou o dono do asilo.

O narrador-autor inicia seu relato no primeiro capítulo O Sonho do Morto,

dizendo que está morto e que faleceu há vinte anos. Apresenta-se como Ermelino

Mucanga. Carpinteiro de profissão, em seu enterro não teve a devida cerimônia,

como rege a tradição; encontrava-se em estado de xipoco, uma alma penada. Em

sua morada, debaixo da terra, tinha como amigo e conselheiro um pangolin, uma

espécie de tatu. Certo dia percebeu que os integrantes do governo queriam

desenterrá-lo e fazer dele uma estátua, símbolo de resistência. Decidido a não ceder

a tal objetivo, recorre ao pangolin. Assim, o animal o aconselha a “remorrer”: sair dos

pés da árvore do frangipani para habitar o corpo de um policial. Este policial viveria

apenas seis dias, tempo previsto para a conclusão da investigação sobre a morte do

dono do asilo, o Sr. Vasto Excelêncio.

No segundo capítulo, Estréia nos viventes, o narrador conta como se deu sua

estréia no corpo do policial e torna-se, assim, Izidine Naita, o policial, já que fala,

sente, sonha, deseja, como se fosse o investigador. No corpo do policial, vai

acompanhado de Marta Gimo, enfermeira que trabalha no asilo.

A chegada do policial ao asilo, não foi receptiva. O investigador traçou um

plano: a cada noite entrevistaria um velho e tomaria nota dos depoimentos e, de dia,

vasculharia o terreno em busca de pistas sobre o assassinato.

No terceiro capítulo, A confissão de Navaia, o protagonista é Navaia Caetano,

o velho-criança, condenado a morrer caso contasse sua estória. Em seu

depoimento, marcadamente envolto de magia, Navaia Caetano fala da ocasião em

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que estava contando sua história aos velhos do asilo seu corpo começa a

desfalecer, ocasião em que, Nãozinha, a feiticeira, se apressou em fazer uma

cerimônia para que o velho-criança não morresse. Como Vasto Excelêncio

interrompera aquela cerimônia, Navaia o matou a punhaladas.

No quarto capítulo, Segundo dia nos viventes, o narrador-autor volta à cena.

A voz agora é de Ermelino Mucanga. Descreve o ambiente tranqüilo daquele dia e

traça o perfil do policial, a partir das observações feitas por Marta.

O quinto capítulo inicia-se com o depoimento do velho português, Domingos

Mourão. Ele fala de sua paixão pela árvore do frangipani, de sua mulher e filho que

voltaram para Portugal, após a independência de Moçambique. Fala de sua

mudança de identidade cultural em Moçambique. Apaixonado pelo mar, bebe para

se sentir mareado. A partir da provocação de Vasto Excelêncio, cuja intenção era

levar Ernestina (mulher pela qual Domingos Mourão se perdia de amor e esposa de

Vasto Excelêncio) embora do asilo, faz uma armadilha e mata Vasto Excelêncio.

No sexto capítulo, Terceiro dia nos viventes, o narrador-autor, volta a relatar o

andamento da investigação. Ele Fala que Izidine Naita se afundava em hesitações,

que as pistas que os velhos lhe davam pareciam falsas, etc.

O sétimo capítulo é a Confissão de Nhonhoso.Disse que matou o diretor do

asilo porque espreitava Marta Gimo quando o viu agredindo-a: matou por amor.

No oitavo capítulo o narrador-autor volta a relatar o Quarto dia nos viventes.

Marta Gimo continuava a se desvencilhar do policial e nada de novidades no

andamento da investigação.

O nono capítulo é composto pela Confissão de Nãozinha, a velha que à noite

se converte em água. Diz que foi expulsa de casa por ser feiticeira. Afirma que

matou vasto Excelêncio porque este tinha o espírito do seu pai, um velho que a

violentava. Com a morte de seu pai, ficou órfã, e ao mesmo tempo, viúva. Devido ao

maltratos de Vasto, o mata envenenado.

No décimo capítulo, o narrador-autor fala do seu Quinto dia nos viventes e

das reações do policial frente aos costumes dos velhos em caçar e comer lagartas;

da resistência dos velhos em aceitar o investigador e da aproximação deste com

Marta.

O décimo primeiro capitulo, A carta de Ernestina, abre e fecha este capítulo.

Na carta ela diz que Vasto tornara-se um homem insuportável, por isso separa-se

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dele, após perder seu filho, volta ao asilo. Em vez de amor, passou a odiar Vasto.

Fala de Salufo Tuco, o ajudante braço direito de Vasto e relata como Vasto

Excelêncio o matou..

No décimo segundo capítulo, De regresso ao céu, o narrador-autor relata que

foi chamado pelo pangolin. Então o “fantasma” sai do corpo do investigador e

regressa à cova. O pangolin queria demovê-lo da idéia de continuar nos viventes, e

que aceitasse a nomeação de herói, assim lhe chateariam apenas uma vez por ano.

Mas o narrador-autor queria continuar “vivo”, e não confessa ao Pangolin que os

melhores momentos eram quando o policial estava junto de Marta Gimo. Não

concordava em voltar à cova definitivamente; pensou ele, com ou sem a permissão

do pangolin, voltaria ao corpo do policial.

No décimo terceiro capítulo se dá A confissão de Marta. A enfermeira aponta

a violência como causa da decadência do mundo e daquele lugar. Relata que foi

educada como assimilada, perdera seu sobrenome. Diz para o policial que o que os

velhos queriam era atenção, por isso mentiam. Fala de como foi trabalhar no asilo,

da paixão pelo diretor e sobre sua gravidez.

No décimo quarto capítulo, A revelação, se dá a última noite do narrador-

autor no corpo do policial. Fala da revelação de Nãozinha ao policial sobre sua

possível morte. Esse capítulo se encerra com a Velha Nãozinha benzendo o policial

e professando que não lhe fariam mal algum.

No décimo quinto e último capítulo, O último sonho, o narrador-autor

reaparece e relata que as profecias de Nãozinha ajudaram a tomar a decisão de sair

do corpo do policial. Relata a experiência de sair daquele corpo. O cheiro do ar, a

claridade, a árvore florida do frangipani. Ouve o pagolin dizer que planejou juntar

forças para desabar um temporal a fim de frustrar o projeto do assassinato do

policial.

Em meio a uma chuva e o céu cheio de fogo, o narrador se despediu dos

velhos e iniciou seu retorno à terra. Assim, toca a árvore e esta volta a renascer.

Depois, se cobriu com aquele restante de cinza e transita do estado de alma penada

para o estado de árvore. Leva consigo Navaia Caetano e é seguido pelos outros

velhos, ficando em terra apenas Marta Gimo e o policial. Termina o relato dizendo:

“aos poucos, vou perdendo a língua dos homens, tomado pelo sotaque do chão. Na

luminosa varanda deixo meu último sonho, a árvore do frangipani. Vou ficando do

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som das pedras. Me deito mais antigo que a terra. Daqui em diante, vou dormir mais

quieto que a morte.” (2003, p. 153)

Ao transcrever o enredo de A Varanda, estamos certo de que não demos

conta de mostrar às riquezas presentes na obra de Mia Couto, obra que merece ser

lida e fruída. Esse resumo, torna-se redutivo mas esperamos que dê a noção de

como se é, panoramicamente, o perfil do narrador de A Varanda.

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3.2. A crítica

Embora muitos pesquisadores se debrucem sobre a obra de Mia Couto, não

temos ainda uma vasta fortuna crítica. Isso se explica porque estamos tratando, de

modo geral, de uma literatura muito recente, ainda em formação. Considerando esse

contexto, selecionamos três textos diferentes que abordam o trabalho de Mia Couto

sobre três diferentes óticas.

O primeiro texto é da professora da Universidade de Maputo, em

Moçambique, Perpétua Gonçalves. A autora busca uma aproximação entre a língua

portuguesa de Moçambique e a de Angola e discute como se manifestam as

variantes do português na literatura dos dois países. Outro texto, da pesquisadora

Dra. Vera Maquêa, discute a memória em três obras de Mia Couto, sob a sob a ótica

dos estudos pós-coloniais. Na última crítica, a pesquisadora portuguesa, Fernanda

Cavacas, parte da biografia de Mia Couto e mostra alguns aspectos estilísticos

presentes na obra do moçambicano.

Perpétua Gonçalves em seu texto, Para uma aproximação Língua Literatura

em português de Angola e Moçambique, procura estabelecer uma ponte entre as

variedades do português na literatura de Mia Couto e de Luandino Vieira,

respectivamente moçambicano e luandense.

A autora observa que a massificação do uso da língua portuguesa no pós

independência contribuiu para uma formação de variedades locais desta língua, o

que alterou o seu registro no nível do sistema fonético e fonológico; do léxico e da

sintaxe, se comparados ao uso do português europeu. Desse modo, ela procura

discutir esse fenômeno lingüístico, estabelecendo uma ponte entre as variedades do

português de Angola e de Moçambique, baseando-se na linguagem literária.

A pesquisadora aponta para o fato dos escritores africanos adotarem em

maior ou menor grau a norma do português europeu, no discurso regido por este

modelo, mesclado com o vocabulário local. Ou então assinala a preferência de

alguns que preferem deixar que as normas do português presentes na comunidade

africana sejam parte dos seus discursos literários. Para ela, Mia Couto e Luandino

Vieira se enquadram nesta última categoria. O primeiro, pelo uso de diferentes

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processos lexicais; o segundo, pela criatividade ao nível da sintaxe do seu discurso

literário.

A pesquisadora observa que, de modo geral, os lingüistas não se ocupam da

linguagem literária, pois ela é de uso individualizado, não chega a ser um produto

representativo da comunidade de locutores de uma língua.

Desse modo, ela afirma que as variedades do português nos dois países

estão em formação, num contexto de contato com línguas do grupo bantu; daí a

distinção em relação ao uso do português padrão. O fato da língua portuguesa não

ser a língua materna da maioria da população, acaba por acelerar o processo de

mudança desta língua. A diferença do padrão europeu se dá como resultado natural

do processo de aprendizagem desses falantes de línguas maternas bantu. Nesse

contexto, quase não existem referências de falantes que utilizam a língua padrão.

Portanto, essas variedades do português ocorrem de modo quase que inconsciente

na comunidade. Ou seja, não se está a buscar uma identidade lingüística nacional

quando os falantes fazem o uso “desviante” do português europeu, mas o fato de

não haver muitas referências da norma européia nessas comunidades faz com que

a fala do moçambicano e angolano se apresentem com suas características locais.

Perpétua Gonçalves, considerando esse fenômeno lingüístico, problematiza a

respeito de qual seria a reação de escritores como Luandino Vieira e Mia Couto e

quais as fidelidades ou infidelidades lingüísticas que se apresentam em seus

discursos. O que, não necessariamente, deve resultar numa literatura que respeita

as variantes da língua portuguesa nos dois países.

Assim, a autora evidencia nas escritas destes escritores uma descontinuidade

entre o discurso corrente em português e a linguagem literária, por exemplo, por não

se encontrar em suas obras os chamados erros de gramática, tão comuns em certas

comunidades e que têm o português como segunda língua.

Ou seja, embora suas obras nasçam nesse contexto, isso não implica

necessariamente uma resposta mimética, segundo a qual essa literatura deveria

obedecer fielmente o modelo lingüístico nacional.

A autora se debruça sobre o aspecto lexical da linguagem literária de Mia

Couto, por entender que esse fenômeno, do ponto de vista lingüístico, é o que mais

se destaca na obra do autor. Tendo em vista a integração de Mia Couto num

continuum do português, Perpétua Gonçalves se propõe a esboçar algumas

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características do português de Moçambique ao nível do léxico. Antes, a autora

define o conceito de léxico.

Segundo ela, o léxico das línguas naturais é composto por diferentes tipos de

unidades lexicais, umas com autonomia sintática, e outras que dependem da

associação com outras unidades lexicais, tais como radicais, prefixos e sufixos. O

léxico pode renovar-se ou alargar-se através de seus recursos internos, seja na

combinação de unidades lexicais de diferentes formas, seja por meio do neologismo

semântico. Isto é, atribuindo novos sentidos a unidades pré-existentes ou até a

importação de unidades lexicais de outras línguas, os chamados neologismos por

empréstimos. Estes se apresentam raramente na comunidade de falantes

moçambicanos. Nos casos em que se verifica esse uso, em recolhas de dados orais

e escritos, principalmente em jornais, encontram-se palavras como: emprestação,

perigosidade, ajudamento, falagem, as quais derivam de novas associações entre

radicais e sufixos existentes no português. Usos estes que não podem ainda ser

considerados como patrimônio lingüístico da comunidade, pois a predominância

ainda é favorável ao emprego das palavras empréstimo, perigo, ajuda e fala.

Isto quer dizer que não são típicas da linguagem da comunidade de falantes

do português de Moçambique essas inovações obtidas a partir de empréstimos, ou

de novas combinações lexicais do português europeu. Feita essas observações, a

autora recorre à pesquisa de Gaspar (1994), que afirma que, na obra de Mia Couto,

ao nível do léxico, sobressaem as inovações por meio dos neologismos lexicais.

Perpétua Gonçalves ainda afirma que, segundo Gaspar, o processo mais

criativo de Mia Couto é o da amálgama, resultado de uma combinação aleatória de

pedaços de palavras do português europeu, como: animaldades ou solistência,

obtidas, respectivamente, pelas seguintes associações: ani [mal] + [mal] dade e soli

[tária]. Esse uso não é recorrente em Moçambique. Portanto, ao nível do léxico, não

se pode considerar que Mia Couto recorra à linguagem corrente em Moçambique

como fonte.

Ou seja, escritores como Mia Couto e Luandino Vieira, por viverem em

contextos localizados na zona das línguas bantu, inspiram-se neste ambiente de

variação e mudança lingüística, embora mantenham um discurso baseado na norma

européia. Desse modo, nas suas variedades individuais do português, encontram-se

processos formais criados pela comunidade, e outros, da própria autoria, específicos

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da sua linguagem literária. Desse modo, a maneira como Mia Couto usa seu

processo criativo, baseado nesse contexto real, acaba por colocar o seu português

literário mais distante do padrão europeu do que das variantes nacionais.

Assim, a autora aponta que a obra de Mia Couto destaca-se pelas inovações

lexicais formadas com base em material pré-existente no português, sendo que os

desvios sintáticos não se apresentam substancialmente como na obra de Luandino

Vieira. Nessa perspectiva, a autora sinaliza a idéia de um continuum lingüístico, no

qual Luandino Vieira se encontra mais afastado, quase que em ruptura com ao

padrão do português europeu, enquanto Mia Couto se situa num ponto deste

continuum mais próximo das variantes angolana e moçambicana do português.

A pesquisadora encerra seu texto salientando que essa habilidade dos

escritores evidencia um pressuposto da lingüística moderna, na qual defende que

todos os seres humanos estão habilitados graças a um sistema finito de

conhecimento que os possibilita a construir e interpretar um número infinito de

frases, privilégio este dos escritores que utilizam essa possibilidade com a língua.

Em outro texto crítico sobre a produção coutiana, quem fala sobre a obra do

moçambicano é a pesquisadora Vera Maquêa. Em seu ensaio,Três romances de

Mia Couto: horizontes moçambicanos, a autora se propõe a discutir a memória e os

artifícios narrativos nos romances de Mia Couto. Para tanto, ela seleciona três obras:

Terra sonâmbula (1995), Último vôo do flamingo (2000) e Um rio chamado tempo e

uma casa chamada terra (2002). Obras nas quais, segundo a autora, tratam,

respectivamente, do sonambulismo dos homens e da terra no pós-guerra; também

do despotismo e abandono da população por parte dos governantes; das desilusões

e corrupções presentes no pós-independência.

Ela aponta semelhanças, nos romances em questão, em relação ao trato com

a linguagem e situa sua reflexão sob duas perspectivas: uma, de ordem literária e,

outra, de ordem política; a primeira através da escrita como procedimento; a

segunda, por meio da temática, pois, segundo ela, as raízes dos romances em

questão estão nos problemas da Àfrica atual. Estas perspectivas têm como suporte

a questão da memória enquanto campo móvel da significação, interpretação e

experiência social de Moçambique.

A autora observa que é comum nos romances africanos a preocupação com

problemas políticos. Além disso, o romance, em África, se apresenta de modo

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peculiar, pois, consagrado no ocidente, dialoga com a cultura oral de tradição

africana. Nesse sentido, não se pode ler a obra de Mia Couto sobre uma perspectiva

simplificadora que colocaria em evidencia a oposição entre oral e escrito.

Vera Maquêa observa que os romances de Mia Couto dizem que o bem e o

mal estão em toda parte, e que as personagens engendram fraquezas e

determinações, sensibilidade e incertezas. Assim, a pesquisadora busca analisar o

perfil das personagens dos romances que ela discute sob a perspectiva da memória,

permeada por gestos de escrita, tradução, e pelo uso de cartas, etc.

Desse modo, os três romances se apresentam como lugar de criação,

invenção, interpretação e instituição de uma nova realidade. Assim, no uso da língua

portuguesa, a literatura acaba por subverter a ordem colonial e institui um espaço

em que os moçambicanos passam a ter voz. Sendo assim, Mia Couto passa a

traduzir as verdades humanas por meio da palavra literária.

Já no texto, Mia Couto: palavra oral de sabor quotidiano/palavra escrita de

saber literário, a pesquisadora Fernanda Cavacas aborda a obra literária de Mia

Couto enquadrando no contexto sócio-político e literário-cultural de Moçambique. A

autora justifica a escolha pela importância da obra de Mia Couto como fator de

construção da identidade nacional. Com esse foco, indica qual a conclusão a que ela

pretende chegar: “Mia Couto antecipa moçambicanidade através de uma escrita

mágica numa língua portuguesa oriunda de índicas mestiçagens” (2006. p. 58)

A pesquisadora esboça o percurso biográfico e literário de Mia Couto, da

infância até a consolidação de sua literatura. Percurso que indica um escritor que,

apesar de ser branco e filho de portugueses, sempre esteve engajado na busca de

um Moçambique mais justo. Isso fez com que o autor fizesse dessa mestiçagem,

fazendo dessa mestiçagem a percepção de si próprio naquele contexto, que levou o

autor, a partir do individual, chegar ao coletivo por meio da literatura.

Sob o aspecto criativo de Mia Couto, Fernanda Cavacas fala da reação do

público moçambicano, especialmente dos escritores, na dificuldade de compreender

a maneira “desconstrutiva” do autor ao fazer literatura; isto em face da publicação de

seu livro em 1986 (Vozes anoitecidas). A partir dessa publicação, Mia Couto será o

escritor mais conhecido fora de Moçambique. O foco da pesquisadora é o aspecto

criativo e oralizante da sua escrita.

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Assim, ela retoma suas próprias pesquisas, nas quais já apontava na obra de

mia Couto uma “escrita literária contaminada pela oralidade e plena de elementos

significativos da paremiologia, da simbologia e da imagética das culturas em

presença no contexto moçabicano” (2006, p. 66). E aponta que, somado a isso, o

uso do português oral de Moçambique, trabalhado literariamente pela renovação do

léxico, oferece um rejuvenescimento da língua a partir daquela matriz, numa

perspectiva de construção da identidade nacional.

A partir dessas considerações, a autora elenca:

Mia Couto em sua literatura, instaura em sua narrativa um discurso novo,

analisável nos níveis semântico, sintático e pragmático, presentes em aspectos

como:

• a léxico é (re) criado sempre a partir da língua portuguesa e de outras

línguas moçabicanas; em aspectos formais com: a organização e

cadência das frases e o uso dos dois pontos.

• a opção pelo pretérito mais que perfeito simples e um processo de

adjetivação, também, a recorrência no uso de diminutivos; recursos

estilísticos que traduzem a imagética coutista por meio do uso de

perífrases e metáforas.

• a ironia como discurso polifônico é usada como sistema de

comunicação.

Ao recorrer à matriz oral de seu país, segundo a autora, Mia Couto contribui

para a memória em construção, a qual respeita o chão sagrado e o solo da pátria

moçambicana. Desse modo, conclui a autora, ler Mia Couto, é também um exercício

de reconhecimento de marcas de moçambicanidade do ponto de vista cultural.

Concluindo. Se na reflexão da primeira autora, Perpétua Gonçalves, o foco é

a língua literária presente na obra coutiana, analisada sob o prisma da

sociolingüística, temos, em outro momento a estudiosa Vera Maquêa, discutindo o

trabalho de Mia Couto na perspectiva da memória. Por último, Fernanda Cavacas;

que tece uma rede que contempla aspectos estilísticos e semânticos da obra de Mia

Couto, do ponto de vista da oralidade.

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Nesse sentido, a breve incursão por esses textos, mesmo numa abordagem

que trata da memória, apresenta perspectivas diversas, mas com um ponto em

comum: todas elas não deixam de falar da oralidade presente na obra coutiana.

Sendo assim, cabe a nós, ao desenvolver esse trabalho, somar mais um olhar

sobre a obra coutiana, especificamente, A Varanda do Frangipani, contribuindo com

uma abordagem do ponto de vista da oralidade. Mas trata-se de como um fenômeno

composto de uma série de fatores que, indiscutivelmente, depende do contexto

enunciativo. Em tal contexto, a oralidade torna-se extensão do corpo. Assim, tal

oralidade estaria, na verdade, para vocalidade; não se está a rastrear elementos

lingüísticos que indiciam somente uma fala, mas uma série de fenômenos que

envolvem a percepção sensorial daquele que preferimos chamar leitor-ouvinte. Tal

leitor, compõe também o cenário e vive a vibração vocal da enunciação. Rastrear

esses fenômenos é o passo seguinte neste trabalho.

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3.3. Territórios em mediação inventosa

“Sou morto. Se eu tivesse cruz ou mármore nele estaria escrito: Ermelino

Mucanga. Mas eu faleci com meu nome faz quase duas décadas” (COUTO, 2003

p.11). Assim inicia-se A Varanda. Na apresentação do narrador-autor, percebe-se

uma voz aproximativa. O uso da primeira-pessoa o aproxima do leitor-ouvinte.

Ermelino Mucanga, o narrador, se coloca frente-a-frente ao leitor-ouvinte, para

narrar a sua estória e, mais tarde, dar voz aos demais personagens que compõem a

trama. Essa aproximação permite uma interatividade, logo no início da trama; o que

faz o leitor ficar em estado de suspense, pois...

O ouvinte espectador espera e exige que o que ele vê , revele uma

parte escondida desse homem, das palavras e do mundo. Essa voz

não é mera voz que pronuncia; ela configura o inacessível; e cada

uma de suas inflexões, de variações de tonalidade, de timbre e de

altura é encadeada como prosopopéia do vivido (ZUMTHOR, 1993,

p. 106)

Nesse sentido, por parte do leitor, não se dá apenas a leitura, mas a vivência

daquela realidade ficcional, já sinalizada na fala do narrador; o que resultará na

performance. Uma vez compactuados os papéis, na perspectiva de Zumthor, a obra

se realiza, pois o leitor-ouvinte torna-se a co-autor da obra. Somados, espaço da

enunciação, leitor, autor e narrador, configura-se a obra literária em acontecimento.

Lembremos que, para Zumthor, a obra é o que acontece no ato performático, nesse

caso, a partir dos elementos que constituem a performance, o acontecimento

estético em si. Nessa perspectiva, o leitor-ouvinte não está diante somente de um

texto, mas de movimentos trabalhados pelo contador da estória e de um suporte

gráfico que ascende ao estado de voz. Dessa maneira: “O ouvinte contribui,

portanto, com a produção da obra na performance. Ele é ouvinte-autor (...)”.

(ZUMTHOR, 199, p. 247)

Em A Varanda nota-se, na fala do narrador, o que Zumthor chama de

prosopopéia do vivido. Sua voz traz a imagem da cruz marmórea na qual ele seria

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enterrado. Na sua fala, percebe-se presença, sinceridade, a vida contada e

encenada.

O narrador apresenta apenas seu nome, e o faz depois de morto; é quando

se instala o suspense, pois o inacessível só será “desvendado” no decorrer da

estória, já que:

O intérprete, na performance exibindo seu corpo e seu cenário, não

está apelando somente à visualidade. Ele se oferece a um contato.

Eu o ouço, vejo-o, virtualmente eu o toco: virtualidade bem próxima,

fortemente erotizada; um nada, uma mão estendida seria

suficiente.(ZUMTHOR, 1997, p. 204)

Se retomarmos à fala inicial, que abre a narrativa, percebemos que o narrador

complementa sua apresentação, a fim de se situar no tempo e no espaço, para que

o leitor-ouvinte saiba de quem é a voz proferida:

Sou morto. Se eu tivesse cruz ou mármore nele estaria escrito:

Ermelino Mucanga. Mas eu faleci junto com meu nome faz quase

duas décadas. Durante anos fui um vivo de patente, gente de

autorizada raça. Se vivi com direiteza, desglorifiquei-me no

falecimento. Me faltou cerimônia e tradição quando me enterraram.

(COUTO, 2003, p.11).

Ao se posicionar na condição de morto, e utilizar “sou”, em vez de “estou”, o

narrador deixa entrever em torno de si um estado que aparenta ser imutável, pois

apresenta-se como falecido, fala como se fosse um finado. No entanto, sua

apresentação não dá conta de um projeto maior, que é narrar sua estória e as de

outros personagens, no corpo de outra pessoa.

Na perspectiva benjaminiana, evidencia-se no excerto acima, um acervo de

experiência, atualizado no contar, que comporta também a experiência alheia, em

grande parte vivenciada pelo ouvido, e mais, pela visão. O leitor-ouvinte pode inferir

que a cerimônia a que lhe faltou em seu enterro é parte de sua estória: marca que

ele atualiza na narrativa e motivo de sua diferenciação como sujeito, pois na sua

experiência de ver e ouvir, a cerimônia de enterro é considerada passaporte para

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uma morte digna de acesso aos antepassados. Nesse sentido, o narrador significa

sua experiência no contar, a simbologia do enterro torna-se um dos motes para um

“retorno” à vida.

Falecido, o narrador não somente é enterrado sem cerimônia, mas perde a

identidade. Em contrapartida, se pensarmos que ele evoca fatos de sua vida através

da memória, podemos inferir que ele busca trazer aquela identidade “perdida”,

anulada em seu enterro. Vislumbra-se, então, uma morte duplicada, a do sujeito que

viveu seguindo a cartilha do sistema colonial, e a morte do sujeito carente de um

enterro digno. Entretanto, instala-se nessa morte, outra tensão. Se o narrador-autor

não teve o devido enterro, sob a perspectiva da tradição africana, não morreu, nem

está vivo. Mas quem narra, pode se dizer, é sua própria alma que se encontra a

vagar, justamente porque não ascendeu a outro nível de existência, a dos seus

ancestrais.

Não podemos nos esquecer de que, a estória deste romance tem como

matéria prima a experiência de guerra e suas conseqüências, vivenciadas pelo povo

moçambicano. Desse modo, é natural que se perceba, na fala do narrador, uma

indefinição quanto a sua identidade. Ana Mafalda Leite, a esse respeito, diz:

Um dos grandes temas é, sem dúvida, a guerra civil, a miséria e a

fome, provocadas em muitos anos de sofrimento, e a

despersonalização das personagens, as destruição dos laços

clânicos e a necessidade de fugirem e se refugiarem em outras

zonas. Em simultâneo, o avivar das crenças e dos valores animistas,

como último recurso para a esperança (LEITE, 2003, p. 90)

Em A Varanda é evidenciada essa problemática em torno do narrador. A

existência do autor fictício deste romance é autorizada, desde que ele incorpore na

pessoa em um vivente. Temos, assim, um corpo em trânsito, na busca de um corpo

físico que lhe possibilite narrar sua estória, colocar e tirar outras personagens da

cena, ou seja, jogar com suas estratégias narrativas na função de condutor da

trama.

Outro mote para esta busca de um corpo-suporte, além de seu enterro sem

os preceitos da tradição, é o fato do narrador querer se ver livre do objetivo dos

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integrantes do governo de fazê-lo herói e símbolo de resistência da luta pela

libertação do país, como se vê a seguir:

(...) o que esgravatava aquela gente, avivando assim a minha morte?

Espreitei entre as vozes e entendi: os governantes me queriam

transformar num herói nacional. Me embrulhavam em glória. Já

tinham posto a correr que eu morrera em combate contra o ocupante

colonial. Agora queriam os meus restos mortais. Ou melhor, os

meus restos imortais. Precisavam de um herói mas não qualquer

um. Careciam de um da minha raça, tribo e região. (COUTO, 2003,

p. 13-14)

Na fala da personagem percebe-se uma consideração reflexiva, qual num

monólogo. Percebe-se, também, o indício de um gesto de retomada, como está

presente na citação gesto-vocal acima: “Ou melhor”, pois ainda existe uma

indefinição entre quem ele foi e quem ele é, no momento que conta sua estória.

Gesto que indica oralidade, marcada pela retomada do narrar: a existência ficcional

lhe permite retomar a fala, fazer pausa, ouvir, ser didático na descrição.

Além disso, o leitor já apreende que não é “qualquer um” que poderia ser um

bom exemplar para tornar-se símbolo de um passado calcado pelas lutas dos

nativos a favor da libertação do país: indicia-se um gesto vocal que mostra mais do

que se pode parecer na apresentação do narrador. A conjunção adversativa “mas”,

dá força e autoridade ao narrador e a sua estória.

Decidido a não ceder a tal objetivo, o narrador recorre ao Pangolin: “Certo era

que eu não tinha apetência para herói póstumo. A condecoração devia ser evitada,

custasse os olhos e a cara” (COUTO, 2003 p. 15).

Quando o narrador resiste em ser transformado em herói nacional, propõe-se

a contar seus feitos, dá vida à narrativa, pois seu corpo memorioso se presentifica,

no texto, para falar da sua estória e trazer junto consigo várias vozes condenadas ao

silêncio. Na voz do narrador-autor, a memória é atualizada pela escrita e pode ser

apreendida pelo ouvinte.

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Ao consultar o pangolim, é aconselhado “a retornar ao mundo dos viventes”

por seis dias na pessoa de um investigador de polícia. A princípio hesitante, o

narrador aceita tornar-se um “passa-noite”. Hesita, mas aceita.

Da prisão da cova eu transitava para a prisão do corpo. Eu estava

interdito de tocar a vida, receber directamente o sopro dos ventos.

De meu recanto eu veria o mundo translucidar, ilúcido. (COUTO,

2003, p. 17)

A prisão do corpo torna-se espaço de intercambio entre perspectivas, uma

vez que o olhar do narrador, por vezes, é contaminado pelas ações do policial.

A percepção e expectativa de estrear no corpo do policial são carregadas de

sonhos e vislumbre de uma cerimônia digna, após a futura estada de seis dias no

corpo do policial encarregado da ivestigação.

Me enchi tanto dessa vontade que até sonhei sem chuva sem noite.

O que sonhei? Sonhei que me enterravam devidamente, como

manda nossas crenças. Eu falecia sentado, queixo na varanda dos

joelhos. Descia à terra nessa posição, meu corpo se assentava

sobre a areia que havia retirado de um morro muchém. Areia viva,

povoada de andanças. (COUTO, 2003, p. 17)

O gesto vocal do narrador, interrogativo, indicia um monólogo no qual o

narrador divaga sobre a possibilidade de um enterro digno. No entanto, não faz

essas pergunta diretamente ao ouvinte. Vislumbra tal possibilidade vocalmente, mas

não somente pra si: ele utiliza a voz e indica corporeamente que a posição na qual

se encontrava no sonho é a que ele agora mostra, através do dêitico “nessa”,

conforme a citação. Habitar o corpo do policial durante seis dias, significa um ritual

para uma morte digna.

Segundo Walter Benjamin, em O Narrador, “a narração, em seu aspecto

sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração,

a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do

trabalho...”. (BENJAMIN, 1994, p. 221). Sob essa perspectiva, nesses trechos

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introdutórios da narração, já se indiciam alguns traços do que se caracteriza a

vocalidade: gesto, voz e gradação de tons na enunciação.

Depois do sonho, Ermelino Mucanga aceita a sugestão do pangolim, e estréia

no mundo dos viventes. Situa o ouvinte a respeito da pessoa que ele “habita”.

Este homem que estou ocupando é um tal Izidine Naíta, inspector

de polícia. Sua profissão é avizinhada aos cães; fareja culpa onde cai

sangue. Estou num canto de sua alma, espreito-lhe com cuidado

para não atrapalhar os dentros dele. Vou com ele, vou nele, vou

ele. Falo com quem ele fala. Desejo quem ele deseja. Sonho

quem ele sonha. (COUTO, 2003 p. 21)

Assim, numa busca pela unidade, o narrador presentifica-se em outro corpo.

Torna-se, então, dois corpos reunidos num só, dotados de percepções diferentes.

Se havia um narrador em espírito, a vagar, vislumbramos, agora, no excerto acima,

um encontro do narrador com o corpo em falta. Agora, assumindo os próprios gestos

do policial. O narrador sente seus movimentos: são dois em um. Ora o narrador se

ausenta e deixa o policial em cena, ou então aparece para tecer comentários ou,

numa focalização externa, fala sobre o corpo que está habitando .

Percebe-se, também, que a voz do narrador relata o acontecimento no tempo

em que ele ocorre, dentro da circunstância da narração. Não se vê, por exemplo, o

predomínio dos verbos no passado, mas falas que indicam um tempo do acontecer

narrativo. Indicia-se aí, um gesto de oralidade, pois sabe-se que o fato narrado é

anterior ao momento da narrativa, tanto que podemos perceber os dois momentos

no excerto abaixo, o momento presentificante, e o outro, na lembrança de sua

experiência vivida e atualizada na narração.

Vou no gesto do homem ao abrir uma pasta cheia de dactilografias.

Na capa está escrito Dossier. Vê-se uma fotografia. Izidine pergunta

em voz alta, apontando a imagem:

- Este era Vasto Excelêncio?

- Posso ver melhor?

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Olho nossa companheira de viagem, sentada no banco de trás do

helicóptero. Fico com pena de não ter ocupado de ocupar esse outro

corpo. Marta Gimo era mulher de se olhar e lamber com os olhos.

(COUTO, 2003, p. 22)

No corpo do policial, o narrador deseja Marta Gimo. Se antes a fala se dá

num tempo que indica o acontecimento, a retomada na lembrança de Marta Gimo

faz com que ele perceba que melhor teria sido se habitasse o corpo dela, em vez do

corpo do policial.

Se acima temos uma retomada que indicia um “flash” na memória do

narrador, ao preferir o corpo de Marta Gimo, em outra fala, ele mostra os planos do

investigador para desvendar a morte de Vasto Excelêncio, deixando mais complexo

o tempo da narrativa, vale a pena retomar o excerto que já mencionamos em outra

ocasião:

Izidine Tinha um plano: entrevistaria, em cada noite, um dos velhos

sobreviventes. De dia procederia a investigação no terreno. Depois

do jantar, se sentaria junto à fogueira a escutar o testemunho de

cada um. Na manhã seguinte anotaria tudo o que escutara na

anterior noite. Assim, surgiu um pequeno livro de notas, este

caderno com a letra do inspector fixando as falas dos mais velhos e

que eu levo agora comigo para o fundo da minha sepultura. (2003,

p. 26-27)

Ao indicar o modo como ocorrerá a investigação, o narrador antecipa o

instante da narração que se dará somente no final do romance: é o momento em

que ele retorna à sepultura. Como detém a estória, joga com o leitor-ouvinte num

gesto de mostrar ao leitor antecipadamente o resultado de um trabalho investigativo.

Com isso, o leitor-ouvinte, co-autor, acompanha o gesto indicativo do narrador ao

mostrar o caderno de anotações. No momento dessa fala, percebe-se uma pausa no

relato da estória. Pausa que contempla uma intensificação da presença do narrador.

Nesse ponto, ele coloca em suspense o que ainda virá no final da estória: como se

deu a investigação e o que se conseguiu registrar no caderno, a partir dos

depoimentos dos velhos. Evidencia-se, então, um ato performático: não basta a voz,

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mas os gestos, o tom do que foi dito, e até o inusitado da fala num momento

inesperado da narração. A demarcação entre passado presente e futuro se dilui no

ato da narração, causando um “choque” estético no ouvinte-leitor.

Se antes há a predominância do narrador-autor na estória, do terceiro capítulo

em diante inicia-se uma intercalação em que: ora predomina a fala do depoente, um

dos velhos do asilo que conta sua estória paralelamente dentro do romance; ora o

narrador-autor retorna, relatando cada um dos seis dias “nos viventes”; ora tece

comentários sobre sua vida ou de suas sensações no corpo do investigador.

Nessa perspectiva, temos, no terceiro capítulo, o depoimento de Navaia

Caetano, que abruptamente (a partir de uma das raras perguntas que o policial faz

aos seus interlocutores investigados) aparece na cena: “Quem, eu? Mexer-lhe nas

suas coisas? O senhor pode inquirir em todos: não mexi nem toquei na sua mala.

Não eu, Navaia Caetano. Não vou dizer quem foi. A boca fala mas não aponta”

(2003, p. 27). Nesse excerto, embora não se tenha o perfil de Navaia Caetano, nota-

se que, no tom em que fala, indica ao policial que este não está a ouvindo qualquer

um, mas ele, Navaia Caetano. Essa assertividade lhe permitirá contar sua “outra

verdade, ainda mais parecida com a realidade” (2003, p. 28).

O tom de Navaia Caetano indica a presença de um narrador, que se

posiciona e exige respeito. Em outros momentos de sua estória, aconselha o policial,

como podemos ver nesse excerto:

O silêncio é que fabrica as janelas por onde o mundo se

transparenta. Não escreva, deixe o caderno no chão. Se comporte

como água no vidro. Quem é gota sempre pinga, quem é cacimbo se

evapora. Neste asilo, o senhor se aumente de muita orelha. É que

nós aqui vivemos muito oralmente. (2003, p. 28)

Percebe-se que, essa personagem tenta traduzir o modo como aqueles

moradores do asilo vêem a força da palavra: ela não precisa ser realmente anotada,

mas ouvida e compreendida, numa extensão de que a palavra é a força motriz

daquela comunidade.

Em outra passagem, sem que fosse interrompido ou questionado, Navaia

Caetano interrompe sua fala e se dirige ao policial para justificar a demora em entrar

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nos detalhes que o levaram a matar Vasto Excelêncio: “Calma, inspector, estou

chegando a mim. Não se lembra como falei? Nasci em corpito frágil, sempre

dispensado da sede.” (2003, p. 30). Percebe-se, assim, mesmo sem a descrição da

reação do policial diante do posicionamento de Navaia, um gesto de aprovação para

que Navaia continuasse a narrativa. Nesse sentido, o policial, como interlocutor, não

responde com a voz, mas com o silêncio, o corpo e o olhar. Indicia-se, assim, uma

concordância do policial com aquele conselho dado por Navaia Caetano, pois,

aparentemente, sua presença se dá apenas com o ouvido. Caracteriza-se, assim,

que: “cada réplica, por mais breve e fragmentada que seja, possui uma

conclusibilidade específica ao exprimir certa posição do falante que suscita uma

resposta, em relação à qual se pode assumir uma posição responsiva” (BAKHTIN,

2003, p. 275).

Domingos Mourão, por exemplo, abre e fecha o quinto capítulo, sem ao

menos uma fala do policial interlocutor se apresentar nesta cena. Como fez Navaia

Caetano em seu depoimento, Domingos Mourão também interrompe sua estória, dá

conselhos, pede desculpas:

Desculpe esse meu português, já nem sei que língua que falo, tenho

a gramática toda suja, da cor dessa terra. Não é só o falar que é já

outro. É o pensar inspector. Até o velho Nhonhoso se entristece do

modo como eu me desaportuguesei.(2003, p. 48)

Os narradores falam de suas biografias e de suas vidas no asilo. Por meio de

suas vozes é possível compor um mosaico de vidas que tentam provar o

assassinato do policial. Esses narradores vêem nos depoimentos a possibilidade de

falar, sem ser interrompidos; por isso se policiam, pedem desculpas, temem estar

sendo inconvenientes, diante de gestos que indicam um interlocutor apreensivo por

informações concretas para o desvendamento do crime. Na oportunidade do

depoimento, trazem elementos de suas experiências, da tradição, de suas estórias

em processo de emudecimento. Também inventam. Todos os narradores-depoentes

objetivam provar ao policial que teria sido ele o assassino do diretor.

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Domingos Mourão, por exemplo, fala de África e do asilo como espaços

passíveis de mutação de identidade. Depois, volta ao relato em si sobre como

chegou no asilo, como se vê:

Hoje eu sei: África rouba-nos o ser. E nos vaza de maneira inversa:

enchendo-nos de alma. Por isso, ainda hoje me apetece lançar fogo

nesses campos. Para que eles percam a eternidade. Para que saiam

de mim. É que estou tão desterrado, que já não me sinto longe de

nada, nem afastado de ninguém. Me entreguei a esse país como se

converte a uma religião....Volto a minha história, não se preocupe.

Estava onde? Na despedida de minha esposa. (2003, p. 49)

Ainda a respeito da fala de Domingos Mourão e seu amor por África, como se

ele tivesse transitado de identidade, vale à pena registrar que, de fato, a experiência

de alguns portugueses em África passa por esse encantamento pelo continente. O

próprio Mia Couto relata em entrevista esse fenômeno, do ponto de vista do

processo criativo:

Eu, quando escrevo, na minha cabeça, estou construindo

personagens, e obviamente que são negros, quase todos eles, a não

ser que eu identifique-me de outra maneira. Porque este é o meu

mundo, é o mundo que eu vivi, que eu nasci e, por osmose, quando

chego à Europa fico admirado primeiro por uma sensação de ver

tantos brancos. È a primeira reação que eu tenho, de que não estou

no meu lugar, porque há muitos brancos. Então, naturalmente na

minha cabeça, quando construo um personagem, ele surge negro,

porque sou moçambicano.9

Desse ponto de vista, podemos inferir que Mia Couto, branco, filho de

portugueses, mesmo nascido em Moçambique, se apresenta na voz do português

Domingos Mourão, pintando suas narrativas com a cor local. A respeito desses dois

planos presentes no discurso: do narrador e, possivelmente do autor, diz Bakhtin:

9 Disponível em: <http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/1393,3.shl>. Acesso em: 20 dez. 2008

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O autor se realiza e realiza o seu ponto de vista não só no narrador,

no seu discurso ou na linguagem (que, num grau mais ou menos

elevado, são objetivos evidenciados), mas também no objeto da

narração, e também realiza o ponto de vista do narrador. Por trás do

relato do narrador nós lemos um segundo relato, o relato do autor

sobre o que narra o narrador. (BAKHTIN, 1988, p. 118)

Já vimos as falas de Navaia Caetano e do português Domingos Mourão,

como depoentes. Vejamos agora um momento de ludicidade, presente no relato de

Nhonhoso, no qual este relata uma ocasião em que estava junto com Navaia

Caetano e viviam um momento de descontração:

(...) Quando eu já acreditava que ele dormisse ainda lhe ouvi: -

Nhonhoso, está sonecar? - Ainda. O que se passa, meu irmão? -É

uma coisa que nunca encontrei ocasião de dizer. É que nós, brancos,

parece temos as pilas pequenas. -Também ouvi dizer assim, mostra

lá a sua, Xindimingo. Está maluco? Não posso mostrar. Depois de

uma pausa ele disse: você se quer, espreita - É verdade, confirmei. –

É verdade como? – É quase um bocadinho pequena. (2003, p. 70)

Nesse excerto, evidencia-se aquela já mencionada autonomia da estória dos

depoentes. Na atualização de suas vivências, perante o policial, aparentemente

ausente, o narrador-depoente encena o que foi dito numa conversa com outro

personagem da estória, Navaia Caetano.

O policial ouve o relato e a ilustração das experiências vivenciadas por

Nhonhoso no asilo. Em outra perspectiva, encontra-se o leitor, que, junto com o

policial, mais parece visualizar o que está sendo relatado pelo narrador-depoente.

Nesse sentido, vivenciam a performance gesto-vocal do velho que narra, o leitor, e o

policial. E o narrador-autor, estaria ele também nesse campo discursivo? Sim. Nessa

espacialidade discursiva as perspectivas são focadas de diversos ângulos. O

policial, atento à estória; o ouvinte; também acompanhando o gesto do depoente; e

o narrador-autor, que, mesmo não opinando, calado, está presente naquele

momento, pois encontra-se incorporado no policial. O leitor, privilegiado por perceber

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essa informação, torna-se possuidor de um campo de visão maior daquela

espacialidade discursiva.

Vale à pena ressaltar que não se escolheu esse diálogo apenas baseado no

texto pelo texto; ou pelo aspecto lúdico do diálogo; ou dos gestos que se “vê”

naquela conversa, pois como se percebe, há elementos presentes naquele discurso

que somente são perceptíveis se o leitor-ouvinte participar ativamente das

experiências das personagens. Sendo assim, ocorre o “cruzamento de feixes e

informações, por deslocamento de perspectiva e de visada, a partir de um ponto de

vista intuitivamente escolhido” (ZUMTHOR, 1993, p. 221). Isto é, se num momento

temos o leitor-ouvinte num espaço privilegiado da cena, pois este sabe inclusive que

há um narrador-autor fora do enunciado, por outro lado, sob outro prisma, encontra-

se o narrador-autor, mais parecendo jogar com esse poder de aparecer e

desaparecer, de colocar o ouvinte sob suspense e de manipular a trama a seu

modo.

Evidentemente que esse fenômeno está presente no campo sensorial-virtual.

O leitor-ouvinte, peça do jogo utilizada pelo narrador-autor, percebe-se dentro do

jogo: ele vivencia a poesia do acontecimento. “realizando o não-dito do texto lido, o

leitor empenha sua própria palavra as energias vitais que a mantêm” (ZUMTHOR,

2000, p. 62). Ou seja, o silêncio do narrador-autor, o gesto de escuta por parte do

policial, em quase todos os depoimentos, pode ser percebido, na perspectiva de

Zumthor, como um acontecimento: silêncio que indica presença, olhares,

concordâncias e discordâncias, que ali se encontram, no não-dito do texto. Sendo

assim, o texto adquire uma sonoridade que também é vista, ouvida e percebida

tatilmente.

Já a confissão de Nãozinha, inicia-se com várias recomendações ao policial.

Por meio de sua apresentação, nota-se um ambiente feito de suspense.

Sou Nãozinha, a feiticeira. Minhas lembranças são custosas de

chamar. Não me peça para desenterrar passados. A serpente engole

a própria saliva? Tenho que falar, por sua obrigação? Está certo.

Mas fica a saber, senhor. Ninguém obedece senão em fingimento.

Não destine ordem em minha alma. Senão quem vai falar é só meu

corpo. (2003, p.81)

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Nãozinha, ao advertir o policial, como se alertasse do perigo que ele corre ao

obter seu depoimento, dá um tom em sua fala que indica o início de um ritual. Para

falar, antes de tudo, é preciso liberdade. A condição para que contasse a sua

“verdade” é a de que não houvesse coação. A permissão para sua estória ser

registrada no caderno do policial é dada se ele aceitar o fingimento na sua estória.

O investigador, também, torna-se confidente de Nãozinha, pois esta conta-lhe

algo que somente os velhos sabiam:

Os velhos daqui sabem, mais ninguém. Lhe conto agora, mas não é

para escrever nenhum lado. Escute bem: em cada noite eu me

converto em água, me transpasso em líquido. (...) Escorro,

liquidesfeita. (...) O senhor não me acredita? Me venha assistir,

então. Esta noite mesmo, depois desta conversa. Tem medo? Não

receie...(2003 p. 85)

Não estaria ela fingindo verdade? Há, nesta fala, indicativos de olhares

enviesados, gestos de desconfiança. Nãozinha, aparentemente desacreditada pelo

policial, o desafia a vê-la “aguando”. A depoente sinaliza que não está contando

mentiras, o tom em que diz: “escute bem”, indicia uma advertência de que sua

palavra é pautada pela verdade, como: “olha aqui!”: uma fala gestual em que o olhar

e o corpo intimidam mais que a palavra.

O policial torna-se, assim, detentor de um segredo que era apenas daquela

comunidade, mas não pode registrá-lo. Em A Varanda o mundo da escrita não é o

mundo da oralidade; indicia-se na fala de Nãozinha o impulso do policial por registrar

a todos os detalhes de seu depoimento, daí o alerta: “Lhe conto agora, mas não é

para escrever nenhum lado”. Desse modo, palavra, segredo, fingimento, água,

transmutação, corpo e voz parecem estar num mesmo campo conceitual, como se

fossem corpos indispensáveis para o ritual narrativo de Nãozinha.

Em outro momento do romance, o policial recebe a carta de Ernestina, nome

dado ao décimo capítulo. A carta, entregue ao policial pela enfermeira Marta,

apresenta diversas revelações. Ernestina, como já se sabe, foi esposa de Vasto

Excelêncio. Diz a narradora na carta: “Sou Ernestina, mulher de Vasto Excelêncio.

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Rectifico: viúva de Vasto. Redijo estas linhas na véspera de me levarem para a

cidade(...)”, em outro momento: “Escrevo esta carta, nem eu sei para quê, nem para

quem. Mas quero escrever, quero vencer esta muralha que me cerca.” (2003, p.

105). Traída pela memória, a narradora se dá conta da viuvez no ato da escrita.

Para ela, escrever é se livrar de um passado sofrível. Curiosamente, seu relato,

apesar de ser por meio da escrita, exibe uma estrutura bem próxima da estrutura

narrativa dos outros depoentes, narrativa vocal. Sendo assim, ler esta carta é

romper com a estruturação convencional do que se entende por carta: é ouvir um

relato, mediado pela escrita, como se o texto fosse feito para ser encenado. Como

vimos em sua fala, o relato permite, como num diálogo, a correção de uma

informação devido a um engano involuntário, parecendo que, onde ela diz:

“rectifico”, significasse: “quero dizer”. A carta permite uma textualidade semelhante

às dos depoimentos anteriores, como se fosse endereçada ao policial.

A narradora tece considerações, também, da experiência conjugal que teve

com Vasto Excelêncio, da corrupção, do ajudante, de Vasto, etc., e ao final de sua

carta, diz:

Pronto: já escuto as vozes dos que me vêm buscar. Vou fechar este

escrito, fechando-me eu nele. Esta é minha última carta. Antes, já

tinha deitado minha voz no silêncio. Agora, calo as mãos. Palavras

valem a pena se nos esperam encantamentos. (2003, p. 117)

Percebe-se, nesse excerto, no plano discursivo, a tensão entre oralidade e

escrita. A narradora faz diversas considerações sobre o próprio redigir. Ela tenta

explicar a motivação de tal redação. Apresenta, inclusive, um provérbio: “Palavras

valem a pena se nos esperam encantamentos”, como se fechasse sua narrativa

apresentando uma imagem mais ilustrativa sobre a força da palavra, o que dá mais

confiabilidade à carta.

Nessa perspectiva, entende-se que o objetivo de tal provérbio seria advertir

que a palavra somente tem validade se for constituída de um tom encantatório.

Sendo assim, aquele fingimento de Nãozinha, ou a ênfase dos demais narradores

na tentativa de provar que estão dizendo a verdade, indica que a veracidade da

poesia é outra.

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Na confissão da enfermeira Marta Gimo, a tônica de seu discurso está na

defesa dos velhos, pois estavam matando o “antigamente”. Para ela, a guerra é a

culpada da situação daquela decadência no asilo. No entanto, ela, educada como

assimilada, via naquele lugar a possibilidade de retorno às suas origens. Sempre em

defesa dos velhos, ela alerta o policial: “Vou-lhe dizer: estas histórias que você está

a registrar no seu caderno estão cheia de falsidades. Estes velhos mentem. E mais

irão mentir se você continuar a mostrar interesse neles. Há muito que ninguém lhes

dá importância.” (2003, p. 129-130) . Marta Gimo entende que a oportunidade dada

aos velhos para relatarem suas versões sobre o crime é, na verdade, um momento

em que eles darão “asas a imaginação”. Ao mentir, são rejuvenescidos por meio da

narração de suas estórias, pois, uma vez ouvidos, não importam se o que dizem é

verdade ou não. Ficção ou fato, não se pode perder as ocasiões de viver a

experiência de narrar.

No último capítulo, tal qual como abre o romance, o narrador-autor volta à

cena, agora com existência própria:

Nessa manhã, eu saí do corpo de Izidine Naíta. Rastreava assim,

minha própria matéria no mundo, fantasma de existência própria. A

luz imensa me invadiu assim que desencorpei do polícia. Primeiro,

tudo cintilou em milibrilhos. A claridade, aos poucos, se educou.

Olhei o mundo, tudo em volta se inaugurava. E murmurei, com a voz

já encharcada. – É a terra, a minha terra! (2003 p. 147)

O narrador não é mais aquele do início de sua estória, agora é detentor

daquelas estórias ouvidas. As mesmas que ele permitiu ser encenadas pelos

demais narradores. Cumpre-se, assim, o ritual de passagem. O carpinteiro-narrador-

autor, em vez da madeira rústica, trabalha com a palavra. Como vimos, ao mesmo

tempo em que estava à espreita, agia nos bastidores, permitindo os demais relatos

e, também, ouvindo. Nesse ponto, indicia-se um caminho para a finalização do

romance, como se da coxia viesse o narrador e se apresentasse em carne e osso ao

leitor-ouvinte e dissesse, “sou eu, o morto...sou como imaginava?”

O narrador, agora em corpo próprio, caminha para a finalização da estória.

Em meio a tempestades e fogos no céu, auxilia o policial a fugir da tormenta. A

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matéria corpórea do narrador metamorfoseia-se em árvore. A árvore do frangipani e

o narrador tornam-se um corpo só. Se o ritual lhe foi negado em seu enterro, agora

descansará em paz, já que os objetivos parecem ter sido alcançados: o de ter um

descanso digno e não tornar-se estátua.

Já em processo de “arvorificação”, o narrador, seguido por outros velhos,

ouve a voz de Navaia Caetano, e encerra a narrativa dizendo:

Aos poucos, vou perdendo a língua dos homens, tomado pelo

sotaque do chão. Na luminosa varanda deixo meu último sonho, a

árvore do frangipani. Vou ficando do som das pedras. Me deito mais

antigo que a terra. Daqui em diante, vou dormir mais quieto com a

morte. (2003, p. 152)

Assim, finaliza sua estória. Em mais uma metamorfose, o narrador torna-se

chão. Junto com ele vão outras estórias. O caderno de registros do policial e os

velhos agora são bibliotecas constituídas de palavra e voz. O sono tranqüilo do

narrador será traduzido em silêncio. Entre sonhos, imagens, silêncio, encontra-se o

leitor, como se estivesse diante de um espetáculo encerrado, de pé, aplaudindo a

performance do narrador.

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Considerações finais

Esta dissertação teve como objetivo a análise dos processos de narratividade

presentes em A Varanda do Frangipani, a partir dos pressupostos teóricos de Paul

Zumthor sobre o conceito de performance.

Percebemos, ao longo da pesquisa, que o fenômeno da performance no

romance não se dá somente na relação leitor-narrador. Sua ocorrência depende

mais do que está enviesado no trabalho literário. Desse modo, a performance é

resultado do efeito estético que ocorre na experiência de leitura do leitor frente ao

objeto artístico. Ou seja, há uma relação complexa que envolve o leitor, o narrador, o

autor e contexto ficcional. Relação esta que traz aspectos de performance no

resultado estético do objeto lido. Como já foi dito, não estamos falando em

performance in loco, mas num trabalho estético que virtualmente permite a recriação

de alguns elementos performáticos na circunstância do ler/ouvir.

O trabalho divide-se em três capítulos. A primeira parte, intitulada “Entre a

letra e a voz”, é subdividida em três momentos. Em “A palavra vocalizada: ler ou

ouvir?” discorre-se sobre o conceito de performance. Tal discussão trouxe à luz as

proposições do pensador Zumthor e os diversos fenômenos que compõem uma

cena virtualmente performática: ler também estaria para ouvir, embora entre a leitura

e a audição real haja níveis de intensidades diferentes. Em “A aproximação entre

leitor e narrador” é esboçada uma reflexão na qual indica que o leitor precisa estar

aberto à experiência estética para vivenciar a performance na circunstância da

narrativa. O efeito estético, que permite a percepção da voz indiciada no texto,

ocorre se o leitor-ouvinte de A Varanda estiver de “ouvidos abertos”. Depois, em

“Mia Couto e as escrevências inventosas” o percurso pela biografia literária de Mia

Couto visou discutir seu projeto estético e situá-lo no contexto de escritores

africanos de língua portuguesa. Constata-se que a transgressão lingüística no seu

projeto estético foi motivo de contestação, em parte da crítica literária moçambicana,

no entanto, essa mesma subversão faz dele o escritor mais lido de Moçambique e

um dos mais lidos fora deste país.

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No segundo capítulo, intitulado “A memória coletiva e a crítica”, é discutido em

“Faces em convergência: oralidade e escrita”, a diferença existente entre a cultura

oral e a cultura escrita. O processo mnemônico presente na cultura oral, primária,

difere, do ponto de vista cultural, de uma comunidade que tem acesso à escrita,

portanto, possuem dinâmicas diferentes. Em “Espaço do leitor-ouvinte e contador” é

apresentado o leitor frente ao narrador de A Varanda. Existe um não-tempo e um

não-lugar, que resulta num ponto de tensão entre letra e voz, assim, a lógica da

narrativa tem de ser vivenciada naquele contexto enunciativo. Finalizando esse

capítulo, em “O ‘entre-espaço’ como acontecimento poético”, o cenário de A

Varanda do Frangipani é tratado como espaço de acontecimento poético. A

transgressão no modo de narrar, a presença de elementos extraídos da cultura

africana, o uso de parábolas e a importância que se dá ao ouvir em A Varanda

evidenciam ainda mais o efeito poético da narração.

No terceiro capítulo, “Da voz que canta à palavra que narra”, é apresentado

em “A estória recontada como história” um resumo de A Varanda do Frangipani. Tal

resumo se faz necessário para esboçar o cenário em que as personagens

narradoras se encontram no romance. Em “A crítica”, são apresentados três estudos

sobre a produção literária de Mia Couto. Essas pesquisas abordam a obra de Mia

Couto, do ponto de vista da sociolingüística, da memória e da construção estética.

Constata-se que são pesquisas feitas em diferentes países de língua portuguesa,

por meio de diferentes metodologias, no entanto, nenhuma delas deixa de fazer

referência ao aspecto vocal na obra de Mia Couto. Por fim, em “Território de

mediação inventosa” rastrea-se gestos que indiciam vocalidade e performance na

estória narrada. Verifica-se que em A Varanda o acento utilizado pelos narradores é

que dá o tom performático à narração. A fala dos narradores é carregada de

repetição, retomada, lapsos, etc.

Inicialmente, pensamos o trabalho apenas em torno do conceito de

performance. A literatura de Mia Couto apresenta indícios de que a oralidade é a

discussão temática no romance, não só no tema, como, também, na experiência

vocal trazida pelo autor. O próprio fazer literário evidenciava um tratamento baseado

no aspecto vocal presente na fala das personagens. Preferimos não ficar a nível do

tema, mas concentrar-nos nos aspectos em que estava o não dito do discurso, no

qual, hipoteticamente, reside a vocalidade. Assim, o que inicialmente era para ser

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discutido sob o viés do perfomático, passou a evidenciar que o acontecimento

circunstancial no processo da leitura do texto coutiano é o que nos permite discutir o

efeito estético resultante da oralidade.

Debruçar sobre o texto de Mia Couto não é tarefa fácil. Evidentemente que

não contemplamos nesse trabalho outros fenômenos ainda vinculados à leitura que

fizemos, como, por exemplo, uma leitura linear de todo o texto de A Varanda. Mas, à

medida que fomos percebendo alguns indícios daquilo que foi colocado como norte

no início desta pesquisa, trouxemos para a nossa discussão, com o aporte teórico

de Zumthor, sempre com o objetivo de comprovar a hipótese inicial.

Também foi importante a fala de Mia Couto que, em diversas entrevistas fala

sobre sua formação como ouvinte de estórias, tanto da tradição como da leitura

atualizada de textos que trazem o encantamento da palavra vocalizada. Aliás, esse

foi um dos motes que nos levaram até Zumthor, definindo o norte de nossa

investigação.

O olhar de pesquisador passa pelo processo de seleção, ocorrências em que

esse olhar, amparado pela teoria, percebe os aspectos que hipoteticamente estavam

presentes na obra. O romance A varanda é fecundo por contemplar aquilo que, a

cada leitura, se torna uma novidade. Seja numa fala do narrador que traz uma

repetição ou uma imagem poética, ou naquele instante que um gesto indica um

movimento no contar. Nesse sentido, objetivou-se trazer aqueles indícios de

performance, na qual não se pode falar em distanciamento do sujeito pesquisador

sem ser, também, “ouvinte” do texto coutiano.

Nesse sentido, vimos que em diversos momentos o narrador joga com certa

ludicidade e conduz sua narrativa de maneira que aproxima o leitor de sua voz. Um

dos aspectos da ludicidade presente na narrativa, está no fato de se tratar de um

narrador morto, que volta e conta as estórias que vivenciou. Faz isso sem parecer

uma estória atualizada pela memória no ato do contar. Embora esteja contando

depois de morto, não é recorrente o uso do pretérito perfeito, mas o tom utilizado

pelo narrador indica gestos que fazem com que o leitor o acompanhe e se veja

diante de um romance que se realiza no contar, indicando a presença de um corpo

memorial, sensível, poético e vocal.

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A percepção do texto de Mia couto, na voz do narrador, configura ao leitor a

sensação de estar numa experiência estética de vozes e imagens. É o ofício poético

de Mia Couto que possibilita a nós, pesquisadores, adentrar nessa oratura e

vivenciar suas nuances na condição de ouvinte.

As possibilidades de leituras de A Varanda, não se esgotam aqui, nosso foco

foi, de certa maneira, mais direcionado ao narrador-principal. Os demais narradores

também tiveram vozes neste trabalho, no entanto, devido à complexidade e riqueza

de suas estórias, para contemplar outras nuances seria necessário uma atenção

maior àqueles discursos, tarefa que pode ser motivo de um futuro trabalho.

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