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Ministro Hahnemann Guimarães Memória Jurisprudencial Brasília 2010 Supremo Tribunal Federal

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Ministro Hahnemann GuimarãesMemória Jurisprudencial

Brasília2010

Supremo Tribunal Federal

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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Memória JurisprudencialMINISTRO HAHNEMANN GUIMARÃES

MARcOS AURéLIO PEREIRA VALADÃOBrasília

2010

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Diretoria-Geral Alcides Diniz da SilvaSecretaria de Documentação Janeth Aparecida Dias de MeloCoordenadoria de Divulgação de Jurisprudência Leide Maria Soares c orrêa c esar

Seção de Preparo de Publicações c íntia Machado Gonçalves SoaresSeção de Padronização e Revisão Rochelle QuitoSeção de Distribuição de Edições Maria c ristina Hilário da Silva

Diagramação: Eduardo Franco Dias e Ludmila AraujoCapa: Jorge Luis Villar PeresEdição: Supremo Tribunal Federal

Dados Internacionais de c atalogação na Publicação (c IP)(Supremo Tribunal Federal – Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal)

Valadão, Marcos Aurélio Pereira.Ministro Hahnemann Guimarães / Marcos Aurélio Pereira

Valadão. -- 1. ed. -- Brasília : Supremo Tribunal Federal, 2010.

420 p. -- (c oleção memória jurisprudencial ; 8)

ISBN 978-85-61435-17-2

1. Ministro do Supremo Tribunal Federal, discursos. 2. Tribunal supremo, Brasil. I. Título.

CDD-341.419104

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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Ministro Antonio cEZAR PELUSO (25-6-2003), PresidenteMinistro carlos Augusto AyRES de Freitas BRITTO (25-6-2003), Vice-PresidenteMinistro José cELSO DE MELLO Filho (17-8-1989)Ministro MARcO AURéLIO Mendes de Farias Mello (13-6-1990)Ministra ELLEN GRAcIE Northfleet (14-12-2000)Ministro GILMAR Ferreira MENDES (20-6-2002)Ministro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes (25-6-2003)Ministro EROS Roberto GRAU (30-6-2004)Ministro Enrique RIcARDO LEWANDOWSKI (16-3-2006)Ministra cÁRMEN LÚcIA Antunes Rocha (21-6-2006)Ministro José Antonio DIAS TOFFOLI (23-10-2009)

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Ministro Hahnemann Guimarães

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APRESENTAÇÃO

A constituição de 1988 retomou o processo democrático interrompido pelo período militar.

Na esteira desse novo ambiente institucional, a constituição significou uma renovada época.

Passamos para a busca de efetividade dos direitos no campo das pres-tações de natureza pública, como pelo respeito desses direitos no âmbito da sociedade civil.

é na calmaria institucional que se destaca a função do Poder Judiciário.é inegável sua importância como instrumento na concretização dos valo-

res expressos na carta Política e como faceta do Poder Público, em que os hori-zontes de defesa dos direitos individuais e coletivos se viabilizam.

O papel central na defesa dos direitos fundamentais não poderia ser alcançado sem a atuação decisiva do Supremo Tribunal Federal na construção da unidade e do prestígio de que goza hoje o Poder Judiciário.

A história do SUPREMO se confunde com a própria história de constru-ção do sistema republicano-democrático que temos atualmente e com a conso-lidação da função do próprio Poder Judiciário.

Esses quase 120 anos (desde a transformação do antigo Supremo Tribunal de Justiça no Supremo Tribunal Federal, em 28-2-1891) não significaram sim-plesmente uma seqüência de decisões de cunho protocolar.

Trata-se de uma importante seqüência político-jurídica da história nacio-nal em que a atuação institucional, por vários momentos, se confundiu com defesa intransigente de direitos e combate aos abusos do poder político.

Essa história foi escrita em períodos de tranqüilidade, mas houve tam-bém delicados momentos de verdadeiros regimes de exceção e resguardo da independência e da autonomia no exercício da função jurisdicional.

conhecer a história do SUPREMO é conhecer uma das dimensões do caminho político que trilhamos até aqui e que nos constituiu como cidadãos brasileiros em um regime constitucional democrático.

Entretanto, ao contrário do que a comunidade jurídica muitas vezes tende a enxergar, o SUPREMO não é — nem nunca foi — apenas um prédio, um ple-nário, uma decisão coletada no repertório oficial, uma jurisprudência.

O SUPREMO é formado por homens que, ao longo dos anos, abraçaram o munus publicum de se dedicarem ao resguardo dos direitos do cidadão e à defesa das instituições democráticas.

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conhecer os vários “perfis” do SUPREMO.Entender suas decisões e sua jurisprudência.Analisar as circunstâncias políticas e sociais que envolveram determi-

nado julgamento.Interpretar a história de fortalecimento da instituição.Tudo isso passa por conhecer os seus membros, os valores em que acre-

ditavam, os princípios que seguiam, a formação profissional e acadêmica que tiveram, a carreira jurídica ou política que trilharam.

Os protagonistas dessa história sempre foram, de uma forma ou de outra, colocados de lado em nome de uma imagem insensível e impessoal do Tribunal.

Vários desses homens públicos, muito embora tenham ajudado, de forma decisiva, a firmar institutos e instituições de nosso direito por meio de seus votos e manifestações, são desconhecidos do grande público e mesmo ignora-dos entre os juristas.

A injustiça dessa realidade não vem sem preço.O desconhecimento dessa história paralela também ajudou a formar uma

visão burocrática do Tribunal.Uma visão muito pouco crítica ou científica, além de não prestar homena-

gem aos Ministros que, no passado, dedicaram suas vidas na edificação de um regime democrático e na proteção de um Poder Judiciário forte e independente.

Por isso esta coleção, que ora se inicia, vem completar, finalmente, uma inaceitável lacuna em nossos estudos de direito constitucional e da própria for-mação do pensamento político brasileiro.

Ao longo das edições desta coletânea, o aluno de direito, o estudioso do direito, o professor, o advogado, enfim, o jurista poderá conhecer com mais pro-fundidade a vida e a obra dos membros do Supremo Tribunal Federal de ontem e consultar peças e julgados de suas carreiras como magistrados do Tribunal, que constituem trabalhos inestimáveis e valorosas contribuições no campo da interpretação constitucional.

As constituições Brasileiras (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988) consubstanciaram documentos orgânicos e vivos durante suas vigências.

Elas, ao mesmo tempo em que condicionaram os rumos político-insti-tucionais do país, também foram influenciadas pelos valores, pelas práticas e pelas circunstâncias políticas e sociais de cada um desses períodos.

Nesse sentido, não há como segmentar essa história sem entender a dinâ-mica própria dessas transformações.

Há que se compreender os contextos históricos em que estavam inseridas.

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Há que se conhecer a mentalidade dos homens que moldaram também essa realidade no âmbito do SUPREMO.

A constituição, nesse sentido, é um dado cultural e histórico, datada no tempo e localizada no espaço.

Exige, para ser compreendida, o conhecimento dos juristas e dos polí-ticos que tiveram papel determinante em cada um dos períodos constitucio-nais tanto no campo da elaboração legislativa como no campo jurisdicional de sua interpretação.

A constituição, por outro lado, não é um “pedaço de papel” na expressão empregada por FERDINAND LASSALE.

O sentido da constituição, em seus múltiplos significados, se renova e é constantemente redescoberto em processo de diálogo entre o momento do intér-prete e de sua pré-compreensão e o tempo do texto constitucional.

é a “espiral hermenêutica” de HANS GEORG GADAMER.O papel exercido pelos Ministros do SUPREMO, como intérpretes ofi-

ciais da constituição, sempre teve caráter fundamental.Se a interpretação é procedimento criativo e de natureza jurídico-polí-

tica, não é exagero dizer que o SUPREMO, ao longo de sua história, completou o trabalho dos poderes constituintes que se sucederam ao aditar conteúdo nor-mativo aos dispositivos da constituição.

Isso se fez na medida em que o Tribunal fixava pautas interpretativas e consolidava jurisprudências.

Não há dúvida, portanto, de que um estudo, de fato, aprofundado no campo da política judiciária e no âmbito do direito constitucional requer, como fonte primária, a delimitação do pensamento das autoridades que participaram, em primeiro plano, da montagem das linhas constitucionais fundamentais.

Nesse sentido, não há dúvida de que, por exemplo, o princípio federativo ou o princípio da separação dos Poderes, em larga medida, tiveram suas fron-teiras de entendimento fixadas pelo SUPREMO e pela carga valorativa que seus membros traziam de suas experiências profissionais.

Não é possível se compreender temas como “controle de constitucionali-dade”, “intervenção federal”, “processo legislativo” e outros tantos sem se saber quem foram as pessoas que examinaram esses problemas e que definiram as pautas hermenêuticas que, em regra, seguimos até hoje no trabalho contínuo da corte.

Por isso, esta coleção visa a recuperar a memória institucional, política e jurídica do SUPREMO.

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A idéia e a finalidade é trazer a vida, a obra e a contribuição dada por Ministros como cASTRO NUNES, OROZIMBO NONATO, VIcTOR NUNES LEAL e ALIOMAR BALEEIRO, além de outros.

A redescoberta do pensamento desses juristas contribuirá para a melhor compreensão de nossa história institucional.

contribuirá para o aprofundamento dos estudos de teoria constitucional no Brasil.

contribuirá, principalmente, para o resgate do pensamento jurídico-polí-tico brasileiro, que tantas vezes cedeu espaço para posições teóricas construídas alhures.

E, mais, demonstrará ser falaciosa a afirmação de que o SUPREMO deve ser um Tribunal da carreira da magistratura.

Nunca deverá ser capturado pelas corporações.

Brasília, março de 2006Ministro Nelson A. Jobim

Presidente do Supremo Tribunal Federal

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SUMáRIO

ABREVIATURAS 17DADOS BIOGRÁFIcOS 19NOTA DO AUTOR 211. HERMENÊUTIcA 25 Argumento a contrario sensu 25 Argumento histórico — Trabalhos preparatórios 25 Argumento histórico — Origem histórica da norma 27 Efeito repristinatório da constituição nova 272. cONTROLE ABSTRATO DE cONSTITUcIONALIDADE —

REPRESENTAÇÃO INTERVENTIVA 32 contextualização histórica 32 Representação 94/RS 36 Representação 97/PI 39 Representação 106/GO 43 Representação 111/AL 46 Representação 134/PA 48 Representação 322/GO 49 Atos do Poder Executivo estadual — Possibilidades de controle 503. ADMINISTRATIVO 52 Anulação de processo administrativo por ausência de requisitos legais 52 Demissibilidade de funcionário público nomeado — Direito à posse 53 Revogação de ato administrativo bilateral — Limites 56 Revogação de ato administrativo discricionário — Limites 584. DESAPROPRIAÇÃO 63 Valor da indenização 63 Honorários na desapropriação 675. QUORUM 71 A questão do quorum da maioria absoluta em Plenário 71 Voto médio 82

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6. TEMAS DIVERSOS DE DIREITO cIVIL 83 Alienação à concubina 83 Boa-fé do possuidor — conceito e efeitos 84 Fraude à lei 86 Indenização por dano moral 87 Insolvência — compensação de dívidas vencidas 88 Locação — Renovação, ônus da prova 90 Natureza dos juros moratórios 92 Natureza probante do Registro de Imóveis 93 Responsabilidade por ato ilícito de empregado 94 Simulação por interposta pessoa na venda de ascendente a

descendente — Prescrição 95 Sucessão — Liberdade do testar 977. cOMERcIAL 98 Execução de dívida pura 98 Falência — Prescrição de crime falimentar 99 Sigilo comercial e bancário 1008. OUTROS TEMAS DE DIREITO cONSTITUcIONAL 102 competência por prerrogativa de função — Dispositivo de

constituição estadual 102 Liberdade de associação — Mandado de segurança e habeas corpus 103 Liberdade de associação sindical 106 Liberdade de expressão e liberdade de cátedra 115 Liberdade de expressão política 119 Liberdade de imprensa 121 Liberdade religiosa e questões religiosas 124 Questões políticas e o STF 128 Responsabilidade do Estado — Limites indenizatórios 1349. EcONÔMIcO 139 Limites da intervenção do Estado 13910. ELEITORAL 142 cabimento de recurso constitucional (recurso extraordinário) 142 Natureza do mandato parlamentar 145

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11. EXPULSÃO 150 conceito de família 15012. EXTRADIÇÃO 153 Impossibilidade para o penalmente irresponsável à época do delito 15313. HABEAS CORPUS 154 Ilegitimidade de assistente para impugnar 154 conversão em diligência 15514. MANDADO DE SEGURANÇA 157 Uso indevido do instrumento processual 157 competência originária — Atos do Tribunal de contas da União 158 Descabimento contra lei em tese 161 Direito líquido e certo 168 Ação popular e mandado de segurança — Distinções e efeitos 17015. PENAL 176 conceito de bem público para efeitos penais 176 Extinção da punibilidade pelo casamento (corrupção de menores) 177 Prescrição penal — contagem no crime continuado 17916. PROcESSUAL cIVIL 181 cabimento de recurso extraordinário ao STF 181 Limites na execução da sentença 181 Leitura da sentença em data diversa daquela em que as partes

tiveram ciência 18417. PROcESSUAL PENAL 187 Ação penal privada subsidiária da pública 187 Aprovação das contas pela Assembléia Legislativa e competência

do Tribunal 188 competência — Distinção: crimes comuns militares e de

responsabilidade 192 competência por prerrogativa de função 195 conflito de jurisdição 196 crime político e competência do Tribunal do Júri 197 Distinção entre absolvição da instância penal e da ação penal 205 Nulidades — Representação sujeita a ratificação 206 Recorribilidade das decisões do Júri — Soberania dos veredictos 206

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18. PROcESSUAL DO TRABALHO 209 Afastabilidade do interesse da União em causas trabalhistas de

empresas da União 209 Princípio da identidade física do juiz 21019. TRABALHO 212 culpa grave e dolo para atribuição de responsabilidade 212 Demissão de administrador sindical e falta grave 213 Demissão por falta grave e participação em greve 214 Demissão por transferência do estabelecimento ou extinção

da empresa 215 Desconto de férias por falta ao trabalho 21720. TRIBUTÁRIO 219 Incidência do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis

Inter Vivos (ITBI) no exercício do direito de preempção em casode desapropriação 219

Isenção de tributo municipal por constituição estadual — Vedação 220 Taxa destinada à consolidação rodoviária do Rio Grande do Sul —

Validade 221 Imunidade tributária recíproca — Limites 222 Imposto sobre Vendas e consignações — Bonificação recebida,

quando da liquidação do contrato de câmbio: não-incidência 223 Tributação e intervenção no domínio econômico 224 Limite da constituição estadual em relação aos tributos municipais 225 Tratado internacional — conflito com legislação nacional 226NOTAS SOBRE O PENSAMENTO JURÍDIcO E A TécNIcA DEcISIONAL EM HAHNEMANN GUIMARÃES 227 Princípios e valores 229 Sobre a família e o divórcio 231 Notas sobre a técnica decisional 232 Sobre a jurisprudência 233 Sobre princípios e regras 233 Da precisão dos conceitos 234 Outros aspectos 235 Da coragem e do discernimento 235 Estilo 235

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FRASES E cONTEXTOS 236 Sobre a atuação do STF 236 Temas diversos 236REFERÊNcIAS 239WEBSITES cONSULTADOS 242APÊNDIcE 243ÍNDIcE NUMéRIcO 419

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ABREVIATURAS

Aci Apelação cívelAcr Apelação criminalADI Ação Direta de InconstitucionalidadeAI Agravo de InstrumentoAR Ação RescisóriacEXIM carteira de Exportação e Importação do Banco do BrasilcJ conflito de Jurisdiçãocc código civilcLT consolidação das Leis do TrabalhocP código PenalcPc código de Processo civilcPP código de Processo PenalED Embargos de DeclaraçãoExt ExtradiçãoHc Habeas CorpusInq InquéritoIVc Imposto sobre Vendas e consignaçõesITBI Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis Inter VivosMS Mandado de SegurançaOAB Ordem dos Advogados do BrasilPPE Prisão Preventiva para ExtradiçãoRc Recurso criminalRE Recurso ExtraordinárioRHc Recurso em Habeas CorpusRMS Recurso em Mandado de SegurançaRp RepresentaçãoSE Sentença Estrangeira STF Supremo Tribunal FederalTFR Tribunal Federal de Recursos TSE Tribunal Superior EleitoralTST Tribunal Superior do Trabalho

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DADOS BIOGRáFICOS

HAHNEMANN GUIMARÃES nasceu em 27 de novembro de 1901, na cidade do Rio de Janeiro. Era filho de Norival Guimarães e de D. Rosa Maria Amares Guimarães.

cursou o Externato Pedro II, de 1914 a 1917, formando-se em Direito, na antiga Universidade do Rio de Janeiro, em 1923.

Ainda estudante de Direito, lecionou no colégio do Professor Accioly, revelando-se exímio latinista e conquistando, em 1926, por concurso, o lugar de Professor catedrático de Latim do colégio Pedro II. Na época escreveu duas teses: Epigrafia latina e Comentariola métrica.

Obteve a docência livre de Direito Romano da Faculdade do Rio de Janeiro, por concurso, em 1931, e, da mesma forma, a cátedra de Direito civil, em 1933. Defendeu, então, as teses Da revogação dos atos praticados em fraude de credores segundo o direito romano e Estudos sobre a gestão de negócios.

Representou o País em vários congressos e conferências internacionais, entre os quais, a conferência Internacional de Ensino Superior (Paris — 1937); cinqüentenário do Tratado de Direito Internacional Privado (Montevidéu — 1940), tendo chefiado a delegação brasileira ao congresso Internacional de Aeronáutica civil (chicago — 1944).

Integrou a comissão Revisora do código civil, que elaborou o Anteprojeto do código das Obrigações, e participou da comissão elaboradora do Projeto de Lei de Falências, da comissão do Projeto de Lei de Supressão da Enfiteuse e da comissão da Lei Eleitoral, juntamente com José Linhares, Lafayette de Andrada, Edgard costa e Sampaio Dória, baixada com Decreto-Lei 7.586, de 28 de maio de 1945.

Exerceu os cargos de consultor-Geral da República, de 13 de maio de 1941 a 17 de maio de 1945, e Procurador-Geral da República, de 22 de maio de 1945 a 31 de janeiro de 1946.

Nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, por decreto de 24 de outubro de 1946, do Presidente Eurico Gaspar Dutra, para a vaga decorrente do falecimento do Ministro Waldemar cromwell do Rego Falcão, tomou posse em 30 do mesmo mês.

Juiz Efetivo do Tribunal Superior Eleitoral, exerceu a vice-presidência daquele órgão, no período de 19 de outubro de 1950 a 21 de janeiro de 1953.

Em sessão de 7 de dezembro de 1966, foi eleito Presidente do Supremo Tribunal Federal, não aceitando o cargo por motivo de seu estado de saúde.

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O Ministro Gonçalves de Oliveira, no exercício da presidência da corte, procedeu, na sessão de 20 de setembro de 1967, à leitura da carta em que o Ministro Hahnemann Guimarães se despedia do Tribunal em razão de doença. Recebeu homenagem em sessão de 27 seguinte, quando falou em nome de seus pares o Ministro Victor Nunes; pela Procuradoria-Geral da República, o Prof. Haroldo Valladão; pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, o Dr. Heráclito Sobral Pinto; pela Ordem dos Advogados do Brasil — Seção do Distrito Federal, o Dr. Oswaldo Rocha Mello; e, pela Universidade de São Paulo e Faculdade de Direito de São Paulo, o Prof. Miguel Reale. Foi aposentado por decreto de 3 de outubro de 1967.

Além das obras anteriormente mencionadas, foram publicados em volume os Pareceres do Consultor-Geral da República, 1946-1950, e inúmeros estudos, artigos e conferências divulgados em periódicos especializados.

Faleceu na cidade do Rio de Janeiro, em 13 de abril de 1980, sendo reve-renciada a sua memória em sessão de 26 de maio seguinte, quando falou pela corte o Ministro Xavier de Albuquerque; pelo Ministério Público Federal, o Dr. Firmino Ferreira Paz; e, pelo conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o Ministro Victor Nunes Leal.

Era casado com D. Elza de Sá Guimarães, que, após o falecimento do marido, doou os livros de sua biblioteca ao Supremo Tribunal Federal.

Dados biográficos extraídos da obra Supremo Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal: da-dos biográficos (1828-2001), de Laurenio Lago. Este texto também pode ser encontrado no sítio do Supremo Tribunal Federal na Internet.

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NOTA DO AUTOR

Foi com grande satisfação e muita honra que recebi o convite do Supremo Tribunal Federal, por seu Presidente, o Ministro Gilmar Mendes, para incum-bir-me do volume dedicado ao Ministro Hahnemann Guimarães, dando conti-nuidade ao projeto Memória Jurisprudencial, iniciado pelo próprio Ministro Gilmar Mendes e pelo Ministro Nelson Jobim, à época em exercício no STF.

O Ministro Hahnemann Guimarães atuou no STF de 30 de outubro de 1946, data de sua posse, a 3 de outubro de 1967, quando se aposentou. Durante sua per-manência, o ordenamento jurídico brasileiro esteve sob a constituição de 1946, exceto pelo curto período entre 15 de março de 1967, data da entrada em vigor da constituição de 1967, e a data da aposentadoria do Ministro, seis meses depois.

De observar que a competência do STF, durante o período em que o Ministro Hahnemann Guimarães lá esteve, era mais ampla do que a vigente, que a constituição de 1988 lhe confere. A competência recursal absorvia, em muitas situações, a matéria federal, não constitucional, que hoje é competência do STJ. Assim, muitos casos analisados nesta obra que dizem respeito a matéria não constitucional não são mais da competência originária do STF.

O Ministro Hahnemann Guimarães era extremamente zeloso na análise da admissibilidade dos recursos. Inúmeras vezes garantiu o não-conhecimento deles e até reverteu votos de Relatores com o argumento simples, mas funda-mental, de que não se enquadrava no texto legal o permissivo para o cabimento do recurso. Era, também, muito cioso das competências do STF. Hahnemann Guimarães discordava da tese de Pedro Lessa de que o STF era uma terceira instância,1 pois considerava o Tribunal uma instância extraordinária.

caracterizavam a atividade jurisdicional de Hahnemann Guimarães, de um lado, a análise minuciosa da jurisprudência — a qual em geral acom-panhava, tergiversando apenas quando cabiam mudanças após abalizada opi-nião — e, de outro, o estudo detalhado dos textos legais em discussão. Essas características do Ministro serão, a seu tempo, notadas pelo leitor, quando da leitura das decisões por ele prolatadas e aqui transcritas.

Embora procurasse seguir a jurisprudência, eventualmente Hahnemann Guimarães mantinha-se fiel ao seu entendimento sobre a matéria, sem alterar seu voto, mesmo após a mudança da jurisprudência. Isso configurava espécie de “teimosia hermenêutica”, justificada, certamente, pela firme convicção de que seu raciocínio jurídico estava correto. Porém, o Ministro não se furtava a mudar de opinião quando convencido, e o fazia publicamente durante a própria

1 RE eleitoral 11.682/AM, de 13-8-1947, Rel. Min. Laudo de camargo.

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sessão de julgamento. Esses dois aspectos aparentemente contraditórios, na ver-dade, são a marca dos grandes juízes, entre os quais se encontra Hahnemann Guimarães: firmeza e certeza das convicções, para mantê-las até o fim; e altivez e humildade, para reconhecer que pode errar, e nesse caso, sobranceiramente, voltar atrás e retificar sua opinião.

O Ministro Hahnemann Guimarães nutria simpatia pelo pensamento positivista de Auguste comte.2 Porém, há que diferenciar positivismo filosófico e sociológico de positivismo jurídico. Hahnemann Guimarães viveu em uma época em que o positivismo jurídico predominava no Brasil, disso não diferiu para mais nem para menos do seu ambiente, porém, sem dúvida, deu demons-trações, ao longo de sua história jurisprudencial, e nos textos que escreveu, de que a sua técnica jurídica dependia da moral.

A respeito da forma como o presente volume foi planejado e executado, diga-se de antemão que foi uma tarefa consumidora de tempo, comportando a análise de mais de 10 mil julgados e a seleção daqueles que, na visão do autor, representam a linha decisória de um grande Ministro. Foram selecionados alguns temas em que o Juiz se concentrou mais e outros em função de sua importância, tanto no contexto histórico, quanto no contexto jurisprudencial, em termos de repercussão futura, o que contempla votos vencidos e obter dicta.

Importante salientar que, na distribuição dos temas, foi necessário organizá-los por tópicos. contudo, alguns desses tópicos poderiam constar de outra divisão, ou mesmo de duas. Assim, por exemplo, o tópico das inde-nizações consta como subdivisão do Direito civil (o Ministro Hahnemann Guimarães era um civilista de origem)3, mas também consta como subdivisão de constitucional, considerando os casos em que o dever de indenizar do Estado tem ou teria supedâneo constitucional. Questões sobre a responsabilidade do Estado, que impliquem indenização, conquanto fossem enquadradas à época dos julgamentos como matéria tipicamente do Direito civil, foram alocadas como matéria de Direito constitucional, na medida em que a constitucionaliza-ção mais detalhada da matéria atraiu o tema para esta seara do Direito. Noutro giro, tópicos processuais por vezes dão ensejo a questões de mérito (no sentido

2 conferir em GUIMARÃRES, Hahnemann. Juristas, sociólogos e moralistas. Arquivos do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, 9 out. 1944, p. 10. Hahnemann Guimarães publicou também na revista Época, dirigida por um grupo de positivistas.3 Hahnemann Guimarães publicou obras de Direito civil sobre temas como fraude a credo-res, o Direito civil na guerra, divórcio e também um interessante parecer sobre o anteprojeto de código de Obrigações (Revogação dos actos praticados em fraude a credores, segundo o Direito Romano. Rio de Janeiro: Tip. D A Encadernadora, 1930; Estudo comparativo do antepro-jeto do código de Obrigações e do Direito vigente. Arquivos do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, 3 out. 1943; O Direito Civil na guerra: atos da vida civil — requisições civis. Rio de Janeiro: Gab. Fotocartográfico, 1945; Sobre o divórcio. Época. Rio de Janeiro, 1947), além das aulas de Direito civil, na Universidade do Brasil, publicadas sob a forma de apostilas.

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de mérito da questão processual), ou de determinados tipos específicos de ações. A divisão por temas e a alocação dos julgados foi feita de maneira a seguir a melhor técnica, em termos de taxionomia jurídica, e a fim de facilitar ao leitor a busca por assuntos de maior interesse.

Deve-se considerar, também, que a contextualização pode dizer forte-mente respeito à época em que determinado acórdão foi exarado, e às circuns-tâncias históricas presentes, repercutindo horizontalmente ao tempo da decisão. Porém, algumas vezes, a decisão repercute verticalmente para o futuro. Daí a necessidade de explicar — o que foi feito em algumas passagens do texto — como determinado assunto evoluiu até a época da decisão comentada, ou des-dobrou-se até os dias atuais.

Há decisões importantes, das quais participou ativamente o Ministro Hahnemann Guimarães, que tratam de mais de um tema relevante, conforme a divisão da obra. Nesses casos, analisa-se apenas o tópico daquela parte, reme-tendo o leitor ao outro tópico, de forma a se manter a consistência temática da divisão por tópicos. cite-se, por exemplo, o MS 900, decidido em 18 de maio de 1948, no qual foram enfrentadas as questões da possibilidade de discussão da constitucionalidade de leis em mandado de segurança e também a questão da representatividade dos partidos políticos, em face do mandato concedido aos parlamentares, enquanto representantes do povo.

Há julgados em matéria cível, com vasta abordagem doutrinária (nacional e estrangeira), extremamente interessantes, que deixaram de ser colacionados e comentados, em virtude de sua extensão e irrelevância no contexto jurispruden-cial. A preocupação com o tamanho da obra também levou a que se evitassem digressões doutrinárias detalhadas sobre os temas tratados, o que poderia levar a obra a ter, também, uma extensão demasiada. No que diz respei to à redação das partes transcritas dos acórdãos correspondentes aos votos dos Ministros, seguiu-se a orientação da equipe técnica do STF, primando-se pela transcri-ção fiel do original, apesar das necessárias adaptações quanto às mudanças ortográficas.4

No apêndice da obra, colacionam-se alguns acórdãos de julgados dos quais participou o Ministro Hahnemann Guimarães, uns transcritos na íntegra, outros parcialmente — apenas relatório e voto. Espera-se que o acesso a esses textos satisfaça os leitores interessados em mais detalhes de algumas decisões relevantes.

4 A título de esclarecimento prévio, informa-se que, no texto, foi substituído o sublinhado original, como técnica de destaque para citações em línguas estrangeiras, para o itálico (o subli-nhado era o recurso das máquinas usadas à época em que foram redigidos os acórdãos, muitos deles com anotações e correções à mão) e também nos casos de erros evidentes de datilografia foi feita a correção (o que evita a colocação de sic, ao longo do texto).

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Ministro Hahnemann Guimarães

1. HERMENÊUTICA

ARGUMENTO A CONTRARIO SENSU

Ao julgar o RE 11.132/MG, em 9 de novembro de 1948, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, a Segunda Turma do STF analisou questão processual, em ação de execução fiscal, em que restava decidir se caberia ou não ao Tribunal de Justiça conhe-cer de embargos infringentes propostos pela recorrente (Fazenda Pública de Minas Gerais). considerava-se que havia sido unânime a decisão impugnada: um agravo contra sentença que acolhera ação executiva da Fazenda Estadual. Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães manejou com maestria a fun-damentação jurídica, utilizando-se do argumento a contrario sensu. O voto foi exarado como transcrito a seguir:

Dispõe o Decreto-Lei 960, de 17 de dezembro de 1938, no art. 73: “Não se admitirá recurso algum, na instância superior, contra o julgamento confir-matório da decisão recorrida e proferido no agravo ou na carta testemunhável destinada a torná-lo efetivo. Parágrafo único. Se a parte vencida for a Fazenda, a decisão só será irrecorrível quando unânime.”

Daí podem tirar-se as seguintes regras: 1) quando o recorrente for o devedor, a decisão que, em segunda instância, rejeitar o agravo ou a carta tes-temunhável não admitirá embargos infringentes; 2) quando o recorrente for a Fazenda, a decisão de segunda instância, contrária ao agravo ou à carta teste-munhável, não admitirá embargos infringentes, se for unânime; 3) a decisão que acolher o agravo ou a carta testemunhável admite embargos infringentes.

A terceira regra funda-se no argumentum a contrario. Se a lei dispõe que a confirmação pela segunda instância não admite recurso algum, deve-se con-cluir que, em caso de reforma, cabe recurso, que, na instância de segundo grau, consistirá em embargos ofensivos.

Em seguida, o Ministro reafirmou ser esta a jurisprudência do Tribunal e votou conhecendo do recurso extraordinário e dando provimento para que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais julgasse os embargos infringentes, no que foi seguido à unanimidade pelos outros Ministros da corte.

ARGUMENTO HISTÓRICO — TRABALHOS PREPARATÓRIOS

No MS 767/DF, Presidente o Ministro José Linhares e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, o STF analisou duas questões importantes: preliminar-mente, o que se poderia discutir em sede de mandado de segurança (como pre-liminar) e, no mérito, a constitucionalidade da intervenção sindical.5 Durante o

5 Ver os seguintes tópicos específicos sobre essas questões: item 8. OUTROS TEMAS DE DIREITO cONSTITUcIONAL, subtema “Liberdade de associação sindical”; e item 14. MANDADO DE SEGURANÇA, subtema “Descabimento contra lei em tese”.

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julgamento, que seu deu em 9 de julho de 1947, o Ministro Hahnemann Guimarães, em sua sustentação de mérito, teceu considerações hermenêuticas sobre a utilização das discussões parlamentares que precedem a aprovação das leis e constituições para sustentar seu argumento no sentido de ser mais impor-tante o elemento sistemático da interpretação do que os acontecimentos que se sucederam no Parlamento. Um trecho de seu voto destaca-se:

Dir-se-á, porém, que a discussão provocada na Assembléia constituinte sobre o art. 164, § 27, do projeto de 27 de maio de 1946, e o art. 158 do projeto então examinado, mostra ser inadmissível a intervenção nos sindicatos, havendo ficado prejudicada pelo princípio de que é livre a organização sindical a emenda do Sr. Ferreira de Souza, que, em casos excepcionais, admitia a intervenção (Diário da Assembléia, de 1º de setembro de 1946. p. 4550-4552).

Os trabalhos preparatórios da lei não têm a autoridade de interpretação autêntica; são apenas um precedente histórico, menos valioso que o elemento sistemático.

O Ministro Orozimbo Nonato, que votou a seguir, contestou o raciocínio de Hahnemann Guimarães. Para isso, procurou extrair dos trabalhos prepa-ratórios da constituição de 1946 algo que embasasse seu argumento e, após sustentar que realmente não era possível dar aos trabalhos preparatórios da lei consistência de elemento terminativo para a interpretação, afirmou:

Mas, se os trabalhos preparatórios não apresentam grande momento considerado a essa luz — dizia Ferrara que o Parlamento é um mito, é um ser impalpável, ninguém sabe as razões que confluíram para a decretação de deter-minada lei; se isto é exato, tem alcance definir o momento histórico em que a lei apareceu e quais as correntes jurídicas que inspiraram certo instituto e a que tendências gerais dominantes obedeceu certo princípio legal. Aí, a opinião dos parlamentares vale, não como interpretação autêntica [aqui concorda com Hahnemann Guimarães], mas como índice da existência dessa corrente, que preparou o surto de lei e que de resto pode ser surpreendida através de outros elementos.

Ora, a constituição atual — disse o eminente Sr. Ministro Ribeiro da costa — é impregnada de profundo senso de liberdade. [E aqui prossegue na justificativa pela inconstitucionalidade de lei que permite a intervenção nos sin-dicatos, em face da liberdade sindical prevista na constituição de 1946.]

Veja-se que ambos sustentam o não-uso dos debates parlamentares como argumento hermenêutico. Porém, o Ministro Orozimbo Nonato consegue extrair um argumento sociológico para embasar seu ponto de vista (o “senso de liberdade”). Deve-se ressaltar que o Judiciário brasileiro não muito se utiliza dessa técnica, bastante comum no sistema do common law, quando da interpre-tação dos statutes.

contudo, no polêmico MS 900/DF, decidido em 18 de maio de 1949 e no qual se discutia a perda do mandato de deputados do Partido comunista do

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Ministro Hahnemann Guimarães

Brasil, cujo registro fora cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral,6 o Ministro Hahnemann Guimarães, Relator, voltou a manobrar o argumento dos trabalhos preparatórios, mas, desta feita, com mais ênfase em proveito do seu ponto de vista, ao citar a argumentação ao anteprojeto de Lei 7.568, que admitia candi-dato avulso.

ARGUMENTO HISTÓRICO — ORIGEM HISTÓRICA DA NORMA

No RE 31.363/MG, julgado em 7 de maio de 1957, Presidente o Ministro Lafayette de Andrada e Relator o Ministro Ribeiro da costa, foi decidida ques-tão referente à simulação na venda de ascendente a descendente.7 O recurso foi provido por unanimidade. Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães utilizou-se do argumento histórico, buscando a solução na origem da norma:

Senhor Presidente, lamento divergir do eminente Sr. Ministro Vilas Boas, porque tenho entendido que a disposição do art. 1.132 do código civil não pode ser interpretada com abstração da sua razão histórica, que é dada pelo antigo direito português, das Ordenações, porque essa disposição de lá vem. Baseava-se a disposição das Ordenações numa presunção absoluta de simula-ção. Esta disposição passou ao direito brasileiro vigente. Não é possível, na apli-cação do princípio do art. 1.132, descuidar-se o intérprete de verificar se houve simulação ou não.

EFEITO REPRISTINATÓRIO DA CONSTITUIÇÃO NOVA

No MS 782/DF, julgado em 1º de abril de 1947, Presidente o Ministro José Linhares, Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, o STF enfrentou questão acerca da competência para julgamento de mandado de segurança contra ato do Ministro da Guerra quando ainda inexistente o TFR. No caso, tratava-se de mandado de segurança contra ato de Ministro de Estado. A questão que se colocava era a seguinte: a competência para julgar os mandados de segurança de atos de Ministros de Estado, na vigência da carta de 1937, era do STF, atribu-ída pela Lei 191, de janeiro de 1936. Porém, a lei foi derrogada nessa parte (não houve revogação expressa) pelo Decreto-Lei 6, de 16 de novembro de 1937, e pelo código de Processo civil de 1939 — atos editados sob regime de exceção, que coartava garantias individuais contra os abusos do Estado —, que veda-ram mandado de segurança contra atos do Presidente, de Ministros de Estado,

6 Ver tópicos específicos sobre mandado de segurança e Direito Eleitoral, nos quais os aspectos próprios são analisados.7 Ver mais detalhes no item 6. TEMAS DIVERSOS DE DIREITO cIVIL, subtema “Simulação por interposta pessoa na venda de ascendente a descendente — Prescrição”.

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Governadores e Interventores.8 com a criação do TFR, pela constituição de 1946, essa competência foi a este deferida.9 contudo, antes da instalação do TFR, mandados de segurança contra atos de Ministro de Estado haviam sido impetrados, conforme se afigurava neste mandado de segurança. Assim, surgiu a dúvida sobre se seria cabível mandado de segurança contra ato de Ministro de Estado, em face da constituição de 1946, antes de ser instalado o TFR, e, se cabível, a quem competiria o julgamento.10

O Ministro Hahnemann Guimarães conheceu do mandado de segurança, construindo votação unânime, no sentido de que a circunstância da não-insta-

8 Lei 191, de janeiro de 1936:“Art. 5º compete processar e julgar originariamente pedido de mandado de segurança;l — nos casos de competência da Justiça Federal:a) contra atos do Presidente da República, de Ministro de Estado ou de seu Presidente, à corte

Suprema;”Decreto-Lei 6, de 16 de novembro de 1937:“Art. 16. continua em vigor o remédio do mandado de segurança, nos termos da Lei 191, de

16 de janeiro de 1936, exceto a partir de 10 de novembro de 1937, quanto aos atos do Presidente da República e dos Ministros de Estado, Governadores e Interventores.

Parágrafo único. Os mandados de segurança contra atos das demais autoridades federais são, no Distrito Federal, da competência de um dos três juízes da Fazenda Pública, a que se refere o art. 9º desta lei, e, nos Estados e Territórios, dos juízes da capital a quem couber o feito nos termos do art. 108 da constituição Federal.”

O art. 319 do código de Processo civil de 1939 estatuía:“Art. 319. Dar-se-á mandado de segurança para defesa e direito certo e incontestável, amea-

çado ou violado por ato manifestamente inconstitucional, ou ilegal, de qualquer autoridade, salvo do Presidente da República, dos Ministros de Estado, Governadores e lnterventores.”9 constituição de 1946:

“Art. 103. O Tribunal Federal de Recursos, com sede na capital Federal compor-se-á de nove juízes, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal, sendo dois terços entre magistrados e um terço entre advogados e membros do Ministério Público, com os requisitos do art. 99.

Parágrafo único. O Tribunal poderá dividir-se em câmaras ou Turmas.Art. 104. compete ao Tribunal Federal de Recursos:(...)b) os mandados de segurança, quando a autoridade coatora for Ministro de Estado, o próprio

Tribunal ou o seu Presidente;”10 O art. 14, § 3º, do Ato das Disposições constitucionais Transitórias de 1946, tinha a seguinte redação:

“Art. 14. Para composição do Tribunal Federal de Recursos na parte constituída de ma-gistrados, o Supremo Tribunal Federal indicará, a fim de serem nomeados pelo Presidente da República, até três dos juízes secionais e substitutos da extinta Justiça Federal, se satisfizerem os requisitos do art. 99 da constituição. A indicação será feita, sempre que possível, em lista dupla para cada caso.

(...)§ 3º Enquanto não funcionar o Tribunal Federal de Recursos, o Supremo Tribunal Federal

continuará a julgar todos os processos de sua competência, nos termos da legislação anterior.” (Grifamos.)

Ocorria que, nos termos da legislação anterior, o STF não podia julgar mandado de segurança contra ato de Ministro de Estado.

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Ministro Hahnemann Guimarães

lação do TFR não poderia obstaculizar a aplicação das normas constitucionais, com base no entendimento seguinte:

O Ato das Disposições constitucionais Transitórias estabelece que, enquanto não funcionar o Tribunal Federal de Recursos, o Supremo Tribunal Federal continuará a julgar todos os processos de sua competência, nos termos da legislação anterior (art. 14, § 3º).

A Lei 191, de janeiro de 1936, atribuía à corte Suprema competência para processar e julgar originalmente o pedido de mandado de segurança contra atos de Ministros de Estado (art. 5º, I, a).

Mantendo a Lei 191, o Decreto-Lei 6, de 16 de novembro de 1937, não permitiu que pudessem ser julgados no processo especial os atos dos Ministros de Estado (art. 16), e assim também dispôs o art. 319 do código de Processo civil.

A constituição deu, entretanto, competência ao Tribunal Federal de Recursos para processar e julgar originalmente os mandados de segurança requeridos contra atos de Ministros de Estado (art. 104, I, b), abolindo a exceção criada pelo Decreto-Lei de 1937.

Dar-se-á que a abolição do preceito derrogatório não restituiu à vigência o disposto no art. 5º, I, a, da Lei 191. A afirmação encontrará apoio no art. 2º, § 3º, da Lei de Introdução ao código civil.11

As disposições constitucionais que dão a tutela do mandado de segu-rança contra atos do Presidente da República e de seus Ministros devem ser con-sideradas; porém, como exige o citado artigo da Lei de Introdução ao código civil, repristinatórias, capazes de revigorar a legislação anterior, na parte derro-gada pelo Decreto-Lei 6, no art. 16, e depois pelo código de Processo civil. Foi, assim, restaurada a competência do Supremo Tribunal Federal para conhecer, embora transitoriamente, dos mandados de segurança pedidos contra os atos de Ministros de Estado.

O preceito do art. 14, § 3º, do Ato das Disposições constitucionais Transitórias significa que, até o funcionamento do Tribunal Federal de Recursos, o Supremo Tribunal Federal continuará a julgar os processos de sua competên-cia, definida, em matéria de mandado de segurança, contra os atos de Ministros de Estado pela lei de 1936, que ficou, assim, revigorada nesta parte somente.

Doutro modo, não haveria, até aquele funcionamento, Tribunal que pudesse prestar contra os atos mencionados a garantia dada pela constituição, no art. 141, § 24.

Quanto ao prazo para solicitar a proteção nos casos excetuados pelo art. 319 do código de Processo civil, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que o termo inicial é a data em que começar a vigorar a constituição (processos de mandados de segurança 768 e 760, julgados, respectivamente, em 5 de dezem-bro de 1946 e 30 de janeiro último).

11 Diz o citado dispositivo da Lei de Introdução ao código civil:“Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique

ou revogue.(...)§ 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não

revoga nem modifica a lei anterior.”

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Não há, pois, nenhum obstáculo contra a apreciação do licenciamento do oficial da reserva convocado ao serviço ativo. é o licenciamento que o reque-rente pretende impugnar, e não o despacho de arquivamento, de 14 de março de 1946, pois nenhum defeito se apontou no referido despacho.

Veja-se que, mesmo estando derrogada a norma que admitia o recebi-mento pelo STF de mandado de segurança de atos dos Ministros de Estado, a corte admitiu seu recebimento em virtude de que os atos dos Ministros pas-saram a ser contestados por essa via, agora com base constitucional, sendo o segundo passo hermenêutico a definição de que seria o STF competente para tal, enquanto não se instalasse o TFR — entendimento que deu efeito repristi-natório, não expresso à constituição de 1946. Adiante o Ministro Hahnemann Guimarães passou a julgar o mérito, entendendo pelo indeferimento do man-dado, no que foi seguido por unanimidade.

No mandado de segurança mencionado pelo Ministro Hahnemann Guimarães, acima comentado,12 o STF decidiu também interessante questão a respeito do procedimento aplicável ao mandado de segurança contra ato do Presidente da República, considerando a legislação aplicável a processo anterior ao regime da constituição de 1946. Seu voto, vencido, manifestou interessante opinião (que neste aspecto prevaleceu), que se transcreve a seguir:

Os requerentes alegam que têm o direito de exigir por ação executiva o pagamento que lhes deve Irmãos Andrade; consideram violado seu direito pelo despacho que, em 1º de maio de 1946, exarou o Senhor Presidente da República na exposição de motivos apresentada pelo Ministério da Fazenda.

Dois pressupostos processuais devem ser examinados: o primeiro é rela-tivo à competência do Supremo Tribunal Federal; o segundo concerne à possi-bilidade de ser examinado no processo sumário do mandado de segurança, ato praticado pelo Presidente da República sob a constituição de 1937.

Pretende-se excluir a competência do Supremo Tribunal Federal, porque a instância surgida com a propositura da ação executiva foi suspensa por ato do Juiz, e não pelo despacho presidencial. A competência é, porém, no caso, defi-nida pela origem do ato contrário ao direito. Desde que se dá como ilegal, ou abusivo, ato do Presidente da República, o Tribunal competente é o indicado no art. 101, I, i, da constituição. A controvérsia sobre se a alegada violação resultou do despacho presidencial, de atos da câmara de Reajustamento ou do juiz da ação executiva excede o domínio dos pressupostos processuais e envolve maté-ria de mérito. é preciso indagar se aquele despacho ofendeu ou não o pretendido direito. Ao Supremo Tribunal Federal cabe, sem dúvida, fazer essa indagação, acolhendo ou rejeitando o pedido.

Aqui o Ministro Hahnemann Guimarães passa a analisar o outro ponto, que é a possibilidade de ser examinado no processo sumário do mandado de segurança

12 MS 760/SP, decidido em 29 de janeiro de 1947, Presidente o Ministro José Linhares, Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, Relator para o acórdão o Ministro Ribeiro da costa.

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ato praticado pelo Presidente da República sob a constituição de 1937. Para isso, lembra que já havia manifestado posição favorável a tal possibilidade no julgamento do MS 768, quando acompanhou o voto do Relator neste sentido e prossegue:

O mandado de segurança é um praeceptum, um interdictum, uma sen-tença condenatória, e, assim, título executivo (código de Processo civil, art. 325, II) que determina providências cautelares de direito não amparado por habeas corpus e ameaçado, ou violado, por ato ilegal ou abuso de poder de qual-quer autoridade (cF, art. 141, § 24).

A ação destinada a obter o mandado de segurança e a sentença que o concede não apresentam nenhuma peculiaridade; constituem ação e sentença de coordenação; pertencem a uma das classes em que se distribuem as ações, ou as sentenças.

A peculiaridade está no processo, que não segue o solennis ordo iudicia-rius, mas é sumário, como se vê pelo disposto nos arts. 321 a 325 do código de Processo civil. Este processo sumário, especial, tem sua origem, como os pro-cessos monitórios ou injuntivos, nos praecepta, ou mandata do direito comum, e nos interdicta possessória, aplicados pelo direito canônico à quase posse dos direitos pessoais. Estabeleceu-se em nosso direito um processo sumário para tutela de todos os direitos certos e incontestáveis, diversos da liberdade de loco-moção, e que tenham sido ofendidos por qualquer autoridade, ou se achem sob a ameaça de ofensa.

Quando a lei admite um processo novo, um novo modo de atuação da lei, dele se podem valer os titulares de direitos preexistentes. De acordo com o art. 16 do Decreto-Lei 6, de 1937, e o art. 319 do código de Processo civil, não era possível obter, no processo especial, a tutela contra atos de certas autorida-des. A constituição, no art. 141, § 24, aboliu as exceções. Não estando prescrita a ação para obter aquela proteção, é evidente que, dentro dos 120 dias de pro-mulgada a constituição, podia a ação ser proposta segundo a ordem sumária estabelecida para a defesa de “direito líquido e certo, não amparado pelo habeas corpus”. é de 120 dias contados da ciência do impugnado o prazo para requerer proteção segundo o processo especial (código de Processo civil, art. 331). Se a respeito de certos atos, a cognitio summaria somente se admitiu em 1º de setem-bro de 1946, daqui há de começar a correr aquele prazo, quando tais atos fossem anteriores a essa data. Não seria razoável que, podendo-se pedir o reconheci-mento de um direito em processo ordinário, ficasse o titular proibido de recorrer ao novo modo sumário. Havendo um prazo para que a ação se processe pela forma especial, o termo inicial tem de ser para os direitos anteriores à admissão dessa forma, o dia em que foi admitida.

No caso presente, requereu-se, poucos dias depois de promulgada a cons-tituição, a tutela contra o ato presidencial de 1º de maio de 1946. Faz-se a tempo o requerimento.

Em seguida, o Ministro passou a manifestar-se em relação ao mérito da questão, que não é objeto de análise neste ponto.

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2. CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE — REPRESENTAÇÃO INTERVENTIVA

CONTExTUALIzAÇÃO HISTÓRICA

O Ministro Hahnemann Guimarães esteve no STF no período que vai de 30 de outubro de 1946, data de sua posse, até 3 outubro de 1967, data de sua aposentadoria. Nesse período da história constitucional brasileira não havia instrumentos de controle abstrato de leis e atos normativos da forma como conhecemos hoje. Os mecanismos de controle concentrado evoluíram bastante, especialmente a partir da constituição de 1988.

No período em que Hahnemann Guimarães atuou no STF, o instrumento de controle abstrato de normas era denominado representação interventiva e sobre ele se explanará mais adiante. Já o controle in concreto, estabelecido a partir da constituição republicana de 1891,13 seguiu paralelo ao desenvol-vimento do controle concentrado, tendo o STF analisado diversos tipos de recursos e ações em que a constitucionalidade da norma era questionada inci-dentalmente, especialmente em sede de recurso extraordinário, com base no art. 101, inciso III, alíneas a a c, da constituição de 1946. contudo, em algumas ocasiões, o STF enfrentou questões específicas para essa modalidade de con-trole, como, por exemplo, a consideração de constitucionalidade das leis em sede de mandado de segurança, tendo o Ministro Hahnemann Guimarães posi-ção particular a esse respeito.14

No que diz respeito ao mecanismo de controle abstrato de normas durante o período em que o Ministro Hahnemann Guimarães esteve no Supremo Tribunal Federal, pode-se dizer que compreende dois períodos, um longo e um curto. O primeiro período corresponde à data da posse em 30 de outubro de 1946, logo após a entrada em vigor da constituição de 1946 (em 19 de setembro do mesmo ano) até a Emenda constitucional 16, de 26 de novembro de 1965, que alterou a estrutura do instituto e a superveniência da constituição de 1967, que entrou em vigor em 15 de março de 1967 (praticamente seis meses antes da aposentadoria do Ministro), sendo que a constituição de 1967 manteve o insti-tuto, nos moldes da Emenda 16/1965, com algumas alterações. Assim a maior parte do tempo em que permaneceu na corte Máxima brasileira, o Ministro

13 Embora seja o primeiro texto constitucional a prever o controle difuso de constitucionali-dade, na verdade, já no Decreto 510, de 1890 (constituição provisória), constava tal autorização ao Poder Judiciário.14 Ver, e.g., o MS 2.655/DF, de 5-7-1954, discutido adiante no texto.

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Ministro Hahnemann Guimarães

Hahnemann Guimarães enfrentou o problema do controle de constitucionali-dade em abstrato com base na constituição de 1946.15

A representação interventiva foi introduzida no ordenamento constitucional brasileiro pela constituição de 1934.16 Em seu texto, o instituto estava limitado ao controle de normas estaduais. A representação era feita pelo Procurador-Geral da República (provocado pelo Executivo Federal ou por iniciativa própria), e compe-tia ao STF declarar ou não sua inconstitucionalidade, o que seria necessário para a decretação de intervenção no Estado cuja lei fosse considerada inconstitucional. com a constituição de 1937, o instituto foi suprimido, passando os poderes inter-ventivos ao controle do Poder Executivo, aspecto típico de um governo ditatorial que concentra os poderes nas mãos do Executivo central.

A constituição democrática de 1946 traria novamente o instituto, mas de maneira diferente do formato inicial da constituição de 1934.17 Sob a

15 Remete-se o leitor para a obra: MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de Direito constitucional. São Paulo: celso Bastos/IBDc, 1998, p. 229-260 (histórico da evolução do controle de constitucionalidade no direito brasileiro). Para detalhamentos do tema, ver também: MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996; . Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e polí-ticos. São Paulo: Saraiva, 1990; cLÈVE, clèmerson Merli. A fiscalização abstrata da constitu-cionalidade no direito brasileiro. 2. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000; POLETTI, Ronaldo. Controle da constitucionalidade das leis. 2. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 1997.16 constituição de 1934:

“Art. 12. A União não intervirá em negócios peculiares aos Estados, salvo:(...);V — para assegurar a observância dos princípios constitucionais especificados nas letras a a

h do art. 7º, I, e a execução das leis federais;(...)§ 2º Ocorrendo o primeiro caso do n. V, a intervenção só se efetuará depois que a corte

Suprema, mediante provocação do Procurador-Geral da República, tomar conhecimento da lei que a tenha decretado e lhe declarar a constitucionalidade.”17 constituição de 1946:

“Art. 7º O Governo federal não intervirá nos Estados salvo para:(...)VI — reorganizar as finanças do Estado que, sem motivo de força maior, suspender, por mais

de dois anos consecutivos, o serviço da sua dívida externa fundada;VII — assegurar a observância dos seguintes princípios:a) forma republicana representativa;b) independência e harmonia dos Poderes;c) temporariedade das funções eletivas, limitada a duração destas à das funções federais

correspondentes;d) proibição da reeleição de Governadores e Prefeitos, para o período imediato;e) autonomia municipal;f) prestação de contas da Administração;g) garantias do Poder Judiciário.(...)Art. 8º A intervenção será decretada por lei federal nos casos dos n. VI e VII do artigo

anterior.

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Memória Jurisprudencial

constituição de 1946, o instituto ganhou maior amplitude, pois a regulação dada pela Lei 2.271, de 22 de julho de 1954, e, posteriormente, pela Lei 4.377, de 1º de junho de 1964, admitia a iniciativa da provocação ao Procurador-Geral da República e a qualquer parte interessada, nos termos da lei, além do chefe do Executivo Federal. Observe-se que, em consonância com essa nova técnica, de acordo com o art. 13 da constituição de 1946, o congresso Nacional deve-ria limitar-se a suspender a execução do ato argüido de inconstitucionalidade, caso essa medida bastasse para o restabelecimento da normalidade no Estado. contudo, o controle se limitava aos atos estaduais, com finalidade interventiva. Nesse sentido, observou o Ministro Gilmar Mendes:

O elevado número de representações interventivas propostas entre 1946 e 1965 — mais de 500 representações — comprova o peculiar significado desse instituto menos como forma de composição de conflitos federativos, do que como instrumento de controle de normas.18

A grande novidade trazida pela Emenda constitucional 16, de 26 de novembro de 1965, foi a licença para a representação de inconstitucionalidade ser apresentada também contra normas federais.19 Essa representação é gené-rica, de normas federais e estaduais, e não possui mais a finalidade interven-tiva (que permaneceu com sua especificidade, destinada a resolver conflitos de ordem federativa).20

conforme anota o Ministro Gilmar Mendes:

Parágrafo único. No caso do n. VII, o ato argüido de inconstitucionalidade será submetido pelo Procurador-Geral da República ao exame do Supremo Tribunal Federal, e, se este a decla-rar, será decretada a intervenção.

Art. 13. Nos casos do art. 7º, n. VII, observado o disposto no art. 8º, parágrafo único, o congresso Nacional se limitará a suspender a execução do ato argüido de inconstitucionalidade, se essa medida bastar para o restabelecimento da normalidade no Estado.”18 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 62.19 Emenda constitucional 16, de 26 de novembro de 1965, à constituição de 1946:

“Art. 2º As alíneas c, f, i e k do art. 101, inciso I, passam a ter a seguinte redação:(...)‘k) a representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal

ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da República;’”Obs: O art. 101, em seu inciso I, da constituição de 1946, trata das competências originárias

do STF.20 A Emenda 16/1965 também conferiu aos Estados a possibilidade de instituir controle abstrato de normas municipais, ao introduzir o inciso XIII no art. 124 da constituição de 1946, com a seguinte redação:

“Art. 19. Ao art. 124 são acrescidos os seguintes inciso e parágrafos:(...)‘XIII — a lei poderá estabelecer processo, de competência originária do Tribunal de

Justiça, para declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato de Município, em conflito com a constituição do Estado.’”

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Ministro Hahnemann Guimarães

Embora o constituinte tenha moldado o controle abstrato de normas segundo o modelo da representação interventiva, confiando a instauração do processo ao Procurador-Geral da República, convém assinalar que, apenas na forma, a nova modalidade de controle apresentava alguma semelhança com aquele processo de composição de conflitos entre o Estado e a União.

Enquanto a representação interventiva pressupunha uma alegação de ofensa (efetiva ou aparente) a um princípio sensível e, portanto, um peculiar conflito entre a União e o Estado, destinava-se o novo processo à defesa geral da constituição contra as leis inconstitucionais.

O Procurador-Geral da República exercia, no controle abstrato de nor-mas, o papel especial de advogado da Constituição, interessado exclusivamente na defesa da ordem constitucional.21

(Itálicos no original.)

A constituição de 1967 promoveu apenas uma alteração substancial no mecanismo de controle, que foi a não-reprodução do dispositivo contido no art. 124, XIII, introduzido pela Emenda 16/1965, que permitia aos Estados ins-tituírem mecanismos de controle concentrado das leis municipais.22

Este pequeno escorço histórico contempla a forma como o controle abstrato de normas era feito pelo STF durante o tempo em que o Ministro Hahnemann Guimarães ali trabalhou. Novas alterações se sucederam, atin-gindo alto grau de sofisticação com a constituição de 1988, mas não cabe dis-sertar sobre o assunto, visto que ultrapassa o período abordado nesta obra.

21 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 65.22 constituição de 1967:

“Art. 10. A União não intervirá nos Estados, salvo para:(...)VI — prover à execução de lei federal, ordem ou decisão judiciária;VII — assegurar a observância dos seguintes princípios:a) forma republicana representativa;b) temporariedade dos mandatos eletivos, limitada a duração destes à dos mandatos federais

correspondentes;c) proibição de reeleição de Governadores e de Prefeitos para o período imediato;d) independência e harmonia dos Poderes;e) garantias do Poder Judiciário;f) autonomia municipal;g) prestação de contas da Administração.Art. 11. compete ao Presidente da República decretar a intervenção.§ 1º A decretação da intervenção dependerá:(...)c) do provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do Procurador-Geral da

República, nos casos do item VII, assim como no do item VI, ambos do art. 10, quando se tratar de execução de lei federal.”

“Art. 114. compete ao Supremo Tribunal Federal:I — processar e julgar originariamente:(...)l) a representação do Procurador-Geral da República, por inconstitucionalidade de lei ou ato

normativo federal ou estadual;”

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Memória Jurisprudencial

REPRESENTAÇÃO 94/RS

Na Rp 94, decidida em 17 de julho de 1946, Presidente o Ministro José Linhares, Relator o Ministro castro Nunes, o STF discutiu mais uma vez ques-tões relacionadas a dispositivos constantes de constituição estadual. O foco era a constituição do Estado do Rio Grande do Sul, que apresentava diversos arti-gos com a constitucionalidade questionada em face da Lei Maior. O Procurador-Geral da República encaminhara ao STF representação do Governador do Estado do Rio Grande do Sul relativamente aos arts. 78, 81, 82, 89 e outros da nova constituição daquele Estado. Esses dispositivos faziam referência ao Secretariado quanto à dependência, em face da Assembléia, da escolha e do desempenho da função dos Secretários do Governo. O Procurador-Geral da República alegou que tais disposições eram incompatíveis com o governo presi-dencial estabelecido como base do regime político adotado no País, nos termos da representação e pelos fundamentos jurídicos expostos na petição, baseada no art. 8º, parágrafo único, da constituição Federal de 1946, para legitimar o uso da atribuição exercida e a competência do STF para dirimir o conflito.

O Relator, Ministro castro Nunes, em longo voto de 28 páginas, analisou pormenorizadamente o pedido. O Ministro Hahnemann Guimarães, que votou em seguida, também se manifestou detidamente sobre os aspectos levantados, como segue:

Senhor Presidente, no arroubo oratório com que nos empolgou, o emi-nente tribuno e advogado Dr. João Mangabeira fez, no princípio e ao terminar a sua formosa oração, duas advertências, que não parecem justas com respeito a este Tribunal. A primeira é a de que a representação se destina a favorecer poderosos e a segunda é a de que este Tribunal deve apreciar o caso com segu-rança, sem vacilações, porque da sua decisão depende da própria estabilidade constitucional.

Este Tribunal não se deixa, evidentemente, impressionar pelos pode-rosos, nem se descuida, nas decisões que toma, a respeito dos casos que são sujeitos ao seu exame, dos supremos interesses da Nação, embora lhe pertença essencialmente a aplicação da lei.

O eminente advogado da Assembléia Legislativa sul-rio-grandense reconhece que o governo parlamentarista nos Estados é compatível com a constituição Federal. Não foge S. Exa. ao reconhecimento de que o que se pro-cura estabelecer na constituição do Rio Grande do Sul é, sem rebuços, o regime parlamentar, com todas as suas conseqüências, com todos os seus caracteres. Nem era possível dissimular-se a natureza parlamentarista do Governo que se pretende estabelecer naquele Estado. com efeito, o art. 78 da constituição do Estado estabelece que o chefe do Secretariado será necessariamente, um mem-bro da Assembléia.

Aqui, como técnica argumentativa, o Ministro Hahnemann Guimarães expõe claramente o efeito prático do dispositivo, ao dizer que não haveria liberdade para o Governador do Estado na escolha dos seus secretários, e que,

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Ministro Hahnemann Guimarães

portanto, ele se sujeitaria, quanto à escolha do chefe do secretariado, à desig-nação de membro da Assembléia Legislativa. Esse aspecto vai levar, adiante, à conclusão da quebra da independência entre os poderes. E continua em seu voto:

No art. 79, estabelece-se princípio mais grave ainda: é o Secretariado quem apresenta à Assembléia Legislativa o programa de governo do Estado. Não é o Governador quem governa; é o Secretariado, pelo programa por ele ela-borado e sujeito ao exame e à aprovação da Assembléia Legislativa.

Vai mais longe a constituição. No art. 80 subordina a permanência dos Secretários à confiança da Assembléia. Que estranha liberdade de nomeação e demissão é esta conferida a um Governador, que há de demitir, necessariamente, os seus Secretários que desmereçam da confiança da Assembléia Legislativa.

No art. 81 é que se encontra a própria flor do parlamentarismo, a orga-nização colegial do Secretariado. O Secretariado está constituído num colégio, num conselho, sob a chefia de um membro da Assembléia Legislativa e delibera pela maioria de seus votos.

(...)Não se trata, já o sustentei ao dar o meu voto ontem, não se trata de

subordinar a constituição estadual a regras, a preceitos de constituição Federal. O que este Tribunal está procurando salvaguardar são os princípios constitucio-nais e, aqui, a advertência feita pelo eminente parlamentar, Sr. João Mangabeira, foi, já, tida em conta pelo eminentíssimo Sr. Ministro Relator, castro Nunes, que mostrou que este Tribunal guarda nas suas decisões os limites da exceção constitucional, não os ultrapassa de modo algum, sabe que está apreciando a constitucionalidade de atos impugnados. Não vai além desses limites restritos na apreciação do ato sujeito ao seu exame.

Há, aqui, uma interessante questão. O regime de governo federal have-ria que ser reproduzido nos Estados, ou estes poderiam ser parlamentaristas? Tratar-se-ia ou não de princípio sensível?23 O Ministro Hahnemann Guimarães não envereda por essa seara e, após a reafirmação do papel do STF, aborda a questão da independência dos poderes, como segue:

Mas o que se trata é de verificar se a constituição do Rio Grande do Sul observou o princípio da harmonia e independência dos poderes. Já se pre-tendeu, até, encontrar contradição entre harmonia e independência, como se a independência repudiasse a harmonia. é evidente, porém, que só há harmonia verdadeira entre seres independentes. Só é verdadeira a harmonia voluntária, consciente, e esta pressupõe a independência das entidades. é entre poderes independentes; é entre um Executivo, um Legislativo e um Judiciário indepen-dentes; é só entre eles que é possível estabelecer-se uma verdadeira, uma sólida, uma consciente harmonia.

Sustentou-se aqui, com citações de Montesquieu e Blackstone, que o regime parlamentar é compatível com a independência dos poderes. Lamento não haver encontrado na biblioteca deste Supremo Tribunal a obra de Woodburn,

23 Sobre as distinções entre princípios constitucionais sensíveis, estabelecidos e extensíveis (a violação desses últimos não ensejariam a ação interventiva) ver, e.g.: SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15. ed. rev. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 592-598.

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Memória Jurisprudencial

The American Republic, com a qual, a respeito dos autores citados, poderia mostrar ao eminente orador que é meramente teórica a pretensa independên-cia do Executivo na Inglaterra. Se houvesse essa independência na Inglaterra, não se justificaria a atitude de Jorge III nos seus esforços para recuperar o per-dido poder do rei. Mas à falta desse auxílio, socorro-me da obra de Pomeroy, na sua célebre An introduction to the constitucional law of the United States, em que, referindo-se às opiniões de Jefferson e do Presidente Jackson, diz o seguinte: “Nenhum desses teóricos admitiria, provavelmente, que o Presidente tivesse uma capacidade igual ou independente à do congresso para interpretar a constituição e julgar a validade de uma lei. Esta moderna escola, quanto às idéias que representa neste país, levaria o congresso a uma posição igual, nos Estados Unidos, à que tem o Parlamento Britânico, reduziria o Executivo ao nível da coroa Britânica, e destruiria o Judiciário, como poder coordenado do Governo.”

Nesse ponto do voto, o Ministro Hahnemann Guimarães faz interessante observação quanto à coroa Britânica, cujo poder é extremamente reduzido e, como poder de Governo, “é nulo”. Diz que, quando se afirma o princípio “The King can’t do wrong” — “O rei não erra” —, tem-se em vista que o rei não tem responsabilidade, ao contrário do que acontece no nosso regime, em que o chefe do Executivo é responsável. Desse modo, se o governante não possui respon-sabilidade, não pode errar. Após esse contorno, de forte viés argumentativo, prossegue:

A responsabilidade do chefe do Executivo há de implicar, necessaria-mente, a liberdade de escolher os seus auxiliares.

Pomeroy diz ainda que, se as conclusões alcançadas por Jefferson e Jackson fossem admitidas na prática constitucional dos Estados Unidos — como se quer fazer na constituição sul-rio-grandense —, toda a organização americana reduzir-se-ia a pedaços. E salienta, adiante, Pomeroy: “(...) se fossem aceitas as noções relativas à autoridade exclusiva do congresso, o Governo converter-se-ia rapidamente em tirania irresponsável, porque o Legislativo não encontraria a resistência de sentimentos coletivos profundamente arraigados, antigos e tradicionais, que, na Grã-Bretanha, constituem fortíssimo poder con-servador”. Nenhum outro país pode oferecer, como fundamento desse regime, as mesmas tradições em que ele se alicerça na Inglaterra.

claramente, o foco do argumento está no fato de que o parlamentarismo avilta a independência dos três poderes — princípio sensível —, e este restaria violado conforme se configurava na constituição do Estado do Rio Grande do Sul — claramente parlamentarista —, visto que assim a Assembléia Legislativa estaria a usurpar o poder do Executivo estadual. Diante disso, o Ministro Hahnemann Guimarães prossegue:

Senhor Presidente, acho desnecessário alongar-me em considerações. creio de evidência indiscutível, creio patente que o regime parlamentarista sacrifica a independência do Poder Executivo. Não é admisssível entre nós essa subordinação do Executivo ao Legislativo, que com ele é eleito. é preciso

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Ministro Hahnemann Guimarães

notar-se que o Governo do Estado foi eleito para o exercício do seu poder com a própria Assembléia Legislativa. Nem a Assembléia Legislativa pode subordi-nar o Governador às suas deliberações quanto à escolha do Secretariado, nem seria admissível o poder que se dá ao chefe do Executivo estadual de dissolver a Assembléia Legislativa. Os dois poderes são iguais, em legitimidade; ambos vêm do povo. O Governador não recebeu o poder da Assembléia, não foi a Assembléia quem lhe deu poder de governar. Foi o povo que lhe deu esse poder.

A Assembléia não pode reduzir, a Assembléia não pode transformar o chefe do Executivo estadual num instrumento de sua vontade. Parece-me tão evidente a subordinação que se pretendeu estabelecer, no Estado do Rio Grande do Sul, do Executivo ao Legislativo, que julgo dispensáveis — talvez não tivesse mesmo recursos para mais — maiores argumentos, para demonstrar a convicção segura com que adiro ao esplêndido voto do Sr. Ministro castro Nunes.

A decisão final foi no sentido de restarem inconstitucionais os arts. 76, 77, 78, 81 a 87 e 89 da nova constituição gaúcha (promulgada para se adap-tar à nova constituição Federal de 1946), e os dispositivos do seu Ato das Disposições constitucionais Transitórias que os pressupõem, decisão unânime. Destaca-se no acórdão a reafirmação de que o mecanismo dos poderes é gover-nado por freios e contrapesos, que são somente os admitidos na constituição Federal, e que a dissolução da Assembléia seria um contrapeso não cogitado e incompatível com o mandato legislativo de duração prefixada.

REPRESENTAÇÃO 97/PI

Na Rp 97/PI, julgada em 12 de novembro de 1947, Presidente o Ministro José Linhares e Relator o Ministro Edgard costa, o STF julgou, no bojo da representação interventiva, a inconstitucionalidade de diversos artigos da constituição do Estado do Piauí (13 artigos da constituição e 12 artigos do Ato das Disposições constitucionais Transitórias), encaminhada pelo Governador do Estado ao Procurador-Geral da República. Tratava-se de decisão exemplar, que, desde a manifestação do Procurador-Geral da República, trouxe coloca-ções de alta pertinência e relevância para a matéria, constituindo-se em longo julgado, com cerca de 158 páginas, contemplando posições convergentes em relação à inconstitucionalidade de determinados dispositivos e divergentes em outros.

convém apresentar um resumo do longo relatório de 62 páginas, para que as questões discutidas sejam evidenciadas.

com o intuito de facilitar a compreensão do leitor, relacionam-se a seguir os artigos da constituição estadual do Piauí cuja constitucionalidade se questionou e o objeto por eles disciplinado (mencionado entre parênteses): constituição: arts. 13 e 14 (intervenção); art. 42 (veto do governador); arts. 51 e 53 (competência do Tribunal de contas); art. 67 (impeachment); art. 78, 7 e

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Memória Jurisprudencial

11 (composição do Tribunal de Justiça); art. 83, 2 e 3, parágrafo único (com-petência do Tribunal de Justiça); arts. 87 e 89 (divisão de comarcas); art. 89 (escolha de juízes); art. 91 (escolha de juiz de paz); art. 120 (competência dos prefeitos); art. 145, inciso X (estabilidade dos funcionários); art. 177 (chefes de polícia); Ato das Disposições Transitórias: arts. 10, 12 e 19 (equiparação de ven-cimentos de policiais, professores e inativos); arts. 27 e 28 (entrâncias de novas comarcas); art. 30 (efetivação de novos promotores); art. 41 (revogação de atos administrativos sobre pessoal); art. 48 (restabelecimento de Município); art. 50 (extinção de departamento de municipalidades); art. 53 (incompatibilidade de prefeitos); art. 54 (câmaras municipais transitórias); art. 63 (aprovação de atos dos ex-interventores).

O Procurador-Geral da República concluiu pela inconstitucionalidade de diversos artigos apontados pelo Governador do Piauí, quais sejam: a) art. 67, da organização de tribunal especial para julgamento de crimes de respon-sabilidade; b) art. 83, inciso III, da competência do Tribunal de Justiça para conceder licenças e férias ao Procurador e ao Subprocurador Geral do Estado; c) art. 87, da promoção automática do juiz pela elevação da entrância da res-pectiva comarca; d) art. 92, § 2º, da nomeação de suplentes para juiz de paz; e) arts. 27 e 28 das Disposições constitucionais Transitórias, que dispunham sobre a elevação da entrância de certas comarcas e a criação de outras; f) art. 53 das Disposições Transitórias, da incompatibilidade para o exercício provisório do cargo de prefeito para Municípios que devam ser providos por eleição. com relação aos demais dispositivos atacados, foram considerados constitucionais.

O Procurador-Geral fez ressalvas acerca da forma com que o controle de constitucionalidade das constituições estaduais deveria ser feito, tendo-se em vista a autonomia dos Estados e sua capacidade de auto-organização, destacando que a autonomia das constituições estaduais é maior do que na lei federal no plano puramente federal e, sendo assim, o seu controle em face da constituição deve se dar de maneira diversa. Asseverou, em seu parecer, que há uma área em que se desenvolve livremente o poder constituinte dos Estados federados, compreendendo todos os poderes implícitos de sua construção orgâ-nica e limitada apenas pelos princípios constitucionais da União e por aqueles que regulam a vida constitucional dos Estados. Discorreu sobre a teoria dos poderes dos Estados federados para sustentar que seriam inconstitucionais, portanto, os dispositivos de constituição estadual que se chocassem frontal e manifestamente com esses princípios.

Por fim, reiterou que era preciso ser manifesta a inconstitucionalidade de norma, de modo que se possibilitasse a intervenção, e não apenas tergiversação desnecessária e de longos debates. Para tanto, seria preciso congregar três fato-res: 1) a argüição de inconstitucionalidade pelo Procurador-Geral da República; 2) a existência de ato violador dos princípios constitucionais constantes no art. 7º,

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Ministro Hahnemann Guimarães

inciso VII, da constituição Federal; e 3) a declaração pelo STF da inconstitucio-nalidade. Quanto a isso, dizia o art. 7º, inciso VII, da constituição de 1946:

Art. 7º O Governo federal não intervirá nos Estados salvo para:VII — assegurar a observância dos seguintes princípios:a) forma republicana representativa;b) independência e harmonia dos Poderes;c) temporariedade das funções eletivas, limitada a duração destas à das

funções federais correspondentes;d) proibição da reeleição de Governadores e Prefeitos, para o período

imediato;e) autonomia municipal;f) prestação de contas da Administração;g) garantias do Poder Judiciário.

Por ato violador, entendia o Procurador-Geral da República que seria qualquer ato emanado pelos órgãos estaduais que produzissem efeitos jurídicos, destes não excluídos os legislativos e os constituintes.

O Relator, Ministro Edgard costa, em seu longo voto, considerou incons-titucionais os arts. 67, § 1º, 87, e 120, inciso III, da constituição do Estado do Piauí, bem como o art. 53, § 3º, do seu Ato das Disposições constitucionais Transitórias. O Ministro Hahnemann Guimarães, votando após o Ministro Armando Prado, manifestou-se da seguinte forma:

Senhor Presidente, o eminente Sr. Ministro Relator, em seu minucioso e lucidíssimo voto, adotou duas preliminares, às quais adiro, irrestritamente: a primeira é de que o conhecimento deste Supremo Tribunal Federal se deve limi-tar às ofensas aos princípios enumerados no art. 7º, inciso VII, da constituição; a segunda é de que as inconstitucionalidades argüidas somente podem ser decla-radas pelo Tribunal quando sejam manifestas, para que se respeite a autonomia dos Estados, para que se observe o disposto no art. 18 da constituição, no qual se declara que “cada Estado se regerá pela constituição e pelas leis que adotar, observados os princípios estabelecidos nesta constituição”. A este preceito se deve acrescentar, necessariamente, o do § 1º, no qual se dispõe que “aos Estados se reservam todos os poderes que, implícita ou explicitamente, não lhe sejam vedados por esta constituição”.

Lamento, entretanto, não poder aceitar a preliminar suscitada pelo eminente advogado da Assembléia Legislativa do Estado quando quer limitar a apreciação deste Tribunal à ofensa atual, não admitindo que seja apreciada pelo Supremo Tribunal a ofensa potencial contida no texto constitucional. Evidentemente, nada pode provocar mais grave perturbação no equilíbrio que deve haver entre os poderes do Governo que a constituição estadual; não há nada que possa originar maior distúrbio político, constitucional, administrativo, que a lei básica de o Estado ofender os caracteres essenciais da organização política, constitucional, administrativa, fixados para os Estados na constituição Federal; não há nada que justifique tanto a manifestação deste Tribunal sobre um ato que legitime a intervenção, quanto uma constituição estadual que fira os princípios fundamentais do regime.

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Memória Jurisprudencial

O Ministro Hahnemann Guimarães admitiu que aceitava quase integral-mente o voto do Relator, porém com algumas restrições, como segue adiante:

A respeito dos arts. 67, 68 e 69 da constituição estadual, que regulam a responsabilidade do Governador, eu me manifesto pela inteira inconstituciona-lidade de todas as disposições; pois, segundo os pareceres dos Professores Noé Azevedo e Joaquim canuto Mendes de Almeida, entendo que a constituição estadual não pode restringir a garantia devida aos Governadores que somente podem ser responsabilizados por fatos e segundo o processo definidos em lei federal. Esta minha convicção, que se baseou nas razões aduzidas por aque-les eminentes juristas, impõe o reconhecimento da inconstitucionalidade dos arts. 67, 68 e 69.

Acompanho o eminente Sr. Ministro Relator quanto à inconstitucionali-dade do que se dispõe no art. 120, III.

Lamento divergir de S. Exa. no que pertence à disposição do art. 87 da constituição estadual, relativa à elevação de entrância de uma comarca, da qual resulta a promoção automática do respectivo juiz. O eminente Sr. Dr. Procurador-Geral da República, em seu parecer, deu essa disposição como ofensiva não do princípio constitucional do art. 7º, inciso VII, mas do art. 124, IV, da constituição Federal, o que torna ao Supremo Tribunal Federal impossível o conhecimento da argüição.

Sobre esse ponto, o Ministro Edgard costa, Relator, interveio: “Realmente, a argüição é a de que se violou o art. 124, IV, mas isso importa em uma condi-ção de independência do Judiciário. Evidentemente, há violação do art. 7º, VII, relativo à independência dos Poderes”. E o Ministro Hahnemann Guimarães prosseguiu:

Vossa Excelência preveniu a objeção que eu ia, naturalmente, consi-derar. Quero, apenas, ponderar que o eminente Sr. Dr. Procurador-Geral não encontrou ofensa ao princípio constitucional. V. Exa. descobriu-a no princípio da letra b: harmonia e independência dos poderes, mas eu peço permissão a Vossa Excelência para recordar que o preceito dispõe que a elevação de entrân-cia de uma comarca importa na promoção automática dos respectivos juízes; todavia essa elevação de entrância pode ser proposta pelo Tribunal de Justiça e não ofende a autonomia do Poder Judiciário; a lei resultante da proposta do Tribunal de Justiça elevará a entrância, com a promoção do juiz respectivo, mas de acordo com a proposta do Tribunal de Justiça. O preceito não elimina essa possibilidade; ao contrário, acho que está implícita na disposição essa possibili-dade: compete ao Tribunal de Justiça propor a elevação de entrância. Isto resulta da primeira disposição do citado art. 124.

O Ministro castro Nunes interrompeu: “Mas não consta do texto cons-titucional”. Ao que o Ministro Hahnemann Guimarães respondeu: “Mas é questão de interpretação, que, naturalmente, terminará por aí.” Em seguida, o Ministro Orozimbo Nonato aduziu: “A iniciativa pode ser do Legislativo.” E o Ministro Hahnemann Guimarães continuou: “Não há razão para que se ful-mine de inconstitucionalidade um preceito que pode ser esclarecido de modo

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Ministro Hahnemann Guimarães

que se harmonize com a constituição Federal.” Diante da afirmação, o Ministro Orozimbo Nonato acedeu: “Estou de acordo com Vossa Excelência, porque o preceito respeita o princípio da irremovibilidade dos juízes.” Porém, o Ministro castro Nunes novamente intercedeu: “A promoção é automática, por efeito da elevação da entrância a comarca. Não há intervenção do Tribunal de Justiça”. Somente aí, o Ministro Hahnemann Guimarães retomou a palavra para encerrar seu voto nos seguintes termos:

Ao Tribunal de Justiça compete, pela constituição Federal, a iniciativa da proposta, que o Legislativo adotará, elevando as entrâncias, do que resultará a promoção dos juízes.

Por esta razão, não considero inconstitucional a disposição do art. 87.Pelas razões que dei, no voto manifestado a respeito do caso do ceará,

sou, logicamente, conduzido a não reconhecer a inconstitucionalidade do pre-ceito do art. 53, § 3º, do Ato das Disposições Transitórias da constituição do Piauí, relativo à nomeação de Prefeitos municipais. Em suma, considero, ape-nas, inconstitucionais as disposições dos arts. 67, 68, 69 e 120, n. III.

é o meu voto.

como se lê em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães considerou inconstitucionais apenas as disposições dos arts. 67, 68, 69 e 120, III. A decisão do STF foi no sentido de se declararem inconstitucionais os arts. 67, § 1º (unâ-nime); 120, III (9 votos); 82, 2 e 3 (7 votos), da constituição do Estado do Piauí, além do art. 53, § 3º, do seu Ato das Disposições constitucionais Transitórias (9 votos).

REPRESENTAÇÃO 106/GO

No julgamento da Rp 106/GO, em 10 de maio de 1948, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato, Relator o Ministro Abner de Vasconcelos, o STF decidiu sobre questões relativas à constitucionalidade da constituição de Goiás. Por iniciativa do Governador do Estado de Goiás, o Procurador-Geral da República encaminhou a representação ao STF. Os dispositivos da constituição goiana poderiam dar ensejo a intervenção federal, considerando o princípio da independência e harmonia dos poderes, previsto no art. 7º, VII, letra b, da constituição de 1946.

Entre os dispositivos atacados, estava o art. 20, XVI, da carta esta-dual, que dava competência à Assembléia Legislativa, mediante sanção do Governador, para manifestar, quatro meses após as nomeações, pela maioria absoluta de seus membros, o voto de desconfiança aos Secretários de Estado, ao Procurador-Geral de Justiça e ao comandante da Política Militar, importando em demissão dos titulares respectivos. caso negada tal sanção, o veto poderia ser rejeitado pela Assembléia.

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Memória Jurisprudencial

O art. 21, XII, do mesmo texto, atribuía competência exclusiva à Assembléia para aprovar, mediante voto secreto, a escolha do Procurador-Geral de Justiça e dos membros do Tribunal de contas. Já em seu inciso IX, o art. 21 dispunha ser da competência exclusiva da Assembléia o exame dos regulamen-tos expedidos pelo Governador, em confronto com as respectivas leis, cabendo àquela suspender os dispositivos ilegais.

Foram questionados, também, os incisos X e XI do art. 102, que declara-vam que competia à câmara Municipal indicar, em lista tríplice, os candidatos a delegacia de polícia (dentre os quais o Governo do Estado nomearia o Delegado Municipal) e solicitar ao Governador do Estado a demissão dos Delegados de Polícia (o relatório informa que o Governador de Goiás, em seu ofício, argu-mentava que os apontados incisos exageravam a autonomia municipal, empres-tando-lhe um conceito monstruoso, em detrimento do Poder Estadual).

Por fim, o art. 31 e seu § 2º da constituição goiana determinavam que o Tribunal de contas seria composto por um juiz de direito, um advogado e um contador, nomeados pelo Governador com prévia aprovação da Assembléia, sendo o primeiro escolhido em lista tríplice organizada pelo Tribunal de Justiça. Quanto a isso, o Ministro Hahnemann Guimarães manifestou-se:

Senhor Presidente, estou inteiramente de acordo com as conclusões a que chegou o ilustre Sr. Ministro Abner de Vasconcelos, considerando inconstitucio-nais as disposições dos arts. 20, XVI, alíneas a e b; 21, IX; e 102, X e XI.

Quanto às duas primeiras disposições, parece que estou dispensado de aduzir considerações para justificar a adesão que agora manifesto ao voto do eminente Sr. Ministro Relator, pois que, em casos anteriores, já este Supremo Tribunal Federal teve ensejo de firmar sua jurisprudência, segundo a qual não é lícito ao Poder Legislativo expressar voto de confiança ou desconfiança, como seria, no caso, a respeito da escolha de secretários de Estado. Na hipótese, aos secretários de Estado se acrescentou o chefe de polícia.

A razão de se rejeitar, por inconstitucional, o preceito, é a mesma que vigora quanto à inconstitucionalidade do voto de confiança ou desconfiança a respeito dos secretários.

Do mesmo modo, não me parece necessário bordar argumentos a respei to da inconstitucionalidade da disposição que confia ao Poder Legislativo exami-nar a validade dos regulamentos expedidos pelo Poder Executivo.

Evidentemente, a constitucionalidade, a validade — seria melhor dizer-se — desses regulamentos somente poderá ser apreciada pelo Poder Judiciário.

Quanto ao art. 102, X e XI, é, porém, nova a matéria sujeita ao exame deste Tribunal.

Trata-se de confiar ao Legislativo municipal a indicação, em lista trí-plice, das pessoas dentre as quais deva ser escolhido o delegado de polícia do Município.

Evidentemente, esta disposição amplia em demasia a autonomia municipal. Nisto não haveria inconstitucionalidade, mas esta hipertrofia da autonomia muni-cipal, que não seria inconstitucional, redunda, entretanto, em diminuir a indepen-dência do Poder Executivo, no exercício de sua função essencial, que é a função de

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Ministro Hahnemann Guimarães

polícia. Não é admissível que a função de polícia, que ao Poder Executivo estadual incumbe exercer no Estado, fique com a sua independência restringida pela indica-ção que a constituição do Estado de Goiás comete ao Legislativo municipal.

Assim, Senhor Presidente, estou inteiramente de acordo com as conclu-sões adotadas no voto do Ministro Abner de Vasconcelos.

Parece-me oportuno, entretanto, acrescentar, a respeito do art. 31 e do seu § 2º, que, embora não os considere inconstitucionais, entendo que, se o juiz aceitar a indicação para construir o Tribunal de contas estadual, evidentemente, perderá a função judiciária.

O Ministro Edgard costa interveio: “Está declarado isso na constituição goiana?” E o Ministro Hahnemann Guimarães respondeu:

Não está declarado, mas decorre do inciso I do art. 96 da constituição Federal.

Estou de acordo com o receio do Sr. Ministro Edgard costa, quanto a se poder entender que, julgado este Supremo Tribunal Federal válida a disposição da constituição do Estado, se conclua daí que o juiz pode, na sua função de Juiz, ser membro do Tribunal de contas.

Acho oportuno que fique, desde já, esclarecido que o juiz poderá ser escolhido para membro do Tribunal de contas, perdendo a função judiciária, se aceitar a escolha. Se a disposição da constituição estadual quis estabelecer um critério de recrutamento dos membros do Tribunal de contas estadual, é acei-tável a disposição.

O Ministro Edgard costa novamente interveio: “E se nenhum juiz de direito quiser aceitar?” E o Ministro Hahnemann Guimarães respondeu: “Aí podemos declarar a disposição inconstitucional.” Aquele insistiu: “O que eu digo é que se trata de função em comissão. Não é cargo efetivo. Não havia razão para escolher entre juízes de direito.” Então, o Ministro Hahnemann Guimarães finalizou seu voto:

Devo acrescentar que não é possível declarar-se inconstitucional a dis-posição em face do art. 7º, VII, da constituição, porque aí não se diminuem as garantias do Poder Judiciário. O que a constituição veda é que a carta Fundamental dos Estados restrinja as garantias do Poder Judiciário. Aí não se restringem garantias. Ao contrário, atribui-se ao órgão do Poder Judiciário uma preferência na composição do Tribunal de contas.

Não há como se declarar, em face do art. 7º, VII, inconstitucional a dis-posição. Mas entendo oportuno o ensejo para que se fixe que a escolha de um membro do Poder Judiciário para a constituição do Tribunal de contas não lhe permite que continue a exercer a função judiciária, nos termos do citado art. 96, I.

é o meu voto.

Tomados os votos dos outros Ministros, a decisão foi pela declaração de inconstitucionalidade dos arts. 20, XVI, a e b, e 21, IX, por unanimidade de votos. Além disso, o art. 102, incisos X e XI, foi declarado inconstitucional pelos

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Memória Jurisprudencial

Ministros Abner de Vasconcelos, Armando Prado, Hahnemann Guimarães, Edgard costa, Annibal Freire e Laudo de camargo. Não tomaram conheci-mento da argüição, por incabível, os Ministros Ribeiro da costa, Lafayette de Andrada e Barros Barreto; o art. 31, § 2º, foi declarado constitucional pelos votos dos Ministros Abner de Vasconcelos, Armando Prado, Hahnemann Guimarães, Lafayette de Andrada e Barros Barreto, e inconstitucional pelos votos dos Ministros Ribeiro da costa, Edgard costa, Annibal Freire e Laudo de camargo.

O Ministro Hahnemann Guimarães teve sua indicação, que tratava de matéria referente ao quorum, indeferida, e a do Ministro Barros Barreto, sobre o mesmo ponto, ficou sujeita à apreciação do Tribunal (corresponde à argüição referente ao art. 102, maioria de seis Ministros), visto não ter alcançado o quo-rum legal para declaração de inconstitucionalidade. Essa interessante questão foi também decidida nesse julgamento, pois se tratava do problema do quorum para constituição da maioria absoluta e a necessidade de votação do Presidente em questões constitucionais — ver parte própria, nesta obra.

REPRESENTAÇÃO 111/AL

Na Rp 111/AL, julgada em 23 de setembro de 1948, Presidente o Ministro José Linhares e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, o STF declarou inconstitucional, por maioria, o art. 57, § 2º, e o art. 58, da constituição do Estado de Alagoas. Neste processo, o Governador do Estado de Alagoas sub-meteu ao Procurador-Geral da República reclamação, argüindo a inconstitucio-nalidade daqueles artigos, além do parágrafo único da constituição estadual.24

24 Os artigos questionados tinham a seguinte redação:“Art. 57. O Governador do Estado, depois que a Assembléia Legislativa, pelo voto da maioria

absoluta de seus membros, declarar procedente a acusação, será submetido a processo e julga-mento, nos crimes comuns e nos de responsabilidade, perante o Tribunal de Justiça do Estado.

(...)§ 2º A sentença condenatória importará perda do cargo e incapacidade para exercer qualquer

função pública na forma da lei.(...)Art. 58. São crimes de responsabilidade os atos do Governado do Estado que atentarem con-

tra as constituições Federal e Estadual, e especialmente contra:I — a existência da União, do Estado e dos Municípios;II — o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos Poderes constitucionais

dos Municípios;III — o cumprimento das decisões judiciárias;IV — a probidade na administração;V — a lei orçamentária;VI — a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos;VII — o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;VIII — a segurança interna do Estado.Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de

processo e julgamento.”

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Ministro Hahnemann Guimarães

A inconstitucionalidade se fundamentava na idéia de que os referidos artigos teriam violado o princípio da independência dos poderes, em virtude de: a) confiarem jurisdição política ao Poder Judiciário, sem garantia para que a sen-tença fosse proferida com maioria qualificada de 2/3; b) outorgarem ao Tribunal estadual a competência para julgar crimes comuns do Governador; c) comina-rem pena de incapacidade para o exercício de função pública ao cometimento de crime de responsabilidade; d) alterarem as sanções estabelecidas no código Penal para os crimes comuns; e e) definirem crimes de responsabilidade.

Entendeu o Procurador-Geral da República que, somente após ser sujeito ao impeachment e condenado, o Governador seria submetido a indictment. A incapacidade para o exercício de função pública estaria condicionada, como pena acessória, à efetiva destituição, e, se aplicável ao Presidente da República, também o seria aos Governadores de Estado. Em seu voto, o Ministro Hahne-mann Guimarães manifestou-se com os seguintes argumentos:

Julgo procedente a argüição feita pelo Sr. Governador do Estado de Alagoas ao disposto no art. 57 e seu § 2º, e no art. 58, com o respectivo pará-grafo, da constituição estadual de 9 de julho de 1947. é contrário à independên-cia do Poder Executivo submeter quem o exerce a regime penal não admitido em lei federal, pois que somente à União compete legislar sobre o direito penal e o processo (cF, art. 5º, XV, a).

Seguindo os pareceres dados pelos professores Noé Azevedo e J. canuto Mendes de Almeida, respectivamente, em 25 e 26 de setembro de 1947, mani-festei a opinião, que ora reitero, nas Rp 96 e 97, julgadas nas sessões de 3 de outubro e 12 de novembro de 1947.

Filiada ao mesmo exemplo que inspirou o preceito do art. 33 da constituição de 1891, estabelece a constituição vigente, no art. 62, para os cri-mes de responsabilidade, um regime excepcional.

A exceção consiste em que, para determinados sujeitos de responsabi-lidade nesses crimes, existem órgãos jurisdicionais, processo e pena próprios.

Os órgãos jurisdicionais não pertencem ao Poder Judiciário, salvo quanto à presidência, que compete ao Presidente do Supremo Tribunal Federal (art. 62, § 1º). A jurisdição é, porém, exercida pelo Poder Legislativo (arts. 59, I, e 62).

Sujeitos de responsabilidade podem ser apenas o Presidente da República, os Ministros de Estado e os Ministros do Supremo Tribunal Federal (art. 62, I e II).

Nos casos do art. 62, I, o processo é iniciado na câmara dos Deputados, que o instrui e verifica a procedência da acusação. Aceita esta pela câmara (art. 59, I), compete ao Senado o julgamento (art. 62, I).

No segundo caso, o Senado processa a ação penal e julga o crime de res-ponsabilidade (art. 62, II).

A sentença condenatória requer o voto de dois terços dos membros do Senado (art. 62, § 2º).

A pena terá de consistir somente em perda do cargo com inabilitação, até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública, sem prejuízo da ação ordinária (art. 62, § 3º).

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Memória Jurisprudencial

O Federalist dá razões para que não se confiasse à corte Suprema o julgamento desses crimes, em que a pena se limita à destituição do cargo e à desqualificação do funcionário (constituição dos Estados Unidos, art. 1º, sec. 3, cls. 6 e 7).

Essas razões devem ter inspirado a disposição do art. 33 da constituição de 1891 de que apenas se afasta a constituição vigente, para indicar precisa-mente os sujeitos da responsabilidade penal.

Preceitos constitucionais particularizaram o regime penal de exceção a que, nos crimes de responsabilidade, ficam sujeitos o Presidente da República e os Ministros de Estado (arts. 88, 89, 92 e 93).

Nessa parte de seu argumento, o Ministro Hahnemann Guimarães faz uma pergunta retórica: “Podia o legislador que elaborou a constituição do Estado sujeitar o órgão do Poder Executivo a um regime penal de exceção, limi-tado a certos sujeitos de responsabilidade, com infração do princípio constitu-cional que dá, privativamente, à União competência para legislar sobre o direito penal e o processo?” Ele mesmo respondeu:

O preceito do art. 18 da constituição parece que impõe a resposta negativa.Assim se entendeu em face da constituição de 1937, pois o Decreto-

Lei 1.202, de 8 de abril de 1939, modificado pelo Decreto-Lei 5.511, de 21 de maio de 1943, definiu os crimes de responsabilidade dos Governadores, estabe-lecendo a pena e o órgão jurisdicional (arts. 8º e 9º), em harmonia com o art. 87 do código de Processo Penal.

Assim também entendeu, em face da constituição vigente, a comissão Mista de Leis complementares, no anteprojeto 6, que define, no art. 73, crimes de responsabilidade dos Governadores e Secretários dos Estados, regulado nos arts. 74 a 78 o processo penal (Diário do Congresso Nacional, 11-6-1948, p. 4329, e 26-6, p. 4935).

Declaro, pois, inconstitucionais as disposições do art. 57 e seu § 2º e do art. 58 e respectivo parágrafo da constituição do Estado de Alagoas.

Foi no sentido das palavras finais do voto do Ministro Hahnemann Guimarães que o STF votou, declarando por maioria do Plenário a inconsti-tucionalidade dos citados dispositivos da constituição do Estado de Alagoas. Veja-se que, ao tratar o assunto, dois aspectos foram considerados: a indepen-dência dos poderes (abalada pelo texto inovador) e a competência para legislar sobre a matéria ser da União Federal.

REPRESENTAÇÃO 134/PA

Na Rp 134/PA, julgada em 21 de junho de 1950, sob a presidência e rela-toria do Ministro Barros Barreto, o STF enfrentou questão relativa à constitu-cionalidade de dispositivos de natureza eleitoral da constituição do Estado do Pará. O Partido Social Progressista, a União Democrática Nacional e o Partido Social Trabalhista encaminharam pedido ao Procurador-Geral da República que

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Ministro Hahnemann Guimarães

resultou na representação ao STF contra os arts. 37, III, e 70, c, da constituição do Estado do Pará25. Tais dispositivos exigiam, como condições de elegibilidade para governador e vice-governador, cinco anos de permanência contínua no Estado e dois para o caso de eleição de prefeito e vice-prefeito. O argumento trazido para pedir a inconstitucionalidade dos artigos foi a competência privativa da União para legislar em matéria eleitoral (art. 5º, inciso XV, alínea a, da constituição de 1946), excluída esta de legislação supletiva ou complementar dos Estados.

O STF entendeu inconstitucionais os dispositivos da carta Política do Estado do Pará que estabeleciam como requisito de elegibilidade o tempo de residência no Estado ou Município. Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães acompanhou o Ministro Relator, na forma dos argumentos apre-sentados, expressando seu entendimento de que a constituição do Pará, com a redação contestada, violava a forma republicana representativa — princípio constitucional sensível, da forma seguinte:

Senhor Presidente, também estou de acordo com Vossa Excelência. Teria apenas dúvida quanto ao fundamento da representação, que, segundo vi do rela-tório de Vossa Excelência, publicado no Diário de Justiça, foi apresentada com base no disposto no art. 5º, inciso XV, letra a; no art. 31, I; e no art. 135 e seus parágrafos, da constituição Federal.

No entanto, a constituição permite que o Procurador-Geral da República possa submeter representação ao Supremo Tribunal Federal apenas no caso de número VII do art. 7º da constituição. Mas Vossa Excelência atendeu a essa objeção que eu formularia, baseando sua decisão no preceito do art. 7º, inciso III, letra a, em que se diz que haverá intervenção para assegurar a obser-vância do seguinte princípio: a) forma republicana representativa.

(...)é realmente caso de intervenção, desde que essas disposições da

constituição estadual ofendam a forma republicana representativa, tal como a define a constituição Federal.

REPRESENTAÇÃO 322/GO

Na Rp 322/GO, julgada em 18 de setembro de 1957, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato, Relator o Ministro candido Motta Filho, o STF julgou ação contra ato da Assembléia Legislativa do Estado de Goiás. Embora não fosse um dispositivo constitucional, ou uma emenda à constituição estadual, o ato

25 Tais dispositivos tinham a seguinte redação:“Art. 37. São condições de elegibilidade para Governador e Vice-Governador do Estado:(...)III — ter cinco anos de permanência contínua no Estado, em qualquer época.Art. 70. São condições de elegibilidade para Prefeito e Vice-Prefeito:(...)c) ter dois anos de permanência contínua no Município, em qualquer época.”

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Memória Jurisprudencial

tinha essa mesma natureza, sendo editado sob o título de ato constitucional. Tratava-se de representação formulada com base em pedido encaminhado por Almorindo Magalhães Arantes, Deputado estadual por Goiás e pelos Diretórios Regionais do Partido Socialista Brasileiro e do Partido Republicano, contra os arts. 3º e 4º do Ato constitucional I, promulgado pela Assembléia Legislativa do Estado de Goiás, em 23 de maio de 1957. Esses dispositivos tinham o feito de prorrogar por mais um ano os mandatos de governador, vice-governador e prefeito daquele Estado, mas seriam incompatíveis com o art. 7º, inciso VI, da constituição de 1946 (forma republicana representativa).

O Procurador-Geral da República entendeu que havia inconstituciona-lidade em prorrogar mandato por via de constituição estadual, mediante deli-beração de Assembléia, ainda que por reforma constituinte, pois se equivaleria a eleger, por forma indireta, o ocupante do cargo pelo prazo da prorrogação. Acentuou, também, que era lícito à constituição estadual fixar a duração do mandato do governador, desde que não ultrapassasse o tempo fixado para seu equivalente na esfera federal, e que, ademais, fixar prazo para mandato e deter-minar sua prorrogação eram conceitos diversos.

Ao votar, o Ministro Hahnemann Guimarães expôs o seguinte enten-dimento:

Senhor Presidente, o princípio da forma republicana representativa exige, conforme demonstrou o eminente Relator em seu esplêndido voto, que o poder de representação seja exercido nos limites constitucionais. é certo que uma assem-bléia legislativa ordinária pode assumir poderes constituintes, mas deve fazê-lo dentro dos limites do poder de representação. Ora, esses limites, em face do art. 141, § 3º, da constituição, exigem que a Assembléia Legislativa, embora no exercício de poderes constituintes, não disponha senão para o futuro, não podendo fazê-lo retroativamente. Não se pode, pois, admitir que lei, com eficácia retroa-tiva, prorrogue mandato que, por força da lei vigente, tinha duração determinada. Assim, entendendo que o ato da Assembléia Legislativa do Estado de Goiás infringiu o art. 141 da constituição,26 dou pela procedência da representação.

O STF decidiu por unanimidade pela inconstitucionalidade do Ato cons-titucional I, de 1957, da Assembléia Legislativa do Estado de Goiás.

ATOS DO PODER ExECUTIVO ESTADUAL — POSSIBILIDADES DE CONTROLE

Na Rp 179/DF, julgada em 15 de dezembro de 1952, Presidente o Ministro José Linhares, Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, este firmou posi-ção de que atos do Poder Executivo estadual podiam ser objeto de controle de

26 constituição de 1946.

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Ministro Hahnemann Guimarães

constitucionalidade por via de representação interventiva, modalidade de con-trole abstrato. Pertinente à matéria, os arts. 7º, VII, e, e 8º da constituição de 1946 são transcritos:

Art. 7º O Governo Federal não intervirá nos Estados salvo para:(...)VII — assegurar a observância dos seguintes princípios:(...)e) autonomia municipal;(...)Art. 8º A intervenção será decretada por lei federal n. casos dos nos VI

e VII do artigo anterior.Parágrafo único. No caso do n. VII, o ato argüido de inconstitucionali-

dade será submetido pelo Procurador-Geral da República ao exame do Supremo Tribunal Federal, e, se este a declarar, será decretada a intervenção.

consta do relatório que o Procurador-Geral, atendendo ao pedido da câmara Municipal de São Paulo, argüiu a inconstitucionalidade do ato consis-tente na recusa em dar cumprimento à Lei 1.720, de 3 de novembro de 1952, a qual restabeleceu por completo a autonomia do Município, tendo como conse-qüência a continuação no cargo do prefeito nomeado pelo governador. consta também que o Procurador-Geral entendeu inidônea a representação, pois, como afirmou o Ministro castro Nunes na Rp 94/RS, de que foi Relator, a atribuição conferida ao STF no seu art. 8º, parágrafo único, tinha por objeto apenas ato legislativo ou constituinte (decorrente), e não ato governamental ou adminis-trativo. O Ministro Hahnemann Guimarães assim se manifestou em seu voto preliminar:

Não me parece que o ato previsto no art. 8º, parágrafo único, da consti-tuição seja apenas o constituinte ou o legislativo. O Supremo Tribunal Federal deve declarar a inconstitucionalidade de ato de qualquer dos poderes estaduais que contrarie princípio enunciado no art. 7º, VII, da constituição, e, assim, per-turbe a normalidade no Estado, tornando necessária e intervenção do Governo Federal ou exigindo, pelo menos, que se suspenda a execução do ato argüido de inconstitucionalidade (constituição, art. 13).

No caso presente, alega-se que o ato do Sr. Governador fere o princípio de autonomia municipal (constituição, art. 7º, VII, e). cumpre ao Supremo Tribunal examinar a argüição feita pela câmara Municipal.

A votação na preliminar foi unânime, no sentido de que o STF poderia declarar a inconstitucionalidade de qualquer dos poderes estaduais que con-trariasse os princípios enumerados no art. 7º, inciso VII, da constituição de 1946, prevalecendo, portanto, a posição do Ministro Hahnemann Guimarães. No mérito, foi decidido que o ato do Poder Executivo do Estado de São Paulo era constitucional, não ferindo a autonomia municipal, votando vencidos os Ministros Ribeiro da costa e Orozimbo Nonato.

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Memória Jurisprudencial

3. ADMINISTRATIVO

ANULAÇÃO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO POR AUSÊNCIA DE REqUISITOS LEGAIS

No MS 2.248/DF, julgado em 7 de julho de 1954, Presidente e Relator o Ministro Orozimbo Nonato, o STF analisou o caso de um processo administra-tivo em que três funcionários públicos estáveis, do quadro do Ministério das Relações Exteriores — Antônio Houaiss, Jatir de Almeida Rodrigues e Paulo Augusto cotrim Rodrigues Pereira — foram colocados em disponibilidade inativa sem remuneração. O inquérito administrativo teve razões políticas, baseando-se em supostas atividades subversivas dos pacientes, considerando que eles tinham convicções políticas ligadas ao ideário comunista, contrárias ao regime então vigente (Getúlio Vargas era o presidente e havia um movimento contra os partidos alinhados com a doutrina comunista, sendo que naquela época o Partido comunista era clandestino). O caso é mais um exemplo da resistência histórica do STF à tirania e condução de assuntos políticos por meio de perseguições políticas, e serviu de paradigma a outros.27

A decisão foi unânime, mas cada Ministro enfatizou diferentes razões (nulidade do processo por cerceamento de direito de defesa, inexistência da penalidade apontada e falhas processuais). O Ministro Hahnemann Guimarães assim se manifestou:

Senhor Presidente, o mandado de segurança é requerido por três motivos: primeiro, o inquérito administrativo de que resultou a punição dos requerentes foi totalmente nulo; segundo, não existe a punição imposta aos requerentes; ter-ceiro, não praticaram nenhum ato que legitimasse a punição impugnada.

Em princípio, penso que não se podem examinar defeitos do inquérito administrativo neste processo. No caso, no entanto, o inquérito administrativo sofre defeitos fundamentais e manifestos, como apontaram os requerentes, e Vossa Excelência, em brilhante voto, demonstrou cabalmente.

(...)Esses defeitos invalidam completamente o inquérito, e essa invalidação

pode ser declarada em mandado de segurança.A meu ver, o mandado de segurança deveria ter sido deferido, princi-

palmente, pela segunda razão, porque não existe mais a disponibilidade sem remuneração. Essa pena existiu na reforma oriunda do Decreto 10.592, de 15 de janeiro de 1931 (Reforma Mello Franco), e foi mantida na reforma cavalcante Lacerda, pelo Decreto 24.239, de 15 de maio de 1934. Essa pena, no entanto, foi completamente abolida pela reforma Oswaldo Aranha, consoante o Decreto-Lei 191, de 14 de outubro de 1938, art. 46.

Assim, desejo salientar que a segunda razão me parece mais fácil de aco-lher em mandado de segurança.

27 Ver, e.g.: GODOy, Arnaldo Sampaio de Moraes. A história do direito entre foices, martelos e togas: Brasil — 1935-1965. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 147-163.

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Ministro Hahnemann Guimarães

Diante dessa exposição, o Ministro Nelson Hungria redargüiu que este seria apenas um ponto de vista formal, sustentando que o direito dos impetran-tes é líquido, a que o Ministro Hahnemann Guimarães respondeu:

Eu deferiria o pedido, principalmente, pela segunda razão [a de que não existe a punição imposta aos requerentes], embora aceite a argüição a que obe-deceu o brilhante voto do Sr. Ministro Relator, Orozimbo Nonato, julgando nulo o processo administrativo.

DEMISSIBILIDADE DE FUNCIONáRIO PúBLICO NOMEADO — DIREITO à POSSE

A questão da demissibilidade de funcionário público nomeado regular-mente por ato unilateral do Governo foi enfrentada pelo STF no MS 1.159/DF, julgado em 31 de janeiro de 1950, Presidente o Ministro Laudo de camargo, Relator o Ministro Macedo Ludolf, Relator para o acórdão o Ministro Hahnemann Guimarães. O STF entendeu que o Governo não poderia, unilate-ralmente, tornar sem efeito decreto que nomeara, para estágio probatório, fun-cionário habilitado em concurso. No caso, a justificativa do ato administrativo revogatório do ato de nomeação baseava-se em uma “inabilitação na prova de investigação social”, sem maiores esclarecimentos. O ato revogatório, portanto, impediria o impetrante de tomar posse no cargo. O Procurador-Geral da Repú-blica, ao rebater as alegações do impetrante, sustentou em seu parecer:

A sua nomeação foi tornada sem efeito antes de sua posse, que, assim, não chegou a se verificar, não se podendo, portanto, considerar o impetrante com direito adquirido ao cargo para o qual foi nomeado, de vez que antes da posse o que tinha de prevalecer era o princípio de que são revogáveis os atos administrativos dos quais não haja resultado direito adquirido.

Sobre as considerações feitas pelo impetrante, na petição inicial, com respeito a seu pretendido direito, há de prevalecer a prova por ele mesmo feita de ter sido apurado que ele não satisfez as condições exigidas para a habilitação na prova de investigação social, que é de caráter eliminatório (fl. 20).

O Relator, Ministro Macedo Ludolf defendeu seu ponto de vista quanto à prevalência da inabilitação na prova de investigação social, alegando que o assunto levaria ao exame de elementos probatórios e nessa linha indeferiu o pedido. Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães reverteu a posição do Relator original e foi designado Relator para o acórdão, tendo sido seu voto lavrado nos seguintes termos:

Senhor Presidente, o ilustre advogado do requerente fez duas afirmações com as quais estou inteiramente de acordo. Primeira, a de que o princípio da revogabilidade dos atos administrativos cessa quando do ato decorrem direitos para alguém. Não é possível que o Governo, unilateralmente, revogue ato seu de

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Memória Jurisprudencial

que resultem direitos para outrem. A outra afirmação, à qual adiro inteiramente, é a que se funda no art. 17, § 6º, dos Estatutos dos Funcionários Públicos, onde se dispõe:

Homologado o concurso, serão também exonerados os interinos inabilitados.Daí decorre, a contrario sensu, que os interinos habilitados não serão

exonerados e terão de ser nomeados. E nomeado foi o requerente. Antes de tomar posse, porém, no vigésimo dia, antes de decorridos os trinta dias para aquele fim, o Presidente da República revogou o decreto de nomeação. Parece-me que isso foi irregular. A exigência do estágio probatório de dois anos, para o funcio-nário nomeado em virtude de concurso, não autoriza a revogação do decreto de nomeação. A constituição, que prevalece sem dúvida sobre o Estatuto, dispõe:

Art. 188. São estáveis:I — depois de dois anos de exercício, os funcionários efetivos

nomeados por concurso.Vê-se, por conseguinte, que, durante o estágio probatório de dois anos, o

funcionário pode ser demitido, mas por não haver provado a sua capacidade para o exercício do cargo. Não me parece, porém, possível, que, unilateralmente, o Governo revogue seu ato. O decreto de nomeação não pode ter sua eficácia revo-gada sem um fundamento legítimo. é preciso haver um decreto de demissão.

Porém, aqui haveria que se demonstrar a base do raciocínio, ou seja, qual seria o fundamento legítimo para anular o ato de nomeação? Nesse caso, o princípio da fundamentação dos atos administrativos aflora. Assim, seria preciso haver um motivo para que o ato fosse anulado, e, na sua ausência, a anulação deveria ser desfeita. Nesse sentido, prossegue o Ministro Hahnemann Guimarães:

O fundamento legítimo seria a nulidade do concurso à falta dessa prova de investigação social, que se requer para a habilitação dos candidatos. Não foi feita essa prova. O requerente, habilitado em concurso, devia provar sua capaci-dade para ser inspetor de alunos. Diz ele, porém, que, nomeado em caráter efetivo o interino aprovado em concurso, já demonstrara, na interinidade, a ido-neidade moral necessária à função pública. Realmente, não parece admissível negar-se ao interino capacidade moral; do contrário, não teria sido conservado no cargo, deveria ter sido exonerado antes de inscrever-se em concurso. O indi-víduo conservado no cargo interino tem por si o reconhecimento do Governo quanto a sua idoneidade moral. Assim, o ato revogatório da nomeação, sem forma nem figura de processo administrativo regular, parece-me, infringe a norma legal, o preceito da lei. Regular seria a demissão durante o estágio proba-tório, mas não a revogação do decreto de nomeação. Se o funcionário nomeado por concurso não demonstrasse, durante os dois anos do estágio probatório, ido-neidade moral para o exercício do cargo, então seria lícito ao Governo demiti-lo, antes de adquirir ele a estabilidade.

O Ministro Macedo Ludolf, Relator, interveio: “Quer dizer que Vossa Excelência admite que o Governo demita o funcionário nomeado por concurso antes de haver ele adquirido estabilidade?” E o Ministro Hahnemann Guimarães

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Ministro Hahnemann Guimarães

respondeu com uma única palavra: “Admito.” O Ministro Macedo Ludolf redar-güiu: “E será necessário, para isso, inquérito administrativo? A lei só exige o inquérito para o funcionário que haja adquirido estabilidade.” O Ministro Hahnemann Guimarães, então, detalhou seu ponto de vista e encerrou seu voto:

Entendo que, mesmo durante o estágio probatório, o funcionário não é demissível ad nutum. O funcionário nomeado por concurso nunca é demissível ad nutum. O estágio probatório tem por fim verificar a capacidade do funcionário para o exercício do cargo. Nessas condições, concedo o mandado de segurança, porque não me parece possível a revogação de ato administrativo de que decor-reram direitos para terceiros, sem processo administrativo ou judicial regular.

Adiante o Relator voltaria a intervir, à guisa de explicação, no voto do Ministro Ribeiro da costa, em questão que envolvia a certeza e liquidez do direito assegurado. Participou do diálogo também o Ministro Luiz Gallotti. O Ministro Macedo Ludolf reasseverou seu ponto de vista de que no caso não haveria direito líquido e certo, e portanto descaberia o mandado, e o direito pleiteado deveria ser ventilado em ação própria. Nesse ponto, o Ministro Hahnemann Guimarães interveio, oferecendo uma explicação ao seu voto, nos seguintes termos:

Senhor Presidente, devo uma explicação ao eminente Ministro Macedo Ludolf, que, naturalmente, habituado a ver a severidade com que julgo os pedi-dos de mandado de segurança, talvez haja estranhado a facilidade com que concedi este.

Mas, Senhor Presidente, minha atitude decorreu do fato de haver encon-trado, no caso, nitidamente violado um direito líquido e certo.

é certo e líquido o direito que tem o candidato habilitado em concurso e nomeado, a ser provido no cargo, não podendo ser dele afastado mediante uma simples revogação do ato administrativo da nomeação. Esse direito é líquido e certo. O Governo não pode revogar, unilateralmente, um ato seu, de que decor-reu direito para outrem. Esse direito líquido e certo é que foi infringido, no caso.

O funcionário era interino. Foi, por força da lei, inscrito no concurso. Habilitou-se no concurso e foi nomeado. Quando decorria o prazo para a tomada de posse no cargo, o governo, por ato seu, por iniciativa própria, revogou a nomeação. Nisto é que vejo violação do direito líquido e certo que tinha o fun-cionário de ser provido no cargo, só podendo ser afastado se, durante o estágio probatório, não desse boa conta da sua competência, da sua capacidade para a função pública.

O ato do Presidente da República, demitindo o funcionário durante o estágio probatório, não pode ser um ato imotivado, porque o funcionário não é demissível ad nutum, o ato tem de ser justificado, não pode ser arbitrário, discricionário.

Assim, data venia, mantenho meu voto.

A posição vencedora do Ministro Hahnemann Guimarães, pela qual se tor-nou Relator para o acórdão, solidificou-se como jurisprudência do STF. Ele partici-paria de outros julgamentos, com resultado idêntico, a exemplo do RMS 9.289/ SP,

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Memória Jurisprudencial

decidido em 4 de junho de 1962, Presidente o Ministro Lafayette de Andrada, Relator o Ministro Ary Franco. Nesse caso, o Município que fez o concurso ale-gava falta de recursos nos cofres públicos para efetivar a posse, já tendo sido feita a nomeação. Em seu voto, dando provimento ao recurso, ponderou o Ministro Hahnemann Guimarães:

A exaustão dos recursos do Município justificaria, talvez, a extinção do cargo; mas, existindo o cargo, e havendo para ele sido nomeado funcionário que se submeteu a concurso, de acordo com o edital, não é possível que lhe seja negado o direito à posse.

Tal linha de entendimento gerou a Súmula 16 do STF, que diz: “Funcio-nário nomeado por concurso tem direito à posse”, aprovada na sessão plenária de 13 de dezembro de 1963. contudo, a Súmula/STF 17 aparentemente estabe-lece o contrário quando diz: “A nomeação de funcionário sem concurso pode ser desfeita antes da posse.” Ocorre que jurisprudência do STF ressalva que esse desfazimento só pode se dar caso o provimento não tenha sido por meio de concurso público.28

REVOGAÇÃO DE ATO ADMINISTRATIVO BILATERAL — LIMITES

No RE 9.830/MT, julgado em 13 de julho de 1948, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, o STF enfren-tou a questão da revogabilidade de atos administrativos. No caso, uma transação efetivada pela Procuradoria do Estado de Mato Grosso, após seu recebimento pela via executiva, foi objeto de revogação pelo Estado. Vencido no Tribunal do Estado, recorreu de extraordinário. com o caso no STF, este exarou o enten-dimento de que a transação celebrada entre o Estado e seu credor não poderia ser revogada por declaração unilateral do devedor. No bojo da questão, foi discutido também se eram devidos os honorários pelo devedor executado, no caso de não ser apurada a culpa do Estado devedor. Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães exarou o seguinte entendimento:

A regra factum infectum fieri nequit é, sem dúvida, contrariada na revo-gação dos atos jurídicos. A revogabilidade fica, porém, excluída sempre que, em virtude do ato, se constituiu definitivamente uma situação jurídica, ou, por outras palavras, talvez menos claras, sempre que do ato resultou um direito subjetivo.

é, assim, revogável o testamento, e o contrato não pode ser revogado unilateralmente.

O que se diz a respeito dos atos jurídicos privados diz-se também dos atos administrativos.

28 Ver, e.g., RE 48.917/Sc, de 18-9-1962, e RE 51.223/Sc, de 16-4-1963 (o Ministro Hahnemann Guimarães participou de ambas as decisões).

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Ministro Hahnemann Guimarães

Não se admite a revogação de um contrato administrativo perfeito. Afirma-se mesmo que, satisfeita a condição rebus sic atantibus, o ato adminis-trativo acabado é irrevogável.

No acórdão de 19 de janeiro de 1943, o Sr. Ministro Orozimbo Nonato, Relator, acolheu a doutrina de que “os atos administrativos, particularmente aqueles de que resulta uma situação individual, não podem ser revogados pela própria administração” (Revista de Direito Administrativo, cit., p. 182).

é, pois, inaceitável a argüição de haver o acórdão de 4 de abril de 1945 discordando do Supremo Tribunal Federal.

Seguindo a linha argumentativa, novamente a idéia de justificar-se a revogação do ato administrativo apresentou-se. Além da motivação, há o pro-blema da bilateralidade, tendo em vista o fato de decorrer de transação. Nesse caso, os limites da discricionariedade são mais estreitos. São princípios do Direito Administrativo que estão em discussão. Prossegue, então, o Ministro Hahnemann Guimarães:

A transação celebrada entre o Estado e seu credor não pode ser revogada por declaração unilateral do devedor. é ato jurídico irrevogável.

O poder que tem a autoridade administrativa de rever, por iniciativa pró-pria, o despacho contrário à Fazenda Pública (Decreto 20.848, art. 1º, parágrafo único), não abrange o ato jurídico que se tornou perfeito pela constituição de um vínculo para a mesma Fazenda.

No caso, o Estado de Mato Grosso não podia, unilateralmente, desfazer o ato consumado em 9 de dezembro de 1936.

A decisão recorrida não achou, entretanto, que o devedor houvesse incorrido em mora, e assim não o condenou ao pagamento dos honorários do ad vogado dos credores. Haveria infração do preceito contido no art. 64 do código de Processo civil, se o Tribunal negasse os honorários, depois de ter verificado a culpa do devedor. Não se considerou culposa a inexecução, porque o Estado pretendia apurar, administrativamente, a existência da dívida e com isto concordaram os credores.

As impugnações estão destituídas de fundamento; não conheço, pois, de ambos os recursos.

De se observar que essa questão foi discutida em diversos casos pelo STF, tendo sido concretizado seu entendimento nas Súmulas 346 e 473.29

29 Súmula/STF 346, aprovada em sessão plenária de 13-12-1963: “A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos”; e Súmula/STF 473, aprovada em sessão plenária de 3-12-1969: “A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a aprecia-ção judicial.”

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Memória Jurisprudencial

REVOGAÇÃO DE ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONáRIO — LIMITES

O STF enfrentou questão acerca da revogação, pelo Presidente da República, de autorização para que se importasse farinha de trigo no ano de 1951. O MS 1.424/DF e o MS 1.431/DF foram julgados em 3 de outubro daquele ano, Presidente o Ministro José Linhares e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães.

Para um melhor entendimento da questão, faz-se necessário detalhar o caso, conforme consta no relatório do Ministro Hahnemann Guimarães. No processo levado ao STF, uma empresa de exportação e importação havia impetrado dois mandados de segurança contra a carteira de Exportação e Importação do Banco do Brasil (cEXIM), órgão à época responsável por exe-cutar ordens da Presidência da República relativas a políticas de importação e exportação. Em 27 de julho de 1950, a impetrante havia dirigido um memo-rial ao Presidente da República explicando os motivos pelos quais pleiteava a licença prévia para importação de farinha de trigo do Uruguai, entre elas a de que a quantidade de farinha de trigo produzida no Brasil era insuficiente para atender o mercado interno. Tendo conseguido a autorização em 13 de setembro de 1950, com opinião favorável inclusive da cexim, a impetrante negociou com o Governo do Uruguai, com bancos uruguaios e com empresas exportadoras o montante de 30 mil toneladas de trigo. Finalmente, em 31 de outubro de 1950, a impetrante fechou acordo com um exportador uruguaio (importação de 30 mil toneladas de farinha de trigo).

Todavia, imotivadamente, a cexim ficou inerte, não emitindo a licença prévia, autorizada pelo Presidente, o que impediu a entrada do produto no País. Em vista dessa postura, no dia 30 de novembro de 1950, foi impetrado o primeiro mandado de segurança, MS 1.424, para obrigar a cexim a conceder licença prévia para se importar a farinha de trigo, com base em autorização con-cedida pelo Presidente da República. chamada a prestar informações, a cexim informou, em 9 de dezembro de 1950, que, na data de 24 de novembro de 1950, o Presidente havia revogado a autorização por ele concedida. Tendo em vista que a revogação se dera poucos dias antes da impetração e fora divulgada em 9 de dezembro, a impetrante achou por bem emendar a inicial. Nesse quadro, foi impetrado o segundo mandado de segurança, MS 1.431, para completar a segu-rança pleiteada no primeiro, com pedido para que se julgasse prejudicado o pri-meiro mandado de segurança, pois o pedido do segundo seria mais abrangente.

Houve, também, decisão liminar para que não se concedesse licença prévia para se importar farinha de trigo até que a contenda fosse encerrada. Em virtude de a revogação da autorização para a importação de trigo só ter sido divulgada depois de impetrado o mandado de segurança, foi aceita a nova impetração. As razões, apresentadas em informação, para a revogação do ato

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Ministro Hahnemann Guimarães

foram, principalmente, as seguintes: a) várias associações de classe do país manifestaram-se contra a concessão feita à impetrante por se tratar de empresa sem tradição no ramo de negócio; b) a impetrante não possuía idoneidade finan-ceira para fazer frente ao montante negociado.

contestando as alegações apresentadas, o Procurador-Geral da República afirmou não haver nenhum direito subjetivo ofendido e elencou uma série de motivos para sua revogação, entre eles a de que não houve concerto dos detalhes da operação comercial entre as partes, mas apenas que a exportadora buscou a eventual beneficiada pela autorização para com ela negociar, e que o caráter da autorização fora excepcional e suscitara reclamações por diversas entidades de classe interessadas no processo. Alegou-se também que a impetrante não teria tradição no negócio, nem idoneidade econômico-financeira, dada a modéstia do capital social em contraste com os valores envolvidos (mais de 2 mil vezes o valor) e, assim, jamais poderia honrar, por si própria, o negócio e seria mera titular da licença expedida, cabendo a outros interessados a sua efetiva utiliza-ção. O Procurador-Geral argumentou também que ainda não havia sido deferido o pedido de licença de importação e que a empresa uruguaia já havia notificado a impetrante da rescisão do contrato de exportação em 20 de dezembro de 1950.

A tese discutida no acórdão é que, embora o ato administrativo seja essencialmente revogável, não pode ser revogado quando dele resulta direito subjetivo. O ato administrativo é vinculativo para a autoridade que o pratica, sempre que dele resulte direito. Em seu voto, acompanhado pela maioria, o Ministro Hahnemann Guimarães manifestou-se da seguinte forma:

Senhor Presidente, deferindo o requerimento que li, inicialmente, ao Tribunal, considero prejudicado o pedido constante dos autos de MS 1.424, para restringir a minha apreciação ao pedido que consta dos autos 1.431.

O eminente Sr. Procurador-Geral da República, no justo zelo com que se empenha na defesa das causas da Fazenda Pública nacional, trouxe um argu-mento novo, que não foi considerado, até agora, na controvérsia travada, o de que o Presidente da República, autorizando a importação de trinta mil toneladas de farinha de trigo em favor da requerente do mandado de segurança, cometera uma ilegalidade. Leu S. Exa. a este Tribunal o texto do Decreto 26.159, de 7 de janeiro de 1949, em cujo art. 1º se diz:

Fica suspensa, até ulterior deliberação, a entrada em todo o terri-tório nacional de farinha de trigo de qualquer qualidade e procedência.Ulterior deliberação tomaria o Presidente da República, autorizando a

importação de trinta mil toneladas de farinha.

Nesse ponto, o Ministro Rocha Lagôa interveio: “Um simples despa-cho pode revogar um decreto referendado por dois Ministros de Estado?” E o Ministro Hahnemann Guimarães prosseguiu dizendo que o Presidente da República havia amadurecido o exame da matéria de 27 de julho de 1950 até 13 de setembro de 1950, quando fora dada a autorização. Dessa forma esta não

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Memória Jurisprudencial

fora levianamente concedida, visto que houvera estudos anteriormente, e a autorização teria sido dada à vista de um memorial apresentado pela requerente, que denunciou o trust dos moageiros, “atribuindo-lhes a responsabilidade pela situação do mercado nacional da farinha de trigo, atribuindo-lhes e a respon-sabilidade da escassez de farinha de trigo”. Assim, em vista desse memorial e de um inquérito da Delegacia de Economia Popular, o Presidente da República resolvera autorizar a importação do produto (40 mil toneladas, 30 mil para a firma em causa e 10 mil para um terceiro). Em seguida, Ministro Hahnemann Guimarães repetiu, com outros termos, a descrição do caso e depois prosseguiu:

Tendo celebrado o contrato de compra e venda, a requerente pediu ao Banco do Brasil que expedisse em seu favor a licença prévia de importação, nos termos do Decreto 27.541, de 3 de dezembro de 1949, que é o decreto regulador da matéria da licença prévia, decreto expedido para cumprimento da Lei 842, de 4 de outubro de 1949.

Instaurou-se na carteira de Exportação e Importação do Banco do Brasil o competente processo, que deveria estar solucionado, nos termos da lei, no prazo de trinta dias. A lei estabelece, no art. 10 do Decreto 27.541, que os pedi-dos de licença prévia para importação serão solucionados no prazo máximo de trinta dias. O Banco do Brasil, ainda pelos fins de novembro, não havia dado licença prévia, nos termos da lei.

Daí resultou o primeiro pedido de mandado de segurança, em que plei-teava a requerente fosse a carteira de Exportação e Importação do Banco do Brasil compelida a expedir a licença prévia, a que se recusava, sem razão. Foi, então, que, na informação de 9 de dezembro se 1950, revelou aquela carteira do Banco do Brasil que o Presidente da República revogara o seu próprio ato, aten-dendo ao clamor de associações de classe, que denunciavam a requerente como firma destituída de tradição na praça.

Aqui chegamos, Senhor Presidente, aos dois princípios pelos quais me parece manifesta a ilegalidade da revogação da autorização conseguida. Primeiro, não se trata de ato discricionário. Segundo, o ato administrativo só é revogável, quando dele não haja resultado vínculo jurídico.

Este seria o ponto central do argumento do Ministro Hahnemann Guimarães, que passou, então, a explicar, com base em princípios do Direito Administrativo e em minuciosa leitura da tessitura normativa que disciplinava a matéria, por que os atos praticados contrariavam o ordenamento vigente:

A licença prévia não é ato discricionário. A lei, expressamente, enumera os fundamentos pelos quais pode essa licença prévia ser negada. Da denegação da licença prévia pela carteira de Exportação e Importação do Banco do Brasil, cabe sempre recurso para o Ministro da Fazenda, nos termos do art. 1º, pará-grafo único, do referido Decreto 27.541. Só pode ser denegada a licença prévia, nos termos do art. 2º, (...) para atender ao regular abastecimento do mercado nacional; ou quando não houver disponibilidade na moeda de pagamento, na moeda em que deva ser feito o pagamento da mercadoria; ou ainda, quando houver produto, no país, de iguais características tecnológicas e de condições satisfatórias de preço. Só por estes fundamentos é que pode ser negada a licença

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Ministro Hahnemann Guimarães

prévia. A lei não admite que o Governo possa articular razões contrárias à con-cessão da licença prévia que não caibam nos casos restritíssimos enumerados no art. 2º do referido diploma legal. Não há, na lei, nenhum poder atribuído ao Banco do Brasil para fazer a polícia do comércio, desta ou daquela sociedade. Nenhuma competência tem o Banco do Brasil para arvorar-se em tutor do mer-cado e dizer quais são as firmas idôneas ou inidôneas para exercer o comércio importador ou exportador. Ele tem de apreciar essa idoneidade em face das con-dições estritamente enumeradas na lei.

A lei não fala em firmas tradicionais ou destituídas de tradição; a lei pro-cura prevenir a possibilidade de não poder dar o exportador ou importador cum-primento às suas disposições, estabelecendo que, uma vez concedida a licença prévia, dela decairá o importador se não a utilizar no prazo de 30 dias, dizendo: “ficam os beneficiários de licença obrigados a comprovar documentalmente perante a carteira, no máximo até trinta dias após o respectivo vencimento, a utilização total ou parcial das licenças obtidas” (art. 11 do Regulamento apro-vado pelo Decreto 27.541, de 3 de dezembro de 1949). Por esta disposição é que se faz a polícia da idoneidade dos importadores. Se o importador não tiver ido-neidade para cumprir a obrigação assumida em conseqüência da licença prévia, ele decairá da licença, perderá os beneficios da licença. As medidas preventivas, para evitar que a licença seja concedida a quem não se possa desincumbir das obrigações assumidas, estão enumeradas nos arts. 26 a 29 do referido Decreto 27.541.

Aqui o Ministro Hahnemann Guimarães demonstra a necessidade de uma leitura detalhada da legislação que rege a matéria, para que se conduza a uma correta solução jurídica. Não é um passo largo dentro da norma, é um caminhar miúdo, mas não com pequenez; detalhado, mas não desnecessário ou redundante. Tudo isso para demonstrar o ponto de que o ato não é discricionário. Veja-se a passagem:

No art. 26, enumeram-se os requisitos que devem ser preenchidos pelo importador que queira obter a licença prévia, e não se faz aí nenhuma exigência relativa à prova de idoneidade do importador. Ele deverá indicar o seu nome e o endereço; o nome e o endereço do consignatário; o nome e o endereço da pessoa, firma ou entidade que empregará o produto; país de origem, de procedência, e o porto de descarga; aplicação que terá o produto; especificação rigorosa do pro-duto, inclusive peso líquido em quilos e valor aproximado — cIF — em moeda estrangeira e nacional; número do produto; dados sobre o consumo anterior (importações e aquisições no mercado interno) da pessoa, firma ou entidade que empregará o produto — por aqui é que se pode fazer, preventivamente, o exame da idoneidade —, bem como o seu estoque na data do pedido; condições do for-necimento, se de uma vez ou parceladamente; forma de pagamento, se por meio de abertura de um único crédito ou de vários, correspondentes a embarques parcelados, ou se contra saque à vista, a prazo ou mediante remessa posterior.

Por esses requisitos, evidentemente se verifica que não pode o Banco do Brasil negar a licença prévia, sob o pretexto de que não tem a firma a tradição, nem pode negar a licença prévia para atender a clamor de associação de classe, talvez interessada em evitar o aparecimento de um novo concorrente.

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Assim, não me parece, de modo nenhum, admissível a tese de que a licença prévia constitui um ato discricionário do Governo; ao contrário, consti-tui até ato estritamente regulado, que a carteira de Exportação e importação do Banco do Brasil — de cujas decisões cabe recurso para o Ministro da Fazenda — e o Governo devem praticar em obediência rigorosa aos preceitos legais enume-rados; arts. 2, 10 e 11 e, especialmente, arts. 26 a 29 do Regulamento aprovado pelo mencionado Decreto 27.541.

construído e demonstrado o argumento principal, restava lapidar os outros aspectos relativos à formação da natureza contratual do ato, também importantes, para que o edifício argumentativo não revelasse nenhuma fragi-lidade. Assim, o Ministro Hahnemann Guimarães conduz para o fechamento do voto:

Além de não ser um ato discricionário, é preciso atentar-se em que da autorização do Presidente da República decorreu para o Poder que concedeu a autorização um vínculo jurídico. O Senhor Presidente da República, depois de um processo administrativo, iniciado em 27 de julho de 1950, concedeu, em 13 de setembro, a autorização. Em conseqüência dessa autorização, foi celebrado um contrato de compra e venda; em suma, em conseqüência dessa autorização, decorreu direito para alguém, surgiu um vínculo jurídico, e a existência desse vínculo torna, para mim, impossível a revogação do ato administrativo, embora conceda que, em princípio, em essência, este ato seja eminentemente revogá-vel. Mas não era possível ao Presidente da República, que deliberou autorizar a importação da farinha de trigo, no uso de uma atribuição que, me parece, lhe confere o próprio Decreto 26.159; não lhe era possível revogar o ato, que dera lugar à celebração do contrato.

Por estas razões, considerando ilegal a revogação da autorização para serem importadas as 30.000 toneladas de farinha de trigo; considerando que não há fundamento na lei para que a carteira de Exportação e Importação do Banco do Brasil recuse a licença prévia, a pretexto de não ter a firma tradição e de que as associações de classe interessadas clamam contra essa autorização, concedo a segurança requerida.

A votação para desconsiderar o MS 1.424/DF foi unânime; porém, no mérito do outro mandado, o STF decidiu pela concessão da segurança, com um único voto contrário do Ministro Rocha Lagôa, que sustentou o argumento de que o vínculo jurídico só se formaria se efetivamente a cexim tivesse expedido a licença, o que de fato não ocorrera.

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Ministro Hahnemann Guimarães

4. DESAPROPRIAÇÃO

VALOR DA INDENIzAÇÃO

No RE 9.550/DF, julgado em 3 de janeiro de 1947, na Segunda Turma, discutiu-se a questão do valor a ser pago na indenização por desapropriação.30 Foi Presidente o Ministro Orozimbo Nonato, Relator o Ministro Lafayette de Andrada e Relator para o acórdão o Ministro Hahnemann Guimarães.

O Ministro Relator sustentou sua posição histórica de que o dispositivo constante do parágrafo único do art. 27 do Decreto-Lei 3.365, de 21 de junho de 1941 (norma que cuida da desapropriação por utilidade pública), deveria prevalecer ainda que o valor do bem desapropriado fosse superior ao ali estipu-lado. Ao julgar o feito, o Ministro Hahnemann Guimarães dissentiu juntamente com os outros Ministros, sendo vencido o Relator. Os Ministros Hahnemann Guimarães e Orozimbo Nonato ressaltaram que mantinham a posição no mesmo sentido de seus votos em casos anteriores, sem maiores considerações.

No RE 11.420, julgado em 19 de maio de 1947, Presidente o Ministro Barros Barreto e Relator para o acórdão o Ministro Ribeiro da costa, tomando parte no julgamento também o Ministro Hahnemann Guimarães, a Primeira Turma decidiu no mesmo sentido, contra os votos dos Ministros Barros Barreto e castro Nunes. casos semelhantes sobreviriam, sendo que o Ministro Hahnemann Guimarães iria participar ativamente da solidificação dessa posi-ção na jurisprudência do STF.

No RE 9.002/DF, decidido em 6 de maio de 1947 e em que foi Presidente o Ministro Orozimbo Nonato e Relator o Ministro Lafayette de Andrada, sendo Relator para o acórdão o Ministro Hahnemann Guimarães, o STF enfren-tou novamente o problema da interpretação do parágrafo único do art. 27 do Decreto-Lei 3.365/1941, que dispunha (redação vigente à época)31:

30 Ver a respeito do tema, tratando do conceito de indenização expropriatória: cÂMARA FILHO, Roberto Mattoso. A desapropriação por utilidade pública. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 1994. p. 159-175.31 O parágrafo único e depois parágrafos deste dispositivo sofreram diversas alterações (segue sua redação atual com a menção dos dispositivos modificadores). cabe ressaltar a alteração introduzida pela Lei 2.786, de 1956, no sentido da posição de Hahnemann Guimarães, nova-mente alterada, mais recentemente, pela Medida Provisória 2.183-56, de 2001, que introduziu modificação ao § 1º, mas fixou um teto para o mesmo. A Medida Provisória 2.183-56/2001 foi contestada por via da ADI 2.332-2/DF, sendo que o STF deferiu liminar para suspender a limi-tação (teto) para os honorários a ser fixada em R$ 151.000,00 (cento e cinqüenta e um mil reais). Eis a redação atual:

“Art. 27. O juiz indicará na sentença os fatos que motivaram o seu convencimento e deverá atender, especialmente, à estimação dos bens para efeitos fiscais; ao preço de aquisição e inte-resse que deles aufere o proprietário; à sua situação, estado de conservação e segurança; ao va-lor venal dos da mesma espécie, nos últimos cinco anos, e à valorização ou depreciação de área remanescente, pertencente ao réu.

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Memória Jurisprudencial

Art. 27. O juiz indicará na sentença os fatos que motivaram o seu con-vencimento e deverá atender, especialmente, à estimação dos bens para efeitos fiscais; ao preço de aquisição e interesse que deles aufere o proprietário; à sua situação, estado de conservação e segurança; ao valor venal dos da mesma espécie, nos últimos cinco anos, e à valorização ou depreciação de área rema-nescente, pertencente ao réu.

Parágrafo único. Se a propriedade estiver sujeita ao imposto predial, o quantum da indenização não será inferior a dez, nem superior a vinte vezes o valor locativo, deduzida previamente a importância do imposto, e tendo por base esse mesmo imposto, lançado no ano anterior ao decreto de desapropriação.

O Ministro Lafayette de Andrada defendia que o limite posto no pará-grafo único tinha de ser observado. Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães sustentou sua posição da seguinte forma:

Senhor Presidente, o eminente advogado do segundo recorrente susci-tou, da Tribuna, uma preliminar que me parece requerer detido exame. Acha o ilustre advogado que, desde que se afirme, reiteradamente, certa jurisprudência, nos tribunais, não caberá mais o recurso extraordinário, com fundamento no inciso III do art. 101, letra d.

Por maior que seja a auctoritas rerum similiter iudicatarum, nunca se pode, em nosso direito, admitir que a jurisprudência não possa ser alterada, e a divergência, desde que seja apontada, embora, posteriormente, o Tribu-nal tenha adotado decisões reiteradas em certo sentido, dá cabimento para o recurso extraordinário. Basta que se aponte a divergência, para que seja possível o recurso extraordinário, embora, depois do acórdão dado como divergente, o Tribunal se tenha manifestado reiteradamente, repetidamente, sem variação, em certo sentido, contrário ao mesmo acórdão.

Assim, por mais que o Supremo Tribunal Federal e outros tribunais do País hajam afirmado que é transponível o limite fixado no parágrafo único do art. 27 do Decreto-Lei 3.365, de 1941, acho eu que haverá sempre cabimento

[§ 1º A sentença que fixar o valor da indenização quando este for superior ao preço ofere-cido, condenará o desapropriante a pagar honorários de advogado, sobre o valor da diferença. (Incluído pela Lei 2.786/1956, vigorando até a alteração pela Medida Provisória 2.183-56/2001.)]

§ 1º A sentença que fixar o valor da indenização quando este for superior ao preço oferecido condenará o desapropriante a pagar honorários do advogado, que serão fixados entre meio e cinco por cento do valor da diferença, observado o disposto no § 4º do art. 20 do código de Processo civil, não podendo os honorários ultrapassar R$ 151.000,00 (cento e cinqüenta e um mil reais). (Redação dada pela Medida Provisória 2.183-56/2001.) (Vide ADI 2.332-2.)

§ 2º A transmissão da propriedade, decorrente de desapropriação amigável ou judicial, não ficará sujeita ao imposto de lucro imobiliário. (Incluído pela Lei 2.786, de 1956)

§ 3º O disposto no § 1º deste artigo se aplica: (Incluído pela Medida Provisória 2.183-56/2001.)I — ao procedimento contraditório especial, de rito sumário, para o processo de desapropria-

ção de imóvel rural, por interesse social, para fins de reforma agrária; (Incluído pela Medida Provisória 2.183-56/2001.)

II — às ações de indenização por apossamento administrativo ou desapropriação indireta. (Incluído pela Medida Provisória 2.183-56/2001.)

§ 4º O valor a que se refere o § 1º será atualizado, a partir de maio de 2000, no dia 1º de janeiro de cada ano, com base na variação acumulada do Índice de Preços ao consumidor Amplo — IPc do respectivo período. (Incluído pela Medida Provisória 2.183-56/2001.)”

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Ministro Hahnemann Guimarães

para o recurso extraordinário, desde que há, sem dúvida, decisões que entende-ram que esse limite era intransponível.

Por mais que se tenha, pois, afirmado a jurisprudência no sentido da transponibilidade desse limite, divergência houve, divergência existe, e ela basta para justificar a interposição do recurso extraordinário.

A meu ver, o limite fixado no art. 27, parágrafo único, do Decreto-Lei 3.365, de 1941, não é intransponível; a indenização deve ser justa, deve reparar o prejuízo, decorrente da extinção da propriedade; deve corresponder ao valor da propriedade. Não é justo que se empobreça, que se desfalque o patrimô-nio alheio, sem que o desfalque seja completamente reparado pelo poder expro-priante. O preço da expropriação é o preço da propriedade; deve ser pago todo o valor da propriedade. O limite, portanto, fixado na lei é um limite transponível.

A meu ver, a lei procurou apenas fornecer um critério exemplificativo, orientador, que não será o único critério que se imporá à observância do juiz. A esse respeito já me tenho manifestado, reiteradamente.

A decisão dando provimento ao recurso só teve o voto contrário do Ministro Lafayette de Andrada. Em seu voto, o Ministro Edgard costa lembrou que a jurisprudência do STF era no sentido da transponibilidade do máximo fixado em lei — o que gerava muitos recursos com base no art. 101, III, d, da constituição de 1946,32 por divergência manifesta dos Tribunais locais —, mas que o STF não podia tomar nenhuma providência a respeito. O Ministro Orozimbo Nonato lembrou que a constituição falava em “indenização”, signi-ficando com isto o “pagamento do justo valor, eliminação de dano ou prejuí zo”. O discurso do Ministro Hahnemann Guimarães em defesa do direito de pro-priedade foi vencedor nos debates que se seguiram, contendo a ementa do acór-dão por ele lavrado lapidar frase: “Determina-se o preço da expropriação pelo valor da propriedade.”

O STF julgaria inúmeros outros casos, com decisão no mesmo sentido, aplainando-se a jurisprudência.33 Dois casos, porém, que tiveram a participação do

32 Diz o dispositivo mencionado da constituição de 1946:“Art. 101. Ao Supremo Tribunal Federal compete:(...)III — julgar em recurso extraordinário as causas decididas em única ou última instância por

outros Tribunais ou juízes:(...)d) quando na decisão recorrida a interpretação da lei federal invocada for diversa da que lhe

haja dado qualquer dos outros Tribunais ou o próprio Supremo Tribunal Federal.”33 citam-se como exemplos: RE 12.824/DF, de 20-8-1948, sob a presidência do Ministro Orozimbo Nonato e relatoria do Ministro Lafayette de Andrada, sendo Relator para acórdão o Ministro Hahnemann Guimarães; RE 12.280, de 14-12-1948, sob a presidência do Ministro Edgard costa e relatoria do Ministro Hahnemann Guimarães; RE 12.402/DF, de 14-12-1948, sob a presidência do Ministro Edgard costa e relatoria do Ministro Hahnemann Guimarães (este dois últimos em decisão unânime da Segunda Turma; não votou o Ministro Lafayette de Andrada); RE 12.607, de 28-1-1949, sob a presidência do Ministro Goulart de Oliveira e relatoria do Ministro Hahnemann Guimarães; RE 9.007/DF, de 27-5-1949, sob a presidência do Ministro Laudo de camargo e relatoria do Ministro Hahnemann Guimarães.

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Memória Jurisprudencial

Ministro Hahnemann Guimarães, merecem destaque. O primeiro é o RE 11.175/BA, decidido em 14 de outubro de 1947, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato e Relator o Ministro Edgard costa. Nesse caso, discutiu-se a desapropriação de um imóvel enfitêutico, e a questão do valor justo se apresentou, tendo sido solu-cionada de forma unânime, no sentido de que no valor da indenização se inclui a dívida ao senhorio direto, representada pela importância correspondente a um laudênio e vinte foros. O Ministro Hahnemann Guimarães assim se manifestou:

O critério seguido pelo eminente Ministro Relator é o critério tradicio-nal, também adotado na cobrança do imposto de transmissão de propriedade inter vivos e já se vai consolidando no nosso direito a tradição de que o domínio direto vale vinte foros e um laudênio. Isto já é direito assente entre nós, estabe-lecido pela tradição, que se vai consolidando neste sentido.

O outro caso corresponde ao RE 12.089/DF, decidido em 14 de dezembro de 1948, Presidente o Ministro Edgard costa e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães. Aqui, o expropriado aceitava o valor calculado com base no pará-grafo único do art. 27 do Decreto-Lei 3.365/1941, porém o expropriador insistia em valor menor. O Ministro Hahnemann Guimarães disse que o expropriado deveria receber quantia equivalente a todo o dano patrimonial sofrido, mas, se aceitara a indenização menor, 20 vezes o valor locatício, não seria possível diminuir ainda mais a reparação devida (o valor de mercado era superior ao valor calculado em 20 vezes o valor locatício). A decisão unânime da Segunda Turma, seguindo o voto do Relator, foi no sentido de garantir o valor mínimo estipulado no parágrafo único do art. 27 do Decreto-Lei 3.365/1941.

Seguindo esse tema, um interessante caso relacionado aos direitos do desapropriado viria a julgamento no STF por meio do RE 47.259/SP, decidido em 11 de setembro de 1962, Presidente o Ministro Lafayette de Andrada e Relator o Ministro Ribeiro da costa. No caso, foi questionado se, ao exercer o direito de preferência (direito de preempção), o ex-proprietário seria one-rado pelo imposto sobre transmissão de bens imóveis inter vivos (ITBI). Daí concluiu-se que o domínio, como todos os seus predicados, fora transferido ao expropriante, sendo a volta ao antigo proprietário um incidente. Nesse caso, somente o Ministro Victor Nunes teve entendimento contrário ao da maioria, afirmando que o retorno do imóvel correspondia a um desfazimento da desa-propriação, não incidindo sobre ele, portanto, o imposto. O Ministro baseou-se em voto anterior do Ministro Lafayette de Andrada ainda sob o domínio de legislação anterior, já revogada. A decisão da Segunda Turma foi no sentido de ser devido o imposto.34

34 Ver análise com mais detalhes desse acórdão no item 20. TRIBUTÁRIO, subtema “Incidência do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis Inter Vivos (ITBI) no exercício do direito de preem pção em caso de desapropriação”.

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Ministro Hahnemann Guimarães

HONORáRIOS NA DESAPROPRIAÇÃO

Diversos julgados do STF versaram sobre a questão dos honorários de advogados em ações que contestavam atos desapropriatórios. No RE 9.002/DF, já mencionado no item sobre o valor da indenização, a questão dos honorários foi também discutida, quando o Ministro Lafayette de Andrada sustentou:

Realmente os honorários do advogado do expropriado não podem ser pagos pelo poder expropriante, pois tais honorários só são devidos na forma da lei processual (arts. 63, 64), que não abrange as ações de desapropriação.

O pensamento do Ministro Lafayette de Andrada era fortemente emba-sado pela redação do parágrafo único do art. 27 do Decreto-Lei 3.365/1941, que sofreria alterações posteriores, eliminando a vinculação com a cobrança do IPTU.35 Entretanto, no RE 9.002/DF, a posição do Ministro Lafayette de Andrada ficou vencida pela posição do Ministro Hahnemann Guimarães, que se manifestou nos seguintes termos:

Quanto aos honorários de advogado, havia eu, entretanto, manifestado, até aqui, a opinião de que não deviam ser incluídos na indenização devida pelo poder expropriante. Mas, desde que eu sustento que o preço da expropriação deve cobrir todo o desfalque sofrido pelo expropriado, é natural que entenda, também, devidos os honorários do advogado. Esses honorários, porém, a meu ver, devem ser calculados sobre a importância que o poder expropriante foi obriga do a pagar além daquela importância que ele ofereceu, porque, a respeito da importância oferecida pelo poder expropriante, pode-se dizer que houve acordo entre as partes, e não é razoável que se paguem honorários de advogado sobre esta importância. Estes devem ser calculados sobre o excesso, isto é, sobre aquilo que foi o poder expropriante obrigado a pagar, além da importância que ele se ofereceu, voluntariamente, a pagar ao expropriado.

De modo que, em resumo, tomo conhecimento de ambos os recursos, com fundamento no inciso 101, III, letra d, da constituição. E, tomando deles conhecimento, nego provimento ao recurso da Prefeitura do Distrito Federal e dou, em parte, provimento ao segundo recurso, de João Guilbaud, para conce-der-lhe os honorários de advogado, que devem ser calculados à razão de 20% sobre a importância em que a indenização exceder aquela que o poder expro-priante, voluntariamente, se ofereceu a pagar.

Em seu voto, o Ministro Orozimbo Nonato lembrou que ele e o Ministro Goulart de Oliveira teriam sido os primeiros a admitirem seu pagamento em casos de desapropriação. No RE 9.002/DF, o Ministro Edgard costa, após reconhecer o direito à indenização no sentido do voto do Ministro Hahnemann Guimarães, explicou:

35 Ver detalhamento das alterações na nota 31.

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Memória Jurisprudencial

Também já votei, aqui, no Tribunal, no sentido de negar os honorários de advogado. Um exame mais detido e mais ponderado, porém, levou-me, também, a concluir no sentido do voto do Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: pela con-cessão de honorários, calculados, porém, sobre a diferença entre a indenização fixada judicialmente e a oferecida pelo poder expropriante.

A posição do Ministro Hahnemann Guimarães sobre o pagamento de honorários prevaleceu (tendo por base o pagamento de preço que exceder o oferecido), sendo contrário apenas o voto do Relator, Ministro Lafayette de Andrada.

No RE 10.123/DF, decidido em 2 de julho de 1948, Presidente o Ministro José Linhares, Relator o Ministro Lafayette de Andrada e Relator para o acór-dão o Ministro Hahnemann Guimarães, dois embargos se sucederam: o pri-meiro foi do advogado, reclamando os honorários, e o segundo do expropriante, a Prefeitura Municipal do Distrito Federal. Novamente o Ministro Relator sustentou sua histórica posição pela intransponibilidade do parágrafo único do art. 27 do Decreto-Lei 3.365/1941 e pelo descabimento de honorários em casos de desapropriação. Em seu argumento, o Ministro Lafayette de Andrada insis-tiu no ponto de que, sendo a desapropriação um ato legal, não poderia gerar direito a reparação, o que também foi ressaltado de maneira elaborada pelo Ministro Revisor, Ribeiro da costa. O Ministro Hahnemann Guimarães susten-tou que não eram apenas os atos ilícitos que davam lugar à reparação do dano e citou como exemplo a hipótese do art. 160, II, do código civil,36 referente a ato lícito, em que a vítima da destruição efetivada para remover perigo eminente não deixa de ter direito à reparação. Assim, continua:

No caso, entretanto, discute-se se a Prefeitura, condenada na ação desti-nada a avaliar a indenização pelo ato expropriativo, deve ou não pagar honorá-rios de advogado sobre a diferença entre a quantia oferecida pela Prefeitura e a quantia da condenação.

Ora, se a Prefeitura insiste em demandar a respeito de uma avaliação injusta; se a Prefeitura insiste em litigar a respeito de um preço injusto atribuído ao imóvel, deve ser ela condenada a reparar todo o desfalque sofrido pelo pro-prietário, na sua pretensão. A Prefeitura agiu ilicitamente neste caso, oferecendo pelo imóvel menos do que realmente valia ele. Se a Prefeitura ofereceu menos que o valor real do imóvel, ela agiu culposamente. E, se agiu culposamente, deve ser condenada a pagar ao expropriado os honorários de advogado, calculados sobre a difereça entre a quantia oferecida pelo expropriante e a quantia imposta ao expropriante pela sentença de avaliação.

36 O art. 160, II, do código civil de 1916 estabelece:“Art. 160. Não constituem atos ilícitos:(...)II — a deterioração ou destruição da coisa alheia, a fim de remover perigo iminente

(arts. 1.519 e 1.520).”

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Ministro Hahnemann Guimarães

O fundamento da decisão que ora peço a liberdade de adotar está em que a Prefeitura agiu culposamente. O expropriante agiu culposamente, quando ofereceu pelo imóvel menos do que seu justo valor, menos do que seu justo preço, insistindo em litigar a respeito de causa injusta.

Quem litiga a respeito de causa injusta, deve ser condenado a reparar o dano causado ao outro litigante.

O Ministro Orozimbo Nonato, em seu voto, discordou do caráter ilícito da resistência do expropriante em pagar o preço justo, conforme apontado pelo Ministro Hahnemann Guimarães, fundamentando o argumento apenas na necessidade de reparação in totum da perda suportada pelo expropriado. A deci-são final do RE 10.123/DF foi no sentido de conceder os honorários conforme pedido (com base na diferença entre o preço ofertado e o preço justo), contra os votos dos Ministros Relator, Revisor e Barros Barreto, mantida a indenização pelo preço justo, contra os votos do Ministro Relator e Barros Barreto.

Sucederam-se inúmeras decisões do STF nesse mesmo sentido.37 No RE 13.160/SP, decidido em 8 de abril de 1949, Presidente o Ministro Edgard costa e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, o STF decidiu no sentido de que, para ser completo o ressarcimento do patrimônio diminuído pela expro-priação, deveria ser pago ao réu vencedor o que ele razoavelmente despendera para retribuir os serviços do advogado, correspondente à quota usual da dife-rença entre o justo preço e o oferecido pelo expropriante. Na decisão, divergiu do Ministro Hahnemann Guimarães apenas o Ministro Lafayette de Andrada, que declarou não admitir honorários de advogado em desapropriações. O voto do Ministro Hahnemann Guimarães, após considerar que o acórdão recorrido estava de acordo com a jurisprudência do Tribunal, foi exarado nos seguintes termos:

No julgamento dos embargos opostos no RE 10.123, do Distrito Federal, em 2 de julho de 1948, sustentei que, negando-se a pagar o justo preço, o expro-priante deve sofrer a poena temere litigantium, nos termos no art. 63 do código de Processo civil. O expropriado foi compelido a sustentar o litígio, porque o autor não quis concordar com o valor real da coisa, cedendo à impugnação do réu, como se prevê no art. 22 do Decreto-Lei 3.365, de 21 de junho de 1941. Essa pena decorre do princípio de que, perdendo a lide, o litigante deve reembolsar das despesas feitas na causa o adversário (decreto-lei citado, art. 30).

37 cita-se, a título de exemplo: RE 13.266/SP, de 20-7-1948, sob a presidência do Ministro Orozimbo Nonato e relatoria do Ministro Lafayette de Andrada, sendo Relator para acórdão o Ministro Hahnemann Guimarães; RE 11.168/DF, de 26-8-1948, sob a presidência do Ministro Laudo de camargo e relatoria do Ministro Lafayette de Andrada, sendo Relator para acórdão o Ministro Armando Prado; RE 12.506/DF, de 9-9-1948, sob a presidência do Ministro José Linhares e relatoria do Ministro Lafayette de Andrada, sendo Relator para acórdão o Ministro Hahnemann Guimarães; RE 10.093/PR, sob a presidência do Ministro Orozimbo Nonato e rela-toria do Ministro Edgard costa (com a particularidade que o STF reconheceu o direito a pedir os honorários na audiência de julgamento, ainda que não pedidos na contestação); e RE 12.677/DF, de 1º-4-1949, sob a presidência do Ministro Goulart de Oliveira e relatoria do Ministro Hahnemann Guimarães.

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Memória Jurisprudencial

Há, porém, outro argumento, talvez de maior peso, em favor da condena-ção do expropriante vencido nos honorários devidos ao advogado do réu, calcu-lados sobre a quantia em que o justo preço ultrapassou o oferecido.

é o de que não será completo o ressarcimento do patrimônio diminuí do pela expropriação, se o réu vencedor não obtiver o pagamento da despesa razoá-vel, que foi obrigado a fazer, para retribuir os serviços de seu advogado. A inde-nização deve reintegrar o patrimônio atingido pela desapropriação, que só é lícita quando se repara o dano causado ao proprietário.

Esta é a jurisprudência preponderante, embora não lhe tenham dado seu valioso apoio os Srs. Ministros Lafayette de Andrada, Ribeiro da costa e Barros Barreto (Arquivo Judiciário, 89, p. 127). Em decisão anterior, de 6 de maio de 1947, a Segunda Turma já afirmara que, se for condenado ao pagamento de preço que excede o oferecido, o expropriante terá de indenizar o expropriado pelos honorários de advogado, calculados sobre o excesso (Diário da Justiça, 10-11-1948, ap., p. 3012).

conheço, em conclusão, do recurso e lhe nego provimento.

A posição do Ministro Hahnemann Guimarães se tornaria jurisprudên-cia consolidada, superando definitivamente a posição do Ministro Lafayette de Andrada. O Decreto-Lei 3.365/1941 teve seu parágrafo único com redação alterada (tornando-se o § 1º) pela Lei 2.786/1956, contemplando o dispositivo da jurisprudência do STF, nos seguintes termos: “A sentença que fixar o valor da indenização quando este for superior ao preço oferecido, condenará o desapro-priante a pagar honorários de advogado, sobre o valor da diferença.”38

No RE 13.239/SP, decidido em 8 de abril de 1949, Presidente o Ministro Edgard costa, Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, com a Segunda Turma apreciando questão semelhante, foi deixado patente que “a indeniza-ção compreende os honorários devidos pelo expropriado a seu advogado”. O Ministro Hahnemann Guimarães retomou o argumento da ilicitude na resis-tência do expropriante em pagar o preço justo, e daí a conseqüência de pagar os honorários, e avançou repetindo os mesmo argumentos utilizados no julga-mento do RE 13.160/SP.

Para encerrar o caso, em sessão plenária de 3 de abril de 1964, o STF aprovaria a Súmula 378, com a seguinte redação: “Na indenização por desapro-priação, incluem-se honorários do advogado do expropriado”. Em sessão plená-ria de 17 de outubro de 1984, o STF viria a aprovar a Súmula 617, que afirma: “A base de cálculo dos honorários de advogado em desapropriação é a dife-rença entre a oferta e a indenização, corrigidas ambas monetariamente.” Esta, em relação à tese do Ministro Hahnemann Guimarães, adicionou a correção monetária. contudo, entre os precedentes citados para a Súmula, não constam os acórdãos construídos pelo Ministro Hahnemann Guimarães (são todos das décadas de 1970 e 1980, quando ele já havia se aposentado).

38 Ver nota 31.

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Ministro Hahnemann Guimarães

5. QUORUM

A qUESTÃO DO QUORUM DA MAIORIA ABSOLUTA EM PLENáRIO

No julgamento da Rp 106/GO, decidida em 10 de maio de 1948, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato e Relator o Ministro Abner de Vasconcelos, o Pleno enfrentou, de maneira bastante inusitada, a questão do que seria a maioria absoluta (quorum qualificado) para decisões sobre matéria inconstitucional.39 O STF, à época, era composto de onze Ministros, e havia a controvérsia se a maioria seria composta por seis ou sete presentes. A questão foi levantada pelo Ministro Hahnemann Guimarães, que sustentou a seguinte proposta:

Senhor Presidente, havendo seis Ministros votado pela inconstituciona-lidade do art. 102, X e XI, e votando três Ministros pela constitucionalidade, entendo que o caso foi julgado na sessão de hoje, embora falte um Ministro para completar a totalidade de membros do Tribunal. Havia número suficiente para a deliberação, isto é, havia Ministros em número suficiente para decretação de inconstitucionalidade, por sete dos seus membros, que constituem a maioria absoluta do Tribunal.

A deliberação foi adotada: não houve número para a declaração de inconstitucionalidade do art. 102, nos seus n. X e XI. Esta matéria não pode ser de novo trazida à discussão: está encerrado o julgamento da causa.

é a indicação que peço Vossa Excelência submeter ao Tribunal.

O Ministro Edgard costa interveio com os seguintes argumentos:Senhor Presidente, o Regimento exigia, para o julgamento da argüição de

inconstitucionalidade, desde o relatório, a presença da totalidade dos membros do Tribunal. No julgamento do MS 913, de que fui Relator, concluí pela incons-titucionalidade de um ato do Interventor no Estado do Paraná. Levantou-se, então, a questão de saber se podia ser julgada a argüição, não obstante não estar o Tribunal completo, ausente o Sr. Ministro Orozimbo Nonato, que não tem substituto. Deliberou-se, então, que, desde que os juízes presentes, com quorum não pudesse ser atingido ainda que com os votos dos ausentes, desde logo era possível decretar-se a inconstitucionalidade, no primeiro caso, ou des-prezar, no segundo, a argüição. O eminente Sr. Ministro Laudo de camargo, na sessão seguinte, trouxe uma indicação, a fim de que se submetesse à discussão aquela resolução. O eminente Sr. Ministro Laudo de camargo entendia que se devia esclarecer apenas a questão da convocação, desde que a resolução tomada estava incorporada ao Regimento, advertindo que seria conveniente adiar-se o debate, a discussão em torno da indicação, porque estavam ausentes os Srs. Ministros Goulart de Oliveira, castro Nunes e Orozimbo Nonato. Redigi, de acordo com o vencido, a seguinte emenda ao Regimento, consubstanciando a resolução tomada naquele mandado de segurança:

39 com relação às outras questões de mérito discutidas na Rp 106/GO, remete-se o leitor à parte desta obra que trata das representações interventivas.

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Memória Jurisprudencial

Para o julgamento de argüição de inconstitucionalidade, não é necessária a presença da totalidade dos membros do Tribunal, bastando o quorum exigido para o seu funcionamento.Foi o que aconteceu: entramos no julgamento sem a totalidade dos mem-

bros do Tribunal, mas com o regimental quorum para a sessão.Prossegue a emenda:

Se os votos dos ausentes (no caso, do ausente) não puderem con-correr para a formação da maioria absoluta precisa à sua declaração, ter-se-á por desprezada, desde logo, a argüição.

Em caso contrário (é a hipótese, porque há dois que decretam a inconstitucionalidade), sobrestando-se no julgamento, aguarda-se-á o comparecimento dos Ministros ausentes (no caso, do Ministro ausente), ou quando afastado do exercício, de seu substituto, para esse fim convocado.Assim, o Tribunal terá julgado a inconstitucionalidade pela totalidade:

será a maioria absoluta da totalidade, não a maioria absoluta no momento.Desta forma, Senhor Presidente, entendo que no caso se deve sobrestar

no julgamento e convocar substituto para o Ministro ausente.

Na discussão que se seguiu, o Ministro Abner de Vasconcelos assim se posicionou:

Senhor Presidente, data venia da opinião do eminente Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, parece-me que a votação, uma vez que não alcançou o quorum constitucional e há ainda lugar, com a presença do Ministro ausente, para a declaração de inconstitucionalidade, deve, nesta parte, a votação ser adiada, para quando o Tribunal estiver integralizando. Parece-me que é este o regime previsto no Regimento do próprio Supremo Tribunal. Se o Tribunal é chamado a dizer da inconstitucionalidade de um dispositivo de constituição estadual, deve contar com a totalidade de seus membros. Desde que falte esse número, pelo menos nesta parte, deve ficar adiada a votação.

Estou em perfeito acordo com o Sr. Ministro Edgard costa.

O Ministro Armando Prado manifestou-se: “Senhor Presidente, estou de acordo com a opinião do Sr. Ministro Edgard costa, data venia do Sr. Ministro Hahnemann Guimarães.” E o Ministro Ribeiro da costa falou em seguida:

Senhor Presidente, o Tribunal passou a deliberar, a meu ver, contra expressa disposição regimental. A disposição regimental, que ainda está em vigor, exige, para o julgamento de questões relativas à argüição de inconstitu-cionalidade, o comparecimento de todos os seus membros.

O Ministro Hahnemann Guimarães interveio: “Mas esta disposição regi-mental é anterior à constituição, que, em seu art. 200, regula a matéria.” Diante desse fato, o Ministro Ribeiro da costa afirmou: “Embora anterior, a disposição regimental não foi alterada.” O Ministro Annibal Freire redargüiu: “Mesmo na vigência da constituição de 1946, continuou a ser observado o preceito do Regimento.” E, novamente, o Ministro Ribeiro da costa interveio:

é certo que o Sr. Ministro Edgard costa apresentou uma indicação em outro sentido, para alterar esse dispositivo regimental, permitindo que o Tribunal se reúna mesmo sem a totalidade de seus membros, para apreciar questões de

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inconstitucionalidade de lei. Mas, segundo meu parecer, é pensamento do Sr. Ministro Edgard costa e vi na indicação para emenda ao Regimento, feita por Sua Excelência, que, neste caso, procedendo-se ao julgamento e não se atin-gindo número de votos para se declarar a inconstitucionalidade da lei, dever-se-ia convocar o membro ausente, para que se pronuncie a respeito.

Assim, para evitar maiores prejuízos aos julgados deste Tribunal, parece-me que devemos ficar de acordo com a norma regimental vigente ou convocar o Ministro ou refazer-se o julgamento.

O Ministro Lafayette de Andrada manifestou-se: “Senhor Presidente, se a matéria é regimental, fico com o Regimento, exigindo a presença de todos os membros, até que se esclareça o assunto com a emenda do Sr. Ministro Edgard costa.” Foi a vez, então, do Ministro Annibal Freire:

Senhor Presidente, a experiência veio provar, neste caso, como foi sábio o Regimento, exigindo, para deliberação de matéria constitucional, a presença da totalidade dos seus membros.

Tudo quanto se discute o é em redor do que vai ser feito, porquanto a pro-posta do eminente Sr. Ministro Laudo de camargo ainda não se concretizou e o eminente Sr. Ministro Edgard costa assim o acaba de afirmar.

O Ministro Edgard costa interveio novamente: “A resolução foi tomada como emenda ao Regimento.” Foi a vez de o Ministro Annibal Freire discor-dar: “Mas não foi aprovada pelo Tribunal e eu, que acompanhei o voto de Vossa Excelência, volto lealmente atrás, no meu entendimento, e acho que, diante da lição, deve ser observado o Regimento.” O Ministro Edgard costa redargüiu: “Vossa Excelência. invoca o Regimento. No entanto, o eminente Sr. Ministro Orozimbo Nonato não assistiu ao relatório.” E o Ministro Annibal Freire finalizou seu argumento:

Não colhe o argumento, porque, vigente a constituição de 1946, obser-vou-se estritamente o Regimento em todos os graves casos submetidos a este Tribunal e a ressonância e magnitude de nossas decisões, incontestavelmente, indisfarçavelmente, devem ter assumido maior relevo pela circunstância de se acharem presentes todos os Ministros. Foi um fato que impressionou a opinião pública e jurídica do país.

Meu voto, portanto, é de acordo com o Sr. Ministro Edgard costa, no sentido de se convocar o Ministro ausente, para tomar parte no julgamento, reconsiderando, assim, meu ponto de vista anteriormente explanado.

O Ministro Barros Barreto manifestou-se, em termos finais, acompa-nhando o voto do Ministro Hahnemann Guimarães, e o Ministro Laudo de camargo concluiu:

Na minha indicação anterior, aduzi argumentos tendentes a mostrar a impossibilidade do funcionamento do Tribunal, relativamente à matéria de inconstitucionalidade de lei, sem a prévia convocação de todos os juízes.

E, neste sentido, voto.

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Memória Jurisprudencial

A questão, na forma levantada pelo Ministro Edgard costa, prevaleceu, mas o STF voltaria a julgar a questão do quorum, quando do retorno do Ministro Orozimbo Nonato. No caso da Rp 106/GO, a questão foi levada ao impasse, pois a maioria absoluta se contava por sete, caso votasse o Presidente, mas subsistia a dúvida quanto à idéia de ser necessário o voto do Presidente em questões de tal jaez. No caso, para determinados dispositivos da constituição de Goiás, seis Ministros os consideravam inconstitucionais e três, válidos. A sessão foi adiada, para a recomposição de quorum, pois o Ministro Orozimbo Nonato estava licen-ciado, sem substituto, e foi neste interregno que se levantou a questão.

Na retomada do julgamento, o Relator, Ministro Abner de Vasconcelos, fez uma exposição dos fatos, lembrando a posição do Presidente, Ministro José Linhares, pela maioria de sete, e trouxe também à lembrança a posição de Duguit, de que a maioria se faz pelo número inteiro superior à sua metade, quando o total dos membros é impar. Por fim, lembrou que o Regimento Interno do STF fixava em seis o número mínimo de Ministros necessários para a decla-ração de inconstitucionalidade das leis. Lembrou, também, as teorias matemá-ticas que partem de critérios diversos, mas chegam ao mesmo resultado de que a maioria em onze é seis (“Não tem, contudo, importância prática o repúdio à fórmula que divide o número par imediatamente inferior, acrescido de mais um, para formar a maioria absoluta de um Tribunal de onze juízes, ou cinco mais um, para, em vez disso, adotar-se a que preconiza a do número inteiro superior à metade de cinco e meio. Em ambos, maioria são seis.”). O argumento matemá-tico afirmava que sete era a maioria absoluta de onze, lembrando que o jurista e matemático prof. clodoaldo Pinto manifestou-se pelo número de sete (conforme havia sido decidido pelo Tribunal de Apelação do ceará).

Em seguida, passou-se à questão da lacuna regimental da necessidade de o Presidente votar em questões constitucionais nas quais só votaria em caso de empate. Para isso, foi citado carlos Maximiliano, que por sua vez se baseou em cooley para lembrar que, nos Estados Unidos, em questões constitucionais, os tribunais sempre guardavam a íntegra de suas composições nessas votações. O Relator retomou, ainda, o art. 200 da constituição de 194640 e sustentou que o importante seria fixar o quorum mínimo. Para isso, citou castro Nunes, concorde com Eugène Pièrre, no sentido do quorum mínimo de seis Ministros desimpedi-dos, além do Presidente. Por fim, manifestou-se no sentido de ser seis o número mínimo de Ministros para declarar a inconstitucionalidade no caso e que “o que estava no espírito dos eminentes Ministros era o pressuposto de ser sete o número constitucional necessário”. como o Tribunal já havia proclamado a insuficiência dos votos, o Relator conclamou que o STF poderia resolver em sentido contrário.

40 constituição de 1946:“Art. 200. Só pelo voto da maioria absoluta dos seus membros poderão os Tribunais declarar

a inconstitucionalidade de lei ou de ato do poder público.”

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Ministro Hahnemann Guimarães

O Ministro Edgard costa solicitou ao Presidente que submetesse ao Tribunal a seguinte preliminar: “Deve o Presidente do Tribunal votar obrigato-riamente nas questões constitucionais, ou deverá ele votar apenas quando houver empate, como em relação às outras matérias não constitucionais?” O Ministro Annibal Freire interveio: “Entendo que o Presidente nunca poderá desempatar, porque, na hipótese de se verificar a votação de cinco votos contra cinco, per-manecerá a constitucionalidade da lei.” Diante disso, o Ministro Hahnemann Guimarães redargüiu: “Não penso como o Sr. Ministro Anibal Freire. Quando se verificar a contagem de cinco votos contra cinco, com o voto do Presidente ter-se-á o total de seis votos contra cinco.” O Ministro Edgard costa explicou:

A preliminar por mim levantada tem relevância, porque, se o Presidente não votar, a maioria será, indubitavelmente, de seis, porque, sendo a metade de dez Ministros cinco, seis (metade e mais um) representam a maioria abso-luta, necessária à decretação da inconstitucionalidade da lei. caso, entretanto, o Presidente vote, já a questão não se apresentará com a mesma simplicidade.

O Ministro Annibal Freire voltou ao ponto: “Insisto em que não inte-ressa o voto do Presidente, uma vez que, na minha opinião, não pode ocorrer o empate. E no caso de não se verificar o quorum, será mantida a constitucionali-dade da lei.” E o Ministro Edgard costa insistiu no raciocínio:

Interessa o voto do Ministro Presidente, pois, caso ele vote, o quorum para a decretação da inconstitucionalidade será, a meu ver, de sete votos, pelos motivos que aduzi. Eis por que entendo que o presidente deverá votar sempre que se tratar de matéria constitucional.

O Ministro Hahnemann Guimarães novamente interveio:A preliminar do Sr. Ministro Edgard costa parece-me perfeitamente

fundada, porque o que cumpre saber é se nas questões constitucionais deve o Presidente votar sempre ou não. Entendo que deve, porque a matéria constitu-cional envolve a manifestação de todo o Tribunal.

E o Ministro Edgard costa continuou: “Assim exposta esta preliminar, peço a Vossa Excelência, Senhor Presidente, que à submeta a apreciação do Tribunal.”

O Ministro José Linhares, então, acrescentou:Senhor Presidente, a questão levantada pelo Sr. Ministro Edgard costa

diz respeito a quando o Tribunal se manifesta em igualdade de número. Mas, para que se declare constitucional ou inconstitucional uma lei, é preciso que o Tribunal se manifeste por maioria absoluta de seus membros, como exige a constituição Federal. Desde que não tenha havido seis votos de um lado, não haverá maioria para decretar-se a inconstitucionalidade.

Diante disso, o Ministro Annibal Freire se manifestou: “O Ministro Presidente não pode senão proclamar o resultado a que chegou o Tribunal.” E o

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Ministro José Linhares interveio: “Se o Tribunal, por exemplo, se manifestar por cinco votos contra quatro, não haverá maioria absoluta.” O Ministro Edgard costa voltou à carga: “A hipótese figurada pelo Sr. Ministro José Linhares serve perfeitamente para mostrar a oportunidade de preliminar por mim levantada. Se se entender que o Presidente vota sempre, em matéria constitucional, ele poderá tanto se inclinar pela primeira corrente como pela segunda; no primeiro caso, o quorum de seis votos seria atingido.” O Ministro José Linhares fixou seu ponto: “com cinco votos não se pode decretar a inconstitucionalidade da lei, e entendo que o Ministro Presidente só tem voto quando ocorre empate.” O Ministro Barros Barreto, então, esclareceu:

Se o Presidente não votar, ter-se-á a seguinte situação: ele será compu-tado para formar o quorum, mas não influirá com seu voto na decisão; ele ficará, assim, de braços cruzados, quando, com seu voto, poderia ser atingido o quo-rum. Se o Regimento obsta a que o Presidente vote sempre em matéria constitu-cional, seria o caso de alterá-lo.

Em seguida, o Ministro Edgard costa manifestou-se:O regimento dispõe que quando houver empate o Presidente desempa-

tará. Mas, quando se trata de matéria constitucional, o artigo regimental está conforme ao espírito e a letra do art. 200 da constituição Federal, que exige a maioria absoluta do Tribunal para a decretação da inconstitucionalidade? Para a fixação do quorum julgo indispensável saber se o Presidente vota sempre ou não em matéria constitucional. Reitero, assim, a preliminar levantada.

E o Ministro José Linhares interveio: “Entendo, Senhor Presidente, que devemos nos ater à questão do quorum, surgida a propósito do caso concreto que estamos julgando.” Então, o Ministro Hahnemann Guimarães redargüiu:

Senhor Presidente, a respeito do caso concreto que o Tribunal está apre-ciando, o Sr. Ministro Edgard costa levantou questão de ordem teórica, abstrata, que tem preferência sobre a questão concreta, porque, de acordo com a solução dada à questão teórica, abstrata, terá solução a questão concreta. Pediria, assim, preferência para a tese ou preliminar levantada pelo Sr. Ministro Edgard costa, de ser ou não obrigatório o voto do Presidente nas questões constitucionais. E desde já, Senhor Presidente, antecipo meu entendimento, entendendo ser obri-gatório esse voto.

O Ministro Ribeiro da costa intercedeu: “Senhor Presidente, não me oponho a que se dê preferência à preliminar levantada pelo Sr. Ministro Edgard costa.” A ele, seguiu-se o Ministro Lafayette de Andrada: “Senhor Presidente, inclino-me a discutir desde logo o caso concreto, ficando a questão proposta pelo Ministro Edgard costa para ser tratada por ocasião da discussão do Regi-mento Interno deste Tribunal.” O Ministro Annibal Freire continuou: “Senhor Presidente, opino que se discuta desde logo a questão do quorum de maioria absoluta.” Então, o Ministro Edgard costa reclamou: “Senhor Presidente, não

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Ministro Hahnemann Guimarães

posso resolver a questão do quorum sem saber antes se o Presidente vota ou não obrigatoriamente nas questões constitucionais.” Nesse momento, o Ministro Barros Barreto pediu a palavra:

Senhor Presidente, voto a favor da preferência requerida pelo emi-nente Ministro Hahnemann Guimarães, por entender que a questão do voto do Presidente, em matéria constitucional, deve ser resolvida antes da do quorum.

O Ministro José Linhares acompanhou o voto do Sr. Ministro Annibal Freire. Em seguida, ratificou o Ministro Hahnemann Guimarães: “Senhor Presidente, entendo que o Ministro Presidente deverá votar, necessariamente, em matéria constitucional, mesmo que não haja empate.” Quanto a isso, o Ministro Ribeiro da costa divergiu:

Senhor Presidente, o Sr. Ministro Hahnemann Guimarães entende que nas questões de ordem constitucional o Presidente do Tribunal necessariamente terá de votar em todos os casos. Peço licença para divergir desse ponto de vista com os seguintes argumentos: art. 200 da constituição estabelece que só pelo voto da maioria absoluta de seus membros poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade da lei ou de ato do poder público.

Ora, a maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal Federal, constituído de onze membros, há de se contar incluindo, entre os membros do Tribunal, o Presidente. A cláusula constitucional não desloca a questão pre-vista no Regimento Interno deste Tribunal, nem no código de Processo, sobre a oportunidade em que deve votar o Presidente. Ele tem voto somente quando ocorre empate. Nós não podemos estabelecer, sem dispositivo legal, o voto necessário, obrigatório, indispensável, do Presidente, quando se tratar de maté-ria constitucional.

Parece-me que, se se verificar o empate na votação da matéria cons-titucional, só então o Presidente terá voto, como tem normalmente, em todo desempate.

é o meu voto.

O Ministro Lafayette de Andrada acompanhou o voto do Ministro Ribeiro da costa. Em seguida, o Ministro Edgard costa concordou com o Ministro Hahnemann Guimarães:

Senhor Presidente, acompanho o voto do Sr. Ministro Hahnemann Guimarães. Entendo que, quando se tratar de matéria constitucional, o Presidente do Tribunal, em face do art. 200 da constituição, que exige a maioria absoluta dos membros do Tribunal para a declaração de inconstitucionalidade (e o Presidente é membro do Tribunal), deverá sempre votar, haja ou não empate.

O Ministro Annibal Freire interveio:Senhor Presidente, entendo que, na hipótese formulada pelo Sr. Ministro

Edgard costa, não é possível ocorrer empate. O Presidente, assim, nunca poderá desempatar, porque o essencial, no caso, é verificar se houve ou não o quorum para a declaração de inconstitucionalidade da lei. Se a votação for de cinco votos

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a favor da constitucionalidade e cinco contra ela, a lei será tida como constitu-cional, desde que o quorum para a decretação da inconstitucionalidade não foi atingido.

Figuremos, entretanto, a hipótese da votação de cinco votos contra cinco, tendo o Presidente voto. Em tal caso, haveria quorum, porque o seu voto, a favor ou contra a constitucionalidade de lei, seria contado, e teríamos cinco votos contra seis, num ou noutro sentido. Não penso, porém, que esta seja a hipótese verdadeira. A meu ver, não pode ocorrer o empate, porque o Presidente não tem voto em matéria constitucional. cabe-lhe, apenas, proclamar o resultado da constitucionalidade da lei, quando o quorum para decretação da inconstitucio-nalidade não for atingido.

Novamente o Ministro Barros Barreto falou: “Senhor Presidente, acom-panho o voto do Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, de acordo com a opinião que já antecipei em aparte.” Seguiu-se a ele o Ministro José Linhares: “Senhor Presidente, acompanho o voto do Sr. Ministro Ribeiro da costa.” O Ministro Hahnemann Guimarães novamente fez um aparte:

Senhor Presidente, sou obrigado, a meu pesar, a tecer algumas conside-rações sobre esta matéria, pois que, que caso anterior, tive ensejo de me mani-festar, acompanhando o Dr. Procurador-Geral da República, no sentido de que a maioria absoluta seria constituída pelo voto de sete juízes deste Tribunal. A este respeito, o Dr. Erasto da Silveira Fortes elaborou um trabalho que provocou minha meditação e estudo, meditação tanto mais laboriosa quanto estava envol-vida na questão um ponto de vista meu, e sempre a vaidade dificulta a solução das questões. Era natural que eu me prendesse à doutrina que havia defendido.

Diante dessa postura, o Ministro Ribeiro da costa replicou: “Isto não aconte-ceria com Vossa Excelência, Sr. Ministro Hahnemann Guimarães.” E este respondeu:

O Sr. Erasto da Silveira Fortes fez este comentário em seu trabalho:O Exmo. Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, sufragando

doutrina exposta pelo Exmo. Sr. Dr. Procurador-Geral da República (Mandado de Segurança n. 834), sustenta que integram a maioria abso-luta do Supremo Tribunal Federal 7 Ministros. S. Exa. justifica essa fixa-ção por entender que a maioria absoluta de 10 não pode ser idêntica à de 11 — e daí —, sendo 6 a maioria absoluta de 10, a maioria absoluta de 11 será forçosamente 7.E desenvolve o ilustre juiz considerações demonstrativas de que sendo

ímpar o número de votantes, não se aplica a regra pela qual a maioria absoluta é fixada na metade mais um.

Tive ensejo de estudar esta matéria e, cedendo a um velho gosto, fui até as fontes romanas, às quais se prende o princípio da maioria absoluta, invocando-se quase sempre um texto de Ulpiano, do Digesto, onde ele diz: “Ad universos refertur quod publico fit per maiorem partem”. Esta maior parte é a maioria absoluta.

como entender-se esta maioria absoluta? Firmou-se o princípio de que a maioria absoluta é constituída pela metade mais um dos votantes, mas, evidente-mente, este princípio, aplicado ao número ímpar de votantes, induz dificuldades,

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Ministro Hahnemann Guimarães

que podem depois levar ao erro de se supor que a maioria absoluta, no caso de número ímpar de juízes, deva ser constituída pela integração da parte fracioná-ria e o acréscimo de um.

Foi assim que entendi: a metade de onze são cinco e meio; integrando-se para a unidade a fração, ficam seis; a esses seis acrescenta-se a unidade, e a maioria absoluta seriam sete. Mas verifico agora que este ponto de vista é errôneo. confesso o erro em que incidi. Ainda que penosa para mim, a verdade obriga-me a ceder diante dela.

Aqui o Ministro Hahnemann Guimarães reconhece o erro em que vinha laborando (embora não estivesse sozinho) e prossegue justificando o novo entendimento a ser adotado:

Este conceito errôneo de maioria absoluta levou alguns juristas a propor novo conceito, segundo o qual a maioria absoluta seria o número constituído pela quantidade imediatamente superior à metade. Esse é o conceito defen-dido pelo jurista que escreveu o artigo sobre maioria absoluta no Dicionário de Direito Privado, de Scialoja. Mas este conceito volta à dificuldade criada pelo conceito anterior, cujo defeito é manifesto.

Esta matéria dá lugar a uma conclusão que parecerá talvez complexa, que parecerá talvez tornar mais complicada a questão. Mas essa conclusão, a meu ver, é a que representa o verdadeiro conceito de maioria absoluta.

Maioria absoluta, parece-me, é a parte de um conjunto que, somada a outra parcela, menor do que a primeira em um, ultrapassa o todo apenas de um.

Assim, reconhecendo o meu erro, confesso-me agora partidário da con-vicção segundo a qual a maioria absoluta deste Tribunal é constituída pelo voto de seis dos seus membros.

O Ministro Lafayette de Andrada manifestou-se: “Senhor Presidente, entendo que a maioria absoluta dos membros deste Tribunal é constituída por seis votos.” E o Ministro Ribeiro da costa definiu seu voto, acedendo, ao final, à posição do Ministro Hahnemann Guimarães:

Senhor Presidente, não tenho dúvida em aderir ao ponto de vista luci-damente sustentado pelo Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, tendo apenas a acrescentar que este conceito de maioria absoluta, se me não engano, já havia sido firmado por esta Alta corte em casos inúmeros, conforme lembrou em seu trabalho, com a citação das fontes, o Dr. Erasto da Silveira Fortes. Verifica-se por ele que os precedentes firmados pela jurisprudência deste Tribunal se avolu-mam em favor da corrente que admite como maioria absoluta o número de seis juízes.

é lembrado, a respeito, o que consta da publicação das questões de ordem, no impresso 516 da Imprensa Nacional. E transcreve trechos da discus-são travada nesta corte sobre a matéria. O Sr. Ministro castro Nunes fere a questão do seguinte modo:

Quer isto dizer que, no Supremo Tribunal, pela composição atual de onze ministros serão necessários, pelo menos, seis a declarar a incons-titucionalidade de lei para que esta inconstitucionalidade prevaleça.

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(...) a favor da inconstitucionalidade, que não teria prevalecido, por falta de seis vozes.

São necessárias seis vozes para declarar a inconstitucionalidade.O Tribunal tem, agora, nove membros, nove vozes. Manifestam-se

pela inconstitucionalidade cinco e quatro em contrário. Ora, se aquele Ministro que não compareceu, ou que não votou por impedido, se mani-festasse pela inconstitucionalidade, a parte argüente teria vencido a demanda.O Sr. Ministro Philadelpho Azevedo assim se pronuncia:

(...) torna-se, porém, necessária a manifestação da maioria abso-luta dos membros de um Tribunal: é preciso, particularizando a hipótese, que seis Ministros do Supremo Tribunal afirmem a inconstitucionalidade de certa lei.

(...)Se há seis que entendem a lei inconstitucional (...) basta que se

forme o número de seis; não se formando, a lei continuará a imperar, aproveitando da presunção de subsistência.E o Sr. Ministro Goulart de Oliveira:

Seis juízes seriam maioria de 10: seis juízes que se manifestassem pela inconstitucionalidade dariam solução constitucional à matéria, que estaria resolvida.Menciona também a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, desta-

cando os seguintes julgados:— Aci 5.966: Julgaram inconstitucional o Decreto 14.953, de 10

de outubro de 1932, contra os votos dos Ministros Plínio casado, Laudo de camargo, carvalho Mourão e Octavio Kelly.

(...)— RE 5.159: Julgam inconstitucional o dispositivo impugnado

pelos votos dos Ministros José Linhares, Orozimbo Nonato, Philadelpho Azevedo, Waldemar Falcão, castro Nunes e Annibal Freire.

— Matéria constitucional 7.204: Julgaram incompatível com os pre-ceitos constitucionais vigentes o art. 29, in fine, do Decreto 24.233, de 12 de maio de 1934, contra os votos dos Srs. Ministros Eduardo Espinola, Barros Barreto e carlos Maximiliano — Impedido o Sr. Ministro cunha Melo”Assim, para não me demorar mais sobre o assunto, embora se trate de

questão que realmente traz à discussão grande cópia de argumentos doutriná-rios, limito-me a aderir ao voto do Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, que recordou com lucidez a matéria, para entender também, a meu ver, com a devida vênia, que seis juízes deste Tribunal constituem maioria para a declaração de inconstitucionalidade da lei.

O Ministro Edgard costa concluiu seu ponto de vista:Senhor Presidente, tendo o Tribunal acabado de decidir, por maioria de

votos, que o Presidente não vota nas questões constitucionais, salvo em caso de empate, e sendo, assim, dez os membros do Tribunal a votar, dúvida alguma pode subsistir relativamente ao quorum para declaração de inconstituciona-lidade, isto é, seis votos, que constituem a maioria absoluta. As decisões do Tribunal invocadas por interessados e relembradas há pouco pelo Sr. Ministro Ribeiro da costa, referiam-se a dez membros, sem o voto do Presidente; daí

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terem sido sempre decididas as argüições de inconstitucionalidade por seis votos contra quatro. Nestas condições, decidindo o Tribunal, já agora, que são dez os votantes, dúvida não resta de que a maioria absoluta, sendo a metade e mais um, é constituída de seis.

Em seguida, o Ministro Annibal Freire manifestou-se em definitivo:Senhor Presidente, a controvérsia deu margem a um brilhante trabalho

do juiz Erasto Fortes, que relembrou deliberações do Tribunal, sobre inconstitu-cionalidade, tomadas por seis votos. A esse brilhante trabalho se vieram acres-centar o voto do Sr. Ministro Abner de Vasconcelos, magistralmente concebido, e o erudito voto do Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, que é um modelo de lealdade e de precisão de conceitos.

Não querendo senão que o Supremo Tribunal continue fiel à sua orienta-ção, acompanho esses votos e declaro que seis é o número de juízes que formam a maioria absoluta para decretação de inconstitucionalidade.

O Ministro Barros Barreto ratificou: “Senhor Presidente, acompanho o brilhante voto proferido pelo eminente Ministro Hahnemann Guimarães e ainda de acordo com os fundamentos expedidos pelo eminente Ministro Edgard costa.” O Ministro José Linhares concordou: “Senhor Presidente, também entendo que são seis os votos para constituir a maioria absoluta em questões constitucionais.” E o Ministro Laudo de camargo fixou os pontos:

Decidiu o Tribunal, preliminarmente, por maioria de votos, que o Presidente só votará nas questões constitucionais, quando houver empate.

Quanto ao quorum, decidiu ser de seis, para declaração de inconstitucio-nalidade, por constituir a maioria absoluta de que fala o preceito constitucional.

Decidiu-se, ao final, que o Presidente só interviria nas questões constitu-cionais quando houvesse empate, ficando nesse aspecto vencidos os Ministros Hahnemann Guimarães, Edgard costa e Barros Barreto, que entenderam necessária a intervenção em qualquer hipótese. Na mesma sessão, restou deci-dido ainda, por unanimidade, ser de seis votos o quorum para que a inconsti-tucionalidade fosse decretada. Interessante destacar que a posição exposta pelo Ministro Hahnemann Guimarães, de que seria sempre necessária a votação do Presidente nesses casos, viria prevalecer depois, sendo essa a determinação atual.41 Importante, também, notar que o Ministro já tivera antes posição pela maioria de sete, tendo mudado sua opinião posteriormente.

41 Ver, e.g., o art. 146 do atual Regimento Interno do STF. BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Regimento Interno. Atual. março/2009, cons. e atual. maio/2002 por Eugênia Vitória Ribas. Brasília: STF, 2009.

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VOTO MéDIO

O problema que se coloca nos julgamentos colegiados muitas vezes diz respeito ao chamado “voto médio”. O Ministro Hahnemann Guimarães se manifestou como Relator no julgamento da SE 1.240-ED/Estados Unidos, deci-dida em 29 de maio de 1953, Presidente o Ministro José Linhares. Em interes-sante voto, sua decisão resultou unânime. No caso, os embargos foram opostos porque três Ministros haviam negado in totum a homologação; quatro concede-ram in totum e três concordaram em parte. A sentença havia sido homologada, na decisão, com restrições (porém, por equívoco, consta da decisão embar-gada — em que foi Relator do acórdão o Ministro Afrânio Antônio da costa — que a homologação se daria sem restrições, pois “os votos divergentes somente poderiam ser somados no que tivessem em comum, o que não ocorre na hipó-tese vertente”). O embargante sustentou que, sendo quatro votos sem restrições, a homologação deveria se dar sem restrições. O voto do Ministro Hahnemann Guimarães foi lavrado nos seguintes termos:

Desprezo os embargos. O acórdão reproduz rigorosamente a opinião vencedora, a opinião média, correspondente à opinião comum aos votos, em parte, divergentes. Quando os votos divergem, sem que nenhum dos grupos haja obtido maioria absoluta, deve-se adotar a opinião comum aos votos divergentes, a opinião que representa o voto da maioria. No caso, três Ministros homolo-garam a sentença com restrições, quatro concederam a homologação in totum. Qual a opinião comum a esses votos, que consubstancia, em parte, a opinião da maioria? é, evidentemente, a homologação com restrições. Quando os votos divergem, deve-se adotar, repito, para apuração da maioria absoluta, a opinião comum aos votos parcialmente discordantes, o chamado voto médio.

Assim, rejeito os embargos.

claro está que o que há de médio é que há homologação, e esta se dando, a média passa a ser a incidência de restrições (só quatro votos em dez pela homologação in totum). cabe lembrar que pode ocorrer dúvida quanto ao que seja o voto médio, nesta situação; se for matéria penal, prevalece o mais favo-rável ao réu.

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Ministro Hahnemann Guimarães

6. TEMAS DIVERSOS DE DIREITO CIVIL

ALIENAÇÃO à CONCUBINA

No RE 11.077/DF, decidido em 27 de junho de 1947, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato, Relator o Ministro Lafayette de Andrada, sendo Relator desig-nado para o acórdão o Ministro Hahnemann Guimarães, o STF enfrentou o pro-blema da venda de bem imóvel feita pelo marido à concubina, cuja anulação fora proposta pela esposa legítima. Esta venceu na primeira instância, mas a concubina apelou e logrou êxito. A ação tinha por base os arts. 248, IV, e 1.177 do código civil vigente, os quais apresentavam a seguinte redação:

Art. 248. A mulher casada pode livremente: (Redação dada pela Lei 4.121, de 27-8-1962)

(...)IV — Reivindicar os bens comuns, móveis ou imóveis, doados ou trans-

feridos pelo marido à concubina (art. 1.177). (Redação dada pela Lei 4.121, de 27-8-1962)

Parágrafo único. Este direito prevalece, esteja ou não a mulher em com-panhia do marido, e ainda que a doação se dissimule em venda ou outro contrato. (Redação dada pela Lei 4.121 de 27-8-1962.)

Art. 1.177. A doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outro cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até 2 (dois) anos depois de dissolvida a sociedade conjugal (arts. 178, § 7º, VI, e 248, IV).

O extraordinário, manobrado pelo advogado da esposa, subiu ao STF, com fundamento nas letras a e d do inciso III do art. 101 da constituição de 1937. A esposa havia outorgado procuração ao marido para a venda, mas tempos depois ele havia abandonado a concubina com quem tinha passado a morar. Somente após ele ter deixado de conviver com a concubina, foi proposta a ação anulatória da venda, o que ensejaria um conluio com a ex-esposa.

Em seu voto, o Ministro Lafayette de Andrada, conforme sua tradição, seguiu uma linha de raciocínio extremamente legalista, entendendo que o disposi-tivo do código civil que vedava a doação de imóvel à concubina implicaria uma presunção de que toda venda é uma doação simulada, presunção jure et de jure, chegando a afirmar em certa altura do seu voto que: “Provada a transação que a lei proíbe, e provado o estado de concubinato, o ato será anulado, se intentada a ação. Não se tem de indagar como e por que foi feito o negócio, isso pouco importa, diante do fato da sua existência.” O Ministro Hahnemann Guimarães, votando após o Relator, manifestou-se da seguinte forma:

Lamento divergir do Sr. Ministro Relator e não poder aceitar a fundamen-tação em que se baseou seu voto, isto é, de que toda alienação feita pelo cônjuge a sua concubina é a título gratuito. No caso, não se verificou uma alienação a título

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gratuito, mas, sim, a título oneroso. O art. 1.177 declara: “A doação do cônjuge adúl-tero pode ser anulada pelo outro cônjuge”.

No caso, porém, houve compra e venda. Entendeu a decisão impugnada pelo recurso extraordinário que esta compra e venda não dissimulava uma doa-ção; que era uma compra e venda verdadeira.

O Ministro Orozimbo Nonato interveio neste ponto e perguntou se teria havido outorga uxória, ao que o Ministro Lafayette de Andrada respon-deu positivamente. Retomando seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães arrematou:

Evidentemente não o fez a título gratuito. Se houvesse prova de simulação, está muito bem, anular-se-ia o ato. Não houve, porém, prova de fraude, de vício. Assim, não conheço do recurso. Se dele conhecesse, negar-lhe-ia provimento.

Na votação final, a Turma decidiu pelo não-conhecimento do extraor-dinário, pelo voto de desempate do Ministro Ribeiro da costa. Veja-se que o Ministro Hahnemann Guimarães, tido por muitos como positivista extremado, deu uma interpretação mais voltada ao aspecto social, com bases fáticas, do que à aplicação semimecânica da norma jurídica.

BOA-Fé DO POSSUIDOR — CONCEITO E EFEITOS

Nos embargos de nulidade e infringentes da Aci 8.714/DF, decidido em 10 de dezembro de 1947, Presidente o Ministro José Linhares, Relator o Ministro Lafayette de Andrada, sendo Relator para o acórdão o Ministro Hahnemann Guimarães, o STF enfrentou a questão da existência ou não da presunção da boa-fé, em um caso em que um banco — Banco Holandês Unido S.A. — havia adquirido um imóvel da Beneficência Portuguesa, que por sua vez o havia adquirido por via de arrematação, cuja praça fora anulada. O autor da ação era o espólio de Joaquim Pires, que havia conseguido a anulação da praça e agora cobrava aluguel dos proprietários que se sucederam. Vencido o espólio, apelou. O Banco Holandês Unido pediu no curso da ação, inclusive, danos da União por ela ter sido a exeqüente na praça anulada.

Quanto a essa questão, o Ministro Hahnemann Guimarães primeiramente concordou com o Relator e Revisor na parte dos embargos da Beneficência Portuguesa, mas prosseguiu dizendo discordar no que dizia respeito, pelo menos parcialmente, aos embargos do Banco Holandês Unido, na parte relativa aos frutos civis que se exigia fossem pagos pelo Banco. Assim prosseguiu:

O banco tinha uma posse titulada; adquiriu o prédio, animo domini, da Real e Benemérita Sociedade Portuguesa de Beneficência; adquiriu, por um justo título, qual seja a compra e venda. Essa posse titulada faz presumir, em favor do adquirente, a boa-fé, segundo dispõe, expressamente, o art. 490 do

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Ministro Hahnemann Guimarães

código civil: quem tem justo título presume-se, desde logo, possuidor de boa-fé. A quem alega má-fé compete prová-la. A este respeito, deve-se, aliás, obser-var que o nosso Direito se desvia da antiga doutrina, sustentada por Lafayette, que exigia, para caracterizar-se a boa-fé, tivesse o adquirente a certeza de não haver defeito no título de aquisição. Adotava, assim, Lafayette a chamada con-cepção ética de boa-fé: a boa-fé consistiria em ter o adquirente a certeza de que sem vício do título se tornava proprietário. Ele era obrigado, por conseguinte, a procurar saber, pelos meios possíveis, a existência de defeitos que pudessem inquinar o título de sua aquisição. Mas o código civil filia-se à orientação que se pode, talvez, chamar, com alguma impropriedade, psicológica, oposta à orientação ética: para que haja boa-fé, não é preciso que o adquirente haja inda-gado da inexistência dos defeitos; não lhe compete isso, para que se caracterize a sua boa-fé. Para que esteja de boa-fé, basta que ignore a existência do vício; a boa-fé existe, desde que o adquirente não sabe, não tem notícia do defeito do título, porque boa-fé é isto, é a ignorância de que o título da aquisição é defei-tuoso. Pela concepção ética, defendida por Lafayette, o adquirente seria obri-gado a empenhar seus esforços no sentido de apurar os defeitos que pudessem anular, invalidar sua aquisição, mas, no sistema do código civil, o que se exige do adquirente é, apenas, que ignore a existência do vício; é a concepção psico-lógica, impropriamente chamada, reconheço. Ora, o banco muniu-se dos meios adequados (...) na sua aquisição; tirou as certidões de Registro de Imóveis; essas certidões não deram notícia de que qualquer ação real, ou reipersecutória pen-desse contra o embargante; o banco não tinha razão para duvidar da qualidade de proprietária da Real e Benemérita Sociedade Portuguesa de Beneficência.

Na seqüência de seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães mencionou que a certidão da proprietária estava no Registro de Imóveis, sendo que nada havia contra a Beneficência Portuguesa, nenhuma citação para ação penal ou reipersecutória, constante do Registro de Imóveis. Assim indagou: “como, por seguinte, presumir-se má-fé do banco?” Para responder a questão, citou o art. 491 do código civil:

Art. 491. A posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente.

Em seguida, prosseguiu na linha argumentativa de que casas bancárias tinham um controle jurídico eficiente de seus ativos, sendo impossível pre-sumir que “uma instituição dessas fosse comprar imóvel, na certeza de que comprava mal”, isto é, com má-fé. Avaliou, por fim, que não havia nenhuma circunstância que indicasse a má-fé do banco. E concluiu:

Sendo assim, desde que a posse do banco é titulada, desde que o negócio faz presumir boa-fé, não vejo como se possa condenar o banco a restituir os fru-tos civis que a coisa tem produzido. Esses frutos pertencem de direito ao banco, que não pode ser obrigado a restituir. Por isso, recebo os embargos somente em parte, não os recebendo quanto às benfeitorias.

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Ou seja, a boa-fé em situações que tais, isto é, com título passado de acordo com as leis civis, não tem de ser provada e gera as conseqüências que lhe são próprias, como é o caso do direito aos frutos produzidos pelo bem.

FRAUDE à LEI

No RE 16.357/SP, julgado em 11 de agosto de 1950, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato, Relator o Ministro Edgard costa, o STF considerou inad-missível a soma dos prazos de contratos firmados por locatários diversos, para fins de renovação de contrato. No caso, a assinatura de diversos contratos com diferentes locatários, mas referente ao mesmo fundo de comércio, fez preva-lecer a forma sobre a substância, tendo como conseqüência a possibilidade de extinção do contrato, cuja legislação de cobertura protegeria, caso o prazo fosse de cinco anos ou mais. A ação renovatória proposta foi considerada improce-dente ao final. Na votação da Segunda Turma, restaram vencidos os Ministros Edgard costa e Hahnemann Guimarães, que exarou sua opinião nos seguintes termos:

Senhor Presidente, também conheço do recurso, pelo manifesto dissídio de arestos, mas, data venia do Sr. Ministro Relator, divirjo de S. Exa. quanto ao mérito, porque me parece que não se pode negar, no caso, a pretendida adição dos prazos.

O primeiro contrato vigorou de maio de 1939 a abril de 1943, perfazendo, assim, o total de 4 anos; houve um interstício de dois anos, e novo contrato de 4 anos; o estabelecimento comercial, porém, continuou sempre o mesmo. A cir-cunstância de os contratantes serem diversos não importa, para o efeito da apli-cação da lei; o que a lei quer é a permanência da empresa, do estabelecimento comercial, como se verifica dos termos expressos do art. 3º do Decreto 24.150, onde diz que o direito assegurado ao locatário poderá ser exercido pelos seus sucessores ou cessionários. O sucessor, na empresa, embora não seja na locação, tem direito à renovação, e esta Turma já afirmou isto; o sucessor, na empresa, tem direito à renovação, mesmo que não seja sucessor na locação, porque a lei fala em “cessionário ou sucessor”. Assim, o sucessor na exploração do comércio ou da indústria tem, pelo art. 3º, direito à renovação.

Aqui o Ministro Hahnemann Guimarães enfatiza seu argumento, men-cionando que “no caso, houve esta sucessão na exploração do fundo de comér-cio; a empresa é a mesma; o seu nome é o mesmo: Padaria e Confeitaria A Favorita. Os locatários realmente concordam em que houve mudança do loca-tário; mas a mudança, pela cessão, deu-se com sucessão no negócio. Houve um interstício de dois anos, é certo, mas que não prejudica a renovação porque denota o intuito de fraudar a lei.” Ele insistiu no tema da fraude à lei — fio con-dutor do seu raciocínio — e prosseguiu com objetivo de demonstrá-lo:

conhecendo do recurso, aceito a impugnação deste prazo estipulado, de menos de cinco anos, por fraudulento, por ter sido estipulado em fraude à

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Ministro Hahnemann Guimarães

lei. Prova-se a fraude pelos indícios; não há (...) matéria de fraude. O código do Processo civil isto declara expressamente, quando diz: “O dolo, a fraude, a simulação e, em geral, os atos de má-fé poderão ser provados por indícios e cir-cunstâncias”. é o que dispõe o art. 252. Ora, os indícios são, no caso, veementes, no sentido de que se estipulara um prazo inferior a cinco anos para fraudar a lei. O primeiro contrato foi de quatro anos; depois se deixou que decorresse um prazo de dois anos, para evitar a aplicação da lei, estipulando-se outra vez um quadriênio, e os locatários cederam às imposições dos locadores.

Há uma circunstância que me impressiona profundamente, no caso; o estabelecimento comercial é o mesmo e tem dez anos de existência. Se há algum estabelecimento que mereça a tutela da lei e adquira o direito à renovação da locação é este.

Tenho-me, aliás, sempre inclinado à admissão de fraude à lei quando os prazos da locação são pouco distantes dos cinco anos que a lei exige para o loca-tário ter direito à renovação do contrato.

Assim sendo, aceitando a existência de fraude pelos veementes indícios apontados, conheço do recurso e lhe dou provimento.

Veja-se que a técnica jurídica empregada pelo Ministro Hahnemann Guimarães, de conhecer das razões das normas, alinha-se com as modernas tendências de interpretação dos contratos. Para o Ministro, havia uma evidente fraude à lei, e a atitude positivista do Tribunal, no enquadramento da norma aos fatos, com a qual não concordava neste caso, terminou por deixar à mercê de uma das partes do contrato a parte com menor grau de liberdade negocial.

INDENIzAÇÃO POR DANO MORAL

O tema do dano moral a partir da década de 1990 assumiu considerável espaço na doutrina civilista, com contornos amplos, especialmente se com-parado às decisões mais antigas, quando o STF julgava causas cíveis como corte de último recurso. O julgado constante do RE 11.171/MG, decidido em 2 de janeiro de 1948 (aproximadamente há meio século), tendo como Relator o Ministro Hahnemann Guimarães e Presidente o Ministro Orozimbo Nonato, é um bom exemplo. Discutia-se no feito o direito à indenização do pai de uma mulher vítima de homicídio pelo próprio noivo. Quando ocorreu o crime, ela estava grávida de oito ou nove meses e já era casada no religioso.

A ação reclamava indenização por diversos danos causados ao pai (dote, despesas com o casamento civil não realizado (só o religioso), despesas do luto, alimentos devidos pela falecida ao pai, juros de mora, honorários de advogado, despesas judiciais etc.). A primeira instância concedeu apenas as despesas do luto. Apelada a sentença, a segunda instância acresceu os honorários na decisão. O autor impugnou o acórdão do Tribunal de Apelação e opôs também embargos infringentes, e oportunamente interpôs recurso extraordinário (tendo em vista a ineficácia dos embargos). No seu recurso extraordinário, o recorrente alegou

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que teriam sido infringidos os arts. 1.526 e 1.548 do código civil de 1916, por-que não havia sido atribuída a indenização pelo “agravo irrogado a sua honra [da filha].” Os referidos artigos apresentavam a seguinte dicção:

Art. 1.526. O direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-la trans-mitem-se com a herança, exceto nos casos que este código excluir.

Art. 1.548. A mulher agravada em sua honra tem direito a exigir do ofensor, se este não puder ou não quiser reparar o mal pelo casamento, um dote correspondente à sua própria condição e estado: (Redação dada pelo Decreto do Poder Legislativo 3.725, de 15-1-1919)

I — se, virgem e menor, for deflorada.II — se, mulher honesta, for violentada, ou aterrada por ameaças.III — se for seduzida com promessas de casamento.IV — se for raptada.

O voto do Ministro Hahnemann Guimarães, abordando apenas questões preliminares, considerou o problema dos danos morais e concluiu pelo não-conhecimento do recurso extraordinário, no que foi acompanhado por unanimi-dade pelos outros Ministros componentes da Segunda Turma. O voto, na parte que trata da questão acima, foi exarado nos seguintes termos:

O recorrente pretende que se infringiu a letra dos arts. 1.526 e 1.548, II e III, do código civil, porque não lhe foi atribuída a indenização que sua filha poderia exigir pelo agravo irrogado a sua honra.

O direito à indenização transmite-se com a herança do ofendido, quando o direito violado for transmissível.

O direito à honra é um dos chamados direitos de personalidade, que são intransmissíveis e desaparecem com seu titular. Intransmissível também o direito à reparação pelo dano causado à honra, que é dano moral.

A indenização concedida pelo citado art. 1.548 diz respeito a um direito não patrimonial, denominado também ideal na doutrina alemã (ideelles Recht); e cabe apenas a quem sofreu a injúria.

Finalizando o voto, o Ministro explicou que, para ser procedente o pedido com base no art. 1.537, II, do código civil, de 1916, havia de se provar o fato que ensejava tal indenização, o que não podia ser objeto do recurso extraordinário, e concluiu pelo seu não-conhecimento.

INSOLVÊNCIA — COMPENSAÇÃO DE DíVIDAS VENCIDAS

No RE 9.715/SP, decidido em 25 de agosto de 1950, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato, Relator o Ministro Rocha Lagôa, a questão a ser enfrentada dizia respeito à exigência contida no art. 1.010 do código civil em casos de insolvência. O autor propôs ação de cobrança, e o réu contestou alegando ser seu credor. Em seguida, propôs a compensação ex vi lege. O réu encontrava-se

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Ministro Hahnemann Guimarães

sob o estado de insolvência civil (Decreto-Lei 1.888, de 15 de dezembro de 1939). Superadas as questões de ilegitimidade das partes, o autor impugnou o direito do réu a compensar as dívidas. O juiz de primeira instância deu razão ao réu. O autor apelou, e o Tribunal reformou a sentença, entendendo que para haver compensação as dívidas deveriam ser exigíveis, com base no art. 1.010 do código civil de 1916. Além do que, incorria a proibição do art. 1.024 do código civil, considerando que o ativo do devedor ficaria diminuído com o prejuízo dos demais credores. O réu interpôs recurso extraordinário (arts. 101, III, a e d, da constituição de 1946) e, entre outros fundamentos, a violação aos arts. 1.009 e 1.010 do código civil,42 alegando também que a compensação legal se daria no âmbito da câmara de Reajustamento Econômico. No caso, incidiram outras questões, como a legislação especial em relação às dividas de agricultores, que sobreveio à decisão da câmara de Reajustamento Econômico, que por sua vez sobreveio após a decisão da Justiça.

O Ministro Hahnemann Guimarães distinguiu a questão, sustentando que a câmara era instância administrativa e assim não havia como estabelecer con-flito de jurisdição entre aquela e a instância. Superando as outras preliminares, declarou conhecer do recurso por entender que havia ofensa à letra da lei, no caso o art. 1.010 do código civil, o qual requeria, para a verificação ipso jure, “a com-pensação, apenas, que a dívida seja de coisas fungíveis, seja líquida e vencida”.

Na seqüência de seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães estabeleceu seu ponto de vista quanto ao conceito de dívida vencida e suas conseqüências:

A dívida vencida é sempre exigível. E a suspensão da exigibilidade, por moratória adotada por lei superveniente, não pode impedir a compensação, por-que nem a própria falência, nem o próprio regime falimentar, impede a compen-sação. é princípio consagrado em todas as leis falimentares o de que se verifica a compensação das dívidas vencidas, até à data da falência. A moratória não suspende, portanto, a compensação, que se verifica ainda apesar da moratória. A falta de exigibilidade, neste caso, não impede a compensação.

Assim, não me parece que o Tribunal de Justiça de São Paulo, divergindo, aliás, no caso de decisão de sua 3ª câmara, haja dado à lei o entendimento cor-respondente à sua letra expressa, porque o art. 1.010 diz: “A compensação efe-tua-se entre dívidas líquidas, vencidas e de coisas fungíveis”.

Ora, acrescentar-se a esta disposição legal o requisito da exigibilidade é infringir-se a sua letra, porque toda dívida vencida é exigível. Daí estabelecer a própria lei de falência que a dívida vencida antes da falência é compensável.

Por conseguinte, não havia como a moratória pudesse impedir a compen-sação, mesmo que se aceitasse o requisito da exigibilidade. No caso, aliás, nem esse requisito se pode aceitar, porque isto infringiria a letra da lei.

42 Dizem os mencionados dispositivos:“Art. 1.009. Se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas

obrigações extinguem-se, até onde se compensarem.Art. 1.010. A compensação efetua-se entre dívidas líquidas, vencidas e de coisas fungíveis.”

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com base nesses argumentos, o Ministro Hahnemann Guimarães conhe-ceu do recurso e lhe deu provimento. O aparentemente óbvio conceito de que dívida vencida é sempre exigível fez diferença no argumento. Ao final, a Segunda Turma conheceu do recurso e lhe deu provimento, vencidos o Presidente e o Ministro Afrânio costa.

LOCAÇÃO — RENOVAÇÃO, ôNUS DA PROVA

Em julgado de matéria civil, decidido em 28 de setembro de 1948, o voto do Ministro Hahnemann Guimarães reverteu o voto do Relator numa interes-sante e importante discussão sobre a quem caberia o ônus da prova, no caso de ação renovatória. Trata-se do RE 12.700/SP, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato, Relator o Ministro Lafayette de Andrada, sendo o Relator para o acór-dão o Ministro Hahnemann Guimarães.

No caso em questão, o inquilino de imóvel comercial demandou para ver seu contrato de locação renovado. Os locadores alegaram necessitar do prédio para uso próprio, com fundamento no art. 8º, letra e, do Decreto 24.150, de 20 de abril de 1934 (Lei de Luvas)43. Perdida a causa na primeira instância, o autor apelou, mas o Tribunal manteve a sentença unânime. Outro aspecto existente na questão era o fato de o imóvel ser possuído em condomínio, sendo os deman-dados co-proprietários. Um deles tinha interesse em uso próprio do imóvel para estabelecimento comercial, o que estaria previsto no art. 358 do código de Processo civil vigente à época, com a seguinte redação:

Art. 358. Quando o locador, opondo-se ao pedido de renovação do con-trato, alegar necessidade do imóvel para pessoa de sua família, deverá provar que o mesmo se destina a transferência de fundo de comércio existente há mais de um ano.

O recurso extraordinário foi interposto com fundamento nas letras a, parte final, e d do inciso III do art. 101 da constituição de 1946 (ofensa a dispo-sitivo de lei federal e divergência jurisprudencial, respectivamente). A questão das propriedades em condomínio, questão de fundo na causa, ficou superada pelo entendimento dos Ministros, já que um dos co-proprietários necessitava do imóvel para uso próprio, conforme alegado. A análise aqui é focada na questão principal. Em seu voto, o Ministro Lafayette de Andrada sustentou que a alega-ção do locador, com sinceridade, fazia prova, não se exigindo prova prévia da sinceridade do pedido de retomada, por existir a presunção de boa-fé.

43 A chamada Lei de Luvas, de 1934, garantia direito aos locatários, antes sujeitos a abusos contratuais, e foi revogada expressamente pela Lei 8.245, de 18-10-1991, que dispôs sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes, modernizando o tratamento anterior da matéria.

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Ministro Hahnemann Guimarães

Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães manifestou-se nos seguintes termos:

Senhor Presidente, o recorrente não insistiu em seu argumento relativo à disposição do art. 358 do código de Processo civil, argumento que eu rejeitaria, porque, no caso, a pessoa a quem se destinaria o uso do imóvel é condômino, é co-proprietário do imóvel; por conseguinte, está ela, sem dúvida, equiparada à própria locadora.

Resta, pois, a razão fundada no art. 8º, letra e, do Decreto 24.150, de 20 de abril de 1934, isto é, haver a locadora alegado que vai usar o prédio.

O acórdão impugnado pelo recurso extraordinário entendeu que não é necessário à locadora, que opõe ao pedido de renovação esta exceção, prová-la.

A meu ver, Senhor Presidente, é necessária essa prova. é necessário pro-var que o prédio vai ser usado por aquele a quem, nos termos da lei, se destina o seu uso.

O eminente advogado, que acabou de ocupar a tribuna, salientou, com muita razão, o preceito contido no art. 209, § 2º, do código de Processo civil: “Quando o réu opõe, a um fato constitutivo do pedido, um fato impeditivo do pedido, tem que provar este fato impeditivo”.

Aliás, no caso, talvez nem se trate até, em rigor, de fato impeditivo, mas de uma verdadeira exceção, de uma exceptio iuris. O locador tem um contra direito com respeito ao locatário. Tem, pois, uma verdadeira exceção. Essa exce-ção se funda em que vai ele usar o prédio alugado. Mas, para que essa exceção possa ser acolhida, é necessária a prova dela. é uma verdadeira ação.

Se o réu locador opõe ao pedido do locatário uma exceção, ou, digamos mesmo, um fato impeditivo, quer se considere a sua alegação exercício de con-tra direito, quer se considere a sua alegação mera alegação de fato impeditivo, é necessária essa prova.

é o que me parece, Senhor Presidente.Ora, o acórdão impugnado pelo recurso extraordinário dispensa o autor,

em que se transforma o réu na exceção, de provar seu pedido.Suponhamos que, ao invés de ter sido a ação proposta pelo locatário,

fosse ela intentada pela locadora, nos termos do art. 26 do Decreto 24.150, por-que o autor pode propor ação declaratória contrária. Não teria a locadora, para ilidir a renovação, de provar que ia usar o prédio?

Ora, se ela, em vez de opor esse seu direito em ação, o fizer em exce-ção — excepetionis ope tem de provar a exceção.

Assim, Senhor Presidente, data venia do eminente Sr. Ministro Relator, conheço do recurso, não somente pela letra d, já que o dissídio de jurisprudên-cia é manifesto, mas até pela letra a, porque aceito o argumento do recorrente de que, pelo menos, foi preterida a disposição do código de Processo civil, no art. 209, § 2º, porque dispensou a sentença impugnada a parte que alegou um fato impeditivo do pedido, de prová-lo.

Pedindo vênia ao eminente Sr. Ministro Relator, conheço do recurso e lhe dou provimento.

A decisão final foi no sentido de conhecer do recurso e dar-lhe provi-mento no sentido do voto do Ministro Hahnemann Guimarães, vencidos os votos dos Ministros Presidente e Relator.

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NATUREzA DOS JUROS MORATÓRIOS

No RE 12.006/AL, decidido em 28 de outubro de 1947, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato, Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, foi analisada questão referente à enfiteuse, relativamente à cobrança de pagamento de pensões anuais em atraso, devidas pelo aforamento de terreno de proprie-dade dos autores, acrescida de juros moratórios, mais custas e honorários. Destaca-se, aqui, porém, a questão dos juros moratórios devidos, e a impor-tância de precisar sua natureza jurídica, que delimita o tratamento jurídico de sua cobrança — esta questão foi enfrentada em voto do Ministro Hahnemann Guimarães quando do julgamento do recurso extraordinário. Proposta pelos proprietários, a ação de cobrança foi julgada procedente; a sentença foi confir-mada pelo Tribunal, julgando improcedente a alegada prescrição qüinqüenal (para os foros e juros moratórios) e mantendo a condenação dos honorários. O feito subiu em extraordinário ao STF com base no inciso III, d, do art. 101 da constituição de 1946 (dissídio jurisprudencial).

Em seu voto, seguido por unanimidade, o Ministro Hahnemann Guimarães, após fixar que ao cânone enfitêutico não se aplicava a prescrição dos alugueres, fez uma digressão elucidativa sobre a natureza dos juros morató-rios, demonstrando que, embora não houvesse conflito jurisprudencial evidente, a eles também não se aplicaria a prescrição qüinqüenal prevista no art. 178, § 10, III, do código civil de 1916 (que diz que prescrevem em cinco anos os “juros, ou quaisquer outras prestações acessórias pagáveis anualmente, ou em períodos mais curtos”), nos seguinte termos:

é notória a controvérsia em torno do art. 2.277 do código civil francês, que estabeleceu a regra segundo a qual prescrevem em cinco anos “os juros das quantias dadas em mútuo, e geralmente tudo que for pagável anualmente, ou em termos periódicos mais curtos”.

Firmou-se a jurisprudência francesa em admitir que essa regra também compreende os juros moratórios devidos em seguida à citação e os juros legais que corram de pleno direito.

De Page observa, entretanto, opondo-se à corrente dominante, que os juros legais, inclusive os moratórios, não são aluguer de dinheiro; têm o cará-ter de indenização; não são devidos em prestações periódicas e daí conclui que devem prescrever em trinta anos (Trainté élém, de droit civil belge, T. 7º, v. I, 1943, p. 1174, n. 1.323).

Esta doutrina coincide, de certo modo, com a decisão adotada nesta Turma, que, segundo o voto do Sr. Ministro Waldemar Falcão, entendeu estar a prescrição dos juros da mora adstrita ao mesmo prazo fixado à prescrição do título exeqüendo (RE 5.034, de 23-12-1941, em O. Kelly, Interpretação do Código Civil no STF, 1 v., 1944, p. 404, n. 1.200).

Os juros moratórios não constituem faenus fruto que deva ser perio-dicamente prestado. São o ressarcimento das perdas e danos (código civil, art. 1.061). Não se aplica, pois, a essa indenização o preceito do art. 178, § 10,

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Ministro Hahnemann Guimarães

III, do código civil. A esse respeito não foi apontado dissídio na jurisprudência brasileira.

Na seqüência de seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães não reco-nheceu também divergência de jurisprudência quanto aos honorários devidos (em virtude de se entender culposo o inadimplemento da obrigação de satisfazer as pensões), e por fim declarou não conhecer o recurso por carência de fundamento.

NATUREzA PROBANTE DO REGISTRO DE IMÓVEIS

Este julgado se reveste de importância porque fixou os limites proban-tes do que se contém no registro de Imóveis, em voto condutor do Ministro Hahnemann Guimarães. Trata-se do RE 10.182/DF, decidido em 2 de janeiro de 1947, pela Segunda Turma, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães. A controvérsia girava em torno da presun-ção estabelecida no art. 859 do código civil, que dispõe: “Art. 859. Presume-se pertencer o direito real à pessoa, em cujo nome se inscreveu, ou transcreveu.”

O acórdão da Quinta Turma do Tribunal de Apelação, divergindo das demais, tratou da matéria adotando o modelo germânico e dando eficácia à transcrição feita antes da vigência do código civil de 1916 (art. 859). Assim, não reconheceu o domínio no caso de duplicidade de transcrições e desres-peitou a transcrição feita em 1920 (já vigente o código civil) no caso em que estavam presentes os demais requisitos da prescrição aquisitiva, desprezando a aquisição feita em hasta pública em 1920, também transcrita neste ano. Em acórdão de 1944, as câmaras cíveis Reunidas do Tribunal de Apelação, em decisão não unânime, reverteram o julgamento da Quinta Turma, restau-rando a sentença de primeiro grau, no sentido de que a transcrição não gerava presunção absoluta de propriedade. O detentor da primeira transcrição mane-jou o extraordinário.

O Ministro Hahnemann Guimarães, após reconhecer a existência da con-trovérsia sobre se o Direito brasileiro houvera adotado o princípio da fé pública do livro predial, conforme dispõe o código civil alemão, citou doutrinadores, como Philadelpho Azevedo e Lipo Garcia, que defendem esta tese, mencio-nando José Soriano de Souza Neto em sentido contrário. Seguiu dizendo que o Direito brasileiro admitia a divergência entre “a verdadeira situação jurídica e o registro de imóveis”. contudo, ressaltou que essa divergência era excepcional, justificando-se a presunção estabelecida no art. 859 do código civil brasileiro à semelhança do código civil alemão. Após fazer uma digressão quanto às duas visões e à semelhança dos códigos brasileiro e germânico, preparando o terreno para a argumentação que iria prevalecer, prosseguiu em sua opinião:

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Admitiu-se no nosso direito que pudesse haver divergência entre a ver-dadeira situação jurídica e o registro de imóveis. Essa divergência é, porém, excepcional, justificando-se, assim, a presunção, que, à semelhança do art. 891 do código civil alemão, o nosso código civil estabeleceu no art. 859.

Essa presunção legal, iuris tantum, tem eficácia meramente processual; regula o encargo da prova, dispensando de provar que é titular do direito real a pessoa em cujo nome o mesmo direito foi inscrito ou transcrito.

Nada autoriza a admitir que, no citado art. 859, a presunção tenha outro fim além de conceder uma dispensa do ônus da prova, ou de inverter esse ônus. Se a lei quisesse estabelecer uma praesumptio iuris et de iure, teria enunciado expressamente essa grave conseqüência, pela qual o registro de imóveis seria considerado absolutamente exato em favor de quem adquirisse direito real de boa-fé e a título oneroso.

Assim fez o código civil alemão, que, repelindo o princípio da eficácia formal ou constitutiva do registro, aceitou em favor do terceiro adquirente de boa-fé uma exceção emanada do mesmo princípio (arts. 892 e 893). A presun-ção do art. 891, que pode ser destruída pela prova contrária, é transformada em ficção irrefragável pelo art. 892.

O código civil brasileiro exprimiu, no art. 859, a praesumptio iuris tan-tum, sem adotar a ficção de que o conteúdo do registro é absolutamente verda-deiro, se nele confiou, de boa-fé, terceiro adquirente.

concluindo, o Ministro Hahnemann Guimarães sustentou que o acórdão recorrido não ofendeu o código civil; pelo contrário, deu à presunção seu ver-dadeiro caráter, conhecendo do recurso e negando-lhe provimento.

RESPONSABILIDADE POR ATO ILíCITO DE EMPREGADO

No RE 25.111/PB, julgado em 24 de janeiro de 1961, Presidente o Ministro Lafayette de Andrada e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, o STF, por sua Segunda Turma, entendeu que a culpa do empregado no dano justificou a presunção de que a recorrente não fora vigilante. O Tribunal de Justiça da Paraíba havia julgado, em grau de apelação, que a ação era procedente porque ficara provada a culpa do empregado da ré.

Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães, analisando os pressupos-tos de admissibilidade do extraordinário, que admitiu por divergência de interpre-tação dos dispositivos do código civil pertinentes (arts. 1.521, III, 1.522 e 1.525 do código civil de 1916), analisou o mérito e exarou o seguinte entendimento:

conheço do recurso pela divergência na interpretação das disposições do código civil, citados, e lhe nego provimento.

O caso não é de inexecução de contrato, mas de dano por ato ilícito do empregado, cuja culpa justificou a presunção de que a recorrente não fora vigilante.

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Ministro Hahnemann Guimarães

A decisão foi unânime, sendo uma das bases da Súmula/STF 341, apro-vada em sessão plenária de 13 de dezembro de 1963 e que afirma ser “presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto”.

SIMULAÇÃO POR INTERPOSTA PESSOA NA VENDA DE ASCENDENTE A DESCENDENTE — PRESCRIÇÃO

No RE 31.363/MG, julgado em 7 de maio de 1957, tendo como Presidente o Ministro Lafayette de Andrada e Relator o Ministro Ribeiro da costa, o STF julgou um caso de venda de ascendente a descendente em que um irmão, cujo reconhecimento se deu em 1952, propôs contra o outro ação ordinária com base no art. 1.132 do código civil de 1916, com o objetivo de anular a venda feita em 1946, na qual o falecido pai houvera alienado, de maneira simulada, a um terceiro, sendo a ação proposta após a morte do pai dos litigantes. A venda tam-bém não tivera o consentimento dos outros filhos. Na contestação, a outra parte alegou que o reconhecimento não atingia situações jurídicas definitivamente constituídas, que falecia ao demandante a legitimatio ad causam em relação aos outros irmãos e, por fim, que já ocorrera a prescrição, pois o alienante falecera em 20 de fevereiro de 1950, e o autor ingressara com a ação em 15 de fevereiro de 1954. A ação foi julgada improcedente. Apelaram o autor e a assistente, sendo que esta última foi considerada carente de ação por prescrição (só veio ao processo em 31 de julho de 1954). A 3ª câmara civil do Tribunal de Justiça de Minas negou provimento a ambas as apelações e condenou os honorários à parte vencida. Sobrevieram três recursos extraordinários, um da assistente e dois do autor da ação. Ao votar, o Ministro Ribeiro da costa manifestou-se pelo provimento do recurso, devolvendo o feito ao Tribunal para que este julgasse se teria havido de fato a alegada simulação. O Ministro Vilas Boas deu também provimento ao recurso, mas na devolução da causa restringiu o reexame da prescrição. Em seguida, votou o Ministro Hahnemann Guimarães:

Senhor Presidente, lamento divergir do eminente Sr. Ministro Vilas Boas, porque tenho entendido que a disposição do art. 1.132 do código civil não pode ser interpretada com abstração da sua razão histórica, que é dada pelo antigo direito português, das Ordenações, porque essa disposição de lá vem. Baseava-se a disposição das Ordenações numa presunção absoluta de simula-ção. Esta disposição passou ao direito brasileiro vigente. Não é possível, na apli-cação do princípio do art. 1.132, descuidar-se o intérprete de verificar se houve simulação ou não.

No caso, sucedeu que houve interposição de pessoa, para se poder consu-mar a simulação. Assim, entendo que até por esta razão a prescrição há de ser a

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do art. 178, § 9º, inciso IV, do código civil, isto é, o prazo de 4 anos de abertura da sucessão do ascendente alienante.44

Diante dessa posição, aparteou o Ministro Vilas Boas:Encaro o ato na sua integridade: um chefe de família vende um determi-

nado bem a outra pessoa, que o transfere depois a um descendente do primitivo vendedor. Eu examino o ato na suas integridade e afasto a idéia dessa simulação, prescritível em quatro anos, para achar que esse ato é nulo na sua integridade e afasto a idéia dessa simulação, prescritível em quatro anos, para achar que esse ato é nulo na sua exterioridade. Não estou dizendo que um pai de família, ven-dendo para um terceiro, esse terceiro não pode vender; claro que pode.

O Ministro Hahnemann Guimarães insistiu no argumento histórico: “Mas a razão histórica da lei é que a base é uma presunção de que tenha feito o ascendente uma doação simulada ao descendente e os atos simulados pres-crevem em quatro anos.” Assim, redargüiu o Ministro Vilas Boas: “Mas é pre-ciso distinguir quando a simulação é em fraude à lei e é absoluta.” O Ministro Hahnemann Guimarães concluiu, então:

O legislador adotou essa prescrição, presumindo uma simulação por parte dos ascendentes, na alienação feita ao descendente, através de interposta pessoa — simulação de venda para encobrir uma doação.

Nestas condições, também conheço do recurso e lhe dou provimento, mas vou mais longe, entendo que o fundamento da disposição é uma presun-ção absoluta e torna prescritível o direito a partir de quatro anos da abertura da sucessão do ascendente alienante.

44 Dispositivos do código civil de 1916 pertinentes ao caso:“Art. 102. Haverá simulação nos atos jurídicos em geral:I — quando aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas das a quem real-

mente se conferem, ou transmitem;II — quando contiverem declaração, confissão, condição, ou cláusula não verdadeira;III — quando os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.Art. 105. Poderão demandar a nulidade dos atos simulados os terceiros lesados pela simula-

ção, ou os representantes do poder público, a bem da lei, ou da Fazenda.Art. 178. Prescreve:(...)§ 9º Em 4 (quatro) anos:(...)IV — a ação do interessado em pleitear a exclusão do herdeiro (arts. 1.595 e 1.596), ou provar

a causa da sua deserdação (arts. 1.741 a 1.745), e bem assim a ação do deserdado para a impug-nar; contado o prazo da abertura da sucessão;

Art. 1.132. Os ascendentes não podem vender aos descendentes, sem que os outros descen-dentes expressamente consintam.

Art. 1.149. A preempção, ou preferência, impõe ao comprador a obrigação de oferecer ao vendedor a coisa que aquele vai vender, ou dar em pagamento, para que este use de seu direito de prelação na compra, tanto por tanto.

(...)Art. 1.152. O direito de preempção não se estende senão às situações indicadas nos arts. 1.149

e 1.150, nem a outro direito real que não a propriedade.”

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Ministro Hahnemann Guimarães

O RE 31.363/MG, julgado em 7 de maio de 1957, foi conhecido e pro-vido por unanimidade, no sentido de que no caso de venda feita por ascen-dente a descendente, com simulação por interposta pessoa, aplica-se o prazo prescricional de quatro anos, devendo o prazo correr da abertura da sucessão do alienante.

SUCESSÃO — LIBERDADE DO TESTAR

O problema jurídico enfrentado pelo STF no julgamento do RE 6.480/DF, em 17 de agosto de 1948, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato, Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, foi a questão dos limites impostos ao testador pela lei, especificamente pelo código civil. O voto do Ministro Hahnemann Guimarães, vencido na preliminar pelo não-conhecimento, foi seguido em unanimidade pelos outros Ministros, ao negar provimento ao recurso, e configura uma demonstração de que o Ministro Hahnemann Guimarães não seguia uma rigidez positivista em sua interpretação da norma jurídica. Versava o caso em legado, distribuído a filho de concubina do tes-tador casado, tratando-se de legado de alimentos, mantido pelo acórdão do Tribunal inferior. Após breve relato processual, prosseguiu o Ministro Hahnemann Guimarães em seu voto:

Os recorrentes argúem a decisão de contrária ao disposto nos arts. 1.719, 1.720 e 403 do código civil e à jurisprudência, que considera nula a liberalidade com que o testador casado haja contemplado o descendente de sua concubina.

A tese do acórdão é, porém, que os filhos adulterinos e incestuosos têm capacidade para receber legado de alimentos, que abrange o sustento, a cura, o vestiário e a casa, enquanto o legatário viver, além da educação, se ele for menor (código civil, art. 1.687).

No antigo direito português, negava-se ao filho espúrio a testamentifactio passiva, mas admitia-se que pudesse receber de seus pais legado de alimentos (coelho da Rocha, Instituto de Direito Civil Português, T. II, 1857, p. 544, § 690).

O código civil francês concede expressamente aos filhos espúrios, na sucessão dos pais, o crédito de alimentos (art. 762).

Se não lhes concede esse crédito, não lhes recusa o nosso direito capaci-dade para que os pais os nomeiem legatários da prestação alimentar.

A natureza do legado, restrito às necessidades da pessoa favorecida, exclui a possibilidade da simulação presumida pelo art. 1.720 do código civil. O legado não pode beneficiar pessoa destituída de testamentifactio passiva, nos termos do art. 1.719 do mesmo código.

A filiação espúria, provada quer por sentença irrecorrível, não provocada pelo filho, quer por confissão ou declaração escrita do pai, impõe a este a obri-gação de prestar alimentos (código civil, art. 505).

Pode, conseguintemente, o testador estabelecer que o filho espúrio seja alimentado pelos bens hereditários, transmitindo aos herdeiros sua obrigação.

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Memória Jurisprudencial

7. COMERCIAL

ExECUÇÃO DE DíVIDA PURA

O Ministro Hahnemann Guimarães foi o Relator do RE 11.529/SP, no qual se decidiu questão relativa à execução da dívida pura, com base no art. 137 do código comercial então vigente.45 O julgamento da Segunda Turma, presi-dido pelo Ministro Orozimbo Nonato, deu-se em 8 de julho de 1947. O acórdão do Tribunal do Estado de São Paulo, objeto do recurso, havia confirmado a sentença de primeira instância que julgou procedente o pedido do autor con-sistente em requerer do réu indenização em virtude de haver rescindido por sua culpa um contrato pelo qual se obrigara a vender ao autor certa mercadoria (sacos vazios), não retirada no prazo de 10 dias. Do acórdão, a ré opôs embargos infringentes com base no argumento de que a culpa da inexecução era do autor, pela demora em retirar a mercadoria. Os embargos foram rejeitados e impug-nados pelo réu em recurso extraordinário, alegando-se violação do disposto no art. 137 do código comercial. Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães sustentou:

é evidentemente contrária à letra do art. 137 do código comercial a pretensão da recorrente. Esta disposição legal não diz que a obrigação pura somente é exeqüível no prazo de 10 dias contados de sua data, mas estabelece que somente será ela exigível 10 dias depois de sua data.

O código comercial dá, no art. 137, um espaço razoável para se executar a dívida pura, que não poderá ser exigida antes do prazo de graça. Derrogou-se, em nosso antigo direito, com fundamento nas Ords. 4,50, § 1º, o princípio: Quotiens autem in obligatione dies non ponitur, praesenti die pecunia debetur (D. 45, 1, 41, § 1º). Ao princípio voltou o código civil, no art. 952.46 O prazo do art. 137 do código comercial é um favor para que o devedor cumpra a obriga-ção, sem que, entretanto, desta o dispense.

O Ministro não conheceu do recurso, em decisão unânime. Somente o Ministro Orozimbo Nonato se manifestou distinguindo entre mora e inadim-plemento completo, em que não torna impossível o adimplemento da obrigação, mas sem reparos ao pronunciamento do Relator.

45 Esta a redação do artigo citado:“Art. 137. Toda a obrigação mercantil que não tiver prazo certo estipulado pelas partes, ou

marcado neste código, será exeqüível 10 (dez) dias depois da sua data.”46 Diz o art. 192 do código civil de 1916:

“Art. 952. Salvo disposição especial deste código e não tendo sido ajustada época para o pa-gamento, o credor pode exigi-lo imediatamente.”

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Ministro Hahnemann Guimarães

FALÊNCIA — PRESCRIÇÃO DE CRIME FALIMENTAR

No Hc 37.528/SP, decidido em 29 de janeiro de 1960, Presidente o Ministro Barros Barreto e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, a ques-tão enfrentada pelo STF dizia respeito ao dies a quo da prescrição da ação por crime falimentar. O Ministro Hahnemann Guimarães defendia a tese de que o art. 199, parágrafo único, da Lei de Falências (Decreto-Lei 7.661, de 21 de junho de 1945, então vigente) era determinante para fixação do dia do início do prazo prescricional (de dois anos), que se daria somente após haver transi-tado em julgado a sentença que declarou encerrada a falência. A decisão, por maioria, no sentido do voto do Ministro Hahnemann Guimarães, negou provi-mento ao recurso. Decisão neste sentido se repetiria em outros julgados, e.g., o Hc 38.110/SP, de 16 de novembro de 1960, também Presidente o Ministro Barros Barreto e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães. Porém, a juris-prudência do STF mudaria, relativizando esta interpretação. No julgamento do Hc 39.916/SP, em 3 de julho de 1963, Presidente o Ministro Luiz Galotti e Relator o Ministro Pedro chaves, o STF decidiu no sentido de que o prazo deve ser contado da data em que a falência deveria estar encerrada, conjugando os arts. 132, § 1º, e o parágrafo único do art. 199 da Lei de Falências, que tem a seguinte redação:

Art. 132. Apresentado o relatório final, deverá o juiz encerrar, por senten-ças, o processo da falência.

1º Salvo caso de força maior, devidamente provado, o processo da falên-cia deverá estar encerrado dois anos depois do dia da declaração.

Art. 199. A prescrição extintiva da punibilidade de crime falimentar opera-se em dois anos.

Parágrafo único. O prazo prescricional começa a correr da data em que transitar em julgado a sentença que encerrar a falência ou que julgar cumprida a concordata.

A ordem foi concedida, e reconhecida a prescrição contra voto do Ministro Hahnemann Guimarães. A posição expressa do Hc 39.916/SP viria a se converter na Súmula 147 do STF, aprovada em 13 de dezembro de 1963 (a prescrição de crime falimentar começa a correr da data em que deveria estar encerrada a falência, ou do trânsito em julgado da sentença que a encerrar ou que julgar cumprida a concordata). Porém, vale transcrever trecho do voto do Ministro Hahnemann Guimarães, quando do julgamento do Hc 39.916/SP, em que ele não admitia a aplicação do § 1º do art. 132 da Lei de Falências:

Não consigo adotar interpretação que permita a prescrição senão pelo que dispõe o parágrafo único do art. 199 da Lei de Falências, que estabelece como termo inicial da prescrição o dia em que transitar em julgado a sentença

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Memória Jurisprudencial

que encerra a falência. Não posso interpretar essa disposição de modo contrário ao texto expresso. Assim, data venia, nego a ordem.

SIGILO COMERCIAL E BANCáRIO

No MS 1.959/DF, julgado em 23 de janeiro de 1953, Presidente o Ministro José Linhares e Relator o Ministro Luiz Gallotti, o STF enfrentou a questão do sigilo comercial e bancário. O mandado de segurança foi impetrado contra ato da câmara dos Deputados que tornava públicos os dados de inquérito realizado no Banco do Brasil. Foi alegado o caráter de confidencialidade dos dados do inquérito. O Ministro Hahnemann Guimarães manifestou-se sobre esse aspecto nos seguintes termos:

Dão-se, como fundamentos do pedido, a violação do disposto nos arts. 17 e 18 do código comercial; a violação do caráter confidencial, que têm as infor-mações prestadas pelos Bancos à Superintendência da Moeda do crédito; e a violação do segredo da correspondência, assegurado no art. 141, § 6º, da constituição.

Àquela época não se buscavam no texto constitucional raízes para o sigilo bancário com a mesma intensidade que hoje se encontra na doutrina e em alguns julgados. A principal fonte era o código comercial de 1850, então vigente, que em seus arts. 17 e 18 dispunha:

Art. 17. Nenhuma autoridade, juízo ou tribunal, debaixo de pretexto algum, por mais especioso que seja, pode praticar ou ordenar alguma diligên-cia para examinar se o comerciante arruma ou não devidamente seus livros de escrituração mercantil, ou neles tem cometido algum vício.

Art. 18. A exibição judicial dos livros de escrituração comercial por inteiro, ou de balanços gerais de qualquer casa de comércio, só pode ser orde-nada a favor dos interessados em gestão de sucessão, comunhão ou sociedade, administração ou gestão mercantil por conta de outrem, e em caso de quebra.

cabe mencionar que o artigo único do Decreto-Lei 385, de 22 de abril de 1938, dispunha que, “Para os efeitos de fiscalização do imposto de consumo devido à União, fica revogado o art. 17 do código comercial”. Nesse diapasão foi a seqüência do voto do Ministro Hahnemann Guimarães:

Não me parece que seja possível negar a vigência desses dispositivos, embora os dos arts. 17 e 18 do código comercial estejam sofrendo cada vez maiores exceções, principalmente em matéria fiscal. Mas não é possível invocar o regime de confidência para proteger a revelação de irregularidades verifica-das, segundo o inquérito feito, no Banco do Brasil, que é sociedade de economia mista.

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Ministro Hahnemann Guimarães

No caso, tratava-se do Banco do Brasil, e o Ministro Nelson Hungria lembrou que a lei que regulava as S.A. permitia o acesso aos dados da escrita financeira em caso de irregularidades que nelas se verificassem. O Ministro Hahnemann Guimarães completou então seu voto nos seguintes termos:

Não é possível que esse segredo seja invocado para que impeça a veri-ficação de irregularidades nas operações do Banco do Brasil, dada a natureza deste estabelecimento. Não é possível que o regime de sigilo que merecem as operações dos Bancos interessados se oponha à revelação dessas irregularida-des apuradas no Banco do Brasil, segundo o inquérito.

Além disso, como bem acentuou o eminente Sr. Ministro Relator, esse segredo já está revelado, não existe mais. Não há alcance prático para o man-dado de segurança ora requerido, que denego.

O STF conheceu do mandado e no mérito denegou o pedido, por unani-midade.

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Memória Jurisprudencial

8. OUTROS TEMAS DE DIREITO CONSTITUCIONAL

COMPETÊNCIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO — DISPOSITIVO DE CONSTITUIÇÃO ESTADUAL

No julgamento do RE criminal 22.241/RS, de 9 de julho de 1954, Presidente o Ministro José Linhares, Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, o STF decidiu questão criminal que envolvia foro especial por prerrogativa de função, só que estabelecida na constituição do Estado do Rio Grande do Sul. O art. 160 da constituição daquele Estado vigente à época estabelecia competência por prerrogativa de função para os prefeitos municipais, o que gerou um conflito de jurisdição que subiu em forma de extraordinário ao STF. Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães afirmou:

No art. 160, dispõe a constituição do Rio Grande do Sul: “Nos crimes de responsabilidade, os prefeitos e subprefeitos serão julgados pelo juiz de direito da comarca mais próxima, com recurso para o Tribunal de Justiça”.

Esta disposição não se compreende entre as regras de competência enumeradas no Livro I, Título V (arts. 69 a 91), do código de Processo Penal. A Lei 1.079, de 10 de abril de 1950, que definiu os crimes de responsabilidade e regulou o processo da ação penal respectiva, também não estabeleceu norma especial a respeito de prefeitos.

O citado preceito do art. 160 contraria, assim, o princípio do art. 5º, XV, a, da constituição.

Já se lembrou que o Supremo Tribunal Federal declarou a invalidade da regra do art.67, III, da constituição do Rio Grande do Norte, que dava com-petência ao Tribunal de Justiça para processar e julgar, nos crimes comuns, os prefeitos municipais.

Preponho, assim, que a questão sobre validade do art. 160 da constituição do Rio Grande do sul seja decidida pelo Tribunal Pleno.

Encaminhado ao Pleno para decidir a questão constitucional, em voto adicional, o Ministro Hahnemann Guimarães se manifestou:

Só na lei processual federal é lícito estabelecer regras sobre competência e sobre recurso. Sustentei, aliás, que, pela Lei 1.079, de 10 de janeiro de 1950, que definiu os crimes de responsabilidade e regulou o processo da ação penal respectiva, não se estabeleceu nenhuma norma especial sobre os prefeitos, a cujo respeito tem de vigorar a regra comum, ou seja, a que vigora para o pro-cesso penal comum.

A decisão foi unânime pela inconstitucionalidade. O STF obtemperou que em se considerando tal dispositivo inconstitucional os autos deveriam voltar à turma para julgamento final. Em 23 de novembro de 1954, a decisão final foi exa-rada pela Segunda Turma, tendo como Presidente o Ministro Orozimbo Nonato e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, que conheceu do recurso e deu provi-mento, por unanimidade, com a seguinte redação: “é inconstitucional a disposição

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Ministro Hahnemann Guimarães

do art. 160 da constituição do Rio Grande do Sul, que estabeleceu competência por prerrogativa de funções, desconhecida no regime do processo penal.”

LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO — MANDADO DE SEGURANÇA E hAbEAS CORpUS

Trata-se de um habeas corpus impetrado em favor de Luiz carlos Prestes — à época Senador pelo Partido comunista do Brasil —, dos Deputados Maurício Grabois e João Amazonas e outros dirigentes do mesmo partido polí-tico. O Partido comunista do Brasil tivera seu registro cancelado47, além disso sua sede e seus comitês estavam ocupados pela Polícia, por ordem do Ministro da Justiça. De acordo com o relatório, foi alegado:

1º — que estão impedidos de entrar e sair da sede central e comitês locais do mesmo Partido pela Polícia, de ordem do Sr. Ministro da Justiça; 2º — que a Polícia, ainda antes de publicado o acórdão do Tribunal Superior Eleitoral que cassou o registro do Partido, invadiu-lhe as sedes, expulsando os funcionários que lá se achavam, apoderou-se das chaves, apropriando-se de máquinas de escrever, arquivos, fichários, livros, documentos, etc.; 3º — que o Partido se organizou como sociedade civil devidamente registrada no cartório compe-tente; 4º — que a cassação do registro partidário não suprime a sociedade civil, que subsiste até que seja dissolvida regularmente no caso de lhe atribuírem fins ilícitos, nos termos do art. 141, § 12, da constituição; 5º — que o julgado elei-toral, ainda sujeito aos recursos previstos em lei, não se estende à associação civil, porque restrito ao partido político; 6º — que os pacientes, como diretores da sociedade civil, estão impossibilitados de exercer atos relativos à guarda e disposição dos bens sociais e do patrimônio do ente privado, dando assistência aos interesses próprios da sociedade e de terceiros, comprometidos uns e outros pelos atos da Polícia; 7º — que, mesmo quando cancelado pela Justiça o regis-tro da sociedade civil, entraria esta em liquidação para ser dado destino ao seu patrimônio, nos termos do artigo 22 do código civil e na conformidade dos Estatutos que, prevendo a impossibilidade de serem realizados os objetivos do Partido, atribui à assembléia geral a disposição dos bens sociais.

O Hc 29.763 foi decidido em 28 de maio de 1947, Presidente e Relator o Ministro castro Nunes. Em seu voto, o Ministro castro Nunes fez longa digres-são sobre a competência da Justiça Eleitoral para o caso, declarando conhecer do habeas corpus, mas sustentando que o caso era na verdade de mandado de segurança:

47 O cancelamento do registro do Partido comunista do Brasil se deu em meio a intensa polêmica, pelo TSE, por via da Resolução 285, de 27-10-1945. A decisão seria depois confirmada pelo STF no RE 12.369, decidido em 14-4-1948, sob a presidência do Ministro castro Nunes e relatoria do Ministro Laudo de camargo. O Ministro Hahnemann Guimarães não tomou parte no julgamento declarando-se impedido por ter funcionado como Procurador-Geral do Tribunal Superior Eleitoral à época do registro do Partido (1945). Ver cOSTA, Edgard. Os grandes julgamentos do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 1964 (1947-1955, III), p. 25.

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Memória Jurisprudencial

O que se reclama não é somente o direito de entrar e sair da sede da agremiação partidária, mas de exercer atos de administração da sociedade civil, cujo funcionamento está sendo reivindicado, com os meios necessários, ainda que proibida a prática de atos partidários. é para que se declare subsistente a associação civil remanescente no tocante à disposição dos seus haveres que se pede o habeas corpus, remédio manifestamente inidôneo para os direitos que se dizem violados pelo argüido excesso de autoridade.

O habeas corpus protege a liberdade de locomoção e esgota-se na prote-ção dessa liberdade.

Ao tempo da jurisprudência extensiva que atribuía ao velho writ, na falta de outro remédio adequado, a virtude de alcançar outros direitos, pelo argumento de que estaria subordinado o seu exercício àquela liberdade — con-dição, seria possível utilizá-lo para atingir ao que então se chamava, com Pedro Lessa — o direito — escopo.

Ainda assim, já àquele tempo, registraram-se casos em que o Supremo Tribunal o declarou inidôneo para anular v. gr. o fechamento de um estabeleci-mento comercial ou, de um modo geral, para garantir o exercício da profissão comercial (Revista do Supremo Tribunal, v. 46, 22 e 23) e ainda para resolver questões de direito civil (Ibidem, v. 41, p. 53).

criado o mandado de segurança, que tem nessa jurisprudência as suas nascentes, tornou-se necessário distinguir as hipóteses.

O Ministro prosseguiu em seu longo voto e reforçou seu argumento nesse sentido, arrematando-o:

Em outro caso, também de habeas corpus requerido para um capitão do Exército classificado em guarnição de categoria inferior àquela a que se jul-gava com direito, decidiu a corte Suprema que não estava em jogo somente a liberdade de locomoção mas precipuamente o direito de não ser classificado em determinada guarnição, hipótese de mandado de segurança.

A liberdade individual compreende várias modalidades. é a segurança individual com as garantias pressupostas constitucionalmente a bem da defesa; a liberdade de locomoção, a que servem essas garantias de índole processual e particularmente o habeas corpus; a liberdade corpórea, que consiste na inte-gridade física do indivíduo e no direito de não ser molestado no seu corpo, modalidade que, embora não figure no texto, deu origem àquele writ, em cuja denominação subsiste e, se violada, com ou sem detenção, não encontraria na constituição outro remédio senão o habeas corpus; a inviolabilidade do domi-cílio, definido este como habitat do indivíduo e sua família, com exclusão dos estabelecimentos abertos ao público, inviolabilidade que é um prolongamento da liberdade de locomoção sob a forma de estar em sua casa sem ser moles-tado pela intromissão arbitrária da autoridade, fora das ressalvas expressas, configurando-se ainda aí uma hipótese que seria de habeas corpus; a liberdade de associação, que se traduz no direito assegurado aos indivíduos de porem em comum, no interesse de um fim político (e tais são os partidos), religioso, recreativo, beneficente, etc., os seus bens, atividades, trabalho, etc., objetivo que transcende do habeas corpus que seria inidôneo para assegurar o direito de associar-se, ou de ser conservado no estado de associação; a liberdade de ensino, a de imprensa, etc., as liberdades econômicas que se definem pela liber-dade de trabalho, de indústria e comércio, pressupondo no paciente da restrição

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Ministro Hahnemann Guimarães

impugnada o trabalhador, o industrial, o comerciante... São hipóteses de man-dado de segurança.

Nestes termos, indefiro o habeas corpus, por incabível.

Os Ministros Lafayette de Andrada e Ribeiro da costa declararam-se impedidos por terem participado da decisão no TSE. Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães manifestou-se da seguinte forma:

Senhor Presidente, não encaro, na presente hipótese, continência de causas. A causa ora submetida ao julgamento deste egrégio Tribunal é diversa da que foi considerada pelo Tribunal Superior Eleitoral. Esta é conseqüência daquela, mas a conseqüência não importa em que as causas sejam continentes. Elas são essencialmente diversas.

No Tribunal Superior Eleitoral, cassou-se o registro do Partido comunista, do órgão político; discute-se, agora, nesta causa, a legalidade do fechamento da sociedade civil.

As causas, portanto, são diversas. Não há entre elas continência e, assim, estou de acordo com o Sr. Ministro Relator, quando afirmou a competência deste Tribunal para conhecer do pedido de habeas corpus.

O Ministro Orozimbo Nonato aparteou questionando se o Ministro Hahnemann Guimarães não encontrava conteúdo eleitoral no debate, no que ele assentiu, acrescentando: “O que se discute nesta causa é a legalidade do fechamento da sociedade civil.” O Ministro castro Nunes interveio, e seguiu-se o debate:

O Sr. Ministro castro Nunes (Relator): Mas esta causa é nascida da outra.O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Sim, nascida da outra, é conse-

qüência da outra, mas não há continência entre ambas.O Sr. Ministro castro Nunes (Relator): São causas conexas, em virtude

do art. 102.

Neste ponto, o Ministro Hahnemann Guimarães retomou seu voto e arrematou:

Acho que não há lugar, neste caso, para conexão, para continência. Os casos são diversos, embora em conseqüência de outro.A ordem de habeas corpus destina-se a tutelar a liberdade de locomoção quando a puser em perigo o abuso ou a ilegalidade do poder. Nesta causa, porém, não se defende a liber-dade de locomoção; discute-se a legalidade do fechamento de uma sociedade civil.

O advogado dos pacientes, da tribuna, preocupou-se apenas com a situa-ção da sociedade civil, discutiu tão somente esta matéria e invocou mesmo, para fundamento da sua pretensão o disposto no § 12 do art. 141, relativo à liberdade de associação. Não se discute, pois, liberdade de locomoção, mas discute-se liberdade de associação. O que querem os requerentes, a pretexto de um habeas corpus, é recuperar a administração do patrimônio da sociedade. é isto o que se procura por esta via indireta. Demonstrou muito bem o Sr. Ministro Relator que o habeas corpus não é meio idôneo para este fim.

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Memória Jurisprudencial

Embora reconheça o impetrante que a sociedade é de fins ideais, e que ela se destina a um fim político, salienta ele mesmo, o advogado impetrante, que o que se procura é defender uma situação patrimonial, ferida, segundo ele afirma, pelo ato do Ministro da Justiça.

Evidentemente, não é possível que questões patrimoniais sejam discuti-das no processo do habeas corpus.

é este, a meu ver, Senhor Presidente, o fundamento, aliás invocado pelo Sr. Ministro Relator, que me leva também a negar a ordem de habeas corpus.

Após ele, votaram os Ministros Edgard costa e Goulart de Oliveira, de maneira concisa, apoiando o mesmo ponto de vista do Relator. Em seguida, foi a vez do Ministro Orozimbo Nonato, que tergiversou sobre o problema da com-petência em relação à Justiça Eleitoral, como o Ministro castro Nunes, mas con-cluiu por seu cabimento ao STF, para em seguida, após digressão histórica sobre o uso do habeas corpus, concluir pelo seu não-cabimento no caso. Votando na seqüência, os Ministros Annibal Freire, Barros Barreto e Laudo de camargo tive-ram idêntico entendimento, sendo a decisão unânime pela denegação da ordem.

Num processo carregado de alto conteúdo político, o STF seguiu a linha formalista, no sentido de a utilização do habeas corpus não ser adequada ao caso, embora fosse impedido o acesso dos membros da direção do partido aos seus estabelecimentos. O argumento condutor da decisão apresentado pelo Ministro Relator, um especialista no tema de mandado de segurança,48 rati-ficado pelos argumentos dos Ministros Hahnemann Guimarães e Orozimbo Nonato, reforçou a linha divisória entre o âmbito de aplicação do mandado de segurança e do habeas corpus, que na verdade tiveram um desenvolvimento comum, como que selando a separação.

LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO SINDICAL

No MS 767/DF, julgado em 9 de julho de 1947, Presidente o Ministro José Linhares, Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, o STF apreciou duas ques-tões importantes com destacada participação deste Ministro. A primeira, nas pre-liminares, questionava a possibilidade ou não de se discutir constitucionalidade de leis em sede de mandado de segurança;49 a segunda dizia respeito à validade consti-tucional das normas legais que permitiam a intervenção dos sindicatos por parte do Governo Federal. A intervenção na prática se estendia por tempo indefinido, sem observância do art. 554 da cLT. Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães faz uma longa digressão sobre a evolução legislativa da matéria:

48 Ver, e.g.: NUNES, José de castro. Do mandado de segurança e de outros meios de defesa contra atos do poder público. 4. ed. atual. Rio de Janeiro: Forense, 1954.49 Ver mais detalhes sobre esse assunto no item 14. MANDADO DE SEGURANÇA, subtema “Descabimento contra lei em tese”.

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Ministro Hahnemann Guimarães

O pedido não ficou prejudicado em virtude da providência que o Sr. Ministro do Trabalho acabou de tomar, porque o autor requer se assegure o exercício do direito de administrar o patrimônio social à Diretoria empossada em 25 de junho de 1945, e que teve seu mandado ratificado na referida assem-bléia geral extraordinária.

cabe, sem dúvida, ao requerente o poder de gestão processual, para fazer valer um mandato que diz haver sido violado pelo ato do Sr. Ministro do Trabalho.

Incrimina-se esse ato porque, destituídos os diretores, o delegado nomea do pelo Ministro de Trabalho devia proceder, dentro do prazo de 90 dias, em assembléia geral por ele convocada e presidida, a eleição dos novos diretores (consolidação citada, art. 554).

Esta censura não pode, entretanto, ser aceita, porque não ocorreu a des-tituição prevista na lei (consolidação, art. 554, c). O caso foi de intervenção, determinada por circunstâncias que perturbavam o funcionamento do sindi-cato e destinada a normalizar esse funcionamento (consolidação, art. 528). consistiam essas circunstâncias, segundo o Ministério do Trabalho, na propa-ganda de doutrinas incompatíveis com as instituições e os interesses da Nação (consolidação, art. 521, que define as condições para funcionamento do sindi-cato), e na intromissão de elementos estranhos ao quadro social nas deliberações de sindicato, o que é vedado pelo art. 525.

A intervenção não foi ilegal, nem abusiva, justificada, como ficou, pelos relatórios dos contabilistas e dos procuradores do sindicato.

Pretende, entretanto, o requerente que essa intervenção ofende a liber-dade de associação (constituição, art. 141, § 12), especialmente, a liberdade de associação profissional ou sindical (constituição, art. 159).

é certo que a disposição do art. 528 da consolidação foi revogada pelo Decreto-Lei 8.740, de 19 de janeiro de 1946, art. 2º. Voltou, porém, a vigorar com o Decreto-Lei 8.987-A, de 15 de fevereiro daquele ano.

A constituição permite que a lei regule a forma de se constituírem as associações profissionais, de se fazerem representar nos contratos de trabalho coletivos e de exercerem funções delegadas pelo poder público. A liberdade das associações profissionais será exercida conforme o regime adotado em lei.

O regime em vigor procurou tornar possível a coexistência de sindica-tos que representem os interesses mais gerais da profissão e das associações profissionais que representem apenas uma concepção particular dos interesses profissionais. Resultou daí a distinção entre o sindicato reconhecido como a associação profissional mais representativa (consolidação, arts. 515 et seq.) e a associação meramente registrada (consolidação, art. 558). A liberdade daquele que tem maiores prerrogativas é mais restrita que a desta.

Afirma-se que, não sendo a profissão representada por sindicato único, tornar-se-ia impossível a defesa conveniente dos interesses profissionais. “Desde que cada grupo se fragmentasse em numerosos sindicatos”, observa o prof. Joaquim Pimenta, “quando muito, representariam estes os seus interesses, nunca, porém, os interesses integrais de toda a comunidade. cada sindicato, por sua vez, teria uma orientação ideológica à margem, se não divergente do modo como entenderia o Estado a solução de tal ou qual problema, cuja natu-reza, de ordem trabalhista, não deixaria de refletir-se sobre outros intrinseca-mente subordinados a conveniências de ordem pública” (Sociologia Jurídica do Trabalho, 2. ed, 1946, p. 189).

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Memória Jurisprudencial

Não se pode acusar esse regime de infenso à constituição, que, a respeito da liberdade sindical, concedeu ao legislador poderes mais amplos que os dados pelas constituições de 1934 e de 1937, a primeira, pelo zelo com que assegurou a pluralidade sindical (art. 120), e a segunda, pelo realce que deu ao sindicato representativo da profissão (art. 138). A constituição de 1934 estabelecia que os sindicatos e as associações profissionais seriam reconhecidas segundo a lei, que garantia a pluralidade e a completa autonomia dos sindicatos. A constituição de 1937 subordinou a liberdade sindical à necessidade de que o sindicato represen-tasse toda a categoria profissional, defendendo-a perante o Estado, estipulando contratos coletivos do trabalho, impondo contribuições e exercendo funções de poder público por delegação. A constituição de 1946 permite a adoção de qual-quer dos dois sistemas, pois, ao mesmo tempo que assegura a liberdade sindical, comete ao legislador regular a forma de se constituírem os sindicatos, a repre-sentação outorgada a estes nas convenções coletivas de trabalho e o exercício de funções que lhes delegar o poder público.

Nesse ponto de seu voto, o Ministro reportou-se aos debates de Plenário em que se discutiu, na Assembléia constituinte de 1946, a questão da inadmis-sibilidade da intervenção sindical, mas argüindo que os trabalhos preparatórios da lei não tinham autoridade de interpretação autêntica, sendo mais valioso o elemento sistemático e prosseguiu:

No sistema constitucional é possível que o sindicato exerça funções delegadas pelo poder público. Em virtude desse preceito, a lei dá ao sindicato o privilégio de perceber o imposto sindical; concede-lhe a situação de ser o sujeito ativo da obrigação tributária. Daí resulta a subordinação necessária de órgão sindical delegado ao poder público delegante. é inevitável a restrição da liber-dade em conseqüência do privilégio adquirida com a delegação. Recebendo um mandato do poder público, exercendo soberania derivada, o sindicato aceita a subordinação ao poder público, que intervirá para assegurar o exercício normal de delegação.

Outra particularidade do sistema constitucional brasileiro é que pode a lei reservar o poder de celebrar convenções coletivas de trabalho ao sindicato. No regime legal vigente, a convenção coletiva envolve o exercício de poder, normativo, que constitui, sem dúvida, espécie de poder público de regulamen-tação, e, por isso, a convenção coletiva há de ser homologada pelo Ministro de Trabalho, que pode estendê-la a todos os membros das respectivas categorias profissionais (cLT, arts. 611, 612, 615 e 616). A convenção coletiva é um regu-lamento das condições de trabalho. compreende-se, deste modo, que a capa-cidade para celebrar essa convenção somente possa ser atribuída ao sindicato que, recebendo do Estado o poder de regulamentação, aceita a intervenção do Estado. O sindicato é livre; aceitará, se quiser, a delegação. Aceitando-a, deve sujeitar-se ao regime da delegação. Nesse regime é que se funda legalmente o direito, atribuído privativamente ao sindicato reconhecido, de celebrar a con-venção coletiva. Deve-se, aliás, recordar que vários países, como a Austrália, o chile, a Finlândia, a Holanda, a Nova Zelândia, reservam aos sindicatos reco-nhecidos somente o direito de concluir convenções coletivas (Les Conventions Collectives, publ. de De Bureau Inter du Travail, 1936, p. 84). Não se pode acusar de antidemocrático tal regime. Admitindo a constituição que a lei fixe a

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Ministro Hahnemann Guimarães

extensão de contrato coletivo, há de admitir que fique sujeito a um regime espe-cial e sujeito desse contrato, quando houver o exercício de poder de regulamen-tação, exercício que envolve delegação de poder pertencente ao Estado.

Em meu julgamento, estas considerações, ligadas ao sistema constitu-cional adotado, pesam mais que os trabalhos preparatórios. Delas resulta para mim a convicção de que o regime sindical vigente não é repelido pelo art. 159 da constituição.

Nego, pois, o mandato requerido.

O Ministro Ribeiro da costa, votando na seqüência, aceitou os argumentos do Ministro Hahnemann Guimarães, mas partiu em outra linha argumentativa:

Mas essa é uma questão e diversa desta é a de saber se a associação sin-dical sendo livre, de acordo com a preceituação constitucional, pode sofrer a intervenção do Estado, no que diz respeito à vida associativa e administrativa do sindicato. Esta é que é a questão de ordem constitucional que está sendo ferida no pedido de mandado de segurança, mandado de segurança provocado pela circunstância de haver a autoridade pública interferido na economia interna da vida do Sindicato dos Bancários, a fim de coibir que, no seu seio, se exercesse um direito assegurado pela constituição e que é inerente à liberdade de pensa-mento, à liberdade política.

E segue nessa linha de argumento até concluir:Dentro do regime democrático, asseguradas as liberdades individu-

ais como se acham no corpo da constituição vigente, parece-me, Senhor Presidente, que o mandado de segurança, neste caso, é remédio específico para assegurar aos associados do sindicato o direito que têm de legitimamente se reunir, de se associarem e deliberarem a respeito da sua economia interna e atos administrativos e associativos, podendo todos eles expressar livremente o que bem quiserem, porque essas idéias são livres, ainda agora, em nosso país, de acordo com o preceito constitucional.

O meu voto, lamentando divergir do Exmo. Sr. Ministro Relator, é no sentido de conhecer o mandado de segurança.

Votando em seguida, o Ministro Lafayette de Andrada acompanhou laco-nicamente o voto do Ministro Relator. Em seguida, o Ministro Edgard costa, após ligeiras considerações sobre a compatibilidade da cLT com a constituição de 1946, arrematou:

Os dispositivos reguladores da consolidação não são, pois, incompatí-veis com o preceito constitucional vigente. O ato impugnado não se apresenta, assim, sob a aparência de ilegalidade tal que autorize a concessão do mandado impetrado.

O Ministro Goulart de Oliveira acompanhou o voto do Ministro Relator. Em seguida, votou o Ministro Orozimbo Nonato, dizendo que o caso desvelava importantes aspectos dos ângulos jurídico e social e sustentando sua absoluta preferência pelo primeiro:

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Memória Jurisprudencial

Trata-se de saber se a liberdade sindical, proclamada com todas as letras na constituição atual, é compatível com o regime em que o Ministro de Estado pode intervir na vida associativa do sindicato, destituir-lhe a diretoria e tomar-lhe a direção, a que tanto importa, como observou, com justeza, o Exmo. Sr. Ministro Ribeiro da costa, o fato da intervenção por tempo indefinido e indeterminado.

Adiante sustentou ter o sindicato natureza jurídica de direito privado mas com função pública, e prosseguiu usando um argumento novo:

Houve autor que disse, como a enunciar verdade paradoxa, que o homem moderno é menos independente que o antigo e mais livre. A ordem jurídica é uma contínua limitação de movimentos, uma rede de inibições que possibilitam o consórcio civil e o desenvolvimento de poderes e faculdades.

E a liberdade, conceito jurídico, realiza-se no direito que tem a pessoa jurídica ou individual, o homem ou pessoa jurídica, de praticar tudo aquilo que não lhe vede o direito. E o que se há de saber, no caso, é se é possível, em face da constituição, que o poder público intervenha na própria vida íntima da asso-ciação, não apenas nos casos a que alude o texto constitucional, mas em seu funcionamento interno, na sua dinâmica própria e costumeira.

Este, a meu ver, o problema dos autos. A constituição enuncia o princí-pio self-executing, da liberdade sindical, e do mesmo passo deferiu à lei ordi-nária as limitações que ela pudesse comportar em determinados casos. E em nenhum deles data venia, se acomoda o caso dos autos.(Grifos no original.)

Em seguida, o Ministro Orozimbo Nonato criticou a pouca importância dada pelo Ministro Hahnemann Guimarães ao elemento histórico50 e sustentou ser possível extrair do seu espírito democrático outras conclusões:

Mas, se o Estado atribuiu a esses seres liberdade de movimentos, a regu-lamentação dessa liberdade não pode atingir senão aos pontos indicados pela constituição mesma. A constituição determina que a lei ordinária regulará a forma da constituição dos sindicatos — e não é este o caso dos autos, a maneira de se fazerem representar nos contratos de trabalho coletivos — e também não é disto que se cuida, e na de exercerem funções delegadas pelo poder público, isto é, funções que os sindicatos cumprem não por direito próprio, mas por delega-ção do poder público. Trata-se, no caso, de coisa toto coelo diferente. Se é pos-sível, sob a alegação de que se pregam idéias subversivas dentro da vida interna dos sindicatos, admitir-se a intervenção, essa intervenção somente seria possível para que, sem destituição de diretores, voltassem eles às suas naturais funções. De resto, o credo político de qualquer membro do sindicato não pode influir para que lhe seja vedado posto de direção.

Nesse ponto, o Ministro Hahnemann Guimarães interveio:

50 Ver o tópico 1. HERMENÊUTIcA, subtema “Argumento histórico — Trabalhos preparató-rios”, para maior detalhamento.

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Ministro Hahnemann Guimarães

No regime atual, o sindicato exerce poderes delegados pelo poder público; celebra convenções coletivas do trabalho, matéria extensa, extensís-sima mesmo, que envolve um poder público; a liberdade sindical é uma função dependente de três variáveis: a representação profissional, o direito de celebrar convenções coletivas de trabalho e o exercício de funções delegadas do poder público. Se essas variáveis se reduzirem a zero, a liberdade crescerá indefini-damente; se essas variáveis aumentarem, evidentemente a função dependente sofrerá um decréscimo.

E o Ministro Orozimbo Nonato prosseguiu:Ouvi, com o máximo acatamento, a ponderação do eminente colega,

Sr. Ministro Relator, mas, a meu ver, ela, ainda que traduza valiosa lição de direito, não incide no que eu estava dizendo. é que as “variáveis” a que alude S. Exa. não guardam relação com o caso dos autos.

Finalmente, após tecer considerações sobre a não-aplicação, no caso, das funções aludidas pelo Ministro Hahnemann Guimarães, arrematou seu voto:

Se o sindicato abusa, como associação privada, e se torna fonte de insur-reição, a Polícia ou a Justiça intervêm e defendem a ordem e a lei, mas, a meu ver, em nome da liberdade, não se pode ir ao extremo de tirar a uma associação o direito de eleger a sua própria Diretoria e de mantê-la pela vontade de seus associados.

Também concedo o mandato data venia do Sr. Ministro Relator.

O Ministro castro Nunes apoiou o voto do Ministro Hahnemann Guimarães. Logo após, votou o Ministro Annibal Freire:

Não há diferenciação na conceituação do assunto, na constituição atual, em relação à de 1937; são os mesmos termos, nítidos e precisos e nunca se con-siderou, no regime da constituição de 1937, ilegal a intervenção nos sindicatos.

é exato que se pode alegar não ter a constituição atual a mesma orien-tação, quanto à existência dos sindicatos, que a anterior, mas não se trata, no caso, da questão da pluralidade sindical, que não está em causa, logo não havia necessidade de explanação dessa matéria.

O Ministro Orozimbo Nonato interveio argumentando que se poderia invocar o espírito da constituição de 1946, de mais ampla liberdade, o que não existia na carta de 1937. O Ministro Annibal Freire prosseguiu na mesma linha de argumento para fazer a pergunta retórica: “A questão é saber se a liberdade sindical tem ou não que sofrer limitações, no interesse público, ou se ela há de ser exercida inteiramente à vontade dos seus órgãos.”

Neste ponto, o Ministro Orozimbo Nonato interferiu: “Entendo que não deve ter nem liberdade irrestrita, nem intervenção desmedida”. Foi a vez de o Ministro Annibal Freire interromper: “A constituição atual declarou, nesse capítulo, que ‘é livre a associação sindical’ e estabelece a representação legal,

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pelos sindicatos, nos casos de convenção coletiva do trabalho e a delegação de funções pelo poder público.” Dessa afirmação, discordou o Ministro Orozimbo Nonato: “Mas o problema dos autos não tem ligação com qualquer desses pon-tos.” O Ministro Hahnemann Guimarães arrematou: “A intervenção, no caso, tem a função de fiscalização. é natural que o poder público delegante fiscalize o delegado. como pode o poder público delegar funções aos sindicatos, sem poder fiscalizar o delegado?”

Em seguida, o Ministro Annibal Freire prosseguiu em seu voto, tendo sido adiante novamente aparteado pelo Ministro Orozimbo Nonato. Mas concluiu:

Em resumo: tem, assim, o sindicato personalidade jurídica de nítido caráter publicístico: o poder de representação, o poder normativo, o poder tri-butário, e o fim, coincidente com o fim do Estado de vigilância ou tutela, como delegação do Estado.

Nestes termos, acompanho o voto do Sr. Ministro Relator e nego o mandado.

O voto do Ministro Barros Barreto acompanhou o voto do Relator, e o Ministro Laudo de camargo foi pelo provimento do mandado, encerrando seu voto na seguinte linha argumentativa:

Que dizer agora da liberdade sindical, quando o legislador da consti-tuinte se declarou desde logo, e expressamente, por ela?

Aliás, o que contém a segunda parte do texto nada mais é que o seguinte: “sendo regulados por lei a forma da sua constituição, a sua representação legal nas convenções coletivas do trabalho e o exercício de funções delegadas pelo poder público”.

Aí estão as hipóteses a serem reguladas, sem que se possa impedir o livre funcionamento da associação, tampouco fazer periclitar o princípio estabele-cido com o mais enérgico dos meios de controle: a intervenção.

De concluir assim que a lei complementar só dirá respeito aos casos enu-merados no texto, sem o poder de afetar o estatuído na primeira parte, que, como máxima constitucional, está a merecer observância imediata.

E, verificado que o disposto no art. 528 da cLT colide com o enunciado do art. 159 da constituição, aquele terá de ceder a este.

concedo o mandado.

No cômputo final da votação do MS 767/DF, julgado em 9 de julho de 1947, no Tribunal Pleno, apenas três Ministros votaram contra a posição do Relator, Ministro Hahnemann Guimarães.

é interessante a passagem do voto do Ministro Hahnemann Guimarães quando trata da questão do chamado imposto sindical como fundamento da res-trição da liberdade sindical, em que ele indica e o fato de o sindicato ser sujeito

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Ministro Hahnemann Guimarães

ativo de um tributo, portanto em uma subordinação necessária do órgão sindical delegado ao poder público delegante, nos seguinte termos:

Em virtude desse preceito, a lei dá ao sindicato o privilégio de perceber o imposto sindical; concede-lhe a situação de ser o sujeito ativo da obrigação tributária. Daí resulta a subordinação necessária de órgão sindical delegado ao poder público delegante. é inevitável a restrição da liberdade em conseqüên-cia do privilégio adquirido com a delegação. Recebendo um mandato de poder público, exercendo soberania derivada, o sindicato aceita a subordinação ao poder público, que intervirá para assegurar o exercício normal de delegação.

A questão a respeito da natureza do imposto sindical e suas impli-cações é aqui desvendada pelo singelo, porém preciso, raciocínio jurídico. A constituição de 1988 viria contemplar o instituto da contribuição ao lado da liberdade sindical, o que em tese poderia superar a correlação jurídica identifi-cada antes pelo Ministro Hahnemann Guimarães entre o imposto sindical e a subordinação dos sindicatos ao poder público.

No MS 875/SP, impetrado por diversos sindicatos, liderados pelo Sin-dicato dos Empregados em Empresas de Seguros Privados e capitalização do Estado de São Paulo, foi levada ao STF a questão da liberdade de associação sindical, garantida pela constituição de 1946, porém objeto de regulamentação pelo Decreto 23.046, de 7 de maio de 1947. O MS 875/SP se insurgia contra ato do Presidente da República, que, invocando o art. 87, I, da constituição, e o art. 6º do Decreto-Lei 9.085, de 25 de março de 1946, baixou o Decreto 23.046/1947, determinando a substituição, por Juntas Governativas nomeadas pelo Ministro do Trabalho, Indústria e comércio, das entidades que se tives-sem filiado ou contribuído para a confederação dos Trabalhadores do Brasil e Uniões Sindicais, de que os requerentes eram partes.

A liberdade de associação sindical estava garantida no art. 141, § 1º, e a liberdade de associação para fins lícitos, garantida no art. 159 da constituição de 1946. Tratava-se de uma intervenção nas associações sindicais, os impetran-tes alegaram inconstitucionalidade dos decretos-leis que embasavam o ato, por violarem a liberdade de associação garantida na constituição.

Prestadas informações no sentido de ser legal a intervenção e com pare-cer favorável do Procurador-Geral da República pela denegação da segurança, o feito foi a julgamento em 28 de maio de 1948, Presidente o Ministro José Linhares e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, que em seu voto na pre-liminar sustentou já estar a questão da inconstitucionalidade superada, por ter sido decidida em caso anterior.51 Tendo apenas o Ministro Orozimbo Nonato dissentido, prosseguiu, no mérito, pela denegação do pedido:

51 Trata-se do MS 767/DF, de 9-7-1947.

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Memória Jurisprudencial

Pelo Decreto 23.056, de 7 de maio de 1947, foi declarado suspenso, pelo prazo de seis meses, nos termos dos arts. 2º e 6º, do Decreto-Lei 9.085, de 25 de março de 1946, o funcionamento da confederação dos Trabalhadores do Brasil, das Uniões Sindicais, das delegações destas e de quaisquer outras associações profissionais, não registradas como sindicatos, que a elas se tenham filiado ou sejam das mesmas órgãos integrantes (art. 1º).

As entidades referidas contrariavam o regime sindical vigente, estabe-lecido na consolidação das Leis do Trabalho (arts. 511 a 521, 533 a 539), que atribui ao Presidente da República o poder de ordenar a instituição de fede-rações e confederações, julgadas convenientes aos interesses da organização sindical, como se deu com o reconhecimento da confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (Decreto 21.978, de 25 de outubro de 1946).

A esse regime são estranhas as uniões sindicais.Além de não poder exercer funções sindicais, a confederação dos

Trabalhadores do Brasil desenvolvia ação política, incompatível com os fins da sindicalização, perturbando a atividade própria dos sindicatos.

A liberdade de associação é garantida para fins lícitos (constituição, art. 141, § 12), das quais se desviam as organizações que usurpam e subvertem a atividade de associações profissionais legalmente constituídas.

O Supremo Tribunal Federal já decidiu, em 9 de julho de 1947, no jul-gamento do MS 767, que o regime sindical vigente não é contrário ao art. 159 da constituição.

Os fins das organizações atingidas pelo Decreto 23.046, art. 1º, opu-nham-se a esse regime sindical; eram, pois, ilícitos.

Desviaram-se também de seu funcionamento normal os sindicatos que se filiaram a essas organizações ilegais.

Pelo art. 528 da consolidação das Leis do Trabalho, o Ministro do Trabalho podia intervir nos sindicatos para restituí-los à normalidade.

Podia, com maior razão, o Decreto 23.046, no art. 2º, substituir as Diretorias e os conselhos Fiscais responsáveis pela deturpação da atividade sindical, incumbindo a administração a Juntas Governamentais, constituídas de três membros do sindicato, até as eleições sindicais, segundo o disposto no Decreto-Lei 9.675, de 29 de agosto de 1946.

O ato do Presidente da República não é, pois, contrário à lei. Nego, assim, o mandado pedido.

A decisão do Tribunal Pleno foi no sentido do voto do Ministro Relator Hahnemann Guimarães, com três Ministros no sentido contrário. constou da ementa do acórdão: “A liberdade de associação é garantida para fins lícitos, dos quais se desviam as organizações que usurpam e subvertem a atividade das associações profissionais legalmente constituídas.”

Na verdade, a legislação sindical foi alterada para permitir ao Governo Dutra manter as associações sindicais sob controle estatal, tolhendo sua liber-dade, mas sob um manto de legalidade. Entretanto, restavam sérias dúvidas sobre a constitucionalidade dos dispositivos da cLT editada sob o Governo Vargas, pois eles permitiam tais intervenções, face ao art. 159 da constituição de 1946.

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Ministro Hahnemann Guimarães

LIBERDADE DE ExPRESSÃO E LIBERDADE DE CáTEDRA

No julgamento do Hc 40.910/PE, Presidente o Ministro Ribeiro da costa, Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, ocorrido em 14 de agosto de 1964, foi analisado pelo Pleno do STF um problema típico em julgamentos de habeas corpus: a existência de justa causa na ação atribuída ao agente. No caso, tratava-se de um delito de comportamento de um professor no curso de suas atividades acadêmicas a configurar-se como crime contra a segurança nacional, colocando em questão a liberdade de cátedra e opinião, duas garantias constitucionais.

Os advogados de Sérgio cidade de Rezende alegaram que ele sofria cons-trangimento ilegal imposto pelo juiz da 3º Vara criminal do Recife, que decre-tou a prisão preventiva e recebeu denúncia por fatos imputados ao paciente, os quais não constituíram os crimes definidos na Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953, arts. 11, § 3º, e 17,52 conforme constante da denúncia. O decreto de prisão não teria observado o disposto no código de Processo Penal, art. 31553. conforme o relatório, o paciente havia exercido as liberdades de pensamento e cátedra, garantidas pela constituição, arts. 141, § 5º, e 168, VII.54 O paciente

52 Lei 1.802, de 5-1-1953 (Define os crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social, e dá outras providências — Lei de Segurança Nacional.):

“Art. 11. Fazer publicamente propaganda:a) de processos violentos para a subversão da ordem política ou social;b) de ódio de raça, de religião ou de classe;c) de guerra.Pena: reclusão de 1 a 3 anos.§ 1º A pena será agravada de um terço quando a propaganda for feita em quartel, repartição,

fábrica ou oficina.§ 2º Não constitui propaganda:a) a defesa judicial;b) a exaltação dos fatos guerreiros da história pátria ou do sentimento cívico de defesa ar-

mada do País, ainda que em tempo de paz;c) a exposição a crítica ou o debate de quaisquer doutrinas.§ 3º Pune-se igualmente, nos termos deste artigo, a distribuição ostensiva ou clandestina,

mas sempre inequivocamente dolosa, de boletins ou panfletos, por meio dos quais se faça a pro-paganda condenada nas letras a, b e c do princípio deste artigo.

(...)Art. 17. Instigar, publicamente, desobediência coletiva ao cumprimento da lei de ordem

pública.Pena: detenção de seis meses a 2 anos.”

53 código de Processo Penal (Decreto-Lei 3.689, de 3-10-1941):“Art. 315. O despacho que decretar ou denegar a prisão preventiva será sempre fundamentado.”

54 constituição de 1946:“Art. 141. A constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a

inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à proprie-dade, nos termos seguintes:

(...)§ 5º é livre a manifestação do pensamento, sem que dependa de censura, salvo quanto a es-

petáculos e diversões públicas, respondendo cada um, nos casos e na forma que a lei preceituar pelos abusos que cometer. Não é permitido o anonimato. é assegurado o direito de resposta.

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Memória Jurisprudencial

era professor da Faculdade de ciências Econômicas da Universidade católica de Pernambuco e havia distribuído entre 26 alunos que haviam comparecido à aula para prestação de provas, no dia 26 de junho do corrente ano, um manifesto contrário à situação política vigente,55 contudo sem ter sido registrado nenhum incitamento à prática de processos violentos para a subversão da ordem política ou social, ou à desobediência coletiva ao cumprimento da lei de ordem pública. Remetidas as informações, o processo foi a julgamento.

O Ministro Hahnemann Guimarães, Relator do feito, foi seguido por una-nimidade em seu voto:

Defiro o pedido, para tolher a ação penal, pois a denúncia narra fatos que evidentemente não constituem crime (fl. 61). Diz a denúncia que o paciente, no exercício da cadeira de Introdução à Economia, distribuiu a seus alunos um manifesto, com fim de fazer propaganda de processos violentos para a subver-são da ordem e propaganda de ódio de classe, conduta que está em consonância com as idéias comunistas do denunciado, o qual no exercício de sua cadeira de professor, na Universidade católica de Pernambuco, escreveu, em um pedaço de papel, dizeres subversivos, “Viva o Pc”. No manifesto que se encontra por cer-tidão à fl. 41, o paciente faz crítica desfavorável à situação política atual, acen-tuando, afinal, que aos estudantes “cabe uma responsabilidade, uma parcela de decisão dos destinos da sociedade, para isso têm que optar entre ‘golirizar-se’ ou permanecerem seres humanos. A estes cabem a honra de defender a democracia e a liberdade”. Não há no manifesto nada que se possa considerar propaganda de processos violentos para subversão da ordem política social (Lei 1.802, art. 11, a, e § 3º), ou instigação pública à desobediência coletiva ao cumprimento da lei de ordem pública (Lei 1.802, art. 17).

Os votos dos outros Ministros seguiram na mesma linha, contudo os votos dos Ministros Evandro Lins, Pedro chaves e Victor Nunes são dignos de nota, pois refletem o clima existente à época e o cuidado com que o STF tratou o caso. O Ministro Evandro Lins, logo no início, destacou, em citação, o Justice William Douglas — da Suprema corte dos Estados Unidos da America —, que

A publicação de livros e periódicos não dependerá de licença do Poder Público. Não será, porém, tolerada propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a ordem política e social, ou de preconceitos de raça ou de classe.

(...)Art. 168. A legislação do ensino adotará os seguintes princípios:(...)VII — é garantida a liberdade de cátedra.”

55 A situação política no pós-golpe de abril de 1964 era de “caça às bruxas”. O País vivia um ambiente de insegurança institucional, com a completa relativização dos direitos e garantias individuais, configurando-se o STF em um dos últimos refúgios que a sociedade civil encon-trava para se proteger dos excessos decorrentes do abuso de poder, comum em regimes totali-tários. No caso, as “bruxas” eram todos que tinham idéias que não se coadunavam com as do regime militar — autocrático e autoritário — então implantado, mormente as correntes de pen-samento que a ciência política chama de “esquerda”, em linha, à época, com os regimes socialis-tas e comunistas espalhados especialmente ao leste da Europa, da Polônia à china e em cuba.

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Ministro Hahnemann Guimarães

em sua obra criticava a falta de liberdade de expressão nas potências comunis-tas da época. O Ministro pretendia, com isso, fixar o problema da opressão ao direito de expressão das idéias; sem, contudo, ao fazer a citação de Douglas, alfinetar os regimes de “esquerda”, opostos ao regime militar da época, franca-mente pró-norte-americano:

Diz Douglas, combatendo a ausência de liberdade de expressão na Rússia Soviética e china comunista:

Minha tese é que não há liberdade de expressão, no sentido exato do termo, a menos que haja liberdade para opor-se aos postulados essen-ciais em que se assenta o regime existente.

O Ministro Pedro chaves, por seu turno, afirmou em certa altura:Em termos político-ideológicos, estou em completo desacordo com as

idéias emitidas no voto do Sr. Ministro Evandro Lins e Silva e sustentadas da tribuna pelo impetrante.

E fez adiante uma crítica, referindo-se ao voto do Ministro Hahnemann Guimarães:

A mim, ao contrário, acho que eram “gorilas” aqueles que queriam fazer da nossa independência, da nossa liberdade de opinião, do nosso direito de sermos brasileiros e democratas, tábula rasa, para transformar-nos em colônia soviética, onde eles não seriam capazes de manifestar um pensamento sequer em favor de idéias liberais para ele, então haveria Sibéria, “paredon” e outros constrangimentos. Esses são, na minha opinião, os gorilas e não os democratas que fizeram a constituição de 1946, que asseguraram ampla liberdade e infeliz-mente se esqueceram de assegurar medidas de defesa dessas mesmas liberdades para que não se voltasse em contra os nossos interesses, nacionais coletivos.

O Ministro Victor Nunes manifestou-se mais longamente que os demais:Entretanto, o debate que se seguiu desbordou um pouco do aspecto legal,

penetrando num problema constitucional de magna importância, a liberdade de pensamento, particularmente a liberdade de cátedra.

Atendendo a própria sugestão do eminente Ministro Pedro chaves, de que, neste Tribunal, muitas vezes temos de nos manifestar sobre temas de maior profundidade, sinto-me no dever de ponderar que o problema da liberdade de cátedra é muito mais importante, muito mais sério, do que o da liberdade de pensamento em geral.

Adiante mencionou o caso Sweney v. New Hampshire, decidido pela Suprema corte norte-americana, em 1957, em que ocorreu discussão seme-lhante, e citou em defesa da liberdade de cátedra o Chief Justice Warren, porém com suas próprias palavras:

O Chief Justice Warren, falando pela corte, acentuou que a liberdade de cátedra (academic freedom) era um princípio fundamental na organização

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Memória Jurisprudencial

política norte-americana. Ainda não há — dizia ele — verdades completas, porque os diversos ramos do conhecimento não foram esgotados, muito menos no campo das ciências sociais, onde poucos princípios (se houver algum) podem ser tidos como absolutos. Se a universidade não pudesse, livremente, investigar os problemas do homem e da sociedade, a comunidade americana corria o risco de estagnar e perecer.

Na seqüência de seu voto, o Ministro Victor Nunes foi intensamente apar-teado (especialmente pelos Ministros Pedro chaves e Gonçalves de Oliveira), em relação ao modelo norte-americano, que não poderia servir de paradigma, pois àquela época, nos Estados Unidos da America, havia políticas públicas de segregação racial. Em resposta, ele afirmou laconicamente que aquele problema não estava em causa e concluiu:

Tudo isso deve ser resolvido no âmbito da universidade. Os riscos da liberdade do pensamento universitário são altamente compensados com os benefícios que a universidade livre proporciona ao povo, ao desenvolvimento econômico do país, ao aperfeiçoamento moral e intelectual da humanidade. E assim quer a constituição, porque, além de consagrar a liberdade de pensa-mento em geral, também garantiu, redundantemente, a liberdade de cátedra (art. 168, VII).

Nota-se que a “liberdade de cátedra” assumiu relevo na decisão, por força de ser preceito constitucional expresso e por se apartar da própria “liberdade de expressão” como garantia geral. Vale destacar que o preceito foi repetido na carta de 1967, porém afastado pela Emenda 1 de 1969 (constituição de 1969), e não foi repetido, com as mesmas letras (e sua força histórica), nem na feste-jada constituição cidadã de 1988. O regime implantado em 1964 acirrou-se, especialmente a partir de 1967, chegando a ocorrer uma “revolução dentro da revolução” em 1968.56 Nessa fase, universidades foram ocupadas, e professores banidos, provocando uma queda de qualidade nas escolas superiores brasilei-ras. Sob o pretexto de se combater a expansão das ideologias de “esquerda”, eliminou-se, na prática, a liberdade de cátedra.

Esses trechos dos votos dão uma idéia do clima reinante à época e da quase necessidade institucional do STF de deferir o mandado, como de fato o fez; sem, contudo, deixar de mostrar desavenças ideológicas dentro da corte Máxima brasileira.

Em outra decisão, com tema parecido, constante do Hc 43.787/Sc, tomada na Segunda Turma, Presidente e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, examinava-se o caso em que era paciente um desembargador aposentado e professor (José do Patrocínio Gallotti). Ele teria manifestado opiniões próprias em sala de aula, pelo que fora incluído e denunciado em processo que corria

56 Ver, e.g.: FAUSTO, Boris. História do Brasil. 5. ed. São Paulo: USP/FDE, 1997, p. 463-488.

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Ministro Hahnemann Guimarães

na Auditoria da 5ª Região Militar. Baseando-se em caso anterior (Hc 43.490/Sc)57, o Ministro Hahnemann Guimarães manifestou-se pela inépcia da denún-cia e afirmou que “a denúncia argúi principalmente que o paciente é marxista confesso, antigo e ativo militante, embora sem dar o nome do partido.” No voto do Ministro Aliomar Baleeiro, em aparte, o Ministro Hahnemann Guimarães comentou a disciplina lecionada pelo paciente: “A história do pensamento eco-nômico é uma cadeira perigosa.” E o Ministro Aliomar Baleeiro, que já havia ministrado a disciplina Teoria das Doutrinas Econômicas por falta de professor, afirmou que nela se trata de doutrinas econômicas marxistas, pois “o professor não pode deixar de tratar de Marx”.

LIBERDADE DE ExPRESSÃO POLíTICA

Na Acr 1.456/SP, julgada em 19 de setembro de 1951, decidida no Pleno, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato, Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, o STF manteve a sentença condenatória de um réu por distribuir e guardar panfletos que “exaltavam líder totalitário estrangeiro e preconizavam a subversão da ordem”, configurando-se “propaganda comunista”. Nesse julgado, o Ministro Hahnemann Guimarães manteve a condenação da instância inferior pois entendia, de maneira legalista, que o crime cometido estava tipificado em dispositivo ainda vigente.58 Durante os debates, ao dar uma explicação após o voto do Ministro Nelson Hungria (único voto vencido, favorável ao provi-mento da apelação), o Ministro Hahnemann Guimarães asseverou: “Filio-me ao grupo daqueles que consideram inseparáveis do regime moderno a liberdade de opinião e a liberdade de discussão”, e adiante: “Admito que a propaganda 57 O Hc 43.490/Sc, decidido em 13-9-1966, pela Segunda Turma do STF, sob a presidência do Ministro Hahnemann Guimarães e relatoria do Ministro Vilas Boas, referia-se a dois pacientes denunciados no mesmo inquérito militar da Auditoria da 5ª Região Militar, por atividades políti-cas (havia vários denunciados), sendo a ordem concedida a ambos (um magistrado e um servidor do Poder Judiciário), por maioria, reconhecendo a inépcia da denúncia.58 Decreto-Lei 431, de 18-5-1938 (Define crimes contra a personalidade internacional, a estru-tura e a segurança do Estado e contra a ordem social — antiga Lei de Segurança Nacional):

“Art. 1º Serão punidos na forma desta lei os crimes contra a personalidade internacional do Estado; a ordem política, assim entendidos os praticados contra a estrutura e a segurança do Estado, e a ordem social, como tal considerada a estabelecida pela constituição e pelas leis rela-tivamente aos direitos e garantias individuais e sua proteção civil e penal, ao regime jurídico da propriedade, da família e do trabalho, à organização e ao funcionamento dos serviços públicos e de utilidade geral, aos direitos e deveres das pessoas de direito público para com os indivíduos, e reciprocamente.

(...)Art. 3º São ainda crimes da mesma natureza:(...)9) com o mesmo fim fazer propaganda ou ter em seu poder, em sua residência ou local onde

deixar escondida e depositada, qualquer quantidade de boletins, panfletos ou quaisquer outras publicações;

Pena: 2 a 5 anos de prisão;”

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Memória Jurisprudencial

da doutrina comunista se possa fazer sem transgressão da lei. é a liberdade de exposição e discussão. Mas a propaganda da solução política violenta, propug-nada pelo Partido comunista, é que não me parece possível, porque, já aí, se trata de atividade subversiva da ordem.” O Ministro Hahnemann Guimarães, em atitude tipicamente positivista, sustentou que, se o Partido comunista estava na ilegalidade, fazer propaganda do mesmo era também ilegal, nos seguintes termos:

A propaganda do Partido comunista é, pois, a propaganda de um partido cujo funcionamento está vedado no Brasil. A propaganda dos seus processos de violência é, evidentemente, uma propaganda ilícita. Aliás, no caso argúi-se o crime de propaganda de um partido cujo funcionamento é ilícito. Este é o crime.

Da ementa consta que: “se essa decisão estabeleceu que a propaganda e a ação do Partido comunista não são permitidas pela Lei Magna (art. 141, § 13), fazer, depois disso, a propaganda desse partido é incidir no item 9 do art. 3º do Decreto-Lei 431, de 1938 (a Lei de Segurança Nacional vigente à época), que considera criminosa a propaganda que visa a modificar, por meio não permitido em lei, a ordem política ou social.”

Outro caso interessante relativo à liberdade de expressão política deu-se no julgamento do Hc 31.829/DF, de 31 de dezembro de 1951, em que os pacien-tes eram acusados por terem atirado bolas de piche contra a embaixada da Espanha. com isso, foram danificados paredes, bandeira e escudo do pavilhão. Os dois pacientes eram jovens estudantes e comunistas confessos que protes-tavam contra o governo de caráter fascista do Generalíssimo Franco. Ambos foram enquadrados no Decreto-Lei 431/1938 e acusados por dano, com base no art. 163, III, do código Penal.

O julgamento, Presidente o Ministro José Linhares e Relator o Ministro Edgard costa, foi no sentido de não se conceder o pedido. O advogado dos pacientes era Evandro Lins e Silva, que alegava não poderem ser os atos enqua-drados como crime político e não haver dano apreciável na ação dos pacien-tes, o que descaracterizaria o enquandramento no código Penal. O Ministro Hahnemann Guimarães votou com o Relator, denegando a ordem, mas seu voto denotava as dúvidas que teve para decidir e o apreço que tinha pela liberdade de expressão:

Senhor Presidente, o exame desta causa me impõe um cuidado excep-cional, por duas razões: primeiro, porque os pacientes são jovens estudantes, e o seu destino merece ser tratado carinhosamente, com particular simpatia; segundo, porque está em causa a própria liberdade de exposição, que para mim, com a liberdade de discussão, constitui fundamento essencial do regime republicano. Apesar, entretanto, da simpatia que me merecem os pacientes e do zelo com que procuro defender a liberdade de exposição e de discussão, não me parece possível a concessão da presente ordem de habeas corpus.

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Ministro Hahnemann Guimarães

Nesse ponto, o Ministro Hahnemann Guimarães revelou outro aspecto que poderia conter, na sua opinião, a liberdade de expressão: “O crime é o de dano por motivos políticos e doutrinários ou religiosos. O que a lei quer impedir de qualquer maneira é a violência. Por maior que seja o meu amor pela liberdade de exposição e discussão, jamais poderei concordar com qualquer processo vio-lento para fazer vencer as idéias.” E prosseguiu:

No caso, confessa-se que os pacientes são comunistas, e que, por ódio ao regime fascista vigente na Espanha, picharam o escudo da embaixada espa-nhola. A meu ver, Senhor Presidente, não se pode negar que exista, pelo menos, um vislumbre de atentado contra bens por motivos políticos. Parece-me que a ação penal somente poderá ser tolhida pela ordem de habeas corpus, se o fato descrito na denúncia evidentemente não constitui crime, e o fato descrito no caso tem, pelo menos, a aparência de um crime. Há dano contra bens, por moti-vos políticos; pouco importa o valor desse bem.

O crime vai desde a destruição ao mero dano. A lei não considera o valor do bem danificado. considera o processo violento. considera o emprego da vio-lência para fazer preponderar as idéias, e isto é o que basta, a meu ver, para que se considere, pelo menos em princípio, caracterizado o delito.

Assim sendo, apesar da simpatia com que encaro esta causa, em que estão envolvidos dois jovens estudantes; apesar do zelo com que procuro proteger, nesta minha situação de juiz, a liberdade de exposição e de discus-são, não me parece possível conceder a ordem, que denego, acompanhando o Sr. Ministro Relator.

concedo do pedido e denego a ordem.

Nota-se que a matéria da expressão política encontrava facilmente obs-táculos em face da repressão aos simpatizantes e pregadores de ideologias que não se alinhavam com a ideologia oficial anticomunista, em um período da his-tória brasileira tida, por muitos historiadores, como democrática.

LIBERDADE DE IMPRENSA

No Rc 1.032/DF, o STF decidiu o caso de dois jornalistas do Diário de Notícias (Prudente de Morais Neto e João Portela Ribeiro Dantas) acusados de violarem a lei que definia os crimes contra o Estado e a Ordem Social (Lei de Segurança Nacional), por meio de veículo de imprensa. A questão colocada era qual lei se aplicaria: a Lei de Segurança Nacional ou a Lei de Imprensa (mais branda). Na sessão plena de 30 de janeiro de 1959, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato e Relator o Ministro Barros Barreto, o STF decidiu, por maioria dos votos, dar provimento ao recurso do Ministério Público, para que os autos voltassem ao juiz criminal a fim de que este recebesse a denúncia e profe-risse a sentença de mérito. A ementa foi exarada nos seguintes termos:

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Delitos de imprensa — Os crimes contra a segurança nacional não podem ser julgados na forma prevista na Lei de Imprensa — Ficam os jornalis-tas subordinados à Lei de Segurança Nacional — Recurso provido.

Em voto vencido (na companhia dos Ministros candido Motta, Ribeiro da costa e Luiz Gallotti), o Ministro Hahnemann Guimarães se posicionou no sentido de fazer prevalecer a Lei de Imprensa, em linha com seu pensamento de garantir as liberdades de expressão e opinião, nos seguintes termos:

Senhor Presidente, peço permissão ao eminente Sr. Ministro Barros Barreto e aos que o acompanharam para seguir o voto dos eminentes Srs. Ministros candido Motta e Luiz Gallotti. No caso anterior, no Recurso 1.021, em que foi réu o Sr. João Duarte, sustentei a opinião de que os crimes contra o Estado, a ordem política e social, cometidos pela imprensa, continuam a ser punidos pela Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953, que define os crimes con-tra a segurança nacional. Não posso, todavia, manter a minha opinião, Senhor Presidente, em vista do que dispõe o art. 9º, letras a e b da Lei 2.083, de 12 de novembro de 1953 (Lei de Imprensa). Daí resulta que, quando os crimes contra a segurança do Estado forem praticados pela imprensa e na Lei de Imprensa houverem sido previstos, evidentemente, não se poderão aplicar a eles as dis-posições da Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953. Há que observar o disposto na Lei 2.083, de 12 de novembro de 1953. Ora, no caso, atribui-se ao recorrido fato que constituiria crime previsto nos arts. 12 e 14 da Lei 1.802, mas esses crimes estarão rigorosamente previstos na Lei 2.083, no art. 9º, letras a e b, repro-duzindo a letra a, rigorosamente, o disposto no art. 141, § 5º, da constituição Federal, que diz:

é livre a manifestação do pensamento, sem que dependa de cen-sura, salvo quando a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um, no caso e na forma que a lei preceituar, pelos abusos que come-ter. Não é permitido o anonimato. é assegurado o direito de resposta. A publicação de livros e periódicos não dependerá de licença do poder público. Não será, porém, tolerada propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a ordem política e social, ou de preconceitos de raça ou de classe.O que se atribui ao recorrido é estar estimulando a animosidade das

classes armadas, fazendo propaganda da subversão da ordem pela violência. Ora, esse crime praticado pela imprensa só pode ser punido de acordo com a Lei 2.083, não com a Lei 1.802. Entendo que, quando os crimes definidos na Lei 1.802, de 1953, houveram sido previstos na Lei 2.083, de 1953, como abuso da liberdade de imprensa, devem eles ser punidos sem as sanções previstas na segunda lei. Assim, estará sendo aplicada a lei posterior, a lei mais branda, a lei que assegura a manifestação da liberdade de pensamento, que é princípio fun-damental da política republicana.

Nego provimento ao recurso.

A posição do Ministro Hahnemann Guimarães, vencida nessa decisão, depois se tornou vencedora, lastreando as decisões posteriores do STF sobre a matéria. cite-se como exemplo o Hc 37.522/DF, decidido por maioria, em 25 de janeiro de 1960, Presidente o Ministro Lafayette de Andrada, Relator o

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Ministro Hahnemann Guimarães

Ministro Nelson Hungria. Neste, também era fixado o sentido de que se apli-caria a Lei de Imprensa ao crime praticado por meio da imprensa (provocação de animosidade entre as classes sociais). Quanto a isso, o Ministro Hahnemann Guimarães assim se manifestou:

Senhor Presidente, estou de acordo com o Sr. Ministro Nelson Hungria, porque o crime previsto no art. 14 da Lei 1.802, de 5 janeiro de 1953, isto é, pro-vocar animosidade entre as forças armadas, quando praticado pela imprensa, se compreende entre os delitos punidos pela Lei de Imprensa no art. 9º, de subver-são, pela violência, da ordem social.

Mencione-se, também, o rumoroso caso do jornalista Hélio Fernandes,59 decidido no Hc 40.047/DF, de 31 de julho de 1963. No julgamento, sob a Presidência e relatoria do Ministro Ribeiro da costa, o Ministro Hahnemann Guimarães afirmou:

Senhor Presidente, concedo o habeas corpus. Para que o Ministro da Guerra pudesse usar a faculdade que lhe dão os arts. 115 e 156 do código de Justiça Militar, era preciso que se verificasse uma das duas exceções previstas na constituição, no art. 108, 1º; onde se sujeitam os civis ao foro especial, ao foro militar, quando cometam crimes contra a segurança externa do país, ou contra as instituições militares. Tentou-se incluir fato imputado ao paciente no art. 29 da Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953. Mas este dispositivo diz respeito à espionagem.

Vossa Excelência demonstrou que nenhuma aplicação tem ao caso, não cabendo, assim, à competência da Justiça Militar conhecer do fato imputado ao paciente. Ter-se-ia talvez crime contra as instituições militares, definido no art. 6º, inciso III, do código Penal Militar. O crime seria o do art. 247 do mesmo código. Mas Vossa Excelência demonstrou, cabalmente, que esse crime está regulado na Lei de Imprensa, Lei 2083, de 12 de novembro de 1953, art. 9º, letra d.

Logo, o paciente pode responder apenas perante o foro comum; não pode ficar sujeito ao foro militar, ao foro especial. Evidentemente, foi ilegal a ordem de prisão contra ele dada pelo Ministro da Guerra. O fato imputado ao paciente jamais poderá ser apreciado pela Justiça Militar.

concedo a ordem, conforme disse.

Na decisão o STF concedeu habeas corpus ao jornalista, por maioria. O Ministro Hahnemann Guimarães manteria a posição histórica de dar privi-légio de foro à Justiça comum em relação a crimes contra a segurança nacional e à Justiça Militar quando houvesse dúvida, como foram os casos da posição manifestada no Hc 41.296/DF, de 23 de novembro de 1964 (histórico caso do impeachment do Governador de Goiás Mauro Borges) e no Hc 42.108/PE, de 19 de abril de 1965 (também histórico caso Miguel Arraes).

59 RODRIGUES, Leda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. São Paulo: civilização Brasileira, 2002. Tomo IV, v. I, 1930-1963, p. 231 et seq.

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Memória Jurisprudencial

LIBERDADE RELIGIOSA E qUESTõES RELIGIOSAS

No julgamento do MS 1.114/DF, ocorrido em 17 de novembro de 1949, sendo Relator o Ministro Lafayette de Andrada, o Ministro Hahnemann Guimarães expôs ponto de vista divergente dos demais, sendo seu voto ven-cido o único contrário à decisão que impunha, na prática, uma restrição à liberdade religiosa. O mandado de segurança foi impetrado pelo Bispo Dom carlos Duarte costa, fundador da Igreja católica Apostólica Brasileira do Rio de Janeiro e ex-Bispo de Maura, da Igreja católica Apostólica Romana. O objetivo do mandado era garantir à sua Igreja o livre exercício de culto religioso em lugares públicos e templos, bem como das atividades na escola mantida pela Associação Nossa Senhora Menina, cujas manifestações públi-cas e funcionamento foram impedidos pela polícia. A alegação era que teria sido violada a liberdade de culto religioso, então garantida na constituição de 1946, no art. 141, § 7º, caracterizando-se esse fato, segundo alegado, “viola-ção de direito líquido, certo e incontestável”, da liberdade de culto religioso. Quanto a isso, dispunha o art. 141, § 7º:

Art. 141. A constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros resi-dentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)§ 7º é inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurado o

livre exercício dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariem a ordem pública ou os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurí-dica na forma da lei civil.

A obstaculização dos cultos da Igreja católica Apostólica Brasileira deu-se por ato do Presidente da República, tendo por base um parecer do consultor-Geral da República, que o aprovou. O documento foi exarado em virtude de uma representação encaminhada por S. Eminência Dom Jaime de Barros câmara, Arcebispo do Rio de Janeiro, que em certa parte dizia:

Em verdade, desde o nome adotado — Igreja católica Apostólica Brasileira — até o culto e ritos, tudo é feito com o objetivo de mistificar e confundir. Assim, os próprios apóstatas se apresentam como “bispo do culto romano”, usam — ele e seus ministros — as mesmas vestes e insígnias do clero e bispos romanos, praticam os mesmos atos religiosos da Igreja de Roma, como sejam: batismos, crismas e casamentos, procissões, missas campais, bênçãos e lançamentos de pedras fundamentais, e em todos esses atos adotam os mesmos paramentos, e o mesmo cerimonial do nosso culto externo.

De acordo com a ordem, o parecer proibia o culto da Igreja católica Apostólica Brasileira em lugares públicos. Entre as razões alegadas, consta que não haveria culto próprio da Igreja católica Apostólica Brasileira, uma dissi-dência da Igreja católica Apostólica Romana, o que causava confusão entre as

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Ministro Hahnemann Guimarães

suas práticas religiosas idênticas e também suas vestes sacerdotais e insígnias perfeitamente iguais, o que resultaria em violação da liberdade de culto da Igreja católica Apostólica Romana. O mandado de segurança foi dirigido ao Tribunal Federal de Recursos, que se deu por incompetente, por considerar que o ato partira do Presidente da República. Nas informações, ficou claro que não se impedia o funcionamento da Escola da Associação Nossa Senhora Menina, nem a existência da católica Apostólica Brasileira, mas somente a proibição do culto público. O STF indeferiu o pedido, sendo o único voto contrário o do Ministro Hahnemann Guimarães, que, após transcrever parte da representação do Arcebispo do Rio de Janeiro e do parecer do consultor-Geral da República, Dr. Haroldo Valladão, expressou-se da seguinte forma:

Adotando a providência sugerida neste parecer, Senhor Presidente, parece-me que o poder civil, o poder temporal, infringiu, frontalmente, o prin-cípio básico de toda a política republicana, que é a liberdade de crença, da qual decorreu a separação da Igreja e do Estado.

Reclamada essa separação pela liberdade de crença, dela resultou, neces-sariamente, a liberdade de exercício de culto.

Devemos estes grandes princípios à obra benemérita de Demétrio Ribeiro, de cujo projeto surgiu, em 7 de janeiro de 1890, o sempre memorável ato que separou, no Brasil, a Igreja do Estado.

é de se salientar, aliás, que a situação da Igreja católica Apostólica Romana, separada do Estado, se tornou muito melhor. cresceu ela, ganhou pres-tígio, graças à emancipação do regalismo que a subjugava durante o Império. Foi durante o Império que se proibiu a entrada de noviços nas ordens religiosas; foi durante o Império que se verificou a luta entre nações e católicos, de que resultou a deplorável prisão dos Bispos D. Vital Maria Gonçalves de Oliveira e D. Macedo costa, bispos de Olinda e do Pará; foi durante o Império que preva-leceu a legislação de mão morta.

com a República, o prestígio da Igreja católica cresceu, como todos reconhecemos.

Deve-se, aliás, Senhor Presidente, atribuir, como glória da Igreja católica Apostólica Romana, o ter-se ela batido pela separação da Igreja do Estado. O princípio (...) que a Igreja católica defendeu nos seus começos, talvez contra-riado na teocracia católico-feudal da Idade Média. Mas não há dúvida em que a separação da Igreja e do Estado, pela qual se bateu a própria Igreja católica, e que é a base da política republicana, só concorreu para que ela crescesse em prestígio.

O Decreto de 7 de janeiro de 1890, Senhor Presidente, foi incorporado à constituição, que sempre devemos lembrar com reverência, de 1891, no seu art. 72, 3º, a que se deve ligar a disposição de art. 11, 2º.

Estas disposições vieram da constituição de 1891, através da reforma de 1926, das constituições de 1934 e 1937, até a constituição vigente que, no art. 31, II, estabelece:

À União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado:

(...)

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Memória Jurisprudencial

II — estabelecer ou subvencionar cultos religiosos, ou embaraçar-lhes o exercício.Proíbe, por conseguinte, a constituição que o poder temporal embarace o

exercício de qualquer culto religioso. A este princípio está ligado, por uma soli-dariedade necessária e evidente, o preceito constante do art. 141, 7º.

Estes dois princípios foram profundamente violados, data venia o afirmo.No § 7º do art. 141 se dispõe:

é inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariarem a ordem pública ou os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurídica na forma de lei civil.Sustenta-se, Senhor Presidente, que o culto religioso, exercido pelo

requerente do mandado de segurança é — como admite que seja — rigorosa-mente igual ao culto professado pela Igreja católica Apostólica Romana.

Que é culto?Nós diríamos, segundo nossa orientação positivista:

— O culto é o conjunto de práticas religiosas destinadas ao aper-feiçoamento dos sentimentos humanos.Dirão os teólogos e eu os sigo, neste momento:

— O culto é o complexo de ritos com que se honra Deus e se san-tificam os homens.O rito, esta parte da liturgia, com que os homens veneram Deus e os san-

tos, é absolutamente livre no regime republicano. Não há como o Estado intervir na determinação dos cultos, quaisquer que sejam eles, desde que não ofendam os bons costumes.

Não há como se falar, aqui, em ofensa dos bons costumes, porque o culto professado pela Igreja dissidente é o mesmo culto da Igreja católica Apostólica.

Pergunta-se: é licito a uma Igreja cismática exercer o culto da Igreja católica Apostólica Romana?

A esta pergunta somente poderão dar resposta os teólogos, os canonistas.classificam eles os delitos contra a fé em três espécies: a apostasia, a

heresia e o cisma.No caso, trata-se precisamente de um cisma. Trata-se de um bispo que

não quer aceitar o primado do pontifíce romano.O primado do pontifício romano baseia-se, de acordo com a doutrina

da Igreja dominante, naquela própria monarquia estabelecida no colégio dos Apóstolos com o primado de São Pedro. Este primado é o próprio primado do pontifíce romano.

Nesse ponto, o Ministro Hahnemann Guimarães demonstrou grande eru-dição em assuntos religiosos, mormente aqueles relacionados à Igreja católica, em que se utiliza de um argumento bastante interessante de que os cismas, as dissidências religiosas, seriam “delitos contra fé”, “delitos espirituais”, insusce-tíveis de serem punidos pelo poder temporal. Assim, transcreveu seus pensa-mentos nos seguintes termos:

Mas, Senhor Presidente, desde a fundação da Igreja católica Apostólica Romana existem os cismas, existem as dissidências. Desde então começou a surgir este movimento em favor das Igrejas nacionais que, no século XVII, nos

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Ministro Hahnemann Guimarães

seus fins, mais crescia, dando lugar àquelas célebres liberdades galicanas, ela-boradas, redigidas e preparadas pelo incomparável Bossuet.

Desde os princípios da Igreja o chamado galicanismo eclesiástico é conhecido. é sabida a tendência em que os graus inferiores da hierarquia cató-lica procuraram evitar a supremacia do pontifíce romano.

Já no século III surgiu a série de dissidências com a rebelião de Novaciano, em 251.

Dissidência célebre foi, no século IX, o cisma de Fócio, que deu lugar a separação da Igreja oriental da Igreja ocidental.

Mas não nos esqueçamos do próprio cisma, provocado, no século XIV, pelos cardeais rebeldes, em que se elegeu o anti-Papa clemente VII.

Assim, a história da Igreja está repleta desses cismas, está repleta desses delitos contra a fé. Trata-se, pois, de delito contra a fé, como o classificam os canonistas. No caso particular, trata-se de delito definido no cânone 1.325, § 2º, onde se define o cismado como aquele “qui subesse renuit Romano Pontifici aut cum membris Eclesiac ci subiectis communicare recusat”.

é o que se dá, no presente momento. O ex-bispo de Maura, Dom carlos Duarte costa, não quer reconhecer o primado do Pontífice Romano, quer cons-tituir uma Igreja Nacional, uma Igreja católica Apostólica Brasileira com o mesmo culto católico. é-lhe lícito exercer esse culto no exercício da liberdade outorgada pela constituição, no art. 141, § 7º, liberdade cuja perturbação é, de modo preciso, proibida pela constituição, no art. 31, inciso II.

Trata-se, pois, de delito espiritual, podemos admitir. como resolver um delito espiritual, um conflito espiritual, com a intervenção do poder temporal, do poder civil, que está separado da Igreja? Os delitos espirituais punem-se com as sanções espirituais; os conflitos espirituais resolvem-se dentro das próprias Igrejas; não é lícito que essas Igrejas recorram ao prestígio do poder, para resol-ver seus cismas, para dominar suas dissidências.

é este princípio fundamental da política republicana, este princípio da liberdade de crença, que reclama a separação da Igreja do Estado e que importa necessariamente, na liberdade do exercício do culto; é este princípio que me parece, profundamente, atingido pela aprovação do parecer do eminente e meu ilustre colega de faculdade, professor Haroldo Valladão.

Assim sendo, Senhor Presidente, concedo o mandado.

Em outra decisão, dez anos depois, em julgado de 8 de abril de 1958, o Ministro Hahnemann Guimarães utilizou-se de argumentos no mesmo sen-tido, embora em caso com temática distinta da liberdade do culto em si, desta vez como Relator, em voto vencedor, com decisão unânime — trata-se do RE 31.179/DF, Presidente o Ministro Lafayette de Andrada. O caso versava sobre um pedido para que a Justiça autorizasse e garantisse à Irmandade do Santíssimo Sacramento da Antiga Sé determinadas ações, contestadas pelas autoridades eclesiásticas, que se opuseram a elas na prática, em conformidade com compromissos religiosos e com base no Direito canônico. A ementa do acórdão foi exarada nos seguintes termos: “compete exclusivamente à autori-dade eclesiástica decidir a questão sobre as normas da confissão religiosa, que

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Memória Jurisprudencial

devem ser respeitadas por uma associação constituída para o culto”. Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães assim se manifestou:

A autoridade temporal não pode decidir questão espiritual, surgida entre a autoridade eclesiástica e uma associação religiosa. Esta impossibilidade resulta de completa liberdade espiritual, princípio de política republicana, que conduziu à separação entre a Igreja e o Estado, por memorável influência positi-vista, de que foi órgão Demétrio Ribeiro, com o projeto apresentado ao Governo Provisório em 9 de dezembro de 1889.

O citado Decreto 119-A proíbe ao poder público intervir na disciplina das associações religiosas, dispondo, no art. 3º, que a liberdade de culto “abrange não só os indivíduos nos atos individuais, senão também as Igrejas, associações e institutos em que se acharem agremiados; cabendo a todos o pleno direito de se constituírem e viverem coletivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder público”.

Esta proibição tem de ser observada sob a constituição vigente, que garante, no art. 141, § 7º, a liberdade de culto, como as constituições de 1891, art. 72, § 3º; de 1934, art. 113, 5; e de 1937, art. 122, 4.

compete exclusivamente à autoridade eclesiástica decidir a questão sobre as normas da confissão religiosa, que devem ser respeitadas por uma associação constituída para o culto. Esta não se isenta da disciplina espiritual, por ser pessoa jurídica de direito civil, ou por ser, na Igreja católica, associação approbata, e não erecta.

A recorrida é associação religiosa, católica, constituída para o culto da Eucaristia. Seu compromisso dispõe, no art. 1º: “O serviço e culto do Santíssimo Sacramento, para cujos fins foi instituída esta Irmandade, consti-tuem a parte essencial dos seus deveres e a base fundamental das obrigações de todos os irmãos”. A Irmandade não pode conseguir seus fins sem respeitar as leis da Igreja católica, que não são direito estrangeiro, na disciplina eclesiástica.

Exercendo a jurisdição espiritual, o recorrente exigiu a observância do cânone 715 e da Lei Sinodal, art. 229. Não satisfeita a exigência, anulou a elei-ção e nomeou a Junta Interventora. Estes atos não podem ser considerados pelo poder público turbativos da posse.

Julgo improcedente a ação, restaurando a decisão de fl. 459.

Adiante discorreu sobre o compromisso assumido pela Irmandade, o exercício da jurisdição espiritual pelas autoridades espirituais, que haviam pra-ticado diversos atos para fazer valer normas religiosas segundo lhe parecia, e arrematou: “Esses atos não podem ser considerados pelo poder público turbati-vos da posse”. Isto demonstra o afastamento do STF de imiscuir-se em questões religiosas, no sentido apregoado pelo Ministro Hahnemann Guimarães dez anos antes.

qUESTõES POLíTICAS E O STF

As chamadas questões políticas levadas às cortes máximas dos diversos países abordam problemas que podem gerar confronto entre os poderes — daí a

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Ministro Hahnemann Guimarães

relevância desses casos —, pois tratam da própria estrutura do Estado e podem causar impacto nela.60 O tratamento da matéria evoluiu na jurisprudência de forma que o STF tende a não se abster de analisar questões afetas aos outros poderes, ainda que sejam questões políticas. O Ministro Hahnemann Guimarães participou com relevância, imprimindo sua marca em alguns desses casos.

Um exemplo disso é o rumoroso caso café Filho, decidido no MS 3.557/DF, julgado final em 7 de novembro de 1956, sendo Presidente o Ministro Orozimbo Nonato e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, que restou ven-cido em seu voto (sendo Relator para o acórdão o Ministro Afrânio da costa). O mandado de segurança foi impetrado em novembro de 1955 (após a eleição de Juscelino Kubitschek) pelo então Presidente da República João café Filho para que lhe fosse assegurado o pleno exercício de suas funções e atribuições cons-titucionais de Presidente. Isso porque, em virtude de uma resolução da câmara dos Deputados e do Senado Federal que o impetrante reputava como “manifesto e insuportável abuso de poder”, determinava-se que ele permanecesse impedido de exercer sua função em observância de prescrição médica (o Presidente café Filho sofrera um infarto e ficara licenciado alguns dias). Porém, havia atestado médico noutro sentido, logo o requerente teria o direito de voltar efetivamente às funções presidenciais. Mas o País encontrava-se em estado de sítio, decre-tado pelo Presidente em exercício, o que provocava a suspensão da efetividade de medidas como o mandado de segurança. A deliberação do congresso não tinha tempo determinado; assim, seria mantida até que houvesse deliberação das mesmas casas em sentido contrário.

Nas informações, as mesas da câmara dos Deputados e do Senado ale-garam que não cabia ao STF apreciar pedido de mandado de segurança contra resolução legislativa, ato de “soberania de cunho eminentemente político”. O Procurador-Geral da República sustentou a posição de não-conhecimento do pedido entre outros motivos porque envolveria matéria de fato controver-tida, e no caso de conhecimento não haveria direito líquido e certo contra ato do congresso Nacional “decorrente de seus poderes implícitos, inerentes a sua soberania”.

Em seu voto, exarado em sessão de 14 de dezembro de 1956, que veri-ficava a questão da possibilidade de o STF analisar ato de caráter político, o Ministro Hahnemann Guimarães sustentou:

Julgo improcedente a alegação de que não cabe ao Tribunal apreciar pedido de mandado de segurança contra resolução legislativa de caráter político. A competência dada na constituição, art. 101, I, i, compreende os atos não-legis-lativos, que pratique a câmara ou o Senado, e lesem direito individual. Assim

60 TEIXEIRA, José Elaeres Marques. A doutrina das questões políticas no Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre: Fabris, 2005, passim.

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Memória Jurisprudencial

entendeu o Tribunal, no julgamento do mandado pedido contra resolução da câmara, que ordenara a publicação do chamado “Inquérito do Banco do Brasil” (Castro Nunes, Do Mandado de Segurança, 4. ed., p. 275, n. 135).

O cunho político da resolução não pode, em virtude da garantia da constituição, art. 141, § 4º, excluir da apreciação do Poder Judiciário a argüida lesão do direito individual (castro Nunes, ob. cit., p. 216, n. 101).

Sendo o ato impugnado anterior ao estado de sítio, o pedido não está sujeito à disposição da Lei 2.654, art. 2º, parágrafo único.

Resta, pois, indagar se a resolução causou a pretendida lesão do direito subjetivo.

Na seqüência do seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães se posicionou contra o deferimento do pedido porque o ato das casas do congresso Nacional seria constitucional, nos seguintes termos:

Afirma a resolução que o congresso tem o poder de, em situação de fato criada por graves acontecimentos, decidir sobre o impedimento previsto no art. 79, § 1º, da constituição. No exercício desse poder, o congresso declarou que permanece, até deliberação em contrário, o impedimento do requerente, “por ter sido envolvido nos mesmos acontecimentos sob imperativo de condições notoriamente irremovíveis, de ordem pública e institucional, sem possibilidade de reassumir o pleno exercício do cargo, assegurando a sobrevivência do regime e em conseqüência a tranqüilidade da Nação”.

A constituição não define, nem dispõe sobre como se verifica o impedimento, de que cuida no art. 79, § 1º. A mesma omissão existe na constituição dos Estados Unidos da América do Norte a propósito da “incapacidade para o desempenho dos poderes e deveres do referido cargo”, isto é, do Presidente, da qual trata o art. II, sec. 1, cláusula 6 (inability to discharge the powers and duties of the said office.). O prof. John William Burgess, em Political Science and Constitutional Law (II, p. 24), argüiu que caberia às duas casas do congresso determinar a existência da incapaci-dade (WOODBURN, J. A. The American Republic and its Government, 1916, p. 141).

O prof. John Randolph Tucker considera provável que o poder de remover por incapacidade em virtude de impeachment indique o método para decidir se existe incapacidade; mas admite que seja concebido qualquer outro modo (The Constitution of the United States, II, 1899, p. 712). Willoughby, no trecho citado pelo requerente, opina que, afinal, a corte Suprema pode ser chamada a determinar se, de fato, houve uma incapacidade do Presidente que justificasse o exercício dos poderes presidenciais pelo Vice-Presidente.

Penso que cabe às duas casas do congresso verificar a existência de impe-dimento para o Presidente da República exercer o cargo. Tal poder está implícito no sistema constitucional, que dá à câmara dos Deputados competência para declarar procedente ou improcedente acusação contra o Presidente da República, que, no pri-meiro caso, ficará suspenso de suas funções (arts. 59, I, e 88, parágrafo único); e atri-bui competência ao congresso Nacional para autorizar o Presidente da República a se ausentar do país (arts. 66, VII, e 85). Se o poder de declarar o Presidente da República impedido ou desimpedido está sujeito a exame, este há de caber ao congresso Nacional.

No caso, reconheceram a câmara dos Deputados e o Senado Federal que o requerente estava impedido de reassumir o pleno exercício do cargo, assegurando a

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Ministro Hahnemann Guimarães

sobrevivência do regime e, em conseqüência, a tranqüilidade da Nação. O congresso Nacional verificou, pela maioria absoluta de seus membros, a existência desse impe-dimento (fl. 22, nº 2); e o Tribunal não pode rever a verificação neste processo, que não comporta a discussão de fatos.

A cessação do impedimento não está sujeita a condição potestativa, que anule a resolução; não está sujeita ao mero arbítrio do congresso, que, certamente, não se negará ao reconhecimento da possibilidade de reassumir o requerente o exercício do cargo.

A forma adotada é válida, porque a resolução tem por fim regular matéria de caráter político (Resolução 582, de 31 de janeiro de 1955, da câmara dos Deputados, art. 96).

Rejeito a argüida inconstitucionalidade do ato do congresso Nacional, e nego o mandado requerido.

A decisão foi pelo conhecimento do mandado de segurança — o que supera a tese do não-conhecimento de questões políticas (por dois votos contra), mas, no mérito, a decisão foi no sentido de que o julgamento deveria ser sustado até que fosse suspenso o estado de sítio, sendo vencido o Ministro Hahnemann Guimarães (outros três Ministros votaram no mérito de imediato). O requerente peticionou para que se prosseguisse no julgamento da causa, assim o processo se arrastou, por conta da prorrogação do estado de sítio, tendo sido indeferido o pedido de continuação do jul-gamento em 11 de janeiro de 1956. O voto do Ministro Hahnemann Guimarães nesta questão foi o seguinte:

Senhor Presidente, na sessão de 14 de dezembro último, julguei o mérito da causa, indeferindo o pedido de mandado de segurança. Desejo ressalvar esse julgamento. Obediente à decisão da maioria, devo apreciar a argüida inconsti-tucionalidade da prorrogação da lei que decretou o estado de sítio. Não é pos-sível mais renovar a questão sobre a constitucionalidade da Lei 2.654, de 25 de novembro último, que decretou o estado de sítio. Essa constitucionalidade já foi reconhecida pela maioria do Tribunal. Resta, pois, averiguar se é constitu-cional o Decreto 38.402, de 23 de dezembro último, que prorrogou o estado de sítio. Essa prorrogação parece-me que se baseia, cabalmente, na disposição do art. 208 da constituição, onde se estabelece:

No intervalo das sessões legislativas, será da competência exclu-siva do Presidente da República a decretação ou a prorrogação do estado de sítio, observados os preceitos do artigo anterior.

Parágrafo único. Decretado o estado de sítio, o Presidente do Senado Federal convocará imediatamente o congresso Nacional para se reunir dentro em quinze dias, a fim de o aprovar ou não.Essa prorrogação, estabelecida pelo decreto citado, já foi aprovada pelo

congresso Nacional, em sessão das câmaras separadas, que, a meu ver, obser-varam, data venia do eminente Sr. Ministro Nelson Hungria, as disposições da constituição constantes dos arts. 5º, III, e 65, IX, pois que, se compete à União decretar o estado de sítio, a sua prorrogação deve ser estabelecida em lei, e essa lei só pode ser aprovada pelas câmaras separadamente. Parece-me, assim, que foi perfeitamente aprovado o decreto que prorrogou o estado de sítio. Logo, a con-tinuação do julgamento pedida, nos dois requerimentos, não deve ser concedida.

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Memória Jurisprudencial

Quando do seu julgamento final, o Presidente Juscelino Kubitschek já havia tomado posse61 pelas vias constitucionais regulares, e o mandado de segurança acabou não sendo julgado no mérito porque o STF entendeu que havia ocorrido a perda de objeto.

Porém, na esteira do voto do Ministro Hahnemann Guimarães, o STF garantiu que julgaria questões políticas. Entretanto, ao analisar o mérito, sus-tentou que não poderia fazê-lo no bojo da excepcionalidade do estado de sítio. O voto vencido do Ministro Hahnemann Guimarães, na segunda parte, enfren-tava o problema, ainda que fosse no sentido do interesse dos detentores do poder constituído (pelo indeferimento do mandado de segurança).

No mesmo contexto histórico, outra ação chegou ao STF. Tratava-se do Hc 33.908/DF, impetrado pelo Presidente café Filho com o mesmo objetivo do MS 3.557/DF. O habeas corpus foi julgado em definitivo em 21 de dezembro de 1955, sob a presidência do Ministro Orozimbo Nonato e relatoria do Ministro Afrânio da costa, com a seguinte ementa: “Habeas corpus: julga-se prejudicado ante a informação do Senhor Presidente da República de não sofrer o paciente qualquer restrição em sua liberdade de locomoção.” Em sessão de 7 de dezembro de 1955, foi discutido o adiamento do julgamento do habeas corpus. A decisão do STF foi no sentido de não se adiar, em sessão do dia 21 de dezembro de 1955. O Ministro Hahnemann Guimarães proferiu seu voto na primeira sessão:

Senhor Presidente, o Presidente João café Filho requereu mandado de segurança, para que lhe fosse assegurado o direito de exercer a Presidência da República.

com esse propósito, nada tem que ver o pedido de ordem de habeas cor-pus, ora submetido a julgamento.

como acentuou muito bem o eminente Ministro Afrânio costa, a pre-sente questão versa sobre direito de locomoção, que o paciente considera pre-judicado. Assim, não vejo relação nenhuma entre o mandado de segurança e o pedido de ordem de habeas corpus, para que se adie o julgamento dessa segunda questão.

Assim sendo, data venia, nego o adiamento.

Na seqüência, o Ministro Hahnemann Guimarães votou conhecendo do pedido e julgando-o prejudicado, de acordo com o voto do Relator.

Outro caso em que o problema das questões políticas veio à tona, foi o MS 1.959/DF, de 23 de janeiro de 1953, Presidente o Ministro José Linhares, Relator o Ministro Luiz Gallotti. Tratava-se de mandado de segurança contra ato da câmara dos Deputados que tornava público os dados de inquérito rea-lizado no Banco do Brasil. Alegavam-se atos internos da câmara e também o caráter de confidencialidade dos dados do inquérito. Grande parte das dis-cussões ocorreu em torno do conhecimento ou não do mandado, por conta de tratar-se de um ato interno do Poder Legislativo. Discutindo a preliminar, o

61 Posse em 1º de janeiro de 1956.

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Ministro Hahnemann Guimarães

Ministro Hahnemann Guimarães manifestou-se em relação a um ponto especí-fico do cabimento do mandado, da seguinte forma:

Senhor Presidente, a constituição dispõe, no art. 101, inciso I, letra i, que compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar originariamente os mandados de segurança contra atos da Mesa da câmara dos Deputados e do Senado. No presente caso, não se trata de ato da mesa, em rigor.

O Ministro Luiz Gallotti, Relator, redargüiu que esta seria outra prelimi-nar, e prosseguiu o Ministro Hahnemann Guimarães:

No presente caso, não se trata de ato da Mesa, mas de uma resolução do plenário da câmara dos Deputados. Dir-se-á que não cabe contra essa resolu-ção mandado de segurança. Isso, entretanto, contrastaria com o preceito amplo do § 24 do art. 141 da constituição, onde se concede o mandado de segurança contra qualquer ato que fira o direito líquido e certo, atingido por ato de qual-quer autoridade. Daí resulta que a disposição do art. 101, inciso I, letra i, não é completa na enumeração das autoridades que podem ofender, com seus atos, direito líquido e certo, individual. Há de se suprir a omissão da constituição por uma interpretação extensiva. Não se trata de analogia, mas de suprir uma defi-ciência legal. Se ao Supremo Tribunal Federal compete conhecer de pedido de mandado de segurança contra ato da Mesa da câmara, com muito mais razão, lhe competirá o conhecimento de pedido de mandado de segurança contra o ato da própria câmara, desde que ele seja argüido de ofensivo a direito líquido e certo, individual.

Opino, pois, pela competência.

Após entender superada a questão da capacidade ativa do Sindicato dos Bancos do Rio de Janeiro, para entrar com o mandado de segurança, admitindo-a, sustentou:

Dão-se, como fundamentos do pedido, a violação do disposto nos arts. 17 e 18 do código comercial; a violação do caráter confidencial, que tem as infor-mações prestadas pelos Bancos à Superintendência da Moeda do crédito; e a violação do segredo da correspondência, assegurado no art. 141, § 6º, da constituição.

Não me parece que seja possível negar a vigência desses dispositivos, embora os dos arts. 17 e 18 do código comercial estejam sofrendo cada vez maiores exceções, principalmente em matéria fiscal. Mas não é possível invocar o regime de confidência para proteger a revelação de irregularidades verifica-das, segundo o inquérito feito no Banco do Brasil, que é sociedade de economia mista.

O STF rejeitou as preliminares de incompetência do Poder Judiciário para conhecer do pedido e no mérito denegou-o, por unanimidade.

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Memória Jurisprudencial

RESPONSABILIDADE DO ESTADO — LIMITES INDENIzATÓRIOS

Na Aci 8.672/DF, julgada em 24 de janeiro de 1947, Presidente e Relator o Ministro Orozimbo Nonato, o STF analisou a questão da infidelidade do depositário público como fator de responsabilização do Estado. No caso, um depositário judicial que detinha determinada quantia em razão de ordem judi-cial evadiu-se com os valores sob sua guarda, gerando um prejuízo para seus possuidores, inclusive com os honorários advocatícios, assumidos por litiscon-sortes herdeiros. Após decisão contra a Fazenda Pública, sobreveio o recurso de ofício ao STF. A União contrapôs-se, alegando que o Decreto 24.216, de 1934, excluía a responsabilidade da União. Assim, quando o funcionário faltoso fosse demitido, a responsabilidade seria pessoal do agente, não havendo culpa na nomeação do depositário; além disso, o depositário público não seria funcioná-rio da União mas auxiliar do Juízo. Em seu voto, largamente fundamentado, o Ministro Hahnemann Guimarães seguiu a linha do Relator, mas não concedeu os honorários de advogado aos litisconsortes. A decisão final foi no sentido de responsabilizar a União, porém não admitindo os honorários, no sentido do voto do Ministro Hahnemann Guimarães, cujos trechos relevantes seguem abaixo:

São inaceitáveis as razões fundadas no Decreto 24.216, de 1934, que abriu exceção ao disposto no art. 15 do código civil, quando se tratasse de atos criminosos, salvo se o autor fosse mantido no cargo ou na função pública depois da prática do crime. Pretendia-se a exceção à incômoda ficção da pessoa jurídica, que se considerava incapaz da responsabilidade penal. Atendendo às necessidades práticas, a teoria germânica da personalidade e da vontade real já chegara à conclusão de que as pessoas morais têm capacidade delituosa. continuou, porém, certa doutrina francesa a sustentar que é pessoal o fato com que o funcionário público viole a lei penal ou cometa culpa grave. Seguiu, de certo modo, este caminho o Decreto 24.216.

A exceção não se justificava. Pondo-se de parte a noção de pessoa jurí-dica, demonstrar-se-ia quanto é justa a disposição do art. 15 do código civil, segundo o qual devem ser reparados à expensa dos bens públicos quaisquer danos causados no exercício de função pública, desde que o autor tenha pro-cedido de modo contrário ao direito ou haja faltado a dever prescrito por lei. Pouco importa a natureza do ato lesivo; necessário é que tenha sido praticado por quem exerce função pública e resulte desse exercício contrário ao direito. concorrendo tais requisitos, o dano tem de ser ressarcido pelos bens públicos.

O princípio do código civil foi restituído a plena eficácia pela constituição de 1934, que, no art. 171, revogou a exceção, estabelecendo a responsabilidade solidária da Fazenda Pública e dos funcionários públicos, por quaisquer preju-ízos que estes causassem no exercício negligente, com omissões ou abusivo de seus cargos. A regra foi mantida no art. 158 da constituição de 1937, e a dispo-sição do art. 194, e de seu parágrafo único da constituição de 1946 reproduziu o art. 15 do código civil, sem enunciar os requisitos subentendidos do procedi-mento contrário ao direito ou do não-cumprimento de dever legal, e limitando a ação regressiva ao caso de ter havido culpa do funcionário.

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Ministro Hahnemann Guimarães

O caso presente ocorreu sob a constituição de 1937, quando não mais vigorava a exceção criada pelo art. 1º do Decreto 24.216, de 1934.

O depositário judicial omitiu o dever de seu cargo, não restituindo as quantias depositadas. Os apelados foram vítimas da lesão conseqüente ao mau exercício da função pública. Nos termos do art. 15 do código civil deve a Fazenda Nacional reparar o dano.

Na seqüência, o Ministro Hahnemann Guimarães fixou o entendimento de que o serventuário da Justiça exerce cargo público federal, e que a respon-sabilidade do Estado não se restringe aos danos causados por funcionários públicos:

como serventuário da Justiça do Distrito federal, o depositário judicial exerce cargo público federal, criado pelo Decreto 24.320, de 1934. A responsa-bilidade da Fazenda Pública não se limita ao ressarcimento da lesão causada pelos funcionários administrativos.

Finalmente, após relembrar que aquela era a jurisprudência da corte Máxima, condenou a Fazenda Nacional, admitindo o litisconsórcio, ao paga-mento da indenização ao autor e litisconsortes, sendo a quantia original a acres-cida de juros de mora, contados da sentença passada em julgado, mais as custas, excluídos, porém, os honorários de advogado.

No julgamento do RE 8.914/PB, em 16 de maio de 1947, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato, Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, a causa se referia a dano causado pela empresa de serviços elétricos de proprie-dade do Estado da Paraíba. Ocorrido um curto-circuito na rede de distribuição, o incidente teria provocado a morte de consortes de dois dos autores e mais a deformação estética no terceiro autor, tudo em decorrência do sinistro. Após apelações e decisões que não satisfizeram nem autores nem réus, o Tribunal do Estado da Paraíba deu provimento a recurso de embargos dos autores, no sen-tido de que o Estado não teria provado que a chave de segurança do sistema elé-trico não estaria em condições de funcionar no momento oportuno, desligando automaticamente de forma a evitar o sinistro. O extraordinário foi manobrado pelos autores e réus, sendo todos requerentes e requeridos entre si.

Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães explicitou primeiro como se resolvia o problema das indenizações no caso e depois por que os acór-dãos recorridos não seriam passíveis de serem atacados por via extraordinária, manifestando-se finalmente pelo não-conhecimento do recurso, no que foi seguido unanimemente pela Segunda Turma. Na ementa do acórdão, da lavra do Ministro Hahnemann Guimarães, com cunho eminentemente didático, lê-se: “A regra constante dos arts. 234 e 240 do código civil não permite ao marido pedir a indenização correspondente a alimentos, ou mesmo a auxílio pecuni-

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Memória Jurisprudencial

ário, que não lhe eram fornecidos pela esposa”. Os arts. 234 e 240 são os do código civil de 1916, que apresentam a seguinte dicção:

Art. 234. A obrigação de sustentar a mulher cessa, para o marido, quando ela abandona sem justo motivo a habitação conjugal, e a esta recusa voltar. Neste caso, o juiz pode, segundo as circunstâncias, ordenar, em proveito do marido e dos filhos, o seqüestro temporário de parte dos rendimentos particulares da mulher.

Art. 240. A mulher, com o casamento, assume a condição de compa-nheira, consorte e colaboradora do marido nos encargos de família, cumprindo-lhe velar pela direção material e moral desta.

Parágrafo único. A mulher poderá acrescer aos seus os apelidos do marido.

Em seguida: “Não é devida a indenização prevista no art. 1.538, § 2º, do código civil, sem a prova do aleijão ou da deformidade causados à mulher ainda capaz de casar.” O art. 1.538 do código civil de 1916 diz:

Art. 1.538. No caso de ferimento ou outra ofensa à saúde, o ofensor inde-nizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até o fim da convalescença, além de lhe pagar a importância da multa no grau médio da pena criminal correspondente.

(...)§ 2º Se o ofendido, aleijado ou deformado, for mulher solteira ou viúva,

ainda capaz de casar, a indenização consistirá em dotá-la, segundo as posses do ofensor, as circunstâncias do ofendido e a gravidade do defeito.

A terceira parte da didática ementa foi assim transcrita: “No caso do art. 1.537 do código civil, a pensão de alimentos devida à esposa e aos filhos da vítima é prestada de acordo com o disposto no art. 912 do código de Processo civil”. O art. 1.537 do código civil vigente à época estabelecia:

Art. 1.537. A indenização, no caso de homicídio, consiste:I — no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral

e o luto da família;II — na prestação de alimentos às pessoas a quem o defunto os devia.

O art. 912 do Decreto-Lei 1.608, de 18 de setembro de 1939, código de Processo civil à época vigente, estabelecia:

Art. 912. A indenização referida no artigo anterior será fixada, sempre que possível, na ação principal, e compreenderá as custas judiciais, os honorá-rios de advogado, as pensões vencidas e respectivos juros, devendo a sentença determinar a aplicação do capital em títulos da dívida pública federal para a constituição da renda. Esse capital será inalienável durante a vida da vítima e será partilhado entre os seus herdeiros, de acordo com a lei civil.

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Ministro Hahnemann Guimarães

E adiante: “A decisão impugnada não presumiu a culpa do Estado. A absolvição dos funcionários do Estado no juízo criminal não resultou de se haver negado categoricamente a existência do fato danoso, nem excluiu a res-ponsabilidade do Estado pela indenização.” como já foi dito, o didatismo dessa ementa é exemplar.

Eis os principais trechos do voto do Ministro Hahnemann Guimarães com alguns comentários:

A indenização, no caso de homicídio, abrange as despesas com o trata-mento da vítima, as funerárias e os alimentos que o defunto fosse obrigado a prestar a outrem (código civil, art. 1.537; código de Processo civil, art. 912, alínea 2a.).

Ao marido compete sustentar sua mulher, pela condição que assume esta de companheira, consorte e auxiliar nos encargos da família.

Esta regra, constante dos arts. 234 e 240 do código civil, não permite ao marido pedir indenização correspondente a alimentos, ou mesmo a auxílio pecuniário, que não lhe eram fornecidos pela esposa.

Nesse ponto, o Ministro Hahnemann Guimarães sustenta que a decisão recorrida não infringiu dispositivos do código civil, nem discordou da juris-prudência, considerando também a ausência de provas no processo (questão de prova). E continua:

Na indenização devida a Branca Rosa Mininéa de Melo e a seus filhos, Lioba e Murillo, pela morte de Joaquim cavalcanti de Melo, a sentença esta-beleceu que se observasse o disposto no código civil, art. 1.537, e se levassem em conta os vencimentos de cargo que a vítima ocupava. Não se trata de pagar lucros cessantes. cumpre fixar-se a pensão de alimentos devida pelo responsá-vel à esposa e aos filhos da vítima. A disposição aplicável ao caso não é a do art. 911 do código de Processo civil, mas a do já citado art. 912, alínea 2a, que foi considerada na sentença, quando dispôs que os alimentos se calculassem em função dos vencimentos percebidos por Joaquim cavalcanti de Melo.

No voto, o Ministro Hahnemann Guimarães deixa claro que entende estar provada a culpa do Estado (resultando no mau funcionamento da chave de segurança):

Essa prova exclui a possibilidade de que entre o acórdão em conflito com as decisões de outros tribunais invocados, ou de que tenha ofendido as disposições dos arts. 1.521, III, 1.522 e 1.523 do código civil, onde se exige, para serem responsabilizadas as pessoas jurídicas, que estas hajam concorrido para o dano por culpa ou negligência de sua parte. A jurisprudência hesitou em presumir esse concurso, mas prevaleceu afinal a doutrina que entende resultar, até prova contrária, das próprias condições indicadas nos arts. 1.521 e 1.525 do código civil, a culpa das pessoas que, segundo essas disposições, respondem pelos fatos alheios. A decisão impugnada não presumiu a culpa do Estado,

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Memória Jurisprudencial

mas salientou que ele, como se provou, não manteve a chave de segurança em condições que a fizessem funcionar oportunamente.

A absolvição dos funcionários do Estado no Juízo criminal não resultou de se haver negado categoricamente a existência do fato danoso, nem excluiu a responsabilidade do Estado pela indenização (código civil, art. 1.525).

Por fim, concluiu o Ministro Hahnemann Guimarães que não haveria base para impugnar as decisões anteriores e declarou não conhecer dos recursos extraordinários, no que foi seguido por unanimidade.

Deve-se observar que os limites indenizatórios e a responsabilidade do Estado por danos causados por seus agentes (responsabilidade administrativa) sofreram notável evolução, sobrevindo, por exemplo, os conceitos de dano moral e responsabilidade objetiva (hoje prevista no § 6º do art. 37 da constituição de 1988). Porém, não há dúvida de que a fixação dos contornos e da limitação da responsabilização do Estado, a exemplo de como foi fixada nesses julgados, configurou-se como a base para a evolução dos conceitos.

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Ministro Hahnemann Guimarães

9. ECONôMICO

LIMITES DA INTERVENÇÃO DO ESTADO

Uma interessante questão relativa aos limites da intervenção no domínio econômico pelo Estado se apresentou ao STF no RMS 12.468/SP, decidido em 20 de novembro de 1963, Presidente o Ministro Lafayette de Andrada e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães.

No julgamento da causa, a questão a ser considerada era a possibilidade de a comissão de Abastecimento e Preço do Estado de São Paulo determi-nar outro uso para o resíduo do trigo proveniente de moinho de propriedade da impetrante, que o destinava à sua indústria de rações balanceadas. Argüia a impetrante que se tratava de uma requisição em caso não permitido pela constituição. Foi concedida a segurança na primeira instância, mas a Primeira Turma do TFR caçou-a argumentando que o ato da comissão de Abastecimento e Preço do Estado de São Paulo tinha por fundamento a Lei 1.522, de 26 de dezembro de 1951. A impetrante, então, interpôs o presente recurso alegando terem sido violados o art. 141, § 1º, § 2º e § 16, bem como o art. 146,62 além de haver sido infringida a Lei 1.522/1951.

Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães posicionou-se da seguinte forma:

Nego provimento ao recurso. é certo que, no processo de mandado de segurança n. 4.959 (fl. 104), requerido pelo Moinho Santista, este Tribunal decidiu, em 8-1-1958, diversamente, e de acordo com os votos do Relator,

62 constituição de 1946:“Art. 141. A constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a

inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à proprie-dade, nos termos seguintes:

§ 1º Todos são iguais perante a lei.§ 2º Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude

de lei.§ 16 é garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade

ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, se assim o exigir o bem público, ficando, todavia, asse-gurado o direito a indenização ulterior.

(...)Art. 146. A União poderá, mediante lei especial, intervir no domínio econômico e monopo-

lizar determinada indústria ou atividade. A intervenção terá por base o interesse público e por limite os direitos fundamentais assegurados nesta constituição.”

Lei 1.522, de 26-12-1951:“Art. 1º é o Poder Executivo autorizado, na forma do art. 146 da constituição, a intervir no

domínio econômico para assegurar a livre distribuição de mercadorias e serviços essenciais ao consumo do povo, sempre que deles houver carência.

Parágrafo único. Idêntica autorização é concedida ao Governo para assegurar o suprimento dos bens necessários às atividades agropastoris e industriais do país.”

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Memória Jurisprudencial

Sr. Ministro Ary Franco, e do Sr. Ministro Vilas Boas. Julgo, porém, que a intervenção do Poder Executivo no domínio econômico permite, nos termos da constituição, art. 146, a providência impugnada, que tem por fim assegurar o suprimento de bens necessários às atividades agropastoris (Lei 1.522, art. 1º, parágrafo único).

O Ministro Pedro chaves, ao votar, indagou o Ministro Hahnemann Guimarães alegando que não podia compreender, nem de fato nem de direito, como havia mudado de ponto de vista, considerando decisões do STF em julga-dos unânimes. A isso o Ministro Hahnemann Guimarães respondeu: “O exame da matéria me levou a esta conclusão.” O Ministro Pedro chaves expôs que divergia da posição do Relator e sustentou que seu ponto de vista era errôneo porque atribuía à comissão de Abastecimento e Preço do Estado de São Paulo o poder de cuidar dos interesses agropecuários do País:

Senhor Presidente, a impetrante alega, precisamente, que ela dava essa destinação a um subproduto, resultante da moagem de trigo, com o qual ela fabricava rações. Em última análise, a impetrante, que tinha direito líquido, certo, absoluto, de produzir rações destinadas ao fomento agropecuário do País, foi constrangida pela Coap a repartir o produto de sua matéria-prima, da sua produção, com concorrentes seus, e com base em quê? com base na Lei 1.522, de 23 de dezembro de 1951, porque a constituição, no art. 146, autoriza a inter-venção. A constituição autoriza a intervenção, dentro dos princípios legais de Direito, e nem se pode compreender que qualquer autoridade pública passe a executar a seu alvedrio o que está na constituição. A Lei 1.522 autoriza, real-mente, a intervenção no domínio econômico em termos que passo a ler.

Diante dessa posição, o Ministro Hahnemann Guimarães redargüiu: “Eu me baseei no art. 1º, parágrafo único, onde se admite a intervenção. Não tive em vista outro dispositivo.” O Ministro Pedro chaves prosseguiu:

Ninguém discute o direito de intervenção. O que se discute é a maneira por que ela foi feita, desordenada, abusiva e ilegalmente. Não se trata de produto que estivesse sendo ocultado às necessidades do povo. Não. Esse produto se des-tinava à mesma finalidade, ao fabrico de rações, de modo que o que fez a Coap foi obrigar a recorrente a ceder sua matéria-prima a seus concorrentes.

Vou ler o que diz a lei:Art. 2º A intervenção consistirá:I — na compra, distribuição e venda de:a) gêneros e produtos alimentícios de primeira necessidade;b) gado vacum, suíno, ovino e caprino, destinados ao talho;c) aves e peixes próprios para alimentação humana;II — na fixação de preços e no controle do abastecimento;III — na desapropriação de bens por interesse social, ou na requi-

sição de serviços necessários, uns e outros, à realização dos objetivos previstos nesta lei.Falando-se em desapropriação, dever-se-á pensar logo em Poder

Judiciário, nos termos da constituição.

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Ministro Hahnemann Guimarães

Ouso também contrariar o parecer aqui produzido pelo Dr. Procurador-Geral da República. Estamos acostumados a ouvir a palavra de Sua Excelência, com a isenção de que se reveste sempre a palavra de um juiz. Mas não posso compreender que Sua Excelência queira justificar interpretação, que me parece data venia contra a letra expressa da lei, equiparando serviço à propriedade. Não foi requisitado serviço nenhum necessário à vida do país.

O Ministro Hahnemann Guimarães aparteou: “Regulou-se a distribuição de um produto; foi um regulamento de distribuição.” O Ministro Pedro chaves prosseguiu:

Não foi a requisição de um caminhão para transporte, de mercadorias, em época de calamidade, para atender a populações aflitas. Não. Entretanto ficou impedido de usar no seu comércio e indústria, certo produto seu, em vir-tude de ato espoliativo baixado pela Coap, ato que ofendeu todos os princípios de Direito Público e Privado, obrigando-a a vender a seus concorrentes particu-lares aquilo que era de sua propriedade.

Nesse momento, o Ministro Hahnemann Guimarães novamente inter-veio em ponto que parecia fundamental para sua linha de raciocínio: “Sem pre-juízo para ela. Ela não ficou lesada, não ficou prejudicada no lucro que tinha.” O Ministro Pedro chaves prosseguiu sem rebater o argumento do Ministro Hahnemann Guimarães:

Não houve, segundo me parece, motivo algum que justificasse uma inter-venção com base no interesse social. Não posso compreender que se espolie um patrimônio particular, e com que finalidade? Atender a firmas particulares. Nem ao menos se alega que a requisição foi feita para um estabelecimento da União, de um Estado, ou de um Município, ou seja, que se tivesse tido em vista o inte-resse nacional, estadual, ou municipal. Não. O produto em causa era um produto que estava sendo explorado pelo seu produtor, na sua fábrica de rações; era um produto que não estava subtraindo da circulação, que ia ser licitamente vendido pelo seu proprietário. Se esse direito não for líquido e certo; se o ato da Coap não configurou todos os requisitos da violação constitucional e legal, não vejo a que outro direito se possa dar mandado de segurança.

Dou provimento ao recurso, restaurando a sentença de primeira instância.

O Ministro Victor Nunes seguiu o pensamento do Ministro Hahnemann Guimarães e aduziu algumas ponderações, especialmente ao fato de que o setor moageiro era oligopolizado e as concessões para a instalação de novos moinhos, cuja capacidade já era maior que o consumo, eram reguladas. A ausência da intervenção permitiria que os moinhos só vendessem os insumos a empresas do mesmo grupo, prejudicando a concorrência. O Ministro candido Motta acom-panhou o Ministro Pedro chaves ao votar, no que foi seguido pelo Ministro Ribeiro da costa, permanecendo vencedor, no Tribunal Pleno, o voto do Ministro Hahnemann Guimarães, que entendia estar consoante à constituição e à Lei o ato da comissão de Abastecimento e Preço do Estado de São Paulo.

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Memória Jurisprudencial

10. ELEITORAL

CABIMENTO DE RECURSO CONSTITUCIONAL (RECURSO ExTRAORDINáRIO)

No RE eleitoral 11.682/AM, julgado em 13 de agosto de 1947, Presidente o Ministro castro Nunes e Relator o Ministro Laudo camargo, ficou estabe-lecido que das decisões do TSE só cabe recurso nas expressas hipóteses do art. 120 da constituição vigente à época:

Art. 120. São irrecorríveis as decisões do Tribunal Superior Eleitoral, salvo as que declararem a invalidade de lei ou ato contrários a esta constituição e as denegatórias de habeas corpus ou mandado de segurança, das quais caberá recurso para o Supremo Tribunal Federal.

Não se aplicariam, portanto, à matéria os dispositivos do art. 101, inci-sos II e III, da constituição de 1946, visto que algumas das autorizações ali contidas estavam contempladas de maneira específica para as decisões do TSE. O mencionado art. 101, incisos II e III, estatuía:

Art. 101. Ao Supremo Tribunal Federal compete:I — processar e julgar originariamente:(...)II — julgar em recurso ordinário:a) os mandados de segurança e os habeas corpus decididos em última

instância pelos Tribunais locais ou federais, quando denegatória a decisão;b) as causas decididas por juízes locais, fundadas em tratado ou con-

trato da União com Estado estrangeiro, assim como as em que forem partes um Estado estrangeiro e pessoa domiciliada no País;

c) os crimes políticos;III — julgar em recurso extraordinário as causas decididas em única ou

última instância por outros Tribunais ou juízes:a) quando a decisão for contrária a dispositivo desta constituição ou à

letra de tratado ou lei federal;b) quando se questionar sobre a validade de lei federal em face desta

constituição, e a decisão recorrida negar aplicação à lei impugnada;c) quando se contestar a validade de lei ou ato de governo local em face

desta constituição ou de lei federal, e a decisão recorrida julgar válida a lei ou o ato;

d) quando na decisão recorrida a interpretação da lei federal invocada for diversa da que lhe haja dado qualquer dos outros Tribunais ou o próprio Supremo Tribunal Federal.

(...)

O Ministro Hahnemann Guimarães, em voto preliminar que acompa-nhava o Relator, o Ministro Laudo camargo, porém indo um pouco mais longe, sustentou seu ponto de vista de que o STF não funcionava como uma terceira

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Ministro Hahnemann Guimarães

instância e que os recursos de natureza eleitoral das decisões do TSE deveriam ter por fundamento o art. 120 da constituição vigente à época, como segue:

Senhor Presidente, apesar de sua imensa autoridade, Pedro Lessa não conseguiu fazer vingar a doutrina que sustentou, de ser o Supremo Tribunal Federal uma terceira instância. O Supremo Tribunal Federal é uma instância extraordinária. Poder-se-á dizer, em face do inciso II do art. 101, que será o Supremo Tribunal Federal uma terceira instância, nos dois casos ali citados, em que se admite um recurso extraordinário. Mas, quanto ao disposto no art. 101, inciso III, é evidente que se afirma o princípio de que todas as decisões de outras Justiças são irrecorríveis; o que o art. 120 afirma da Justiça Eleitoral aplica-se, em virtude do inciso III do art. 101, a todas as Justiças; as irrecorríveis, elas não se podem impugnar, para que o Supremo Tribunal Federal as aprecie, senão extraordinariamente.

O art. 120 teve, a meu ver, sem dúvida, o intuito de reafirmar uma regra do art. 101, inciso II, e de abrir uma exceção ao inciso III do mesmo art. 101.

E continua sua argumentação:Efetivamente, dispõe o art. 120: “São irrecorríveis as decisões do Tribunal

Superior Eleitoral” (isto, como eu pretendia assinalar, afirma-se de todas as Justiças; as decisões de todas as outras Justiças também são irrecorríveis, pois que o Supremo Tribunal Federal não é uma terceira instância), “salvo as que declararem a invalidade de lei ou ato contrário à constituição e as denegatórias de habeas corpus ou mandados de segurança, das quais caberá recurso para o Supremo Tribunal Federal” — Nesta segunda parte do art. 120, reafirmou-se, quanto ao Tribunal Superior Eleitoral, o disposto no art. 101, inciso II, mas ape-nas na letra a, excluindo-se a letra b, porque o art. 101, inciso II, diz: “compete ao Supremo Tribunal Federal julgar, em recurso ordinário [letra a] os mandados de segurança e os habeas corpus, decididos em última instância pelos Tribunais locais ou federais, quando denegatórias as respectivas decisões; letra b — as causas decididas (...) etc.” — O art. 120 manteve, a respeito da Justiça Eleitoral, apenas a letra a, excluindo a letra b do inciso II do art. 101.

Daí, a meu ver, o evidente propósito do legislador constituinte de, no art. 120, estabelecer exceção à regra enumerada no art. 101. Quanto aos recursos ordinários, só admitiu o da letra a, e, quanto aos recursos extraordinários, o art. 120 só admite que sejam eles interpostos das decisões do Tribunal Superior Eleitoral que declararem a invalidade de lei ou ato contrário à constituição.

Estabelece-se, assim, uma exceção ao inciso III do art. 101, permitindo-se que, em matéria eleitoral, caiba recurso para o Supremo Tribunal Federal, apenas no caso da letra b, inciso III, ao qual se acrescentou, entretanto, a hipó-tese do ato inconstitucional, uma vez que a letra b prevê apenas a hipótese de lei inconstitucional, dizendo-se caber recurso extraordinário quando se questionar sobre a validade da lei federal, em face da constituição.

O Ministro Hahnemann Guimarães arremata deixando cristalino seu ponto de vista da exclusividade da aplicação do art. 120 da constituição de 1946 às decisões do TSE:

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Memória Jurisprudencial

O legislador constituinte, no art. 120, estabeleceu caber o recurso extraor-dinário, em matéria eleitoral, para o Supremo Tribunal Federal, não só quando se declarar a invalidade da lei, em face da constituição, mas também quando se decla-rar a invalidade de qualquer ato, em face da constituição, pois que, em matéria de ato, caberá recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal, apenas quando o ato for do Governo local, nos termos da letra c do mesmo inciso II do art. 101.

Assim, Senhor Presidente, entendendo que o art. 120 cria para a Justiça Eleitoral uma exceção quanto às regras enumeradas no art. 101, estou de acordo, inteiramente, com o Sr. Ministro Relator: não conheço do recurso.

Alguns dias depois, o Ministro Hahnemann Guimarães voltaria a julgar a matéria, desta feita como Relator no RE eleitoral 12.059/DF, julgado em 25 de agosto de 1947, Presidente o Ministro José Linhares:

A constituição somente admite que se impugnem os julgamentos do Tribunal Superior Eleitoral, quando declararem a invalidade de lei ou ato, con-trários à própria constituição, ou negar a ordem de habeas corpus ou mandado de segurança (art. 120).

A aplicação necessária da disposição constante do art. 120 exclui, por si só, a possibilidade da aplicação do preceito contido no art. 101, incisos II e III, da constituição.

E prossegue:Este preceito já constava, aliás, do código Eleitoral de 1935 (Lei 48, de 4

de maio, art. 14), onde se estabeleceu que os recursos, em matéria decidida pelo Tribunal Superior Eleitoral, eram apenas admissíveis nos casos agora consigna-dos no art. 120 da constituição atual, conforme o art. 83, § 1º, da constituição de 1934.

Não pode ser, portanto, impugnada a resolução pela qual o Tribunal Superior Eleitoral considerou válida a votação apurada em certa Secção.

Não há, nesta matéria, nada que se possa impugnar em face do art. 120 da constituição. Não conheço do recurso.

Em 24 de setembro do mesmo ano, a matéria voltou a julgamento no RE eleitoral 12.060/DF, Presidente o Ministro José Linhares, desta feita tendo como Relator o Ministro Edgard costa, cuja posição nos dois recursos anteriormente mencionados vinha sendo em sentido contrário à do Ministro Hahnemann Guimarães.

Nesse caso, o Ministro Hahnemann Guimarães se manifestou de forma minimalista, nos seguintes termos: “Senhor Presidente, peço permissão ao Sr. Ministro Relator para divergir de seu voto, não tomando conhecimento do recurso, de acordo com os votos que tenho aqui reiteradamente proferido.” O Ministro foi convertido, porém, no Relator para o acórdão, e a ementa exarada apresentou os seguintes termos: “O remédio extraordinário concedido pelo art. 120 da constituição exclui, necessariamente, a impugnação fundada no art. 191, III, da mesma constituição.”

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Ministro Hahnemann Guimarães

NATUREzA DO MANDATO PARLAMENTAR

No MS 900/DF, de 18 de maio de 1949, impetrado por representantes do Partido comunista do Brasil, contra a cassação de seus mandatos, foi dis-cutida a natureza do mandato parlamentar, isto é, se seria natureza partidária, ou pessoal, pertencendo ao parlamentar.63 Essa discussão, no final da primeira década do século XXI, continua atual, em face da continuidade das propostas de reforma política, que afinal acabam por não ir adiante.

A análise histórica das discussões levadas no STF nos mostra o quanto essa questão é problemática no Brasil. O MS 900/DF foi impetrado contra ato da Mesa da câmara dos Deputados de 10 de janeiro de 1948, que declarou extintos os mandatos dos deputados e suplentes eleitos sob a legenda do Partido comunista do Brasil, em face do disposto na Lei 211, de 7 de janeiro de 1948, e da Resolução/TSE 285, de 27 de outubro de 1945, que anulou o registro daquele partido político. Foi alegado pelos impetrantes que a Lei 211/1948 subvertia o regime representativo democrático definido no art. 1º da constituição de 1946, o qual afirmava que “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”, e continuaram:

A lei retira do povo a qualidade de mandante, transferindo-se a partidos políticos, quando inscreve, entre as formas de extinção do mandato, a cassação do registro do respectivo partido, que incide no § 13 do art. 141 da constituição. O parlamentar, em virtude da eleição, passa a ser representante do povo, como se vê ainda na própria constituição, em seu preâmbulo e no art. 56.

Os impetrantes prosseguiram dizendo que a constituição de 1946 dis-punha sobre os casos de perda de mandato parlamentar, e que essa disposição, por ser constitucional, prescindiria de interpretações ampliativas, não sendo permitidas novas ampliações de hipótese de perda de mandato estabelecidas na Lei 211/1948, e sustentando que o parágrafo único do art. 3864 da constituição não exigia do candidato a filiação partidária, assim, não se poderia atribuir ao parlamentar a qualidade de representante de partido. As outras alegações foram dadas no sentido de atacar a Lei 211/1948, alegando-se inclusive que o

63 No MS 900/DF, de 18-5-1949, discutiu-se também a possibilidade de se analisar a constitu-cionalidade de atos e leis em sede de mandado de segurança, ver tópico específico esse assunto no item 14. MANDADO DE SEGURANÇA, subtema “Descabimento contra lei em tese”.64 constituição de 1946:

“Art. 38. A eleição para Deputados e Senadores far-se-á simultaneamente em todo o País.Parágrafo único. São condições de elegibilidade para o congresso Nacional:I — ser brasileiro (art. 129, I e II);II — estar no exercício dos direitos políticos;III — ser maior de vinte e um anos para a câmara dos Deputados e de trinta e cinco para o

Senado Federal.”

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Memória Jurisprudencial

art. 134 da constituição65 não poderia justificar a tese de que a representação do congresso Nacional seria partidária, pois conteria apenas uma regra de Direito Eleitoral, incorporada à constituição, e que a pena aplicada ao partido não poderia transferir-se às pessoas dos filiados (requerentes), com base no art. 141, § 30, da constituição de 1946.66

Solicitada, a Mesa da câmara forneceu as informações posicionando-se pela improcedência do pedido, no mesmo sentido tendo se manifestado o Procurador-Geral. O Relator, Ministro Hahnemann Guimarães, manifestou-se primeiramente sobre as preliminares, suscitando a questão de não-cabimento de mandado de segurança no caso, pois havia de se decidir sobre a constitucionalidade de lei, no que foi vencido.67 Vencida a outra preliminar de que o STF não poderia analisar o pedido pois implicaria revisão de ato do TSE, passaram os Ministros a julgar o mérito. O Ministro Hahnemann Guimarães assim se posicionou:

conhecendo do pedido, tem o juiz de resolver a questão sobre se os mem-bros do congresso Nacional são representantes do povo, independentemente da filiação partidária, ou exercem essa representação, porque, elegendo-os, o povo lhes deu a incumbência de executar o programa do partido, que os registrou como seus candidatos.

A constituição vigente adotou a concepção de que democracia é um Estado de partidos. A vontade do povo não é vaga, imprecisa, mas se forma na livre competição entre grupos de interesses constituídos em partidos políticos. Democracia, nessa concepção, significa transação entre esses grupos opostos (KELSEN, Teoria Geral del Estado, trad. esp., 1934, p. 464).

A prova de que a constituição abandonou a teoria contraditória de que o congresso Nacional representa o povo, e seus membros exercem o mandato livremente, sem estarem vinculados à vontade de seus eleitores; a prova disto está nas seguintes disposições constitucionais: do art. 40, parágrafo único, pela qual se reconhece que os partidos políticos participam do congresso, e, assim, lhes é assegurada, tanto quanto possível, representação proporcional na consti-tuição das comissões; do art. 52 e do art. 60, § 4º, que conferem a substituição do deputado e do senador aos suplentes da representação partidária; do art. 119, onde, entre as atribuições da Justiça Eleitoral, se realçam a de conceder registro aos partidos políticos, a de revogá-lo e a de conhecer de reclamações relativas a obrigações impostas por lei aos partidos políticos, quanto à sua contabilidade

65 constituição de 1946:“Art. 134. O sufrágio é universal e direto; o voto é secreto; e fica assegurada a representação

proporcional dos partidos políticos nacionais, na forma que a lei estabelecer.”66 constituição de 1946.

“Art. 141. A constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à proprie-dade, nos termos seguintes:

(...)§ 30 Nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente.”

67 Ver tópico específico esse assunto no item 14. MANDADO DE SEGURANÇA, subtema “Descabimento contra lei em tese”.

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Ministro Hahnemann Guimarães

e à apuração da origem de seus recursos (I e VIII); do art. 134, que assegura a representação proporcional dos partidos políticos; e do art. 141, § 13, que enun-cia claramente o princípio de que o regime democrático se baseia na pluraridade de partidos. A democracia adotada pela constituição de 1946 é, assim, um Estado de partidos.

Os defensores dessa política sustentam que ela evita o inconveniente do mandato livre, que reduz a vontade do povo a uma ficção, pois as deliberações do Parlamento não dependem juridicamente daquela vontade, quer o do man-dato imperativo, que anularia a Assembléia Legislativa. No Estado de partidos, os eleitores não designam um candidato incumbido de substituir sua vontade à deles; não votam em certo indivíduo; votam, principalmente, em uma política, em um programa, em um partido. Não é o povo, em sua totalidade, que elege a assembléia representativa. O corpo eleitoral é formado por diversos grupos, que se distinguem pelas suas convicções políticas. Os mandatos cabem aos par-tidos em razão de sua forma numérica. Fazem-se, deste modo, representar no Parlamento, proporcionalmente a seu prestígio eleitoral, as diversas correntes da opinião pública.

Em seguida citou a obra Questões de Direito Eleitoral, de Barbosa Lima Sobrinho, no sentido de que a lei eleitoral de 1945 seria o maior esforço feito no Brasil para a formação e consolidação dos partidos políticos, tendo sido cogitada à época a existência de candidatos avulsos, o que a lei vedou, e prosseguiu:

A lei de 1945, ao contrário, no art. 39, dispõe que somente poderiam con-correr às eleições candidatos registrados por partidos ou alianças de partidos. A constituição de 1946 acolheu, como demonstram as disposições acima refe-ridas, esse regime de representação partidária.

Decorre desse regime que, se for cassado o registro do partido contrário ao sistema democrático, há de ficar necessariamente extinto o mandato confe-rido ao candidato registrado por esse partido. O membro do corpo legislativo representa o povo, mas o povo não é totalidade anônima; é, segundo pensam os propugnadores da representação proporcional à força numérica dos partidos, um conjunto de agrupamentos políticos ponderáveis, que se distinguem pelos seus programas. O parlamentar representa esses grupos, exercendo mandato que não é inteiramente livre, nem imperativo, mas está definido no programa do partido. considerado antidemocrático o programa, e, em conseqüência, proibido o fun-cionamento do partido, o membro da corporação legislativa, incumbido de reali-zar tal programa, perde o mandato, por meio do qual o partido exercia a atividade política prometida aos corpos eleitorais. A disposição do art. 1º e da Lei 211 está, pois, a rigor compreendida no sistema constitucional. O mandato dos membros dos corpos legislativos não pode deixar de se extinguir pela cassação do registro do respectivo partido, quando incidir no § 13 do art. 141 da constituição.

continuando seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães afirmou que os dois parágrafos do art. 48 da constituição de 1946 não abrangiam todos

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Memória Jurisprudencial

os casos de perda de mandato.68 Prosseguiu, com base no Digesto, usando o argumento de que mais do que qualquer outra norma, a constituição era um sistema de princípios, a partir dos quais se podiam deduzir outras normas, que, desta forma, estariam compreendidas no sistema. Assim, o art. 1º da Lei 211 estaria completando os preceitos constitucionais, dentro dos princípios por ela adotados. Literalmente: “Mais do que qualquer outra lei, a constituição é um sistema de princípios, dos quais se podem deduzir regras, que, portanto, esta-vam compreendidas no sistema”.

cabe trazer aqui a lembrança das mais recentes tendências constitucio-nalistas, que buscam fundamentar a argumentação constitucional justamente nesse aspecto principiológico do tecido normativo constitucional, o que o difere das regras, sendo contudo normogenético, e que repercute na intepretação das outras normas do sistema. As modernas teorias do Direito e as análises cons-titucionais concebidas, por exemplo a partir de Dworkin, Alexy, Hesse, e Luis Roberto Barroso, que deságuam na corrente chamada de neoconstituciona-lismo, seguem, de certo modo, nessa esteira.

Retomando o julgado, após dizer que os dois parágrafos do art. 48 da constituição de 1946 não abrangiam todos os casos de perda de mandato, o Ministro Hahnemann Guimarães passou a buscar reforço ao seu argumento no art. 2º, § 1º, do Ato das Disposições constitucionais Transitórias,69 o qual, segundo seu raciocínio, não impedia que os mandatos se extinguissem antes de seu término, conforme as condições resolutivas listadas no art. 1º da Lei 211/1948:

Não procede o argumento fundado no art. 38, parágrafo único, da constituição. Se o regime é representativo e proporcional; se é pelos partidos políticos que o povo manifesta sua vontade; se eles é que participam dos corpos legislativos, os membros do congresso Nacional não podem deixar de pertencer aos partidos, que os registraram como candidatos, para poderem concorrer às

68 constituição de 1946:“Art. 48. Os Deputados e Senadores não poderão:(...)§ 1º A infração do disposto neste artigo, ou a falta, sem licença, às sessões, por mais de

seis meses consecutivos, importa perda do mandato, declarada pela câmara a que pertença o Deputado ou Senador, mediante provocação de qualquer dos seus membros ou representação documentada de partido político ou do Procurador-Geral da República.

§ 2º Perderá, igualmente, o mandato o Deputado ou Senador cujo procedimento seja re-putado, pelo voto de dois terços dos membros de sua câmara, incompatível com o decoro parlamentar.”69 Ato das Disposições constitucionais Transitórias da constituição de 1946:

“Art. 2º O mandato do atual Presidente da República (art. 82 da constituição) será contado a partir da posse.

§ 1º Os mandatos dos atuais Deputados e os dos Senadores federais que forem eleitos para completar o número de que trata o § 1º do art. 60 da constituição, coincidirão com o do Presidente da República.”

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Ministro Hahnemann Guimarães

eleições. A extinção do mandato, pela superveniência de um fato resolutivo, não pode ofender nenhum direito, pois é o próprio direito do representante que se extingue em conseqüência da extinção do partido representado.

Após reafirmar que a Lei 211/1948 apenas tornou explícitas normas compreendidas no sistema constitucional, o Ministro fechou seu argumento dizendo que nesse caso não poderia ofender direito cuja existência poderia ces-sar pela ocorrência dos fatos enumerados em seu art. 1º. Em seguida, refutou três argumentos que julgou menores: de que haveria interferência indébita na organização da câmara dos Deputados com a Lei 211/1948 (não haveria, pois a lei fora aprovada pela própria câmara); o de que nenhuma pena passaria da pessoa do delinqüente (“A extinção do mandato, pela cassação do registro par-tidário, é uma conseqüência necessária do sistema representativo”); e o de que a Lei 211/1948 ofenderia a autonomia estadual (“Ao juiz cabe somente conside-rar a lei na parte relativa às conseqüências jurídicas, que as partes querem tirar de um fato concreto, real”, sendo que neste caso “apenas se admite a discussão a respeito da constitucionalidade das disposições em que a Mesa da câmara dos Deputados se fundou para declarar extintos os mandatos dos requerentes). Encerrou, então, o voto sustentando a constitucionalidade dos arts. 1º e 2º da Lei 211/1948 e pela denegação do mandado de segurança.

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11. ExPULSÃO

CONCEITO DE FAMíLIA

No Hc 30.458/SP, julgado em 25 de agosto de 1948, Presidente o Ministro José Linhares, Relator o Ministro Hahnemann Guimarães e Relator designado para o acórdão o Ministro Lafayette de Andrada, o STF enfrentou a questão da expulsão de estrangeiro, quando este tinha família no Brasil. Tratava-se de emigrantes japoneses radicados no País desde o ano de 1931, tendo o processo de expulsão iniciado em 1946. O tema decidendum era o conceito de família e sua indissolubilidade prevista no art. 163 e a disciplina constitucional sobre expulsão de estrangeiros, constante do art. 143, caput, da constituição de 1946, com a seguinte redação:

Art. 143. O Governo Federal poderá expulsar do território nacional o estrangeiro nocivo à ordem pública, salvo se o seu cônjuge for brasileiro e se tiver filho brasileiro (art. 129, I e II) dependente da economia paterna.

Art. 163. A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado.

Na verdade, nenhum Ministro enfrentou o tema diretamente, exceto o Ministro Hahnemann Guimarães. Todos os demais votos foram minimalistas. O Ministro Lafayette de Andrada, que mais se estendeu, tornando-se o condutor e daí sendo escalado como Relator para o acórdão, sustentou in totum: “Senhor Presidente, indefiro o pedido por considerar necessárias as duas condições — mulher e filho brasileiros — e considero prejudicado o pedido da parte res-tante, sem prejuízo do processo de expulsão.” Ateve-se, portanto, à literalidade do art. 143 da constituição de 1946, tendo sido a decisão no sentido de que o habeas corpus ficara prejudicado, o que não impediria a expulsão. Votaram com a posição do Ministro Hahnemann Guimarães os Ministros Armando Prado, Ribeiro da costa e Orozimbo Nonato. O voto vencido do Ministro Hahnemann Guimarães é importante porque antevê o atual formato legal do tema70 e da jurisprudência que seguiu, tendo sido exarada sua opinião nos termos seguintes:

A expulsão de estrangeiros, que tenha cônjuge ou filhos brasileiros, será necessariamente causa da expulsão de brasileiros, se estes, presos aos sentimentos de família, acompanharem o estrangeiro expulso; ou causa de se dissolver a famí-

70 Atualmente em vigor, a Lei 6.815, de 19-8-1980 (Estatuto do Estrangeiro), alterada pela Lei 2.964, 9-12-1981, no art. 75, inciso II, alíneas a e b, estatui que são obstáculos à expul-são a existência de filho brasileiro sob a guarda do sujeito à expulsão, ou que este seja casado com brasileira (alternativa ou conjuntamente). Esta lei tem sido aplicada pelo STF (ver, e.g., RHc 62.266/RS, de 23-10-1984, sob a presidência do Ministro Soares Muñoz e relatoria do Ministro Néri da Silveira). Sendo que a constituição de 1988, em seu art. 226, § 4º, traz um con-ceito de família mais próximo daquele utilizado pelo Ministro Hahnemann Guimarães.

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lia, se ficarem dispersos seus membros, porque o cônjuge ou os filhos brasileiros não queiram deixar o País.

A família é, porém, constituída pelo matrimônio de vínculo indissolúvel, e tem direito à proteção especial do Estado (cF, art. 163).

Para garantia da unidade familiar e de que vivam os brasileiros em sua pátria, é inadmissível que se expulse o estrangeiro cuja família, nos termos do art. 143 da constituição, tenha membros brasileiros.

concedo a ordem requerida, julgando vedada pelo referido art. 143 a expulsão dos pacientes.

O tema seria analisado novamente pelo Pleno do STF no Hc 36.402/DF, decidido em 7 de janeiro de 1959, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, em caso no qual um estrangeiro (cidadão romeno) teve sua expulsão decretada pelo Presidente da República, em 30 de março de 1936. No processo, constava tratar-se de “elemento nocivo aos interesses do País e perigoso à ordem pública”, com base no art. 113, § 5º, da constituição de 1934,71 tendo sido inclusive acusado de praticar “atividades extremistas”. Em sua defesa, o impetrante alegou ser pai de filhos nascidos no Brasil, fundando seu pedido nos arts. 141, § 23; 129, § 1º; e 143 da constituição de 1946. Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães justificou a concessão da ordem impeditiva da expulsão nos seguintes termos:

O art. 143 da constituição não permite a expulsão de estrangeiro que tenha cônjuge brasileiro e filhos brasileiros, nos termos do art. 129, incisos I e II, dependentes de economia paterna.

Este Tribunal tem entendido nos últimos tempos, sem variação, que basta um dos requisitos. No caso está provada a filiação por certidão que consta de fotocópia, conferida por oficial que autenticou essa cópia.

Sendo assim, concedo a ordem nos termos o art. 143 da constituição.

O Ministro Luiz Gallotti, ao votar, reconheceu que já tivera posição dife-rente, mas que, após exame mais detido do tema, aderira à posição do Ministro Hahnemann Guimarães. Assim, após citar o art. 143 da constituição, explicou:

Ora, se a constituição tivesse dito “salvo se o seu cônjuge for brasileiro e tiver filho brasileiro (...)”, então seria esse o caso de se exigirem os dois requi-sitos; mas dispondo como dispôs, formulou duas hipóteses diferentes em que a expulsão não cabe; “salvo se o seu cônjuge for brasileiro e se tiver filho bra-sileiro”. São, portanto, duas hipóteses em que se abre exceção à regra contida no artigo.

71 constituição de 1934:“Art. 113. A constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a invio-

labilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à pro-priedade, nos termos seguintes:

(...)15) A União poderá expulsar do território nacional os estrangeiros perigosos à ordem pública

ou nocivos aos interesses do País.”

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O Ministro Ribeiro da costa reconheceu a fixação da jurisprudência neste sentido após período de discussões anteriores e pelo texto da constituição de 1946, que sobreveio ao decreto expulsório, concluindo no sentido do voto do Relator. Não houve justificativa dos demais Ministros, sendo que apenas o Ministro Barros Barreto votou contra a concessão da ordem. Essa decisão é uma das bases da Súmula 1 do STF, aprovada em Plenário no dia 13 de dezembro de 1963, que diz: “é vedada a expulsão de estrangeiro casado com brasileira, ou que tenha filho brasileiro, dependente da economia paterna” — consolidando definitivamente a jurisprudência.

No Hc 30.166/SP, de 30 de janeiro de 1948, Presidente o Ministro José Linhares e Relator o Ministro castro Nunes, o STF decidira pela concessão de habeas corpus a um cidadão japonês (Shogoro Ogura) pertencente à associa-ção secreta Shindo Renmei e acusado de espionagem. O Ministro Hahnemann Guimarães votou no sentido da não-expulsão; pois, conforme dissera em seu voto: “basta que ele seja casado com brasileira ou tenha filhos brasileiros. As condições são alternativas, não as exige a constituição simultaneamente.” Porém, a decisão do STF para a concessão do habeas corpus se deu em virtude do excesso de prazo prisional, sem prejuízo do prosseguimento do processo de expulsão.72

72 Ver caso da Acr 1.420/SP, de 8-9-1948, em que os membros das organizações secretas japo-nesas atuando no Brasil são julgados.

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Ministro Hahnemann Guimarães

12. ExTRADIÇÃO

IMPOSSIBILIDADE PARA O PENALMENTE IRRESPONSáVEL à éPOCA DO DELITO

No julgamento da Ext 177/Portugal, Presidente o Ministro José Linhares e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, o STF enfrentou o tema da imputabilidade penal à época do crime que ensejaria a extradição. O pedido de Portugal, indeferido por unanimidade, referia-se a um cidadão português condenado por crime de estupro (em circunstâncias bem específicas, pois havia um relacionamento entre o réu e a vítima, o que dava ao crime cores de crime de sedução, sendo a vítima, de 16 anos, seduzida por promessas de casamento). O réu foi condenado à pena de degredo. Quando foi feito o pedido de extradição, o réu estava casado com uma brasileira e tinha dois filhos brasileiros. Porém, à época do crime, o cidadão português tinha 17 anos, o que lhe garantia atenuan-tes no direito português, mas resultava, no direito brasileiro, em inimputabili-dade. Preso, foi-lhe concedida a liberdade provisória. O extraditando alegou ser penalmente inimputável pela lei brasileira. O Procurador-Geral da República entendeu não caber a extradição pelo motivo alegado pelo réu. O Ministro Hahnemann Guimarães, em seu voto, após aludir ao parecer da Procuradoria-Geral da República, disse:

Nos termos do Decreto-Lei 394, de 29 de abril de 1938, no art. 2º, inciso III, não será concedida a extradição quando, pela lei brasileira, a pena de prisão for inferior a um ano.

Ora, no caso, trata-se de extraditando que, ao tempo do crime, era penal-mente irresponsável, nos termos do art. 23 do código Penal. Se não se admite a extradição daquele a cuja infração a lei brasileira comina pena de prisão inferior a um ano, com muito maior razão deverá ser a extradição negada, quando ao tempo do delito o extraditando era penalmente irresponsável.

Nego a extradição.

Esse julgado do Ministro Hahnemann Guimarães foi importante por definir o paradigma para decisões posteriores do STF.73

73 Por exemplo, o PPE 463/Uruguai, sendo Relator o Ministro Marco Aurélio, em decisão monocrática, no julgamento de 24-10-2003, em que há uma referência expressa à posição do Ministro Hahnemann Guimarães na Rp 177/Portugal.

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13. hAbEAS CORpUS

ILEGITIMIDADE DE ASSISTENTE PARA IMPUGNAR

No Hc 36.403, decidido no Pleno em 7 de janeiro de 1959, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, a ques-tão a ser enfrentada dizia respeito à possibilidade de o assistente do Ministério Público ter legitimidade para o recurso extraordinário contra decisão concessiva de habeas corpus, alegando a defesa que a legimitidade para recorrer extraordi-nariamente se limitaria aos casos previstos nos arts. 584, § 1º, e 598 do código de Processo Penal. O habeas corpus dirigido ao Pleno foi impetrado contra deci-são do próprio STF, que decidira na Segunda Turma e no Pleno, tendo sido os embargos infringentes rejeitados (restaram vencidos os Ministros Hahnemann Guimarães, Henrique D Avila, Afrânio costa, candido Motta Filho e Luiz Gallotti). À época, sustentou-se a tese defendida pelo Ministro Ary Franco.

Entretanto, no voto exarado em sessão de 30 de janeiro de 1959, ao anali-sar a questão, o Ministro Hahnemann Guimarães concedeu a ordem requerida, restabelecendo a decisão do Tribunal de Justiça da Bahia ao mencionar que as possibilidades de o assistente recorrer estavam limitadas aos casos dos arts. 584, § 1º, e 598 do código de Processo Penal:74

Quer dizer: a decisão de impronúncia e contra aquela que declarar a pres-crição, ou por outra qualquer maneira, a extinção de punibilidade, pode recorrer o assistente. Tem ele ainda o direito de apelar. Mas nunca, nem explícita, nem implicitamente, concede o código de Processo Penal legitimidade ao assistente para impugnar pela via extrema ordinária a concessão do habeas corpus.

concedo, pois, a ordem para estabelecer a decisão da Justiça da Bahia, que concedeu habeas corpus ao paciente.

Essa decisão foi seguida por outras no mesmo sentido75 e terminou por gerar a Súmula/STF 208, aprovada em sessão plenária de 13 de dezembro de

74 código de Processo Penal:“Art. 584. Os recursos terão efeito suspensivo nos casos de perda da fiança, de concessão de

livramento condicional e dos ns. XV, XVII e XXIV do art. 581.(...)§ 1º Ao recurso interposto de sentença de impronúncia ou no caso do n. VIII do art. 581,

aplicar-se-á o disposto nos arts. 596 e 598.(...)Art. 598. Nos crimes de competência do Tribunal do Júri, ou do juiz singular, se da sentença

não for interposta apelação pelo Ministério Público no prazo legal, o ofendido ou qualquer das pessoas enumeradas no art. 31, ainda que não se tenha habilitado como assistente, poderá inter-por apelação, que não terá, porém, efeito suspensivo.

Parágrafo único. O prazo para interposição desse recurso será de quinze dias e correrá do dia em que terminar o do Ministério Público.”75 E.g., RE 47.688/GO, decidido em 11-7-1961 (Relator Ministro Hahnemann Guimarães), e RE 48.199-embargos/PR, de 21-9-1962.

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Ministro Hahnemann Guimarães

1963: “O assistente do Ministério Público não pode recorrer, extraordina-riamente, de decisão concessiva de habeas corpus”. Um trecho do voto do Ministro Hahnemann Guimarães é idêntico à Súmula/STF 210, que diz: “O assistente do Ministério Público pode recorrer, inclusive extraordinariamente, na ação penal, nos casos dos arts. 584, § 1º, e 598 do código de Processo Penal.”

CONVERSÃO EM DILIGÊNCIA

No Hc 32.157/DF, julgado em 17 de setembro de 1952, Presidente o Ministro José Linhares e Relator o Ministro Afrânio Antonio da costa, o STF, de forma unânime, converteu o julgamento em diligência para, requisitando os autos originais, verificar se os fatos descritos na denúncia constituíam crime. O Ministro Hahnemann Guimarães concedeu a ordem, expressando-se da seguinte forma:

Senhor Presidente, não encontro no decreto de prisão preventiva vício formal que me leve a invalidá-la. A autoridade que decretou a prisão era, sem dúvida, competente. Não se infrigiram as disposições do art. 285, parágrafo único, letra c, do código de Processo Penal, e do art. 149 do código da Justiça Mili tar. Se o crime fosse militar, competente seria, inegavelmente, a Justiça Mili-tar para dele conhecer.

Parece-me, entretanto, que, no caso, não há crime, pelos fatos tais como são narrados no próprio decreto de prisão preventiva, como muito bem salientou o Sr. Ministro Bocayuva cunha, no seu voto divergente.

O que se atribui ao paciente é haver difundido, espalhado cédulas eleitorais, relativas à escolha do Presidente do club Militar, e uma revista Emancipação, revista autorizada. Mas não houve na denúncia, nem no decreto de prisão preventiva, menção à publicação, nessa revista, de qualquer artigo que se possa capitular como caracterizando o crime de incitamento, definido no art. 134 do código Penal Militar, onde se diz: “incitar à desobediência, à indis-ciplina, ou à prática de crime militar”.

O que se diz é que o paciente, como já salientei, difundira, espalhara, cédulas eleitorais e a revista Emancipação; mas não se apontou, como já disse, nenhum artigo que tivesse índole ou caráter subversivo.

Sem dúvida, se nessa revista se encontrasse qualquer publicação de índole subversiva, não deixaria de ter sido salientada na denúncia tal circunstân-cia, e, muito menos, no decreto de prisão preventiva.

Nesse ponto o Ministro Nelson Hungria interveio: “Isto é uma conjectura de Vossa Excelência, data venia.” E o Ministro Hahnemann Guimarães prosse-guiu: “O decreto de prisão preventiva derrama-se em considerações e insiste na culpabilidade sem que, de modo algum, concretizasse fatos que caracterizassem crime.” O Relator, Ministro Afrânio Antonio da costa, retorquiu: “A denúncia não está nos autos. Apenas há menção a ela, no final das informações presta-das.” E o Ministro Hahnemann Guimarães replicou: “Estou apreciando os fatos de acordo com as peças lidas por Vossa Excelência, sobretudo o despacho de

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prisão preventiva.” Mas o Relator, Ministro Afrânio Antonio da costa, insistiu: “O acórdão recorrido, que julgou o recurso oposto contra a decretação da prisão preventiva, refere-se não só a isto como também a boletins eleitorais de pro-paganda e a cédulas que o Major José Leandro teria deixado em determinado lugar.” Assim, o Ministro Hahnemann Guimarães concluiu:

Mas Vossa Excelência há de reconhecer que distribuir cédulas eleitorais não pode constituir de modo nenhum crime militar. Não é possível aceitar tal ponto de vista, data venia. Não são boletins subversivos, e sim eleitorais.

Os fatos, tais como são narrados no próprio decreto de prisão preventiva, a meu ver, não caracterizam crime algum, não têm delituoso para que se justifi-que a prisão preventiva decretada.

Assim sendo, concedo ordem.

cerca de três meses depois, em 10 de dezembro de 1952, o STF voltou a julgar o feito, após a diligência, concedendo o habeas corpus ao paciente e revo-gando a ordem de prisão preventiva, por entender que não havia nos autos prova de materialidade do crime imputado ao paciente, sem, contudo obstaculizar o prosseguimento da ação penal. Desta feita, porém, a votação não foi unânime (os Ministros Mario Guimarães, Barros Barreto e o Relator, Ministro Afrânio da costa, votaram contra).

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Ministro Hahnemann Guimarães

14. MANDADO DE SEGURANÇA

USO INDEVIDO DO INSTRUMENTO PROCESSUAL

J. T. Azeredo impetrou mandado de segurança contra decisão proferida pela Segunda Turma do STF, sob alegação de que ela havia deixado de conhe-cer do RE 17.558, o qual havia sido interposto pela impetrante contra decisão da 4ª câmara cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Esta, por sua vez, havia negado provimento à apelação da senteça proferida pela juíza de primeira instância, em ação executiva movida contra o impetrante pelo Banco do Brasil. O acórdão em questão já havia sido embargado, mas seus embargos estavam ainda pendentes. A alegação do impetrante pretendia atacar a penhora havida, mas o Relator, Ministro Luiz Gallotti, bem colocou que não havia como atacar a penhora sem atacar o acórdão. O mandado de segurança não foi recebido, e o impetante agravou do não-recebimento, com base no Regimento Interno do STF (como pedido de reconsideração). Trata-se do MS 1.636/DF, decidido em 23 de janeiro de 1952, Presidente o Ministro José Linhares, constando que, após o relatório, o Ministro Luiz Galotti disse que não tinha voto, pois mantinha sua posição pela improcedência do pedido, conforme despacho já exarado anterior-mente. Diante dessa questão, o Ministro Hahnemann Guimarães manifestou-se da seguinte forma:

Senhor Presidente, nego provimento ao agravo, mas acho oportuno salien-tar o erro grosseiro em que incidiu o advogado do requerente do mandado de segurança, ou sua intensa malícia processual. Não é possível que o mandado de segurança se possa transformar num remédio do qual resulte a subversão da ordem processual; não é possível que alguém possa requerer mandado de segu-rança contra um acórdão da Turma deste Supremo Tribunal. O mandado de segurança não se destina a constituir uma panacéia processual. Isto é inadmissí-vel, e acho oportuno salientar-se a ignorância, ou a malícia, com que procedeu o advogado do requerente.

O caso demonstra a aversão que o Ministro tinha pelo abuso das formas processuais — evidente nesse caso. Ele considerava o STF uma corte com tra-balho em excesso, já àquela época.76 Vale observar, entretanto, que, mesmo com uma competência mais ampla àquele tempo, nada se compara ao número de demandas que chega ao STF nos primeiros anos do século XXI.

76 No julgamento do Hc 32.127/DF, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato e Relator o Ministro Afrânio Antônio da costa, ocorrido em 17-12-1952, o Ministro Hahnemann Guimarães, ao contes-tar o Ministro Rocha Lagôa sobre a atuação do STF em causas criminais disse: “é unanimemente reconhecido que pesa sobre nós massa considerável de trabalho. Não poderemos suportar essa massa, ao peso da qual quase sucumbimos, se tivermos de exercer jurisdição, diretamente, em inquirições de testemunhas e realização de diligências. Nada mais natural, pois, que a delegação de nossas atribuições nesse caso. é a única maneira de tornar possível o exercício da nossa jurisdição.”

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COMPETÊNCIA ORIGINáRIA — ATOS DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO

No MS 1.915/DF, decidido em 8 de abril de 1953, o STF enfrentou o julgamento do mandado de segurança impetrado contra ato do TcU. Nesse caso, Pedro de Vasconcellos impetrou mandado de segurança, para que fosse considerada ilegal a denegação de registro feita pelo TcU quanto à sua aposen-tadoria com vencimentos integrais. O impetrado justificou a medida por ser o requerente extranumerário. O impetrante demandou que o TcU fosse compe-lido a registrar a aposentadoria com vencimentos integrais e correspondentes a sua situação de funcionário titulado da letra f do Departamento de correios e Telégrafos.77 Provocado, o TcU informou que, no desempenho de suas atribui-ções constitucionais,78 ordenou o registro da aposentadoria com os proventos de 70%. O Procurador-Geral da República opinou pelo não-conhecimento do pedido, nos termos do art. 101, I, i, da constituição.79 O Ministro Hahnemann Guimarães, na condição de Relator, exarou seu voto na preliminar:

Já se reconheceu que a constituição não enumera taxativamente, no art. 101, I, 1, as autoridades contra cujos atos se pode requerer ao Supremo Tribunal Federal mandado de segurança, nos termos do preceito constitucional do art. 141, § 24.

Para proteger direito líquido e certo, violado por ato ao Tribunal de contas, deve ser concedido o mandado de segurança pelo Supremo Tribunal Federal, pois é aquele Tribunal um órgão auxiliar do Poder Legislativo (cF, art. 22, Lei 830, de 23 de setembro de 1949, art. 1º); seus Ministros têm os mesmos direitos, garantias, prerrogativas e vencimentos dos juízes do Tribunal Federal de Recursos (cF, art. 76, § 1º), funciona como Tribunal de Justiça nos processos de tomada de contas (Lei 830, arts. 69 e 70).

A natureza e as funções do Tribunal de contas não me permitem seguir a jurisprudência dominante, que defere a competência para conhecer dos manda-dos de segurança, requeridos contra atos daquele órgão, aos juízes locais, com o recurso do ar. 104, II, b, da constituição.

conheço do pedido.

O Ministro Nelson Hungria votou em seguida e reverteu a posição do Ministro Hahnemann Guimarães, travando-se, então, um interessante debate:

77 Decreto-Lei 1.229, de 13-11-1950.78 constituição de 1946:

“Art. 77. compete ao Tribunal de contas:(...)III — julgar da legalidade dos contratos e das aposentadorias, reformas e pensões.”

79 constituição de 1946:“Art. 101. Ao Supremo Tribunal Federal compete:I — processar e julgar originariamente:i) os mandados de segurança contra ato do Presidente da República, da Mesa da câmara ou

do Senado e do Presidente do próprio Supremo Tribunal Federal;”

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Ministro Hahnemann Guimarães

Senhor Presidente, por mais amplas que sejam as atribuições do Tribunal de contas, discordo do ponto de vista do eminente Sr. Ministro Relator. O Tribunal de contas é um tribunal administrativo, não figura entre os órgãos do Poder Judiciário, enumerados pela constituição. E, em matéria de competên-cia, não pode haver aplicação por analogia.

O Ministro Hahnemann Guimarães fez um aparte: “Não é aplicação por analogia, mas extensiva, como no caso do plenário da câmara. Ampliou-se a decisão porque ela disse menos do que quis dizer.” O Ministro Nelson Hungria continuou:

Não houve ampliação, nesse caso. O ato era da Mesa da câmara, embora autorizado por uma resolução do plenário. Foi contra o ato da mesa, determi-nando a publicação do famoso inquérito do Banco do Brasil, que se requereu mandado de segurança.

Argumenta-se que a constituição, em face de sua própria sistemática, teria dito menos do que queria ou do que devia. Mas, para contrariar a analogia ou mesmo a interpretação por força de compreensão, há a acentuar, primacial-mente, que o Tribunal de contas não é órgão, sequer, do Judiciário. Não se pode equipará-lo a um Tribunal de Justiça, como pretende o eminente Sr. Ministro Relator.

O Ministro Hahnemann Guimarães novamente aparteou: “citei disposi-tivo da Lei 18.306, arts. 69 e 70, onde se diz que o Tribunal de contas funciona como Tribunal de Justiça nos processos de tomada de contas.” E redargüiu o Ministro Nelson Hungria: “Não se pode deixar de reconhecer, entretanto, que é um Tribunal administrativo.” Aquele complementou: “Sem dúvida.” Então, este completou seu voto:

A enumeração constitucional, referente aos órgãos do poder Judiciário, é taxativa e não meramente exemplificativa. Doutro modo, a lei ordinária poderia ampliar a casuística — o que ninguém seria capaz de sustentar.

Data venia do eminente Sr. Ministro Relator, não conheço do pedido de mandado de segurança.

Em seu voto, o Ministro Luiz Gallotti rebateu o argumento do Ministro Hahnemann Guimarães, sustentando que não seria contra a inclusão do TcU no rol das pessoas cujos atos seriam da competência originária do STF para julgar os mandados de segurança. Salientou a diferença desse caso com a do caso de atos da câmara dos Deputados ou do Senado; em seguida, rebateu o argumento de que o TcU em algumas situações funcionaria como Tribunal de Justiça, porque isso levaria a reconhecê-lo como competente para conhecer ori-ginariamente do mandado de segurança, como acontece com os outros tribunais fe derais (tribunais judiciais), quando, havendo denegação do mandado, cabe recurso ordinário para o STF. O Ministro Orozimbo Nonato asseverou que: “Se se admitisse a competência do Supremo Tribunal neste caso, a conseqüência

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Memória Jurisprudencial

seria admitir a própria competência do Tribunal de contas para conhecer do mandado de segurança originariamente como argumentamente observou em seu voto o eminente Sr. Ministro Luiz Gallotti.”

A decisão do Tribunal Pleno do STF, Presidente o Ministro José Linhares, foi no sentido do entendimento do Ministro Nelson Hungria, que se tor-nou o Relator designado para o acórdão. O único no sentido de admitir o conhecimento do mandado de segurança no caso foi o Ministro Hahnemann Guimarães, que restou vencido. A ementa do acórdão apresentou os seguintes termos: “Mandado de segurança contra o ato do Tribunal de contas da União; não pode conhecer dele, originalmente, o Supremo Tribunal Federal.”

Entretanto, seis meses depois, ao julgar o MS 2.278/DF, decidido em 30 de dezembro de 1953, também um caso de ato do TcU não acatando a conces-são de aposentadoria com vencimentos integrais (funcionário do Ministério da Marinha), o STF viria a reverter sua posição, adotando o sentido do voto do Ministro Hahnemann Guimarães. Na preliminar, o Relator, Ministro Barros Barreto, defendeu o não-conhecimento, no que foi seguido pelos Ministros Edgard costa e Orozimbo Nonato. O Ministro Nelson Hungria, Relator e voto vencedor no MS 1.915/DF, mudou seu posicionamento e reconheceu da possi-bilidade de conhecer do feito, interpretando a constituição de forma a haver “reconhecimento por construção”. O Ministro Hahnemann Guimarães mani-festou-se da seguinte forma:

Senhor Presidente, a matéria que se discute não é nova neste Tribunal. Ela já foi apreciada no MS 1.915, julgado no dia 8 de abril deste ano.

Naquele caso, Pedro de Vasconcelos requereu mandado de segurança para que, considerada ilegal a denegação de registro oposta pelo Tribunal de contas à sua aposentadoria com vencimentos integrais, a pretexto de ser o requerente extranumerário, fosse o referido órgão compelido a registrar a apo-sentadoria com vencimentos integrais e correspondentes a sua situação do fun-cionário titulado, letra f, do Departamento de correios e Telégrafos.

Naquela ocasião, o emitente Dr. Procurador-Geral opinou pelo não-conhecimento do pedido, nos termos do art. 101, I, i, da constituição.

Na qualidade de Relator, proferi o seguinte voto no MS 1.915:Já se reconheceu que a constituição não enumera taxativamente,

no art. 101, I, i, as autoridades contra cujos atos se pode requerer ao Supremo Tribunal Federal mandado de segurança, nos termos do pre-ceito constitucional do art. 141, § 24.

Para proteger direito líquido e certo, violado por ato do Tribunal de contas, deve ser concedido o mandado de segurança pelo Supremo Tribunal Federal, pois é aquele Tribunal um órgão auxiliar do Poder Legislativo (cF, art. 22; Lei 830, de 23 de setembro de 1949, art. 1º); seus Ministros têm os mesmo direitos, garantias, prerrogativas e vencimentos de tomada dos juízes do Tribunal Federal de Recursos (constituição, art. 76, § 1º), funciona como o Tribunal de Justiça nos processos de tomada de contas (Lei 830, arts. 69 e 70).

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Ministro Hahnemann Guimarães

A natureza e as funções do Tribunal de contas não me permitem seguir a jurisprudência dominante, que defere competência para conhe-cer dos mandados de segurança, requeridos contra atos daquele órgão aos juízes locais, com o recurso do art. 104, II, b, da constituição.80

conheço do pedido.O Relator, naquela ocasião [Ministro Hahnemann Guimarães], conhe-

ceu do pedido, por ter entendido que a competência originária era do Supremo Tribunal, tendo sido a única voz discordante, pois a maioria do Tribunal não conheceu do pedido.

Assim, renovando as razões do meu voto, conheço do pedido, por enten-der que é competente o Supremo Tribunal Federal.

Na sessão, Presidente o Ministro José Linhares e Relator o Ministro Barros Barreto, o STF entendeu, por maioria, que era competente originaria-mente para julgar mandado de segurança contra decisão do Tribunal de contas da União; mas, no caso, no mérito, indeferiu o pedido por não haver liquidez e certeza da pretensão do impetrante. A decisão do MS 2.278/DF viria ser a base da Súmula/STF 248, aprovada em sessão plenária de 13 de dezembro de 1963, que diz: “é competente, originariamente, o Supremo Tribunal Federal, para mandado de segurança contra ato do Tribunal de contas da União.” Anos depois, a constituição de 1967 faria incluir os atos do TcU na competência ori-ginária do STF,81 colocando uma pá de cal sobre o assunto; tal dispositivo esta-ria presente nas constituições seguintes. Registre-se a visão de organicidade do sistema de recursos constitucionais de que era possuidor o Ministro Hahnemann Guimarães. Ao final, seu ponto de vista prevaleceu e acabou levando a uma mudança na jurisprudência e depois no texto da própria constituição.

DESCABIMENTO CONTRA LEI EM TESE

O mandado de segurança é uma ação constitucional de longa constru-ção jurisprudencial no direito brasileiro. Trata-se de ação de rito célere porque

80 constituição de 1946:“Art. 104. compete ao Tribunal Federal de Recursos:(...)II — julgar em grau de recurso:(...)b) as decisões de juízes locais, denegatórias de habeas corpus, e as proferidas em mandados

de segurança, se federal a autoridade apontada como coatora;”81 constituição de 1967:

“Art. 114. compete ao Supremo Tribunal Federal:I — processar e julgar originariamente:(...)i) os mandados de segurança contra ato do Presidente da República, das Mesas da câmara

e do Senado, do Presidente do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal de contas da União;”As alterações posteriores à constituição de 1967 e a constituição de 1988 contemplam o

instituto de forma semelhante.

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Memória Jurisprudencial

garante direitos contra o arbítrio do Estado. No MS 767/DF, julgado em 9 de julho de 1947, Presidente o Ministro José Linhares e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, o STF analisou o que se poderia discutir em sede de mandado de segurança,82 isto é, os limites da matéria a ser discutida. No caso, o Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários do Rio de Janeiro impetrou mandado de segurança para garantir o direito de livre administração sindical, tanto patrimonial quanto das demais atribuições legais. A Impetrante alegou que esse direito garantido pelo art. 159 da constituição de 194683 esta-ria ferido por ato do Ministro do Trabalho, Indústria e comércio, que após a constituição manteve a intervenção no sindicato, desconsiderando também o art. 554 da cLT84. A intervenção se deu com base no art. 528 da cLT,85 sob o argumento de que o sindicato teria infringido os arts. 521 e 525 da mesma lei,86 e o resultado foi o afastamento dos seus diretores. O Ministério do Trabalho sustentou que a intervenção era perfeitamente legal, com base nos arts. 521, a, 525 e 528 da cLT e em virtude de o sindicato introduzir elementos estranhos “com a propaganda de doutrinas incompatíveis com as instituições e os interes-ses da Nação”.

82 Este mandado de segurança é também importante em virtude da discussão acerca da liber-dade de associação sindical, ver item 8. OUTROS TEMAS DE DIREITO cONSTITUcIONAL, subtema “Liberdade de associação sindical”.83 constituição de 1946:

“Art. 159. é livre a associação profissional ou sindical, sendo reguladas por lei a forma de sua constituição, a sua representação legal nas convenções coletivas de trabalho e o exercício de funções delegadas pelo Poder Público.”84 cLT:

“Art. 554. Destituída a administração na hipótese da alínea c do artigo anterior, o Ministro do Trabalho, Indústria e comércio nomeará um delegado para dirigir a associação e proceder, dentro do prazo de 90 dias, em assembléia geral por ele convocada e presidida; à eleição dos novos diretores e membros do conselho Fiscal.”85 cLT:

“Art. 528. Ocorrendo dissídios ou circunstâncias que perturbem o funcionamento do sin-dicato, o ministro do Trabalho, Indústria e comércio poderá nele intervir, por intermédio de delegado com atribuições para administração da associação e executar ou propor as medidas necessárias para normalizar-Ihe o funcionamento.”86 cLT:

“Art. 521. São condições para o funcionamento do sindicato:a) proibição de qualquer propaganda de doutrinas incompatíveis com as instituições e os inte-

resses da Nação, bem como de candidaturas a cargos eletivos estranhos ao sindicato.(...)Art. 525. é vedada a pessoas físicas ou jurídicas, estranhas ao sindicato, qualquer interfe-

rência na sua administração ou nos seus serviços. (Redação dada pelo Decreto-Lei 9.502, de 23-7-1946.)

Parágrafo único. Estão excluídos dessa proibição:a) os delegados do Ministério do Trabalho, Indústria e comércio, especialmente designados

pelo ministro ou por quem o represente (...)”

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Ministro Hahnemann Guimarães

Iniciado o julgamento, o Ministro Ribeiro da costa levantou uma questão de ordem e, com base no Regimento Interno do STF, alertou que no caso have-ria de ser decidida a constitucionalidade de artigos da cLT em face do art. 159 da constituição de 1946; sendo assim, propôs a suspensão do julgamento. O Ministro Hahnemann Guimarães levantou outra preliminar relativa à possi-bilidade da discussão de constitucionalidade da lei em mandado de segurança, citando o MS 768, no qual o mandado de segurança foi manejado contra a lei do inquilinato. O Ministro Orozimbo Nonato alertou que no caso presente não se iria discutir a lei em tese,87 que era o caso do MS 768, mas o ato administrativo concreto. O Ministro Hahnemann Guimarães insistiu que o que fora decidido era que não se discutia inconstitucionalidade em mandado de segurança, ao que o Ministro Orozimbo Nonato redargüiu afirmando que naquele outro caso não havia ato, e nesse havia o ato do Ministro do Trabalho. O Ministro Hahnemann Guimarães insistiu que se estaria discutindo não o ato ministerial mas a cLT. Dada a confusão, o Ministro Hahnemann Guimarães explicou:

O que sustentei foi que o mandado de segurança não pode ser concedido, desde que o ato impugnado se baseia em lei. A esse respeito, parece ilustrativa a mudança de linguagem operada na constituição de 1934 para a constituição de 1946. Na primeira, admitia-se o mandado de segurança contra a inconstitu-cionalidade do ato. Na constituição de 1946, foi, em meu parecer, propositada-mente, excluída a expressão “inconstitucionalidade”, como que para significar que o legislador só admitiria, daí por diante, o mandado de segurança contra ato ilegal. Desde que a autoridade pública pudesse invocar em seu prol, em favor do ato por ela praticado, disposição legal, excluído estava o ingresso para o processo do mandado de segurança. Foi o que eu queria afirmar. Desde que somente se admite o mandado de segurança contra o ato ilegal ou abusivo, pare-ceu-me, por esta convicção, que era inviável, no processo de mandado de segu-rança, a controvérsia em torno da constitucionalidade da lei que se fundasse o ato impugnado, pois este era legal.

Era o que queria dizer, e parece que as minhas deficiências me tolheram o caminho, não me permitindo ser claro.

O Ministro Hahnemann Guimarães manteve-se contrário à indicação do Ministro Ribeiro da costa, insistindo na preliminar de não ser possível, em man-dado de segurança, a apreciação de inconstitucionalidade. O Ministro castro Nunes, notório conhecedor da matéria,88 apreciou a preliminar em longo voto, lembrando que, após a superveniência da constituição de 1934, questão de tal jaez foi suscitada várias vezes, sustentando que a ilegalidade de que falava o texto constitucional devia ser entendida de maneira mais ampla de modo a não frustrar

87 A posição do STF de não admitir mandado de segurança contra lei em tese viria a ser sumu-lada anos depois. Súmula/STF 266: “Não cabe mandado de segurança contra lei em tese”, apro-vada na sessão plenária de 13-12-1963.88 Ver, e.g.: NUNES, José de castro. Do mandado de segurança e de outros meios de defesa contra atos do poder público. 4. ed. atual. Rio de Janeiro: Forense, 1954.

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Memória Jurisprudencial

a finalidade do mandado de segurança. O Ministro castro Nunes, refutando o argumento do Ministro Hahnemann Guimarães de que a constituição de 1946 havia restringido a linguagem e abrangência do mandado de segurança, após citar os dispositivos da constituição de 1946 que tratavam da matéria, sustentou:

Está se vendo que essa disposição obedeceu às relações intimamente existentes entre o habeas corpus, e o legislador constituinte julgou-se dispen-sado de dizer mais qualquer coisa; não cabendo habeas corpus e sendo o direito líquido e certo, caberá o mandado de segurança.

O Ministro castro Nunes lembrou Pedro Lessa quando, sob a constituição de 1891, o STF superou a impossibilidade de se discutir a inconstitucionalidade de leis em sede de habeas corpus, e, se sob o habeas corpus não havia exclu-são, não o haveria para o mandado de segurança. Posicionou-se, dessa forma, contrariamente à tese do Ministro Hahnemann Guimarães. Apenas o Ministro Barros Barreto alinhou-se a este, que restou vencido na preliminar.

Superada a preliminar, passaram à análise do mérito. (Para as considera-ções acerca da discussão do mérito, ver o tópico sobre Direito constitucional: Liberdade de Associação.)

Em outro mandado de segurança, também carregado de forte conteú do político, impetrado contra a cassação dos mandatos dos representantes do Partido comunista do Brasil, discutiu-se a possibilidade de se analisar a cons-titucionalidade de atos e leis em sede de mandado de segurança. Trata-se do MS 900/DF, em que os deputados do Partido comunista do Brasil89 requereram ao STF mandado de segurança contra ato da Mesa da câmara dos Deputados que declarou extintos os mandatos dos deputados e suplentes eleitos sob a legenda do Partido comunista do Brasil, em face do disposto na Lei 211, de 7 de janeiro de 1948, e da Resolução/TSE 285, de 27 de outubro de 1945, devi-damente comunicada à câmara dos Deputados. Foi alegado que a inconstitu-cionalidade do ato resultava da inconstitucionalidade da Lei 211/1948, sendo afirmado que tal lei subvertia o regime representativo democrático.

O MS 900/DF, decidido em 18 de maio de 1949, Presidente o Ministro Laudo de camargo, teve como Relator o Ministro Hahnemann Guimarães. Este sustentou nas preliminares não caber julgamento do defeito da Lei 211/1948, argumentando que, ao contrário da constituição de 1934, a constituição de 1946 vedava o exame do defeito de constitucionalidade na via estreita do man-dado de segurança. Eis a parte relevante do voto na preliminar:

Ao contrário dos requerentes, entendo que o argüido defeito da Lei 211, de 7 de janeiro de 1948, não pode ser examinado no processo sumaríssimo do

89 Eram: Abília Fernandes, Agostinho Dias de Oliveira, Alcedo coutinho, carlos Marighela, Gervásio de Azevedo, Gregório Lourenço Bezerra.

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Ministro Hahnemann Guimarães

mandado de segurança, pelo qual se protege direito líquido e certo contra qual-quer autoridade. Parece-me, assim, procedente a exceção oposta pela Mesa da câmara dos Deputados.

No julgamento do MS 768, em 4 de dezembro de 1946 (Rev. For., 112, p. 407), pretendi sustentar que era esclarecedor o paralelo entre o art. 113, 33, da constituição de 1934, e o § 24 do art. 141 da constituição vigente. Naquela disposição era permitido alegar-se direito certo e incontestável contra um ato da autoridade, que se fundasse em lei, se esta fosse evidentemente inconstitu-cional. Daí resultou que a Lei 191, de 16 de janeiro de 1936, no art. 5º, I, b, con-siderava, entre os atos que se poderiam combater pelo mandado de segurança, os de patente inconstitucionalidade, cometidos pelas autoridades legislativas. A constituição de 1946 não repetiu, porém, a menção do “ato manifestamente inconstitucional”.

castro Nunes não aceita esse argumento (Do mandado de segurança, 2. ed., 1948, p. 161, nota 1), objetando que “a omissão é conseqüente a ter-se adotado para o mandado de segurança a mesma formulação referente ao habeas corpus (§ 23, § 24, art. 141), não sendo de admitir que a argüição de inconsti-tucionalidade possa ser levantada em habeas corpus, como em qualquer via processual, com a exceção única do mandado de segurança, cujo âmbito estaria limitado em detrimento dessa garantia”.

A ordem de habeas corpus ampara, entretanto, a liberdade de locomo-ção, e este direito pode ser ferido por uma lei inconstitucional. O mandado de segurança protege outros direitos subjetivos, certos e manifestos. Estes requi-sitos de determinação e evidência não podem existir, se o ato da autoridade é legal. A existência de uma lei formalmente válida, observada pela autoridade, é incompatível com um direito oposto a suas disposições, que se possa considerar manifesto e determinado. A constituição de 1934 somente tolerava que se dis-cutisse, em mandado de segurança, o defeito de constitucionalidade manifesto. A constituição de 1946 parece ter vedado o exame desse defeito, porque, sendo legal o ato, não pode haver ofensa de qualquer direito líquido e certo.

O Ministro Hahnemann Guimarães restou vencido nessa preliminar, com os Ministros alegando decisões anteriores para rejeitá-la. A outra preliminar sobre a existência de coisa julgada em decisão do TSE, em questões que podem ser reexaminadas pelo STF, foi rejeitada unanimemente.90 Aqui outra questão importante é suscitada: o mandato é do parlamentar ou do partido? (Ver análise na parte que trata deste tópico específico.)91

Essa polêmica entre a posição dos Ministros castro Nunes e Hahnemann Guimarães sobre a possibilidade de se analisar a constitucionalidade de atos e leis em sede de mandado de segurança foi vencida por aquele, restando como

90 Uma semana depois, em 25-5-1949, foi julgado o MS 895/DF, sendo Relator o Ministro Macedo Ludolf, impetrado em favor de Luis carlos Prestes, senador do Partido comunista, que teve seu mandato cassado (mandato declarado extinto) pelos mesmo motivos daqueles debatidos no MS 900/DF, só que desta feita por ato da Mesa do Senado, tendo sido também denegado. 91 Ver o item 10. ELEITORAL, subitem “Natureza do mandato parlamentar”.

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Memória Jurisprudencial

limitação a possibilidade de se analisar a inconstitucionalidade contra a lei em tese.

No julgamento do MS 2.655/DF, realizado em 5 de julho de 1954, Presidente o Ministro José Linhares, Relator o Ministro Ribeiro da costa, sendo Relator para o acórdão o Ministro Afrânio Antonio da costa, o STF discutiu questões relacionadas à legislação trabalhista, complementada por decreto presidencial, fixando o salário mínimo, o qual foi argüido de inconstitucio-nal. O pedido foi indeferido, sendo reconhecida a impossibilidade de discutir mandado de segurança contra lei em tese.92 Na votação, no Pleno do STF, dois Ministros se declaram impedidos, três se declararam pela procedência e cinco pelo indeferimento. O Ministro Hahnemann Guimarães, em voto dotado de minúcias argumentativas porém vencido, conheceu do pedido e indeferiu-o nos seguintes termos:

Senhor Presidente, segundo a teoria religiosa dos salários, instituída há um século por Augusto comte, deve o proletariado receber o salário constituí do por uma parte fixa e uma parte variável, que pode chegar até o dobro da pri-meira, correspondente ao produto do seu serviço. A parte fixa há de permitir que o proletariado possa desenvolver completamente sua existência doméstica.

Um século depois, que presenciamos nós! O triste espetáculo do proleta-riado acampado fora da sociedade, no meio da sociedade ocidental, sem receber salário suficiente e regular.

Sentindo o perigo da situação criada, tem o legislador procurado obviar ao mal, estabelecendo salário que corresponda tanto quanto possível às neces-sidades normais do operário. Este cuidado só começou a fazer sentir, entre nós, com o Decreto 19.770, de 19 de março de 1931, em cujo art. 8º, letra d, se atribuía aos sindicatos a incubência de promover a fixação de salário mínimo para tra-balhadores urbanos e rurais. Sobreveio a constituição de 1934, em cujo art. 121, § 1º, letra b, se assegurou aos operários salário mínimo que correspondesse às suas necessidades normais, em cada zona ou região. De acordo com a disposi-ção constitucional, a Lei 185, de 14 de janeiro de 1936, instituiu as comissões de salário mínimo, em vinte disposições, que foram incorporadas e desenvolvidas na cLT, nos arts. 76 e 128. Pois bem: de acordo com as disposições constantes da cLT, o Presidente da República expediu o Decreto 35.450, de 1º de maio último, estabelendo novos níveis de salário mínimo, à semelhança do que havia feito em 24 de dezembro de 1951, com o Decreto 30.342.

Argúi-se, pelo mandado de segurança, de inconstitucional o Decreto 35.450. Tenho acompanhado aqui a orientação do Sr. Ministro Barros Barreto, segundo a qual não é possível, em mandado de segurança, discutir a constitucio-nalidade de lei, formalmente válida. Mas temos sido vencidos, nessa sustenta-ção. Resta-me, assim, examinar a possibilidade de ser o mandado de segurança oposto à lei, em tese.

92 Este entendimento do STF seria convertido, anos depois, na Súmula 266, adotada na sessão plenária de 13-12-1963, cujo enunciado diz: “Não cabe mandado de segurança contra lei em tese.”

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Ministro Hahnemann Guimarães

Evidentemente, trata-se de lei, em tese. Isto é reconhecido pelo eminente professor e deputado Bilac Pinto, que, na justificação do projeto recentemente apresentado à câmara Federal, disse o seguinte:

A usurpação das funções privativas e indelegáveis, do congresso Nacional, pelo Senhor Presidente da República, constitui grave e frontal atentado à constituição de 1946, que S. Exa. jurou manter, cumprir e defen-der. Em matéria de salário mínimo, o Sr. Getúlio Vargas, por duas vezes, invadiu a competência do congresso Nacional ao baixar o Decreto 30.342, de 24 de dezembro de 1951, e o Decreto 35.450, de 1º de maio último.Esta opinião do eminente professor e deputado Bilac Pinto foi acolhida

pelo nosso querido colega Ministro Ribeiro da costa, em seu eloqüentíssimo voto, de que lamento divergir, mas que não posso deixar de admirar. Trata-se, sem dúvida, de lei.

como acentuou o Sr. Ministro Nelson Hungria, o Poder Executivo com-pletou a lei. As disposições por ele estabelecidas neste decreto incorporam-se à lei, às condições estabelecidas na lei, no art. 81 da constituição, fixando-se o salário mínimo de acordo com o inquérito promovido pelas respectivas comis-sões. Impugna-se a lei, e creio que isto ninguém contesta.

Ora, a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal, como muito bem mostrou o Sr. Ministro Afrânio costa, não tem admitido mandado de segurança contra a lei em tese. Não é possível atacar pelo mandado de segurança a lei, antes de ser ela posta em execução, antes de serem infrigidos os direitos sub-jetivos por acaso decorrentes do sistema legal, em vigor. O Sr. Ministro Mario Guimarães sustenta que há, no caso, uma delegação vedada pelo art. 36, § 2º, da constituição. Realmente: aí se proíbem as delegações de poder.

O Ministro Hahnemann Guimarães foi interrompido pelo Ministro Mario Guimarães, a quem citara: “Não sustentei bem isto. Argumentou-se que havia delegação e este ponto é que eu refutei. Houve um ato arbitrário.” Assim, o Ministro Hahnemann Guimarães prosseguiu:

Vossa Excelência diz que não houve delegação, para qualificar o ato mais pejorativamente ainda, declarando-o arbitrário.

A meu ver, não há ato arbitrário, nem delegação. O Poder Executivo, de acordo com a disposição constante, principalmente, do art. 81 da consolidação das Leis do Trabalho, artigo de que fez justa menção o Sr. Ministro Nelson Hungria; o Poder Executivo, de acordo com esta disposição legal e com dados estatísticos, estabeleceu novos níveis de salário mínimo. Não exerceu função que lhe houvesse sido delegada pelo Poder Legislativo. Exerceu função den-tro dos limites estabelecidos pelo Poder Legislativo. Este estabeleceu como se procederia, quando se alterasse profundamente a situação econômica, com sacrifício do proletariado. Estabelece a lei condições que permitem ao Poder Executivo que fixe novos níveis de salário mínimo. Foi o que se fez. Não houve delegação. O Legislativo não renunciou a uma faculdade que essencialmente lhe competisse, e da qual não pudesse abrir mão. A função atribuída ao Executivo foi exercida de acordo com disposições legais, com as normas constantes da consolidação da Leis do Trabalho, como já disse, particularmente a do art. 81. Não vejo como atacar o Decreto 35.450, de 1º de maio de 1954, pelo mandado de segurança.

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Memória Jurisprudencial

Se for vencido nesta preliminar, ainda indeferirei o pedido, porque os novos níveis do salário mínimo foram estabelecidos de acordo com a lei, que não exigiu o inquérito censitário, desde que o Governo dispõe de dados esta-tísticos, que lhe permitem conhecer perfeitamente as necessidades normais do proletariado. Além disto, no caso, trata-se de aplicação do art. 116, § 2º, da cLT.

O Ministro Nelson Hungria interveio e completou: “Excepcionais”, pros-seguindo o Ministro Hahnemann Guimarães:

Realmente, excepcionais, desde que se altere gravemente, profunda-mente, a ordem econômica e financeira, com sacrifício dos recursos de que dispõem os operários. Se for vencido na preliminar do não-conhecimento do pedido, Senhor Presidente, eu o indeferirei.

DIREITO LíqUIDO E CERTO

No MS 1.261/DF, julgado em 7 de junho de 1950, Presidente o Ministro Laudo de camargo, Relator o Ministro Ribeiro da costa, o STF enfrentou a questão da possibilidade de funcionário que estava havia mais de cinco anos no cargo de classificador de produtos vegetais do Ministério da Agricultura sem ter prestado concurso. Embora o servidor tivesse sido inscrito ex officio em concurso realizado antes da promulgação da constituição de 1946, a prova, porém, fora realizada em data diferente daquela inicialmente marcada. Assim, o impetrante pleiteava ser efetivado no cargo, vis a vis o disposto no art. 23, pará-grafo único, inciso II, do Ato das Disposições constitucionais Transitórias da constituição de 1946, que possibilitava a efetivação de funcionários interinos.93 Entretanto, ele fora exonerado por ato presidencial de 6 de setembro de 1949. Diante desses fatos, o Ministro Hahnemann Guimarães sustentou:

Senhor Presidente, peço permissão ao eminente Ministro Relator para acompanhar o voto do Sr. Ministro Luiz Gallotti.

No caso presente há uma circunstância que merece ser realçada: o reque-rente não ampara mais sua pretensão no preceito do art. 1.516 do código civil, como se fez nos pedidos anteriores. Os requerentes, de outra feita, pretenderam a caducidade do concurso, pelo art. 1.516 do código civil, onde se exige que, para a validade da policitação, haja termo prefixado.

93 constituição de 1946 — Ato das Disposições constitucionais Transitórias:“Art. 23. Os atuais funcionários interinos da União, dos Estados e Municípios, que contem,

pelo menos, cinco anos de exercício, serão automaticamente efetivados na data da promulgação deste Ato; e os atuais extranumerários que exerçam função de caráter permanente há mais de cinco anos ou em virtude de concurso ou prova de habilitação serão equiparados aos funcioná-rios, para efeito de estabilidade, aposentadoria, licença, disponibilidade e férias.

Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica:(...)II — aos que exerçam cargos para cujo provimento se tenha aberto concurso, com inscrições

encerradas na data da promulgação deste Ato;”

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Ministro Hahnemann Guimarães

Observa, entretanto, o Sr. Ministro Ribeiro da costa, no seu esplêndido voto, que esse argumento era inaceitável, e procura suprir a lacuna da lei, obser-vando o preceito do Direito suíço, segundo o qual, nas omissões da lei, deve o juiz substituir o legislador, dando ao caso a solução que lhe daria o legislador.

Onde a lei é omissa, não há direito líquido e certo. A prova de que não há direito líquido e certo é que foi preciso essa construção para suprir a lacuna da lei.

Nesse ponto, interveio o Relator, Ministro Ribeiro da costa:Parece-me que o direito líquido e certo do requerente reside no próprio

art. 23 do Ato das Disposições constitucionais Transitórias.A questão da realização ou não do concurso é matéria que fica a critério

do próprio administrador. Se o administrador nega esse direito ao requerente, ele vem ao Poder Judiciário para pedir que o seu direito seja reconhecido. cabe, então, ao Tribunal julgar a hipótese, conforme ela se apresenta. Este não se rea-lizou. Vem a constituição e considera efetivados todos os funcionários nestas condições. Logo, efetivo é o requerente. é uma questão lógica. O mais, em torno deste fato concreto, são teses interessantes que nós, juízes, podemos discutir pelo gosto de discutir. Pelo brilho da discussão. O fato em si é de uma simpli-cidade exemplar. A constituição deu direito ao requerente; o concurso não se realizou; logo, esse direito torna-se incontinenti, líquido e certo.

Se a administração, cuidando dos seus interesses, tivesse, antes da constituição ser promulgada, tomado uma providência que tornasse inegá-vel o seu propósito de realizar o concurso, às vésperas da promulgação da constituição, ou depois dela, bem, não se poderia falar em concurso que não estivesse aberto, cujas inscrições não estivessem encerradas. O fato é que a administração dormiu inteiramente, descurou de todo a realização do concurso. como negar, agora, o direito líquido e certo que pleiteia o requerente, oriundo da própria disposição constitucional?

A esse posicionamento o Ministro Hahnemann Guimarães redargüiu:Agradecendo ao eminente Ministro Ribeiro da costa seu aparte eluci-

dativo, creio que não há lugar, no inciso II, parágrafo único, do art. 23 do Ato das Disposições constitucionais Transitórias, para o pretendido direito líquido e certo.

Supus, ao ouvir o voto do eminente Ministro Relator, que S. Exa. qui-sesse fundar o direito líquido e certo do pretendente na necessidade que há de se realizarem os atos jurídicos em certo prazo. Vejo, agora, que incorri em erro. S. Exa. baseia o direito líquido e certo pretendido no inciso II, parágrafo único, do citado art. 23 das Disposições constitucionais Transitórias, onde se diz:

O disposto neste artigo não se aplica:(...)II — aos que exerçam cargos para cujo provimento se tenha aberto

concurso, com inscrições encerradas na data da promulgação deste ato.”Ora, esta disposição nega de modo evidente, peremptório, a pretensão

do requerente, porque concurso havia, com inscrições encerradas em agosto de 1944.

Na espécie nem ocorreu o que se deu em outros casos, a reabertura das inscrições, para admissão de novos candidatos. O concurso ficou com as

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Memória Jurisprudencial

inscrições encerradas, de uma vez por todas, em agosto de 1944. A este con-curso se candidataram para mais de 190 concorrentes. Parece-me que ouvi o ilustre advogado dizer, da tribuna, que se habilitaram 192 candidatos como clas-sificadores de produtos vegetais.

Sendo assim, Senhor Presidente, por força do referido inciso II, do pará-grafo único do art. 23, não era possível a efetivação do requerente.

O concurso tinha de realizar-se. Realizar-se em prazos mais ou menos dilatados, é comum na praxe administrativa. Agora mesmo, na Faculdade de Direito, teve lugar, em 1950, um concurso cujas inscrições se achavam encerra-das em 1948. Não é possível se realize sempre o concurso apenas se encerrando o prazo das inscrições.

No caso, o prazo das inscrições se encerrou em agosto de 1944. O con-curso realizou-se é certo, com alguma demora em 1948, mas dele resultou a habilitação de candidatos, que foram nomeados. Portanto, este concurso não caducou, manteve toda a sua eficácia, conservou íntegra a sua validade, tanto que dele resultou a habilitação de candidatos, que foram providos nos cargos. como sacrificar-se, agora, o direito destes candidatos, habilitados e nomeados, e que não foram ouvidos no processo, com a concessão do presente mandado de segurança?

Aí é que haveria ofensa de direito líquido e certo. Direito líquido e certo não tem nenhum o requerente do presente mandado, porque, se a base desse direito é, como afirmou o eminente Ministro Relator, o inciso II do art. 23, pará-grafo único, do Ato das Disposições constitucionais Transitórias, esta disposi-ção declara exatamente o contrário do que pretende o requerente.

Assim, Senhor Presidente, coerente com os meus votos anteriores, nego o mandado de segurança.

O STF, que se havia posicionado de maneira diferente em relação a esse assunto, considerando a existência ou não de direito líquido e certo nos MS 1.019 (a favor) e MS 1.104 (contra), terminou por indeferir o MS 2.261/DF, no sentido do voto do Ministro Hahnemann Guimarães, que divergiu do Ministro Relator, Ribeiro da costa. Por maioria de votos (quatro Ministros votaram a favor do deferimento), Relator para o acórdão o Ministro Luiz Gallotti, o STF entendeu que a constituição de 1946, ao efetivar funcionários interinos, excluiu do favor os que exerciam cargos para cujo provimento se houvesse aberto concurso, com inscrições encerradas na data da promulgação da constituição de 1946, conso-lidando esse entendimento.

AÇÃO POPULAR E MANDADO DE SEGURANÇA — DISTINÇõES E EFEITOS

A ação popular foi introduzida formalmente no ordenamento jurídico constitucional brasileiro pela constituição de 1934,94 sobrevivendo ao breve

94 constituição de 1934:“Art. 113. A constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a invio-

labilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à pro-priedade, nos termos seguintes:

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Ministro Hahnemann Guimarães

período de sua vigência,95 pois a superveniente carta outorgada de 1937 não contemplava o instituto, o que é “natural”, já que ela era um instrumento de justificação de um governo autocrático, enquanto a ação popular é um ins-trumento de exercício da democracia republicana. O instituto retornou com a constituição de 1946,96 e não mais seria eliminado nos textos constitucionais seguintes (mesmo sob a constituição e os Atos Institucionais das décadas de 1960 e 1970, outro período autoritário). Finalmente na constituição de 1988 o instituto adquiriu amplitude e caracterização maiores.

Acerca desse assunto, o STF enfrentou o problema da distinção entre o uso da ação popular e do mandado de segurança, em caso de se afigurar no limite da aplicação das duas modalidades de ações garantidoras de direitos institucionais. Trata-se do MS 1.000/DF, decidido em 28 de setembro de 1949, sendo Presidente o Ministro Laudo de camargo e Relator o Ministro Edgard costa. A decisão tomada pelo STF foi no seguinte sentido:

Mandado de segurança: não sendo o ato impugnado originariamente das mesas da câmara e do Senado, seria o Supremo Tribunal incompetente para conhecer do mandado.

O art. 141, § 38, da constituição Federal, institui a chamada “ação popu-lar”, que se não confunde nem identifica com o mandado de segurança; traços diferenciais e fundamentais entre ambos. Incabível é o mandado para invalidar ato legislativo que aumentou o subsídio dos deputados e senadores, só o funda-mento de ser lesivo do patrimônio da União, por estar em causa, não a defesa de um direito subjetivo dos requerentes, mas de interesse geral.

O mandado de segurança foi impetrado por diversos cidadãos moradores da capital Federal, contra ato da Mesa da câmara dos Deputados e do Senado Federal, que, segundo os impetrantes, seria repetido todo mês, de modo a requi-sitar recursos do Tesouro Nacional para cumprir a resolução do congresso

(...)38) Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a declaração de nulidade ou anulação

dos atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados ou dos Municípios.”95 Anteriormente à sua introdução formal por via da constituição de 1934, a doutrina erige algumas modalidades que fariam a vez das ações populares típicas, tais como as destinadas para a proteção dos bens de uso comum do povo. Ver: MANcUSO, Rodolfo de camargo. Ação popular: proteção ao erário; do patrimônio público; da moralidade administrativa; e do meio ambiente. 2. ed, rev., atual., amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, passim e esp. p. 49-56.96 constituição de 1946:

“Art. 141. A constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à proprie-dade, nos termos seguintes:

(...)§ 38. Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nuli-

dade de atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados, dos Municípios, das entidades autár-quicas e das sociedades de economia mista.”

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Memória Jurisprudencial

Nacional que conferia aumento aos parlamentares. Os impetrantes inicialmente invocaram, como fundamento do pedido formulado, o dispositivo do § 38, do art. 141 da constituição, que diz: “qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos do patrimô-nio da União, dos Estados, dos Municípios, das autarquias e das sociedades de economia mista.” Argüiram também a inconstitucionalidade do Decreto Legislativo 53, não por terem os congressistas fixado seus próprios subsídios, mas por fixá-los fora da época marcada pela constituição, que determinava ser no fim de cada legislatura para a legislatura seguinte o período de fixação dos subsídios, sendo inconstitucional sua fixação no meio da legislatura para a pró-pria legislatura.

O Subprocurador-Geral da República, Dr. Alceu Barbedo, em substi-tuição ao Procurador-Geral da República (impedido), ao manifestar-se, citou castro Nunes para argumentar que o mandado de segurança não supria a via da ação popular para casos que tais, salvo se manejado para garantir o direito de intentar a própria ação popular. Além disso, aduziu outras questões relacio-nadas ao tema, inclusive a defesa da legalidade do ato atacado em si mesmo, manifestando-se ao final pela improcedência da ação. A questão era forte na preliminar, e o Ministro Edgard costa, ao votar na preliminar, sustentou:

Admitida, entretanto, a competência do Tribunal, do pedido não é de se conhecer por ser o mandado de segurança meio inidôneo à finalidade buscada com ele.

O que pretendem os requerentes é o reconhecimento judicial de ser o ato que impugnam lesivo do interesse público por baseado em lei inconstitucional, e, por via de conseqüência, como elementos integrantes que são da coletividade prejudicada, deles impetrantes também.

Buscam os requerentes amparo expresso para o pedido no dispositivo do art. 141, § 38, da constituição, que inicialmente invocam. Sabido é, porém, que esse dispositivo, que confere a qualquer cidadão legitimidade para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos do patrimônio público, institui a chamada ação popular, que se não confunde nem se identifica com o mandado de segurança. Se este bastasse à consecução do prescrito naquele dispositivo, tratar-se-ia de uma redundância inadmissível no legislador consti-tuinte. Inscritos ambos, o que autoriza o mandado de segurança e o que faculta a ação popular, como incisos, ou parágrafos do mesmo artigo (art. 141, § 24 e § 38), o que desde logo evidencia tratar-se de hipóteses diversas. Há, de fato, entre eles um traço diferencial que é fundamental: ao passo que o mandado de segurança é uma garantia concedida a todos indistintamente, a faculdade confe-rida pelo § 28 — seja, a ação popular — é restrita ao cidadão.

O Ministro Edgard costa concluiu no sentido de que o STF não teria competência para conhecer do assunto, em considerar da inidoneidade do meio empregado. Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães se manifestou como segue:

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Ministro Hahnemann Guimarães

Senhor Presidente, parece-me que a ação popular, de que cuida o § 38 do art. 141 da constituição, pode ser ajustada ao processo sumaríssimo do man-dado de segurança. Não se opõe a esta conclusão o ensinamento do egrégio casto Nunes, porque ele mesmo assinala que, quando a lesão do patrimônio público federal, estadual ou municipal, redundar em ofensa de direito indivi-dual, cabe ao cidadão pedir seja reparada ela pelo mandado de segurança.97

coincide, aliás, esta afirmação com o que já dispõe o art. 329, § 1º, do código do Processo civil, onde se diz: “Quando o direito ameaçado ou violado couber a uma categoria de pessoas indeterminadas, qualquer delas requer man-dado de seguraça”.

Assim, pode ser o cidadão atingido através da lesão causada ao patri-mônio público federal, estadual ou municipal; pode ser atingido no seu direito subjetivo, no seu direito individual.

Deste modo, Senhor Presidente, parece-me que é possível promover-se a ação popular, por meio do processo sumaríssimo do mandado de segurança.

Nesse momento, o Ministro Hahnemann Guimarães apontou no sentido de que aceitaria o uso do mandado de segurança para veicular o conteúdo da ação popular. Prosseguiu em seu voto, contudo, que, no caso, julgava a medida inidônea porque se impugnava a constitucionalidade de uma lei. E, como o ato impugnado seria apenas o cumprimento de disposição legal, ficaria no seu entendimento excluída a alegação de ofensa de direito líquido e certo, já que a pretendida lesão decorreria de um ato rigorosamente legal. Por fim, o Ministro lembrou que se vinha manifestando sempre nesse sentido, o que coincidia com a posição do Ministro Barros Barreto. Desse modo, reconheceu que por essa preliminar (impossibilidade de verificação da inconstitucionalidade de lei por via de mandado de segurança) estaria vencido e concluiu:

No caso não se questiona a respeito de um ato da Mesa da câmara dos Deputados ou do Senado Federal, como muito bem demonstrou o Sr. Ministro Relator, e assim faltaria no Supremo Tribunal Federal competência para conce-ber do pedido.

Acresce que não há o pretendido direito líquido e certo.é tese sustentada pelos requerentes do mandado que todo contribuinte

tem o direito de reclamar contra medidas legislativas que atinjam o patrimônio público federal, estadual ou municipal. Tem o direito de reclamar, sem dúvida, e é o que se dispõe no art. 141, § 38, da constituição. Mas não há, neste caso, ofensa de direito liquído e certo.

O ato, que não é da Mesa da câmara ou do Senado, que é de expediente da Secretaria dessas casas do Legislativo, aliás, em cumprimento de uma lei, não ofende diretamente nenhum direito líquido e certo dos requerentes, como contribuintes, como interessados, que são, em que se conserve íntegro o patri-mônio público.

97 curioso notar que o Subprocurador-Geral da República usou argumento semelhante com base na doutrina de castro Nunes para concluir o inverso.

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Memória Jurisprudencial

Assim, Senhor Presidente, estou de acordo com o eminente Sr. Ministro Relator em não conhecer do mandado.

Votou em seguida o Ministro Ribeiro da costa, que, após dizer que nenhuma palavra teria a acrescentar ao voto proferido pelo Ministro Relator, prosseguiu em único argumento:

Um argumento só, desprendido do voto de Sua Excelência basta para mostrar que o Supremo Tribunal Federal não pode dar ingresso ao pedido, porque falta aos requerentes a legitimidade para estar em Juízo, a legitimidade ad processum.

Subjetivamente, discute-se a legitimidade do direito pleiteado por eles e no caso, mostrou o eminente Ministro Relator que a ação popular não pode ser exercida através de um pedido de mandado de segurança.

A pretensão da parte só pode ser veiculada em Juízo mediante a ação popular de que trata o § 38, do art. 141 da constituição.

Desde que não é por este meio que as partes pretendem o reconhecimento do direito, através da medida do mandado de segurança, não lhes é possível atender. Elas não têm legitimidade ad processum.

Assim, não conheço, preliminarmente, do mandado.

O Ministro Orozimbo Nonato foi o seguinte a votar e conheceu do pedido, mas indeferiu porque atacava ato legislativo em tese:

Dou à palavra — pleito do art. 141, § 38, da constituição sentido amplo, de modo a poder ajustá-la até, em certas hipóteses, pelo menos, à feição suma-ríssima do mandado de segurança.

Ainda mais, tenho que esse dispositivo é auto-exeqüível, é self-acting. Se, entretanto, não chego à concessão do writ é porque, no caso, não há ato administrativo a ser adversado pelo mandado de segurança. E esse ato adminis-trativo está na base do pleito, é um dos elementos, um dos extremos do remédio juris excepcional, como os tratadistas do assunto entendem, como o Ministro castro Nunes e Seabra Fagundes.

Realmente, o mandado de segurança não pode ser dirigido nem contra ato tipicamente judicial — a sentença, nem contra ato tipicamente legislativo — a lei.

é exato que se pode discutir a constitucionalidade ou inconstitucionali-dade de uma lei, mas através de sua concretização em ato administrativo.

Em seguida, votaram os Ministros Annibal Freire, Barros Barreto e José Linhares, pelo não-conhecimento. O voto do Ministro Orozimbo Nonato foi o único a favor do conhecimento, embora tanto ele como o Ministro Hahnemann Guimarães tenham admitido o uso do mandado de segurança como passível de veicular objeto da ação popular, caso fossem outras as circunstâncias fáticas (sendo mais enfático o Ministro Orozimbo Nonato). Assim, o MS 1.000/DF restou indeferido na preliminar, por não se substituir à ação popular, remédio adequado ao caso.

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Ministro Hahnemann Guimarães

O STF apreciou tal questão pelo menos mais duas vezes até que fosse edi-tada a Súmula 101, aprovada em sessão plenária de 13 de dezembro de 1953: “O mandado de segurança não substitui a ação popular.” Os dois julgados tiveram a participação do Ministro Hahnemann Guimarães (embora sem expressar a justificativa do voto); o primeiro foi o MS 1.768, de 10 de outubro de 1952, sob a presidência do Ministro José Linhares e relatoria do Ministro Luiz Gallotti — com decisão unânime; e o segundo foi o MS 4.503, de 9 de setembro de 1957, sob a presidência do Ministro Orozimbo Nonato e relatoria do Ministro Ribeiro da costa — também com decisão unânime. Nota-se que, quanto a esse tema, o Ministro Hahnemann Guimarães acabou por mudar de opinião.

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Memória Jurisprudencial

15. PENAL

CONCEITO DE BEM PúBLICO PARA EFEITOS PENAIS

No Hc 30.514/MA, julgado em 20 de outubro de 1948, Presidente o Ministro José Linhares e Relator para o acórdão o Ministro Hahnemann Guimarães, o STF decidiu que poderia haver prisão administrativa de quem, mesmo não sendo funcionário público, tivesse concorrido para que se come-tesse crime (desfalque) contra a administração da caixa Econômica Federal do Maranhão, com a participação de funcionário. A prisão administrativa tinha por base o Decreto-Lei 3.415, de 10 de julho de 1951, não mais vigente atualmente, sendo inadmissível a prisão administrativa após a constituição de 1988. A maior discussão, no entanto, se estabeleceu no ponto relativo à natureza da caixa Econômica Federal, isto é, se o ato praticado contra a instituição se enquadraria na tipificação de crime contra a Fazenda Nacional, o que ensejaria a ordem da prisão administrativa, com base no mencionado decreto-lei. Neste sentido foi o voto do Ministro Edgard costa, Relator designado. Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães reverteu a posição do Relator originário, convertendo-se em Relator para o acórdão:

Senhor Presidente, lamento divergir do eminente Sr. Ministro Relator, mas julgo dever permanecer fiel à orientação que até aqui tenho seguido, segundo a qual as entidades autárquicas, ou paraestatais chamadas, são seções autônomas do patrimônio público. As chamadas pessoas jurídicas de direito público interno, além da União do Estado e de Município, administram, sem dúvida, bens públicos, administram-nos com autonomia, mas a estas entidades incumbe, sem dúvida, realizar um serviço que pode ser público ou privado, mas sempre consistente na gestão do patrimônio público.

Os patrimônios das entidades autárquicas ou paraestatais são partes de patrimônio público. Já os romanistas denominavam essas entidades de estações, “departamentos do fisco”, estatienes fisci. Assim pensando, julgo que os funcio-nários dessas entidades se equiparam aos funcionários públicos.

Esta conclusão, adotada pela doutrina, é hoje corroborada pelos termos claros da própria lei, que estabelece, no art. 327, parágrafo único, do código Penal, que se equipara a funcionário público quem exerça cargo, emprego ou função em entidade paraestatal.

O crime de um funcionário de entidade paraestatal, na gestão do patri-mônio dessa entidade, é um crime equiparado ao de funcionário público na ges-tão de outros bens públicos.

A caixa Econômica é, sem dúvida, uma entidade autárquica, que admi-nistra bens públicos. é ela encarregada também de conservar certos bens priva-dos, pois aceita depósitos de particulares, mas há sempre na atividade de seus funcionários atos de gestão de patrimônio público. como muito bem acentuou o Sr. Ministro Annibal Freire, a Fazenda Pública é responsável pela má execução do deveres da caixa Econômica, é evidente que essa inexecução é lesiva dos bens públicos.

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Ministro Hahnemann Guimarães

A União, no caso, será subsidiariamente responsável. A lesão que é diretamente causada ao particular, reverte, afinal, numa lesão do patrimônio público, pois a União é responsável.

Aliás, parece-me que este entendimento coincide inteiramente com a disposição constante do art. 319, inciso I, do código de Processo Penal, a que se remeteu o eminente Sr. Ministro Relator.

O Ministro Edgard costa aparteou, afirmando: “O artigo se aplica quando se trata de cofres públicos, o que não é o caso dos autos. Tratando-se de matéria penal, interpreto o dispositivo segundo sua letra, como bens perten-centes à Fazenda Pública ou sob sua guarda. No caso, os bens não estão sob a guarda da União.” O Ministro Hahnemann Guimarães respondeu, arrematando seu voto vencedor:

O que é inadmissível em matéria penal é o suprimento de lacunas legais pela analogia. No caso, não estou suprindo lacuna da lei; estou, quando muito, interpretando extensivamente a expressão “cofres ou dinheiros públicos”.

cofres públicos, dinheiros públicos, não são apenas os bens da Fazenda Pública, sujeitos à administração centralizada, mas também os bens públicos confiados a seções autônomas da própria administração pública. cofres públi-cos também são os cofres das caixas Econômicas, embora sujeitos a adminis-tração autônoma.

Assim sendo, data venia e com o perdão do eminente Sr. Ministro Relator, nego a ordem.

Além do Ministro Edgard costa, votou concedendo o habeas corpus o Ministro Orozimbo Nonato, argumentando em seu voto vencido que, embora a lei equiparasse os funcionários de autarquias a funcionários públicos, não equiparava os bens das autarquias, “que são autônomas, aos bens da União”. A decisão foi, portanto, tomada por maioria, no sentido do voto do Ministro Hahnemann Guimarães.

ExTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELO CASAMENTO (CORRUPÇÃO DE MENORES)

No julgamento do Hc 40.327/PR, impetrado contra embargo declarató-rio denegado pelo Tribunal de Justiça do Paraná, alegando perempção da ação penal pelo casamento da vítima com terceiro, em caso de crime de corrupção de menores (art. 218 do código Penal),98 o STF julgou se o casamento nesse caso impactava o curso da ação penal decidindo que a união da ofendida com outrem

98 código Penal (Decreto-Lei 2.848, de 7-12-1940):“Art. 218. corromper ou facilitar a corrupção de pessoa maior de 14 (catorze) e menor

de 18 (dezoito) anos, com ela praticando ato de libidinagem, ou induzindo-a a praticá-lo ou presenciá-lo:

Pena: reclusão, de um a quatro anos.”

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Memória Jurisprudencial

que não o ofensor fazia cessar a qualidade do representante que dera início ao pro-cesso criminal (no caso em questão, como havia transcorrido o prazo legal, ficou configurada a perempção da ação). A decisão do Pleno, tomada em 9 de dezembro de 1963, sendo Presidente o Ministro Luiz Gallotti e Relator o Ministro Victor Nunes, teve os votos contrários dos Ministros Ribeiro da costa e Hahnemann Guimarães, que se manifestou da seguinte forma:

Senhor Presidente, peço vênia para acompanhar a antiga jurisprudência deste Tribunal, negando provimento ao recurso.

O código Penal só admite a extinção da punibilidade pelo casamento, quando este se realiza entre a ofendida e o agente do crime. No caso, o casamento foi com terceiro.

Sendo esta a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, data venia, nego provimento ao recurso.

O Ministro Hahnemann Guimarães já vinha votando firme com seu enten-dimento nesse mesmo sentido, em decisões anteriores, sendo reiteradamente ven-cido. Dois exemplos foram o Hc 39.071/MG, decidido em 9 de maio de 1962, sob a presidência do Ministro Lafayette de Andrada e relatoria do Ministro Henrique DAvila (decidido no sentido de que o casamento da ofendida com terceiro, no curso da ação extingue a punibilidade), e o Hc 40.342, decidido em 27 de novem-bro de 1963 (no qual também restou decidido que o casamento da ofendida com quem não fosse o ofensor fazia cessar a qualidade de seu representante legal, e a ação penal só poderia prosseguir por iniciativa da própria ofendida, com o con-sentimento do marido, observados os prazos legais de decadência e prescrição). O Supremo Tribunal viria apreciar novamente o tema, em julgamento com a pre-sença do Ministro Hahnemann Guimarães, no Hc 40.326/PR, decidido em 11 de março de 1964, sob a presidência do Ministro Ribeiro da costa e relatoria do Ministro Vilas Boas, em que o único voto do Tribunal Pleno, contrário à decisão,99 foi do Ministro Hahnemann Guimarães, que assim se manifestou:

Senhor Presidente, data venia, divirjo dos eminentes colegas, de acordo com o dispositivo expresso do código Penal, que só considera extinta a punibi-lidade pelo casamento da ofendida com o agente do delito. Assim, nego a ordem.

Dois aspectos dignos de nota decorrem desses julgamentos. As decisões foram convertidas na Súmula/STF 388: “O casamento da ofendida com quem não seja o ofensor faz cessar a qualidade do seu representante legal, e a ação penal só pode prosseguir por iniciativa da própria ofendida, observados os prazos legais de decadência e perempção” (aprovada em sessão plenária de 3-4-1964). Porém, o

99 O conteúdo da ementa é o seguinte: “Extingue a responsabilidade, determinando o arquiva-mento do processo, nos crimes de ação privada, o casamento da ofendida com terceiro que, no prazo de seis meses, deixa de exercer o direito de representação como chefe da sociedade conju-gal, salvo se ela própria insistir no prosseguimento da causa.”

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Ministro Hahnemann Guimarães

STF revogaria essa súmula 11 anos depois, no julgamento do Hc 53.777, decidido pelo Pleno, em 16 de outubro de 1975, sendo Presidente o Ministro Djaci Falcão e Relator o Ministro Thompson Flores. Nesse caso, foi restaurada a posição assu-mida pelo Ministro Hahnemann Guimarães, que alegava como fundamento a “antiga jurisprudência” do Supremo.

Posteriormente, a Lei 6.416, de 1977, alteraria a redação do inciso IX do art. 104 do código Penal, contemplando a hipótese de extinção de punibilidade pelo casamento da ofendida com terceiro, nesses casos ressalvados os crimes cometidos com violência ou grave ameaça e se a vítima não requeresse o prosse-guimento da ação penal no prazo de 60 dias a contar da celebração.100 A extinção da punibilidade pelo casamento com a ofendida estava prevista no inciso VIII do mesmo artigo. Esses dispositivos foram revogados pela Lei 11.106, de 28 de março de 2005.101

PRESCRIÇÃO PENAL — CONTAGEM NO CRIME CONTINUADO

O Ministro Hahnemann Guimarães insistiu, em histórica divergência com o Ministro Nelson Hungria, na posição de que a contagem do prazo prescricional dos crimes continuados deveria ser acrescida do aumento da pena devido a essa circunstância, tanto in abstrato, quanto no caso concreto (após a cominação da pena). A posição daquele Ministro foi vencida em definitivo, tendo resultado na Súmula/STF 497, de 3 de dezembro de 1969: “Quando se tratar de crime continu-ado, a prescrição regula-se pela pena imposta na sentença, não se computando o acréscimo decorrente da continuação.”

Quanto a esse tema específico, o Ministro Hahnemann Guimarães não mudou sua opinião enquanto esteve no STF. A título de exemplo, pode-se citar o RHc 43.740/DF, julgado em 17 de março de 1967, Presidente o Ministro Lafayette de Andrada e Relator o Ministro Luiz Gallotti. Nele foi decidido que a causa seria levada ao Pleno, dada a relevância da matéria e a possível divergência gerada pela renovação e ampliação do número de Ministros do STF (à época com 16 Ministros).

100 código Penal (Decreto-Lei 2.848, de 7-12-1940):“Art. 108. Extingue-se a punibilidade:(...)VIII — pelo casamento do agente com a ofendida, nos crimes contra os costumes, definidos

nos capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial [arts. 213 a 222];(...)IX — pelo ressarcimento do dano, no peculato culposo [ver abaixo];IX — pelo casamento da ofendida com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, salvo

se cometidos com violência ou grave ameaça e se ela não requerer o prosseguimento da ação penal no prazo de sessenta dias a contar da celebração; (Redação dada pela Lei 6.416/1977).”101 A alteração introduzida pela Lei 7.209, de 11-7-1984, manteve os dispositivos corresponden-tes (incisos VIII e IX da nota acima) no art. 107 do código Penal modificado, os quais foram depois revogados pela Lei 11.106, de 28-3-2005.

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Memória Jurisprudencial

O recurso em habeas corpus tratava de um corretor de café acusado de crimes de falsificação e corrupção ativa, cujas penas foram aumentadas de um sexto e um terço respectivamente por se tratar de crime continuado. Exarada a sentença condenatória, sem recurso do Ministério Público, foi expedido o mandado de prisão. O sentenciado impetrou o habeas corpus sustentando que havia ocorrido a prescrição, pois para efeito de cálculo do prazo prescricional não deveria ter sido considerado aumento correspondente ao crime continua-do.102 O TFR denegou a ordem, subindo o feito ao STF. O Ministro Hahnemann Guimarães afirmou em seu voto:

Senhor Presidente, data venia, acompanho o voto do eminente Sr. Ministro Eloy da Rocha, negando provimento ao recurso, porque entendia, divergindo do eminente Ministro Nelson Hungria, que mesmo em relação à pena in abstracto devia levar-se em conta o aumento, em conseqüência de haver sido delito continuado, com maior razão tratando-se de aplicação da pena no caso concreto.

O STF reverteu a decisão e concedeu a ordem, com votos do Ministro Relator, Luiz Gallotti, e dos Ministros Aliomar Baleeiro, Adalício Nogueira, Evandro Lins e Silva, Nunes Leal, Gonçalves de Oliveira e Vilas Boas. Foram contrários os Ministros Eloy da Rocha, Oswaldo Trigueiro, Prado Kelly e Hahnemann Guimarães.

No julgamento do Hc 43.791/SP, em 17 de março de 1967, na Segunda Turma, o Ministro Hahnemann Guimarães atuou como Presidente e Relator. Já perto da aposentadoria, enfrentou novamente o tema, e o fez de forma lacô-nica. Após relatar um caso em que o Tribunal de Justiça revertera uma sentença absolutória na qual o juiz da Vara de Execuções Penais considerara extinta a punibilidade, deixando de considerar o acréscimo do crime continuado na pena, para efeito do cálculo prescricional, o réu impetrou habeas corpus, tendo por argumento central justamente esse aspecto. O Ministro Hahnemann Guimarães votou, então: “Nego o pedido, pois, de acordo com o art. 110 do código Penal, a prescrição, depois de transitar em julgado a sentença condenatória, se regula pela pena imposta, e se verifica pelos prazos fixados no art. 109. A prescrição ocorreria, assim, em 8 anos (código Penal, art. 109, IV).” A Segunda Turma votou no sentido do voto do Ministro Evandro Lins e Silva, Relator para o acór-dão, concedendo a ordem, sendo o voto do Ministro Hahnemann Guimarães o único pela denegação.

102 Ver art. 71 do código Penal. Ver também, sobre crime continuado: JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 21. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 594-600.

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Ministro Hahnemann Guimarães

16. PROCESSUAL CIVIL

CABIMENTO DE RECURSO ExTRAORDINáRIO AO STF

No AI 13.317/DF, julgado em 11 de julho de 1947, sendo Presidente e Relator o Ministro Orozimbo Nonato, a discussão girou em torno do cabimento de recurso ao STF em caso de não-definitividade da decisão. considerou-se, no caso, uma decisão incidental da causa e não definitiva do mérito, cuja ementa foi lavrada nos seguintes termos:

Recurso extraordinário. No caso da letra a, o que se tem em vista é a ocorrência de violação irremediável, pela Justiça local, do direito federal. E essa ofensa tanto pode avultar na decisão mesma da relação jurídica exposta na ini-cial, e contestada pelo réu, como através de decisões proferidas na fluência da demanda, mas irremediáveis, à conta de sua definitividade.

O Ministro Hahnemann Guimarães, em voto vencido, acompanhado pelo Ministro Goulart de Oliveira, expressou-se da seguinte forma:

Senhor Presidente, com a permissão de Vossa Excelência, divirjo do seu voto. A meu ver, o fim do recurso extraordinário é restabelecer a observância preterida da constituição ou da lei federal no julgamento de uma causa.

O Supremo Tribunal somente pode conhecer da causa, depois de estar encerrado o processo definitivamente em única ou última instância. Por esta verdadeira querella nulitatis surge para o Supremo Tribunal a possibilidade de examinar toda a causa, desde os seus incidentes, até a sentença definitiva.

Nesse ponto, o Ministro Orozimbo Nonato, Relator, argumentou: “Não é possível ao Tribunal verificar se a apelação estava ou não deserta.” Porém, con-tinuou o Ministro Hahnemann Guimarães:

A meu ver, a disposição constitucional impõe a convicção por mim admi-tida. O Supremo Tribunal não pode apreciar incidentes da causa. Pode apreciar a causa depois dela encerrada por sentença definitiva.

Assim, confirmo o despacho agravado pelos fundamentos e nego provi-mento ao agravo.

Vale a menção do recente AI 439.613-AgR/SP, julgado em 24 de junho de 2003, em que, em situação semelhante (consideradas as mudanças do texto constitucional), o voto vencedor do Ministro celso de Mello foi no sentido do voto vencido do Ministro Hahnemann Guimarães acima transcrito.

LIMITES NA ExECUÇÃO DA SENTENÇA

A questão presente no RE 11.148/PA, decidido em 1º de julho de 1947, pela Segunda Turma, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato, Relator o

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Memória Jurisprudencial

Ministro Lafayette de Andrada, sendo Relator para o acórdão o Ministro Hahnemann Guimarães, corresponde ao problema dos limites da sentença que acolhe ação reivindicatória, quando de sua execução. Houve uma ação reivin-dicatória de terrenos (correspondente à Vila do Mosqueiro, em Belém/PA), e o juiz de primeira instância deu pela procedência, determinando a restituição dos terrenos, com todos os seus acessórios e rendimentos. O Tribunal de Justiça do Estado reformou a sentença, que foi restabelecida em embargos resolvidos pelo STF. Assim, discutiu-se no RE 11.148/PA a execução da sentença, alegando vio-lação aos arts. 287 e 289 do código de Processo civil, bem como ao art. 516 do código civil então vigentes.103

O caso se afigura mais interessante porque, após o trânsito em julgado desse extraordinário, voltando a sentença à execução, o juiz atendeu às alega-ções, em embargos do réu, quanto à retenção de benfeitorias úteis e necessá-rias — matéria não resolvida pelo RE 11.148/PA. Isso gerou ação rescisória, provocando a volta do feito ao Supremo (adiante se comenta a rescisória). Em seu voto, nesse recurso extraordinário, o Ministro Hahnemann Guimarães, após superadas as preliminares, sustentou que, na execução, não era admitido que se renovasse a discussão de que resultou a sentença exeqüenda e prosseguiu:

(...) A sentença exeqüenda considerou procedente a reivindicação e mandou que o bem reivindicado fosse restituído cum omni causa, com todos os seus aces-sórios. O possuidor, demandado pela reivindicação, não fez valer, no momento próprio, o seu direito a haver a indenização pelas benfeitorias. Este direito havia de ser reconhecido no próprio processo reivindicatório. Aí é que o pos-suidor havia de fazer valer exceptionis ope o seu direito a haver a indenização pelas benfeitorias úteis, e faria valer esse direito, nos termos da lei, ou pelo ius tollendi — o direito de levantar as benfeitorias — ou pelo ius retentionis — o direito de retenção. Mas isto devia ser reconhecido pela própria sentença que deu pela procedência da reivindicação.

103 Dizem os mencionados dispositivos legais:código de Processo civil:“Art. 287. A sentença que decidir total ou parcialmente a lide terá força de lei nos limites das

questões decididas.(...)Parágrafo único. considerar-se-ão decididas todas as questões que constituam premissa ne-

cessária da conclusão.”“Art. 289. Nenhum juiz poderá decidir novamente as questões já decididas, relativas à mesma

lide, salvo:I — nos casos expressamente previstos;II — quando o juiz tiver decidido de acordo com a equidade determinada relação entre as

partes, e estas reclamarem a reconsideração por haver-se modificado o estado de fato.”código civil:“Art. 516. O possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e

úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se lhe não forem pagas, a levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa. Pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis, poderá exercer o direito de retenção.”

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Ministro Hahnemann Guimarães

Não me parece possível que, na execução da sentença, que julgou proce-dente a reivindicação, o possuidor fosse fazer valer um direito, que não lhe fora reconhecido no processo reivindicatório. Isto seria infringir o julgado e discutir a validade do próprio julgado. Os embargos do executado não são embargos de nulidade e infringentes do julgado; não renovam a discussão já encerrada pela sentença exeqüenda.

A meu ver, o acórdão violou as disposições legais que vedam que os embargos sejam infringentes do julgado. O acórdão não podia deferir ao pos-suidor uma indenização que não lhe foi reconhecida na sentença que se está executando. Essa indenização havia de ser reconhecida no próprio processo de reivindicação, não pelo juiz da execução da sentença que deu a reivindicação, que concedeu a restituição pedida da coisa cum omni causa.

Neste sentido conheceu do recurso e lhe deu provimento. Após a ade-são dos Ministros Edgard costa e Goulart de Oliveira, o Presidente Orozimbo Nonato votou com o Relator e passou a travar um debate com o Ministro Hahnemann Guimarães, em torno do problema dos limites da execução da sen-tença. Este insistia que a questão invocada (improcedência do usucapião, sem solucionar o problema das benfeitorias) deveria ser apreciada na reivindicação, não na execução. A decisão final foi pelo conhecimento e negativa de provi-mento com os votos contrários dos Ministros Relator e Presidente.

como já salientado, a causa voltaria ao STF, cerca de 10 anos depois, pela terceira vez, por via de ação rescisória, proposta pelo espólio da autora do pro-cesso julgado pelo STF no RE 11.148/PA. Isso porque, ao se executar a sentença da ação reivindicatória, na forma mantida pelo recurso, acorreram embargos em que o problema das benfeitorias úteis e necessárias foi rediscutido na instância de execução, sendo garantida ao reivindicado sua retenção. Daí a ação resci-sória, com base em afronta à coisa julgada, no caso o próprio RE 11.148/PA. Trata-se da AR 361/DF, de 5 de abril de 1957, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato e Relator o Ministro Ribeiro da costa, sendo Revisor o Ministro Hahnemann Guimarães, que foi convertido também em Relator para o acórdão.

Na execução da sentença, após a oposição de embargos pedindo a reten-ção das benfeitorias úteis e necessárias, o Ministro Ribeiro da costa sustentou que a decisão rescindenda não violara o art. 798 do código de Processo civil, porque remanescera o direito à indenização pelas benfeitorias, pois “no juízo da ação não se ventilara a questão sobre direito de retenção por benfeitorias, mas apenas discutira a questão do domínio”. O Revisor, Ministro Hahnemann Guimarães, resolveu o assunto em outro sentido, pela procedência da ação res-cisória, com fundamento em infração da coisa julgada, nos seguintes termos:

Dona Amália cordilho Guimarães Pinto, ora substituída pelos seus herdeiros, pediu reivindicação de um terreno com todos os frutos e sucessões, cum omni causa. Essa reivindicação foi julgada procedente por decisão man-tida por este Supremo Tribunal Federal. Estava assim excluída a possibilidade

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Memória Jurisprudencial

de, no juízo da execução dessa sentença que acolhera a reivindicação, a pos-sibilidade, repito, de se alegar, por via de embargos, o direito de retenção por benfeitorias úteis e necessárias. No entanto, foi o que ocorreu. O juiz da infe-rior instância, executando decisão que era deste Supremo Tribunal, entendeu de admitir a alegação do réu de que cabia indenização por benfeitorias úteis e necessárias, que havia sido decidida no juízo da ação; e, pois, não podia ser argüida no juízo de execução. Essa sentença, confirmada pelo Tribunal de segunda instância local, foi reformada pela Segunda Turma. A decisão desta — de que fui Relator, acompanhado pelos eminentes Srs. Ministros Edgard costa e Goulart de Oliveira, contra o voto dos eminentes Srs. Ministros Lafayette de Almeida e Orozimbo Nonato, foi reformada pelo Tribunal Pleno em embargos, entendendo-se que a decisão exeqüenda não fora ferida, não fora contrariada. Parece-me que ela foi absolutamente contrariada, foi violentada, porque a deci-são exeqüenda atribuirá à autora da reivindicação a restituição do terreno cum omni causa; quer dizer, com todos os seus frutos e acessões. Não era possível que, no juízo de execução, se argüissem benfeitorias, embora necessárias e úteis. Não era possível que argüisse o executado as benfeitorias com funda-mento no art. 516 do código civil. é por esta razão que acolho a ação rescisó-ria — porque a decisão argüida de nula, a meu ver, ofendeu manifestamente a coisa julgada por este Tribunal.

Na sessão de 5 de abril de 1957, a AR 361/DF foi declarada procedente pelo Tribunal Pleno, votando no mesmo sentido do Ministro Hahnemann Guimarães os Ministros Afrânio costa, candido Motta, Ary Franco e Luiz Gallotti. contra aquele entendimento, votaram os Ministros Ribeiro da costa, Relator; Vilas Boas; e Lafayette de Andrada.

LEITURA DA SENTENÇA EM DATA DIVERSA DAqUELA EM qUE AS PARTES TIVERAM CIÊNCIA

chegou ao STF, em sede de recuso extraordinário, questão de Direito Processual civil. No caso, havia uma disputa por verbas extras devidas na construção de um prédio. O construtor reclamou, por ação ordinária, as verbas acrescentadas. Exarada a sentença de primeiro grau, os dois litigantes apela-ram, mas a 4ª câmara civil do Tribunal não conheceu dos recursos, por terem sido apresentados fora do prazo (a sentença fora publicada no dia 5 de novembro de 1955 e os recursos foram protocolizados em 30 de novembro e 5 de dezem-bro), tendo sido os litigantes intimados pessoalmente, o que tornaria as apela-ções tempestivas. As partes manifestaram recurso extraordinário com base nas letras a e d do art. 101, III, da constituição de 1946. Em seu voto, o Ministro Vilas Boas, Relator, complementou informando que a sentença que não fora proferida em audiência determinava: “publique-se e registre-se, depois de lida na audiência que designo para hoje, às 13 horas (...)”, sendo que a decisão foi publicada na audiência especial de 3 de novembro de 1955, e foram expedidos

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mandados de intimação, mas houve também a publicação no Diário da Justiça em 5 de novembro de 1955.

O Ministro Vilas Boas prosseguiu dizendo que assim se colocava o pro-blema: poderia o juiz ampliar o prazo para recurso, variando o modo de inti-mação da sentença? Informou também que as partes estavam de acordo sobre o fato de que deveriam ser contados os 15 dias da ciência pessoal dada aos respectivos representantes. O Ministro sustentou ainda que o acordo entre as partes não poderia afetar a regra de processo, de natureza pública, derivado em res judicata para o caso, nos termos dos arts. 28 e 168 do código de Processo civil. com a publicação da sentença no Diário da Justiça em 5 de novembro de 1955, um sábado, o domingo, dia 6, seria o dies a quo do termo fatal do recurso; em vista disso, ele concluiu que as apelações foram apresentadas fora do prazo, com base nos arts. 812, 28 e 168, § 1º, do código de Processo civil.104 O Ministro Vilas Boas não reconheceu haver infração à lei, mas tomou conhe-cimento com base em discrepância da jurisprudência. Sendo assim, negou pro-vimento a ambos.

Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães afirmou:Senhor Presidente, conheço de ambos os recursos, mas, data venia do

eminente Sr. Ministro Relator, dou-lhes provimento. A sentença não foi lida em audiência para a qual houvessem sido as partes, oportunamente, intimadas. A publicação no órgão oficial não tem o poder de constituir dies a quo para o prazo de oposição de apelação. Tem assim entendido o Tribunal. Quando o juiz não lê a sentença em dia marcado com conhecimento prévio das partes, é neces-sária a intimação pessoal delas, não bastando a intimação feita pela publicação no órgão oficial, nos termos do art. 168 do código de Processo civil. Ora, o juiz leu a sentença em dia para que não foram as partes citadas. Por isso, tendo feito a leitura da sentença em audiência de que não tiveram conhecimento as partes, mandou, sabiamente, avisadamente, que o escrivão as intimasse pesso-

104 Artigos pertinentes ao caso do código de Processo civil vigente à época (Decreto-Lei 608, de 18-9-1939):

“Art. 28. Salvo disposição em contrário, os prazos para as partes contar-se-ão, conforme o caso, da citação, notificação, intimação, ou da data de seu anúncio no órgão oficial.

(...)”“Art. 168. Salvo disposição em contrário, as intimações serão feitas pessoalmente às partes,

ou a seu representante legal, ou procurador, por oficial de justiça, ou pelo escrivão.§ 1º No Distrito Federal e nas capitais dos Estados, ou Territórios, as intimações se conside-

rarão feitas pela só publicação dos atos no orgão oficial.(...)”“Art. 812. contar-se-á da data da leitura da sentença (art. 271) o prazo para a interposição de

recurso, observando-se nos demais casos o disposto no art. 27.(...)”“Art. 828. Vencido o prazo sem que se tenha feito a remessa dos autos, considerar-se-á de-

serta a apelação, salvo prova de justo impedimento. Neste caso, o juiz restituirá ao apelante o prazo correspondente ao do impedimento.”

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almente; é daí que será contado o prazo para a apelação. O acórdão divergiu da jurisprudência e ofendeu os arts. 812 e 828 do código de Processo civil.

No RE 35.427, decisão da Segunda Turma, em 30 de julho de 1957, tendo como Presidente o Ministro Ribeiro da costa e Relator o Ministro Antonio Vilas Boas (voto divergente), e sendo o Relator para o acórdão o Ministro Hahnemann Guimarães, foi dado provimento ao recurso, com o seguinte resultado: “Leitura da sentença em data diversa da que as partes tiveram ciência. Quando o juiz não lê a sentença no dia marcado com prévio conhecimento das partes, é necessária a intimação pessoal delas.”

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Ministro Hahnemann Guimarães

17. PROCESSUAL PENAL

AÇÃO PENAL PRIVADA SUBSIDIáRIA DA PúBLICA

A questão a ser deslindada no RE criminal 13.124/PA, julgado em 6 de julho de 1948, sendo Relator o Ministro Lafayette de Andrada, diz respeito a quem poderia propor a ação privada nos termos do art. 29 do código Processual Penal, quando o inquérito policial fosse arquivado a pedido do Ministério Público, não tendo havido o mero decurso de prazo. O código vigente era o mesmo atual, mas com diversas alterações. Seu art. 29, entretanto, não sofreu modificações e previa:

Art. 29. Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do pro-cesso, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal.

O Ministro Hahnemann Guimarães sustentou em seu voto, acompanhando o Relator, que a ação penal privada subsidiária da pública era uma “ação popu-lar”, cabendo a qualquer do povo a sua proposição. Eis o que disse em seu voto:

O art. 29 diz que “será admitida a ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal”. Esta disposição não se deve interpretar restritivamente. O ilustre Sr. Dr. Procurador-Geral já sustentou, em dois pareceres, pelo menos, que, recusando-se ele a propor a ação penal pública, fica ressalvado à parte o direito de propor ação penal privada. Essa ação penal é ação popular supletiva; é uma verdadeira ação popular. Em todos os crimes de ação pública em que o Ministério Público, ou por pedir arquivamento, ou por se esgotar o prazo, não apresenta a denúncia, cabe a ação popular supletiva, sob a forma de ação penal privada. é um direito de qualquer do povo promover a responsabilidade penal, quando o Ministério Público não quiser exercer o poder da ação penal. Em princí-pio, o poder da ação penal pública é privativo do Ministério Público, mas, se este renuncia a esse poder, deixando que se escoe o prazo para propositura da ação sem o fazer, ou pedindo o arquivamento das peças de informação, do inquérito, cabe a qualquer do povo o direito de requerer a ação popular supletiva, como se diz na doutrina. A lei não restringe. Dispõe que será admitida a ação privada, nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal.

O Ministro Orozimbo Nonato argüiu que deveria haver interesse da parte, ao que o Ministro Hahnemann Guimarães aduziu: “Vou até mais longe: a tendên-cia moderna dos processualistas, em matéria de direito penal, é ampliar o âmbito da ação popular supletiva, não restringindo o direito de propor ação.” O Ministro Orozimbo Nonato insistiu que isso se dava em matéria da administração pública, mas o Ministro Hahnemann Guimarães, não convencido, arrematou: “A ação é supletiva: se o Ministério Público não exercer o seu direito, a qualquer do povo é dado propor a ação. conheço de recurso e lhe dou provimento, de inteiro

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acordo com o eminente Sr. Ministro Relator.” O recurso foi provido, somente os Ministros Orozimbo Nonato e Goulart de Oliveira votaram contra.

Mais recentemente, em relação aos chamados “crimes vagos”, o tema foi retomado. Essa discussão foi também em parte reavivada pela inserção na constituição de 1988, no art. 50, inciso LIX, de normas com conteúdo seme-lhante à primeira parte do art. 29 do código de Processo Penal.

APROVAÇÃO DAS CONTAS PELA ASSEMBLéIA LEGISLATIVA E COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL

O ex-Governador de São Paulo Adhemar de Barros sofrera acusação de crime de peculato, que teria sido cometido no exercício do mandato, num rumo-roso caso envolvendo aquisições de veículos pelo Estado. Diante disso, o STF discutiu se a aprovação das contas do Governador pela Assembléia Legislativa excluiria a reanálise dos acontecimentos alegados como crime ao Tribunal de Justiça — competente para julgar o Governador de Estado. Havia uma decisão sobre fato anterior em que se discutiu a tese de que seria crime continua do o peculato, ou se estabelecera a coisa julgada. O caso envolvia diversos aspec-tos procedimentais, sendo que de início constituía-se em três pedidos de habeas corpus, todos dirigidos ao STF. O Hc 34.114/SP, julgado em 9 de maio de 1956,105 tendo como Presidente o Ministro Orozimbo Nonato e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, foi concedido de forma unânime. O voto do Relator esmiúça os detalhes da causa, daí se justifica sua transcrição em deta-lhes, nas partes mais importantes:

Senhor Presidente, cabe-me, em primeiro lugar, manifestar a minha homologação ao pedido da desistência constante dos autos da primeira petição de Hc 34.093.

Passando aos dois outros pedidos de ordem de habeas corpus, devo, em primeiro lugar, apreciar a preliminar de incompetência do Tribunal de Justiça. Rejeito-a. Não me parece que a aprovação das contas pela Assembléia Legislativa excluísse a competência do Tribunal de Justiça, para conhecer do crime de peculato, por fato não abrangido nesta contas, expressamente.

As contas dizem respeito apenas à gestão financeira. Não se acusou o Dr. Adhemar Pereira de Barros de ter exorbitado dos limites orçamentários; as contas foram bem aprovadas. Mas, esta aprovação das contas não excluía a possibilidade de haver ele praticado um crime de peculato pela apropriação de verba de cr$ 378.352,50.

Não me parece, também, que haja sido mal constituído o Tribunal de Justiça de São Paulo para o conhecimento da causa.

O Tribunal, mesmo no caso do julgamento de um Governador de Estado, não se constitui apenas dos seus membros efetivos, mas, também, daqueles

105 Julgado em conjunto com os Hc 34.093/SP e 34.093/SP.

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Ministro Hahnemann Guimarães

que, pela Lei de Organização Judiciária legal, devem integrá-lo, completando o quorum por ventura deficiente.

No caso, o Tribunal de Justiça de São Paulo, constituído de 36 desembar-gadores, estava com 10 deles afastados, ou em férias. Era necessária a convoca-ção de juízes que suprissem a ausência desses 10 desembargadores.

Foram convocados, como já salientei no relatórios, 6 juízes substitutos de segunda instância, dos quais um, Dr. Dimas de Almeida, se deu suspeito.

Além desses 5 juízes substitutos de segunda instância, funcionaram 3 juízes da 4ª instância, que foram, a meu ver, regularmente convocados, de acordo com a Legislação de Organização Judiciária local e com a aprovação do conselho da Magistratura.

Quanto a não haverem os juízes, que se declararam impedidos, indicado o motivo de sua suspeição, nos termos do art. 254 do código de Processo Penal, não me parece que constitua isto nulidade.

é verdade que, em acórdão deste Supremo Tribunal, afirmou o eminente Ministro Edgard costa que, se o juiz não justificar a sua suspeição, serão nulos os atos praticados pelo seu substituto.

No caso, os 7 juízes impedidos não tiveram substitutos. O Sr. Desembar-gador Amorim Lima salienta, em suas informações, que, apesar de ser permi-tida a substituição dos juízes impedidos, por outros juízes de inferior instância, não se convocou ele, entretanto.

Os juízes impedidos, que se declararam suspeitos, não foram substituídos.

Após minuciosa análise das questões relativas à composição do Tribunal de Justiça de São Paulo, o Ministro Hahnemann Guimarães prosseguiu, dizendo que iria tratar do motivo que lhe parecia mais significativo, isto é, a exceção de coisa julgada:

como salientei, em meu relatório, o Tribunal de Justiça, no acórdão pro-ferido em 6 de março último, nos autos da Ação Penal 43.732, julgou improce-dente esta exceção, por 22 votos contra 6.

Devo suprir, aliás, omissão do meu relatório: O Senhor Presidente do Tribunal de Justiça remeteu, com as suas informações, manifestações do Ministério Público, em fotocópia, integralmente os autos do referido processo 43.732, onde consta que o Tribunal de Justiça rejeitou a exceção de coisa jul-gada, pelas seguintes razões:

À fl. 570, diz o Tribunal que improcede a argüição de coisa julgada, por-que não houve crime continuado.

À fl. 571 se diz que não há unidade de fatos; apropriação de veículos e apropriação da verba da Força Pública. Os cinco caminhões eram estranhos à primeira apropriação.

Às fls. 572 e 573, diz-se que é impossível considerar a segunda ação, distinta da primeira em seus elementos subjetivo e objetivo, ao material de exe-cução do primeiro delito.

Rejeita, portanto, o acórdão que possa o segundo delito considerar-se continuação do primeiro, desde que se distinguem subjetiva e objetivamente.

À fl. 575 se afirma que o réu não pretendeu assumir a responsabilidade pelo pagamento dos caminhões entregues à Força Pública.

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Afinal, à fl. 576, diz-se que o paciente Dr. Adhemar Ferreira de Barros se apropriou do segundo pagamento.

Teria havido dois pagamentos: um feito pela Secretaria do Governo de São Paulo, por intermédio do Banco do Estado, à General Motors, e o segundo pagamento feito pela Força Pública.

coisa julgada pode-se deduzir da disposição do art. 110, § 2º, do código de Processo Penal, é a resultante de decisão definitiva e irrecorrível, proferida sobre o fato principal, que constituiu a causa petendi.

A coisa julgada, no processo penal, caracteriza-se pela identidade da causa petendi, do fato que dá lugar ao pedido de ação penal. Qual o fato prin-cipal, no caso? O fato principal, no caso, foi haver a secretaria do Governo, conforme diz o primeiro acórdão do Tribunal de São Paulo, comprado 36 auto-móveis por 2.885.000 cruzeiros, sendo 25 caminhões “chevrolet Gigante” e 11 automóveis tipo “Sedan”, os quais foram pagos pelo Banco do Estado aos vendedores, a General Motors. O paciente, Adhemar Pereira de Barros, diz na denúncia, se apropriara desses bens comprados pela secretaria do Governo ou do preço a eles correspondente. Esse o fato principal, que deu lugar à ação penal. Sobre esse fato principal é que versa o acórdão proferido a 9 de novembro de 1955, nos autos da Ação Penal 43.530, do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Nesse ponto, o Ministro Hahnemann Guimarães cita textualmente o acór-dão do Tribunal do Estado de São Paulo, na parte em que é analisada a maté-ria de fato considerando-se a impossibilidade de se fazer o estorno contábil da aquisição dos veículos. E prossegue dizendo que o referido acórdão do Tribunal de São Paulo fazia, pois, referência expressa aos cinco caminhões abrangidos no preço total de cr$ 2.885.000,00. Após ligeiro comentário, volta a citar o mesmo acórdão na parte que esclarece que o réu teria assumido o papel da Secretaria e adquirido ele próprio os veículos, em virtude de obstáculos legais para a aqui-sição pela Secretaria, destinando apenas cinco caminhões ao serviço público e transferindo os outros veículos a ele próprio e a particulares, porém não tendo sido realizada a operação por fatores alheios à vontade do Governador. Após a venda à Secretaria do Estado, 31 veículos foram entregues a pessoas indicadas pelo Governador, com o posterior refaturamento, cancelando-se a compra da Secretaria. O financiamento dos veículos do Banco do Estado à Secretaria não foi adimplido por esta, que não reconhecia a dívida saldada pelo Governador. O referido acórdão concluiu dizendo que, apesar da conduta inadequada do Governador improbus administrator, que se aproveitou de sua posição para se utilizar de crédito do Estado em proveito próprio e de amigos sem, contudo, apropriar-se dele, e considerando a ausência do dolo, não havia crime de pecu-lato, mas possibilidade de enquadramento em crime de responsabilidade, o qual já não teria mais razão de ser — estes os termos do acórdão do Tribunal do Estado de São Paulo citados pelo Ministro Hahnemann Guimarães em seu voto. Prosseguiu Hahnemann Guimarães nos seguintes termos:

como se vê, o Tribunal, o fato principal, de que resultou o segundo pro-cesso, foi devidamente considerado no primeiro acórdão, de 9 de novembro de

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Ministro Hahnemann Guimarães

1955, proferido no processo 43.530, do Tribunal de São Paulo. Aí se afirma, expressamente, primeiro, que o único comprador dos 36 caminhões foi Adhemar Pereira de Barros, que se substituiu à Secretaria de Governo; segundo, que Adhemar Pereira de Barros assumiu a dívida de dois milhões, oitocentos e oitenta e cinco mil cruzeiros; terceiro, que Adhemar Pereira de Barros não teria agido com dolo genérico. Ora, se, a respeito do fato principal, assim entendeu o acórdão absolutório, não é possível que o segundo acórdão imponha a Adhemar Pereira de Barros condenação por ter recebido pagamento de que era o neces-sário destinatário. O pagamento do cheque emitido por cássio Muniz S.A. tinha por destinatário necessário Adhemar Pereira de Barros, porque a Força Pública não havia pago os 5 caminhões incorporados ao uso da tropa. Daí o plano engendrado, e que consistia em vender à Força Pública os carros de cássio Muniz, este os revenderia, incorporando-os a um lote de 12 caminhões, e emitia cheque ao portador correspondente aos 5 caminhões que comprara e revendera simuladamente. Isto tudo se fez para que Adhemar Pereira de Barros recebesse a importância de que era credor, por haver assumido a responsabilidade pelo pagamento total do preço dos 36 automóveis, isto é, cr$ 2.885.000,00.

Assim sendo, concedo a ordem, por julgar extinta a ação penal constante dos autos do processo 43.732, julgado pelo acórdão de 6 de março de 1956, em virtude da coisa julgada resultante de decisão proferida nos autos do processo 43.530, de 9 de novembro de 1955.

Em seguida, votaram os Ministros Macedo Ludolf, Afrânio costa e Nelson Hungria. é importante destacar alguns aspectos do voto deste último, ao suscitar questões que ainda se debatem, como segue:

continuo a sustentar, Senhor Presidente, data venia, a tese que defendi, com apoio de outros Srs. Ministros, quando de anterior pedido de habeas cor-pus em favor do mesmo paciente de agora: o Tribunal de Justiça de São Paulo é incompetente para processar e julgar, originariamente, o Sr. Adhemar de Barros, que, já tendo, de há muito, deixado o Governo do estado, passou a ser um cidadão como outro qualquer. O Foro especial outorgado pelo cap. II, Título VI, Livro 1º, do código de Processo Penal, é uma prerrogativa de função, como diz explicativamente sua rubrica, e assim não é concessível ao cidadão que já deixou a função pública, em cujo exercício teria cometido o crime. Não quero, porém, insistir neste meu entendimento; embora ressalvando-o, curvo-me à decisão deste Tribunal no campo concreto.

E adiante, tratando da questão do dolo necessário à configuração do crime de peculato, referido no voto do Ministro Hahnemann Guimarães, acrescentou:

Por último, Senhor Presidente, há o que, data venia, chamarei de “golpe de misericórdia” no acórdão condenatório, ainda que tivesse havido dano efetivo ou potencial contra o Estado, faltaria um elemento primordial, o dolo de apro-priação. é o que foi irrefutavelmente demonstrado pelo acórdão absolutório, no “caso dos chevrolets”.

Após o Ministro Nelson Hungria, votaram os Ministros Rocha Lagôa, Ribeiro da costa, Lafayette de Andrada, Edgard costa e, por fim, o Ministro

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Memória Jurisprudencial

Barros Barreto. Todos fizeram considerações sobres os fatos e votaram no sen-tido proposto pelo Ministro Hahnemann Guimarães, que lavrou a ementa nos seguintes termos: “A aprovação dada pela Assembléia Legislativa das contas do Governador não exclui a competência do Tribunal de Justiça para conhecer de peculato, por fato não abrangido nas contas prestadas. Havendo o réu absolvido do fato principal em coisa julgada, não pode ser condenado em ação penal rela-tiva ao mesmo fato. Não existe nulidade deixar o juiz de indicar, na instância de segundo grau, o motivo de sua suspeição.”

COMPETÊNCIA — DISTINÇÃO: CRIMES COMUNS MILITARES E DE RESPONSABILIDADE

O Hc 41.296, decidido em 23 de novembro de 1964, sob a presidência do Ministro Ribeiro da costa e relatoria do Ministro Gonçalves de Oliveira, é um dos julgados célebres e típicos da fase pós-Golpe de 1964, no qual o Governador do Estado de Goiás, Mauro Borges Teixeira, foi ameaçado de ser apeado do poder pela instauração de um inquérito policial-militar, no bojo do qual era incurso na Lei de Segurança Nacional e ameaçado de impeachment e prisão, pela prática de crimes contra o Estado e a ordem política e social. Na ocasião, tropas federais partiram de Brasília em direção à capital do Estado de Goiás para efetuar a prisão do Governador, o que dava um caráter de urgência ao feito.

O habeas corpus foi impetrado pelos advogados Heráclito F. Sobral Pinto e Heráclito crispim Borges. Os impetrantes alegavam que, se o paciente, no exercício de suas funções, tivesse praticado crimes comuns, teria de ser julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado, depois de pronunciado pela Assembléia Legislativa. O art. 40 da constituição de Goiás reproduzia norma com sistema idêntico ao da constituição Federal vigente à época, considerado princípio constitucional extensível, que garantia ao Governador do Estado ser submetido a processo e julgamento, nos crimes de responsabilidade, perante a Assembléia Legislativa; e, nos comuns, perante Tribunal de Justiça do Estado, depois de declarada a procedência da acusação por maioria absoluta da Assembléia.

Sendo a prisão do Governador iminente e tendo sido os autos do inqué-rito remetidos para a Auditoria Militar, foi recebido o pedido de habeas corpus em 13 de novembro. No dia seguinte, o Relator concedeu liminar para ser sus-tada qualquer providência por parte da Justiça Militar, até ser julgado o habeas corpus pelo STF. Prestadas as informações, o feito veio a julgamento em 23 de novembro de 1964. Após os votos do Relator e dos Ministros Evandro Lins, Pedro chaves, Victor Nunes, Vilas Boas, candido Motta Filho, Hermes Lima e Gonçalves de Oliveira, foi a vez do Ministro Hahnemann Guimarães, em voto bastante aparteado, que se segue:

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Ministro Hahnemann Guimarães

Senhor Presidente, embora eu reconheça o brilho excepcional do voto do Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira, sou obrigado a ir mais longe do que Sua Excelência, acompanhando a conclusão do voto do Sr. Ministro Evandro Lins e entendendo que um Governador de Estado não pode estar sujeito a jurisdição militar, nos termos do art. 74, da Lei 1.079, de 10 de abril de 1950 [lei que define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento].

Diante dessa posição, o Ministro Gonçalves de Oliveira redargüiu: “Não conheço os inquéritos. Não sei de que crimes é o paciente acusado.” O Ministro Hahnemann Guimarães insistiu no ponto que manteria ao final do julgamento e que acabaria por constar em destaque da decisão final: “Afirmo desde já que a Justiça Militar é incompetente.” Nesse momento, o Ministro Vilas Boas interveio dizendo que seu voto era no mesmo sentido, para então o Ministro Gonçalves de Oliveira se manifestar:

Nos crimes de segurança externa, a competência é da Justiça Militar. como procurei mostrar no meu voto, se for, por exemplo, deferido o impeach-ment, pode, ainda, o processo seguir na Justiça que for competente. — é questão a ser apreciada, em outra oportunidade, qual a Justiça competente.

O Ministro Hahnemann Guimarães insistiu no raciocínio:De acordo com o voto que dei no caso do jornalista Hélio Fernandes,106

sou obrigado a declarar desde já a incompetência da Justiça Militar, nos termos da Lei 1.079, de 10 de abril de 1950 (art. 74), e do código de Processo Penal (arts. 84 e 87).

Assim, Senhor Presidente, não considero aplicável ao caso o disposto no art. 42, da Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953, sobre a competência da Justiça Militar. O paciente só poderá responder perante a Assembléia Legislativa, nos crimes de responsabilidade, e, nos crimes comuns, perante a Justiça comum, representada pelo Tribunal de Justiça.

é o meu voto.

O Ministro Vilas Boas manifestou-se dizendo que sua conclusão também era essa. Na seqüência, o Ministro Victor Nunes acrescentou que, “ainda que a Justiça Militar fosse competente, não poderia haver julgamento sem a prece-dência do processo de impeachment”. Voltando à discussão, o Ministro Evandro Lins manifestou-se:

Não há divergência. Se Vossa Excelência. me permite, eminente Ministro Hahnemann Guimarães, o meu voto, na realidade, coincide com o brilhante voto desenvolvido pelo eminente Ministro Relator. Apenas pus em destaque

106 Decidido no Hc 40.047/DF, julgado em 31-7-1963, sob a presidência e relatoria do Ministro Ribeiro da costa, em que o Ministro Hahnemann Guimarães teve importante participação, firmando a posição de dar privilégio de foro à Justiça comum em relação a crimes contra a segurança nacional e à Justiça Militar quando houvesse dúvida. Esta decisão consta também presente texto (ver o item 8. OUTROS TEMAS DE DIREITO cONSTITUcIONAL, subitem “Liberdade de imprensa”).

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Memória Jurisprudencial

uma circunstância sobre a qual Sua Excelência não se pronunciou, ou seja, a incompetência da Justiça Militar. Em determinado trecho de seu voto, entendeu Sua Excelência que, após a declaração de impeachment, eventualmente, pode-ria ser o processo remetido à Justiça Militar. Mas não se pronunciou, absoluta-mente, sobre se a Justiça Militar seria ou não competente.

O Ministro Hahnemann Guimarães insistiu no ponto, reafirmando: “Mas, como se trata do habeas corpus preventivo, eu afirmo desde já essa incompe-tência.” Ao que o Ministro Victor Nunes aduziu: “Qualquer que fosse a Justiça competente, não tendo havido impeachment, não poderia o processo prosseguir. Por isso, não era necessário decidir, desde logo, qual das duas Justiças seria a competente. Não significa isso que eu esteja afirmando a competência da Justiça Militar. Apenas me pareceu desnecessário decidir, agora, esse problema.”

E o Ministro Hahnemann Guimarães arrematou:Peço, no entanto, que seja acrescentado no meu voto que julgo incompe-

tente a Justiça Militar.

A decisão foi lavrada nos seguintes termos:O Supremo Tribunal Federal não conheceu do pedido de habeas cor-

pus em relação à alegada coação do Presidente da República, mas, prevenindo a jurisdição, conhecendo do habeas corpus o deferiu para que não possa a Justiça comum ou Militar processar o paciente sem o prévio pronunciamento da Assembléia Estadual, nos termos do art. 40 da constituição do Estado de Goiás, decisão unânime. O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães considerava a Justiça Militar incompetente.

O Ministro Hahnemann Guimarães manteve sua posição de dar privilé-gio de foro à Justiça comum em relação a crimes contra a segurança nacional e à Justiça Militar, manifestando-se também no Hc 42.108/PE, decidido em 19 de abril de 1965 (caso Miguel Arraes). Sob a presidência do Ministro candido Motta e a relatoria do Ministro Evandro Lins e Silva, o STF firmou posiciona-mento no sentido da jurisprudência dominante do Tribunal, considerando que não é a natureza do crime que define a competência, se a constituição garante o direito a foro especial em decorrência da função desempenhada. Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães, acompanhou o Ministro Relator, sustentando:

Senhor Presidente, concedo o habeas corpus, de acordo com o voto do eminente Sr. Ministro Relator.

Não cabe, no caso, o julgamento pela Justiça Militar, nos termos do art. 108, § 1º, da constituição, bem como do art. 42 da Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953. Há de prevalecer, como demonstrou o eminente Sr. Ministro Relator, o foro por prerrogativa de função, nos termos do código de Processo Penal, art. 87, da Lei 1.079, de 10 de abril de 1950, arts. 75 a 79, e da própria constituição do Estado de Pernambuco, no art. 69, se não me engano.

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Ministro Hahnemann Guimarães

COMPETÊNCIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO

No Hc 33.440/SP, decidido em 26 de janeiro de 1955, o Tribunal Pleno do STF enfrentou assunto referente à existência de foro privilegiado por prerrogativa de função107 ao se acusar ex-ocupante de função pública. Outro ponto discutido no acórdão foi se havia justa causa para a ação penal. Foi Presidente o Ministro José Linhares e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, que restou vencido em seu voto, sendo designado para relator o Ministro Nelson Hungria. O voto do Ministro Hahnemann Guimarães é longo, transcrevendo extensos trechos da decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo. O aspecto importante aqui analisado diz respeito à prerrogativa de foro sobre a qual ele se manifestou da seguinte forma:

Assim, o Governador deixou de poder ser responsabilizado pelo processo de impeachment, porque deixou o cargo, mas continuou sujeito à ação penal pelo delito comum, pelo crime comum; como esse crime foi praticado em razão de função pública, em razão de função de Governo, deve ele responder a processo perante o Tribunal de Justiça, nos termos do art. 55, c, da constituição estadual e do art. 87 do código de Processo Penal.108

O Ministro Nelson Hungria teceu longas considerações sobre esse aspecto, e seu voto foi vencedor. contudo, a decisão foi no desempate pelo Pre-sidente, que decidiu pela concessão da ordem, pela incompetência do Tribunal de Justiça.

107 Existe foro por prerrogativa de função para que os agentes políticos eletivos ou não gozem de proteção para o melhor exercício do cargo. Há vários artigos na constituição Federal que tratam do tema, e também no código de Processo Penal (arts. 69, 84, 85, 86 e 87 do cPP), enfatizando-se o aspecto de serem apenas os crimes comuns e de responsabilidade sujeitos à tal proteção. Fernando da costa Tourinho Filho define prerrogativa de função da seguinte forma: “(...) Há determinadas pessoas, independentemente de condições de fortuna, posição social, raça ou credo, que exercem, no cenário jurídico-político da nossa terra, funções relevantes, e em atenção a essas funções gozam elas de foro especial, isto é, não são processadas e julgadas como qualquer do povo, pelos órgãos comuns, mas pelos Tribunais. Assim, em razão dessas funções, não seria justo, a nosso sentir, devessem elas, quando do cometimento de uma infração penal, ser julgadas pelos órgãos de pri-meira instância ou primeiro grau. Não obstante todos sejam iguais perante a lei, esse foro privativo a que estamos nos referindo foi criado para melhor assegurar a aplicação da lei penal.” TOURINHO FILHO, Fernando da costa. Manual de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 260.108 código de Processo Penal (Decreto-Lei 3.689, de 3-10-1941):

“Art. 78. Na determinação da competência por conexão ou continência, serão observadas as seguintes regras:

I — no concurso entre a competência do Júri e a de outro órgão da jurisdição comum, preva-lecerá a competência do júri;

II — no concurso de jurisdições da mesma categoria:a) preponderará a do lugar da infração, à qual for cominada a pena mais grave;b) prevalecerá a do lugar em que houver ocorrido o maior número de infrações, se as respec-

tivas penas forem de igual gravidade;c) firmar-se-á a competência pela prevenção, nos outros casos;III — no concurso de jurisdições de diversas categorias, predominará a de maior graduação;IV — no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta.”

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Memória Jurisprudencial

Essa posição do STF seria depois revertida, e.g., no Hc 35.301/MG, decidido em 21 de outubro de 1957, no Tribunal Pleno, Presidente o Ministro Lafayette de Andrada, Relator para o acórdão o Ministro Ary Franco. Decidiu-se no sentido da persistência da prerrogativa de função mesmo após o ato demis-sional, tendo por base o art. 87 do código de Processo Penal. Tal entendi-mento acabou sendo sumulado pelo STF consubstanciando-se na Súmula 394: “cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício.” Aprovada em sessão plenária em 3 de abril de 1964, essa súmula seria revogada em outra sessão, de 25 de agosto de 1999,109 retomando-se o entendimento anterior. Novamente, a 1º de outubro de 1964, aprovou-se a Súmula 451, ainda em vigor, que dizia: “A competência especial por prerrogativa de função não se estende ao crime cometido após a cessação definitiva do exercício funcional.”

Porém, a discussão continua atual. A Lei 10.628, de 24 de dezembro de 2002, alterou o art. 84 do código de Processo Penal, acrescentando um § 1º, com a seguinte redação: “A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.” Esse dispositivo retomaria a posição defendida pelo Ministro Hahnemann Guimarães em diversos acórdãos.

contudo, a disposição legal contida no mencionado § 1º foi declarada inconstitucional na ADI 2.797, decidida em 15 de setembro de 2005, por maioria (vencidos os Ministros Eros Grau e Gilmar Mendes), sendo Relator o Ministro Sepúlveda Pertence.

CONFLITO DE JURISDIÇÃO

O Ministro Hahnemann Guimarães foi voto vencido no julgamento do cJ 1.736/RS, decidido em 22 de setembro de 1948, sendo Presidente o Ministro José Linhares e Relator o Ministro Annibal Freire. No processo, discutia-se conflito de competência entre a Justiça Militar e a Justiça comum no caso em que policial militar cometeu crime comum com arma da corporação quando em serviço. O STF decidiu não ser competente, pois se tratava de Justiça do mesmo Estado, não tomando conhecimento do recurso.

Porém, em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães manifestou-se em outro sentido, pelo conhecimento. Após muitos debates, a pendência foi resolvida pelo voto de desempate do Ministro José Linhares, contra os votos dos

109 Decisão no Inq 687-QO/SP, Rel. Min. Sydney Sanches.

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Ministro Hahnemann Guimarães

Ministros Ribeiro da costa, Lafayette de Andrada, Orozimbo Nonato, Barros Barreto e Hahnemann Guimarães, que assim se manifestou:

Senhor Presidente, lamento divergir do eminente Sr. Ministro Relator, mas fiel à opinião já manifestada neste Tribunal, conheço do conflito, porque se trata de Justiças diversas. A Justiça da Polícia Militar é uma Justiça Militar. A própria constituição, no art. 124, inciso XII, diz:

A Justiça Militar estadual, organizada com observância dos preceitos gerais da lei federal (art. 5º, XV, letra f ), terá como órgãos de primeira instância os conselhos de Justiça e, como órgãos de segunda instância, um Tribunal especial ou o Tribunal de Justiça.Mas, no caso, a Justiça é Militar. E a Justiça Militar, segundo a cons-

tituição, dispôs no art. 94, inciso III, que é composta de “juízes e tribunais militares”.

O conflito de jurisdição entre juiz da Justiça comum e juiz de Justiça Militar da polícia é um conflito entre juízes de Justiças diversas. Evidentemente, a Justiça da Polícia Militar não é Justiça comum. é Justiça diversa da Justiça comum.

Após mencionar que esta era a orientação seguida pelo Tribunal, manifes-tou-se pelo não-conhecimento. A posição do Ministro Hahnemann Guimarães neste julgamento foi vencida; entretanto, acabou por prevalecer ao longo do tempo, mesmo após a superveniência de novas constituições — cujos textos se assemelhavam nesse aspecto. Um exemplo é o cJ 6.415/MG, julgado em 19 de outubro de 1983, sob a presidência do Ministro cordeiro Guerra e relatoria do Ministro Moreira Alves. Nele, por unanimidade, o STF conheceu do conflito entre Justiça Militar estadual e a Justiça comum do mesmo Estado.

CRIME POLíTICO E COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JúRI

Ao decidir a Acr 1.420/SP, em 8 de setembro de 1948, o STF enfrentou duas questões relevantes: 1) o conceito de crime político, o que pode resultar em com-petência do STF para julgar a apelação, conforme o art. 101, II, c, da constituição de 1946;110 e 2) caso ocorresse crime da competência do Júri popular (crimes dolo-sos contra vida), no contexto do delito político, se prevaleceria a competência do Tribunal do Júri, prevista no art. 141, § 28, da constituição de 1946.111

110 constituição de 1946:“Art. 101. Ao Supremo Tribunal Federal compete:(...)II — julgar em recurso ordinário:(...)c) os crimes políticos;”

111 constituição de 1946:“Art. 141. A constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a

inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à proprie-dade, nos termos seguintes:

(...)

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Memória Jurisprudencial

A causa se referia a crimes cometidos por japoneses e descendentes que residiam no interior do Estado de São Paulo, após o fim da 2ª Guerra Mundial, e reuniam-se em uma sociedade secreta (Shindo Renmei). Esta era divulgada como beneficente, mas tinha o objetivo de punir os japoneses que aceitassem que o Japão havia perdido a guerra e fizessem propaganda derrotista do Japão ou de seu imperador. Seus membros chegaram a cometer diversos crimes, havendo um ramo da organização conhecido como Toko-Kai (pelotão suicida), encarregada de homicídios.112

O processo envolvia diversos acusados, incursos no art. 288 e parágrafo único do código Penal (crime de quadrilha ou bando), sendo que a denúncia foi recebida e posteriormente aditada como tendo os réus incursos nos crimes do art. 171 (estelionato) do código Penal e art. 3º, inciso 26,113 do Decreto-Lei 431, de 18 de maio de 1938 (que define crimes contra a personalidade internacional, a estrutura e a segurança do Estado e contra a ordem social). O processo seguiu no juízo estadual presidido por um juiz do Estado de São Paulo, e diversos inci-dentes processuais ocorreram (prisão preventiva, diligências, etc.), envolvendo os 34 denunciados. O juiz proferiu a sentença, absolvendo uns e condenando outros, sendo um deles condenado também por tentativa de homicídio (art. 121 do código Penal). A maioria dos condenados, de acordo com a sentença, havia cometido o crime previsto no Decreto-Lei 431/1938 (crime político). Os réus e o promotor apelaram. O juiz determinou a subida dos autos ao STF em 27

§ 28. é mantida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, contanto que seja sempre ímpar o número dos seus membros e garantido o sigilo das votações, a plenitude da de-fesa do réu e a soberania dos veredictos. Será obrigatoriamente da sua competência o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.”112 No Hc 30.166/SP, de 30-1-1948, o STF decidiu pela concessão de habeas corpus a um cida-dão japonês (Shogoro Ogura) acusado de espionagem, pertencente à associação secreta Shindo Renmei. O Ministro Hahnemann Guimarães votou no sentido da não-expulsão. Porém, a decisão do STF para a concessão do habeas corpus se deu em virtude do excesso de prazo prisional, sem prejuízo do prosseguimento do processo de expulsão.113 O Decreto-Lei 431/1938 foi revogado pela Lei 1.802, de 5-1-1953, e dispunha de seguinte forma:

“Art. 1º Serão punidos na forma desta lei os crimes contra a personalidade internacional do Estado; a ordem política, assim entendidos os praticados contra a estrutura e a segurança do Estado, e a ordem social, como tal considerada a estabelecida pela constituição e pelas leis relativamente aos direitos e garantias individuais e sua proteção civil e penal, ao regime jurídico da proprie-dade, da família e do trabalho, à organização e ao funcionamento dos serviços públicos e de utilidade geral, aos direitos e deveres das pessoas de direito público para com os indivíduos, e reciprocamente.

(...)Art. 3º São ainda crimes da mesma natureza:(...)26) divulgar por escrito, ou em público, notícias falsas, sabendo ou devendo saber que o são,

e que possam gerar na população desassossego ou temor;Pena — 6 meses a 1 ano de prisão;”

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Ministro Hahnemann Guimarães

de agosto de 1947. O Procurador-Geral da República entendeu que se tratava de crime político, sendo competente o STF, e pelo provimento da apelação do Ministério Público (que se opunha à absolvição de treze réus e à não-condena-ção de todos nos crimes apontados na denúncia).

A Acr 1.420/SP veio a julgamento em 8 de setembro de 1948, no Pleno, sendo Presidente o Ministro José Linhares e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, que em seu voto, na preliminar, a respeito do enquadramento do crime como sendo político, assim se manifestou:

Os fatos expressamente constantes da denúncia e de seus aditamentos foram, segundo o preceito do art. 383 do código de Processo Penal, definidos como incitamento ou preparação de atentado contra a pessoa, ou bens por moti-vos políticos ou religiosos (Decreto-Lei 431, art. 3º, 16).

A definição foi exata, porque, em obediência a convicções políticas, que excluíam admitir-se a derrota do Japão, os condenados exerceram atividade ter-rorista, como demonstrou a sentença apelada.

O crime é político, porque, pelo atentado que se incita contra a pessoa ou seu patrimônio, se procura sufocar a liberdade assegurada à expressão de dou-trinas, de convicções políticas ou religiosas.

O bem lesado, a liberdade de opinião, de convicções, empresta ao delito caráter político, que também é inerente, no caso, no elemento subjetivo, pois os agentes procuravam um fim político, patriótico, que se tornou censurável pelo emprego da violência e por serem falsas as idéias defendidas.

cabe, portanto, ao Supremo Tribunal Federal julgar, em recurso ordiná-rio, esse crime (constituição, art. 101, II, o).

Nesse ponto, o Ministro Hahnemann Guimarães sustentou que não se poderia admitir a existência de estelionato ou quadrilha, “porque os fatos cons-titutivos desses crimes passaram a ser elementos para a atividade terrorista, que se tornou delito complexo.” E prosseguiu dizendo que a sentença estava soli-damente fundamentada nos fatos e atendia rigorosamente à lei, quer na parte condenatória, quer na absolvição. Ela merecia reparos somente na parte relativa ao acusado de tentativa de homicídio, onde deveria ser reformada, já que, con-forme “[d]ispõe o citado n. 16 do art. 3º do Decreto-Lei 431, [...] ‘se o atentado se verificar’, aplicar-se-á a pena de crime incitado ou preparado”.

Votando na seqüência, o Ministro Laudo de camargo também entendeu tratar-se de crime político, mantendo a competência do STF para a apelação. O Ministro Barros Barreto expressou o entendimento contrário, baseando-se em experiência própria, como ex-Presidente do extinto Tribunal de Segurança Nacional. Entendeu que a atividade das aludidas associações secretas japone-sas não se configurava crime político, mas tão somente crime comum, previsto no código Penal, pois não teria havido atentado, ainda que indireto, contra a personalidade internacional do Estado, e outras hipóteses da lei específica.

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Memória Jurisprudencial

Diante dessa questão, o Ministro Annibal Freire, em seu voto, expôs uma longa digressão sobre a dificuldade de se definir crime político:

A noção de crime político continua a desafiar a argúcia e penetração dos doutrinadores.

Von Liszt afirmou, há dezenas de anos:Em toda parte se observa este fenômeno: só lentamente e depois de

repetidos reviramentos de opinião, a legislação e ciência chegam a uma discriminação firme e jurídica das diversas espécies de crime político.(Tratado de direito penal alemão, tradução de José Higino, 1899.)O discurso do tempo não permitiu que se concretizasse em fórmulas defi-

nitivas a afirmação do insigne tratadista. Perdura a complexidade do assunto, pelas várias modalidades que a figura delituosa apresenta.

E seguiu citando outros autores como Donnedieu de Vabre e Florian. Por fim, destacou o efeito desestruturante do objetivo das associações, consi-derando a 2ª Guerra e suas repercussões, o que garantiria o enquadramento da espécie em crime político.

O Ministro Armando Prado, em longo voto, teceu argumento baseado na possibilidade de infiltração como tática de guerra, admitindo que tais acon-tecimentos representavam “gravíssimos” perigos para a segurança nacional e chegando a afirmar: “O que os membros da quadrilha sinistra andaram fazendo foi tudo quanto do mais diretamente podiam cometer contra os interesses vitais do Brasil, contra a tal segurança até mesmo internacional”. Prosseguindo nessa linha, concluiu pela existência de crime político.

O Ministro Ribeiro da costa seguiu o Relator e os outros votos com a mesma conclusão. O Ministro Edgard costa dissentiu do Relator, alinhando-se ao voto do Ministro Barros Barreto sob o argumento de que “os acusados não pretenderam substituir, com a prática do delito, a qualquer autoridade pública, nem, de qualquer modo, atentarem contra os direitos primários do estado, da sua integridade, da sua própria segurança”, admitindo, contudo, que os atos pra-ticados podem ser considerados como atos de terrorismo. O Ministro Goulart de Oliveira aderiu ao voto do Relator. O Ministro Orozimbo Nonato disse que, embora a questão já estivesse decidida, exercia o seu dever de votar, e o fez no sentido do voto do Relator, aduzindo diversos argumentos no mesmo sentido e concluindo que se tratava de crime político por ser perturbador da ordem social.

Assim, os atos cometidos pelos integrantes das associações secretas japo-nesas foram considerados incursos no conceito de crime político, de acordo com voto do Relator, o Ministro Hahnemann Guimarães, e a corte passou a exami-nar o mérito da questão, decidida a competência do STF.

contudo, havia uma segunda questão processual a ser resolvida em vir-tude do conflito de competência do Tribunal do Júri e do Juízo comum, especi-ficamente no caso do crime de tentativa de homicídio. O Ministro Hahnemann

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Ministro Hahnemann Guimarães

Guimarães votou excluindo da condenação, por tentativa de homicídio, Naboro Nava, que deveria responder à ação penal em processo dos crimes de competên-cia do Júri, sustentando o seu argumento da seguinte forma:

A disposição do art. 3º, 16, do Decreto-Lei 431 não pode prevalecer, quando o caso é de atentado contra a vida, pois, nos termos do art. 141, § 28, da constituição, competente é o Júri. Essa competência tem que ser reconhecida em face da redação dada pelos arts. 2º e 3º da Lei 263, de 23 de fevereiro de 1948, aos arts. 74, § 1º, e 78, I, do código de Processo Penal.

O Ministro Laudo de camargo deu provimento à apelação da Promotoria incluindo os réus absolvidos no rol dos condenados e negando a dos acusados. Na prática, o voto do Ministro Hahnemann Guimarães não deu provimento expli-citamente a nenhuma das apelações da parte dos réus ou do Ministério Público. Após o voto do Ministro Laudo de camargo, apresentou uma explicação na parte referente à absolvição, na qual, depois de relatar a certeza do juiz da inocência dos absolvidos, o Ministro reiterou que mantinha a sentença nesse sentido, refor-mando-a somente na parte referente ao condenado por tentativa de homicídio, cujo processo, no seu entendimento, deveria pertencer à competência do Júri.

O Ministro Armando Prado votou no sentido de que, em se tratando de crime político, ficaria afastada a competência do Júri, sendo a competência do juiz do processo de crime político, e denegando a apelação da Promotoria pelas razões do Ministro Hahnemann Guimarães. Em seguida, votou o Ministro Ribeiro da costa, que fez uma interessante distinção entre o dolo referido no dispositivo constitucional que garante o Júri para os crimes dolosos contra vida e o dolo do crime político — homicídio com fins políticos, no sentido de que nesse caso o dolo essencial, “primordial”, seria o do crime político e não contra a vida, afastando o texto constitucional. Nas palavras do Ministro Ribeiro da costa:

O crime de que se trata é um crime doloso, mas cuja intenção é de essên-cia política. Assim, parece-me que a natureza de crime político arrasta em si, na matéria da competência, até mesmo os julgamentos do caso em que, com a intenção de praticar um crime político, o agente, com esse, pratica um crime contra a vida, também. Não seria, essencialmente, o delito doloso contra a vida, mas seria, ao contrário, essencialmente, um crime político, no qual se pratica-ram várias outras modalidades de delitos sejam quais forem. Mas, se o móvel inicial do delito é o crime político, parece-me que a competência reservada para o julgamento desse delito deve ser mantida, mesmo em face da preceituação constitucional, que admite, a meu ver, se faça essa distinção.(Grifos no original.)

O Ministro concluiu pela competência do juiz da causa e manteve a parte absolutória da sentença. O Ministro Edgard costa votou com o Relator; con-tudo, após o voto do Ministro Orozimbo Nonato, voltou atrás para entender que a competência era do juiz da causa. Em seguida, votou o Ministro Goulart

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Memória Jurisprudencial

de Oliveira, afirmando não ser da competência do Júri e negando provimento às apelações. O Ministro Orozimbo Nonato negou provimento às apelações, e, para a questão da competência do crime doloso contra a vida, utilizou-se de um engenhoso argumento (que modificou o voto do Ministro Edgard costa e que provocaria uma segunda explicação do Ministro Hahnemann Guimarães) para entender que a competência seria do juiz da causa, com as seguintes palavras:

Porque a constituição do mesmo passo em que dá ao Júri aquela compe-tência obrigatória e exclusiva, atribui ao Supremo Tribunal julgar, em grau de recurso, os crimes políticos. Ora, as decisões do Júri não comportam recurso, em tese. Os seus pronunciamentos são derradeiros, via de regra. O que se tem admitido, data venia, conta o meu modesto modo de entender, é a convocação do Júri para novo julgamento, para a revisão do caso, por ele próprio. Este mesmo entendimento está a mostrar que, no sistema da constituição, os crimes políticos não cabem na competência do Júri porque os seus julgamentos são irrecorríveis. E ao Supremo Tribunal compete, em recuso, julgar os crimes políticos.

Nesse ponto, o Ministro Hahnemann Guimarães aduziu uma segunda explicação:

Senhor Presidente, peço ao Tribunal que não veja na minha obstinação o impulso de uma vaidade. Não estou, entretanto, convencido de que haja incor-rido em erro. Parece-me que devo permanecer fiel à convicção já sustentada, segundo a qual, nos crimes políticos conexos a crime doloso contra a vida, a competência será necessariamente, do Júri. O fato de permitir a constituição, nos crimes políticos, o recurso ordinário para o Supremo Tribunal não exclui essa competência do Júri, porque das decisões do Júri — segundo o art. 593, tal como o esclareceu no art. 8º da Lei 263, de 1948, também haverá apelação para o Supremo Tribunal, visto como a apelação é sempre um recurso ordinário. Ter-se-á, assim, de conciliar a disposição da constituição, no art. 101, inciso II, letra c, onde se incluem os recursos ordinários para o Supremo Tribunal, nos crimes políticos, com a disposição do art. 141, § 28, da mesma constituição.

O Ministro Orozimbo Nonato redargüiu: “Essa apelação de que se trata, não defere ao Tribunal o julgamento dos crimes. Apenas permite uma convoca-ção a que o Júri julgue segunda vez.” O Ministro Hahnemann Guimarães insis-tiu na prevalência do texto constitucional quando estabeleceu a competência do Júri para julgar crimes dolosos contra a vida, contra qualquer outra disposição constitucional, arrematando seu argumento:

Qualquer que seja o colorido que possa ter o crime doloso contra a vida, embora tenha ele o matiz de crime político, a competência do Júri não poderá ser excluída, ainda que o recurso ordinário interposto da decisão do Júri sofra as limitações necessárias, estabelecidas em lei, mesmo porque, quando a constituição admite o recurso ordinário nos crimes políticos, sujeita à determi-nação da lei o cabimento desse recurso.

O Ministro Orozimbo Nonato insistiu no ponto:

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Ministro Hahnemann Guimarães

Só julga os crimes políticos, sem restrição. A meu ver, o intérprete deve considerar este dispositivo com os outros: primeiro, competência do Júri para julgar os crimes comuns; segundo, competência do Supremo Tribunal para jul-gar os crimes políticos. Essa interpretação não é mutiladora do texto, é apenas conciliadora do seus dispositivos.

E novamente redargüiu o Ministro Hahnemann Guimarães:O que a constituição quis afirmar foi que, nos crimes políticos, haveria

recurso ordinário, para o Supremo Tribunal, respeitando-se a soberania do Júri, quando ele se manifesta sobre crimes dolosos contra a vida, embora conexos a crimes políticos. Este é o entendimento que me parece ser defendido em face da constituição e, por assim pensar, Senhor Presidente, e por não descobrir erro no meu raciocínio, continuo a ele fiel, mantendo o meu voto, data venia dos emi-nentes que pensam de modo contrário.

O Ministro Annibal Freire teceu rápidas considerações reforçando o argumento do Ministro Orozimbo Nonato, decidindo também pela compe-tência do juiz da causa nos casos de crimes dolosos contra a vida conexos com crimes políticos e negando provimento às apelações. O Ministro Barros Barreto deu provimento à apelação da Promotoria como o Ministro Laudo de camargo e também pela não-competência do Tribunal do Júri nos casos de crimes políticos.

O Ministro Hahnemann Guimarães foi voto único e vencido na questão de atribuir ao Júri a competência dos crimes dolosos contra a vida conexos com crimes políticos, sendo ambas as apelações rejeitadas por maioria. Assim, parece que o STF deixou de avaliar uma terceira possibilidade de conciliação dos dispositivos do art. 141, § 28, e 101, II, c, consistente no julgamento pelo Tribunal do Júri, com recurso para o STF, que poderia decidir em definitivo, ainda que reformando a sentença, sem necessariamente ter de devolver ao Júri para novo julgamento. Outra consideração que não se viu nos debates foi sobre os dispositivos do art. 141 da constituição de 1946; por constituírem normas de direitos e garantias fundamentais, deveriam sobrepor-se à norma de competên-cia, isto é, regra de competência pela qual, a partir do argumento do Ministro Orozimbo Nonato, defluiu-se um princípio construído a partir do estabeleci-mento pela constituição da competência do STF, em grau de recurso, o que determinaria também a competência da primeira instância.

Quase 10 anos depois, outra decisão importante sobre o tema ocorreu, quando, no julgamento do Rc 1.024/RJ, o STF enfrentou novamente a ques-tão da soberania do Júri em face de crime político. No caso, o Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro fora vítima de homicídio quando em exercício de suas funções, por atos praticados em razão da função exercida pelo secretário do mesmo Tribunal. Isso levaria ao enquadramento do

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Memória Jurisprudencial

ilícito no art. 6º, letra c, da Lei 1.802, de 5 janeiro de 1953,114 que por sua vez deslocou a competência recursal para o STF.115 O Tribunal, ao julgar o recurso de apelação, remeteu o feito ao STF, recebido como recurso criminal.

O caso foi decidido em sessão ocorrida em 7 de agosto de 1957, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato, Relator o Ministro Barros Barreto. O Relator se posi-cionou no sentido de não dar provimento ao recurso, reconhecendo a competência do STF. Seguiram nesse sentido os Ministros Afrânio costa e Vilas Boas, confir-mando este último que, no caso, o juiz a quo julgaria plenamente em primeiro grau e em segunda instância julgaria o STF. O Ministro Nelson Hungria, que votou em seguida, posicionou-se veementemente contra essa solução, propugnando pela absoluta precedência do julgamento pelo Tribunal do Júri em caso de homicídio, salvo em caso de jurisdições especiais (afirmando que, se a Lei de Segurança dispusesse de modo contrário, seria inconstitucional). Nesse ponto, interveio o Ministro Hahnemann Guimarães: “O homicídio doloso é punido, na primeira ins-tância, pelo juiz singular, enquanto que, na segunda, pelo Supremo Tribunal.” Ao que o Ministro Nelson Hungria redargüiu afirmando que o homicídio doloso não poderia ser afetado à competência do juiz singular, salvo na hipótese de jurisdição especial, prosseguindo em seu voto, no que foi várias vezes aparteado. Adiante o Ministro Hahnemann Guimarães voltou a aparteá-lo: “O STF fica sujeito às limi-tações do Júri?”, ao que o Ministro Nelson Hungria respondeu:

Evidentemente, tem que respeitar a soberania do Júri, assegurada, de modo irrestrito, categórico, pela constituição Federal. Sempre que há crime político, em conexidade com homicídio doloso, o Supremo Tribunal funciona como Tribunal de apelação e fica distrito ao preceito constitucional segundo o qual os veredictos do Júri são soberanos.

O Ministro Nelson Hungria seria o único a dar provimento ao recurso. Em seguida, votaram os demais Ministros. O Ministro Hahnemann Guimarães manifestou-se da seguinte forma:

114 Lei 1.802, de 5-1-1953 (Define os crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social, e dá outras providências — Lei de Segurança Nacional):

“Art. 6º Atentar contra a vida, a incolumidade e a liberdade:(...)c) de magistrado, senador ou deputado, para impedir ato de ofício ou função ou em represália

do que houver praticado.Pena: reclusão de 6 a 12 anos aos cabeças e de 3 a 8 anos aos demais agentes, se o fato não

constituir crime mais grave.”115 constituição de 1946:

“Art. 101. Ao Supremo Tribunal Federal compete:(...)II — julgar em recurso ordinário:(...)c) os crimes políticos;”

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Ministro Hahnemann Guimarães

Senhor Presidente, julgo que o fato imputado ao primeiro recorrente constitui delito definido no art. 6º, letra c, da Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953;se deste fato resultou a morte, segue-se que ao juiz será permitido aplicar a pena prevista para o homicídio doloso, como se estabelece no mesmo art. 56, mas, por ser permitido ao juiz aplicar essa pena de homicídio doloso, não se segue que compita ao Tribunal do Júri o julgamento do caso.

Estou, aliás, resumindo o que disse em seu brilhante voto o eminente Sr. Ministro Luiz Gallotti; a soberania do Tribunal do Júri, estabelecida no art. 141, § 28, da constituição Federal, é incompatível com o poder amplo que tem este Supremo Tribunal de apreciar recurso ordinário para ele interposto, nos termos do art. 101, inciso II, c, da constituição. Não é possível que ao Supremo Tribunal se apliquem as restrições estabelecidas pelo artigo 593 do código de Processo Penal, com a redação que lhe deu a Lei 263, de 23-2-1948. Daí resulta que não entendo possível o Supremo Tribunal fique no juízo de apelação subor-dinado às limitações estabelecidas para os recursos das decisões do Júri.

Se o juízo de apelação é de decisão proferida pelo Tribunal do Júri, evi-dentemente esse juízo tem que ficar sujeito às limitações impostas por esta sobe-rania nos termos do art. 593 do código de Processo Penal.

O eminente Sr. Ministro Nelson Hungria aceita um rebaixamento que me parece impossível de admitir. Para evitar a incoerência do sistema constitu-cional, temos que chegar à conclusão de que a competência para julgar o caso em primeira instância há de ser, necessariamente, do juiz singular, para que o juízo da apelação se faça neste Supremo Tribunal como juízo de apelação sem nenhuma restrição.

Data venia, do eminente Sr. Ministro Nelson Hungria, acompanho o eminente Sr. Ministro Relator, negando provimento ao recurso.

DISTINÇÃO ENTRE ABSOLVIÇÃO DA INSTâNCIA PENAL E DA AÇÃO PENAL

No Hc 31.682/DF, julgado em 29 de agosto de 1931, sendo Presidente José Linhares e Relator o Ministro Lafayette de Andrada, o STF decidiu por maioria dos votos negar o pedido de habeas corpus, por ter sido considerada a inexistência de coação ilegal. contudo, o Ministro Hahnemann Guimarães, em seu voto vencido, fez uma importante distinção entre absolvição da instância penal e absolvição da ação penal, expressando-se da seguinte forma:

Senhor Presidente, o paciente não foi absolvido da instância penal; foi absolvido da ação penal. Se tivesse havido absolvição da instância, nos termos do art. 43, parágrafo único, do código de Processo Penal, possível seria a reno-vação da causa criminal. Mas foi apreciado o mérito; o paciente foi absolvido da ação penal, pelo fato indicado pelo titular da ação, a parte ofendida. Mediante representação desta, o Ministério Público passou a ser o titular da ação penal. Foi o paciente denunciado como autor dos crimes definidos no art. 13 e no art. 14 do Decreto 24.776, de 14 de julho de 1934. Destes crimes, foi absolvido. Porque se considerou extinta a punibilidade pela prescrição. Foi apreciado o mérito da causa, num dos requisitos fundamentais da tutela jurídica, isto é, a existência da própria ação. considerou-se inadmissível a ação; ela foi rejeitada, porque ocorreu a prescrição, prevista no art. 48 do citado Decreto 24.776. Ora,

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Memória Jurisprudencial

se, pelo fato indicado pelo titular da ação penal, foi o paciente absolvido da ação, não é possível que se renove ela por qualquer outra figura jurídica atribuída ao mesmo fato. Assim, considerando inadmissível a renovação, a repetição da ação penal, dada a existência de um julgado pelo titular da ação penal, concede a ordem, entendendo que há coação ilegal. Não é possível repetir a ação penal pelo mesmo fato, de que foi absolvido o paciente.

NULIDADES — REPRESENTAÇÃO SUJEITA A RATIFICAÇÃO

No RE criminal 9.951, decidido em 15 de junho de 1948, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, o STF discutiu a extensão dos efeitos quando há defeito de representação do que-relante, o que pode suscitar anulação do processo. Em seu voto, no qual conhe-ceu do recurso extraordinário e lhe deu provimento, o Ministro Hahnemann Guimarães mencionou os arts. 564, I, e 568 do código de Processo Penal116 e manifestou-se do seguinte modo:

Esta disposição foi violada em sua letra, porque o defeito dos poderes do representante torna o processo penal anulável. Somente poderá, entretanto, ser declarado nulo o processo, se o representante não obtiver a ratificação dos atos processuais praticados com os poderes falhos. Se a nulidade é sanável, incumbe ao juiz ordenar a diligência para que se depure o processo (cf. código de Processo Penal, art. 502).

O Ministro Orozimbo Nonato sustentou que a ratificação dava ao man-dato o alcance de um mandato ex post, não se tratando de ato anulável, mas de ato incompleto. Porém, como havia sustentado o Relator, pelo código de Processo Penal, pode o juiz determinar que a parte mostrasse que seu procura-dor tinha poderes suficientes, tratando-se, portanto, de questão de legitimidade de representação. O processo foi devolvido ao Tribunal de Justiça para o julga-mento da causa, sanada pela ratificação do defeito de representação.

RECORRIBILIDADE DAS DECISõES DO JúRI — SOBERANIA DOS VEREDICTOS

No Hc 29.840/RN, julgado em 20 de janeiro de 1947, Presidente o Ministro José Linhares, Relator designado o Ministro Orozimbo Nonato e

116 Os dispositivos do cPP têm a seguinte redação:“Art. 564. A nulidade ocorrerá nos seguintes casos:I — por incompetência, suspeição ou suborno do juiz;II — por ilegitimidade de parte;(...)Art. 568. A nulidade por ilegitimidade do representante da parte poderá ser a todo tempo

sanada, mediante ratificação dos atos processuais.”

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Ministro Hahnemann Guimarães

Relator para o acórdão o Ministro Hahnemann Guimarães, a discussão teve por foco o art. 593, inciso II, b, do código de Processo Penal, no sentido de ser cabível ou não apelação e, neste caso, se haveria novo Júri ou a correção pelo juiz togado.

O art. 593, inciso II, b, do código de Processo Penal vigente à época, dispunha:

Art. 593. caberá apelação:(...)III — das decisões do tribunal do júri, e fundada nos seguintes motivos:(...)b) injustiça da decisão dos jurados, por não encontrar apoio algum nas

provas existentes nos autos ou produzidas em plenário;117

Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães sustentou:A soberania do Júri não é incompatível com o princípio da dupla instân-

cia. Já se reconheceu, neste Tribunal, em caso ontem julgado, de Edson Prata, que está em vigor da disposição do art. 593 do código de Processo Penal. O que se considerou revogado foi o disposto no art. 606118 do mesmo código, que per-mite ao Tribunal de Justiça rever a decisão do Júri impugnada. O projeto que o Senado acaba de aprovar e remeter à câmara dos Deputados consigna, entre os casos de apelação, a má apreciação da prova feita pelo Júri, atribuindo à ins-tância de apelação a faculdade de determinar que o réu seja submetido a novo julgamento. A decisão desse Tribunal coincide perfeitamente com a legislação que se está elaborando.

De acordo com meus votos anteriores, nego a ordem.

A questão se pautava no restabelecimento da soberania do Júri popular pela constituição de 1946 (art. 141, § 28), e a posição do Ministro Hahnemann Guimarães modificou a jurisprudência do STF, mas adequando-a de forma que fosse possível a revisão da decisão do Tribunal do Júri, sem, contudo, tolher-lhe a autonomia. Neste sentido, foi lavrada a ementa do acórdão do Hc 29.840/RN:

117 O cPP de 1941, ainda hoje vigente, sofreu diversas alterações; o art. 593 teve nova redação dada pela Lei 263, de 23-2-1948, sendo que o dispositivo correspondente ao 593, inciso II, b, passou a constar do art. 593 sob a seguinte redação:

“Art. 593. caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias:(...)III — das decisões do Tribunal do Júri, quando:(...)d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.”

118 Dizia art. 606 do cPP (o dispositivo seria revogado posteriormente pela Lei 263, de 23-2-1948):“Art. 606. Se a apelação se fundar no nº III, letra b, do art. 593, e o Tribunal de Apelação

se convencer de que a decisão dos jurados não encontra apoio algum nas provas existentes nos autos, dará provimento à apelação para aplicar a pena legal, ou absolver o réu, conforme o caso.

Parágrafo único. Interposta a apelação com fundamento no nº III, letra c, do art. 593, o Tribunal de Apelação, dando-lhe provimento, retificará a aplicação da pena ou da medida de segurança.”

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Memória Jurisprudencial

Não é contrária à soberania dos veredictos do Júri a apelação interposta com fundamento no código de Processo Penal, art. 293, b, desde que a estância superior, dando provimento ao recurso, há de mandar que o réu seja submetido a julgamento de novo Júri.

Alguns dias depois do julgado, a questão foi novamente posta ao STF, no Hc 29.903/MA, julgado em 3 de setembro de 1947. Sob a presidência do Ministro José Linhares e relatoria do Ministro Laudo de camargo, o Ministro Hahnemann Guimarães, tendo sido designado como Relator para o acórdão, lavrou a seguinte ementa:

Se a apelação se fundar no art. 593, III, b, do código de Processo Penal, e o Tribunal de Justiça se convencer de que a decisão dos jurados não encontra apoio algum nas provas existentes nos autos, mandará o réu a novo Júri.

O voto do Ministro Hahnemann Guimarães reiterou a argumentação do julgado anterior nos seguintes termos:

Senhor Presidente, lamento divergir do eminente Sr. Relator, mas consi-dero vigente a disposição do art. 593 do código de Processo Penal, que admite a apelação das decisões do Júri proferidas conta a evidência da prova constante do processo. concedo a ordem, apenas, para cassar a decisão [do Tribunal], a fim de que o Tribunal de Justiça julgue a apelação e, se verificar que a decisão dos jura-dos não encontra apoio algum nas provas do processo, mande o réu a novo Júri.

A posição prevalecente e defendida pelo Ministro Hahnemann Guimarães reveste-se de importância para o Direito Processual Penal, pois seu diapasão é ainda hoje o parâmetro usado pelo STF para decisões em casos semelhantes.119

119 Ver, e.g., o Hc 73.721/RJ, julgado em 24-6-1996, Relator o Ministro carlos Velloso, bem como o Hc 82.103/RJ, julgado em 27-8-2002, Relator o Ministro Sydney Sanches.

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Ministro Hahnemann Guimarães

18. PROCESSUAL DO TRABALHO

AFASTABILIDADE DO INTERESSE DA UNIÃO EM CAUSAS TRABALHISTAS DE EMPRESAS DA UNIÃO

No AI 14.155/DF, julgado em 26 de maio de 1950, sob a presidência do Ministro Orozimbo Nonato e relatoria do Ministro Macedo Ludolf, o STF firmou entendimento de que, sendo aplicável, por força do Decreto-Lei 8.249, de 29 de novembro de 1945, a legislação do trabalho, fica excluído o interesse da União Federal na causa (a reclamada era a companhia de Navegação costeira, de pro-priedade da União). O art. 7º da cLT dizia:

Art. 7º Os preceitos constantes da presente consolidação, salvo quando for em cada caso, expressamente determinado em contrário, não se aplicam: (com redação dada pelo Decreto-Lei 8.079, 11-10-1945)

(...)Parágrafo único. Aos trabalhadores ao serviço de empresas industriais da

União, dos Estados e dos Municípios, salvo aqueles classificados como funcioná-rios públicos, aplicam-se os preceitos da presente consolidação.

O dispositivo do parágrafo único foi incluído pelo Decreto-Lei 8.079, de 11 de outubro de 1945, e revogado pelo Decreto-Lei 8.249, do mesmo ano. Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães reverteu a posição do Relator inicial, convertendo-se em Relator para o acórdão, tendo sido seu voto lavrado nos seguintes termos:

Senhor Presidente, data venia, nego provimento ao agravo. O empregado foi admitido em 1918; conseguintemente, suas relações com a empresa emprega-dora estavam subordinadas à legislação trabalhista, de acordo com o Decreto-Lei 8.249, de 29 de novembro de 1945. Se aplicável era a legislação trabalhista, se competente era a jurisdição trabalhista, não era possível que interviesse, na causa, a União, interviria nela a autarquia pelos seus representantes competentes. A empresa competente far-se-ia representar na causa pelos seus representantes próprios, não pelos Procuradores da República.

Não há, assim, como enxergar no caso ofensa à letra do art. 126, parágrafo único, da constituição, onde se estabelece que a União será representada em juízo pelo Procuradores da República. No caso, não é a União que está em juízo, mas a empresa; o que a própria lei estabelece é que os empregados da empresa anterio-res à incorporação estão sob o regime da legislação trabalhista; competente, por-tanto, para apreciar o dissídio entre empregado e empregador, ou seja, a empresa em causa, é a Justiça Trabalhista, na qual não há lugar para a intervenção dos Procuradores da República.

A empresa é patrimônio nacional, mas, neste caso, se exclui esta quali-dade, para dar-se lugar à aplicação do direito trabalhista pela Justiça Trabalhista, onde há um Ministério Público organizado. Não há, assim, lugar para a inter-venção dos Procuradores da República, em litígio trabalhista; ou a lei excluiria o litígio da competência da Justiça Trabalhista, ou, se a ela o remete, é para excluir a intervenção da União na causa. A União não é interessada na causa, em virtude

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da própria lei, mas a empresa, apenas. Logo, é esta que está interessada na decisão do litígio trabalhista, porque, se fosse a União, não se aplicaria a legislação tra-balhista, mas o regime próprio dos servidores públicos. é que a própria lei criou um regime distinto, segundo se tratasse de empregado anterior à incorporação, ou a ela posterior. Este Tribunal já teve ensejo de apreciar o caso; é a própria lei que exclui o interesse da União; a lei declara que a União não tem interesse na causa.

é, por conseguinte, por força do próprio sistema criado pelo decreto-lei referido que não é possível a intervenção, na causa, dos Procuradores da República. A empresa tem advogados próprios, administração própria; não podia, pois, ser representada pelos Procuradores da República.

PRINCíPIO DA IDENTIDADE FíSICA DO JUIz

No AI 14.383/DF, julgado em 18 de julho de 1950, sob a presidência do Ministro Orozimbo Nonato e relatoria do Ministro Rocha Lagôa, o STF entendeu que o princípio da identidade física do juiz será, tanto quanto possível, observado na primeira instância da Justiça do Trabalho. O Ministro Hahnemann Guimarães reverteu a posição do Relator inicial, convertendo-se em Relator para o acórdão, com voto lavrado nos seguintes termos:

Senhor Presidente, data venia, divirjo do eminente Sr. Ministro Relator.A agravante funda a sua pretensão em que o acórdão do Tribunal Superior

do Trabalho teria infringido as disposições do art. 11, do art. 649 e do art. 912 da cLT, além de haver discordado da jurisprudência antiga do próprio Tribunal Superior do Trabalho.

como assinalou, entretanto, com toda exatidão, o Presidente, em seu despacho denegatório, não há como conhecer este Tribunal da divergência dos próprios órgãos da Justiça do Trabalho, competindo, sem dúvida, ao Tribunal Superior do Trabalho a obra unificadora dessa jurisprudência.

Quanto à infração do art. 649 da consolidação, não a encontro caracte-rizada120. Realmente, este Tribunal já entendeu que o princípio da identidade física do juiz deve ser observado na Justiça do Trabalho, dada a oralidade do seu processo, na primeira instância. Ora, a oralidade do processo acarreta a concentração dele, traz como conseqüência a necessidade de que o juiz deve ser o mesmo, cumprindo observar-se, pois, o princípio da identidade física do juiz, isto tanto quanto possível. Daí por que não entendo que tenha ocorrido infração da letra do art. 649, por se haver mandado o Presidente da Junta de conciliação e Julgamento. Já que esses cargos não são vitalícios, não há como exigir-se, de maneira absoluta, a conservação do juiz no cargo. O art. 649 deve ser entendido tendo-se presente a variedade, a possibilidade de variarem os membros da Junta

120 cLT:“Art. 649. As Juntas poderão conciliar, instruir ou julgar com qualquer número, sendo, po-

rém, indispensável a presença do Presidente, cujo voto prevalecerá em caso de empate. (Redação dada pelo Decreto-Lei 8.737, de 1946.)

§ 1º No julgamento de embargos deverão estar presentes todos os membros da Junta. (Redação dada pelo Decreto-Lei 8.737, de 1946.)

§ 2º Na execução e na liquidação das decisões funciona apenas o Presidente.”

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Ministro Hahnemann Guimarães

de conciliação e Julgamento. Não há, pois, infração da letra do preceito, que diz que as Juntas poderão conciliar, instruir ou julgar com qualquer número, sendo, porém, indispensável a presença do Presidente, cujo voto prevalecerá em caso de empate. Daí não resulta a necessidade irremovível de que o Presidente da Junta seja sempre o mesmo; que se observe o princípio da identidade física quanto a ele; observar-se-á, como assinalou a jurisprudência deste Tribunal, tanto quanto possível este princípio, porque o processo é oral na primeira ins-tância da Justiça do Trabalho.

No mérito, o Ministro Hahnemann Guimarães manifestou-se pelo não-provimento do agravo na mesma esteira do TST. A decisão, entretanto, foi no sentido de dar provimento ao agravo.

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Memória Jurisprudencial

19. TRABALHO

CULPA GRAVE E DOLO PARA ATRIBUIÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Nos embargos ao RE 23.192/RJ, julgado em 2 de junho de 1961, Presidente o Ministro Ribeiro da costa, Relator o Ministro Henrique D’Ávila, o STF con-siderou que, apesar da exigência de ocorrência do dolo para ação indenizatória comum, não é lícito esquecer que a culpa grave se equipara ao dolo. Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães, após o voto do Relator, expôs seu ponto de vista:

Senhor Presidente, eu me filio à corrente dos que entendem que a expres-são “dolo” de que usa o Decreto-Lei 7.036, de 10 de novembro de 1944, no art. 31, não pode ser entendida no sentido de culpa, porque, doutro modo, resul-tará antinomia no sistema legal. O art. 159 do código civil admite que, por sim-ples culpa, seja o autor do dano responsável pela reparação. Ora, sendo assim, o empregado podia pedir a responsabilidade do empregador por culpa, com base no art. 159; e não poderia fazê-lo em face do art. 31 a que me referi.

O Ministro Luiz Gallotti aparteou: “‘culpa’, em sentido amplo, pode abranger dolo e culpa em sentido estrito. Mas o que não será possível, a meu ver, é, onde está escrito dolo, se leia culpa em sentido estrito.” O Ministro Hahnemann Guimarães prosseguiu:

Doutro modo, digo eu, resultaria que o Decreto-Lei 7.036 prejudicaria a situação do operário, porque, se não houvesse legislação especial, o art. 159 do código civil lhe permitiria pedir a reparação pelo dano culposo. Deste modo, o Decreto-Lei 7.036 importaria em grave desfavor para o operário.

O Ministro Gonçalves de Oliveira interveio:Fui advogado de uma companhia de ônibus, tendo sido Relator o emi-

nente Sr. Ministro castro Nunes. Um menor, empregado da companhia, foi atrás de um ônibus apanhar umas ferramentas; o chofer deu marcha a ré e o atropelou. Ele quis propor ação de indenização contra a companhia e o Supremo Tribunal Federal a admitiu.

O Ministro Hahnemann Guimarães retomou a palavra nos seguintes termos:

Se não houvesse a legislação especial para os acidentes de trabalho, o operário poderia pedir a indenização pelo direito comum, nos termos do art. 159 do código civil.121 Ora, da legislação especial não pode resultar desfavor para o operário, que a lei visa proteger.

121 código civil de 1916:“Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar

direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano.”

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Ministro Hahnemann Guimarães

O Ministro Luiz Gallotti aparteou novamente:A lei sobre acidentes favorece o operário porque cria um sistema especial

de indenização, onde não se exige dolo nem culpa do patrão. é a teoria do risco. E pelo art. 31 dessa lei, derrogatório do art. 159 do código civil no tocante a acidente do trabalho, expressamente se exclui em tal caso a indenização pelo direito comum, salvo se o acidente resultou de dolo do patrão ou de seus pre-postos. O que não considero possível é ler “culpa”, quando a lei fala em “dolo”.

O Ministro Hahnemann Guimarães divergiu: “Ouso divergir, porque, doutro modo, criaremos, no sistema legal, grave contradição em desfavor do empregado, que o Decreto-Lei 7.036 quer proteger.” E o Ministro candido Motta aparteou: “Devemos interpretar a lei de acordo com o interesse social”. Em seguida, o Ministro Luiz Gallotti interveio: “Mas não podemos alterar a lei, data venia.” Diante disso, concluiu o Ministro Hahnemann Guimarães: “Assim, torna-se nulo, em favor do operário, o art. 159 do código civil, que é genera-líssimo, abrangendo a reparação pelo dano, por mais leve que seja a culpa”. O Ministro Luiz Gallotti rebateu: “A lei de acidentes é posterior ao código civil”. Novamente contestou Hahnemann Guimarães:

Mas veio para proteger o operário, não veio para prejudicar. O código civil é mais protetor do empregado. Então, seria melhor para o empregado que não tivesse vindo o decreto-lei especial.

O Ministro Luiz Gallotti insistiu:A lei especial de acidentes de trabalho, posterior ao código, favorece o

empregado em grande parte. Se, num ponto, o prejudica, nós não podemos fazer uma terceira lei, tirando um pedaço de cada uma.

O Ministro Hahnemann Guimarães, então, finalizou seu voto: “O que desejo estabelecer é a unidade do sistema legal. Recebo, pois, os embargos.” O Pleno do STF decidiu nesta linha, após a reversão do voto do Relator, Ministro Henrique D Avila, que inicialmente não recebia os embargos, e fez uma recon-sideração do voto, assumindo a linha da decisão do Ministro Hahnemann Guimarães. A decisão final foi unânime. A decisão do RE 23.192/RJ é uma das bases da Súmula/STF 229, aprovada em sessão plenária de 13 de dezembro de 1963, que estabelece: “A indenização acidentária não exclui a do direito comum, em caso de dolo ou culpa grave do empregador.”

DEMISSÃO DE ADMINISTRADOR SINDICAL E FALTA GRAVE

No RE 45.612/SP, julgado em 16 de janeiro de 1952, Presidente o Ministro Lafayette de Andrada e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, a Segunda Turma do STF considerou que o empregado, no exercício de cargo da

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Memória Jurisprudencial

administração sindical, não poderia ser despedido sem apuração de falta grave. O TST havia condenado a reclamada a pagar a indenização simples, reformando o acórdão do Tribunal Regional, que confirmara a decisão da Junta, pela qual houvera sido concedida a reintegração do reclamante. Em embargos, foi resta-belecida a decisão do Tribunal Regional, em virtude da estabilidade provisória garantida na cLT a administradores sindicais. De acordo com o § 3º do art. 543 da cLT: “é vedada a dispensa do empregado sindicalizado, a partir do momento do registro de sua candidatura a cargo de direção ou representação sindical, até 90 (noventa) dias após o final do seu mandato, caso seja eleito, inclusive como suplente, salvo se cometer falta grave devidamente apurada nos termos desta consolidação” (redação vigente à época). A reclamada argüiu violação da cLT, por seu art. 494, e dissídio de jurisprudência. O mencionado art. 494 diz: “O empregado acusado de falta grave poderá ser suspenso de suas funções, mas a sua despedida só se tornará efetiva após o inquérito em que se verifique a pro-cedência da acusação.” Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães exarou o seguinte entendimento:

conheço do recurso pelo dissídio apontado, e lhe nego provimento. Da cLT, art. 543, § 3º, resulta que o empregado, no exercício de cargo da admi-nistração sindical, não pode ser despedido sem a apuração de falta grave.

A decisão foi unânime, confirmando que o empregado, no exercício de cargo da administração sindical, não pode ser despedido sem apuração de falta grave, apurada por inquérito. Tal decisão é uma das bases da Súmula/STF 197: “O empregado com representação sindical só pode ser despedido mediante inquérito em que se apure falta grave”, aprovada em sessão plenária de 13 de dezembro de 1963.

DEMISSÃO POR FALTA GRAVE E PARTICIPAÇÃO EM GREVE

O problema do reconhecimento de falta grave cometida por empregado que participou de greve foi enfrentada pelo STF no RE 48.805/SP, julgado em 24 de outubro de 1961, Presidente o Ministro Lafayette de Andrada e Relator o Ministro Vilas Boas, sendo Relator para o acórdão o Ministro Victor Nunes. A empresa, considerada do ramo de segurança essencial ao País, demitiu fun-cionários grevistas, devido a greve iniciada após o ajuizamento de dissídio coletivo. Os funcionários teriam sido demitidos simplesmente por terem par-ticipado do movimento (não eram lideranças). O Tribunal Regional decidiu contra os empregados, e o TST reverteu a decisão. consta que alguns funcio-nários teriam sido perdoados pela empresa, sem sofrer penalidades. A empresa recorreu da decisão por via de recurso extraordinário. Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães posicionou-se contra o voto do Relator e exarou o seguinte entendimento:

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Ministro Hahnemann Guimarães

Senhor Presidente, data venia do eminente Sr. Ministro Relator, nego pro-vimento ao recurso, de acordo com o eminente Sr. Ministro Victor Nunes, porque o dissídio coletivo foi ajuizado, e depois declarada a greve. Tornou-se ela, assim, legal, e alguns operários dela participantes foram perdoados pela empresa.

Nego provimento.

Os Ministros componentes da Segunda Turma negaram provimento, con-tra o voto do Relator, em relação ao problema do reconhecimento de falta grave cometida por empregado que participou de greve. Esse acórdão é uma das bases para a Súmula/STF 316: “A simples adesão a greve não constitui falta grave”, aprovada em sessão plenária de 13 de dezembro de 1963.

DEMISSÃO POR TRANSFERÊNCIA DO ESTABELECIMENTO OU ExTINÇÃO DA EMPRESA

No RE 52.377/GB, julgado em 22 de outubro de 1963, Presidente o Ministro Ribeiro da costa e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, o STF decidiu sobre questão relativa aos efeitos da extinção de uma empresa sobre seus empregados estáveis. Quanto a isso, a cLT estabelece em seu art. 498:

Art. 498. Em caso de fechamento do estabelecimento, filial ou agência, ou supressão necessária de atividade, sem ocorrência de motivo de força maior, é assegurado aos empregados estáveis, que ali exerçam suas funções, direito à indenização, na forma do artigo anterior.122

No caso, a reclamada havia fechado estabelecimento no Estado da Guanabara (atual Rio de Janeiro), pretendendo transferir os empregados recla-mantes para São Paulo, sem que houvesse sido caracterizada força maior. O feito chegou ao TST, que rejeitou os embargos da reclamada (condenada a pagar a indenização em dobro — art. 497 da cLT, inclusive calculada sobre as gratifica-ções e a parte variável do salário), que recorreu por via de recurso extraordinário, alegando que havia dissídio jurisprudencial, e que fora violado o art. 469, § 2º, da cLT.123 Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães sustentou:

122 Diz o art. 497 da cLT:“Art. 497. Extinguindo-se a empresa, sem a ocorrência de motivo de força maior, ao empre-

gado estável despedido é garantida a indenização por rescisão do contrato por prazo indetermi-nado, paga em dobro.”123 Diz o art. 469, § 2º, da cLT:

“Art. 469. Ao empregador é vedado transferir o empregado, sem a sua anuência, para locali-dade diversa da que resultar do contrato, não se considerando transferência a que não acarretar necessariamente a mudança do seu domicílio.

(...)§ 2º é lícita a transferência quando ocorrer extinção do estabelecimento em que trabalhar o

empregado.”

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Memória Jurisprudencial

Não conheço do recurso, porque, sendo o caso de empregados estáveis e não resultado de força maior a extinção do estabelecimento, havia de se observar o disposto na cLT, art. 498, e não o preceito do art. 469, § 2º.

A decisão da Segunda Turma do STF foi tomada por unanimidade, nos termos do voto do Relator, entendendo que, sendo o caso de empregados estáveis e não resultando de força maior a extinção do estabelecimento, havia de se observar o disposto acerca da transferência do empregado previsto na cLT.

Nos embargos ao RE 43.439/SP, decidido em 20 de janeiro de 1961, pelo Pleno, Presidente o Ministro Barros Barreto e Relator o Ministro candido Motta, tema semelhante foi enfrentando pelo STF. A empregadora alegava que fora obrigada a fechar o estabelecimento na capital do Estado de São Paulo por ordem da Prefeitura Municipal e, por isso, transferira suas ativi-dades para Mogi da cruzes, no mesmo Estado, sendo, portanto, autorizada a levar os empregados, inclusive os estáveis, para o novo estabelecimento. O TST aquiesceu com os argumentos dos empregados, e a reclamada recor-reu ao STF. O feito foi apreciado pela Segunda Turma, em grau de recurso extraordinário, ao qual foi dado provimento. Os empregados deveriam ser notificados a reassumir suas funções em Mogi das cruzes. Diante disso, eles embargaram. Ao analisar o caso, o Relator, Ministro candido Motta, enten-deu que a empresa não se havia transferido quando notificada e só quando achou conveniente, deixando de lado os interesses dos empregados. Os demais Ministros apresentaram posições divergentes em algumas partes e coinciden-tes em outras. Ao votar, o Ministro Hahnemann Guimarães se posicionou da seguinte forma:

Senhor Presidente, não ocorre no caso a extinção do estabelecimento, prevista no art. 469, § 20, da cLT. Também não se dá a necessidade de serviço que obrigasse a transferência. O caso é de mudança do estabelecimento por con-veniência da empresa, como acentuou o acórdão recorrido. é, pois, de se aplicar a disposição do art. 498, da cLT.

O Ministro Vilas Boas aparteou com uma pergunta de caráter provo-cativo: “Não acha Vossa Excelência. que está criando um caso de inamovi-bilidade?” Ao que o Ministro Hahnemann Guimarães respondeu encerrando seu voto: “é isso que a lei quer. Acompanho o Sr. Ministro Relator.” O caso foi decidido por maioria, prevalecendo o entendimento pela recepção dos embargos, favoravelmente aos empregados. Este acórdão e o RE 52.377/GB, já mencionado, são bases da Súmula/STF 221, aprovada em sessão plenária de 13 de dezembro de 1963, com a seguinte redação: “A transferência de estabele-cimento, ou a sua extinção parcial, por motivo que não seja de força maior, não justifica a transferência de empregado estável.”

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Ministro Hahnemann Guimarães

DESCONTO DE FéRIAS POR FALTA AO TRABALHO

No RE 23.217/DF, julgado em 21 de dezembro de 1954, o STF enfren-tou questão relativa à interpretação de dispositivos da cLT que dispunham sobre o gozo de férias pelo empregado, quando houvesse faltas no transcorrer do período aquisitivo. O reclamante entrou com ação na Junta de conciliação e Julgamento contra a reclamada, para que esta fosse condenada a lhe prestar nove dias de férias. A junta rejeitou o pedido com o argumento de que, embora as faltas do reclamante estivessem previstas no art. 134 da cLT, elas determi-navam a redução das férias, de acordo com o art. 132 do mesmo diploma legal. Tais dispositivos tinham a seguinte redação (vigente à época):

Art. 132. Os empregados terão direito a férias, depois de cada período de doze meses, a que alude o art. 130, na seguinte proporção:

a) vinte dias úteis, aos que tiverem ficado à disposição do empregador durante os doze meses e não tenham dado mais de seis faltas ao serviço, justifi-cadas ou não, nesse período;

b) quinze dias úteis aos que tiverem ficado à disposição do empregador por mais de duzentos e cinqüenta dias em os doze meses do ano contratual;

c) onze dias úteis, aos que tiverem ficado à disposição do empregador por mais de duzentos dias;

d) sete dias úteis, aos que tiverem ficado à disposição do empregador menos de duzentos e mais de cento e cinqüenta dias.

Parágrafo único. é vedado descontar, no período de férias, as faltas ao serviço do empregado.

(...)Art. 134. Não serão descontados do período aquisitivo do direito a férias:a) a ausência do empregado por motivo de acidente do trabalho;b) a ausência de empregado por motivo de doença atestada por instituição

de previdência social, excetuada a hipótese da alínea d do artigo anterior;c) a ausência do empregado devidamente justificada, o critério da admi-

nistração da empresa;d) o tempo de suspensão por motivo de inquérito administrativo, quando

o mesmo for julgado improcedente;e) a ausência na hipótese do art. 473 e seus parágrafos;f) os dias em que, por conveniência da empresa, não tenha havido traba-

lho, excetuada a hipótese da alínea c, do art. 133.124

124 cLT:“Art. 133. Não tem direito a férias o empregado que, durante o período de sua aquisição:a) retirar-se do trabalho e não for readmitido dentro dos 60 dias subseqüentes à sua saída;b) permanecer em gozo de licença, com percepção de salários, por mais de 30 dias;c) deixar de trabalhar, com percepção do salário, por mais de 30 dias, em virtude de paralisa-

ção parcial ou total dos serviços da empresa;d) receber auxílio-enfermidade por período superior a seis meses, embora descontínuo.Parágrafo único. A interrupção da prestação de serviços, para que possa produzir efeito legal,

deverá ser registada na carteira Profissional do empregado.”

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Memória Jurisprudencial

O TST, em grau de recurso, julgou procedente a reclamação, com base no art. 134 da cLT. A reclamada, então, interpôs recurso extraordinário, alegando que teria sido ofendido o art. 132, a, da cLT.

O julgamento pela Segunda Turma do STF teve como Presidente o Ministro Orozimbo Nonato e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães. Na ocasião, considerou-se que a duração das férias não ficaria diminuída dos dias que, pela regra da cLT, art. 134, não se deduzem do período aquisitivo do direito a férias. Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães, exarou o seguinte entendimento:

A decisão recorrida não contrariou o disposto na consolidação, art. 132, a, entendendo que a duração das férias não fica diminuída dos dias que, pela regra do art. 134, não se descontam do período aquisitivo do direito a férias.

Não conheço do recurso.

A decisão da Segunda Turma não foi unânime, votando o Ministro Rocha Lagôa contra o conhecimento do recurso extraordinário. Essa decisão, depois corroborada por inúmeras outras no mesmo sentido, foi sumulada pelo STF, correspondendo à Súmula 198, aprovada em sessão plenária de 13 de dezembro de 1963: “As ausências motivadas por acidente do trabalho não são descontáveis do período aquisitivo das férias.”

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Ministro Hahnemann Guimarães

20. TRIBUTáRIO

INCIDÊNCIA DO IMPOSTO SOBRE TRANSMISSÃO DE BENS IMÓVEIS INTER vIvOS (ITBI) NO ExERCíCIO DO DIREITO DE PREEMPÇÃO EM CASO DE DESAPROPRIAÇÃO

Em 1962, o STF julgou um caso relacionado ao Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis Inter Vivos (ITBI) e aos direitos do desapropriado. Trata-se do RE 47.259/SP, decidido em 11 de setembro de 1962, Presidente o Ministro Lafayette de Andrada e Relator o Ministro Ribeiro da costa. A questão que se colocou foi a seguinte: ao exercer o direito de preferência (direito de preempção), o ex-proprietário seria onerado pelo ITBI? O resultado da votação foi no sentido de ser devido o imposto. Somente o Ministro Victor Nunes teve entendimento contrário ao da maioria, no sentido de que o retorno do imóvel correspondia a um desfazimento da desapropriação, não incidindo, portanto, o imposto. Seu ponto de vista foi baseado em voto anterior do Ministro Lafayette de Andrada, ainda sob o domínio de legislação já revogada. O Ministro Hahnemann Guimarães se manifestou a favor da conclusão, mas não por todas as razões alegadas pelo Relator; pois, em seu voto, aquele sustentou que entendia ser compatível o art. 1.150 do código civil125 com o disposto no art. 35 do Decreto-Lei 3.365/1941 sobre a desapropriação,126 sendo que a retrocessão resultaria do direito da preem-pção ou preferência, direito que o expropriado tinha sobre o imóvel retirado do seu patrimônio127:

Mas esse direito de preempção ou preferência não exclui o pagamento do imposto de transmissão da propriedade, porque, com a expropriação, extingue-se o domínio do expropriado e incorpora-se o bem ao patrimônio do expro-priante. Se desse patrimônio é alienado, depois, voltando ao patrimônio do expropriante, há uma transmissão de propriedade, que justifica o pagamento do imposto.

O acórdão constante do RE 47.259/SP foi convertido na Súmula/STF 111, aprovada na sessão plenária de 13 de dezembro de 1963: “é legítima a incidência do imposto de transmissão inter vivos sobre a restituição, ao antigo proprietário, de imóvel que deixou de servir à finalidade da sua desapropriação.”

125 código civil de 1916:“Art. 1.150. A União, o Estado, ou o Município, oferecerá ao ex-proprietário o imóvel desa-

propriado, pelo preço que o foi, caso não tenha o destino, para que se desapropriou.”126 Decreto-Lei 3.365/1941:

“Art. 35. Os bens expropriados, uma vez incorporados à Fazenda Pública, não podem ser ob-jeto de reivindicação, ainda que fundada em nulidade do processo de desapropriação. Qualquer ação, julgada procedente, resolver-se-á em perdas e danos.”127 cÂMARA FILHO, Roberto Mattoso. A desapropriação por utilidade pública. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 1994. p. 477-498.

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Memória Jurisprudencial

ISENÇÃO DE TRIBUTO MUNICIPAL POR CONSTITUIÇÃO ESTADUAL — VEDAÇÃO

A Prefeitura de Belo Horizonte interpôs recurso extraordinário contra acór-dão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que confirmara a sentença de primeira instância reconhecendo a isenção do imposto territorial urbano de bens pertencen-tes ao Banco Hipotecário e Agrícola de Minas Gerais, ao qual o Estado garan tira isenção de todos os tributos estaduais por cinqüenta anos. Entretanto, a garantia da isenção feita pelo Estado ocorrera quando tal tributo era da competência do Estado; porém, com a carta de 1934, tal competência fora atribuída aos Municípios, o que se manteve com a constituição de 1937.128 O STF conheceu do recurso e deu-lhe provimento, sendo Relator o Ministro castro Nunes, em decisão publicada em 15 de julho de 1943, em cuja ementa se lê: “A tributação transferida ao Município, por dis-posição constitucional, não se compreende na isenção fiscal concedida pelo Estado, nada importando o fato de ser atribuído a este o mesmo imposto, em face do sistema constitucional vigente à época da isenção”.129

No mesmo mês da publicação do aresto, o banco embargou da decisão, com embargos de nulidade e infringentes, que foram admitidos pelo Relator limi-narmente. Os embargos foram impugnados, e o Procurador-Geral da República, Themistocles cavalcanti manifestou-se no sentido da confirmação do acórdão. Os embargos vieram a julgamento no Pleno do STF em 24 de agosto de 1950, Presidente o Ministro Laudo de camargo e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, que em seu voto afirmou:

Desprezo os embargos, pois, como acentuou o Sr. Ministro castro Nunes, a isenção dada pelo Estado não pode prevalecer a respeito de tributo que a constituição posterior passou para Município (fl. 106).

As constituições de 1934, arts. 8º, I, a, e 13, § 2º, II, e de 1937, arts. 23, I, a, e 28, II, deram ao Município poder para exigir o imposto territorial urbano. Deixando de existir como tributo estadual, o imposto podia ser cobrado pela Prefeitura, a quem não vinculava a isenção concedida pelo Estado, em 4 de feve-reiro de 1911 (fl. 21, cl. XIII).

Os embargos foram rejeitados unanimemente, reconhecido o conhecimento do recurso extraordinário. À guisa de comentário, poder-se-ia admitir que se tra-tava de isenção de natureza contratual, visto que, por conta das inversões financei-ras feitas pelos investidores, em contrapartida, o Estado teria concedido isenções de seus tributos por determinado prazo. Porém, considerando que, uma vez alte-rada a configuração constitucional das competências, o contrato do Estado não

128 Ver: VALADÃO, Marcos Aurélio Pereira. Evolução da discriminação das rendas tributárias no constitucionalismo brasileiro: aspectos históricos e conceituais. Direito em ação, Brasília/DF, v. 1, 1, p. 57-87, 2000, p. 66-68.129 RE 4.458 (N. E.).

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Ministro Hahnemann Guimarães

poderia estender-se aos impostos cobrados aos Municípios que receberam deter-minado tributo como competência nova. Assim, a solução jurídica para preservar o equilíbrio anterior seria, talvez, o ressarcimento pelo Estado de Minas Gerais dos tributos que tiveram sua competência modificada pela constituição superve-niente, ao Banco que se viu obrigado a arcar com o respectivo ônus.

TAxA DESTINADA à CONSOLIDAÇÃO RODOVIáRIA DO RIO GRANDE DO SUL — VALIDADE

No julgamento dos embargos ao RE 4.503/RS, decidido em 15 de junho de 1950, o STF enfrentou a questão da validade da taxa destinada à consolidação rodoviária do Rio Grande do Sul, após a alteração constitucional de 1937. No caso, a empresa Standard Oil Company of Brazil recorreu com fundamento no art. 101, III, c, da constituição de 1937, porque o Tribunal de Apelação decidira, em acór-dão de 16 de agosto de 1940, ser constitucional a cobrança da taxa destinada à consolidação rodoviária, mediante o fundo especial para as estradas de rodagem. Essa taxa estava consignada no orçamento da receita estadual em 1937. A recor-rente alegou que o tributo não poderia incidir sobre querosene e gasolina recebidos no porto do Rio Grande em 12 de novembro de 1937, porque a constituição de 10 de novembro de 1937, em seu art. 20, I, tirou ao Estado o poder conferido pelo art. 8º, I, d, da constituição de 1934.130 Em acórdão de 23 de dezembro de 1946, a Primeira Turma adotou, por unanimidade, o voto do Ministro Barros Barreto, que conheceu do recurso e lhe negou provimento, não só pelo caráter remuneratório do tributo, mas também porque, se fosse considerado imposto de consumo, o tributo poderia ser cobrado antes do Decreto-Lei federal 3, de 13 de novembro de 1937.

A recorrente embargou o acórdão, sustentando que o tributo exigido sobre o consumo de combustíveis de motor de explosão era imposto de consumo e que não podia caber ao Estado a respeito da mercadoria chegada ao porto do Rio Grande na vigência da constituição de 1937. O Procurador-Geral da República, Dr. Luiz Gallotti, manteve o seu parecer, opinando pelo não-provimento do extraordinário e pela rejeição dos embargos. Em seu voto, decidindo os embargos o Ministro Hahnemann Guimarães argumentou que o orçamento do Estado em 1937 consig-nava a renda que a constituição de 1934 lhe atribuía, e que essa renda era desti-nada ao custeio de um serviço público, e, assim, tinha menos o caráter de imposto de consumo que o de preço do serviço e prossegue:

130 constituição de 1934:“Art. 8º Também compete privativamente aos Estados:I — decretar impostos sobre:(...)d) consumo de combustíveis de motor de explosão;”

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Memória Jurisprudencial

Somente a Lei constitucional 3, de 18 de setembro de 1940, vedou que os Estados cobrassem tributos que, direta ou indiretamente, recaíssem sobre o comér-cio de combustíveis líquidos.

é certo que, antes, o Decreto-Lei 3, de 13 de novembro de 1937, já esta-belecera o imposto de consumo sobre a gasolina.

O tributo estadual foi, porém, exigido, antes de se poder cobrar o referido imposto federal, sobre mercadoria recebida em 12 de novembro de 1937.

Em seu voto, o Ministro José Linhares esclareceu uma questão: tratava-se de imposto (autorização contida no art. 8º, I, d, da constituição de 1934), e não de taxa, e a mercadoria entrou no Estado do Rio Grande do Sul ainda sob a vigência da constituição de 1934. Os embargos foram rejeitados unanimemente pelo Pleno do STF.

IMUNIDADE TRIBUTáRIA RECíPROCA — LIMITES

No julgamento realizado em 15 de maio de 1961, o STF analisou a questão da imunidade dos institutos de previdência. A constituição de 1946 estabelecia, em seu art. 31, inciso V, alínea a, a imunidade recíproca para as pessoas jurídicas de direito público, mas sem mencionar as autarquias.131 O Decreto-Lei 6.016, de 22 de novembro de 1943, estendia a imunidade constitucional recíproca às autar-quias.132 O TFR declarou a inconstitucionalidade do referido dispositivo. A causa chegou ao STF por via do RE 37.790/MG, julgado pelo Pleno, em que foi decla-rada a constitucionalidade da lei, por maioria absoluta (seis votos a quatro). O jul-gamento teve como Presidente o Ministro Barros Barreto e Relator o Ministro candido Motta. O Ministro Hahnemann Guimarães proferiu seu voto, no sentido de manter a constitucionalidade da lei, que entendia desnecessária:

131 constituição de 1946:“Art. 31. A União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado:(...)V — lançar impostos sobre:a) bens, rendas e serviços uns dos outros, sem prejuízo da tributação dos serviços públicos

concedidos, observado o disposto no parágrafo único deste artigo;”constituição de 1937 (em vigor quando o Decreto-Lei 6.016/1943 foi editado):“Art. 32. é vedado à União, aos Estados e aos Municípios:(...)c) tributar bens, rendas e serviços uns dos outros.”

132 Decreto-Lei 6.016/1943 (Dispõe sobre a imunidade dos bens, rendas e serviços das autar-quias e dá outras providências):

“Art. 1º A imunidade tributária, a que se refere o art. 32, letra c, da constituição, compreende não só os órgãos centralizados da União, Estados e Municípios, como as suas autarquias, e al-cança os bens, rendas e serviços de uns e outros.

§ 1º Para os efeitos deste artigo, consideram-se serviços das autarquias os que a constituição, explícita ou implicitamente, atribui à União, aos Estados ou Municípios.

§ 2º Não se incluem na imunidade assegurada às autarquias as taxas remuneratórias de serviços.

§ 3º A imunidade não atinge as sociedades de economia mista, em cujo capital e direção o Governo participe, e as empresas sob administração provisória da União.”

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Ministro Hahnemann Guimarães

Senhor Presidente, a constituição proíbe a tributação de qualquer ori-gem — federal, estadual ou municipal — sobre bens, rendas e serviços públicos. com a expressão “bens”, significou a constituição qualquer situação jurídica patrimonial.

Ora, se autarquias são parcelas do patrimônio público federal, estadual ou municipal, sobre elas não podem incidir tributos de qualquer origem, pois são partes, são departamentos do Fisco, da Fazenda Pública.

Assim, era desnecessária a disposição constante do Decreto-Lei 6.016. é uma disposição redundante, porque a isenção tributária resulta da própria natu-reza do patrimônio, que é público e não tolera qualquer incidência de impostos.

com estas considerações, data venia dos que pensam de modo contrário, acompanho o voto do eminente Sr. Ministro Relator.

A questão da intributabilidade das entidades de previdência, no que diz respeito às autarquias, não era uma questão problemática porquanto se resolvia pela vinculação das autarquias ao poder público que a criou, sendo elas pessoas jurídicas de direito público (o que o Ministro Hahnemann Guimarães chama de “própria natureza do patrimônio, a isenção tributária resulta da própria natureza do patrimônio, que é público e não tolera qualquer incidência de impostos”). A questão da imunidade das entidades de previdência privada surgiria anos depois. Outro aspecto é que o Ministro Hahnemann Guimarães chama de isen-ção o que é, na verdade, imunidade — esta distinção estava se consolidando e só viria a se estabelecer com a edição do código Tributário Nacional, em 1966.

IMPOSTO SOBRE VENDAS E CONSIGNAÇõES — BONIFICAÇÃO RECEBIDA, qUANDO DA LIqUIDAÇÃO DO CONTRATO DE CâMBIO: NÃO-INCIDÊNCIA

O RE 31.342/SP teve seu provimento negado por unanimidade, em jul-gado de 5 de junho de 1956, Presidente o Ministro Edgard costa e Relator o Ministro Ribeiro da costa. A decisão foi no sentido de estar sujeita ao Imposto sobre Vendas e consignações (IVc) a bonificação recebida pelos exportadores, quando da liquidação do contrato de câmbio, a que se refere o art. 8º, do liv. I, do código de Impostos e Taxas, do Estado de São Paulo. Essa bonificação era refe-rente à diferença cambial, em moeda brasileira, imposta ao exportador, quando do recebimento do valor exportado, o que representava uma receita extra, mas não correspondente ao negócio em si, que era tributável pelo IVc. O Ministro Hahnemann Guimarães assim proferiu seu voto:

Senhor Presidente, também conheço do recurso, porque o dissídio juris-prudencial, como demonstrou o Sr. Ministro Relator, foi salientado no pedido de recurso extraordinário, e esse dissídio foi suscitado não apenas com respeito aos impostos e taxas do Estado de São Paulo, mas necessariamente com res-peito à legislação federal concernente à natureza de benefícios recebidos pelo exportador.

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Memória Jurisprudencial

conheço, pois, do recurso, de acordo com o Sr. Ministro Relator e lhe nego provimento. A situação dos exportadores é diversa da dos importadores.

Quanto aos importadores, temos sustentado que eles têm de pagar impos-tos de consumo relativos aos ágios. Mas o exportador não recebe o preço pelo câmbio livre. Recebe-o de acordo com câmbio oficial, fixado no Fundo Monetário/Internacional. Este câmbio, sendo inferior ao câmbio livre, é o Governo levado a pagar uma bonificação ou prêmio ao exportador.

TRIBUTAÇÃO E INTERVENÇÃO NO DOMíNIO ECONôMICO

No RMS 5.008/GB, julgado pelo Pleno em 21 de agosto de 1961, Presidente o Ministro Barros Barreto e Relator o Ministro Vilas Boas, o STF enfrentou a questão da cobrança de taxa pelo Instituto do Açúcar e Álcool, prevista no Estatuto da Lavoura canavieira, em face da capacidade de intervenção da União na economia. Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães exarou sua opi-nião nos seguintes termos:

Senhor Presidente, dos dez casos examinados por este Tribunal sobre a cobrança da taxa de aguardente, nove foram em sentido favorável ao Instituto do Açúcar. O único em que o Tribunal se desviou de sua tranqüila jurisprudência foi o relatado pelo Sr. Ministro Vilas Boas. A este julgamento não estive presente.

Entendo que é perfeitamente constitucional a cobrança da taxa de dois cruzeiros por litro de aguardente/liberada, cobrada nos termos da resolução de 2 de março de 1953, arts. 16 e 17.

Pelo Instituto do Açúcar e do Álcool, exerce a União sua intervenção do domínio econômico, no domínio da produção açucareira, mantendo-se o equi-líbrio mediante a cobrança da taxa e a requisição que, segundo me parece, não é inconstitucional, em face do art. 141, § 16, da constituição. O poder exercido pelo Instituto do Açúcar e do Álcool, a meu ver, tem cabal assento nas disposi-ções dos arts. 148 e 149 do Estatuto da Lavoura canavieira, Decreto 3.855, de 21 de novembro de 1941, segundo as quais pode o Instituto fixar preço e condições de venda, para facilitar a execução dos planos de equilíbrio e defesa das safras. A taxa de dois cruzeiros por litro de aguardente cobrada para a defesa da produ-ção desse líquido e para defesa da produção do açúcar parece-me perfeitamente legal.

Acompanho o voto do Sr. Ministro Ary Franco, coerente com a atitude que sempre aqui manifestei.

Apesar de seu argumento, o Ministro foi vencido (decisão no Pleno de seis a quatro). Destaque-se que a questão discutida nesse recurso é de grande atualidade. Nesse caso, a percepção do Ministro Hahnemann Guimarães coin-cidiu com a tendência do crescimento da intervenção do Estado na economia cada vez mais a ocorrer por via da tributação.133 Quanto a isso, a constituição

133 Embora essa decisão tenha sido um dos fundamentos da edição da Súmula/STF 126: “é inconstitucional a chamada taxa de aguardente, do Instituto do Açúcar e do Álcool”, aprovada em sessão plenária de 13-12-1963 — que fulminou em definitivo a referida “taxa”.

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Ministro Hahnemann Guimarães

de 1967 criaria a contribuição de intervenção no domínio econômico, que deve-ria, no entanto, ser instiuída por via de lei e que permaneceria no ordenamento tributário nas constituições seguintes. No caso em questão, havia a discussão se o Estatuto da Lavoura canavieira (um decreto-lei, portanto, com força de lei stricto sensu) seria suficiente para autorizar ao IAA a cobrança da referida “taxa” (na verdade, uma contribuição de intervenção no domínio econômico). Outro aspecto interessante é que, na decisão, a referida taxa é denominada “taxa parafiscal” e seria confiscatória, já que não teria base legal.

LIMITE DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL EM RELAÇÃO AOS TRIBUTOS MUNICIPAIS

No RMS 8.392/MG, julgado em 18 de outubro de 1961, Presidente o Ministro Barros Barreto e Relator o Ministro Afrânio costa, o Pleno do STF entendeu que o art. 169 da constituição de Minas Gerais não poderia alcan-çar taxação de competência dos Municípios. O dispositivo da constituição mineira daquela época fixava um limite para o aumento do tributo municipal autorizado pela constituição Federal de 1946. Em seu voto vencido, o Ministro Hahnemann Guimarães exarou sua opinião nos seguintes termos (voto sobre inconstitucionalidade):

Senhor Presidente, acompanho, data venia, o eminente Sr. Ministro Ary Franco. Não me parece que seja manifestamente inconstitucional a disposição do art. 169 da constituição de Minas Gerais, que, ao contrário, se me afigura perfeitamente conciliável com o disposto no art. 22 da constituição Federal, onde se assegura à constituição estadual o direito de regular a fiscalização da gestão financeira do Município. Se é admissível estabelecer a forma de fiscalizar a gestão financeira, há de ser permitido estabelecer restrição à liberdade de pro-ver os recursos para a gestão financeira, e esses recursos são tributos. é, assim, perfeitamente razoável que a constituição fixe e limite de 2/5 para o aumento de imposto em exercício.

Dou, assim, provimento ao recurso, acompanho o eminente Sr. Ministro Ary Franco.

A decisão foi no sentido de declarar a inconstitucionalidade do art. 169 da constituição do Estado de Minas Gerais. Os únicos votos vencidos foram os dos Ministros Hahnemann Guimarães e Ary Franco. Essa decisão foi uma das bases da Súmula/STF 69, aprovada em sessão plenária de 13 de dezembro 1963: “A constituição estadual não pode estabelecer limite para o aumento de tributos municipais”. Nesse caso, a posição do Ministro Hahnemann Guimarães afastava-se da tendência do federalismo brasileiro, que deu cada vez mais auto-nomia aos Municípios, sendo seu ápice a constituição de 1988, que os elevou à categoria de ente federativo pleno.

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Memória Jurisprudencial

TRATADO INTERNACIONAL — CONFLITO COM LEGISLAÇÃO NACIONAL

Na Aci 9.587/DF, julgada em 21 de agosto de 1951, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato e Relator o Ministro Lafayette de Andrada, estava em discussão a cobrança de imposto de consumo sobre produtos importados dos Estados Unidos da América e da Inglaterra, objetos de tratado internacional. O STF entendeu, por unanimidade, que o tratado revogava as leis que lhe fossem anteriores, mas não poderia ser revogado pelas leis posteriores, se estas não se referissem expressa-mente a essa revogação ou não denunciassem o tratado. Vigia um tratado com os Estados Unidos (promulgado pelo Decreto 542, de 24 de dezembro de 1935) determinando que os tributos sobre os produtos norte-americanos deveriam ser cobrados de acordo com o que estava fixado à época da promulgação do tratado (no caso, a Tarifa Alfandegária Brasileira, promulgada pelo Decreto 24.343, de 5 de junho de 1934) e também um acordo comercial com a Inglaterra, com dispo-sição semelhante, firmado em 1936 e que não havia sido denunciado. Sobreveio uma alteração do Imposto de consumo, pelo Decreto-Lei 7.404, de 22 de março de 1945, que majorou sua tributação e foi utilizado pela Alfândega para lançar o tributo.

A apelante, empresa de comunicação, havia importado peças para equi-pamentos eletrônicos de sua propriedade e alegou que o Imposto de consumo devido na alfândega seria o imposto com base no cálculo de acordo com os trata-dos e não com as alterações do decreto-lei mais recente, que majorou a tributação e que não havia mencionado expressamente os tratados. Em seu voto, o Ministro Hahnemann Guimarães exara sua opinião nos seguintes termos:

confirmo a sentença apelada (fl. 86) que julgou procedente, em parte, a ação, para determinar que a autora pague sobre as mercadorias importadas imposto calculado de acordo com o Decreto 24.343, de 5 de junho de 1934, e que a ré devolva à autora a quantia recebida a mais, com os juros da mora e custas proporcionais.

Não se pode admitir a aplicação de Decreto-Lei 7.404, 22 de março de 1945, porque as mercadorias estavam compreendidas no favor dispensado por acordos internacionais, em virtude dos quais continuou vigente a tarifa estabele-cida no Decreto 24.343.

A sentença ponderou que os acordos internacionais não se resolvem ape-nas pela simples promulgação de um decreto-lei. Deve-se observar, aliás, que o Decreto-Lei 7.404, lei geral, não revogou o favor estipulado nos referidos atos internacionais.

Observe-se que expuseram seus votos apenas o Ministro Relator e o Ministro Hahnemann Guimarães, e que o ponto fixado pelo último, no que diz res-peito à não-revogação do tratado pela legislação tributária superveniente, mas sua observância, prevalece até hoje, inclusive por observância do art. 98 do código Tributário Nacional, de 1966, em pleno vigor.

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Ministro Hahnemann Guimarães

NOTAS SOBRE O PENSAMENTO JURíDICO E A TéCNICA DECISIONAL EM HAHNEMANN GUIMARÃES

Este capítulo tem por objetivo mostrar algumas linhas mestras do pensa-mento jurídico e jurisprudencial do Ministro Hahnemann Guimarães, permitindo ao leitor uma visão mais concisa das idéias do Ministro expostas e comentadas ao longo da obra. De erudição ímpar, o Ministro Hahnemann Guimarães não deixou escritos compêndios de Direito,134 mas artigos, teses, pareceres e apostilas, estas ao tempo de professor na Faculdade Nacional de Direito.135 Assim, a análise vai lastreada em seus julgados e nesses escritos. Já foi dito que a obra do juiz são as suas decisões.

Primeiramente é necessário cuidar de um ponto importante, por vezes fonte de confusões entre os estudiosos do tema. como é sabido, o Ministro Hahnemann Guimarães era seguidor do pensamento positivista de Auguste comte.136 Há, contudo, que diferenciar entre o positivismo filosófico e socioló-gico comtiano e o positivismo jurídico. O positivismo filosófico e sociológico é uma proposta de afastamento da teologia e da metafísica, na busca de uma meto-dologia positiva (racional), com base na doutrina de Augusto comte. Já o posi-tivismo jurídico é uma corrente de pensamento jurídico que entende o Direito como sistema de normas, à parte do sistema de valores, tendo como expressões

134 civilista de nomeada, consta que, ao ser indagado pelo Ministro Victor Nunes da razão pela qual não publicava seu Curso de Direito Civil, respondeu: “Não vale nada”. cf. ALBUQUERQUE, Francisco Manoel Xavier de. Perfil de Hahnemann Guimarães: jurista, moralista, juiz. Discurso pronunciado na sessão especial do Tribunal Pleno do STF de 26 de maio de 1980, em homenagem à memória do Ministro Hahnemann Guimarães. DJ de 3-7-1980, p. 5067.

A humildade do Ministro Hahnemann Guimarães era reconhecida por todos, mas não deixa de ser interessante a peroração de Hahnemann Guimarães em seu opúsculo A educação e a biblioteca: “A crença no aperfeiçoamento humano induz à esperança de que os excessos de nossa cultura desaparecerão, restituindo-se o livro a seu destino. Não se escreverá tanto, por-que a preo cupação com o bem estar humano sobrepujará os incitamentos do lucro e da vaidade. corrigir-se-á o hábito da leitura para que não fique prejudicada a meditação, e a educação per-feita não exigirá talvez mais que cem volumes.” GUIMARÃES, Hahnemann. A educação e a biblioteca. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944. p. 12.135 O Ministro Antonio Neder disse, sobre o Ministro Hahnemann Guimarães: “Era devoto do perfeccionismo, exato e minucioso em tudo, e por isso não escreveu livros, qual o fizeram Pedro Lessa, Eduardo Espinola, castro Nunes, Orozimbo Nonato e outros juízes desta casa. Mas o certo é que, lecionando ou julgando, era ele um livro que falava, um livro compacto, exau-riente, erudito, comparatista, lógico e claro. Era da escola de Holmes [referindo-se ao renomado Justice da Suprema corte norte-americana], pois tudo que fazia tinha o traço da perfeição.” (Observação nossa). Discurso pronunciado na sessão especial do Tribunal Pleno do STF de 26 de maio de 1980, em homenagem à memória do Ministro Hahnemann Guimarães, DJ de 3-7-1980, p. 5067.136 conferir em: GUIMARÃRES, Hahnemann. Juristas, sociólogos e moralistas. In: Arquivos do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, 9 de outubro de 1944, p. 10. Hahnemann Guimarães publicou também na revista Época, dirigida por um grupo de positivistas.

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Memória Jurisprudencial

John Austin e Hans Kelsen.137 Assim, pode-se dizer que o pensamento filosófico positivista serviu ao Ministro Hahnemann Guimarães como mecanismo de pré-compreensão das realidades fáticas e jurídicas. Embora elogiasse a filosofia posi-tivista, Hahnemann Guimarães escreveu:

A genial teoria de comte não produziu ainda a grande renovação de que é capaz, embaraçada com tem sido por uma torrente de doutrinas sociológicas que se baseiam todas no erro de transformar uma simples comparação ou analogia em identidade, igualando a condição fundamental das ações humanas, que é a vida social, a um sistema mecânico, a um organismo vivo, a uma realidade superior aos indivíduos, ou pelo menos, diversa deles pelas suas funções especiais, ou se res-tringindo a um estudo estático de formas sociais, quase geométricas, desprovida de conteúdo.138

No período do Ministro Hahnemann Guimarães no STF, a corrente jurídica que dominava o cenário brasileiro era, sem dúvida, o positivismo jurídico. A atua-ção do Ministro Hahnemann Guimarães não fugiu ao diapasão médio. O Ministro não era um revolucionário jurídico, coisa incomum no STF, mas estava muito longe de ser aplicador “cego” das normas jurídicas. Há diversos exemplos nos tex-tos que escreveu de que a suas concepções de Justiça e de Direito eram abrangen-tes.139 Hahnemann Guimarães, em um de seus escritos, sustentou que:

Pelo ideal de Justiça devem regular-se os nossos atos, sempre ditados pelo amor ao próximo. A cada um conforme suas obras, é o que exige uma ordem social verdadeiramente justa. Para isso é necessário que a concorrência, a exploração do homem pelo homem, seja progressivamente substituída pela colaboração, pela exploração coletiva do globo. colaborando, os indivíduos asseguram à vida o meio exterior mais propício e se aperfeiçoam para a vida em sociedade.140

Note-se que, mesmo antes de entrar para o STF — o que se deu em 30 de outubro de 1946 —, o Ministro Hahnemann Guimarães propugnava pela

137 O positivismo sociológico, filosófico e político exerceu notável influência na sociedade bra-sileira ao final do século XIX e início do século XX, especialmente no campo político, mas sem correspondente no pensamento jurídico. Ver, e.g.: POLETTI, Ronaldo. Introdução ao Direito. 3. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 70-72, 160-162, 177-182. Ver também, passim: KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6. ed. coimbra: Armênio Amado, 1984.138 GUIMARÃES, Hahnemann. Juristas, sociólogos e moralistas. Arquivos do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, 9 de outubro de 1944, p. 10.139 contudo, é atribuída a ele a seguinte afirmativa: “Aqui estamos para aplicar a lei e não para fazer justiça.” Frase atribuída ao Ministro Hahnemann Guimarães por Leda Boechat Rodrigues, emérita historiadora do STF e também ex-funcionária daquela corte, em resposta à sua mani-festação de que não entendera como justa determinada decisão do STF. RODRIGUES, Leda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. São Paulo: civilização Brasileira, 2002. Tomo IV, v. I, 1930-1963. p. 20. Trata-se de uma frase típica de positivistas extremados e que nos parece ter sido pronunciada em um contexto de provocação.140 GUIMARÃES, Hahnemann. Discursos. s/ ed. Rio de Janeiro, 1937, p. 12. Discurso pronun-ciado como paraninfo, em 1936, na colação de grau dos bacharelandos em Direito da Universi-dade do Rio de Janeiro.

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Ministro Hahnemann Guimarães

precedência dos valores sobre tecnicismo jurídico, quando se expressou, em texto de 1944, da seguinte forma: “[S]omente uma teoria moral verdadeira pode servir de base a uma técnica jurídica eficiente”.141 como salientou o Ministro Xavier de Albuquerque: “como jurista, Hahnemann Guimarães foi sempre moralista. Sua concepção de direito entronca-o na moral e nela o integra como porção e revelação.”142

PRINCíPIOS E VALORES

Um exemplo que demonstra claramente como o Ministro Hahnemann Guimarães tinha os princípios e valores como base de suas decisões encontra-se nas decisões abordando as liberdades públicas. Um caso paradigmático dessa leitura jurisprudencial do Ministro Hahnemann Guimarães, que comprova sua argumentação com base nos valores constitucionais básicos, dir-se-ia que fun-damentam o Estado republicano, encontra-se na decisão do MS 1.114/DF, de 17-11-1949, quando do julgamento que envolvia restrições a serem impostas pelo Estado a práticas religiosas. O Ministro Hahnemann Guimarães sustentou em seu voto, a par de mostrar grande erudição sobre esses assuntos e sobre a história do constitucionalismo brasileiro, outra de suas características marcantes, que, se fosse autorizada a obstaculização de prática religiosa pelo Estado, o poder temporal, estar-se-ia infringindo, de maneira frontal “o princípio básico de toda a política republicana, que é liberdade de crença, da qual decorreu, como con-seqüência lógica e necessária, a separação da Igreja e do Estado.” Sustentava, assim, que princípio da liberdade de crenças é princípio fundamental da política republicana. Note-se que o valor dado à liberdade de crença como fundamento do Estado republicano é crucial. Não é o Estado republicano mero garantidor da liberdade de culto; em vez disso, a liberdade religiosa antecede à formação do Estado republicano, é condição para o estabelecimento deste. Para o Ministro Hahnemann Guimarães os delitos dessa natureza seriam delitos espirituais (puníveis dentro das próprias Igrejas), concluindo que não seria lícito que essas Igrejas recorressem ao poder temporal para resolver seus cismas, com o obje-tivo de dominar suas dissidências. Seu voto restaria vencido, tendo sido o único divergente. contudo, a solução defendida pelo Ministro Hahnemann Guimarães viria a se tornar depois a orientação do STF.143

141 GUIMARÃES, Hahnemann. Juristas, sociólogos e moralistas, op. cit., p. 12.142 ALBUQUERQUE, Francisco Manoel Xavier de. Perfil de Hahnemann Guimarães, op. cit., p. 5069.143 No RE 31.179/DF, de 8 de abril de 1958, dez anos mais tarde, o Ministro Hahnemann Guimarães utilizar-se-ia de argumentos no mesmo sentido, desta vez como Relator, em voto vencedor, com decisão unânime.

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Outro exemplo a ilustrar esse aspecto da técnica decisional do Ministro Hahnemann Guimarães deu-se no Rc 1.032/DF, quando o STF144 enfrentou o caso de dois jornalistas acusados de violar a lei que definia os crimes contra o Estado e a Ordem Social (Lei de Segurança Nacional), por meio de veículo de imprensa. A questão que se colocou era qual lei se aplicaria: a Lei de Segurança Nacional, mais severa, ou a Lei de Imprensa, mais branda. Em seu voto, que res-tou vencido ao final do julgamento, o Ministro Hahnemann Guimarães defendeu que deveria prevalecer a Lei de Imprensa, mudando a posição manifestada ante-riormente no Rc 1.021. Sustentou que, quando os crimes contra a segurança do Estado fossem praticados pela imprensa, e na Lei de Imprensa houvessem sido previstos, não se poderia aplicar, evidentemente, a eles as disposições da Lei de Segurança Nacional, de 5 de janeiro de 1953, pois haveria que observar o disposto na Lei 2.083, de 12 de novembro de 1953. Argumentou que, quando os crimes definidos na Lei de Segurança Nacional, de 1953, houvessem sido previstos na Lei de Imprensa, de 1953, como abuso da liberdade de imprensa, deveriam eles ser punidos sem as sanções previstas na lei posterior. O Ministro manifestou-se nos seguintes termos ao concluir o voto: “(...) estará sendo aplicada a lei posterior, a lei mais branda, a lei que assegura a manifestações da liberdade de pensamento, que é princípio fundamental da política republicana” (itálicos nossos). Fica evidente que o leit motiv do voto do Ministro Hahnemann Guimarães foi baseado funda-mentalmente nos valores republicanos e democráticos quando em confronto com um Estado excessivamente interventor e controlador de atividades que, na prática, deveriam ser consideradas protegidas pelo mesmo Estado, no caso, a liberdade de imprensa.145 O pensamento do Ministro Hahnemann Guimarães, que ficou vencido no Rc 1.032/DF, tornou-se depois predominante, passando a servir de

144 Rc 1.032/DF, Presidente o Ministro Orozimbo Nonato, Relator o Ministro Barros Barreto, de 30-1-1959, por maioria dos votos, dando provimento ao recurso do Ministério Público e deter-minando que os autos voltassem ao juiz criminal, para que recebesse a denúncia e profirisse a sentença de mérito (foram vencidas as posições dos Ministros Hahnemann Guimarães, candido Motta, Ribeiro da costa e Luiz Gallotti).145 Encontram-se referências a essa valoração da liberdade de expressão em escritos mais anti-gos do Ministro Hahnemann Guimarães. Por exemplo: “O aperfeiçoamento humano exige liber-dade; a segurança da vida social repousa no livre exame e na autonomia da vontade. A liberdade de pensamento deve ser integral: a liberdade de exposição de discussão. Um ser que se distingue pelo pensamento não pode receber de fora e à força sua maneira de pensar e agir. é útil à socie-dade que a todos seja lícito procurar a verdade com os recursos próprios, seguindo os caminhos mais diversos, porque é mais sólida a coesão entre os espíritos unidos numa verdade refletida-mente aceita.” GUIMARÃES, Hahnemann. Discursos, op. cit., p. 12-13.

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Ministro Hahnemann Guimarães

paradigma para decisões posteriores do STF sobre a matéria.146 Outras decisões do Ministro Hahnemann Guimarães confirmam essa forma de enfrentar questões semelhantes.147

SOBRE A FAMíLIA E O DIVÓRCIO

como civilista, o Ministro Hahnemann Guimarães dedicou-se ao tema do divórcio.148 Ele tinha uma visão típica da sociedade brasileira da época, mais conservadora e de costumes rígidos, ligados a tradição moralista. como para Hahnemann Guimarães o Direito imbrica-se com a moral, convém trazer o tema à baila, considerando-se que o Ministro Hahnemann Guimarães produziu texto específico sobre o assunto. Sua concepção de família, da indissolubilidade do casamento, e, portanto, contra o divórcio, era lastreada em sólida fundamentação moral e filosófica. Na linha comtiana, ao refutar que a família deve dissolver-se, substituindo-se a educação social pela familiar, asseverou:

Esta errônea opinião teve a refutação cabal na profunda teoria de Augusto comte sobre o casamento e a família, que resumiremos nos seguintes princípios: 1º) a família é o elemento imediato da sociedade, não existindo sociedade humana sem família, nem família sem sociedade; 2º) a educação doméstica é insubstituí-vel; 3º) o fim essencial do casamento somente pode ser atingido, se a união conju-gal for indissolúvel e exclusiva.149

Sobre a indissolubilidade do casamento, afirmou:Os desastres conjugais que não forem seguidos da reconciliação, podem-se

considerar irreparáveis; não haverá para eles perfeito reajustamento, e este será mesmo impossível se existirem filhos. O matrimônio indissolúvel possui a vanta-gem enorme de induzir sempre os cônjuges à reconciliação e assim, nunca poderá causar as devastações que o divórcio produz, eliminando assim uma inestimada oportunidade para o restabelecimento de uma afeição que nunca poderá ser intei-ramente substituída.150

146 E.g., Hc 37.522/DF, de 25 de janeiro de 1960. Pode-se mencionar também nessa linha o Hc 40.047/DF, julgado em 31-7-1963, em que o STF concedeu o habeas corpus ao jornalista Hélio Fernandes, em rumoroso caso em que o Ministro Hahnemann manteve a posição de dar privilégio de foro à Justiça comum em relação a crimes contra a segurança nacional e à Justiça Militar quando houvesse dúvida, como também foram os casos da posição manifestada no Hc 41.296/DF, de 23-11-1964 (histórico caso do impeachment do Governador de Goiás Mauro Borges) e no Hc 42.108/PE, de 19-4-1965 (também histórico caso Miguel Arraes).147 Por exemplo, no julgamento do Hc 40.910/PE, de 14 de agosto de 1964, em que o tema discu-tido era a liberdade de expressão, que, pelo entendimento do Ministro Hahnemann Guimarães, deveria ser mantida como valor maior.148 GUIMARÃES, Hahnemann. Sobre o divórcio. Revista Forense, Rio de Janeiro, ano XLIV, v. cXIII, set. 1947, p. 267-271. Esse texto foi publicado também em outros veículos.149 Idem, p. 268.150 Idem, p. 270.

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Memória Jurisprudencial

A concepção de família de Hahnemann Guimarães que o levava a pro-pugnar pela indissolubilidade do casamento, baseada em fundamentos morais e filosóficos, compunha o cenário da pré-compreensão do Ministro Hahnemann Guimarães em suas posições no STF.

NOTAS SOBRE A TéCNICA DECISIONAL

Em algumas passagens o Ministro Hahnemann Guimarães deixa transpa-recer, em termos de técnica hermenêutica e decisional, como busca a solução do problema jurídico que se lhe apresenta. A par da questão do positivismo filosófico e dos princípios e valores verificada acima, no sentido de perceber qual o eixo da pré-compreensão na abordagem jurídica do Ministro Hahnemann Guimarães, outros aspectos merecem ser trazidos à tona.

No MS 767/DF, de 9 de julho de 1947, o STF apreciou o problema da validade constitucional das normas legais que permitiam a intervenção sindical por parte do Governo Federal. Para decidir a questão, o Ministro Hahnemann Guimarães reportou-se aos debates de plenário que discutiu, na Assembléia constituinte de 1946, a questão da inadmissibilidade da intervenção sindical, mas argüindo que os trabalhos preparatórios da lei não têm autoridade de interpretação autêntica, sendo mais valioso o elemento sistemático. conclui seu voto: “Em meu julgamento, estas considerações, ligadas ao sistema constitucional adotado, pesam mais que os trabalhos preparatórios. Delas resulta para mim a convicção de que o regime sindical vigente não é repelido pelo art. 159 da constituição”. E continua: “Em virtude desse preceito, a lei dá ao sindicato o privilégio de perceber o imposto sindical; concede-lhe a situação de ser o sujeito ativo da obrigação tributária. Daí resulta a subordinação necessária de órgão sindical delegado ao poder público delegante. é inevitável a restrição da liberdade em conseqüência do privilégio adquirido com a delegação. Recebendo um mandato de poder público, exercendo soberania derivada, o sindicato aceita a subordinação ao poder público, que inter-virá para assegurar o exercício normal de delegação.”

Em outro momento busca, para fundamentar sua posição, a coerência do texto constitucional em si (constituição como sistema de normas), como no MS 900/DF, de 18-5-1949, em cujo voto de mérito afirma: “A prova de que a constituição abandonou a teoria contraditória de que o congresso Nacional repre-senta o povo, e seus membros exercem o mandato livremente, sem estarem vin-culados à vontade de seus eleitores; a prova disto está nas seguintes disposições constitucionais; do art. 40, parágrafo único (...)”.

Veja-se que a técnica hermenêutica do Ministro Hahnemann Guimarães é no sentido de dar precedência ao aspecto sistêmico da constituição (dita inter-pretação sistemática), não atribuindo grande relevância aos debates preparatórios que antecederam a criação da norma. Isso, evidentemente, não quer dizer que o

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Ministro Hahnemann Guimarães

Ministro Hahnemann Guimarães considerava os chamados atos preparatórios absolutamente irrelevantes, mas apenas que o contexto do sistema normativo é mais importante, nem que descuidava dos aspectos históricos do sistema norma-tivo como informadores da correta ratio legis.151

SOBRE A JURISPRUDÊNCIA

O Ministro Hahnemann Guimarães tinha a perspectiva de que o Direito não era algo estático. Ele próprio mudou de opinião em questões importantes, algu-mas vezes alinhando-se aos seus pares, outras fazendo que os demais Ministros se alinhassem à sua posição, ainda que em um momento futuro. Paradigmática a expressão do seu pensamento no julgamento do RE 9.002/DF, de 6-5-1947, manifes-tando-se da seguinte forma: “Por maior que seja a auctoritas rerum similiter iudi-catarum, nunca se pode, em nosso direito, admitir que a jurisprudência não possa ser alterada (...)”. O sistema jurídico brasileiro, com origem no sistema romano-germânico, não tem por base case law. Porém, a estabilidade das decisões, e mesmo as decisões como fonte da lei em si, como sucede no sistema do common law, pode ser analisada sob a perspectiva positivista como o fez John Austin, na verdade, ante-riormente a Hans Kelsen, sendo que este desenvolveu suas idéias a partir do ponto de vista do sistema romano-germânico. Ressalte-se que, mesmo no sistema romano-germânico, a jurisprudência é reconhecida como fonte mediata do Direito.

SOBRE PRINCíPIOS E REGRAS

A discussão sobre as distinções entre princípios e regras, e suas implica-ções, que na perspectiva da ciência do Direito atingiria o auge com o norte-ameri-cano Ronald Dworkin e o germânico Robert Alexy, na segunda metade do século XX,152 já havia sido percebida pelo Ministro Hahnemann Guimarães. O Ministro deduzia suas opiniões com base em uma distinção nítida entre princípios e regras. Veja-se, nesse sentido, seu voto no MS 900/DF, decisão de 18-5-1949, em que afirma: “[M]ais do que qualquer outra lei, a constituição é um sistema de princí-pios, dos quais se podem deduzir regras, que, portanto, estavam compreendidas

151 Ver, e.g., RE 31.363/MG, julgado em 7-5-1957, em que expõe o seguinte pensamento: “(...) tenho entendido que a disposição do art. 1.132 do código civil não pode ser interpretada com abstração da sua razão histórica, que é dada pelo antigo direito português, das Ordenações, porque essa disposição de lá vem. Baseava-se a disposição das Ordenações numa presunção absoluta de simulação. Esta disposição passou ao direito brasileiro vigente. Não é possível, na aplicação do princípio do art. 1.132 descuidar-se o intérprete de verificar se houve simulação, ou não.”152 Ver, e.g.: DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. cambridge: Harvard University Press, 1977, p. 22-31; e ALEXy, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. 2. ed. Madrid: centro de Estudios Políticos e constitucionales, 2007, p. 63-117. Ver também LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 6. ed., rev. Lisboa: Fundação Kalouste Gulbenkian, 1991, p. 674-697.

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Memória Jurisprudencial

no sistema.” No caso em que se discute a constitucionalidade e as leis, prossegue dizendo que determinado dispositivo de lei (regra) complementava a constituição no sentido dos princípios por ela adotados, e seriam, portanto, constitucionais.

DA PRECISÃO DOS CONCEITOS

O Ministro Hahnemann Guimarães não se aventurava a conjeturar sobre as normas jurídicas e seus efeitos, sem antes ter uma noção precisa do conceito contido na norma. Muitas vezes essa técnica, ou abordagem, é fundamental numa decisão. cite-se um exemplo paradigmático, em que um conceito específico, pre-cisamente o conceito de família, se revelou fundamental para a construção do argumento. No Hc 30.166/SP, de 30-1-1948, o Ministro Hahnemann Guimarães votou, coerente com seu conceito de família, pela não-expulsão de estrangeiro com membros da família no Brasil: “[B]asta que ele seja casado com brasileira ou tenha filhos brasileiros. As condições são alternativas, não as exige a constituição simultaneamente.” contudo, esse caso seria decidido favoravelmente ao paciente por outros fundamentos. No Hc 30.458/SP, de 25-8-1948, o Ministro Hahnemann Guimarães sustentou, à luz da constituição vigente à época, que o conceito de família e sua indissolubilidade prevista no art. 163 e a disciplina constitucional sobre expulsão de estrangeiros, constante do art. 143, caput, da constituição de 1946, impediriam a expulsão (o paciente só preenchia um dos requisitos do art. 143 para impedir a expulsão). Para o Ministro Hahnemann Guimarães, o conceito de família abrangia o casal ou um dos cônjuges com filhos — o que tem efeito diferente do de um casal com filhos — resultado da interpretação literal do art. 143 da constituição de 1946 (“Art. 143. O Governo federal poderá expulsar do território nacional o estrangeiro nocivo à ordem pública, salvo se o seu cônjuge for brasileiro, e se tiver filho brasileiro (art. 129, n. I e II) dependente da economia paterna”). Observe-se que, em sua obra, fora dos autos, o Ministro Hahnemann Guimarães fixou o que, para ele, seria o conceito de família, nos seguintes termos:

Nas legislações em regra, não encontramos conceitos de família, a não ser no código austríaco, no art. 40, onde declara: família são as estirpes como todos os seus descendentes. O que nos interessa, é, todavia, estabelecer um conceito jurí-dico de família. O que é família para nós, juristas? é para nós a apenas a reunião de pessoas ligadas pelas relações de casamento, parentesco e afinidade; todas as pessoas que estiverem, entre si, vinculadas pelos laços de casamento, parentesco ou afinidade, constituem uma família.153

O voto de Hahnemann Guimarães, porém, foi vencido. contudo, sua posi-ção passaria a ser dominante em julgados seguintes. Assim, no Hc 36.402/DF, decidido em 7 de janeiro de 1959, a tese do Ministro Hahnemann Guimarães nesse

153 GUIMARÃES, Hahnemann. Direito Civil. Rio de Janeiro: Universidade do Brasil, 1958. v. I, 5º ano (apost.), p. 1.

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Ministro Hahnemann Guimarães

sentido prevaleceria. Há vários outros exemplos, em diversas situações, em que a técnica de precisar os conceitos jurídicos manobrados na argumentação jurídica mostrou-se relevante.154

OUTROS ASPECTOS

Da coragem e do discernimento

O Ministro Hahnemann Guimarães tinha vasta cultura, mas, conforme relatam diversas testemunhas, não era de forma alguma arrogante. Esse discer-nimento convivia também com o desassombro: o Ministro não se intimidava nem pelo poder nem pelas dificuldades da matéria. Em momento tenso da vida nacional, sob um regime de exceção, decidia segundo suas convicções, contra o Governo autoritário, sem subserviência. Em outros votou a favor do Governo, intimorato, sem a preocupação típica daqueles que duvidam de si próprios, cons-ciente e com a certeza da correção jurídica de sua decisão, impermeável às críticas ou provocações.

Estilo

O Ministro Hahnemann Guimarães era sucinto em suas opiniões.155 Pode-se notar que, no início da judicatura no Supremo, tendia a ser mais prolixo, fixando-se também em temas processuais, e, depois, passou a se conter em votos mais concisos, embora cheios de substância. Porém, em alguns casos não hesitava em deitar tinta ao papel, mormente naqueles cujo tema demandava escorço histórico, quando esbanjava erudição, sem contudo transbordar pelo exagero. A linguagem, o português escorreito, sempre impecável, em compasso com o grande latinista que era. comparando seu estilo ao do Ministro Laudo de camargo, Daniel Reis afirma: “Os seus votos no Supremo não eram longos, recheados de doutrina e de citações outras; mal iam a uma página, geralmente. Não eram recheados de dou-trina — mas é que faziam doutrina, como mais tarde, de maneira igualmente sintética, o Ministro Hahnemann Guimarães.” (negritos nossos).156 Nos últimos tempos no STF, já abalado pela moléstia, sua participação tornou-se mais resu-mida, porém não desprovida do tirocínio jurídico que sempre o acompanhou.

154 Ver, e.g., Rp 106/GO, decidida em 10-5-1948 (conceito de maioria votante); Hc 30.514/MA, de 20-10-1948 (conceito de bem público para efeitos penais); RE 9.715/SP, de 25-8-1950 (con-ceito de dívida vencida); RE 48.805/SP, de 24-10-1961 (conceito de falta grave).155 Tal característica nota-se também em seus pareceres enquanto Procurador-Geral da República, no período de 1945 a 1946. Ver, e.g.: GUIMARÃES, Hahnemann. Pareceres do Procurador-Geral Dr. Hahnemann Guimarães. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1956 (1945-1946).156 REIS, Daniel Aarão. O Supremo Tribunal do Brasil: notas e recordações. Rio de Janeiro: Madri, 1968. p. 103.

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Memória Jurisprudencial

FRASES E CONTExTOS

SOBRE A ATUAÇÃO DO STF

“Este Tribunal não se deixa, evidentemente, impressionar pelos pode-rosos, nem se descuida, nas decisões que toma, a respeito dos casos que são sujeitos ao seu exame, dos supremos interesses da nação, embora lhe pertença essencialmente a aplicação da lei.” — Frase proferida no voto exarado na Rp 94/DF, julgada em 17 de julho de 1946, pelo Relator, Ministro castro Nunes, em resposta à manifestação do advogado João Mangabeira.

“Julgo improcedente a alegação de que não cabe ao Tribunal apreciar pedido de mandado de segurança contra resolução legislativa de caráter polí-tico.” — Frase proferida em voto no MS 3.577, decidido em 14-12-1955.

“Aqui estamos para aplicar a lei e não para fazer justiça.” — Frase atribuí da ao Ministro Hahnemann Guimarães por Leda Boechat Rodrigues, emérita historiadora do STF e também ex-funcionária daquela corte, em res-posta à sua manifestação de que não entendera como justa determinada decisão do STF.157

“Apesar de sua imensa autoridade, Pedro Lessa não conseguiu fazer vin-gar a doutrina que sustentou de ser o STF uma terceira instância. O STF é uma instância extraordinária.” — Frase proferida pelo Hahnemann Guimarães, por discordar da tese de Pedro Lessa de que o STF seria uma terceira instância, em seu voto no RE eleitoral 11.682/AM, de 13-8-1947.

TEMAS DIVERSOS

“Os delitos espirituais punem-se com as sanções espirituais; os confli-tos espirituais resolvem-se dentro das próprias Igrejas; não é lícito que essas Igrejas recorram ao prestígio do poder temporal para resolverem seus cismas, para dominar suas dissidências.” — Manifestação do Ministro Hahnemann Guimarães no voto proferido no MS 1.114, decidido em 17-11-1949.

“Uma mulher não precisa ter filho para ter sensibilidade materna.” — Frase proferida pelo Ministro Hahnemann Guimarães em debate com o Ministro Rocha Lagôa, durante o julgamento da Ac 1.448/SP, em 20-9-1951.

“Nem a Assembléia Legislativa pode subordinar o Governador às suas deliberações quanto à escolha do secretariado, nem seria admissível o poder que se dá ao chefe do Executivo estadual de dissolver a Assembléia Legislativa. Os dois poderes são iguais, em legitimidade, ambos vêm do povo. O Governador

157 RODRIGUES, Leda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. São Paulo: civilização Brasileira, 2002. Tomo IV, v. I, 1930-1963, p. 20.

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Ministro Hahnemann Guimarães

não recebeu o poder da Assembléia, não foi a Assembléia que lhe deu o poder de governar. Foi o povo que lhe deu esse poder.” — Frases proferidas no voto exarado na Rp 94/DF, julgada em 17 de julho de 1946, pelo Relator, Ministro castro Nunes.

“Filio-me ao grupo daqueles que consideram inseparáveis do regime moderno a liberdade de opinião e a liberdade de discussão.” — Frase profe-rida pelo Ministro Hahnemann Guimarães em debate com o Ministro Nelson Hungria, durante o julgamento da Ac 1.456/SP, em 19-9-1951.

“A história do pensamento econômico é uma cadeira perigosa.” — Frase proferida pelo Ministro Hahnemann Guimarães em debate com o Ministro Aliomar Baleeiro, após este dizer que havia ministrado a disciplina Teoria das Doutrinas Econômicas por falta de professor e que nela se trata de doutrinas econômicas marxistas.158

“Por maior que seja a auctoritas rerum similiter iudicatarum, nunca se pode, em nosso direito, admitir que a jurisprudência não possa ser alterada.” — Frase do Ministro Hahnemann Guimarães, constante do voto no RE 9.002/DF, em decisão de 6-5-1947.

“Mais do que qualquer outra lei, a constituição é um sistema de princí-pios, dos quais se podem deduzir regras, que, portanto, estavam compreendidas no sistema.” — Frase proferida pelo Ministro Hahnemann Guimarães em voto no MS 900/DF, na decisão de 18-5-1949.

“Foi assim que entendi: a metade de onze são cinco e meio; integrando-se para a unidade a fração, ficam seis, a esses seis acrescenta-se a unidade, e a maioria absoluta seriam sete. Mas, verifico agora que este ponto de vista é errôneo. confesso o erro em que incidi. Ainda que penosa para mim, a ver-dade obriga-me a ceder diante dela... Maioria absoluta, parece-me, é a parte de um conjunto que, somada a outra parcela, menor do que a primeira em um, ultrapassa o todo apenas de um.” — Frase proferida pelo Ministro Hahnemann Guimarães em discussão sobre o quorum formador de maioria absoluta no STF composto de onze Ministros, na Rp 106/GO, decidida em 10-5-1948.

“Senhor Presidente, o exame desta causa me impõe um cuidado excep-cional, por duas razões: primeiro, porque os pacientes são jovens estudantes, e o seu destino merece ser tratado carinhosamente, com particular simpatia; segundo, porque está em causa a própria liberdade de exposição, que, para mim, com a liberdade de discussão, constitui fundamento essencial do regime republicano.” “Por maior que seja o meu amor pela liberdade de exposição e 158 Hc 43.787/Sc, de 30-5-1967, Presidente e Relator o Ministro Hahnemann Guimarães. Ementário do STF, p. 885. Trata-se de um caso em que um professor requeria um habeas corpus no qual se alegava contra o paciente que ele seria marxista confesso. O Ministro Hahnemann Guimarães reconheceu que isso não configurava infração penal e concedeu a ordem (unânime).

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discussão, jamais poderei concordar com qualquer processo violento para fazer vencer as idéias.” — Frases proferidas pelo Ministro Hahnemann Guimarães no julgamento do Hc 31.829/DF, de 31-12-1951, em que eram pacientes os jovens estudantes (comunistas confessos) que picharam a porta da embaixada da Espanha, contra o governo do Generalíssimo Franco. O habeas corpus foi denegado.

“Não é possível que o mandado de segurança se possa transformar num remédio do qual resulte a subversão da ordem processual; não é possível que alguém possa requerer mandado de segurança contra um acórdão da turma deste Supremo Tribunal. O mandado de segurança não se destina a constituir uma panacéia processual. Isto é inadmissível.” — Assertiva proferida pelo Ministro Hahnemann Guimarães no MS 1.636, de 23-1-1952 (mandado de segu-rança impetrado contra acórdão da Segunda Turma quando o STF não reconhe-ceu do recurso extraordinário).

“[S]omente uma teoria moral verdadeira pode servir de base a uma técnica jurídica eficiente.” — Frase extraída do artigo “Juristas, sociólogos e moralistas”.159

159 GUIMARÃES, Hahnemann. Juristas, sociólogos e moralistas. Arquivos do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, 9 de outubro de 1944.

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Memória Jurisprudencial

WEBSITES CONSULTADOS

www.stf.jus.br

www.presidencia.gov.br

www.senado.gov.br

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APÊNDICE

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REPRESENTAÇÃO 94 — DF

RELATÓRIOO Sr. Ministro castro Nunes: O Sr. Dr. Procurador-Geral da República

trouxe ao conhecimento do Tribunal a representação do Sr. Governador do Estado do Rio Grande do Sul relativamente aos arts. 78, 81, 82, 89 e outros da nova constituição daquele Estado referentes ao Secretariado, do ponto de vista da dependência, em face da Assembléia, da escolha e desempenho da função dos Secretários do Governo.

Alega o ilustre chefe do Ministério Público Federal, nos termos da re-presentação e pelos fundamentos jurídicos que expõe, que tais disposições são incompatíveis com o Governo presidencial estabelecido como base do regímen político adotado no País.

Funda-se no art. 8º, parágrafo único, da constituição Federal para legi-timar o uso da atribuição exercida e a competência do Supremo Tribunal para dirimir o conflito.

Junta a representação do Governador, o texto aprovado da constituição sul-rio-grandense e outros documentos.

é o relatório.

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, no arroubo

oratório com que nos empolgou, o eminente tribuno e advogado Dr. João Mangabeira fez, no princípio e ao terminar a sua formosa oração, duas adver-tências, que não parecem justas com respeito a este Tribunal. A primeira é a de que a representação se destina a favorecer poderosos e a segunda é a de que este Tribunal deve apreciar o caso com segurança, sem vacilações, porque da sua decisão depende a própria estabilidade constitucional.

Este Tribunal não se deixa, evidentemente, impressionar pelos pode-rosos, nem se descuida, nas decisões que toma, a respeito dos casos que são sujeitos ao seu exame, dos supremos interesses da Nação, embora lhe pertença essencialmente a aplicação da lei.

O eminente advogado da Assembléia Legislativa sul-rio-grandense reconhece que o governo parlamentarista nos Estados é compatível com a constituição Federal. Não foge S. Exa. ao reconhecimento de que o que se pro-cura estabelecer na constituição do Rio Grande do Sul é, sem rebuços, o regime parlamentar, com todas as suas conseqüências, com todos os seus caracteres. Nem era possível dissimular-se a natureza parlamentarista do Governo que se

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Memória Jurisprudencial

pretende estabelecer naquele Estado. com efeito, o art. 78 da constituição do Estado estabelece que o chefe do Secretariado será, necessariamente, um mem-bro da Assembléia.

Não há, pois, liberdade para o Governador do Estado, na escolha dos seus Secretários. Ele há de se sujeitar, quanto ao chefe do Secretariado, à escolha de um membro da Assembléia Legislativa.

No art. 79, estabelece-se princípio mais grave ainda: é o Secretariado quem apresenta à Assembléia Legislativa o programa de governo do Estado. Não é o Governador quem governa; é o Secretariado, pelo programa por ele ela-borado e sujeito ao exame e à aprovação da Assembléia Legislativa.

Vai mais longe a constituição. No art. 80 subordina a permanência dos Secretários à confiança da Assembléia. Que estranha liberdade de nomeação e demissão é esta conferida a um Governador, que há de demitir, necessariamente, os seus Secretários que desmereçam da confiança da Assembléia Legislativa.

No art. 81 é que se encontra a própria flor do parlamentarismo, a orga-nização colegial do Secretariado. O Secretariado está constituído num colégio, num conselho, sob a chefia de um membro da Assembléia Legislativa, e delibera pela maioria de seus votos.

é com esse regime que se afirma estar assegurada a independência e a harmonia dos poderes do Estado do Rio Grande do Sul. Por mais sedutor, por mais poderoso que seja o engenho oratório do eminente tribuno que defende a causa da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, não é possível desco-nhecer-se que foi duramente sacrificada, na constituição do Rio Grande do Sul, a independência do Poder Executivo.

Não se trata, já o sustentei ao dar o meu voto ontem, não se trata de su-bordinar a constituição estadual a regras, a preceitos de constituição Federal. O que este Tribunal está procurando salvaguardar são os princípios constitucio-nais e, aqui, a advertência feita pelo eminente parlamentar, Sr. João Mangabeira, foi, já, tida em conta pelo eminentíssimo Sr. Ministro Relator, castro Nunes, que mostrou que este Tribunal guarda nas suas decisões os limites da exceção constitucional, não os ultrapassa de modo algum, sabe que está apreciando a constitucionalidade de atos impugnados. Não vai além desses limites estritos na apreciação do ato sujeito ao seu exame.

Mas o de que se trata é de verificar se a constituição do Rio Grande do Sul observou o princípio da harmonia e independência dos poderes. Já se pre-tendeu, até, encontrar contradição entre harmonia e independência, como se a independência repudiasse a harmonia. é evidente, porém, que só há harmonia verdadeira entre seres independentes. Só é verdadeira a harmonia voluntária,

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consciente, e esta pressupõe a independência das entidades. é entre poderes independentes; é entre um Executivo, um Legislativo e um Judiciário indepen-dentes; é só entre eles que é possível estabelecer-se uma verdadeira, uma sólida, uma consciente harmonia.

Sustentou-se, aqui, com citações de Montesquieu e Blackstone, que o re-gime parlamentar é compatível com a independência dos poderes. Lamento não haver encontrado na biblioteca deste Supremo Tribunal a obra de Woodburn, The American Republic, com a qual, a respeito dos autores citados, poderia mos-trar ao eminente orador que é meramente teórica a pretensa independência do Executivo na Inglaterra. Se houvesse essa independência na Inglaterra, não se justificaria a atitude de Jorge III nos seus esforços para recuperar o perdido poder do rei. Mas, à falta desse auxílio, socorro-me da obra de Pomeroy, na sua célebre An introduction to the constitucional law of the United States, em que, referindo-se às opiniões de Jefferson e do Presidente Jackson, diz o seguinte: “Nenhum desses teóricos admitiria, provavelmente, que o Presidente tivesse uma capaci-dade igual ou independente à do congresso para interpretar a constituição e jul-gar a validade de uma lei. Esta moderna escola, quanto às idéias que representa neste país, levaria o congresso a uma posição igual, nos Estados Unidos, à que tem o Parlamento Britânico, reduziria o Executivo ao nível da coroa Britânica, e destruiria o Judiciário, como poder coordenado do Governo”.

Ora, o nível a que ficou reduzida a coroa Britânica, como poder de go-verno, é nulo, pois, quando se afirma o princípio “The King can't do wrong”, “O rei não erra”, tem-se em vista que o rei não tem responsabilidade, ao contrário do que acontece no nosso regime, onde o chefe do Executivo é responsável.

A responsabilidade do chefe do Executivo há de implicar, necessaria-mente, a liberdade de escolher os seus auxiliares.

Pomeroy diz ainda que, se as conclusões alcançadas por Jefferson e Jackson fossem admitidas na prática constitucional dos Estados Unidos – como se quer fazer na constituição sul-rio-grandense –, toda a organização ameri-cana reduzir-se-ia a pedaços. E salienta, adiante, Pomeroy: “( … ) se fossem aceitas as noções relativas à autoridade exclusiva do congresso, o Governo converter-se-ia rapidamente em tirania irresponsável, porque o Legislativo não encontraria a resistência de sentimentos coletivos profundamente arraigados, antigos e tradicionais, que, na Grã-Bretanha, constituem fortíssimo poder con-servador.” Nenhum outro país pode oferecer, como fundamento desse regime, as mesmas tradições em que ele se alicerça na Inglaterra.

Senhor Presidente, acho desnecessário alongar-me em considerações. creio de evidência indiscutível, creio patente que o regime parlamentarista sa-crifica a independência do Poder Executivo. Não é admissível entre nós essa

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subordinação do Executivo ao Legislativo, que com ele é eleito. é preciso notar-se que o Governo do Estado foi eleito para o exercício do seu poder com a própria Assembléia Legislativa. Nem a Assembléia Legislativa pode subordi-nar o Governador às suas deliberações quanto à escolha do Secretariado, nem seria admissível o poder que se dá ao chefe do Executivo estadual de dissolver a Assembléia Legislativa. Os dois poderes são iguais, em legitimidade; am-bos vêm do povo. O Governador não recebeu o poder da Assembléia, não foi a Assembléia quem lhe deu o poder de governar. Foi o povo que lhe deu esse poder.

A Assembléia não pode reduzir, a Assembléia não pode transformar o chefe do Executivo estadual num instrumento de sua vontade. Parece-me tão evidente a subordinação que se pretendeu estabelecer, no Estado do Rio Grande do Sul, do Executivo ao Legislativo, que julgo dispensáveis – talvez não tivesse mesmo recursos para mais – maiores argumentos, para demonstrar a convicção segura com que adiro ao esplêndido voto do Sr. Ministro castro Nunes.

REPRESENTAÇÃO 106 — GO

RELATÓRIOO Sr. Ministro Abner Vasconcelos: O Dr. Procurador-Geral da República,

solicitado pelo Sr. Governador do Estado de Goiás, representa ao egrégio Supremo Tribunal, nos termos do parágrafo único do art. 8º da constituição Federal, no sentido de ser declarada a inconstitucionalidade de vários disposi-tivos da constituição Estadual, que obstam à independência e à harmonia dos poderes locais.

Eis a íntegra dessa representação:Exmo. Sr. Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal:O Procurador-Geral da República, de conformidade com o disposto no

parágrafo único do art. 8º da constituição, dirige a este Egrégio Tribunal a in-clusa representação, do Sr. Governador do Estado de Goiás e concernente a dis-positivos da constituição daquele Estado, promulgada em 20 de julho de 1947 (doc. junto).

E, porque a matéria em grande parte se prende a princípio constitucional cuja violação pode dar lugar a intervenção federal (o princípio da independência e harmonia dos poderes – art. 7º, VII, letra b, da constituição), o caso é daqueles que o Tribunal aprecia mediante representação, conforme o critério já assentado em sua jurisprudência.

I. O art. 20, XVI, da carta Estadual dá competência à Assembléia Legis-lativa, mediante sanção do Governador, para manifestar, quatro meses após as nomeações, pela maioria absoluta de seus membros, o voto de desconfiança aos Se-cretários de Estado, Procurador-Geral de Justiça e comandante da Polícia Militar.

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E acrescenta que este voto importará na demissão dos titulares respectivos, independendo de prazo o voto de desconfiança ao chefe de polícia (alíneas a e b).

Vê-se que o dispositivo, por sua natureza, devia estar logicamente colo-cado no art. 21, que estabelece a competência exclusiva da Assembléia, fixando atribuições que independem da sanção do Governador.

Mas, como negada tal sanção, o veto poderá ser rejeitado pela Assembléia (art. 23, § 4º), existe, sempre, o problema de saber se o preceito questionado viola ou não o princípio da independência e harmonia dos poderes.

A nosso ver, a violação é manifesta.E assim já sentenciou o Egrégio Tribunal em casos análogos (v. Arquivo

Judiciário, vol. 85, fascículo 1).II. O art. 21, XII, atribui competência exclusiva à Assembléia para apro-

var, mediante voto secreto, a escolha do Procurador-Geral de Justiça e membros do Tribunal de contas.

Já aqui não nos parece que exista inconstitucionalidade.Se a constituição Federal declara o Senado competente para aprovar,

mediante voto secreto, a escolha do Procurador-Geral da República e dos Ministros do Tribunal de contas (art. 63, I), por que havemos de considerar inconstitucional a constituição do Estado por conferir igual competência, na órbita estadual, à Assembléia Legislativa quanto à escolha do Procurador-Geral de Justiça e membros do Tribunal de contas?

A carta Estadual manteve aí o princípio da independência e harmonia dos poderes, sem se afastar do modelo federal e, portanto, não há como argüir-lhe inconstitucionalidade nesse ponto.

III. O art. 21, IX, dispõe que é da competência exclusiva da Assembléia examinar, em confronto com as respectivas leis, os regulamentos expedidos pelo Governador, suspendendo os dispositivos ilegais.

O dispositivo é inconstitucional, conforme já decidiu o Egrégio Tribunal com relação a preceito análogo da constituição paulista, art. 21, i (v. Arq. Jud., vol. 85, p. 112, 113 e 146).

Além de restringir a função regulamentar do Poder Executivo, o pre-ceito questionado, dando aquela competência exclusiva à Assembléia, retira ao Judiciário uma atribuição que lhe é própria, sendo, por isso, evidentemente contrário a carta Magna.

IV. As alíneas X e XI do art. 102 declaram que compete à câmara Municipal indicar, em lista tríplice, os candidatos à Delegacia de Polícia (dentre os quais o Governo do Estado nomeará o Delegado Municipal) e solicitar ao Governador do Estado a demissão dos Delegados de Polícia.

A matéria, a nosso ver, não se vincula a qualquer dos princípios indica-dos no art. 7º, VII, da Lei Magna e, assim, não é daquelas que, nos termos do seu art. 8º, parágrafo único, podem ser submetidas ao Supremo Tribunal Federal, mediante representação, para serem apreciadas em tese.

Argumenta o Sr. Governador de Goiás, em seu ofício, que as apontadas alíneas exageram a autonomia municipal, emprestando-lhe um conceito mons-truoso, em detrimento do Poder Estadual (fl. 15).

Se se alegasse violação da autonomia municipal, caberia o exame em tese, porque é esse um dos princípios cuja observância impõe aos Estados o ci-tado art. 7º, VII, da constituição Federal.

Mas a alegação que se faz é em sentido inverso, diz-se que a autonomia foi consagrada em termos excessivos. E tal hipótese não foi considerada em ne-nhum dos incisos do referido art. 7º, VII.

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V. O art. 31 e seu § 2º determinam que o Tribunal de contas se comporá de um juiz de direito, um advogado e um contador, nomeados pelo Governador com prévia aprovação da Assembléia, sendo o juiz escolhido em lista tríplice organizada pelo Tribunal de Justiça.

O ponto relativo à aprovação pela Assembléia já foi examinado.No mais, não vemos em que se possa considerar inconstitucional o

dispositivo.VI. Diante do exposto, concluímos pela inconstitucionalidade dos arts.

20, XVI, alíneas a e b, e 21, IX, da constituição de Goiás.O suplicante, pedindo que a presente seja distribuída e processada na

forma de lei,E. deferimento.Distrito Federal, 10 de maio de 1948.(a.) Luiz Gallotti, Procurador-Geral da República.

é o relatório que, versando matéria de natureza constitucional, proponho seja publicado para julgamento em sessão posterior.

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, estou inteira-

mente de acordo com as conclusões a que chegou o ilustre Sr. Ministro Abner de Vasconcelos, considerando inconstitucionais as disposições dos arts. 20, XVI, alíneas a e b; 21, IX; e 102, X e XI.

Quanto às duas primeiras disposições, parece-me que estou dispensado de aduzir considerações para justificar a adesão que agora manifesto ao voto do eminente Sr. Ministro Relator, pois que, em casos anteriores, já este Supremo Tribunal Federal teve ensejo de firmar sua jurisprudência, segundo a qual não é lícito ao Poder Legislativo expressar voto de confiança ou desconfiança, como seria, no caso, a respeito da escolha de Secretários de Estado. Na hipótese, aos Secretários de Estado se acrescentou o chefe de polícia.

A razão de se rejeitar, por inconstitucional, o preceito, é a mesma que vigora quanto à inconstitucionalidade do voto de confiança ou desconfiança a respeito dos Secretários.

Do mesmo modo, não me parece necessário bordar argumentos a respeito da inconstitucionalidade da disposição que confia ao Poder Legislativo exami-nar a validade dos regulamentos expedidos pelo Poder Executivo.

Evidentemente, a constitucionalidade, a validade – seria melhor dizer-se – desses regulamentos somente poderá ser apreciada pelo Poder Judiciário.

Quanto ao art. 102, X e XI, é, porém, nova a matéria sujeita ao exame deste Tribunal.

Trata-se de confiar ao Legislativo municipal a indicação, em lista tríplice, das pessoas dentre as quais deva ser escolhido o Delegado de Polícia do Município.

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Evidentemente, essa disposição amplia em demasia a autonomia municipal. Nis so não haveria inconstitucionalidade, mas essa hipertrofia da autonomia munici-pal, que não seria inconstitucional, redunda, entretanto, em diminuir a independên-cia do Poder Executivo, no exercício de uma sua função essencial, que é a função de polícia. Não é admissível que a função de polícia, que ao Poder Executivo estadual incumbe exercer no Estado, fique com a sua independência restringida pela indica-ção que a constituição do Estado de Goiás comete ao Legislativo municipal.

Assim, Senhor Presidente, estou inteiramente de acordo com as conclu-sões adotadas no voto do Ministro Abner de Vasconcelos.

Parece-me oportuno, entretanto, acrescentar, a respeito do art. 31 e do seu § 2º, que, embora não os considere inconstitucionais, entendo que, se o juiz acei-tar a indicação para construir o Tribunal de contas estadual, evidentemente, perderá a função judiciária.

O Sr. Ministro Edgard costa: Está declarado isso na constituição goiana?O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Não está declarado, mas decorre

do inciso I do art. 96 da constituição Federal.Estou de acordo com o receio do Sr. Ministro Edgard costa, quanto a se

poder entender que, julgando este Supremo Tribunal Federal válida a disposição da constituição do Estado, se conclua daí que o juiz pode, na sua função de juiz, ser membro do Tribunal de contas.

Acho oportuno que fique, desde já, esclarecido que o juiz poderá ser es-colhido para membro do Tribunal de contas, perdendo a função judiciária se aceitar a escolha. Se a disposição da constituição Estadual quis estabelecer um critério de recrutamento dos membros do Tribunal de contas estadual, é acei-tável a disposição.

O Sr. Ministro Edgard costa: E se nenhum juiz de direito quiser aceitar?O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Aí podemos declarar a disposi-

ção inconstitucional.O Sr. Ministro Edgard costa: O que eu digo é que se trata de função em co-

missão. Não é cargo efetivo. Não havia razão para escolher entre juízes de direito.O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Devo acrescentar que não é pos-

sível declarar-se inconstitucional a disposição em face do art. 7º, VII, da cons-tituição, porque aí não se diminuem as garantias do Poder Judiciário. O que a constituição veda é que a carta Fundamental dos Estados restrinja as garantias do Poder Judiciário. Aí não se restringem garantias. Ao contrário, atribui-se ao órgão do Poder Judiciário uma preferência na composição do Tribunal de contas.

Não há como se declarar, em face do art. 7º, inciso VII, inconstitucional a disposição. Mas entendo oportuno o ensejo para que se fixe que a escolha de um

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membro do Poder Judiciário para a constituição do Tribunal de contas não lhe permite que continue a exercer a função judiciária, nos termos do citado art. 96, I.

é o meu voto.

INDIcAÇÃOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, havendo seis

Mi nis tros votado pela inconstitucionalidade do art. 102, X e XI, e votando três Mi - nis tros pela constitucionalidade, entendo que o caso foi julgado na sessão de hoje, embora falte um Ministro para completar a totalidade de membros do Tribunal. Havia número suficiente para a deliberação, isto é, havia Ministros em número suficiente para a decretação de inconstitucionalidade, por sete dos seus membros, que constituem a maioria absoluta do Tribunal.

A deliberação foi adotada; não houve número para a declaração de in-constitucionalidade do art. 102, nos seus n. X e XI. Esta matéria não pode ser de novo trazida à discussão; está encerrado o julgamento da causa.

é a indicação que peço a V. Exa. submeter ao Tribunal.

VOTO(Sobre indicação)

O Sr. Ministro Edgard costa: Senhor Presidente, o Regimento exigia, para o julgamento da argüição de inconstitucionalidade, desde o relatório, a presença da totalidade dos membros do Tribunal. No julgamento do MS 913, de que fui Relator, concluí pela inconstitucionalidade de um ato do interventor no Estado do Paraná. Levantou-se, então, a questão de saber se podia ser julgada a argüição, não obstante não estar o Tribunal completo, ausente o Sr. Ministro Orozimbo Nonato, que não tem substituto. Deliberou-se, então, que, desde que os juízes presentes, com quorum não pudesse ser atingido ainda que com os vo-tos dos ausentes, desde logo era possível decretar-se a inconstitucionalidade, no primeiro caso, ou desprezar, no segundo, a argüição. O eminente Sr. Ministro Laudo de camargo, na sessão seguinte, trouxe uma indicação, a fim de que se submetesse à discussão aquela resolução. O eminente Sr. Ministro Laudo de camargo entendia que se devia esclarecer apenas a questão da convocação, dês que a resolução tomada estava incorporada ao Regimento, advertindo que seria conveniente adiar-se o debate, a discussão em torno da indicação, porque esta-vam ausentes os Srs. Ministros Goulart de Oliveira, castro Nunes e Orozimbo Nonato. Redigi, de acordo com o vencido, a seguinte emenda ao Regimento, consubstanciando a resolução tomada naquele mandado de segurança:

Para o julgamento de argüição de inconstitucionalidade não é necessária a presença da totalidade dos membros do Tribunal, bastando o quorum exigido para o seu funcionamento.

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Foi o que aconteceu: entramos no julgamento sem a totalidade dos mem-bros do Tribunal, mas com o regimental quorum para a sessão.

Prossegue a emenda:

Se os votos dos ausentes (no caso, do ausente) não puderem concorrer para a formação da maioria absoluta precisa à sua declaração, ter-se-á por des-prezada, desde logo, a argüição.

Em caso contrário (é a hipótese, porque há dois que decretam a inconsti-tucionalidade), sobrestando-se no julgamento, aguardar-se-á o comparecimento dos Ministros ausentes (no caso, do Ministro ausente), ou, quando afastado do exercício, de seu substituto, para esse fim convocado.

Assim, o Tribunal terá julgado a inconstitucionalidade pela totalidade: será a maioria absoluta da totalidade, não a maioria absoluta no momento.

Desta forma, Senhor Presidente, entendo que no caso se deve sobrestar no julgamento e convocar substituto para o Ministro ausente.

VOTO(Sobre indicação)

O Sr. Ministro Abner de Vasconcelos: Senhor Presidente, data venia da opinião do eminente Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, parece-me que a votação, uma vez que não alcançou o quorum constitucional e há ainda lugar, com a presença do Ministro ausente, para a declaração de inconstitucionalidade, deve, nesta parte, a votação ser adiada, para quando o Tribunal estiver integrali-zado. Parece-me que é esse o regime previsto no Regimento do próprio Supremo Tribunal. Se o Tribunal é chamado a dizer da inconstitucionalidade de um dispo-sitivo de constituição estadual, deve contar com a totalidade de seus membros. Desde que falte esse número, pelo menos nesta parte, deve ficar adiada a votação.

Estou em perfeito acordo com o Sr. Ministro Edgard costa.

VOTO(Sobre indicação)

O Sr. Ministro Armando Prado: Senhor Presidente, estou de acordo com a opinião do Sr. Ministro Edgard costa, data venia do Sr. Ministro Hahnemann Guimarães.

VOTO(Sobre indicação)

O Sr. Ministro Ribeiro da costa: Senhor Presidente, o Tribunal passou a deliberar, a meu ver, contra expressa disposição regimental. A disposição regimental, que ainda está em vigor, exige, para o julgamento de questões

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relativas à argüição de inconstitucionalidade, o comparecimento de todos os seus membros.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Mas esta disposição regimental é anterior à constituição, que, em seu art. 200, regula a matéria.

O Sr. Ministro Ribeiro da costa: Embora anterior, a disposição regimen-tal não foi alterada.

O Sr. Ministro Annibal Freire: Mesmo na vigência da constituição de 1946, continuou a ser observado o preceito do Regimento.

O Sr. Ministro Ribeiro da costa: é certo que o Sr. Ministro Edgard costa apresentou uma indicação em outro sentido, para alterar esse disposi-tivo regimental, permitindo que o Tribunal se reúna mesmo sem a totalidade de seus membros, para apreciar questões de inconstitucionalidade de lei. Mas, segundo meu parecer, é pensamento do Sr. Ministro Edgard costa e vi na indicação da emenda ao Regimento, feita por S. Exa., que, neste caso, proce-dendo-se ao julgamento e não se atingindo número de votos para se declarar a inconstitucionalidade da lei, dever-se-ia convocar o membro ausente, para que se pronunciasse a respeito.

Assim, para evitar maiores prejuízos aos julgados deste Tribunal, parece-me que devemos ficar de acordo com a norma regimental vigente, ou convocar o Ministro, ou refazer-se o julgamento.

VOTO(Sobre indicação)

O Sr. Ministro Lafayette de Andrada: Senhor Presidente, se a matéria é regimental, fico com o Regimento, exigindo a presença de todos os membros, até que se esclareça o assunto com a emenda do Sr. Ministro Edgard costa.

VOTO(Sobre indicação)

O Sr. Ministro Annibal Freire: Senhor Presidente, a experiência veio provar, neste caso, como foi sábio o Regimento, exigindo, para deliberação de matéria constitucional, a presença da totalidade dos seus membros.

Tudo quanto se discute é em redor do que vai ser feito, porquanto a pro-posta do eminente Sr. Ministro Laudo de camargo ainda não se concretizou e o eminente Sr. Ministro Edgard costa assim o acaba de afirmar.

O Sr. Ministro Edgard costa: A resolução foi tomada com emenda ao Regimento.

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O Sr. Ministro Annibal Freire: Mas não foi aprovada pelo Tribunal, e eu, que acompanhei o voto de V. Exa., volto, lealmente, atrás, no meu entendi-mento, e acho que, diante da lição, deve ser observado o Regimento.

O Sr. Ministro Edgard costa: V. Exa. invoca o Regimento. No entanto, o eminente Sr. Ministro Orozimbo Nonato não assistiu ao relatório.

O Sr. Ministro Annibal Freire: Não colhe o argumento, porque, vigente a constituição de 1946, observou-se estritamente o Regimento em todos os graves casos submetidos a este Tribunal e a ressonância e magnitude de nossas decisões, incontestavelmente, indisfarçavelmente, devem ter assumido maior relevo pela circunstância de se acharem presentes todos os Ministros. Foi um fato que impressionou a opinião pública e jurídica do país.

Meu voto, portanto, é de acordo com o Sr. Ministro Edgard costa, no sentido de se convocar o Ministro ausente, para tomar parte no julgamento, re-considerando, assim, meu ponto de vista anteriormente explanado.

VOTO(Sobre indicação)

O Sr. Ministro Barros Barreto: Senhor Presidente, acompanho o voto do eminente Sr. Ministro Hahnemann Guimarães.

VOTO(Sobre indicação)

O Sr. Ministro Laudo de camargo: Na minha indicação anterior, aduzi ar-gumentos tendentes a mostrar a impossibilidade do funcionamento do Tribunal, relativamente à matéria de inconstitucionalidade de lei, sem a prévia convoca-ção de todos os juízes.

E, neste sentido, voto.

DEcISÃOcomo consta da ata, a decisão foi seguinte: Foram declarados inconstitu-

cionais os arts. 20, XVI, a e b, e 21, IX, por unanimidade de votos; o art. 102, X e XI, foi declarado inconstitucional pelos Ministros Abner de Vasconcelos, Armando Prado, Hahnemann Guimarães, Edgard costa, Annibal Freire e Laudo de camargo, e não tomaram conhecimento da argüição, por incabí-vel, os Ministros Ribeiro da costa, Lafayette de Andrada e Barros Barreto; o art. 31, § 2º, foi declarado constitucional pelos votos dos Ministros Abner de Vasconcelos, Armando Prado, Hahnemann Guimarães, Lafayette de Andrada e Barros Barreto, e inconstitucional pelos votos dos Ministros Ribeiro da costa,

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Edgard costa, Annibal Freire e Laudo de camargo. Indeferida a indicação do Ministro Hahnemann Guimarães, contra seu voto e do Ministro Barros Barreto, será sujeita à apreciação do Tribunal a argüição referente ao art. 102, visto não ter alcançado o quorum legal para declaração de inconstitucionalidade.

Deixaram de comparecer os Ministros castro Nunes, Goulart de Oliveira e Orozimbo Nonato, por se acharem em gozo de licença, os dois primeiros substi-tuídos, respectivamente, pelos Ministros Armando Prado e Abner de Vasconcelos.

PELA ORDEMO Sr. Ministro Edgard costa: Senhor Presidente, peço a V. Exa. que

submeta ao Tribunal a seguinte preliminar: “Deve o Presidente do Tribunal votar obrigatoriamente nas questões constitucionais, ou deverá ele votar apenas quando houver empate, como em relação às outras matérias não constitucionais?”

O Sr. Ministro Annibal Freire: Entendo que o Presidente nunca poderá desempatar, porque, na hipótese de se verificar a votação de cinco votos contra cinco, permanecerá a constitucionalidade da lei.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Não penso como o Sr. Ministro Annibal Freire. Quando se verificar a contagem de cinco votos contra cinco, com o voto do Presidente ter-se-á o total de seis votos contra cinco.

O Sr. Ministro Edgard costa: A preliminar por mim levantada tem rele-vância, porque, se o Presidente não votar, a maioria será, indubitavelmente, de seis, porque, sendo a metade de dez Ministros cinco, seis (metade e mais um) representam a maioria absoluta, necessária à decretação da inconstitucionali-dade da lei. caso, entretanto, o Presidente vote, já a questão não se apresentará com a mesma simplicidade.

O Sr. Ministro Annibal Freire: Insisto em que não interessa o voto do Presidente, de vez que, na minha opinião, não pode ocorrer o empate. E, no caso de não se verificar o quorum, será mantida a constitucionalidade da lei.

O Sr. Ministro Edgard costa: Interessa o voto do Ministro Presidente, pois, caso ele vote, o quorum para a decretação da inconstitucionalidade será, a meu ver, de sete votos, pelos motivos que aduzirei. Eis por que entendo que o Presidente deverá votar sempre que se tratar de matéria constitucional.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: A preliminar do Sr. Ministro Edgard costa parece-me perfeitamente fundada, porque o que cumpre saber é se nas questões constitucionais deve o Presidente votar sempre ou não. Entendo que deve, porque a matéria constitucional envolve a manifestação de todo o Tribunal.

O Sr. Ministro Edgard costa: Assim exposta esta preliminar, peço a V. Exa., Senhor Presidente, que a submeta à apreciação do Tribunal.

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Ministro Hahnemann Guimarães

PELA ORDEMO Sr. Ministro José Linhares: Senhor Presidente, a questão levantada pelo

Sr. Ministro Edgard costa diz respeito a quando o Tribunal se manifesta em igualdade de número. Mas, para que se declare constitucional ou inconstitucio-nal uma lei, é preciso que o Tribunal se manifeste por maioria absoluta de seus membros, como exige a constituição Federal. Desde que não tenha havido seis votos de um lado, não haverá maioria para decretar-se a inconstitucionalidade.

O Sr. Ministro Annibal Freire: O Ministro Presidente não pode senão proclamar o resultado a que chegou o Tribunal.

O Sr. Ministro José Linhares: Se o Tribunal, por exemplo, se manifestar por cinco votos contra quatro, não haverá maioria absoluta.

O Sr. Ministro Edgard costa: A hipótese figurada pelo Sr. Ministro José Linhares serve perfeitamente para mostrar a oportunidade da preliminar por mim levantada. Se se entender que o Presidente vota sempre, em matéria consti-tucional, ele poderá tanto se inclinar pela primeira corrente como pela segunda; no primeiro caso, o quorum de seis votos seria atingido.

O Sr. Ministro José Linhares: com cinco votos não se pode decretar a inconstitucionalidade da lei, e entendo que o Ministro Presidente só tem voto quando ocorre empate.

O Sr. Ministro Barros Barreto: Se o Presidente não votar, ter-se-á a se-guinte situação: ele será computado para formar o quorum, mas não influirá com seu voto na decisão; ele ficará, assim, de braços cruzados, quando, com seu voto, poderia ser atingido o quorum. Se o Regimento obsta a que o Presidente vote sempre em matéria constitucional, seria o caso de alterá-lo.

O Sr. Ministro Edgard costa: O Regimento dispõe que quando houver empate o Presidente desempatará. Mas, quando se trata de matéria constitu-cional, o artigo regimental estará conforme ao espírito e a letra do art. 200 da constituição Federal, que exige a maioria absoluta do Tribunal para a decreta-ção da inconstitucionalidade? Para a fixação do quorum, julgo indispensável saber se o Presidente vota sempre ou não em matéria constitucional. Reitero, assim, a preliminar levantada.

O Sr. Ministro José Linhares: Entendo, Senhor Presidente, que devemos nos ater à questão do quorum, surgida a propósito do caso concreto que esta-mos julgando.

PEDIDO DE PREFERÊNcIA E VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, a respeito

do caso concreto que o Tribunal está apreciando, o Sr. Ministro Edgard costa

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levantou questão de ordem teórica, abstrata, que tem preferência sobre a ques-tão concreta, porque, de acordo com a solução dada à questão teórica, abstrata, terá solução a questão concreta. Pediria, assim, preferência para a tese ou pre-liminar levantada pelo Sr. Ministro Edgard costa, de ser ou não obrigatório o voto do Presidente nas questões constitucionais. E desde já, Senhor Presidente, antecipo meu entendimento, entendendo ser obrigatório esse voto.

VOTO(Sobre preferência)

O Sr. Ministro Ribeiro da costa: Senhor Presidente, não me oponho a que se dê preferência à preliminar levantada pelo Sr. Ministro Edgard costa.

VOTO(Sobre preferência)

O Sr. Ministro Lafayette de Andrada: Senhor Presidente, inclino-me a discutir desde logo o caso concreto, ficando a questão proposta pelo Ministro Edgard costa para ser tratada por ocasião da discussão do Regimento Interno deste Tribunal.

VOTO(Sobre preferência)

O Sr. Ministro Annibal Freire: Senhor Presidente, opino que se discuta desde logo a questão do quorum para a maioria absoluta.

VOTO(Sobre preferência)

O Sr. Ministro Edgard costa: Senhor Presidente, não posso resolver a questão do quorum sem saber antes se o Presidente vota ou não obrigatoria-mente nas questões constitucionais.

VOTO(Sobre preferência)

O Sr. Ministro Barros Barreto: Senhor Presidente, voto a favor da prefe-rência requerida pelo eminente Ministro Hahnemann Guimarães, por entender que a questão do voto do Presidente, em matéria constitucional, deve ser resol-vida antes da do quorum.

VOTO(Sobre preferência)

O Sr. Ministro José Linhares: Senhor Presidente, acompanho o voto do Sr. Ministro Annibal Freire.

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Ministro Hahnemann Guimarães

PRIMEIRA PRELIMINARO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, entendo que o

Ministro Presidente deverá votar, necessariamente, em matéria constitucional, mesmo que não haja empate.

VOTOO Sr. Ministro Ribeiro da costa: Senhor Presidente, o Sr. Ministro

Hahnemann Guimarães entende que nas questões de ordem constitucional o Pre-sidente do Tribunal necessariamente terá de votar em todos os casos. Peço licença para divergir desse ponto de vista com os seguintes argumentos: o art. 200 da cons-tituição estabelece que só pelo voto da maioria absoluta de seus membros poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade da lei ou de ato do poder público.

Ora, a maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal Federal, cons-tituído de 11 membros, há de se contar incluindo, entre os membros do Tribunal, o Presidente. A cláusula constitucional não desloca a questão prevista no Regi-mento Interno desse Tribunal, nem do código de Processo, sobre a oportunidade em que deve votar o Presidente. Ele tem voto somente quando ocorre empate. Nós não podemos estabelecer, sem dispositivo legal, o voto necessário, obriga-tório, indispensável, do Presidente, quando se tratar de matéria constitucional.

Parece-me que, se se verificar o empate na votação da matéria constitucio-nal, só então o Presidente terá voto, como tem normalmente em todo desempate.

é o meu voto.

VOTOO Sr. Ministro Lafayette de Andrada: Senhor Presidente, acompanho o

voto do Sr. Ministro Ribeiro da costa.

VOTOO Sr. Ministro Edgard costa: Senhor Presidente, acompanho o voto do

Sr. Ministro Hahnemann Guimarães. Entendo que, quando se tratar de matéria constitucional, o Presidente do Tribunal, em face do art. 200 da constituição, que exige a maioria absoluta dos membros do Tribunal para a declaração de inconstitucionalidade (e o Presidente é membro do Tribunal), deverá sempre votar, haja ou não empate.

VOTOO Sr. Ministro Annibal Freire: Senhor Presidente, entendo que, na hipó-

tese formulada pelo Sr. Ministro Edgard costa, não é possível ocorrer empate.

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Memória Jurisprudencial

O Presidente, assim, nunca poderá desempatar, porque o essencial, no caso, é verificar se houve ou não o quorum para a declaração de inconstitucionalidade da lei. Se a votação for de cinco votos a favor da constitucionalidade e cinco contra ela, a lei será tida como constitucional, desde que o quorum para a decre-tação da inconstitucionalidade não foi atingido.

Figuremos, entretanto, a hipótese da votação de cinco votos contra cinco, tendo o Presidente voto. Em tal caso, haveria quorum, porque o seu voto, a fa-vor ou contra a constitucionalidade de lei, seria contado, e teríamos cinco votos contra seis, num ou noutro sentido. Não penso, porém, que esta seja a hipótese verdadeira. A meu ver, não pode ocorrer o empate, porque o Presidente não tem voto em matéria constitucional. cabe-lhe, apenas, proclamar o resultado da constitucionalidade da lei, quando o quorum para a decretação da inconstitucio-nalidade não for atingido.

VOTOO Sr. Ministro Barros Barreto: Senhor Presidente, acompanho o voto do

Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, de acordo com a opinião que já antecipei em aparte.

VOTOO Sr. Ministro José Linhares: Senhor Presidente, acompanho o voto do

Sr. Ministro Ribeiro da costa.

VOTO(Segunda preliminar)

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, sou obrigado, a meu pesar, a tecer algumas considerações sobre esta matéria, pois que, em caso anterior, tive ensejo de me manifestar, acompanhando o Dr. Procurador-Geral da República, no sentido de que a maioria absoluta seria constituída pelo voto de sete juízes deste Tribunal. A este respeito, o Dr. Erasto da Silveira Fortes elaborou um trabalho que provocou minha meditação e estudo, medita-ção tanto mais laboriosa quanto estava envolvida na questão um ponto de vista meu, e sempre a vaidade dificulta a solução das questões. Era natural que eu me prendesse à doutrina que havia defendido.

O Sr. Ministro Ribeiro da costa: Isto não aconteceria com V. Exa., Sr. Ministro Hahnemann Guimarães.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: O Sr. Erasto da Silveira Fortes fez este comentário em seu trabalho:

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Ministro Hahnemann Guimarães

O Exmo. Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, sufragando doutrina exposta pelo Exmo. Sr. Dr. Procurador-Geral da República (Mandado de Segurança n. 884), sustenta que integram a maioria absoluta do Supremo Tribunal Federal 7 Ministros. S. Exa. justifica essa fixação por entender que a maioria absoluta de 10 não pode ser idêntica à de 11 – e daí – sendo 6 a maioria absoluta de 10, a maioria absoluta de 11 será forçosamente 7.

E desenvolve o ilustre juiz considerações demonstrativas de que, sendo ímpar o número de votantes, não se aplica a regra pela qual a maioria absoluta é fixada na metade mais um.

Tive ensejo de estudar esta matéria e, cedendo a um velho gosto, fui até às fontes romanas, às quais se prende o princípio da maioria absoluta, in-vocando-se quase sempre um texto de Ulpiano, do Digesto, onde ele diz: “Ad universos refertur quod publice fit per maiorem partem.” Esta maior parte é a maioria absoluta.

como entender-se esta maioria absoluta? Firmou-se o princípio de que a maioria absoluta é constituída pela metade mais um dos votantes, mas, eviden-temente, esse princípio, aplicado ao número ímpar de votantes, induz dificul-dades, que podem depois levar ao erro de se supor que a maioria absoluta, no caso de número ímpar de juízes, deva ser constituída pela integração da parte fracionária e o acréscimo de um.

Foi assim que entendi: a metade de onze são cinco e meio; integrando-se para a unidade a fração, ficam seis; a esses seis acrescenta-se a unidade, e a maioria absoluta seriam sete. Mas verifico agora que esse ponto de vista é er-rôneo. confesso o erro em que incidi. Ainda que penosa para mim, a verdade obriga-me a ceder diante dela.

Esse conceito errôneo de maioria absoluta levou alguns juristas a propor novo conceito, segundo o qual a maioria absoluta seria o número constituído pela quantidade imediatamente superior à metade. Esse é o conceito defen-dido pelo jurista que escreveu o artigo sobre maioria absoluta no Dicionário de Direito Privado, de Scialoja. Mas esse conceito volta à dificuldade criada pelo conceito anterior, cujo defeito é manifesto.

Essa matéria dá lugar a uma conclusão que parecerá talvez complexa, que parecerá talvez tornar mais complicada a questão. Mas essa conclusão, a meu ver, é a que representa o verdadeiro conceito de maioria absoluta.

Maioria absoluta, parece-me, é a parte de um conjunto que, somada a outra parcela, menor do que a primeira em um, ultrapassa o todo apenas de um.

Assim, reconhecendo o meu erro, confesso-me agora partidário da con-vicção segundo a qual a maioria absoluta deste Tribunal é constituída pelo voto de seis dos seus membros.

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Memória Jurisprudencial

VOTOO Sr. Ministro Lafayette de Andrada: Senhor Presidente, entendo que a

maioria absoluta dos membros deste Tribunal é constituída por seis votos.

VOTOO Sr. Ministro Ribeiro da costa: Senhor Presidente, não tenho dúvida em

aderir ao ponto de vista lucidamente sustentada pelo Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, tendo apenas a acrescentar que esse conceito de maioria absoluta, se me não engano, já havida sido firmado por esta Alta corte em casos inúme-ros, conforme lembrou em seu trabalho, com a citação das fontes, o Dr. Erasto da Silveira Fortes. Verifica-se por ele que os precedentes firmados pela juris-prudência deste Tribunal se avolumam em favor da corrente que admite como maioria absoluta o número de seis juízes.

é lembrado, a respeito, o que consta da publicação das questões de or-dem, no impresso 516 da Imprensa Nacional. E transcreve trechos da discussão travada nesta corte sobre a matéria. O Sr. Ministro castro Nunes fere a questão do seguinte modo:

Quer isto dizer que, no Supremo Tribunal, pela composição atual de onze Ministros serão necessários, pelo menos, seis a declarar a inconstitucionalidade de lei para que esta inconstitucionalidade prevaleça.

( … ) a favor da inconstitucionalidade, que não teria prevalecido, por falta de seis vozes.

São necessárias seis vozes para declarar a inconstitucionalidade.O Tribunal tem, agora, nove membros, nove vozes. Manifestam-se pela

inconstitucionalidade cinco e quatro em contrário. Ora, se aquele Ministro que não compareceu, ou que não voltou por impedido, se manifestasse pela incons-titucionalidade, a parte argüente teria vencido a demanda.

O Sr. Ministro Philadelpho Azevedo assim se pronuncia:

( … ) torna-se, porém, necessária a manifestação da maioria absoluta dos membros de um Tribunal: é preciso, particularizando a hipótese, que seis Mi-nistros do Supremo Tribunal afirmem a inconstitucionalidade de certa lei ( … )

Se há seis Ministros a fulminar a lei tollitur questio ( … )( … ) se há seis que entendem a lei inconstitucional.( … ) basta que se forme o número de seis; não se formando, a lei continu-

ará a imperar, aproveitando da presunção de subsistência.

E o Sr. Ministro Goulart de Oliveira:

( … ) Seis juízes seria maioria de 10: seis juízes que se manifestassem pela inconstitucionalidade dariam solução constitucional à matéria, que estaria resolvida.

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Ministro Hahnemann Guimarães

Menciona também a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, desta-cando os seguintes julgados:

– Aci 5.966: Julgaram inconstitucional o Decreto 14.953, de 10 de outu-bro de 1932, contra os votos dos Ministros Plínio casado, Laudo de camargo, carvalho Mourão e Octavio Kelly.

– RE 5.148: Julgaram inconstitucional o dispositivo impugnado, contra os votos dos Ministros Annibal Freire, castro Nunes, Goulart de Oliveira e José Linhares.

– RE 5.159: Julgaram inconstitucional o dispositivo impugnado, pelos votos dos Ministros José Linhares, Orozimbo Nonato, Philadelpho Azevedo, Waldemar Falcão, castro Nunes e Annibal Freire.

– Matéria constitucional 7.204: Julgaram incompatível com os preceitos constitucionais vigentes o art. 29, in fine, do Decreto 24.233, de 12 de maio de 1934, contra os votos dos Srs. Ministros Eduardo Espinola, Barros Barreto e carlos Maximiliano. Impedido o Sr. Ministro cunha Mello.

Assim, para não me demorar mais sobre o assunto, embora se trate de questão que realmente traz à discussão grande cópia de argumentos doutriná-rios, limito-me a aderir ao voto do Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, que recordou com lucidez a matéria, para entender também, a meu ver, com a devida vênia, que seis juízes deste Tribunal constituem maioria para a declaração de inconstitucionalidade de leis.

QUESTÃO DE ORDEM(Segunda preliminar)

O Sr. Ministro Edgard costa: Senhor Presidente, tendo o Tribunal acabado de decidir, por maioria de votos, que o Presidente não vota nas questões cons- titucionais, salvo em caso de empate, e sendo, assim, dez os membros do Tribunal a votar, dúvida alguma pode subsistir relativamente ao quorum para a declaração de inconstitucionalidade, isto é, seis votos, que constituem a maio-ria absoluta. As decisões do Tribunal invocadas por interessados e relembradas há pouco pelo Sr. Ministro Ribeiro da costa, referiam-se a dez membros, sem o voto do Presidente; daí terem sido sempre decididas as argüições de incons-titucionalidade por seis votos contra quatro. Nestas condições, decidindo o Tribunal, já agora, que são dez os votantes, dúvida não resta de que a maioria absoluta, sendo a metade e mais um, é constituída de seis.

QUESTÃO DE ORDEMO Sr. Ministro Annibal Freire: Senhor Presidente, a controvérsia deu

margem a um brilhante trabalho do juiz Erasto Fortes, que relembrou deli-berações do Tribunal, sobre inconstitucionalidade, tomadas por seis votos. A esse brilhante trabalho se vieram acrescentar o voto do Sr. Ministro Abner

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Memória Jurisprudencial

de Vasconcelos, magistralmente concebido, e o erudito voto do Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, que é um modelo de lealdade e de precisão de conceitos.

Não querendo senão que o Supremo Tribunal continue fiel à sua orienta-ção, acompanho esses votos e declaro que seis é o número de juízes que formam a maioria absoluta para decretação de inconstitucionalidade.

QUESTÃO DE ORDEMO Sr. Ministro Barros Barreto: Senhor Presidente, acompanho o bri-

lhante voto proferido pelo eminente Ministro Hahnemann Guimarães e ainda de acordo com os fundamentos expedidos pelo eminente Ministro Edgard costa.

QUESTÃO DE ORDEMO Sr. Ministro José Linhares: Senhor Presidente, também entendo que

são seis os votos para constituir a maioria absoluta em questões constitucionais.

DEcISÃOO Sr. Ministro Laudo de camargo (Presidente): Decidiu o Tribunal, pre-

liminarmente, por maioria de votos, que o Presidente só votará nas questões constitucionais, quando houver empate.

Quanto ao quorum, decidiu ser de seis, para a declaração de inconstitucio-nalidade, por constituir a maioria absoluta de que fala o preceito constitucional.

DEcISÃOcomo consta da ata, a decisão foi a seguinte: Foram declarados inconsti-

tucionais o art. 20, XVI, letras a e b; o art. 21, IX, por unanimidade; e o art. 102, pelos votos dos Ministros Abner de Vasconcelos, Armando Prado, Hahnemann Guimarães, Edgard costa, Annibal Freire e Laudo de camargo. Foi declarado constitucional o art. 31, § 2º, pelos votos dos Ministros Abner de Vasconcelos, Armando Prado, Hahnemann Guimarães, Lafayette de Andrada e Barros Barreto, contra os votos dos Ministros Ribeiro da costa, Edgard costa, Annibal Freire e Laudo de camargo. Resolveu ainda o Tribunal que o Presidente só in-tervirá nas questões constitucionais quando houver empate, contra os votos dos Ministros Hahnemann Guimarães, Edgard costa e Barros Barreto, que entende-ram necessária a intervenção em quaisquer hipóteses. Decidiu ainda, por unani-midade, ser de 6 votos o quorum para que a inconstitucionalidade seja decretada.

Deixaram de comparecer, por se acharem em gozo de licença, os Ministros castro Nunes, Orozimbo Nonato e Goulart de Oliveira, substituídos pelos Ministros Armando Prado, Abner de Vasconcelos e Macedo Ludolf.

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Ministro Hahnemann Guimarães

REPRESENTAÇÃO 111 — AL

São inconstitucionais as disposições do art. 57 e seu § 2º e do art. 58 e respectivo parágrafo da Constituição do Estado de Alagoas.

AcÓRDÃOVistos, relatados e discutidos estes autos de Rp 111, do Distrito Federal,

em que, nos termos do art. 8º, parágrafo único, da constituição, o Procurador-Geral da República submete a exame as disposições do art. 57 e seu § 2º e do art. 58 e respectivo parágrafo da constituição do Estado de Alagoas, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal declarar, por maioria de seus membros, inconstitucionais as disposições citadas, em conformidade com as notas juntas.

Rio de Janeiro, 23 de setembro de 1948 — José Linhares, Presidente — Hahnemann Guimarães, Relator.

RELATÓRIOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: O Sr. Procurador-Geral da Re-

pública submete, de acordo com o disposto no parágrafo único do art. 8º da constituição, ao exame do Supremo Tribunal Federal a representação recebida do Sr. Governador do Estado de Alagoas, que, baseado em parecer do Procura-dor-Geral do Estado, argúi de inconstitucionais as disposições do art. 57 e seu § 2º e do art. 58 e respectivo parágrafo da constituição do Estado, promulgada em 9 de julho de 1946 e publicada no Diário Oficial de 11 do mesmo mês e ano.

São as seguintes disposições:

Art. 57. O Governador do Estado, depois que a Assembléia Legislativa, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, declarar procedente a acusa-ção, será submetido a processo e julgamento nos crimes comuns e nos de res-ponsabilidade, perante o Tribunal de Justiça do Estado.

§ 2. A sentença condenatória importará perda do cargo e incapacidade para exercer qualquer função pública na forma da lei.

Art. 58. São crimes de responsabilidade os atos do Governador do Estado que atentarem contra as constituições Federal e Estadual, e especialmente contra:

I – a existência da União, do Estado e dos Municípios;II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos

Poderes constitucionais dos Municípios;III – o cumprimento das decisões judiciárias;IV – a probidade na administraçãoV – a lei orçamentária

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Memória Jurisprudencial

VI – a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos;VII – o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;VIII – a segurança interna do Estado.Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que esta-

belecerá as normas de processo e julgamento.

Funda-se a argüição de inconstitucionalidade em que as disposições transcritas violam manifestamente o princípio da independência dos poderes (constituição, art. 7º, VII, b) porque confiaram a jurisdição política à magis-tratura comum e não estabeleceram a garantia de ser a sentença condenatória proferida por 2/3 dos votos dos membros que constituam o órgão julgador, se-gundo a legislação federal. O art. 57 da constituição Estadual opõe-se ainda à constituição Federal, quando outorga ao Tribunal de Justiça a competência para o processo dos crimes comuns do Governador. Tal processo não pode deixar de ser da competência da Assembléia Legislativa. O legislador estadual não podia cominar a pena de incapacidade para o exercício de função pública, como san-ção para os crimes de responsabilidade, nem podia alterar as sanções estabele-cidas no código Penal para os delitos comuns. O dispositivo do art. 57, § 2º, fere a independência dos poderes, ofende o preceito constitucional do art. 5º, XV, a, e infringe as normas dos arts. 135 e 141, § 1º, da constituição. A inconstitucio-nalidade do art. 58 e de seu parágrafo resulta de que o legislador estadual não tem poder para definir crimes de responsabilidade.

O Sr. Procurador-Geral da República considera inconstitucional o dispo-sitivo que atribui ao Tribunal de Justiça o julgamento do Governador, porque “o juízo do impeachment é eminentemente político” e se acha, no sistema da nossa constituição, no plano de relações do Executivo e do Legislativo.

Atribui o Sr. Procurador-Geral da República menor importância às ou-tras alegações, de que algumas provêm do entendimento dado aos dispositivos censurados, que se prestam, no entanto, à aplicação acorde com as exigências constitucionais. Pode-se admitir, curialmente, que, só depois de sujeito ao im-peachment e condenado, será o Governador submetido ao indictment. Deve-se entender, suprindo-se a omissão, que a sentença condenatória exigirá o voto de dois terços, conforme o princípio federal. O processo a que se refere o art. 57 é o posterior à declaração de procedência da acusação, e, antes dessa declaração, não será excluída, ao contrário do que se alega, a instrução probatória com a de-fesa necessária. A incapacidade para outra função é conseqüente à destituição e, se está prevista como pena acessória no julgamento do Presidente da República, aplica-se também aos Governadores. O texto alagoano permite entender-se que será federal a lei definidora dos crimes.

Essas alegações, porém, somente poderão ser examinadas quando aplica-dos os textos na instauração do processo de impeachment.

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Ministro Hahnemann Guimarães

Estava feito o relatório e remetidos os autos à mesa, quando requereu o Sr. Dr. Procurador-Geral a juntada ao processo da seguinte petição:

O Procurador-Geral da República, em aditamento ao seu parecer na Representação nº 111, relativa à constituição do Estado de Alagoas, pede vênia para expor a V. Exa. o seguinte.

No citado parecer, item 2º, letra d, foi admitida a constitucionalidade do parágrafo 2º do art. 57 da referida constituição, na parte em que estabelece, como conseqüência da condenação do Governador, a “incapacidade para exer-cer qualquer função pública na forma da lei”.

Tornando mais claro o seu pensamento que pela leitura de um memorial verifica não ter sido bem compreendido, deseja o Suplicante acentuar que assim opinou no pressuposto de ser aquela incapacidade prevista em lei (como declara a própria constituição Estadual), lei que há de ser a federal, como está dito no item 3º do mesmo parecer.

Nem poderia ser outro o seu pensamento, pois, se fosse, estaria em con-tradição com o sustentado na Representação nº 102, de 30 de março, atinente à constituição do Piauí, onde afirmou que não pode a carta Estadual, por si só, fixar penalidades não estatuídas pelo legislador federal.

Pedindo a juntada deste aditamento aos autos.E. Deferimento.Distrito Federal, 30 de agosto de 1948 Luiz Gallotti, Procurador-Geral

da República.

No relatório que acabei de ler ao Tribunal, não incorri nesse engano, sa-lientando que a lei a que se referiu o Dr. Procurador-Geral era a lei federal.

é o relatório.

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Julgo procedente a argüição feita

pelo Sr. Governador do Estado de Alagoas ao disposto no art. 57 e seu § 2º e no art. 58, com respectivo parágrafo, da constituição Estadual de 9 de julho de 1947. é contrário à independência do Poder Executivo submeter quem o exerce a regime penal não admitido em lei federal, pois que somente à União compete legislar sobre o direito penal e o processo (constituição, art. 5º, XV, a).

Seguindo os pareceres dados pelos professores Noé Azevedo e J. canuto Mendes de Almeida, respectivamente, em 25 e 26 de setembro de 1947, mani-festei a opinião, que ora reitero, nas Rp 96 e 97, julgadas nas sessões de 3 de outubro e 12 de novembro de 1947.

Filiada ao mesmo exemplo que inspirou o preceito do art. 33 da consti-tuição de 1891, estabelece a constituição vigente, no art. 62, para os crimes de responsabilidade, um regime excepcional.

A exceção consiste em que, para determinados sujeitos de responsabi-lidade nesses crimes, existem órgãos jurisdicionais, processo e pena próprios.

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Memória Jurisprudencial

Os órgãos jurisdicionais não pertencem ao Poder Judiciário, salvo quanto à presidência, que compete ao Presidente do Supremo Tribunal Federal (art. 62, § 1º). A jurisdição é, porém, exercida pelo Poder Legislativo (arts. 59, I, e 62).

Sujeitos de responsabilidade podem ser apenas o Presidente da República, os Ministros de Estado e os Ministros do Supremo Tribunal Federal (art. 62, I e II).

Nos casos do art. 62, I, o processo é iniciado na câmara dos Depu tados, que o instrui e verifica a procedência da acusação. Aceita esta pela câmara (art. 59, I), compete ao Senado o julgamento (art. 62, I).

No segundo caso, o Senado processa a ação penal e julga o crime de res-ponsabilidade (art. 62, II).

A sentença condenatória requer o voto de dois terços dos membros do Senado (art. 62, § 2º).

A pena terá de consistir somente em perda do cargo com inabilitação, até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública, sem prejuízo da ação ordinária (art. 62, § 3º).

O Federalist dá razões para que não se confiasse à corte Suprema o julga-mento desses crimes, em que a pena se limita à destituição do cargo e à desquali-ficação do funcionário (constituição dos Estados Unidos, art. I, sec. 3, cls. 6 e 7).

Essas razões devem ter inspirado a disposição do art. 33 da constituição de 1891 de que apenas se afasta a constituição vigente, para indicar precisa-mente os sujeitos da responsabilidade penal.

Preceitos constitucionais particularizam o regime penal de exceção a que, nos crimes de responsabilidade, ficam sujeitos o Presidente da República e os Ministros de Estado (arts. 88, 89, 92, e 93).

Podia o legislador que elaborou a constituição do Estado sujeitar o órgão do Poder Executivo a um regime penal de exceção, limitado a certos sujeitos de responsabilidade, com infração do princípio constitucional que dá, privati-vamente, à União competência para legislar sobre o direito penal e o processo?

O preceito do art. 18 da constituição parece que impõe a resposta negativa.Assim se entendeu em face da constituição de 1937, pois o Decreto-Lei

1.202, de 8 de abril de 1939, modificado pelo Decreto-Lei 5.511, de 21 de maio de 1943, definiu os crimes de responsabilidade dos Governadores estabelecendo a pena e o órgão jurisdicional (arts. 8º e 9º) em harmonia com o art. 87 do código de Processo Penal.

Assim também entendeu, em face da constituição vigente, a comissão Mista de Leis complementares, no Anteprojeto 6, que define, no art. 73, crimes

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Ministro Hahnemann Guimarães

de responsabilidade dos Governadores e Secretários dos Estados, regulando nos arts. 74 a 78 o processo penal (Diário do Congresso Nacional, 11-6-1948, p. 4329, e 26-6, p. 4935).

Declaro, pois, inconstitucionais as disposições do art. 57 e seu § 2º e do art. 58 e respectivo parágrafo da constituição do Estado de Alagoas.

VOTOO Sr. Ministro Armando Prado: Senhor Presidente, estou de acordo com

o Sr. Ministro Relator.

VOTOO Sr. Ministro Ribeiro da costa: Senhor Presidente, acompanho o voto

do emitente Sr. Ministro Relator.

VOTOO Sr. Ministro Lafayette de Andrada: Senhor Presidente, concordo com

o Sr. Ministro Relator.

VOTOO Sr. Ministro Edgard costa: Senhor Presidente, voto pela inconstitu-

cionalidade apenas do art. 57 da constituição alagoana, porque, efetivamente, esse dispositivo estabelece como tribunal de julgamento o Tribunal de Justiça, contra, aliás, o que já está decidido por este Supremo no sentido de que o juízo do impeachment é juízo político.

O § 2º do art. 57 da constituição alagoana dispõe:

A sentença condenatória importará perda do cargo e incapacidade para exercer qualquer função pública, na forma da lei.

é, aliás, o que dispõe a constituição Federal, em relação à competência do Senado, no julgamento dos crimes de responsabilidade, no art. 62, § 3º, in verbis:

§ 3º Não poderá o Senado Federal impor outra pena que não seja a da perda do cargo com inabilitação, até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública, sem prejuízo da ação da justiça ordinária.

é o que o art. 57, § 2º, da constituição alagoana reproduz.O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Sem fixar o prazo.O Sr. Ministro Edgard costa: é para exercer qualquer função, na forma da lei.O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Não se reporta à lei federal.

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Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Edgard costa: Não poderá deixar de ser considerada na conformidade da lei federal, porque esta é que regula o processo e há, até, em andamento nas casas do congresso um projeto nesse sentido.

O art. 68 reproduz também o que dispõe o art. 85 da constituição Federal, estabelecendo quais os atos que constituem crime de responsabilidade. E no parágrafo único se diz que estes crimes serão estabelecidos na lei especial, que só poderá ser a lei federal.

Quanto à questão de ser a condenação imposta por dois terços, terá de ser observada na modificação do art. 57, que é inconstitucional; e se houver con-denação sem ser por dois terços, de acordo com a constituição Federal, caberá, então, o recurso legal contra essa deliberação por contrário à disposição de lei.

Por estes motivos, restrinjo meu voto, como de início disse, à decretação da inconstitucionalidade apenas do art. 57 da constituição alagoana.

VOTOO Sr. Ministro Goulart de Oliveira: Senhor Presidente, todos os aspec-

tos da questão agora examinados nesta representação já foram aqui apreciados longamente e demoradamente julgados nos outros casos referentes a outras constituições estaduais, e muito especialmente nas dos Estados do Piauí e São Paulo, de que fui Relator.

No voto que proferi no caso de São Paulo, apreciei todas as questões minuciosamente e tive o prazer de ver que meus argumentos, mesmo aqueles que não foram reconhecidos pelo eminente Dr. Procurador-Geral da República, naquela ocasião o Dr. Themistocles Brandão cavalcanti, tiveram a aceitação de todo o Tribunal.

Não há necessidade, pois, de voltar a cada um dos aspectos da questão, que estão bem na memória de todos, estando os votos, aliás, publicados em re-pertórios de jurisprudência.

Por essa razão, resumindo meu voto, chego à conclusão mesma a que chegou o Sr. Ministro Relator. Não há possibilidade, em face da orientação que seguimos, de excetuar-se o parágrafo do art. 57 e o art. 58, uma vez que a pró-pria alusão à lei federal que se está organizando agora no congresso poderá pôr ainda mais em evidência que exorbitou o legislador constituinte de Alagoas.

com estas considerações, dispensando-me de dar maiores fundamentos, acompanho o Sr. Ministro Relator.

VOTOO Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Senhor Presidente, o eminente Sr.

Ministro Relator, no seu lúcido voto, acabou pela inconstitucionalidade dos

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Ministro Hahnemann Guimarães

arts. 57 e 58 da constituição Estadual de Alagoas, por um motivo radical a que S. Exa. deu sua magistral adesão, mas que, doutra feita, não teve a aceitação do Supremo Tribunal Federal. O eminente Sr. Ministro Relator entendeu que, sendo o impeachment forma também de processo penal, exorbitará das funções de legislador constitucional estadual.

S. Exa. deu-nos argumentos emitidos a este propósito pelos professores canuto Mendes e Noé Azevedo não só a adesão do seu luminoso voto, como também o acréscimo de novos argumentos, tendentes a esforçá-los. A conclusão a que chego, em meu modesto voto, é idêntica à de S. Exa., mas por outros motivos.

Entendo que o impeachment, sendo processo eminentemente político (ju-ízo político), pode ser disciplinado pelo poder constituinte estadual, porque não se trata aqui de punir, criminalmente, alguém, o que seria função legislativa, mas de declarar incompatibilidade, desqualificações, destituições, todas de ordem política, admissíveis assim no plano federal como no estadual. Apenas, impõe-se ao legislador estadual constituinte o dever de não deixar de se submeter ao molde da lei federal. Esse molde é que foi quebrado pelo constituinte alagoano, dando ao impeachment feição de processo penal, julgado, sobretudo, pelos órgãos do Poder Judiciário. Essa noção, esse conceito que ressai do texto constitucional alagoano está ao arrepio não só da índole mesma do instituto, senão, ainda, do modelo fixado e regulado, irremovivelmente, pelo constituinte federal.

Seria possível, sem dúvida, a um determinado país não atender à feição es-trita do instituto e ainda desconsiderar a fonte de que houvesse provindo, se bem que, geralmente, esses velhos institutos devem guardar através de sua evolução os traços primordiais que assinalaram a sua aplicação em outros países. Mas, se seria possível ao constituinte brasileiro criar um impeachment especial, um mo-delo especial de impeachment, o mesmo não passa com o constituinte estadual, que não pode se alongar, no caso, dos sulcos entalhados pela lei maior do País.

O art. 57 delira, absolutamente, desses sulcos. Logo, não poderia perma-necer e, como este princípio, capitalíssimo, a meu ver, guarda relação inséctil com o que sucede, isto é, com o § 2º e o art. 58, a declaração de sua inconstitu-cionalidade torna logicamente inconstitucional o todo, devendo-se, quando se regular o instituto, atender, então, à norma do legislador federal. é exato, como observou o eminente Sr. Ministro Edgard costa, que o art. 58 da constituição alagoana é reprodução da constituição Federal, que deferiu a lei especial a definição de crimes que autorizarão a declaração do impeachment. é exato. Dá-se, porém, que o dispositivo prende-se ao próprio instituto. Entre eles há relação indesligável, a meu ver, o que autoriza a ser declarado inconstitucional, sem quebra do reconhecimento de que é reprodução da constituição Federal. Esta relação entre os dispositivos ainda guarda mais nitidez com o parágrafo segundo, que é acessório, do art. 57.

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Memória Jurisprudencial

Resumidos, assim, os argumentos que tinha para fundar o meu voto, abreviadamente expostos, estou de acordo com o eminente Sr. Ministro Relator, tendo como inconstitucionais os dispositivos impugnados, ainda que o faça por fundamentos diferentes daqueles que constam no seu lúcido voto.

VOTOO Sr. Ministro Annibal Freire: Senhor Presidente, a matéria já foi ampla-

mente discutida e julgada por este Egrégio Tribunal, nas várias representações a ele dirigidas.

Mas é preciso deixar mais uma vez bem ressaltado que o Supremo Tribunal Federal firmou a tese de que o impeachment estadual não está pres-crito, porque seria chegar à conclusão, de outro modo, da impunidade dos Go-vernadores estaduais pelos crimes de responsabilidade.

Esta tese, repito, é necessário que fique assentada, como resulta dos nos-sos arestos. Apenas se deliberou que o estatuto federal é que há de ser o para-digma para as constituições Estaduais. E como os dispositivos ora inquinados de inconstitucionalidade referem-se a processo penal, cuja aceitação importaria em reconhecimento de sua constitucionalidade, adoto o voto do Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, mas apenas pela sua conclusão.

Os Governantes estaduais são responsáveis e podem ser submetidos a processo perante o poder competente. Apenas o legislador estadual não pode dispor sobre direito penal e impor condenação que a lei federal não estabelece. Embora a constituição alagoana reproduza os termos da constituição Federal, como lembrou o Sr. Ministro Edgard costa, dar-se-ia margem, caso não se de-cretasse a inconstitucionalidade dos referidos artigos, a uma confusão possível nas futuras deliberações da Assembléia estadual, que redundaria em conse-qüência danosa ao princípio da independência e harmonia dos poderes.

Por estes fundamentos, acompanho o voto do Sr. Ministro Relator.

VOTOO Sr. Ministro Barros Barreto: Senhor Presidente, acompanhando o Sr.

Ministro Relator, também voto pela inconstitucionalidade do art. 57 e seu § 1º e do art. 58, § 2º, da constituição do Estado de Alagoas.

VOTOO Sr. Ministro Laudo de camargo: Reclama-se contra a nova preceitua-

ção alagoana relativa ao impeachment, por contrária ao que se encontra disposto na constituição Federal.

Realmente, o estudo feito dos novos dispositivos locais fazem ressaltada a contrariedade.

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Ministro Hahnemann Guimarães

Sendo o impeachment, como é, um instituto político-criminal, bem de ver que, nos julgamentos, se não dispensa a instância política.

Mas, conforme o estabelecido, essa instância ficou afastada, com conferir atribuições exclusivas ao Judiciário, em instância diferente.

E, ao inadvertido sobre a constituição desse juiz, com omissão das con-dições em que a responsabilidade possa ser pronunciada, há a acrescer, o vício maior, qual o de estabelecer, catalogando, os casos da medida.

Seria a definição de crimes, feita por poder outro que não o único compe-tente para fazê-lo: a União.

A esta é que, ex vi do art. 5º, XV, letra a, cabe legislar sobre direito penal.competência, pois, exclusiva e a impedir que outrem dela compartilhe.chego assim à mesma conclusão do eminente Sr. Ministro Relator.

DEcISÃOcomo consta da ata, a decisão foi a seguinte: Julgaram procedente a re-

presentação, para declarar inconstitucionais os arts. 57 e seu § 2º e 58 e seu pa-rágrafo único da constituição de Alagoas, sendo que o Ministro Edgard costa declarava somente inconstitucional o art. 57 da mesma constituição.

Deixou de comparecer, por se achar em gozo de licença, o Ministro castro Nunes, substituído pelo Ministro Armando Prado.

ExTRADIÇÃO 177 — PORTUGAL

Não se concede a extradição, quando, ao tempo do delito, o extraditando era penalmente irresponsável.

AcÓRDÃOVistos, relatados e discutidos estes autos número 177, acordam, unâni-

mes, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, negar a extradição de José Luiz Sarmento, pedida pela Embaixada de Portugal, em conformidade com as notas juntas.

Rio de Janeiro, 29 de maio de 1953 — José Linhares, Presidente — Hahnemann Guimarães, Relator.

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Memória Jurisprudencial

RELATÓRIOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, o Sr. Ministro

da Justiça endereçou a este Tribunal, por intermédio do seu eminente Presidente, o seguinte ofício:

Tenho a honra de passar às mãos de Vossa Excelência, para os devidos fins, os inclusos documentos justificativos do pedido de extradição do cidadão português José Luís Sarmento, formulado pela Embaixada de Portugal por in-termédio do Ministério das Relações Exteriores.

Outrossim, encaminho a Vossa Excelência a petição, em cópia anexa, e documentos apresentados a este Ministério, por seu advogado.

O extraditando, segundo comunicação do General chefe de Polícia do Distrito Federal, encontra-se recolhido à Sala de Detidos da Divisão de Polícia Política e Social à disposição desse Egrégio Supremo Tribunal Federal.

Aproveito a oportunidade para renovar a V. Exa. os protestos de minha alta estima e distinta consideração.

Entre os documentos com que veio instruído o ofício, cumpre-me salien-tar a sentença condenatória que se encontra à fl. 7, nos seguintes termos:

O Digno Agente do Ministério Público acusa o Réu Luís José Sarmento, solteiro, de dezoito anos, tipógrafo, natural de Urros, do conselho de Torre de Moncorvo, ausente em parte incerta, de ter estuprado na sua habitação, então nesta cidade, na rua do Barão Sabrosa, digo, Barão de Sabrosa, número nove, ter-ceiro, Direito, com prévia sedução de namoro e promessas de casamento, a me-nor queixosa Noemia da conceição de Oliveira Lença, identificada nos autos, ao tempo de dezessete anos e virgem, o que sucedeu em quatro de fevereiro do ano passado, crime do artigo trezentos e noventa e dois (artigo 392) do código Penal.

Por o Réu não ter sido encontrado nem se ter apresentado em Juízo orde-nou-se e celebrou-se o julgamento à sua revelia, tendo-se observado em tudo as formalidades legais.

Da discussão da causa resultou provar-se que o Réu, seduzindo-a com na-moro e promessas de casamento, teve de fato cópula com a ofendida Noemia da conceição de Oliveira Lença no dia quatro de fevereiro do ano passado, levando-a de sua virgindade. Ele próprio o confessou a folha seis dos autos. E verifica-se pela certidão de fls. vinte e duas que ela tinha então dezessete anos de idade.

cometeu assim o Réu crime que lhe é imputado, pelo que está incurso na sanção do citado artigo trezentos e noventa e dois do código Penal, como julgo. Mas atendendo à sua confissão, menoridade de dezessete anos (certidão de fls. quarenta e sete), ausência de antecedentes judiciários (certificados de folha cin-qüenta) e comprovada pobreza, tendo em vista o mais dos autos de lei aplicada, condeno -o na pena de dois anos de prisão maior celular, ou, em alternativa, na de três anos de degredo em possessão de primeira classe, no mínimo de imposto de justiça com seus legais acréscimos e custas, em cinqüenta escudos de emolu-mentos ao Senhor Defensor oficioso e em cinco mil escudos de dote à ofendida.

Ao registro criminal o boletim complementar e envie-se verbete à Direção Geral de Estatística.

Entregue ao Ministério Público mandados de captura contra o Réu.

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Ministro Hahnemann Guimarães

O réu juntou certidões pelas quais se verifica ser ele casado com mulher brasileira e ter dois filhos brasileiros.

O extraditando foi interrogado, apresentou defesa, na qual alega que não deve ser deferido pedido de extradição, porque, ao tempo do crime, era penal-mente irresponsável pela lei brasileira, nos termos do art. 23 do código Penal, como se viu da própria sentença condenatória, que diz que o autor do crime era menor de dezoito anos.

Além disso, alega-se, em defesa, a prescrição e, finalmente, censura-se a forma defeituosa do pedido de extradição.

concedi a liberdade provisória ao extraditando, que se achava preso há mais de 60 dias, conforme despacho de fl. 50, nos seguintes termos:

Tendo em vista a certidão de fl. 49 e o disposto no art. 9º, al. 4ª, do Decreto-Lei 394, de 28 de abril de 1938, defiro o pedido de fl. 47, para que fi-que o extraditando em liberdade vigiada no lugar de sua residência, em Porto Alegre, Estado do Rio Grande do Sul.

O Sr. Procurador-Geral da República proferiu o seguinte parecer:

A Embaixada de Portugal, por intermédio do Ministério das Relações Exteriores, pede extradição de José Luis Sarmento, indicado como condenado por sentença de 2-4-1941, do Primeiro Juízo criminal da comarca de Lisboa, por crime e estupro (art. 392 do código Penal português) à pena de dois anos de prisão maior celular, ou, em alternativa, na de três anos de degredo em posses-são de primeira classe, tendo reconhecido a sentença a menoridade de dezessete anos do extraditando à época do crime.

O extraditando, portanto, tinha dezessete anos à data do crime e, assim, nos termos do nosso código Penal (art. 23) seria aqui considerado penalmente irresponsável.

conseguintemente, não é de ser deferido o pedido de extradição, como bem demonstrou o ilustre advogado do extraditando, em sua defesa de fls. 36/43, por isso que sendo considerado irresponsável pelo art. 23 do código Penal e não sujeito à pena de prisão está em situação melhor dos que os sujeitos à pena de prisão inferior a um ano, respeito aos quais não se pode conceder a extradição, ex vi do disposto no art. 2º, nº III, do Decreto-Lei nº 394, de 28-4-1938.

Somos, por isso, por que se denegue a extradição do cidadão português Luis José Sarmento, cujo pedido e alguns dos documentos apresentados aludem à José Luiz Sarmento, em desacordo com o que figura na sentença condenatória por certidão a fls. 7.

é o relatório.

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Senhor Presidente, sigo

o parecer do Dr. Procurador-Geral da República, negando a extradição pedida.

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Memória Jurisprudencial

Nos termos do Decreto-Lei 394, de 28 de abril de 1938, no art. 2º, in-ciso III, não será concedida a extradição quando, pela lei brasileira, a pena de prisão for inferior a um ano.

Ora, no caso trata-se de extraditando que, ao tempo do crime, era penal-mente irresponsável, nos termos do art. 23 do código Penal. Se não se admite a extradição daquele a cuja infração a lei brasileira comina pena de prisão inferior a um ano, com muito maior razão deverá ser a extradição negada, quando ao tempo do delito o extraditando era penalmente irresponsável.

Nego a extradição.

DEcISÃOcomo consta da ata, a decisão foi a seguinte: indeferiram o pedido

u na ni me men te.Não estava presente o Ministro Edgard costa, por motivo justificado.

REPRESENTAÇÃO 179 — DF

O Supremo Tribunal Federal deve declarar a inconstitucio-nalidade de ato de qualquer dos poderes estaduais que contrarie princípio enunciado no art. 7º, VII, da Constituição.

Não é contrário ao princípio da autonomia municipal o ato do Governador do Estado de São Paulo que mantém o Prefeito por ele nomeado para o Município de São Paulo, até que sejam providos nos cargos de Prefeito e Vice-Prefeito os candidatos eleitos, em cumprimento da Lei 1.720, de 3 de novembro de 1952.

AcORDÃOVistos, relatados e discutidos estes autos número 179, do Distrito Federal,

em que o Procurador-Geral da República submete a exame representação da câmara Municipal de São Paulo, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal rejeitar, unânimes, a argüida inidoneidade da representação, e julgar, por maioria de votos, improcedente a representação, em conformidade com as notas juntas.

Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 1952 — José Linhares, Presidente — Hahnemann Guimarães, Relator.

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Ministro Hahnemann Guimarães

RELATÓRIOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Em 10 de novembro último (fl. 21),

a câmara Municipal de São Paulo, representada por seu Presidente, André Nunes Junior, que também vindica direito próprio, pediu ao Sr. Procurador-Geral da República que submetesse a este Tribunal o ato argüido de inconsti-tucionalidade, praticado pelo Governador do Estado de São Paulo, Dr. Lucas Nogueira Gargez. consiste o ato na recusa em se dar cumprimento à Lei 1.720, de 3 de novembro p.p., que restabeleceu, em sua inteireza, a autonomia do Município de São Paulo, e na deliberação de manter o Governador o Prefeito por ele nomeado. Por força do disposto nos arts. 7º, VII, e, 23 e 28 da constituição, e no art. 47, § 2º, da Lei Orgânica dos Municípios, com a redação da Lei 1.174, de 21 de agosto de 1951, compete, entretanto, ao Presidente da câmara Municipal de São Paulo assumir, pro tempore, as funções executivas.

Submetendo, em 21 de novembro, ao julgamento do Tribunal a representa-ção, o Sr. Procurador-Geral entende que é inidônea, pois, de acordo com a lição do Sr. Ministro castro Nunes, como Relator da Rp 94, a atribuição conferida ao Supremo Tribunal no art. 8º, parágrafo único, da constituição não tem por objeto ato governamental ou administrativo, senão ato constituinte ou legislativo.

O parecer do Sr. Procurador-Geral está, quanto ao mérito, de acordo com o entendimento Sr. Governador e com os pareceres em que se apoiou. A disposi-ção do art. 47, § 2º, da citada Lei Orgânica refere-se ao caso de vaga de Prefeito e Vice-Prefeito. Não coincide o presente caso com o da Rp 95 (Rev. For., 124, p. 80 a 97), em que se reconheceu a validade do art. 2º do Ato das Disposições Transitórias da constituição de Pernambuco. A Lei 1.720 não substituiu automa-ticamente o Prefeito, que o Governador nomeou, pelo Presidente da câmara Mu-nicipal. Aquele continuará no cargo até que este seja provido mediante eleição.

conclusos os autos em 27 de novembro (fl. 111), mandei, no dia 29, notifi-car o Sr. Governador para prestar informações no prazo de cinco dias.

Juntaram-se, em 5 do corrente, o pedido da câmara Municipal para a urgente solução do caso (fl. 114) e as informações do Sr. Governador (fl. 119), acompanhadas dos pareceres do Sr. Ministro costa Manso, dos professores Vicente Ráo, Miguel Reale, Sampaio Dória, Themistocles cavalcanti e do Sr. Ministro castro Nunes.

Sustenta o Governo Estadual que o caso não cabe na disposição do pa-rágrafo único do art. 8º da constituição. O ato impugnado obedeceu, aliás, ao preceito do art. 3º do Ato das Disposições constitucionais Transitórias Estaduais, julgado válido, sem a cláusula final do inciso I, na Rp 96. A Lei 1.720 não acarretou a vacância ou a falta do Prefeito nomeado. Ainda que ocorresse a vaga, o Presidente da câmara Municipal não teria qualidade para

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Memória Jurisprudencial

exercer o Poder Executivo até a eleição do Prefeito, pois, neste interregno, cabe ao Sr. Governador preencher a vaga, consoante o disposto no art. 28, § 1º, da constituição e no art. 47 da Lei Orgânica dos Municípios.

VOTO(Preliminar)

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Não me parece que o ato previsto no art. 8º, parágrafo único, da constituição seja apenas o consti-tuinte ou o legislativo. O Supremo Tribunal Federal deve declarar a inconstitu-cionalidade do ato de qualquer dos poderes estaduais que contrarie princípio enunciado no art. 7º, VII, da constituição e, assim, perturbe a normalidade no Estado, tornando necessária a intervenção do Governo Federal ou exigindo, pelo menos, que se suspenda a execução do ato argüido de inconstitucionali-dade (constituição, art. 13).

No caso presente, alega-se que o ato do Sr. Governador fere o princípio da autonomia municipal (constituição, art. 7º, VII, e). cumpre ao Supremo Tribunal examinar a argüição feita pela câmara Municipal.

VOTO (Preliminar)

O Sr. Ministro Afrânio Antônio da costa: Indaga-se nestes autos se a Lei 1.720, de 3 de novembro de 1952, fazendo cessar a situação de base militar de excepcional importância para defesa externa do País, reconhecida na Lei 121, de 22 de outubro de 1947, com apoio no art. 28, § 2º, da constituição, e reconhecendo ipso facto a autonomia do Município de São Paulo, trouxe como conseqüência imediata a cessação da permanência no cargo do Prefeito ante-riormente nomeado pelo Governador e, ainda, se o exercício do mandato até a investidura do novo Prefeito a ser eleito futuramente cabe ao atual Presidente da câmara Municipal.

Encaminhando ao Supremo Tribunal a representação que lhe foi enviada pela câmara Municipal de São Paulo e seu Presidente individualmente mani-festou-se o Dr. Procurador-Geral, preliminarmente, pela inidoneidade do meio para provocar a manifestação deste Pretório, em face do art. 8º, parágrafo único, da constituição.

Não dou pela preliminar, atendendo a que, no caso vertente, justifica-se plenamente a intervenção do Supremo Tribunal para dirimir a controvérsia. Os argumentos expendidos pelo eminente Ministro Relator convencem a so-ciedade que o caso é de representação. Assim, estou de acordo com o voto de V. Exa. quanto à preliminar.

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Ministro Hahnemann Guimarães

VOTO (Preliminar)

O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, também entendo que é arbitrária a pretendida restrição ao vocábulo “aro” pretendida pelo ilustre castro Nunes. Em todo ato administrativo, seja ele qual for, desde que acoi-mado de inconstitucional e desde que afete qualquer das matérias enumeradas na constituição, cabe representação. Assim, acompanho o voto do eminente Ministro Relator quanto à preliminar.

VOTO(Preliminar)

O Sr. Ministro Mario Guimarães: Senhor Presidente, também entendo, como o eminente Ministro Relator, que o cabimento da representação não se re-fere exclusivamente ao ato legislativo. Não concordo, igualmente, com a afirma-tiva feita pelo ilustre advogado, de que somente pode caber representação contra ato do Executivo quando se tratar de regulamento. A representação, a meu ver, cabe contra qualquer ato, legislativo ou executivo, desde que tenha caráter geral e venha ferir o princípio enunciado no art. 7º da constituição.

Somente no caso de ferir o ato apenas direitos individuais é que, então sim, caberá o mandado de segurança. No caso dos autos, o mandado de se-gurança poderia ser requerido se o fosse exclusivamente pelo Presidente da câmara, alegando o seu direito próprio de exercer o cargo de Prefeito. Uma vez, porém, que se trata de manifestação da Assembléia Legislativa Municipal, já o mandado da segurança não seria possível, porque a Assembléia não pode arro-gar a si direito individual. As Assembléias não têm direitos; têm atribuições, têm competência, mas não possuem direitos individuais, que lhes saiba resguar-dar. Nessas condições, incabível seria o mandado de segurança e apropriado, então, o recurso da representação.

Acompanho o voto do eminente Ministro Relator.

VOTOO Sr. Ministro Rocha Lagôa: No exercício de suas atribuições, submete o

ilustre Dr. Procurador-Geral da República à apreciação deste Supremo Tribunal a representação que lhe foi dirigida pela câmara Municipal de São Paulo e pelo seu Presidente, André Nunes Junior, vindicando direito próprio, na qual se argúi de inconstitucionalidade o ato do Governador do Estado endereçando àquela edilidade ofício onde afirma estar disposto a manter, como órgão executivo mu-nicipal, o Prefeito por ele nomeado, até a eleição e posse do novo Prefeito, a ser escolhido em pleito eleitoral.

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Memória Jurisprudencial

Sustentam os autores da representação que o exercício do cargo de Pre-feito até a próxima eleição, por pessoa nomeada pelo Governador, atenta contra o princípio da autonomia municipal, cuja observância é assegurada pelo art. 7º, inciso VII, da constituição vigente, ocorrendo destarte a hipótese prevista no parágrafo único do art. 8º da mesma carta Magna.

conheço da representação, pois entendo que a expressão genérica “ato argüido de inconstitucionalidade”, ali empregada pelo legislador constituinte, abrange não somente os atos legislativos como também os atos do Poder Executivo.

é a autorizada lição de Themistocles cavalcanti:Este ato, já o dissemos, uma vez (Rp 94), não está definido e deve com-

preender todas as manifestações da atividade dos órgãos do Estado que pro-duzem efeitos jurídicos, mas que venham a contrariar preceitos expressos na constituição e mencionados em seu art. 7º, VII. O vocábulo deve ser assim en-tendido em seu sentido mais amplo e que, pela sua gravidade e repercussão na vida do Estado, justifique a intervenção do Governo Federal.(A Constituição Federal Comentada, v. I, p. 232.)

VOTO (Preliminar)

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Nos termos do art. 8º, parágrafo único, da constituição, o que se faz necessário, para caber a representação do Pro cura-dor-Geral da República, é que exista, na órbita estadual, um ato argüido de inconstitucionalidade e que este se vincule a um dos princípios enumerados no inciso VII do art. 7º da Lei Magna.

No caso, o ato existe, não importando, a meu ver, que seja do Poder Executivo, pois a palavra ato está empregada, no texto, em sentido amplo.

O que ocorreu foi que as primeiras representações traduzidas pelo Pro-cura dor-Geral da República ao Supremo Tribunal se dirigiam todas contra atos legislativos, mais comumente designados como leis.

como o art. 8º, parágrafo único, da carta Magna fala em “ato argüido de inconstitucionalidade” e isso poderia levar a supor que as leis não se acha-vam compreendidas naquela expressão (tanto meio que outros artigos falam em “lei ou ato” – por exemplo, art. 101, III, c, e art. 120), daí nasceu o esforço para mostrar, e bem, que, sobretudo em relação aos atos legislativos, caberia a pro-vidência constitucional.

Mas não me parece possível negar que também atos não legislativos pos-sam torná-la necessária.

Observou muito bem o nosso saudoso colega Goulart de Oliveira, no voto que proferiu como Relator da Rp 96, sobre a constituição de São Paulo (Arquivo Judiciário, vol. 85, p. 106):

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Ministro Hahnemann Guimarães

Já se podem abandonar, por afastadas e dirimidas, as dúvidas que autori-zaram no exame dos casos anteriores as indagações preliminares, na fixação do sentido do vocábulo ato, usado pela legislador constituinte, como também em torno da extensão imposta ao julgamento da inconstitucionalidade.

Firmou-se já, nessas oportunidades, jurisprudência remansosa, no sen-tido de envolver toda a atuação necessária do órgão de provocação especificado no texto, como tal compreendendo quaisquer manifestações da atividade dos órgãos do Estado que produzam efeitos jurídicos, mas que se anteponham em contrariedade evidente aos dispositivos, regras, enumerados no art. 7º, VII, da constituição vigorante.

é o “contencioso da inconstitucionalidade” a que se referiu aqui Castro Nunes, julgamento em tese, com o qual se abre exceção à regra de que o Poder Judiciário decide in specie.

De sorte que, enquadrada a hipótese no citado preceito constitucional, não exclui a possibilidade de decisão em tese a só circunstância de que o caso também poderia ser trazido ao exame do Judiciário in specie, em mandado de segurança, por exemplo.

Tanto não exclui que, na primeira das representações formuladas com base no art. 8º, parágrafo único, da Lei Magna, a de número 93, referente à constituição do ceará, o caso se iniciara por um mandado de segurança reque-rido no Tribunal de Justiça pelo Governador, e isso não impediu que, pendente a impetração do mandado, a representação fosse conhecida, como foi, unanime-mente, pelo Supremo Tribunal.

O ato do Governador, opondo-se a que o Presidente da câmara da capital de São Paulo assuma o cargo de Prefeito, é apontado como ofensivo ao princí-pio assecuratório da autonomia municipal, contido na alínea e do inciso VII do art. 7º da constituição.

Está satisfeito, portanto, este outro requisito, para que caiba a representação.Por outro lado, há evidente interesse público em que o caso se resolva sem

delongas, em que tenha solução urgente, pois é daqueles em que se trata de evitar a bicefalia do Executivo, a qual vale a acefalia, conforme bem notou o eminente Ministro Orozimbo Nonato, como Relator da Rp 95 sobre a carta de Pernambuco.

conheço, pois, da representação.

VOTO (Preliminar)

O Sr. Ministro Ribeiro da costa: Senhor Presidente, o eminente Sr. Ministro Hahnemann Guimarães deixou bem claro em seu brilhante voto que o que está em causa não é o direito subjetivo do Presidente da câmara Municipal, que se arroga qualidade de exercer o cargo de Prefeito da capital de São Paulo,

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Memória Jurisprudencial

e sim o princípio da autonomia municipal, princípio este que se alega, através da representação, infringido por ato concreto do Governador do Estado, ato este que, por sua vez, seria ou não contrário à disposição do art. 7º, letra e, da constituição Federal, relativamente à autonomia municipal.

Sem dúvida, posta a questão nestes termos, cabe ao Supremo Tribunal, por força do disposto no art. 8º da constituição vigente, conhecer da represen-tação e decidir como for de direito.

Assim, conheço do pedido.

VOTO (Preliminar)

O Sr. Ministro Lafayette de Andrada: Senhor Presidente, conheço da re-presentação, nos termos do voto do eminente Sr. Ministro Relator.

VOTO (Preliminar)

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Senhor Presidente, o eminente Ministro Luiz Gallotti mostrou, com muita lucidez, a origem da controvérsia.

O Tribunal várias vezes decidiu que a matéria-prima do mandado de segurança é o ato administrativo. O ato legislativo típico, a lei, o ato judiciário elementar, a sentença, escapam ao writ.

Para mostrar que a lei se inclui no caso da representação foi que veio a doutrina a que se referiram os eminentes colegas, à qual dei minha adesão, e que não afasta a hipótese de caber o remédio contra ato do Executivo.

conheço da representação.

VOTO (Preliminar)

O Sr. Ministro Barros Barreto: Teria dúvida, respeito ao cabimento da representação, não obstante reconhecer que a solução, mediante mandado de segurança, poderia retardar o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, que, de certo modo, se justificasse. E, embora não seja rigorosamente idêntica à presente a matéria constante do MS 1.173, de Minas Gerais, julgado a 17 de maio de 1950, do qual fui Relator e voto vencedor, já havia sustentado a inido-neidade do remédio, então pleiteado.

Na espécie em foco, porém, fortes razões levam a admitir que se trata de questão da maior relevância, estando em causa a observância de um dos manda-mentos constitucionais enumerados no art. 7º, VII: a autonomia municipal.

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Ministro Hahnemann Guimarães

Daí não acolher a preliminar do eminente Dr. Procurador-Geral da Re-pública. conheço da representação.

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): O Prefeito do Municí-

pio de São Paulo era nomeado pelo Sr. Governador, nos termos do art. 28, § 2º, da constituição, porque a Lei 121, de 22 de outubro de 1947, art. 1º, declarou o Município base militar de excepcional importância para a defesa externa do País.

A Lei 1.720, de 3 de novembro p.p., que entrou em vigor no seguinte dia 5, data da publicação, excluiu da classificação declarada no art. 1º da Lei 121 do Município de São Paulo.

Ter-se-ão, pois, de realizar, em data fixada pelo Tribunal Regional Eleitoral (código Eleitoral, art. 17, d), as eleições do Prefeito e do Vice-Prefeito (Lei es-tadual 1, de 18 de setembro de 1947, art. 47, conforme a citada Lei 1.174, art. 1º).

Julgo que, até serem providos nos cargos do Prefeito e Vice-Prefeito os candidatos eleitos, o exercício do Poder Executivo municipal compete a quem for nomeado pelo Governador do Estado, porque não há preceito legal que dê ao Presidente da câmara Municipal as atribuições executivas, desde quando o Município é excluído da situação militar excepcional, prevista no art. 28, § 2º, da constituição, até a eleição. A Lei estadual 1, no art. 47, § 2º, dispõe apenas que, na falta do Prefeito e do Vice-Prefeito, será chamado ao exercício do cargo o Presidente da câmara. A disposição do art. 47 refere-se, porém, a Prefeito e a Vice-Prefeito eleitos, não considerando o caso de um Município durante o período em que cessa de ser posição militar de excepcional importância para a defesa externa do País, em que se realizam os atos preparatórios da eleição. A falta de preceito legal que dê a atribuição reclamada pelo Presidente da câmara Municipal distingue esta causa da que foi julgada, na Rp 95, pelo acór-dão de 30 de julho de 1947, que declarou válida a norma do art. 2º do Ato das Disposições constitucionais Transitórias de Pernambuco, pela qual o Presidente da Assembléia Legislativa assumiria o Governo do Estado, se, após a promulga-ção da constituição, não houvesse sido diplomado o Governador.

Em São Paulo, o Ato das Disposições constitucionais Transitórias es-tabelece, no art. 3º, I, que o Governador nomeará o Prefeito, enquanto não for empossado o eleito. Daí resulta que a pretensão do Presidente da câmara Municipal não só carece de fundamento em lei, mas também contraria a norma constitucional citada.

Esta norma, embora transitória, ainda não perdeu a eficácia, pois a Lei Orgânica dos Municípios não tratou do caso ora discutido. Até que seja suprida a omissão da Lei Orgânica dos Municípios, cabe ao Governador nomear o Prefeito, enquanto não for provido no cargo o candidato eleito.

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Memória Jurisprudencial

O ato do Sr. Governador do Estado de São Paulo não fere, pois, o princí-pio da autonomia municipal, mas é o exercício da prerrogativa constitucional, que subsiste na transição conseqüente à Lei 1.720, de 3 de novembro. Rejeito, pois, a argüição de inconstitucionalidade.

VOTOO Sr. Ministro Afrânio Antônio da costa: No mérito. Entendo que na es-

pécie não há realmente o que caracteriza violação ostensiva, clara e iniludível à constituição de sorte a reclamar a gravíssima e excepcional sanção prevista no art. 8º, parágrafo único, como remédio pronto ao restabelecimento da ordem constitucional.

A autonomia do Município é assegurada pelas normas ditadas pelo art. 28, das quais a primeira é a eleição do Prefeito e dos Vereadores.

Não dispõe a constituição providência para situações como a do caso em apreço, nem a Lei 1.720 apresenta solução para o período intersticial. A per-manência do atual Prefeito até a realização das eleições não contraria qualquer das medidas que o art. 28 entendeu substanciais à autonomia dos Municípios. Na permanência do atual Prefeito, até a posse do futuro, não há entrever qual-quer incidência contrária ao texto.

A autonomia, por força inelutável das circunstâncias, terá que se operar por etapas, até a consolidação definitiva.

Releva notar que não há restabelecimento de autonomia, e sim concessão de autonomia. Porque, após a promulgação da constituição de 1946, não houve um momento em que São Paulo estivesse integrado no gozo de tais prerrogati-vas, e é tal ponto relevante para impugnar a representação para afastar qualquer possível aproximação entre a situação criada na Lei 1.720 e outra preexistente.

Gradativamente irá se operando a transformação até a constituição defi-nitiva e integral da célula autônoma.

Ante o exposto, não vale invocar a Lei Orgânica dos Municípios (Lei 1.174, de 21 de agosto de 1951), cujas dificuldades e tropeços para aplicação sur-gem prima facie. Porque do raciocínio que me permito desenvolver, nem por exa-gerada força de compreensão, poderia entender-se vago o cargo de Prefeito, cujo preenchimento depende da eleição a ser realizada (art. 28, 1, da constituição).

Acresce que a Lei Orgânica prevê a hipótese de um Município já defini-tivamente consolidado com unidade integral e autônoma, e para isso basta ler o art. 47, § 2º.

Da redação se inferem soluções para omissões normais, verificadas na direção política e na administração dos Municípios.

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Ministro Hahnemann Guimarães

Assim prevê o mandato de quatro anos para o Prefeito, sua substituição pelo Vice-Prefeito, em caso de vaga ou impedimento. Mas os parágrafos seguin-tes deixam logo clara a inaplicação ao caso em apreço (ler § 3º, § 4º e § 5º).

Por outro lado, cogitando-se apenas da permanência no cargo do atual Prefeito, nada se argüindo contra a regularidade de sua primitiva investidura, nada aconselha o seu afastamento, que em última análise ensejaria alterações e agitações na vida pública de um dos mais populosos Municípios do País.

com o eminente Sr. Ministro Relator, também entendo que ausência de dis-positivo expresso na constituição Federal ou em lei, mais acertado será aplicar-se o mandamento do art. 3º das Disposições constitucionais Transitórias Estaduais.

Porque a situação do Município de São Paulo é a mesma dos demais Municípios ao se constituírem após a constituição de 1946. Aquele teve a sua autonomia retardada, por motivos excepcionais, até que uma lei recente (a de número 1.720), entendendo desnecessária tal exceção à defesa nacional, inte-grou São Paulo na comunidade municipal do País.

é, portanto, um Município que nasce, e, para regular-lhe a marcha para a consolidação definitiva, o processo deverá ser o mesmo a que obedeceram os demais, na falta de dispositivo expresso e especial.

Por tais fundamentos julgo improcedente a representação.

VOTOO Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, é assente, em direito

público e administrativo, o critério de continuidade da administração pública, de modo que em casos de reforma que acarrete alteração nas condições de in-vestidura dos respectivos titulares, estes permanecem provisoriamente nos car-gos, à proporção que forem tomando posse os novos titulares. é um princípio pacífico, imposto pelo interesse geral.

No caso vertente, entretanto, afirma-se que não pode ser aplicado esse princípio, por isso que a lei constitucional estadual ou a orgânica dos Municípios determina que, na falta do Prefeito e do Vice-Prefeito, deverá assumir o cargo o Presidente da câmara Municipal. Entretanto, os dispositivos constitucionais ou legais invocados dizem com um sistema que obedece a um complexo orgânico de motivos, e condições a que se alheia o caso em debate.

A substituição atribuída ao Presidente da câmara Municipal é, antes de tudo, referida a Prefeito e Vice-Prefeito eleitos. Na hipótese de que ora se trata, não existe Prefeito ou Vice-Prefeito eleito. Não é admissível que se aplique um sistema fora de sua órbita, fora dos motivos e condições que o inspiraram e ditaram. é formulável uma hipótese perfeitamente plausível: se aqueles que

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Memória Jurisprudencial

elegeram o atual Presidente da câmara Municipal de São Paulo soubessem, ti-vessem a consciência de que ele poderia vir a ser, eventualmente, o Prefeito da capital paulista, talvez não o tivessem elegido. Basta essa hipótese para mostrar que não é aceitável o entendimento que a câmara Municipal de São Paulo quer dar ao caso. Não pode deixar de redundar em incongruências a aplicação de um sistema à margem das razões condicionantes de sua atuação.

Entre os argumentos válidos expendidos em torno do presente caso, há um que me impressionou profundamente e me leva à conclusão da improcedên-cia da representação: é o de que, com o advento da Lei federal 1.720, as condi-ções atuais em que se acha a municipalidade de São Paulo é como se existissem ao tempo da promulgação ou início de vigência da constituição de 1946, de-vendo o caso, portanto, ser regulado pelo art. 12 das Disposições cons ti tu cio-nais Transitórias, que expressamente dispõe:

Os Estados e os Municípios, enquanto não se promulgarem as cons ti tui-ções Estaduais, e o Distrito Federal, até ser decretada a sua lei orgânica, serão administrados de conformidade com a legislação vigente na data da promulga-ção deste Ato.

Quero, porém, admitir, Senhor Presidente, que não se encontre para o caso uma solução incensurável, quer em face da constituição Federal, quer em face da lei estadual. Se, por um lado, o Presidente da câmara só é substituto do Prefeito quando este é eleito, não haveria, por outro lado, um preceito de ca-tegórico, positivo, iniludível, no sentido da continuação do Prefeito nomeado. Estaríamos, assim, numa situação de perplexidade. E como resolver a questão?

Há um velho princípio de sabedoria que assim nos aconselha: in dubio, abstine. Na dúvida, abstém-te.

Deixemos, portanto, a situação como está e aguardemos o advento do fato que será a solução radial e inquestionável do caso, isto é, a futura posse ou investidura do Prefeito cuja eleição já está marcada.

Senhor Presidente, também julgo improcedente a representação.

VOTOO Sr. Ministro Mario Guimarães: Senhor Presidente, dada a importância

da matéria, dá que se tratava de fixar a interpretação de princípios constitucio-nais, já pela elevação com que foi tratada pelos eminentes colegas que ocupa-ram a tribuna, já, enfim, pelo alto interesse que ela representa para o Estado em que nasci, quis estudá-la com todo o carinho e o fiz na manhã de ontem, lendo meticulosamente as razões, os memoriais e os pareceres apresentados por am-bos os litigantes.

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Ministro Hahnemann Guimarães

Agora, na votação, acabo de verificar que muitos desses argumentos que eu anotei e que estão escritos, estão sendo apresentados igualmente pelos meus eminentes colegas, de onde se vê que houve perfeita coincidência de pensa-mento entre eles e o meu voto.

Quanto à fixação do que seja o ato a que se refere a disposição citada, acho que tanto pode ser do Executivo como do Legislativo. Ouso divergir, neste par-ticular, da douta opinião de castro Nunes, externada assim no voto que proferiu na Rp 94, que se encontra no Arquivo Judiciário, vol. 85, como no parecer ora oferecido no presente caso. O que se requer, evidentemente, é que se não trate de um ato circunscrito a lesão de direitos individuais, para o qual o remédio convi-nhável será o mandado de segurança, mas de ato cuja amplitude importe numa violação dos princípios constitucionais exarado no números VI e VII do art. 7º da constituição. Este tem essa característica manifesta. A cen tua ram os contendores que gira toda a controvérsia em torno de um princípio, o da autonomia municipal. O Sr. Governador do Estado de São Paulo julga que subsiste, até a eleição e posse de outro, o direito de nomear Prefeito para a capital de São Paulo. A ilustre edi-lidade entende que cessou esse poder, automaticamente, com a promulgação de princípios entre órgãos diferentes. Não há direitos individuais postos em cheque.

Quem pede a intervenção não é só o Presidente da câmara, individual-mente, lesado em seus direitos, caso que seria de mandado de segurança. é a própria Assembléia Municipal, por ele representada. As Assembléias não têm direitos subjetivos. Têm atribuições. Têm uma órbita de competência que lhes incumbe defender (v. FIScHBAcH, Derecho politico y Const., trad. esp., p. 74).

A questão, pois, não é de violação de direitos individuais, mas de um con-flito de direito público, em que pode haver lesões à carta Magna.

O meio escolhido para dirimir a contenda foi, pois, idôneo.No mérito, não me parece assista razão aos reclamantes. A constituição

Fe deral, no art. 28, 1, prescreveu a eleição de Prefeito e de Vereadores como ele-mento assegurador da autonomia dos Municípios. Admitiu, todavia, exceções no § 1º e no § 2º. Por estar incluído o Município da capital paulista, pelo De-cre to 121, de outubro de 1947, entre as exceções do § 2º ser considerado base de importância militar para o País – não houve até agora eleições para Prefeito na-quele Município. A Lei 1.720, entretanto, revogou o Decreto 121. Isso significa que se deverá sem detenção cuidar de prover aquele cargo pelo processo eletivo.

O atual Prefeito não foi eleito. Não o foi, também, para tais funções o seu ilustre antagonista.

Pretende-se aplicar o art. 47 da Lei estadual 1.174, de 21 de agosto de 1947, que diz:

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Memória Jurisprudencial

O órgão executivo do município é o prefeito, eleito por quatro anos jun-tamente com o vice-prefeito, salvo as exceções previstas nos § 1º e § 2º do ar-tigo 28 da constituição Federal.

§ 1º Substitui o prefeito em seus impedimentos e sucede-lhe, em caso de vaga, o vice-prefeito.

§ 2º Na falta de ambos, será chamado ao exercício do cargo o presidente da câmara até que se proceda na forma dos parágrafos seguintes.

Mas essa lei foi feita não para regular a situação de Municípios antes da eleição normal dos Prefeitos, mas para os Municípios em que houvesse Prefeito e subprefeitos eleitos.

O artigo expressamente o declarou: “salvo as exceções previstas nos § 1º e § 2º da constituição.” Para o caso em que não houvesse ainda eleição, pre-viu a constituição do Estado no art. 3º do Ato das Disposições Transitórias: “Os Muni cí pios, enquanto não forem empossados os prefeitos e vereadores, se-rão assim governados: I . Os prefeitos serão nomeados pelo Governador.”

O Município de São Paulo está na mesma situação dos demais Municípios do Estado antes de se realizarem as primeiras eleições. Por força do Decreto 121, a sua autonomia ficou retardada até o presente momento.

Não vem ao caso, como bem pondera o Sr. Procurador, o que se praticou em relação ao Estado de Pernambuco, porque lá a constituição Estadual dispunha no art. 2º: “Se, após a promulgação desta constituição, não houver diplomado o go-vernador, assumirá o governo do Estado o presidente da Assembléia Legislativa.”

Aqui regulará supletivamente o art. 3º das Disposições Transitórias da cons ti tui ção estadual, como bem ponderou o Sr. Ministro Afrânio costa e tam-bém o Sr. Ministro Relator, porque esse artigo é que declara que, enquanto não fossem eleitos os Prefeitos, esses cargos seriam de nomeação do Executivo. Ora, no Município da capital, por força desta lei que substituiu o poder de nomeação do Prefeito pela eleição, a situação é a mesma que antes de 1947 e, por conse-guinte, deverá reger-se pelos mesmos princípios jurídicos que antes a regulavam.

Argumenta-se ainda que a lei que criou a autonomia para o Município da capital foi uma lei que entraria em vigor imediatamente. Realmente, entrou em vigor, e por ter entrado em vigor foi que já estão sendo tomadas todas es-sas providências tendentes a assegurar a autonomia do Município. Mas, como já ficou explicado nos diversos pareceres, não se tratava de uma lei automati-camente executória; era uma lei que demandava certas formalidades para ter execução, essas formalidades são precisamente as que vêm sendo tomadas pelo Governador.

Assim, o Governador do Estado só infringiria os princípios da autonomia municipal se ele se recusasse a cumprir as determinações sobre a eleição do

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Ministro Hahnemann Guimarães

Prefeito, se acaso fosse eleito e empossado o Prefeito e ele, por qualquer modo, tentasse fazer valer a sua autoridade, para manter o Prefeito nomeado sem em-possar o eleito. Isto não se deu. S. Exa. o Sr. Governador, em ofício, já declarou que não fará. Por conseguinte, não vejo infração nenhuma aos princípios cons-titucionais do art. 7º e julgo também improcedente a representação.

VOTO(Mérito)

O Sr. Ministro Rocha Lagôa: Não encontro evidente contrariedade entre o ato argüido de inconstitucional e os princípios enumerados no art. 7º, VII, da vigente carta Magna. Inclui-se entre eles a autonomia municipal, mas esta não é absoluta, pois o § 1º do art. 28 do mesmo Estatuto Fundamental possibilita a nomeação dos Prefeitos das capitais pelos Governadores dos Estados. Assim não pode haver inconstitucionalidade na resolução do Governador de São Paulo de manter à frente do Executivo municipal da capital do Estado o antigo Prefeito por ele nomeado.

Aliás, mesmo no plano da legislação estadual, não poderia tal ato ser acoi-mado de ilegal, porquanto prescreve o art. 47 da Lei Orgânica dos Municípios de São Paulo, com a redação que lhe deu a Lei 1.174, de 21 de agosto de 1951, que o órgão executivo do Município é o Prefeito, eleito por quatro anos junta-mente com o Vice-Prefeito, salvo as exceções previstas nos § 1º e § 2º do art. 28 da Constituição Federal. Ora, esse § 1º, como já se viu, permite justamente a nomeação do Prefeito da capital pelo Governador do Estado.

Sustentam, entretanto, os autores da representação que o exercício da atribuição constante desse § 1º depende do voto da Assembléia constituinte estadual, e, como a constituição de São Paulo não a conferiu expressamente ao Governador do Estado, não há que cogitar de tal hipótese.

contra esse entendimento, porém, levanta-se a autorizada opinião de Pontes de Miranda, para quem, sendo omissa neste particular a constituição estadual, a lei ordinária pode estabelecer a nomeação do Prefeito da capital pelo Governador (Comentários à Constituição de 1946, v. I, p. 487). Foi precisa-mente o que ocorreu no caso em apreço.

Julgo assim improcedente a representação.

VOTO (Mérito)

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: confesso que a representação, trabalho ma-gistral que faz honra aos seus ilustres autores, me deu de início a impressão de ser procedente.

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Memória Jurisprudencial

Um exame mais detido da questão, porém, como tantas vezes nos acon-tece no trato dos problemas jurídicos, convenceu-me da sua improcedência.

O texto em que fundamentalmente se apóia a representação é o § 2º do art. 47 da Lei Orgânica dos Municípios de São Paulo, o qual dispõe que, na falta do Prefeito e do Vice-Prefeito, será chamado ao exercício do cargo o Presidente da câmara até que se proceda na forma dos parágrafos seguintes.

Os parágrafos seguintes cuidam do preenchimento da vaga, por eleição direta ou indireta, conforme a vaga ocorra no primeiro biênio ou no segundo.

Mas de que trata o artigo (caput) em que se inscreveram todos esses parágrafos?

Trata do Prefeito eleito por quatro anos, juntamente com o Vice-Prefeito.Havemos de entender, portanto, logicamente, que, quando o § 2º do

art. 47 dispõe que, na falta de ambos (Prefeito e Vice-Prefeito), será chamado ao exercício do cargo o Presidente da câmara, está se referindo, só pode referir-se, ao Prefeito e ao Vice-Prefeito de que cuida o artigo a que o parágrafo se subor-dina, vale dizer, ao Prefeito e ao Vice-Prefeito eleitos.

Acresce que o invocado § 2º manda que o Presidente da câmara assuma o exercício do cargo de Prefeito, até que se proceda na forma dos parágrafos citados. E estes aludem ao primeiro e ao segundo biênio do período de quatro anos a que corresponde a eleição prevista no artigo (caput).

Isso também indica, claramente, que se visou no § 2º à substituição do Prefeito e Vice-Prefeito eleitos.

Dir-se-á (e este é o argumento maior do requerente) que o Supremo Tribunal Federal, julgando a Rp 95 (caso de Pernambuco), equiparou à hipótese de substituição do Governador eleito pelo Presidente da Assembléia aquela ou-tra, que então se apresentou, de assumir o Governo o Presidente da Assembléia antes que eleito estivesse o Governador.

Mas, em primeiro lugar, não participei dessa decisão, nem para ela con-corri, pois ainda não era então Procurador-Geral.

Em segundo lugar, na constituição de Pernambuco havia preceito transitó-rio expresso determinando que o Presidente da Assembléia assumisse o Governo do Estado, uma vez promulgada aquela constituição, caso ainda não houvesse sido diplomado o Governador (art. 2º). Aqui não se invoca preceito análogo.

E, em terceiro lugar, ainda quando fosse caso de divergir de algum dos fundamentos adotados pelo eminentes Ministros que proferiram aquela deci-são, seja por não abranger o dispositivo permanente (art. 75) a hipótese de as-sumir o Governo o Presidente da Assembléia antes da investidura do primeiro

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Ministro Hahnemann Guimarães

Governador eleito após o regime caduco, seja porque o dispositivo transitório da carta Estadual não poderia ter força de afastar o interventor federal antes que assumisse o Governador eleito, ainda assim, a decisão tinha por si um fun-damento, a meu ver, inexpugnável: o art. 12 das Disposições Transitórias da constituição Federal de 1946, que só mandava fossem os Estados administra-dos de conformidade com a legislação então vigente, enquanto não se promul-gassem as respectivas Constituições.

E os egrégios julgadores fizeram referência a esse fundamento por si só decisivo, que o eminente Relator, Ministro Orozimbo Nonato, classificou de patente e patentíssimo, o eminente Ministro Hahnemann Guimarães pôs em re-levo, mostrando que o citado art. 12 derrogara o art. 3º da Lei constitucional 9, de 21-2-1945, que ordenava durasse a intervenção nos Estados até a posse dos novos Governadores, e foi ainda mencionado nos votos dos eminentes Ministros Barros Barreto e Laudo de Camargo, que no mesmo art. 12 se base-aram para mostrar que, promulgada a constituição Estadual, irregular se torna-ria a intervenção.

Assumiu, portanto, o Presidente da Assembléia em obediência a preceito expresso contido na carta Estadual, em harmonia com o da própria carta Federal.

E, no caso ora em discussão, não se aponta preceito equivalente.Foi certamente por ter em conta o art. 12 das Disposições constitucionais

Transitórias Federais que o eminente Ministro castro Nunes, no trecho citado pelo ilustre advogado Benedito costa Neto, disse que, se não assumisse o Pre-sidente da Assembléia, o Poder Executivo de Pernambuco ficaria acéfalo. Aqui, isso não ocorre, porque não há texto que impeça – como impedia ali – a conti-nuação do chefe nomeado do Poder Executivo.

Argumentam os ilustres autores da representação que, com a publicação da Lei 1.720 de 3 de novembro de 1952, que excluiu do elenco de bases mili-tares a capital de São Paulo, “a primeira conseqüência, incoercível e imediata, da entrada dessa lei em vigor, é o restabelecimento integral da autonomia do Município de São Paulo, que volveu a usufruir da amplitude que lhe comunica a constituição da República”.

Data venia, o restabelecimento da autonomia não pode ser imediato e integral.

Será integral, mas imediato não pode ser, por isso que um dos elementos essenciais da autonomia municipal, nos termos do art. 28, I, da Lei Magna, é a eleição de Prefeito, e, assim, dependerá de que esta se realize.

Para que a integral autonomia se pudesse restabelecer imediatamente, fora necessário que se pudesse fazer a eleição imediatamente. E, como isso não

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é possível, forçoso será reconhecer que a autonomia integral fica na dependên-cia da eleição.

A vigência e a eficácia da Lei 1.720, de 3-11-1952, somente poderão a atingir a sua plenitude após as providências que lhe condicionam a execução.

é o que ocorre toda vez que a lei não é auto-executável.A de que se trata a toda evidência não o é, uma vez que traz como con-

seqüência um pleito eleitoral, cuja realização está sujeita a delongas inevitáveis.E, no silêncio da lei, enquanto não se instaura, pela delonga inevitável, o

novo regímen, há de subsistir o anterior.O eminente Sr. Ministro Relator acha aplicável o art. 3º do Ato das

Disposições constitucionais Transitórias Estaduais, por analogia.O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Não é por analogia; o que afirmo é

que o dispositivo é transitório, e, sendo transitório, a Lei Orgânica pode modificar.O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Por ser transitório, não deixa de ser consti-

tucional. Embora o argumento tenha sido desenvolvido brilhantemente na res-posta do eminente Governador de São Paulo, não o adotei, porque entendo que o dispositivo não se aplica ao caso. E não se aplica, porque prevê a nomeação dos Prefeitos dos Municípios, enquanto não empossados os Prefeitos e Vereadores. Refere-se, portanto, àqueles Municípios em que ainda não havia nem Prefeitos, nem Vereadores. Ora, na capital de São Paulo já há uma câmara de Vereadores eleita. Assim, este problema que ora estamos examinando no outro caso não poderia existir, porque, não havendo Vereadores eleitos, não havia Presidente da câmara e não poderia haver reivindicação deste, como há aqui, no sentido de assumir a Prefeitura.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Aplico relativamente ao Prefeito.O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Mas as situações são diversas, como acentuei.Diante do exposto, julgo improcedente a representação.

VOTOO Sr. Ministro Ribeiro da costa: Senhor Presidente, peço permissão aos

eminentes colegas que com tanta autoridade opinaram sobre o fascinante tema para divergir de S. Exas. Antes de tudo, devendo dar equação a um tema de or-dem constitucional, bem não me percebo como o intérprete possa desligar-se dos princípios constitucionais que regem o nosso sistema para encontrar solu-ção que, em verdade, repugna a esse sistema, solução de ordem prática, solução acomodatícia, mas que deixa integralmente ferido o princípio da autonomia mu-nicipal. Não quero contraditar a autoridade da opinião dos eminentes colegas,

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Ministro Hahnemann Guimarães

robustecida na dessemelhança do caso de Pernambuco com o ora presente, des-semelhança que autorizaria o Tribunal a adotar a providência pela qual se bate o ilustre Governador do Estado de São Paulo, o jovem Governador que com aplau-sos gerais tão bem vem administrando o grande Estado-Membro da Federação.

A Lei 1.720, restituindo à capital do Estado de São Paulo a sua autonomia, não se fez completa, e é pena que isso tenha corrido, e é pena que os legisladores não estejam bem capacitados a plasmar o regímen. Bastava um dispositivo para que a solução do problema se tivesse por consumada e fosse dispensável pedir pronunciamento ao mais alto Tribunal do País. Entretanto, Senhor Presidente, começarei por entender que o caso de Pernambuco é semelhante ao presente. Há umas nuances que diversificam um do outro, mas, no fundo, substancialmente, a semelhança, a meu ver, data venia, é inegável. No Estado de Pernambuco, por força de dispositivo transitório da constituição, o art. 12, cabia ao Presidente da Assembléia, enquanto o Governador não fosse eleito, assumir o Executivo estadual. No caso presente, a lei que restabeleceu a autonomia municipal de São Paulo não deu solução ao tema, mas a solução está, a meu ver, também inegavel-mente, integrada na Lei Orgânica dos Municípios. E, a meu ver, a Lei Orgânica dos Municípios é lei existente, ao passo que o antigo poder legal do Governador do Estado de São Paulo é atribuição exaurida, é poder que não mais existe, é lei do passado, que, a meu ver, data venia, não pode ser invocada para reger uma situação presente. Daí, Senhor Presidente, afigurar-se-me que a compati-bilidade entre o princípio da autonomia municipal e a interferência na direção administrativa dos Municípios de delegado do Governador, a que falece o poder de nomear Prefeitos para Municípios autônomos, é coisa difícil de demonstrar. A meu ver, data venia, a incompatibilidade é absoluta porque briga com a es-sência do regime, fere o sistema constitucional, torna-se inadaptável à moldura da constituição vigente.

Ora, se, por força da Lei 1.220, se concedeu autonomia à capital do Estado de São Paulo; se uma cláusula dessa lei dispõe que se revogam todas as disposições em contrário; é, a meu ver, inconciliável com esta lei, que concedeu autonomia aos Municípios, a situação profundamente irregular de se encontrar à frente de seus destinos na chefia do seu Executivo um delegado do Governador do Estado, que não mais tem poder de nomear. A Lei Orgânica dos Municípios comete ao Presidente da Assembléia, nos casos que especifica, de vaga, da ace-falia, de ausência do detentor do cargo de Prefeito, o exercício desse cargo até que se promova a eleição de autêntico titular. Assim, concedida a autonomia por lei federal, a meu ver, o processo da autonomia começa no dia imediato pela investidura no cargo de Prefeito, pelo Presidente da câmara. Esse processo de autonomia deve iniciar-se incontinente, porquanto não se compreende mais que ainda se esteja no passado com uma lei que revoga tudo que ficou para trás. Diz-se: “Não a autonomia só se exprimirá pela eleição do Prefeito”. Nada

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Memória Jurisprudencial

disto. A eleição do Prefeito será o ato complementar, consumidor dessa auto-nomia, que vai integrá-la perfeitamente na órbita constitucional. Mas, enquanto essa eleição não ocorra, deve-se obedecer à Lei Orgânica dos Municípios, in-vestindo na Prefeitura o titular, aquele que a lei indica, de acordo com o que a constituição prescreve; esse titular, a meu ver, é o Presidente da câmara. Tenho, assim, Senhor Presidente, que há preceito legal regendo a solução para a espécie, ou seja, a lei que confere ao Presidente da câmara o direito de exercer o cargo de Prefeito até que a eleição se faça, até que seja, em suma, proclamado eleito o Prefeito. Não creio que se possa invocar situação que autorize a provi-dência pedida pelo ilustre e nobre Governador de São Paulo, atendendo a que o Presidente da câmara não tem expressamente competência para preencher. O cargo vago de Prefeito, porque a lei assim não o declara, uma vez que estamos em face de um caso omisso e atendendo, ainda, a exemplo do que aconteceu nos primórdios do regime iniciado com a constituição de 1946, em que cabia ao Governador nomear o Prefeito. Evidentemente, o legislador constituinte teria de inscrever tais normas transitórias, uma disposição dessa natureza, para fa-cultar ao Governador meio adequado de administrar os Municípios, através de seus delegados. Tal, porém, foi feito porque, a esse tempo, não havia nenhuma câmara estadual constituída, não havendo, pois, ipso facto, nenhum Presidente de casa Legislativa estadual com qualidade para assumir a Prefeitura. Logo, o Governador teria mesmo de nomear os Prefeitos.

Assim, data venia dos eminentes colegas, entendo que o ato concreto do Governador de São Paulo feriu, lesou, o princípio da autonomia municipal e deve ser corrigido através da representação suscitada pelo ilustre Presidente da câmara e demais membros da Mesa, a fim de que S. Exa. seja investido na Prefeitura de São Paulo.

Defiro a representação.

VOTOO Sr. Ministro Lafayette de Andrada: Não tenho dúvida, Senhor Presi-

dente, em conhecer da representação. considero-a dentro das normas constitu-cionais, pela desinteligência que se estabeleceu na interpretação do alcance, da extensão, de uma lei federal diante do ato do Governador do Estado mantendo o Prefeito municipal, contra a manifestação da câmara dos Vereadores.

O ato a que alude a constituição deve ser tomado em sentido amplo: ato de qualquer poder, desde que possa ser apontado como inconstitucional, como ferindo seus preceitos. Ora, o ato do Governador, na espécie, pode ferir a auto-nomia do Município.

Basta isso, a meu ver, para autorizar o pronunciamento deste Supremo Tribunal.

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E o eminente Relator deu bons fundamentos, para mostrar ser cabível a representação.

Senhor Presidente, o caso ora examinamos não é igual ao de Pernambuco. Naquele havia dispositivo expresso na constituição Estadual, determinando que o Presidente da Assembléia Legislativa assumisse o Governo se, após promul-gada a carta do Estado, o Governador não houvesse sido diplomado (Arquivo Judiciário, vol. 85, p. 67).

Neste, a lei que concedeu autonomia para o Município de São Paulo, ne-nhuma referência faz ao modo de substituição do Prefeito nomeado.

Por isso acentuou Themistocles cavalcanti, em parecer que tenho sob as vistas: “Desta maneira a reintegração da autonomia local só se tornará efetiva quando realizadas as condições impostas por essas exigências, o que determi-nará conseqüentemente uma dilatação do regime vigente, da livre escolha pelo Governador, até que se complete o processo eleitoral.”

E mais adiante:

Modificada tão radicalmente a forma de preenchimento do cargo, deve-se antes de tudo indagar se a vigência da lei nova importa em terminação au-tomática da investidura do Prefeito nomeado, com a conseqüente vacância do cargo ou, se, pelo contrário, somente se esgotará a investidura com a ocorrência de fatos como a morte, a renúncia, a revogação com a eleição de novo Prefeito.

O princípio geral de direito público que informar a hipótese em apreço, é aquele, a nosso ver, que permite ao ocupante do cargo no qual se acha legi-timamente investido, de conservá-lo até a eleição, porquanto, salvo disposição expressa em contrário, a modificação no critério de escolha só se poderá tornar efetiva depois de realizados todos os atos e formalidades exigidos pela lei para a sua execução.

O que pretendeu o legislador foi apenas que o Prefeito da capital pudesse ser eleito em vez de nomeado, tirando a restrição que a própria lei impusera por motivo de segurança interna do País.

Sendo assim, enquanto não se completar o processo eleitoral, continuará a vigorar o regime anterior e a investidura feita por livre escolha do Governador continuará íntegra e insuscetível de modificação, até que se verifique a execução do novo sistema criado em virtude da lei.

A vaga pressupõe o término do mandato ou a falta de titular legitima-mente investido no cargo ou a retirada da confiança do Governador quando se tratar de investidura por livre escolha. Ao que conste, entretanto, nenhuma des-sas hipóteses ocorreu, devendo o atual titular da Prefeitura continuar no exercí-cio manso e pacífico do cargo, até que ocorra qualquer uma dessas hipóteses ou que deva transmitir o cargo ao seu substituto legitimamente eleito.

Mesmo que o atual Prefeito tivesse de abandonar o cargo, ou expontanea-mente, porque lhe faltasse a confiança do Governador, dentro desses critérios não me parece possível que a substituição devesse proceder de outra forma que não pela livre nomeação do seu substituto, até que seja eleito o Prefeito da capital.

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A ligação dos preceitos legais que regulam a substituição do Prefeito pelo Presidente da câmara Municipal ou pelo Vice-Prefeito, quando este exigir, pressu-põe necessariamente que esteja em vigor e em prática o sistema de eletividade do Prefeito. De outra forma tirar-se-ia ao Governador uma prerrogativa que ele só po-derá perder quando o eleitorado houver manifestado as suas preferências nas urnas, substituindo por essa forma a vontade popular a de livre escolha do Governador.

é preciso bem compreender que a faculdade concedida pela lei federal aos Governadores, investia o chefe do Executivo estadual de uma prerrogativa que somente pode cessar com a eleição, transferindo-se por esta forma ao elei-torado a prerrogativa até então atribuída ao Governador.

Realmente, enquanto não fossem empossados os Prefeitos, a constituição Estadual atribuía ao Governador a faculdade, a prerrogativa de nomeá-los. Ora, o Município de São Paulo está justamente no ponto inicial, saindo da interfe-rência do Estado para a completa autonomia. A ele terá de ser aplicada lei que regulou situações idênticas, iguais, perfeitamente iguais.

Sampaio Dória, em brilhante parecer sobre o assunto, notou com muito acerto que “princípio de direito público, aplicável à espécie, é o da continuidade administrativa, sempre que a lei não a veda, ou haja razões fortes em contrário. Por este princípio, o que se segue é a continuação do prefeito atual da capital, até a posse do que for eleito”.

concluo, Senhor Presidente, acompanhando o Ministro Relator.

VOTOO Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Senhor Presidente, já o egrégio

Supremo Tribunal Federal, pela maioria dos seus eminentes Juízes, decidiu a controvérsia com a só divergência do eminente Sr. Ministro Ribeiro da costa. Pode-se dizer, pois, que a questão já está praticamente resolvida: causa finita est. Assim, meu voto não terá mais qualquer alcance: torna-se apenas uma de-claração de princípio, que faço com a convicção de sempre e depois de ouvir com ânimo de aprender as brilhantes lições aqui proferidas.

Senhor Presidente, o princípio do Imperador Anastácio, de que a lei deve ser entendida em vigor ex die promulgata, não pode mais ser aplicado. Uma coisa é a promulgação e outra é a publicação. São duas fases diferentes. E a úl-tima é indispensável não para dar autoridade à lei, mas para torná-la conhecida, ao menos presuntivamente, aos membros do consórcio civil.

Para que a ficção do conhecimento da lei não se torne ainda mais odiosa, alcançando analfabetos, pessoas que não podem ler e que estão em lugares inacessíveis, a lei marca, em geral, um prazo para sua divulgação, para sua difusão e seu conhecimento. é o prazo vacationis, em geral indispensável, por-que se destina à divulgação do mandamento do legislador. Já as leis antigas o

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Ministro Hahnemann Guimarães

admitiam. Os editos dos pretores eram escritos nas paredes alvas, in parietam albatem, e, às vezes, anunciados em mercados e lugares públicos e freqüenta-dos. Na Idade Média, era a lei apregoada nos púlpitos, no Parlamento, nos luga-res públicos, nas esquinas, tudo que o povo a conhecesse e obedecesse.

De modo que entre a promulgação da lei e a sua vigência obrigatória me-deia quase sempre um espaço, que se chama a vacatio legis. A lei não entra em vigor no dia de sua publicação, em geral.

Quando, porém, o assunto é instante e de tal modo se faz necessária a vigência imediata que o próprio legislador elimina o prazo vacationis, então ela entra em vigor na data mesma de sua promulgação, excepcionalmente.

é tão importante a vacatio legis que, segundo Alvarez Gendin, ainda quando, segundo sua própria natureza, a lei haja de entrar em vigor imediata-mente, se não ocorre cláusula nesse sentido, ele entra na vacatio legis e atenderá ao sistema de prazos sucessivos ou simultâneos, sendo que este último é o que vigora atualmente entre nós.

No caso, surgiu uma lei que deu autonomia à maior cidade brasileira, em muitos aspectos, como é São Paulo, um dos maiores centros de nossa cultura cívica e política. E esta lei tem uma cláusula de que entrará em vigor imediata-mente, na data mesma da sua promulgação.

Dir-se-á que essa vigência imediata é, no caso, impossível. Não poderia a autonomia surgir perfeita e completa ao fiat legislativo.

Faz-se mister se tomem várias providências, sem dúvida. Mas a verdade é que essa autonomia deve ser atendida imediatamente, no máximo de sua pos-sibilidade. Em tudo quanto não for absolutamente impossível, deve ser aceita imediatamente. E o princípio da autonomia deverá ocupar o máximo de área em toda a extensão de sua possibilidade.

Ora, a permanência do Prefeito nomeado pelo Sr. Governador luta, pe-leja arca por arca com a autonomia outorgada por lei de imediata vigência. A investidura de Prefeito deriva de princípio que, como disse o eminente Sr. Ministro Ribeiro da costa, já se exauriu, já se esgotou, já não existe. O poder do Governador que justificava aquela investidura é incompatível com a lei que entrou em vigor na data de sua publicação.

é verdade que as eleições são necessárias para que se aperfeiçoe aquela autonomia. Mas eleições não se improvisam nem se preparam in ictu oculi. Para solver o problema, haverá que recorrer aos princípios gerais de direito e aos princípios gerais do direito político brasileiro. Os primeiros sugerem aberta-mente que, quando um poder está acéfalo por via de certas contingências, mem-bro do outro poder o substitua. No caso, o substituto é o Presidente da câmara

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Municipal, cuja investidura derivou das urnas. Este, o princípio geral, para o qual me inclinei no caso de Pernambuco, dizendo que pela construction deveria ser dado o poder executivo a um membro do poder legislativo, ainda que não houvesse dispositivo expresso a respeito.

No caso, porém, há lei que se refere à vaga do Prefeito. Vaga é termo ge-neralíssimo. Não é só falta ou impedimento. A lei fala em vaga. Ainda que esta lei não fosse suscitada para o caso dos autos, como não foi, a ele se aplica por analogia irresistível. O argumento a pari ratione, de aplicação indispensável por não poder o mais previsto dos legisladores formular mandamentos que alcan-cem todas as hipóteses, aqui depara ensejo nítido de eficácia.

Existe uma lei paulista pela qual, quando ocorre vaga de Prefeito, é subs-tituto o Presidente da câmara Municipal. A vaga existe. Tanto existe vaga que vai haver eleição. Data venia do eminente Sr. Ministro Afrânio, o caso é, indu-vidavelmente, de vaga.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Se não houvesse vaga, não poderia haver eleição.O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Não há vaga. O que há

é remoção do Prefeito nomeado pelo Governador. Este Prefeito perde o cargo com a eleição. Mas o cargo não está absolutamente vago.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Esta é a questão toda dos autos.O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): O cargo vai ser preen-

chido por força de ter deixado o Município a categoria em que estava.O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Mas ocorre situação legal que, a meu

ver, tornou insubsistente o mandato do Prefeito, delegado ao Governador do Estado, uma vez que o Município já é autônomo por lei.

O Sr. Ministro Rocha Lagôa: Pediria atenção para a ressalva feita pela Lei Orgânica de São Paulo, na sua última redação. Aí se ressalva expressamente a hipótese prevista no § 1º do art. 28 da constituição Federal, que possibilita ao Governador nomear o Prefeito da capital. Há assim lei expressa a respeito. Estamos, aqui, data venia, fazendo much ado about nothing. Para mim, a questão é simplíssima. Os eminentes colegas preocuparam-se com aspectos mais vistosos, mas esqueceram-se desta disposição legal, em que se outorga expressamente ao Governador a nomeação do Prefeito da capital, com base na constituição Federal.

O Sr. Ministro Luz Gallotti: Eu não me preocupei, data venia, com aspec-tos vistosos da questão.

O Sr. Ministro Rocha Lagôa: V. Exa. desconheceu, data venia, a legisla-ção vigente de São Paulo.

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O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Não desconheci. Baseei-me nela, como se vê do meu voto.

O Sr. Ministro Ribeiro da costa: Esta é uma lei que convenceu a V. Exa., mas não convenceu aos demais colegas.

O Sr. Ministro Rocha Lagôa: A lei é para convencer a todos.O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Ouvi com o máximo prazer e defe-

rência os apartes dos eminentes colegas. O eminente Sr. Ministro Rocha Lagôa observa que os eminentes colegas que já se manifestaram, atenderam aos as-pectos ornamentais, pomposos da questão. S. Exa., porém, teria penetrado o âmago dela. A verdade, porém, data venia, é que todos os egrégios Ministros atenderam a todos os aspectos do problema, inclusive, o lado constitucional, que S. Exa. entendeu estar resolvido pela lei estadual. Data venia, não está. Divirjo, respeitosamente, de S. Exa. A lei estadual não pode outorgar ao Governador o poder de nomear Prefeito no regime de autonomia municipal. Esta autonomia municipal está pelejando contra o sistema.

Não é possível conciliar a autonomia com o poder de nomeação do Governador do Estado e se o fosse nem se formaria a questão debatida. O emi-nente Sr. Ministro Rocha Lagôa confina a questão a termos muito angustos e lhe nega qualquer momento. O contrário, porém, é o que ressai de todos os termos do debate. O caso de São Paulo é de um Município autônomo desde já, autô-nomo, tanto quanto possível. Se ainda não tem Prefeito eleito, o substituto deve ser o Presidente da câmara Municipal. Nestes termos, defiro a representação.

VOTOO Sr. Ministro Barros Barreto: Proclamo a plena vigência do art. 3º do

Ato das Disposições constitucionais Transitórias do Estado de São Paulo, que estabeleceu, de modo claro e incisivo, o regime de governo dos Municípios, até que fossem empossados os respectivos Prefeitos. Dito princípio, de inteira efi-cácia, por sem dúvida, e à falta de dispositivo em contrário, não há de ser dife-rente, para o Município da capital, cuja autonomia decorre, agora, da Lei 1.720, de 3 de novembro último, ao lado de outros Municípios, em que os Prefeitos, à data da carta paulista, ainda dependiam de eleição ou de se empossarem.

Nenhuma outra norma constitucional ou pressuposto legal ampara a pretensão do Presidente da câmara Municipal de São Paulo. De resto, não se cuida, no caso vertente, de vacância ou falta de Prefeito eleito, compreendido entre aqueles em que se legitima ao Presidente da câmara exercer o executivo do Município, até a eleição do Prefeito titular e do Vice-Prefeito (art. 47, § 2º, da Lei Orgânica dos Municípios de São Paulo).

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Diversa, inegavelmente, era a situação que se afigurava defronte ao Estatuto Político de Pernambuco, que continha preceito expresso, no art. 2º do Ato das Disposições Transitórias, cuja inconstitucionalidade não vingou perante esta egrégia Suprema corte, por votação unânime (Rp 95, in Arquivo Judiciário, vol. 85, p. 55/75).

carece, pois, de fundamento a alegação de contrariedade ao mencionado imperativo da constituição da República (art. 7º, VII, letra e). E, por via de con-seqüência, julgo improcedente a representação.

DEcISÃOcomo consta da ata, a decisão foi a seguinte: Rejeitada a preliminar

pela idoneidade da representação, por unanimidade de votos, julgaram im-procedente a representação contra os votos dos Ministros Ribeiro da costa e Orozimbo Nonato.

Deixou de comparecer o Ministro Edgard costa, por se achar afastado em exercício no Tribunal Superior Eleitoral, sendo substituído pelo Ministro Afrânio costa.

MANDADO DE SEGURANÇA 760 — SP

RELATÓRIOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Lara campos & cia., comer-

ciantes estabelecidos na rua Marquês de Herval, 71, em Santos, no Estado de São Paulo, requereram mandado de segurança contra o despacho datado de 1º de maio de 1946 e de que tiveram notícia somente em 24 de maio do mesmo ano, pelo qual o Senhor Presidente da República aprovou informações do Sr. Ministro da Fazenda e determinou que a câmara de Reajustamento Econômico processasse o pedido de Irmãos Andrade, do qual a citada câmara decidira irrecorrivelmente não conhecer.

O requerimento, datado de 19 de setembro p.p. e submetido a despacho do Senhor Presidente deste Tribunal em 23 seguinte, baseou-se no art. 141, § 24, combinado com o art. 101, I, i, da constituição promulgada no dia imediata-mente anterior.

Alegam os recorrentes que, negada por decisão irrecorríveis admissão do pedido ao conhecimento da câmara de Reajustamento, intentaram ação executiva para cobrança do saldo credor de um empréstimo feito em 1926.

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Ministro Hahnemann Guimarães

O despacho presidencial sobreveio quando já estava contestada a ação e mar-cado o dia para a audiência de instrução e julgamento.

considera-se evidente a ilegalidade do despacho, baseado na eqüidade, que não pode ser admitida no sistema do Decreto-Lei 1.188, de 15 de dezembro de 1939, que obriga o credor a receber apenas 75% de seu crédito, “em letras hipotecárias a longuíssimo prazo”. Daí resultarem “iniqüidade e clamorosa in-justiça, ao mesmo tempo, contra o direito creditório dos suplicantes”. O ato do Poder Executivo feriu ainda as prerrogativas do Poder Judiciário, impedindo, com ofensa do art. 141, § 4º, da constituição, que este conhecesse de ação pe-rante ele intentada; e, infringindo o disposto no § 16 do mesmo artigo constitu-cional, praticou verdadeiro confisco, ou desapropriação sem indenização.

Requerem, afinal, que, concedido o mandado, se expeçam ofícios à câmara de Reajustamento, para que, desde logo, arquive o pedido de Irmãos Andrade, e ao Juízo da 4ª Vara cível e comercial de São Paulo, para comu-nicar que ficou sem efeito o despacho presidencial, e, assim, prosseguir a ação executiva.

O Ministério da Fazenda transmitiu ao Sr. Desembargador Vicente Piragibe, antigo Relator, os esclarecimentos prestados pela câmara de Reajus-tamento, que, em acórdão de 26 de novembro de 1943, indeferiu liminarmente o reajuste compulsório pedido por Irmãos Andrade em tempo inábil, contra o prescrito no art. 41 e seu § 1º do Decreto-Lei 2.238, de 28 de maio de 1940. O acórdão de 13 de outubro de 1944 negou provimento ao recurso interposto pelos devedores, que não provaram o extravio de seu pedido, que estaria datado de 22 de março de 1943. Admitido ainda o extravio, evidenciava-se a extempo-raneidade do pedido, “porquanto, a 22 de março, restavam ainda 36 dias para ser constatado o fracasso (sic, do reajuste voluntário), que é condição essencial para a intervenção da câmara”. O Sr. Ministro da Fazenda, encaminhando ao Senhor Presidente da República o pedido de reconsideração feito pelos únicos sócios de Irmãos Andrade, salientou, em sua exposição de 26 de abril de 1946, que as decisões da câmara, baseadas na lei, eram irrecorríveis, e, assim, a lei não amparava o pedido, cuja apreciação devia ser, entretanto, por eqüidade, au-torizada à câmara de Reajustamento (fls. 16 a 23).

A Secretaria da Presidência da República adotou os esclarecimentos prestados pelo Ministério da Fazenda (fl. 27).

O Sr. Procurador-Geral da República entende que a firma requerente não é “parte legítima para pleitear a medida judicial, porquanto não foi ela parte no processo administrativo que teve a sua solução em recurso do ato do Exmo. Sr. Presidente da República, impugnado”. Este ato é, aliás, “daqueles que se en-quadram entre os de sua competência na esfera administrativa, como instância

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de recurso, sempre tolerada, embora não explícita em lei, mormente nos perío-dos de interregno constitucional por que temos passado” (fls. 29 e 30).

A respeito de petição de Irmãos Andrade, mandada juntar por linha aos autos, Lara campos & cia. declararam que pleiteiam a decretação da nulidade do ato do Senhor Presidente da República e não do ato do Juiz da 4ª Vara cível de São Paulo. contra o ato judicial foi interposta apelação em 7 de agosto de 1946, “quando não era possível pedir mandado de segurança contra ato do Presidente da República, só admitido pela constituição de 18 de setembro” (fls. 32 a 42).

Admiti que se juntasse aos autos requerimento de João do Rego Freitas e outros componentes da sociedade de fato Irmãos Andrade, os quais renovam as seguintes alegações constantes de memorial anexo à petição citada: 1º) o Supremo Tribunal Federal não tem competência para conhecer, pelo menos ori-ginalmente, do requerimento da segurança “erroneamente dirigida ( … ) contra despacho do Sr. Presidente da República, e igualmente contra o seu Ministro da Fazenda”, pois os requerentes impugnam os atos praticados pela câmara de Reajustamento Econômico e pelo Juiz de Direito, em conseqüência do despacho presidencial; 2º) os requerentes não têm título para se opor ao reajuste compul-sório, “de vez que não se habilitaram no processo especial de reajustamento, alegando e provando qualquer saldo credor contra os suplicantes, na época própria e dentro o prazo fatal previsto em lei para tal fim”; 3º) o mandado de segurança não pode ser concedido para o prosseguimento da ação interrompida pelo despacho que os requerentes impugnaram em apelação para o Tribunal de Justiça de São Paulo; 4º) o despacho do Presidente da República, que, na época, exercia o poder legislativo, foi perfeitamente legal, sendo preferido em processo administrativo (fls. 43 a 55).

Em certidão oferecida pelos requerentes, verifica-se que a Segunda câ-mara do Tribunal de Apelação de São Paulo, em acórdão de 20 de agosto de 1946, negou mandado de segurança pedido por João do Rego Freitas e outros contra o despacho do Juiz da 4ª Vara cível, que não concedeu o levantamento da penhora regularmente consumada na ação executiva, suspensa por decisão do mesmo Juiz, em vista dos esclarecimentos prestados pela câmara de Reajus-tamento (fls. 36 a 38).

Outra certidão, apresentada pelos devedores, dá as razões com que Lara campos interpuseram a mencionada apelação. Disseram os apelantes: “O M.M. Juiz está dando obediência não à lei, mas a um despacho ilegal ( … ). O processo está sendo novamente apreciado pela câmara de Reajustamento. Mas não é a lei que dá causas a essa nova apreciação, e sim o despacho ilegal do Sr. Presidente da República” (fl. 53).

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Ministro Hahnemann Guimarães

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Os requerentes ale-

gam que têm o direito de exigir por ação executiva o pagamento que lhes deve Irmãos Andrade; consideram violado seu direito pelo despacho que, em 1º de maio de 1946, exarou o Senhor Presidente da República na exposição de moti-vos apresentada pelo Ministério da Fazenda.

Dois pressupostos processuais devem ser examinados: o primeiro é rela-tivo à competência do Supremo Tribunal Federal; o segundo concerne à possi-bilidade de ser examinado no processo sumário do mandado de segurança ato praticado pelo Presidente da República sob a constituição de 1937.

Pretende-se excluir a competência do Supremo Tribunal Federal, porque a instância surgida com a propositura da ação executiva foi suspensa por ato do Juiz, e não pelo despacho presidencial. A competência é, porém, no caso, de-finida pela origem do ato contrário ao direito. Desde que se dá como ilegal, ou abusivo, ato do Presidente da República, o tribunal competente é o indicado no art. 101, I, i, da constituição. A controvérsia sobre se a alegada violação resultou do despacho presidencial, de atos da câmara de Reajustamento ou do Juiz da ação executiva excede o domínio dos pressupostos processuais e envolve maté-ria de mérito. é preciso indagar se aquele despacho ofendeu ou não o pretendido direito. Ao Supremo Tribunal Federal cabe, sem dúvida, fazer essa indagação, acolhendo ou rejeitando o pedido.

Quanto à possibilidade de se requerer mandado de segurança contra ato praticado pelo Presidente da República, na vigência do art. 16 do Decreto-Lei 6, de 16 de novembro de 1937, e da exceção constante do art. 319 do código de Processo civil, já manifestei minha opinião favorável a tal possibilidade, no julgamento de 4 de dezembro último, sobre o MS 768, de que foi Relator o emi-nente Sr. Ministro Orozimbo Nonato, cujo voto acompanhei.

O mandado de segurança é um praeceptum, um interdictum, uma sen-tença condenatória, e, assim, título executivo (código de Processo civil, art. 325, II), que determina providências cautelares de direito não amparado por habeas corpus e ameaçado, ou violado, por ato ilegal ou abuso de poder de qualquer autoridade (constituição, art. 141, § 24).

A ação destinada a obter o mandado de segurança e a sentença que o concede não apresentam nenhuma peculiaridade; constituem ação e sentença de coordena-ção; pertencem a uma das classes em que se distribuem as ações ou as sentenças.

A peculiaridade está no processo, que não segue o solennis ordo iudiciarius, mas é sumário, como se vê pelo disposto nos arts. 321 a 325 do código de Processo civil. Este processo sumário, especial, tem sua origem, como os processos monitórios, ou injuntivos, nos praecepta, ou mandata do

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direito comum, e nos interdicta possessoria, aplicados pelo direito canônico à quase posse dos direitos pessoais. Estabeleceu-se em nosso direito um processo sumário para tutela de todos os direitos certos e incontestáveis, diversos da li-berdade de locomoção, e que tenham sido ofendidos por qualquer autoridade, ou se achem sob a ameaça de ofensa.

Quando a lei admite um processo novo, um novo modo de atuação da lei, dele se podem valer os titulares de direitos preexistentes. De acordo com o art. 16 do Decreto-Lei 6, de 1937, e o art. 319 do código de Processo civil, não era possível obter, no processo especial, a tutela contra atos de certas au-toridades. A constituição, no art. 141, § 24, aboliu as exceções. Não estando prescrita a ação para obter aquela proteção, é evidente que, dentro dos 120 dias de promulgada a constituição, podia a ação ser proposta segundo a ordem su-mária estabelecida para a defesa de “direito líquido e certo, não amparado pelo habeas corpus”. é de 120 dias contados da ciência do ato impugnado o prazo para requerer proteção segundo o processo especial (código de Processo civil, art. 331). Se, a respeito de certos atos, a cognitio summaria somente se admitiu em 18 de setembro de 1946, daqui há de começar a correr aquele prazo, quando tais atos fossem anteriores a essa data. Não seria razoável que, podendo-se pedir o reconhecimento de um direito em processo ordinário, ficasse o titular proibido de recorrer ao novo modo sumário. Havendo um prazo para que a ação se pro-cesse pela forma especial, o termo inicial tem de ser, para os direitos anteriores à admissão dessa forma, o dia em que foi admitida.

No caso presente, requereu-se poucos dias depois de promulgada a constituição a tutela contra o ato presidencial de 1º de maio de 1946. Faz-se a tempo o requerimento.

Dizem os requerentes que seu direito de obter a condenação dos deve-dores em ação executiva foi ofendido pelo ato presidencial, que provocou a câmara de Reajustamento Econômico a instituir um concurso de credores e deu causa à suspensão da instância contenciosa.

Não há como aceitar-se que o direito dos requerentes foi ofendido, sem a demonstração prévia de que não é reajustável o passivo de Irmãos Andrade, pois, do contrário, a lei exige a suspensão das ações, cobranças e execuções pendentes contra agricultores (Decreto-Lei 1.888, de 15 de dezembro de 1939, art. 16).

Dizem Lara campos & cia. que a câmara de Reajustamento já negara, em dois acórdãos, fosse reajustável o passivo dos devedores. A câmara de Reajustamento rejeitou, com efeito, in limine, o pedido de liquidação e exo-neração compulsória do passivo de Irmãos Andrade, nos termos do art. 47 do Decreto-Lei 2.238, de 28 de maio de 1940; mas, acatando o despacho presiden-cial, concordou em instaurar o concurso de credores. Neste processo, podem

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Ministro Hahnemann Guimarães

os credores fazer impugnações em defesa dos seus direitos (Decreto-Lei 2.238, art. 48), e há ensejo para que se verifique se os devedores se encontram no es-tado econômico que justifique a extinção compulsória das dívidas (Decreto-Lei 2.238, art. 57).

Se a câmara de Reajustamento admitiu a seu conhecimento o pedido dos devedores, embora já houvesse decidido em dois acórdãos diversamente, não há como aceitar-se que o direito dos requerentes de obter o pagamento em ação execu-tiva seja líquido e certo, ou que tal direito haja sido violado por um ato ilegal, pois a instância competente ainda não decidiu se o passivo dos devedores é reajustável.

A legalidade do exame a que, no concurso de credores, procederá a câmara de Reajustamento foi conhecida pelo Juiz da ação executiva, que decre-tou a suspensão da instância, achando que havia cabimento para o disposto no art. 61, parágrafo único, do Decreto-Lei 2.238. Os requerentes impugnaram em apelação o decreto judicial.

O Tribunal de Justiça de São Paulo já foi solicitado a julgar a controvérsia suscitada de novo pelo requerimento de mandado de segurança. O julgamento a respeito da suspensão do litígio implica o exame da validade do processo concursual e do despacho observado pela câmara de Reajustamento. é inad-missível a duplicação de processos simultâneos relativos à mesma controvérsia. coincidem os pedidos de impugnação e da tutela especial; fundam-se ambos em que a instância judiciária foi sustada em conseqüência de ato da autoridade pública dado como ilegal; visam ambos ao mesmo fim, que é o prosseguimento da ação executiva e o encerramento do concurso de credores instituído pela câmara de Reajustamento. Os processos simultâneos de apelação e do pedido do mandado de segurança não se podem cumular, pela identidade das partes, visto como a sentença que se proferisse no processo especial atingiria os réus da ação executiva, pela identidade de fundamentos e de finalidade.

Entendendo que, na espécie, o juízo de apelação exclui o processo desti-nado à concessão do mandado de segurança, indefiro o pedido.

MANDADO DE SEGURANÇA 767 — DF

RELATÓRIOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: O Sindicato dos Empregados em

Estabelecimentos Bancários do Rio de Janeiro requer mandado para que seja as-segurado à sua Diretoria o direito de administrar livremente o patrimônio social e de exercer todas as demais atribuições legais.

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Memória Jurisprudencial

Esse direito, garantido pelo art. 159 da constituição, estaria sendo vio-lado por ato do Sr. Ministro do Trabalho, Indústria e comércio, que, após a pro-mulgação da constituição, mantém a intervenção na administração do sindicato requerente e, assim, obsta, “com graves riscos e prejuízos do requerente e de seus associados, a que a sua Diretoria, eleita e empossada, e, agora, com man-dato ratificado em assembléia geral extraordinária, na conformidade dos seus Estatutos, se desincumba das suas atribuições legais”.

A Diretoria, reconhecida pelo Sr. Ministro do Trabalho, empossou-se em 25 de junho de 1945 e exerceu regularmente o mandato até 20 de maio de 1946. Valendo-se da faculdade conferida pelo art. 528 da consolidação das Leis do Trabalho, e “sob o infundado pretexto de haver a Diretoria do Sindicato impe-trante infringindo as normas dos arts. 521, a, e 525 daquele mesmo código de Trabalho”, determinou o Sr. Ministro, em ato que o Diário Oficial deu à publici-dade em 22 de maio de 1946, a intervenção. A Diretoria transmitiu o patrimônio, sob protesto e com a ausência do Presidente, aos interventores, que efetuaram “pura e simples ocupação, à qual não faltou sequer o requinte do aparato policial”.

Em portaria publicada pelo Diário Oficial de 12 de junho de 1946, o Sr. Ministro concedeu exoneração dos três primeiros interventores, nomeando, no mesmo ato, funcionários do Departamento Nacional do Trabalho para com-porem a Junta Governativa.

Apesar do que dispõem a consolidação das Leis do Trabalho, no art. 554, e a constituição, no art. 159, a intervenção foi mantida.

Amparados pelos arts. 159 e 141, § 12, da constituição, e na forma dos estatutos (arts. 27, 28 e 30), associados do sindicado requereram à Junta Governativa, em 3 de outubro de 1946, a convocação de assembléia geral ex-traordinária. Esgotado o prazo de 5 dias, fixado nos estatutos, os mesmos asso-ciados, com audiência do Departamento Nacional do Trabalho e nos termos do art. 30, § 2º, dos estatutos, convocaram a assembléia geral extraordinária, que se realizou na forma dos arts. 27 e 31 dos estatutos, com a presença de 801 asso-ciados em pleno gozo de seus direitos. Por unanimidade de votos, a assembléia deliberou “ratificar o mandato da Diretoria arbitrariamente afastada por força da citada intervenção ministerial, e considerar ilegal em face do aludido art. 159 da constituição, essa mesma intervenção”.

O requerimento do mandado entrou na Secretaria em 23 de outubro de 1946.Juntaram-se aos autos, em 18 de novembro, as informações do Sr. Ministro

do Trabalho, que esclareceu não haver ainda exarado despacho definitivo no processo de intervenção, o qual se encontrava na Divisão de Organização e Assistência Social, aguardando a apresentação da defesa dos interessados, que para tal fim já haviam sido notificados (fl. 20).

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Ministro Hahnemann Guimarães

consistem as informações coligidas pelo Departamento Nacional do Trabalho no parecer do Diretor da Doas (fls. 40 a 45) e na cópia autenticada do relatório da Junta Governativa (fls. 83 a 98), calcado, por sua vez, nos relatórios dos contabilistas (fls. 47 a 72) e dos procuradores do sindicato (fls. 73 a 82).

O Ministério do Trabalho põe em dúvida a legitimação processual de Antônio Luciano Bacelar couto, para, como Presidente, representar o sindicato, desde que a intervenção o afastou do exercício do mandato.

A intervenção foi perfeitamente legal, em virtude dos arts. 521 e 525 da consolidação das Leis do Trabalho, pois que era tulmutuária a situação da enti-dade sindical, “o que cada dia mais se acentuava pela intromissão de elementos estranhos ao quadro social, em suas deliberações, com a propaganda de dou-trinas incompatíveis com as instituições e os interesses da Nação, redundando, mesmo, em atos de desvirtuação da aplicação de suas rendas patrimoniais em fins outros que não os estabelecidos na lei e nos estatutos”. A ação do Estado obedeceu, assim, à disposição do art. 528 da consolidação.

Esta disposição evidencia que a Junta Governativa não tinha de proceder à nova eleição, nos termos do art. 554 citado, que se refere à destituição de diretores.

O preceito do art. 159 da constituição não veda a intervenção fundado no art. 528 da consolidação.

O Sr. Procurador-Geral da República, depois de observar que “a liber-dade sindical não é absoluta”, acrescenta, para afirmar a legalidade do ato censurado pelo requerente: “Não seria possível também, com a transformação do regime político, substituir de plano toda a organização sindical antiga, sem obedecer a normas legislativas que devem regulamentar o texto constitucional” (fls. 102 e 103).

Haviam sido os autos apresentados em mesa para julgamento, quando o Sr. Ministro do Trabalho me comunicou haver determinado que cessasse a in-tervenção, elegendo-se nova Diretoria.

VOTO(Preliminar)

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Senhor Presidente, sugeriria ao exame do Tribunal preliminar que talvez prejudicasse aquela que acaba de ser suscitada pelo eminente Sr. Ministro Ribeiro da costa. A prelimi-nar que ora levanto se refere à possibilidade de se discutir a constitucionalidade da lei em processo de mandado de segurança.

Este Tribunal, no MS 768, parece ter aceito a tese de que, nesse processo especial, não há como discutir a constitucionalidade da lei, sob a qual foi prati-cado o ato contra o qual se impetra a medida.

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Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: O que alegam os impetrantes é a in-tervenção nos sindicatos, não é a lei em tese. O Tribunal não vai discutir a lei em tese, mas o ato administrativo concreto. Através do ato é que se discute a constitucionalidade, o que é não só possível, como até indispensável. No caso de Minas, não havia ato concreto; discutia-se a constitucionalidade da lei, em tese.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Se bem me recordo, no pro-cesso de mandado de segurança requerido a propósito das leis do inquilinato, o Tribunal aceitou a tese de que não se discutia a constitucionalidade da lei nesse processo especial.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Nesse caso, não havia ato. Os impe-trantes do mandado desejavam que o Tribunal apreciasse, em tese, a constitu-cionalidade das leis do inquilinato. O caso dos autos é diferente: impetra-se o mandado contra ato do Ministro do Trabalho.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Esse ato baseou-se, po-rém, na consolidação das Leis do Trabalho. Discute-se, pois, a constituciona-lidade dessa lei, o que, me parece, não é possível ser feito no processo especial do mandado de segurança.

O Sr. Ministro castro Nunes: No presente caso, argúi-se inconstituciona-lidade de ato praticado pelo Ministro do Trabalho. No caso anterior, tratava-se da lei do inquilinato, que rege atos de direito civil.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Parece-me que se deve, pelo menos, ouvir o Dr. Procurador-Geral.

EXPLIcAÇÃOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Senhor Presidente, as

minhas deficiências não permitem, muita vez, que me torne claro, na exposição que faço das idéias que defendo.

O Sr. Ministro Ribeiro da costa: Não apoiado.O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Pelo contrário, V. Exa. é sempre lumi-

nosamente claro.O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): O que sustentei foi que

o mandado de segurança não pode ser concedido, desde que o ato impugnado se baseia em lei. A esse respeito, parece ilustrativa a mudança de linguagem operada da constituição de 1934 para a constituição de 1946. Na primeira, admitia-se o mandado de segurança contra a inconstitucionalidade ou contra a ilegalidade do ato. Na constituição de 1946, foi, em meu parecer, proposital-mente, excluída a expressão “inconstitucionalidade”, como que para significar

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Ministro Hahnemann Guimarães

que o legislador só admitiria, daí por diante, o mandado de segurança contra o ato ilegal. Desde que a autoridade pública pudesse invocar em seu prol, em favor do ato por ela praticado, disposição legal, excluído estava o ingresso para o pro-cesso do mandado de segurança. Foi o que eu quis afirmar. Desde que somente se admite o mandado de segurança contra ato ilegal ou abusivo, pareceu-me, por esta convicção, que era inviável, no processo de mandado de segurança, a controvérsia em torno da constitucionalidade da lei em que se fundasse o ato impugnado, pois que este era legal.

Era o que queria dizer e parece que as minhas deficiências me tolheram o caminho, não me permitindo ser claro.

Mantenho a rejeição da indicação do Ministro Ribeiro da costa, para in-sistir na preliminar de não ser possível, em mandado de segurança, a apreciação da inconstitucionalidade.

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): O pedido não ficou pre-

judicado em virtude da providência que o Sr. Ministro do Trabalho acabou de tomar, porque o autor requer se assegure o exercício do direito de administrar o patrimônio social à Diretoria empossada em 25 de junho de 1945, e que teve seu mandato ratificado na referida assembléia geral extraordinária.

cabe, sem dúvida, ao requerente o poder de gestão processual, para fa-zer valer um mandato que diz haver sido violado pelo ato do Sr. Ministro do Trabalho.

Incrimina-se esse ato porque, destituídos os diretores, o delegado no-mea do pelo Ministro do Trabalho devia proceder, dentro do prazo de 90 dias, em assembléia geral por ele convocada e presidida, à eleição dos novos diretores (consolidação cit., art. 554).

Esta censura não pode, entretanto, ser aceita, porque não ocorreu a des-tituição prevista na lei (consolidação, art. 553, c). O caso foi de intervenção, determinada por circunstâncias que perturbaram o funcionamento do sindi-cato e destinada a normalizar esse funcionamento (consolidação, art. 528). consistiram essas circunstâncias, segundo o Ministério do Trabalho, na propa-ganda de doutrinas incompatíveis com as instituições e os interesses da Nação (consolidação, art. 521, que define as condições para o funcionamento do sin-dicato), e na intromissão de elementos estranhos ao quadro social nas delibera-ções do sindicato, o que é vedado pelo art. 525.

A intervenção não foi ilegal, nem abusiva, justificada, como ficou, pelos relatórios dos contabilistas e dos procuradores do sindicato.

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Memória Jurisprudencial

Pretende, entretanto, o requerente que essa intervenção ofenda a liber-dade de associação (constituição, art. 141, § 12), especialmente a liberdade de associação profissional ou sindical (constituição, art. 159).

é certo que a disposição do art. 528 da consolidação foi revogada pelo Decreto-Lei 8.740, de 19 de janeiro de 1946, art. 2º. Voltou, porém, a vigorar com o Decreto-Lei 8.987-A, de 15 de fevereiro daquele ano.

A constituição permite que a lei regule a forma de se constituírem as associações profissionais, de se fazerem representar nos contratos de trabalho coletivos e de exercerem funções delegas pelo poder público. A liberdade das associações profissionais será exercida conforme o regime adotado em lei.

O regime em vigor procurou tornar possível a coexistência de sindicatos que representem os interesses mais gerais da profissão e das associações profis-sionais que representem apenas uma concepção particular dos interesses pro- fissionais. Resultou daí a distinção entre o sindicato reconhecido como a asso-ciação profissional mais representativa (consolidação, arts. 515 e seguintes) e a associação meramente registrada (consolidação, art. 558). A liberdade daquele que tem maiores prerrogativas é mais restrita que a desta.

Afirma-se que, não sendo a profissão representada por sindicato único, tornar-se-ia impossível a defesa conveniente dos interesses profissionais. “Desde que cada grupo se fragmentasse em numerosos sindicatos”, observa o profes-sor Joaquim Pimenta, “quando muito, representariam estes os seus interesses, nunca, porém, os interesses integrais de toda a comunidade. cada sindicato, por sua vez, teria uma orientação ideológica à margem, se não divergente do modo como entenderia o Estado a solução de tal ou qual problema, cuja natu-reza, de ordem trabalhista, não deixaria de refletir-se sobre outros intrinseca-mente subordinados a conveniências de ordem pública” (Sociologia Jurídica do Trabalho, 2. ed., 1946, p. 189).

Não se pode acusar esse regime de infenso à constituição, que, a respeito da liberdade sindical, concedeu ao legislador poderes mais amplos que os dados pelas constituições de 1934 e de 1937, a primeira pelo zelo com que assegurou a pluralidade sindical (art. 120), e a segunda pelo realce que deu ao sindicato representativo da profissão (art. 138). A constituição de 1934 estabelecia que os sindicatos e as associações profissionais seriam reconhecidos segundo a lei, que garantiria a pluralidade e a completa autonomia dos sindicatos. A constituição de 1937 subordinou a liberdade sindical à necessidade de que o sindicato re-presentasse toda a categoria profissional, defendendo-a perante o Estado, es-tipulando contratos coletivos de trabalho, impondo contribuições e exercendo funções de poder público por delegação. A constituição de 1946 permite a adoção de qualquer dos dois sistemas, pois, ao mesmo tempo que assegura a

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Ministro Hahnemann Guimarães

liberdade sindical, comete ao legislador regular a forma de se constituírem os sindicatos, a representação outorgada a estes nas convenções coletivas de traba-lho e o exercício de funções que lhes delegar o poder público.

Dir-se-á, porém, que a discussão provocada na Assembléia constituinte sobre o art. 164, § 27, de projeto de 27 de maio de 1946 e o art. 158 do projeto en-tão examinado, mostra ser inadmissível a intervenção nos sindicatos, havendo ficado prejudicada pelo princípio de que é livre a organização sindical a emenda do Sr. Ferreira de Sousa, que, em casos excepcionais, admitia a intervenção (Diário da Assembléia de 1º de setembro de 1946, p. 4550 a 4552).

Os trabalhos preparatórios da lei não têm a autoridade de interpretação autêntica; são apenas um precedente histórico, menos valioso que o elemento sistemático.

No sistema constitucional é possível que o sindicato exerça funções dele-gadas pelo poder público. Em virtude desse preceito, a lei dá ao sindicato o privi-légio de perceber o imposto sindical; concede-lhe a situação de ser o sujeito ativo da obrigação tributária. Daí resulta a subordinação necessária do órgão sindical delegado ao poder público delegante. é inevitável a restrição da liberdade em conseqüência do privilégio adquirido com a delegação. Recebendo um mandato do poder público, exercendo soberania derivada, o sindicato aceita a subordinação ao poder público, que intervirá para assegurar o exercício normal da delegação.

Outra particularidade do sistema constitucional brasileiro é que pode a lei reservar o poder de celebrar convenções coletivas de trabalho ao sindicato. No regime legal vigente, a convenção coletiva envolve o exercício de poder, norma-tivo, que constitui, sem dúvida, espécie do poder público de regulamentação, e, por isso, a convenção coletiva há de ser homologada pelo Ministro do Trabalho, que pode estendê-la a todos os membros das respectivas categorias profissionais (consolidação das Leis do Trabalho, arts. 611, 612, 615 e 616). A convenção coletiva é um regulamento das condições do trabalho. compreende-se, deste modo, que a capacidade para celebrar essa convenção somente possa ser atri-buída ao sindicato que, recebendo do Estado o poder de regulamentação, aceita a intervenção do Estado. O sindicato é livre; aceitará, se quiser, a delegação. Aceitando-a, deve, porém, sujeitar-se ao regime da delegação. Nesse regime é que se funda legalmente o direito, atribuído privativamente ao sindicato reco-nhecido, de celebrar a convenção coletiva. Deve-se, aliás, recordar que vários países, como a Austrália, o chile, a Finlândia, a Holanda, a Nova Zelândia, reservam aos sindicatos reconhecidos somente o direito de concluir conven-ções coletivas (Les Conventions Collectives, publicação do Bureau Intern. du Travail, 1936, p. 84). Não se pode acusar de antidemocrático tal regime. Admitindo a constituição que a lei fixe a extensão do contrato coletivo, há de admitir que fique sujeito a um regime especial o sujeito desse contrato, quando

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Memória Jurisprudencial

houver o exercício de poder de regulamentação, exercício que envolve delega-ção de poder pertencente ao Estado.

Em meu julgamento, essas considerações, ligadas ao sistema constitu-cional adotado, pesam mais que os trabalhos preparatórios. Delas resulta para mim a convicção de que o regime sindical vigente não é repelido pelo art. 159 da constituição.

Nego, pois, o mandado requerido.

MANDADO DE SEGURANÇA 875 — SP

A liberdade de associação é garantida para fins lícitos, dos quais se desviam as organizações que usurpam e subvertem a ati-vidade das associações profissionais legalmente constituídas.

Os fins das organizações atingidas pelo Decreto 23.046, de 7 de maio de 1947, art. 1º, opunham-se ao regime sindical vigente.

Desviaram-se também de seu funcionamento normal os sin-dicatos que se filiaram a essas organizações ilegais, justificando-se as providências adotadas no Decreto 23.046 para que fossem restituídos à normalidade.

AcÓRDÃOVistos, relatados e discutidos estes autos número 875, de São Paulo,

em que o Sindicato dos Empregados em Empresas de Seguros Privados e capitalização do Estado de São Paulo e outros requerem mandado de segu-rança, acordam, por maioria de votos, os Ministros do Supremo Tribunal Federal negar o mandado requerido, em conformidade com as notas juntas.

Rio de Janeiro, 28 de maio de 1948 — José Linhares, Presidente — Hahnemann Guimarães, Relator.

RELATÓRIOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: O Sindicato dos Empregados

em Empresas de Seguros Privados e capitalização do Estado de São Paulo; o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Fiação e Tecelagem de São Paulo; o Sindicato dos Músicos Profissionais do Estado de São Paulo; o Sin di cato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários de São Paulo; o Sin di cato dos Tra-balhadores nas Indústrias Químicas e Farmacêuticas de São Paulo; o Sindicato

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Ministro Hahnemann Guimarães

dos Trabalhadores nas Indústrias de Artefatos de Borracha dos Municípios de São Paulo e Santo André; o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Gráficas de São Paulo; o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Me-cânicas e de Material Elétrico de Santo André; o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da construção civil e da cerâmica para construção de Santo André e o Sindicato dos Oficiais Marceneiros e Trabalhadores nas Indústrias de Móveis de Madeira, Junco e Vime e de Vassouras de São Bernardo, representados por seus Presidentes, pediram, em 4 de setembro de 1947, mandado de segurança contra ato manifestamento ilegal do Exmo. Senhor Presidente da República, que, invocando o art. 87, I, da constituição e o art. 6º do Decreto-Lei 9.085, de 25 de março de 1946, baixou o Decreto 23.046, de 7 de maio de 1947, determi-nando a substituição, por Juntas Governativas, nomeadas pelo Ministro do Tra-balho, Indústria e comércio, das Diretorias e conselhos Fiscais das entidades que se tenham filiado ou contribuído para a “confederação dos Trabalhadores do Brasil”, e “ Uniões Sindicais”, de que os requerentes são partes.

A substituição ordenada em portarias ministeriais, expedidas em cum-primento do Decreto 23.046, é ato de manifesta ilegalidade e abuso de poder, porque: a) a constituição assegura a liberdade de associação profissional ou sindical (art. 159); b) a lei ordinária, mesmo que não contrariasse o princípio constitucional, já dispõe expressamente sobre as penalidades aplicáveis às asso-ciações sindicais e a seus administradores (arts. 553 a 557 da consolidação das Leis do Trabalho). As disposições do Decreto-Lei 5.452, de 1º de maio de 1943, e do citado Decreto-Lei 9.085, em que se assina o ato impugnado, no que diz respeito às associações profissionais, colidem com o regime de livre associação para fins lícitos, assegurado no art. 141, § 12, da constituição.

A constituição de 1946 concedeu, no art. 159, a ansiada liberdade sindi-cal, praticamente anulada na carta Política de 1937, cujo art. 138 se inspirou na disposição III da Carta del Lavere fascista.

Pela constituição de 1946, é livre a associação profissional, que, assim, não pode ser limitada nas formas de sua constituição sindicalista, e de seu agru-pamento em uniões, federações e confederação, segundo as formas já consagra-das nos países de regime democrático, como o chile ou o México.

A par da ofensa ao disposto no art. 159 da constituição, o ato do Exmo. Senhor Presidente da República envolve abuso de poder, criando a pena de “substituição” de órgãos dirigentes sindicais, não prevista na Secção VIII do capítulo I do Título V do Decreto-Lei 5.452.

Foi, além disso, tirado às Diretorias requerentes o sagrado direito de de-fesa, garantido no art. 557, § 2º, da consolidação referida.

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Memória Jurisprudencial

Já decorreram, aliás, mais de 90 dias de administração das Juntas Gover-nativas, nomeadas em atos publicados em 21 e 28 de maio de 1947, sem que se tivesse sequer convocado a assembléia geral para a eleição, conforme o art. 554 da consolidação.

Salientam, afinal, os requerentes que a espécie se distingue da conside-rada no MS 767, relativo a ato ministerial, fundado no art. 528 da consolidação.

As informações que solicitei, em 10 de setembro de 1947 (fls. 23 e 24), foram recebidas em 22 daquele mês (fl. 28).

Assinalam, desde logo, nas informações, que os principais fundamentos do pedido são idênticos aos do MS 767.

O ato impugnado funda-se no art. 6º do Decreto-Lei 9.085; é perfeita-mente legal. A constituição garante a liberdade de associação para fins lícitos. O procedimento do Executivo, fundado em lei, e seguido da ação judicial contra a associação de fins ilícitos, não poderia ferir, nem de longe, o mandado consti-tucional do art. 141, § 12.

Filiando-se à chamada “confederação dos Trabalhadores do Brasil”, os re-querentes ficaram na situação ilegal dessa entidade, que simulava qualidade sindi-cal, para exercer funções usurpadas do órgão coordenador e diretor dos sindicatos.

O Governo não podia permitir que, à margem da organização legal das associações profissionais, se desenvolvessem falsos órgãos sindicais.

A filiação dos sindicatos dirigidos pelos requerentes constituiu a circuns-tância perturbadora, em virtude da qual se observou o preceito do art. 528 da consolidação.

Não se aplicam ao caso as disposições dos arts. 553, 554 e 557, b, da consolidação, notando-se, ad argumentum, que, se o Ministro podia desti-tuir diretores de sindicatos, essa destituição poderia ser ordenada pelo Senhor Presidente da República (fls. 29 a 41).

O Sr. Procurador-Geral da República entende que a longa e cabal infor-mação prestada pelo Senhor Presidente da República e o parecer do Dr. Oscar Saraiva, consultor jurídico do Ministério do Trabalho, evidenciam a improce-dência do pedido.

Salienta ainda o parecer do Ministério Público que o Supremo Tribunal Federal já fixou sua orientação no acórdão que denegou o mandado de segu-rança pedido pelo Sindicato dos Bancários, cumprindo acentuar, porém, que este era um sindicato legalmente constituído, ao passo que, na espécie, “se trata de associações que não chegaram a constituir-se completamente de conformi-dade com a lei, e é esse um motivos por que se consideram ilícitas suas ativida-des”. O art. 159 da constituição determina que as associações sindicais tenham

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Ministro Hahnemann Guimarães

regulada por lei a forma de sua constituição. Mesmo dentro do critério seguido pelos votos divergentes da maioria no julgamento do mandado requerido pelo Sindicato dos Bancários, não é possível amparar tais associações, quando foi violada a lei, “lei indubitavelmente constitucional, visto como a constituição ressalvou a competência do legislador ordinário para regular a forma de consti-tuição das associações sindicais”.

Espera, assim, o Sr. Procurador-Geral da República que o mandado de segurança requerido seja denegado (fls. 117 a 119).

VOTO(Preliminar)

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Senhor Presidente, acho oportuno submeter ao exame deste Tribunal uma preliminar. A matéria constitucional já foi decidida em caso anterior. A meu ver, a decisão tornou-se coisa julgada a este respeito, por força do que estabelece o art. 87 do Regimento, onde se diz:

Neste caso, a declaração da constitucionalidade, ou inconstitucionali-dade, da lei, da norma legal ou do ato em questão, constituirá decisão definitiva e de aplicação obrigatória, pelo próprio Tribunal e demais membros do Poder Judiciário, nos casos análogos.

A meu ver, a decisão proferida excedeu os limites do caso apreciado, da lide julgada. é um verdadeiro prejuízo para todas as causas semelhantes, julga-das posteriormente. é um prejulgado.

E, assim, parece-me, data venia, que é desnecessária a publicação do relatório.

Em todo caso, achei conveniente submeter ao exame deste Tribunal esta preliminar, sobre se acha necessária a publicação do relatório que acabei de ler, ou se é dispensável essa publicação, podendo-se entrar, desde logo, no exame do mérito, na apreciação da causa.

Manifesto-me pela dispensa da publicação.

VOTO(Preliminar)

O Sr. Ministro Ribeiro da costa: Senhor Presidente, acompanho o voto do eminente Ministro Relator, porquanto a questão da inconstitucionalidade do art. 599 da consolidação das Leis do Trabalho já foi, aqui, examinada, neste Tribunal. é certo que fiquei vencido, mas este Tribunal apreciou a questão da inconstitucionalidade deste dispositivo. Portanto, já é do seu conhecimento esta argüição de inconstitucionalidade sobre a mesma lei.

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Memória Jurisprudencial

Independentemente da publicação do relatório, que acaba de ser feito, o Tri-bunal, que já está esclarecido, poderá manifestar-se, no momento, se o quiser fazer.

é por esta razão que entendo deve ser dispensada a publicação do relató-rio, podendo o Tribunal deliberar sobre o mérito do pedido desde logo.

VOTO(Preliminar)

O Sr. Ministro Lafayette de Andrada: Senhor Presidente, o eminente Mi-nistro Relator citou o Regimento Interno deste Tribunal, em que S. Exa. se funda.

Estou de acordo com S. Exa.

VOTO(Preliminar)

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Senhor Presidente, divirjo do douto pronunciamento dos colegas. Entendo que o pressuposto desse pronunciamento levaria a uma conseqüência: a de não ser mais necessário suscitar a consti-tucionalidade do decreto em questão, já que se entende que há prejulgado a respeito. Se o Tribunal considerar que o caso está selado, para todos os casos análogos, não é só a publicação que é ociosa, mas o próprio julgamento, em face do prejulgado.

Ora, data venia, entendo que se trata de conclusão vitanda, por extre-mosa. A necessidade de renovação da jurisprudência, a faculdade que tem cada juiz de mudar de voto, conforme sua consciência, tudo isso inculca a necessi-dade de não se aplicar o dispositivo do Regimento, que dispôs ultra viris.

E, assim, data venia, meu voto é contrário ao do eminente Sr. Ministro Relator.

VOTO(Preliminar)

O Sr. Ministro castro Nunes: Senhor Presidente, dispenso a publicação, por uma questão de economia processual. Mas me reservo o direito de reexami-nar a questão da constitucionalidade.

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Pelo Decreto 23.046, de

7 de maio de 1947, foi declarado suspenso, pelo prazo de seis meses, nos termos dos arts. 2º e 6º do Decreto-Lei 9.085, de 25 de março de 1946, o funciona-mento da confederação dos Trabalhadores do Brasil, das Uniões Sindicais, das

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Ministro Hahnemann Guimarães

delegações destas e de quaisquer outras associações profissionais, não registra-das como sindicatos, que a elas se tenham filiado ou sejam das mesmas órgãos integrantes (art. 1º).

As entidades referidas contrariavam o regime sindical vigente, estabe-lecido na consolidação das Leis do Trabalho (arts. 511 a 521, 533 a 539), que atribui ao Presidente da República o poder de ordenar a instituição de fede-rações e confederações, julgadas convenientes aos interesses da organização sindical, como se deu com o reconhecimento da confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (Decreto 21.978, de 25 de outubro de 1946).

A esse regime são estranhas as uniões sindicais.Além de não poder exercer funções sindicais, a confederação dos Tra ba-

lha dores do Brasil desenvolvia ação política, incompatível com os fins da sindi-calização, perturbando a atividade própria dos sindicatos.

A liberdade de associação é garantida para fins lícitos (constituição, art. 141, § 12), dos quais se desviam as organizações que usurpam e subvertem a atividade de associações profissionais legalmente constituídas.

O Supremo Tribunal Federal já decidiu, em 9 de julho de 1947, no julga-mento do MS 767, que o regime sindical vigente não é contrário ao art. 159 da constituição.

Os fins das organizações atingidas pelo Decreto 23.046, art. 1º, opu-nham-se a esse regime sindical; eram, pois, ilícitos.

Desviaram-se também de seu funcionamento normal os sindicatos que se filiaram a essas organizações ilegais.

Pelo art. 528 da consolidação das Leis do Trabalho, o Ministro do Trabalho podia intervir nos sindicatos para restituí-los à normalidade.

Podia, com maior razão, o Decreto 23.046, no art. 2º, substituir as Diretorias e os conselhos Fiscais responsáveis pela deturpação da atividade sin-dical, incumbindo a administração a Juntas Governativas, constituídas de três membros do sindicato, até as eleições sindicais, segundo o disposto no Decreto-Lei 9.675, de 29 de agosto de 1946.

O ato do Presidente da República não é, pois, contrário à lei. Nego, assim, o mandado pedido.

VOTOO Sr. Ministro Ribeiro da costa: Senhor Presidente, em casos semelhan-

tes ao presente, submetidos à apreciação desta corte, tive oportunidade de emi-tir modesta opinião no sentido de que, com o advento da constituição de 1946 e

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Memória Jurisprudencial

à vista da preceituação do seu art. 159, estavam automaticamente revogadas as disposições da consolidação das Leis do Trabalho que, a meu ver, data venia, contrariam o conteúdo daquele dispositivo, admitindo que os órgãos adminis-trativos do Ministério do Trabalho intervenham, por seus delegados, junto às organizações sindicais, substituindo as Diretorias legítimas e, portanto, impe-dindo que as entidades sindicais gozem do direito que a constituição garante, quando diz: “é livre associação profissional ou sindical.”

E a constituição, nestes termos, só admite a seguinte exceção: “Será regulada por lei a forma da sua constituição.” A lei pode regular a forma por que devem se constituir os sindicatos, a sua representação legal nas convenções coletivas do trabalho e o exercício de funções delegadas pelo poder público. A meu ver, salvo estas três hipóteses, a constituição atual não contempla a de autorizar o Ministério do Trabalho a intervir na vida associativa dos sindicatos, substituindo as Diretorias legitimamente eleitas por outros órgãos delegados, por interventores.

Esta é a situação que se desenha na espécie e, a meu ver, neste come-timento, há uma ilegalidade patente, irrefutável, evidente, impedindo que as associações sindicais gozem, como acentuei antes, da liberdade nas suas deli-berações internas.

A suposição de que estas associações estão transgredindo os preceitos constitucionais e as disposições da legislação do trabalho, no sentido de trans-formar a atividade sindical em atividade política prejudicial ao regime, a meu ver, deve constituir um outro campo de cogitações. O Poder Executivo tem elementos para impedir, se acaso isto é real, que os sindicatos subvertam a sua finalidade, praticando uma atividade política, não permitida pela constituição, vedada pelo art. 141 da constituição, em seu § 21. A ação é antes policial que administrativa propriamente dita.

E neste caso não se daria como legítima a intervenção do Ministério do Trabalho, fazendo substituições dos órgãos dirigentes desses sindicatos. é con-tra isso que o meu voto se insurge e com estas considerações, data venia do eminente Ministro Relator, concedo o mandado, conforme o pedido.

VOTOO Sr. Ministro Lafayette de Andrada: Senhor Presidente, se me não

engano, é esta a quarta vez que o Tribunal aprecia matéria idêntica. Das três vezes anteriores, numa delas, tendo sido Relator, deneguei o mandado pelos mesmos fundamentos do voto do eminente Ministro Hahnemann Guimarães, que acompanho.

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Ministro Hahnemann Guimarães

VOTOO Sr. Ministro Edgard costa: Presidente, acompanho o voto do emi-

nente Ministro Relator, de acordo com os meus votos já proferidos em casos anteriores.

VOTOO Sr. Ministro Goulart de Oliveira: Senhor Presidente, também nos

termos em que me tenho manifestado em casos anteriores, acompanho o Sr. Ministro Relator.

VOTOO Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Senhor Presidente, nos casos anterio-

res, a que se referem os eminentes colegas, meu voto se aliançou ao do eminente Sr. Ministro Ribeiro da costa, para entender que a liberdade proclamada para os sindicatos no art. 159 da constituição não podia conhecer os limites a que aludem os autos. Os sós casos previstos pelo dispositivo constitucional não po-dem ser ampliados, sem quebra do princípio.

Assim, coerente com esses pronunciamentos anteriores, no caso dos au-tos também, data venia, concedo o mandado.

VOTOO Sr. Ministro castro Nunes: Senhor Presidente, acompanho o voto do

Exmo. Sr. Ministro Relator, na conformidade de votos anteriores.

VOTOO Sr. Ministro Annibal Freire: Senhor Presidente, voto também de a cor-

do com o Exmo Sr. Ministro Relator.

VOTOO Sr. Ministro Barros Barreto: Senhor Presidente, acompanho o voto do

Exmo. Sr. Ministro Relator, coerente com os meus votos anteriores em casos idênticos, de um dos quais fui Relator.

VOTOO Sr. Ministro Laudo de camargo: concedo o mandado nos termos dos

meus votos anteriores.

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Memória Jurisprudencial

DEcISÃOcomo consta na ata, a decisão foi a seguinte: Rejeitada a preliminar

de pronunciamento sobre a constitucionalidade da lei em face da decisão do Tribunal, em caso análogo, contra o voto do Ministro Orozimbo Nonato, ne-garam o mandado, contra os votos dos Ministros Ribeiro da costa, Orozimbo Nonato e Laudo de camargo.

MANDADO DE SEGURANÇA 900 — DF

Pode ser argüida em requerimento de mandado de segu-rança a inconstitucionalidade da lei em que se baseou a autori-dade para praticar o ato impugnado.

A decisão pela qual o Tribunal Superior Eleitoral cumpriu o disposto no art. 2º, parágrafo único, da Lei 211, de 7 de janeiro de 1948, não podia tornar inatacável o ato da Mesa da Câmara dos Depu tados, que declarou extintos, pela cassação do registro do partido respectivo, os mandatos dos requerentes.

A Constituição vigente adotou a concepção de que democra-cia é Estado de partidos. Decorre desse regime que, se for cassado o registo de partido contrário ao sistema democrático, há de ficar, necessariamente, extinto o mandato conferido ao candidato re-gistado por esse partido.

São constitucionais as disposições dos arts. 1º, e, e 2º da Lei 211.

RELATÓRIOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Abílio Fernandes, Agostinho

Dias de Oliveira, Alcedo coutinho. carlos Marighela, Gervásio de Azevedo, Gregório Lourenço Bezerra, José Maria crispim e Maurício Grabois requerem ao Supremo Tribunal Federal mandado de segurança contra ato ilegal da Mesa da câmara dos Depu tados.

A Mesa da câmara dos Depu tados declarou, em 10 de janeiro de 1948, contra o voto, apenas, do Sr. Depu tado Pedro Pomar, extintos os mandatos dos depu tados e suplentes eleitos sob a legenda do Partido comunista do Brasil, em face do disposto no art. 2º da Lei 211, de 7 de janeiro de 1948, e em vista do Ofício P.R.-O-38, de 9 de janeiro de 1948, pelo qual o Tribunal Superior

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Ministro Hahnemann Guimarães

Eleitoral, nos termos do citado art. 2º, parágrafo único, comunicou haver cas-sado, em resolução de 7 de maio de 1947, o registro do mencionado partido.

A inconstitucionalidade desse ato resulta da inconstitucionalidade da Lei 211, e o exame desse defeito cabe ao processo do presente mandado, segundo o art. 85 do Regimento Interno do Tribunal e a doutrina sintetizada no aresto lapidar, inserto na Revista Forense, 113, p. 402.

A lei subverte o regime representativo democrático, definido no art. 1º da constituição, que diz: “Todo poder emana do povo e em seu nome será exer-cido.” A lei retira do povo a qualidade de mandante, transferindo-a a partidos políticos, quando inscreve, entre as formas de extinção do mandato, a cassação do registro do respectivo partido, que incide no § 13 do art. 141 da constituição. O parlamentar, em virtude da eleição, passa a ser representante do povo, como se vê ainda na própria constituição, em seu preâmbulo e no art. 56.

A constituição dispõe, no art. 48, sobre os casos de perda de mandato parlamentar. Essa disposição, por ser constitucional, prescinde de interpreta-ções ampliativas e não permite as novas hipóteses de perda do mandato, esta-belecidas na Lei 211.

Esta lei antecipou o fim dos atuais mandatos parlamentares, ofendendo o art. 2º, § 1º, do Ato das Disposições constitucionais Transitórias.

No art. 38, parágrafo único, a constituição não exige do candidato a filiação partidária. Logo, não se pode atribuir ao parlamentar a qualidade de representante do partido.

Outro dispositivo constitucional transgredido pela Lei 211 é o que lhe ga-rante a intangibilidade do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada (art. 141, § 3º). Eleitos e diplomados, os requerentes se tornaram titula-res de um direito irrevogável. A lei incriminada prejudicou a proclamação da Justiça Eleitoral, atingindo a coisa julgada.

A Lei 211, de iniciativa do Senado e sancionada pelo Presidente da República, interferiu indevidamente na organização da câmara dos Depu tados, o que contraria sua independência, fundada nos arts. 37 a 40 da constituição.

Atenta a Lei 211 contra a autonomia dos Estados e a inviolabilidade do mandato parlamentar, e esse atentado nem por emenda constitucional seria ad-missível, conforme o art. 217, § 6º, da constituição.

A pena aplicada ao Partido comunista do Brasil não podia transferir-se às pessoas dos requerentes, de acordo com o art. 141, § 30, da constituição.

Dispôs ainda a Lei 211 sobre a composição das Assembléias Legislativas estaduais, ao estabelecer modos de extinção de mandatos de representantes seus. Houve, pois, evidente desobediência ao princípio da autonomia estadual consubstanciado no art. 18 e mantido pelo art. 7º da constituição.

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Memória Jurisprudencial

O art. 134 da constituição não justifica a tese de que a representação no congresso Nacional é partidária, pois contém apenas uma regra de direito elei-toral, incorporada à constituição.

Em resumo, “os impetrantes, representantes do Povo soberano, não po-diam ter seus mandatos cassados por ato fundado em lei ordinária e inconstitu-cional, e, conseguintemente, têm e guardam direito líquido e certo à reparação aqui postulada”.

Pedem, em conseqüência, o mandado para que sejam reintegrados na ple-nitude de seus direitos, a fim de que possam desempenhar os mandatos para que foram eleitos com todos os consectários de direito, inclusive as imunidades pes-soais, os subsídios, já incorporados a seu patrimônio, e todas as prerrogativas que “a constituição e demais leis lhes garantem”. Protocolada em 30 de janeiro de 1948, essa petição foi-me distribuída em 4 de fevereiro seguinte (fl. 48).

As informações solicitadas em 2 de abril de 1948 (fl. 49) foram, em 13 do mesmo mês, prestadas pela Mesa da câmara dos Depu tados (fls. 51 a 59).

Alega essa autoridade, preliminarmente, que a inconstitucionalidade do ato, como decorrência de inconstitucionalidade da lei, parece escapar ao âmbito do mandado de segurança, como se evidencia pela comparação do art. 113, 33, da constituição de 1934 e do art. 144, § 24, da constituição vigente.

A Lei 211 teve origem regular democrática, afirma, quanto ao mérito, a Mesa citada. O projeto foi discutido exaustivamente, como demonstram os votos e pareceres proferidos na comissão de constituição e Justiça da câmara dos Depu tados. O ato censurado deu cumprimento à lei, mandada aplicar pelo Tribunal Superior Eleitoral. O direito dos requerentes não estaria, pois, líquido, provado de plano, eis que essa prova seria decorrência de manifesta inconstitu-cionalidade da lei. Esta foi, no entanto, elaborada pelos próprios constituintes de 1946, e sua validade obteve o reconhecimento da Justiça Eleitoral.

As informações vieram instruídas com a cópia do citado ofício do Tribunal Superior Eleitoral, de 9 de janeiro de 1948 (fl. 60), e com o número 224 do Diário do Congresso Nacional, de 7 de dezembro de 1947, relativo ao projeto número 900-A, de 1947, de que resultou a Lei 211 (fl. 61).

O Sr. Procurador-Geral da República opina pela denegação do mandado, em face dos fundamentos do ofício de fl. 51 e dos contidos no parecer e infor-mação constantes de folheto anexo (fl. 119).

Este folheto contém o memorial de quarenta páginas, oferecido sobre o MS 896, requerido ao Supremo Tribunal Federal por Luís carlos Prestes.

Entende o Sr. Procurador-Geral, preliminarmente, que o mandado pe-dido não tem cabimento, porque o ato censurado obedeceu à decisão da Justiça

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Ministro Hahnemann Guimarães

Eleitoral, que declara constitucional a Lei 211. Esta decisão é, porém, irrecor-rível, pelo art. 120 da constituição. O Supremo Tribunal Federal não pode co-nhecer do pedido cujo acolhimento importaria reforma de julgado do Tribunal Superior Eleitoral, julgado de que não houve recurso e que era irrecorrível.

Quanto ao mérito, observa o Sr. Procurador-Geral que, pelos arts. 134, 40, parágrafo único, e 53, parágrafo único, da constituição e pelos § 2º e § 3º do art. 11 do Ato das Disposições constitucionais Transitórias, os depu tados e senadores são representantes do povo, mas do povo estruturado em partidos. Pelo próprio sistema constitucional, há solidariedade entre os partidos e seus representantes no Parlamento. Os depu tados e senadores representam o povo, mas também representam os partidos, ou seja, o povo organizado em partidos.

A vinculação a um partido é condição de elegibilidade. A lei, sob a qual os requerentes foram eleitos em 2 de dezembro de 1945, estabelecia essa con-dição, que não é incompatível com a constituição. Por decisão judicial passada em julgado, o registro do Partido comunista foi cancelado, e, assim, os repre-sentantes desse partido perderam uma condição de elegibilidade expressamente fixada na lei: a vinculação a um partido legal. A doutrina reconhece que a inca-pacidade para o mandato pode sobrevir no curso dele, e essa incapacidade não se reduz aos casos expressamente enumerados na constituição.

A Lei 211 não é retroativa, mas de efeito imediato. Acresce que as leis de direito público, as leis políticas, não estão sujeitas ao princípio da irretroativi-dade. Não há direito adquirido contra a ordem pública e, assim, as leis de ordem pública, que parecem retroagir, têm apenas eficiência imediata.

O memorial reproduz, desde a p. 25 (fl. 132), as informações prestadas pelo Senhor Presidente do Senado Federal.

DEcISÃOcomo consta da ata, a decisão foi a seguinte: Feito o relatório proce-

der-se-á ao julgamento na próxima sessão ordinária, de 18 do corrente.Deixaram de comparecer, por se acharem em gozo de licença, os Mi nis-

tros castro Nunes, Orozimbo Nonato e Goulart de Oliveira, substituídos pelos Mi nis tros Armando Prado, Abner de Vasconcelos e Macedo Ludolf e, por mo-tivo justificado, o Ministro Edgard costa.

VOTO(Primeira preliminar)

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Ao contrário dos reque-rentes, entendo que o argüido defeito da Lei 211, de 7 de janeiro de 1948, não

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Memória Jurisprudencial

pode ser examinado no processo sumaríssimo do mandado de segurança, pelo qual se protege direito líquido e certo contra a ilegalidade ou o abuso do poder, praticado por qualquer autoridade. Parece-me, assim, procedente a exceção oposta pela Mesa da câmara dos Depu tados.

No julgamento do MS 768, em 4 de dezembro de 1946 (Revista Forense, 112, p. 407), pretendi sustentar que era esclarecedor o paralelo entre o art. 113, 33, da constituição de 1934 e o § 24 do art. 141 da constituição vigente. Naquela disposição era permitido alegar-se direito certo e incontestável contra um ato da autoridade que se fundasse em lei, se esta fosse evidentemente inconstitucional. Daí resultou que a Lei 191, de 16 de janeiro de 1936, no art. 5º, I, b, considerava, entre os atos que se poderiam combater pelo mandado de segurança, os de patente inconstitucionalidade, cometidos pelas autoridades legislativas. A constituição de 1946 não repetiu, porém, a menção do “ato manifestamente inconstitucional”.

castro Nunes não aceita esse argumento (Do mandado de segurança, 2. ed., 1948, p. 161, nota 1), objetando que “a omissão é conseqüente a ter-se adotado para o mandado de segurança a mesma formulação referente ao habeas corpus (§ 23 e § 24, art. 141), não sendo de admitir que a argüição de incons-titucionalidade possa ser levantada em habeas corpus, como em qualquer via processual, com a exceção única do mandado de segurança, cujo âmbito estaria limitado em detrimento dessa garantia”.

A ordem de habeas corpus ampara, entretanto, a liberdade de locomo-ção, e este direito pode ser ferido por uma lei inconstitucional. O mandado de segurança protege outros direitos subjetivos, certos e manifestos. Estes requi-sitos da determinação e evidência não podem existir, se o ato da autoridade é legal. A existência de uma lei formalmente válida, observada pela autoridade, é incompatível com um direito oposto a suas disposições, que se possa considerar manifesto e determinado. A constituição de 1934 somente tolerava que se dis-cutisse, em mandado de segurança, o defeito de constitucionalidade manifesto. A constituição de 1946 parece ter vedado o exame desse defeito, porque, sendo legal o ato, não pode haver ofensa de qualquer direito líquido e certo.

O ato da Mesa da câmara baseou-se nas disposições do art. 1º, e, e do art. 2º da Lei 211, depois que o Tribunal Superior Eleitoral cumpriu o preceito do parágrafo único do citado art. 2º. Foi, assim, ato de manifesta legalidade. Ainda que se admita a controvérsia a respeito da constitucionalidade da lei em ação para obter mandado de segurança, o defeito da Lei 211 não seria manifesto, como demonstra o conflito de opiniões travado na discussão do projeto, e re-produzido, entre outras publicações, no Diário do Congresso Nacional de 17 de dezembro de 1947, p. 8517 e seguintes.

Não deveria, pois, segundo me parece, admitir-se ao conhecimento o pedido, vis to que se reconhece a legalidade do ato praticado pela autoridade legislativa.

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Ministro Hahnemann Guimarães

VOTO(Primeira preliminar)

O Sr. Ministro cunha de Vasconcelos: Senhor Presidente, de acordo com próprio entendimento deste egrégio Tribunal, que acompanho ainda por convic-ção pessoal, desprezo a preliminar.

VOTO(Primeira preliminar)

O Sr. Ministro Sampaio costa: Senhor Presidente, em votos proferidos no Tribunal a que pertenço, tive oportunidade de manifestar-me a respeito dessa preliminar.

Em um deles assim concluí:

Ao instituir o instituto do mandado de segurança, a constituição de 1934 estabeleceu pressupostos para o seu uso e concessão, pressupostos esses que foram reiterados pela constituição vigente. Tais são eles: 1º, direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus; 2º, que esse direito tenha sido violado ou esteja ameaçado de violação por ato de autoridade.

Temos, assim, que, quando satisfeitos esses pressupostos, não há como deixar de acolher o pedido do writ para concedê-lo.

Finalidade específica do remédio é a de assegurar o restabelecimento pronto da integridade do direito evidente ferido por ato ilegal ou abusivo de au-toridade. Ato positivo, executório, ou negativo, ou omissivo.

Evidencia-se, assim, que contra a lei, em abstrato, não é possível o em-prego da medida heróica, dado que aquela não é propriamente um ato de auto-ridade, mas uma norma de caráter geral, emanada de um poder soberano. Já assim não acontece se o ataque à lei tem por fim a derrubada ou anulação de ato de autoridade com assento nela. é que, sendo o caso ilegítimo ou abusivo, mas, com assento em disposição de lei inconstitucional, para afastá-lo ou declará-lo insubsistente se torna necessário declarar a inconstitucionalidade da lei. A con-clusão, pois, a tirar-se e a acentuada em vários acórdãos deste egrégio Tribunal é de que, se não é possível, em mandado de segurança, atacar-se a norma, a lei, em tese, o é sempre através de ataque ao ato executório que nela se fundamenta.

O fundamento do pedido é ter havido um ato da Mesa da câmara dos Depu tados atentatório de direito líquido e certo dos impetrantes, e que esse ato é inconstitucional, porque deflui da execução de preceito legal contrário à Lei Maior. Logo, em se tratando de ato administrativo de autoridade, com assento em lei, para afastá-lo, se realmente incontestável é o direito dos impetrantes, indispensável se torna o exame da lei, em face da carta Fundamental.

Rejeito, pois, a primeira preliminar, com a devida vênia do eminente Sr. Ministro Relator. conheço do mandado.

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Memória Jurisprudencial

VOTO(Primeira preliminar)

O Sr. Ministro Macedo Ludolf: Em face da atual constituição, art. 141, § 24, a medida do mandado de segurança deve ser concedida para amparar di-reito líquido e certo, seja qual for a autoridade responsável pela ilegalidade ou abuso de poder.

O texto ora enunciado tem levado juristas eminentes a se inclinarem pela exegese de que não é possível, através da espécie sub judice, questionar-se a respeito da validade de uma lei, frente à letra constitucional.

Este egrégio Supremo Tribunal, porém, já se tem pronunciado pelo cabi-mento da argüição de inconstitucionalidade, visando, com isso, assegurar ple-namente a garantia contida no apontado inciso da nossa Lei Mater.

Tenho julgado nesse sentido, dando a devida e ampla interpretação à pa-lavra ilegalidade, a que alude o texto em tela, pois que, a não ser assim, ficaria quase sem finalidade específica o instituto do cogitado mandado de segurança, surgido para a proteção de todos os direitos, dês que revestidos dos requisitos de liquidez e certeza. A definição de tais direitos, em regra, emerge fundamental-mente do nosso Pacto Supremo, não raro ferido em seus dispositivos.

Assim, desprezo a preliminar.

VOTO(Primeira preliminar)

O Sr. Ministro Abner de Vasconcelos: Não dou pela preliminar levan-tada pela Mesa do Parlamento e acolhida pelo douto Ministro Relator. Desde que se argúi a inconstitucionalidade da lei em que se funda o ato que impediu o desempenho do mandato eleitoral conferido aos recorrentes, surge o motivo que habilita o mandado de segurança. Em tese, a lei ofensiva a direito pode ser atacada por via desse recurso. Este egrégio Tribunal aceita a legitimidade dessa medida assecuratória de direito, desde que haja um ato concreto que o ameace ou viole. E, no caso vertente, além da lei que autoriza a cassação do mandato e do julgado que a proclamou, ocorre a sanção recorrida, dando execução à perda do exercício parlamentar.

VOTO(Primeira preliminar)

O Sr. Ministro Armando Prado: Senhor Presidente, data venia do emi-nente Sr. Ministro Relator, rejeito a preliminar primeiro suscitada, de acordo com os eminentes Srs. Ministros que me precederam e cujos votos estão, a meu ver, perfeitamente fundamentados.

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Ministro Hahnemann Guimarães

VOTO(Primeira preliminar)

O Sr. Ministro Edgard costa: O mandado é requerido contra ato da Mesa da câmara fundado em lei que se argúi de inconstitucional. Não está, portanto, em causa a inconstitucionalidade, em tese, dessa lei, mas o ato expedido com base nela; quando o estivesse, então, sim, o mandado seria realmente incabível, porque a argüição de inconstitucionalidade em tese só é admissível nos termos e de acordo com o parágrafo único do art. 8º da constituição. Tem aplicação na espécie o que V. Exa., Senhor Presidente, em voto proferido, firmou, ao propósito, em síntese que o nosso eminente colega, Ministro Orozimbo Nonato, qualificou de lapidar, qualificativo que peço vênia para ratificar: “Não se pleiteia contra a lei. O que legitima o mandado é ser o ato da autoridade contrário à lei ou fundado em lei constitucional” (acórdão de 8-11-1935). Essa é a jurisprudência deste Tribunal. De acordo com ela, e com a vênia do Sr. Ministro Relator, rejeito a preliminar.

VOTO(Primeira preliminar)

O Sr. Ministro Annibal Freire: Senhor Presidente, a matéria já foi objeto de várias decisões deste Supremo Tribunal, tomadas com o meu voto. Assim, reiterando esses pronunciamentos, rejeito a preliminar ora considerada.

VOTO(Primeira preliminar)

O Sr. Ministro Barros Barreto: Senhor Presidente, já me pronunciei, desde o julgamento do MS 767, com o mesmo entendimento do Sr. Ministro Hahnemann Guimarães. Acolho, pois, a preliminar, de acordo com o voto de S. Exa.

VOTO(Primeira preliminar)

O Sr. Ministro José Linhares: Senhor Presidente, rejeito a preliminar.

VOTO(Segunda preliminar)

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Rejeito a exceção que opõe ao pedido a decisão do Tribunal Superior Eleitoral, declaratória da consti-tucionalidade da Lei 211.

Não se pode negar o vigor formal de coisa julgada às decisões do Tribunal Superior Eleitoral, nos termos estabelecidos pelo art. 120 da constituição. Essa eficácia fica, porém, limitada à questão decidida. Torna-se, pois, coisa julgada

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Memória Jurisprudencial

a conseqüência jurídica dada pela decisão a certos fatos. A interpretação que o juiz atribua à lei, o reconhecimento da validade desta, o fundamento jurídico, em suma, da sentença, não vincula o juiz em processo relativo a fatos diversos dos considerados em decisão anterior.

O órgão supremo da Justiça Eleitoral apenas resolveu cumprir o disposto no art. 2º, parágrafo único, da Lei 211. Esta resolução implica, sem dúvida, o reconhecimento da validade da lei. Não foi, entretanto, tal motivo da decisão que adquiriu a eficácia de coisa julgada. Ficou vedado apenas impugnar-se o cumprimento dado à lei, quanto à comunicação de que fora cassado o registro do partido. O Tribunal entendeu que, havendo revogado o registro de certo par-tido, devia levar esse fato ao conhecimento das Mesas dos corpos Legislativos, onde houvesse representantes filiados ao partido cujo funcionamento se proibiu.

Os fatos que se discutem no presente pedido são outros. Impugna-se o ato da Mesa da câmara dos Depu tados que declarou extintos, pela cassação do registro do partido respectivo, os mandatos dos requerentes. A questão im-plica também o exame da validade da lei, mas versa sobre fatos que somente ao Supremo Tribunal Federal caberia apreciar, pelo art. 101, I, i, da constituição. Não se pode, assim, acolher a exceção de coisa julgada oposta ao requerimento, pois a decisão do Tribunal Superior Eleitoral não podia tornar inatacável o ato posterior da Mesa da câmara, uma vez que se admitiu a possibilidade de ser atacada a validade da lei em mandado de segurança.

VOTO(Segunda preliminar)

O Sr. Ministro cunha de Vasconcelos: Senhor Presidente, pelo ofício do ilustre Ministro Presidente do egrégio Tribunal Superior Eleitoral à Mesa do Se-nado Federal, verifica-se que S. Exa. teve a cautela de transmitir, precisamente, a decisão que tomou o Tribunal Eleitoral, relativa ao parágrafo único do art. 2º da Lei 211. O ofício é expresso: “( … ) de conformidade com a decisão de hoje, deste Tribunal, no sentido da constitucionalidade desse preceito [a que já se referira, de início], dando cumprimento ao parágrafo único do art. 2º da Lei 211 ( … )”

Dir-se-á, e já o disse o nobre Relator, que, cumprindo o § 2º, estaria o Tribunal admitindo a constitucionalidade da lei. Entretanto, para efeito de orientação do meu pronunciamento, procurei conhecer, em seus termos exatos, o julgado do egrégio Tribunal Superior Eleitoral e pude verificar que quatro dos seus ilustres componentes tiveram o propósito de limitar a apreciação, rigorosa-mente, ao parágrafo único do art. 2º.

Não vejo, portanto, em que o egrégio Tribunal Superior Eleitoral tenha dado decisão sobre a constitucionalidade da lei.

Rejeito a segunda preliminar.

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Ministro Hahnemann Guimarães

VOTO(Segunda preliminar)

O Sr. Ministro Sampaio costa: Senhor Presidente, também rejeito a se-gunda preliminar.

VOTO(Segunda preliminar)

O Sr. Ministro Macedo Ludolf: Senhor Presidente, ataca-se um ato pura-mente administrativo, praticado pela Mesa da câmara dos Depu tados, ato que declarou extintos os mandatos dos depu tados comunistas. Vem isso por via do mandado de segurança, em que se pleiteia a anulação da medida, entendendo-se que aquele ato é inconstitucional. Nestas condições, cabe ao Supremo Tribunal examinar o assunto. O aspecto de “coisa julgada” pode, talvez, constituir maté-ria para mérito propriamente da questão, mas não para impedir que, preliminar-mente, se deixe de conhecer do pedido. De acordo com o eminente Sr. Ministro Relator, desprezo a preliminar.

VOTO(Segunda preliminar)

O Sr. Ministro Abner de Vasconcelos: Visa a segunda preliminar, suge-rida pelo eminente Dr. Procurador-Geral, prejudicar o conhecimento do recurso pela circunstância de ter sido o ato da Mesa inspirado pela decisão do egrégio Superior Tribunal Eleitoral. Assim, o que, na realidade, se ataca, é antes o jul-gado da Justiça Eleitoral do que um ato autônomo da Mesa Diretora da câmara ou do Senado.

Nada impede, a meu ver, para se tentar a invalidade de um ato de caráter administrativo, que se investigue a sua fundamentação legal, as causas que lhe deram origem.

O mandado de segurança vai, assim, à análise da Lei 211, de 1948, e da decisão eleitoral, que motivara a cassação do mandato dos recorrentes, para apreciá-las à luz das garantias constitucionais e das restrições criadas ao exercício dos direitos individuais. Assim sendo, desprezo também esta outra prejudicial.

VOTO(Segunda preliminar)

O Sr. Ministro Armando Prado: Senhor Presidente, de acordo com o emi-nente Sr. Ministro Relator, rejeito a segunda preliminar, relativa ao caso julgado.

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Memória Jurisprudencial

VOTO(Segunda preliminar)

O Sr. Ministro Edgard costa: A decisão do Tribunal Superior Eleitoral não me parece possa constituir-se em óbice a que este Tribunal conheça do mandado, por muito respeitável que seja, e o é, a manifestação dos votos dos ilustres juízes que o compõem. Sobre ter sido a constitucionalidade da lei reco-nhecida por aquele Tribunal como preliminar da execução do ato administrativo que lhe incumbia, por força de um seu dispositivo, de comunicar ao Legislativo o cancelamento do registro do partido, como condição para o cumprimento, pelo mesmo Legislativo, de outro dispositivo da mesma lei, não estando, assim, em causa a constitucionalidade do diploma legal a cuja execução se procedia, aquele entendimento, que não é propriamente um julgamento, não pode de modo algum subtrair a este Tribunal a competência que lhe é privativa de dizer a última palavra em matéria de tão transcendente relevância, qual a da incons-titucionalidade das leis.

A resolução do Tribunal Eleitoral não enseja, por outro lado, qualquer recurso: ato de simples expediente, não podendo ser atacado pelos requerentes, que não estavam, então, diretamente em causa, o seu conteúdo não se reveste da autoridade de coisa julgada impeditiva do exame por este Tribunal, da argüição, ora sujeita à sua apreciação, por via oblíqua, da constitucionalidade da lei, que serviu de base ao ato contra o qual pretendem segurar-se os impetrantes.

Rejeito também a preliminar, e conheço do mandado.

VOTO(Segunda preliminar)

O Sr. Ministro Annibal Freire: Senhor Presidente, constitui coisa julgada a decisão relativa ao fechamento do Partido comunista; as conseqüências jurí-dicas dessa decisão é que podem ser examinadas por este Tribunal.

Assim, também rejeito esta preliminar.

VOTO(Segunda preliminar)

O Sr. Ministro Barros Barreto: Senhor Presidente, não acolho a prelimi-nar de coisa julgada, de acordo com o Sr. Ministro Relator.

VOTO(Segunda preliminar)

O Sr. Ministro José Linhares: Senhor Presidente, rejeito a segunda preliminar.

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Ministro Hahnemann Guimarães

VOTO(Mérito)

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): conhecendo do pedido, tem o juiz de resolver a questão sobre se os membros do congresso Nacional são representantes do povo, independentes da filiação partidária, ou exercem essa representação, porque, elegendo-os, o povo lhes deu a incumbência de exe-cutar o programa do partido, que os registrou como seus candidatos.

A constituição vigente adotou a concepção de que democracia é um Estado de partidos. A vontade do povo não é vaga, imprecisa, mas se forma na livre competição entre grupos de interesses constituídos em partidos políticos. Democracia, nessa concepção, significa transação entre esses grupos opostos (KELSEN, Teoria General del Estado, trad. esp., 1934, p. 464).

A prova de que a constituição abandonou a teoria contraditória de que o congresso Nacional representa o povo, e seus membros exercem o mandato livremente, sem estarem vinculados à vontade de seus eleitores; a prova disso está nas seguintes disposições constitucionais: do art. 40, parágrafo único, pelo qual se reconhece que os partidos políticos participam do congresso, e, assim, lhes é assegurada, tanto quanto possível, representação proporcional na constituição das comissões; do art. 52 e do art. 60, § 4º, que conferem a substi-tuição do depu tado e do senador aos suplentes da representação partidária; do art. 119, onde, entre as atribuições da Justiça Eleitoral, se realçam a de conce-der registro aos partidos políticos, a de revogá-lo e a de conhecer de reclama-ções relativas a obrigações impostas por lei aos partidos políticos, quanto à sua contabilidade e à apuração da origem de seus recursos (I e VIII); do art. 134, que assegura a representação proporcional dos partidos políticos; e do art. 141, § 13, que enuncia claramente o princípio de que o regime democrático se baseia na pluralidade de partidos. A democracia adotada pela constituição de 1946 é, assim, um Estado de partidos.

Os defensores dessa política sustentam que ela evita, quer o inconve-niente do mandato livre, que reduz a vontade do povo a uma ficção, pois as de-liberações do Parlamento não dependem juridicamente daquela vontade: quer o do mandato imperativo, que anularia a Assembléia Legislativa. No Estado de partidos, os eleitores não designam um candidato incumbido de substituir sua vontade à deles; não votam em certo indivíduo; votam, principalmente, em uma política, em um programa, em um partido. Não é o povo, em sua totalidade, que elege a Assembléia representativa. O corpo eleitoral é formado por diversos grupos, que se distinguem pelas suas convicções políticas. Os mandatos cabem aos partidos em razão de sua forma numérica. Fazem-se, deste modo, repre-sentar no Parlamento, proporcionalmente a seu prestígio eleitoral, as diversas correntes da opinião pública.

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Memória Jurisprudencial

Afirma, com razão, Barbosa Lima Sobrinho (Questões de Direito Eleito-ral, 1949, p. 172) que a lei eleitoral de 28 de maio de 1945 representa o maior es-forço que já se fez no Brasil no sentido da formação e consolidação dos partidos políticos. A comissão que elaborou o anteprojeto do Decreto-Lei 7.586 admitia o registro de candidato avulso, mediante um requerimento assinado por duzentos eleitores, ponderando que “a arregimentação partidária não deve ser o resultado de imposição legal, mas o das preferências livremente manifestadas pelos eleito-res. Não compete à lei obrigar o eleitor a se filiar a partidos, mas estes é que devem conquistá-lo pelo seu programa e pela confiança que inspiram seus diretores”.

A lei de 1945, ao contrário, no art. 39, dispõe que somente poderiam con-correr às eleições candidatos registrados por partidos ou alianças de partidos. A constituição de 1946 acolheu, como demonstram as disposições acima refe-ridas, esse regime de representação partidária.

Decorre desse regime que, se for cassado o registro do partido contrário ao sistema democrático, há de ficar, necessariamente, extinto o mandato confe-rido ao candidato registrado por esse partido. O membro do corpo Legislativo representa o povo, mas o povo não é totalidade anônima; é, segundo pensam os propugnadores da representação proporcional à força numérica dos partidos, um conjunto de agrupamentos políticos ponderáveis, que se distinguem pelos seus programas. O parlamentar representa esses grupos, exercendo mandato que não é inteiramente livre, nem imperativo, mas está definido no programa do partido. considerado antidemocrático o programa, e, em conseqüência, proibido o funcionamento do partido, o membro da corporação legislativa, in-cumbido de realizar tal programa, perde o mandato, por meio do qual o partido exercia a atividade política prometida aos corpos eleitorais. A disposição do art. 1º, e, da Lei 211 está, pois, a rigor, compreendida no sistema constitucional. O mandato dos membros dos corpos Legislativos não pode deixar de se extin-guir pela cassação do registro do respectivo partido, quando incidir no § 13 do art. 141 da constituição.

Os dois parágrafos do art. 48 da constituição não abrangem todos os casos de perda do mandato. Neque leges neque senatus cosulta ita scribi possuntab omnes casus qui quandoque inciderint comprehendantur (D. 1.3.10). Mais do que qualquer outra lei, a constituição é um sistema de princípios, dos quais se podem deduzir regras, que, portanto, estavam compreendidas no sis-tema. O art. 1º da Lei 211 completou os preceitos constitucionais, dentro dos princípios adotados. Este método, pelo qual a lei se desenvolve e integra, é re-comendado pela própria constituição, no art. 144.

O art. 2º, § 1º, do Ato das Disposições constitucionais Transitórias, que fixou a duração dos mandatos, não impede que estes se extingam, antes da ter-minação do prazo, pelas condições resolutivas enumeradas no art. 1º da Lei 211.

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Ministro Hahnemann Guimarães

Não procede o argumento fundado no art. 38, parágrafo único, da cons-ti tui ção. Se o regime é representativo e proporcional; se é pelos partidos polí-ticos que o povo manifesta sua vontade; se eles é que participam dos corpos Legislativos, os membros do congresso Nacional não podem deixar de perten-cer aos partidos, que os registraram como candidatos, para poderem concorrer às eleições. A extinção do mandato, pela superveniência de um fato resolutivo, não pode ofender nenhum direito, pois é o próprio direito do representante que se extingue em conseqüência da extinção do partido representado.

A Lei 211, no art. 1º, apenas tornou explícitas normas compreendidas no sistema constitucional, e que, portanto, não podiam ofender direito cuja exis-tência podia cessar pela ocorrência dos fatos enumerados pelo mesmo art. 1º.

Não houve indébita interferência na organização da câmara dos Depu-tados com a Lei 211. Esta lei resultou do projeto número 900, de 1947, aprovado por 179 votos contra 74, em sessão da câmara dos Depu tados, de 7 de janeiro de 1948 (Diário do Congresso Nacional de 8 de janeiro de 1948, p. 280 a 281).

Foge inteiramente do assunto o argumento de que nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente. A extinção do mandato, pela cassação do registro do partido, é uma conseqüência necessária do sistema representativo adotado na constituição.

é também impertinente alegar-se que a Lei 211 ofende a autonomia esta-dual. Ao juiz cabe somente considerar a lei na parte relativa às conseqüências jurídicas, que as partes querem tirar de um fato concreto, real. No caso, apenas se admite a discussão a respeito da constitucionalidade das disposições em que a Mesa da câmara dos Depu tados se fundou, para declarar extintos os manda-tos dos requerentes.

Pelas razões expostas, julgo constitucionais as disposições legais aplica-das pela Mesa da câmara dos Depu tados (Lei 211, arts. 1º e 2º) e nego o man-dado requerido.

VOTO(Mérito)

O Sr. Ministro cunha de Vasconcelos: Na conformidade do art. 4º da Lei constitucional 9, de 28 de fevereiro de 1945, o Decreto-Lei 7.586, de 28 de maio do mesmo ano, regulou o processo eleitoral, deixando expresso a Lei constitucional 13, de 12 de novembro seguinte, que os poderes constituintes seriam ilimitados.

O citado Decreto-Lei 7.586, no art. 39, dispôs que “somente podem con-correr às eleições candidatos registrados por partidos, ou aliança de partidos”, partidos políticos nacionais (art. 109), registrados no Tribunal Superior Eleitoral (art. 110), revogado o Decreto-Lei 37, de 2 de dezembro de 1937 (art. 142).

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Memória Jurisprudencial

competente a União para legislar sobre direito eleitoral (constituição de 1946, art. 5º, inciso XV, letra a), assegurada ficou a representação proporcional dos partidos políticos nacionais, na forma estabelecida em lei (art. 134), repre-sentação aquela de que também já cogitava o Decreto-Lei 7.586 (art. 38, § 1º, e capítulo III do Título I, parte quarta); alude, ainda, a constituição a partidos nacionais, no art. 40, parágrafo único, definindo, em seguida, com base no re-gime democrático, a pluralidade dos partidos (art. 141, § 13). E no art. 11, § 2º, inciso I, letra b, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, lê-se mesmo referência a suplentes partidários de senadores.

Elegíveis, pois, quer para a constituinte de 1946, quer para qualquer das casas do congresso Nacional, somente os candidatos registrados por partidos políticos nacionais, ou aliança de partidos, como está expresso no Decreto-Lei 7.586 (art. 39, citado) e decorre da constituição vigente (art. 40, parágrafo único, e art. 134) e também do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (dis-posição citada).

A própria constituição, entretanto, preceitua:

é vedada a organização, o registro ou o funcionamento de qualquer partido político ou associação, cujo programa ou ação contrarie o regime de-mocrático, baseado na pluralidade dos partidos e na garantia dos direitos fun-damentais do homem.(Art. 141, § 13.)

cassado o registro e proibido o funcionamento de qualquer partido polí-tico, extinguir-se-á, ipso jure, o mandato dos representantes eleitos pelo partido?

é o que está afirmado em nosso direito constituído (Lei 211, de 7 de ja-neiro de 1948, art 1º, letra e).

Frente às disposições legais e constitucionais acima invocadas, é indu-bitável que só pode ser eleito candidato registrado por partido. Em verdade e conseqüentemente, tal registro, segundo o direito pátrio, é condição de elegi-bilidade. Negado o registro, ou proibido o funcionamento do partido, ou não concorrerá ele à eleição, ou, se seus representantes estiverem no exercício do mandato, forçosamente, pela própria natureza das coisas, hão que perder o man-dato, por não mais existir o partido.

A superveniência de motivo de inelegibilidade importa em perda de man-dato, segundo a doutrina mais autorizada, conforme expôs o Sr. Dr. Procurador-Geral da República, no avulso que anexou a seu ilustrado parecer, e não contraria a própria inicial, segundo se infere da transcrição de trecho de dis-curso do Sr. Depu tado João Mangabeira, e no qual foi reproduzida esta passa-gem de Esmein:

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Ministro Hahnemann Guimarães

Enfim, cada câmara tem o direito de pronunciar a perda do mandato de seus membros, se eles são atingidos por uma condenação, ou se adquirem uma qualidade que as tornaria inelegíveis no dia da eleição.(Fl. 9.)

Nesse sentido, além dos juristas e tratadistas citados pela Procuradoria da República, convém ouvir o professor Julien Laferriére, da Faculdade de Direito de Paris:

L’éligibilité est l’aptitude légale à faire partie du parlement. Si cette ca-pacité fait défaut, il y a inéligibilité, laquelle produit un double effet: antérieure à l’election, elle empêche celui qui en est atteint d’être élu; méme si auscrutin il a obtenu la majorité requise il n’entre pas au parlement; son élection est nulle et droit être déclarée; telle par le juge de l’élection; postérieure à l’élection, elle entraine la déchéance du mandat parlamentaire; ne peut continuer à faire partie d’une assemblée celui qui ne remplit pas les conditions nécessaires pour y etre élu.(Manuel de Droit Constitutionnel, 2. ed., 1947, p. 683.)

A tese de que as condições de elegibilidade para o congresso Nacional são taxativamente aquelas mencionadas no art. 38, parágrafo único, da cons-ti tui ção, e a de que os casos de inelegibilidade estão expressamente previstos nos arts. 139 e 140, bem como no art 48 e seus parágrafos, os de perda de man-dato, embora relevante e digna de maior meditação, não se nos afigura capaz e com força de destruir as conseqüências da aplicação do § 13 do art. 141. Se não houvesse, como condição de elegibilidade, o registro do candidato por partido político registrado, o citado § 13 perderia toda razão de ser e, sem finalidade, inteiramente destituído de objetivo, se mostraria o cancelamento do registro de qualquer partido.

Os partidos políticos se organizam e constituem, legalmente, para con-correr às eleições e, através destas, realizar a conquista de posições de governo, em sentido amplo. Esta, sua finalidade maior.

Ora, se se pudessem eleger candidatos independentes, ou avulsos, livres da exigência de registro por partido com vida legal, qual a sanção que se con-teria no § 13 do art. 141? cancelado o registro do partido, seus candidatos se apresentariam, individualmente, ao eleitorado, e o partido continuaria, através dos eleitos, alcançando aquele objetivo preponderante.

Facilmente se compreende, assim, que o registro se haja como condição sem cujo preenchimento não haverá candidato elegível: condição de elegibili-dade, portanto.

E o disposto no art. 141, § 13, só terá sentido jurídico aparente frente a tal reconhecimento, pois que, do contrário, estaríamos em face de mandamento da

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Memória Jurisprudencial

Lei Suprema prática e absolutamente inócuo, vago, sem conteúdo, e isso não é de se admitir, juridicamente.

Se, pois, segundo a doutrina, a perda de condição de elegibilidade (em sentido abrangedor de condição pessoal ou geral) sobrevinda ao exercício do mandato importa em perda deste – o que, aliás, era de direito expresso, na Finlândia (Lei Orgânica de câmara dos Depu tados, de 1928, § 12) e, entre nós, se conclui por construção necessária –, não se poderá reconhecer a inconstitu-cionalidade apontada na inicial destes autos.

contra esta conclusão cumpre ainda examinar, derradeiramente, argu-mento de aparência relevante.

O ilustre senador Ferreira de Sousa, opinando, na qualidade de Relator, na comissão de Justiça, em sua câmara, pela inconstitucionalidade do projeto que se transformou na Lei 211, invocou a rejeição, pela Grande comissão da constituinte de 1946, da Emenda 1.734, segundo a qual extintos se conside-rariam os mandatos dos representantes de partido que viesse a ter seu registro cancelado, na forma da constituição.

com a invocação pretendeu, fora de dúvida, o brilhante catedrático de direito comercial da Faculdade Nacional de Direito demonstrar a erronia de se pretender construir aquilo que a constituinte expressamente condenara.

Impressionante, inegavelmente, a força do argumento, se inteiriço o raciocínio.Nos próprios autos, entretanto, a prova de que o episódio não favorece

a reflexão do preclaro senador. Realmente, à fl. 67 está a explicação do nobre depu tado costa Neto, Relator daquela emenda e autor do parecer por sua rejei-ção. E dessa explicação se vê que os motivos determinantes do parecer apro-vado desarmam, inteiramente, o argumento do senador potiguar e tranqüilizam a conclusão a que cheguei.

Indefiro, pois, o pedido.

VOTO(Mérito)

O Sr. Ministro Sampaio costa: Senhor Presidente, o substancioso voto proferido pelo eminente Sr. Ministro Relator apreciou com justeza e precisão todos os problemas jurídicos postos em debate, chegando à conclusão de que tanto o ato da Mesa da câmara dos Depu tados, de que se queixam os impetran-tes, como a Lei 211, de 1948, são constitucionais e legítimos.

Os argumentos expendidos por S. Exa. foram precisamente aqueles com os quais, com menos brilho, pretendia fundamentar o meu voto e denegar a se-gurança pedida. Por outro lado, as considerações que levava em mira expender

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Ministro Hahnemann Guimarães

de respeito ao sistema especial adotado pela constituição vigente, de ligação íntima, interdependente, entre a representação político-popular e os partidos políticos, foram, também, focalizadas com percuciência não só no voto do Sr. Ministro Relator como nos dos demais colegas que me precederam. Pouco tenho, pois, a acrescentar.

“As constituições”, já disse eminente constitucionalista pátrio e ex-mem-bro deste egrégio Pretório, “não são repositórios de doutrinas, são instrumen-tos de governo que asseguram a liberdade e o direito, sem prejuízo da ordem e do desenvolvimento social.” Para apreender a vera inteligência de seus textos, cumpre não procurar apreciá-los isoladamente, mas em conjunto, procurando justapô-los e harmonizá-los.

Não há negar que a constituição vigente (art. 1º) faz repousar no povo toda a soberania, considerando-o como órgão precípuo da vontade estatal. Mas é bem de ver que o povo ali definido não é a massa total, o conglomerado de todos os indivíduos habitantes do país, mas o povo politicamente organizado, capaz de tomar parte ativa na formação e organização dos poderes do Estado. A praça do prét, o analfabeto, o inválido, o menor e muitos outros incapazes para o exercício dos direitos políticos não podem ser tomados como abrangidos na definição de povo, ante o direito político. Em verdade, o povo a que se refere a constituição (art. 1º), do qual emana todo o poder e em cujo nome é ele exer-cido, é o povo organizado em correntes de opinião, por conseguinte, em parti-dos. Os membros dos corpos legislativos são, pois, representantes dos partidos.

A constituição em vários de seus textos assim o proclama. Fá-lo de ma-neira catedrática e precisa, por exemplo, no seu art. 141, § 13, quando preceitua que o regime democrático por ela implantado se baseia na pluralidade dos par-tidos e na garantia dos direitos fundamentais do homem. E de forma não menos explícita nos arts. 40, parágrafo único; 52; 60, § 4º; 119, I e VIII; e 134, em que reconhece que os partidos políticos participam dos congressos, elegem os mem-bros deste, inclusive suplentes, etc.

No sistema adotado pela nova Lei Fundamental, diverso do ato então se-guido, único, talvez, na história, a vontade do povo se manifesta por intermédio dos partidos, que realizam a vontade estatal.

Assim, há que se concluir que a cassação do registro de um partido, sua proibição de funcionar e existir, por contrário ao regime instituído, há que fatal-mente compreender a extinção do mandato dos representantes desse partido, no Parlamento, nos corpos Legislativos. A Lei 211 nada mais fez que regulamentar o preceito contido no art. 141, § 13, da constituição, cujo conteúdo exigia provi-dência legislativa, para seu integral cumprimento.

Muito bem acentuou o Ministro Relator que a extinção do mandato, pelo advento de um fato resolutivo, não ofende direito algum.

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Memória Jurisprudencial

Ademais, a regra universalmente consagrada é a de que a inconstitucio-nalidade das leis só deve e pode ser declarada, quando evidente, fora de toda dúvida razoável. é que as leis, elaboradas pelo poder competente, têm sempre, a seu favor, a presunção da legitimidade.

Nessas condições, e pelos demais fundamentos já aqui aduzidos nos vo-tos que antecederam ao meu, acompanho o Sr. Ministro Relator, indeferindo a impetração, por considerar constitucional e legítimo não só a Lei 211, como o ato da Mesa da câmara dos Depu tados que deu como extintos os mandatos dos representantes do Partido comunista naquela casa do congresso.

VOTO(Mérito)

O Sr. Ministro Macedo Ludolf: Do exame detido do assunto, capacitei-me de que a alvejada Lei 211, de 1948, podia e devia mesmo estabelecer, como o fez, mais uma hipótese de extinção de mandato, em correspondência com a situação prevista na constituição Federal, art. 141, § 13.

Dês que, com fundamento nesse dispositivo, é cassado o registo de um partido por ter atuação contrária ao regime democrático, baseado na pluralidade dos partidos e na garantia dos direitos fundamentais do homem, evidentemente não podem continuar a ter assento no seio das corporações legislativas os repre-sentantes daquele partido extinto.

A não ser assim, seria burlar ou tornar letra morta o cogitado preceito constitucional, cuja relevância não se faz mister definir ou esclarecer, pois do seu contexto longo ressalta o escopo do legislador constituinte, ou seja, a pre-servação, a defesa da forma de governo adotada, ou, melhor, das nossas insti-tuições políticas e sociais.

como é incontestável, a ação partidária pode ter e tem exatamente sua grande eficiência, quando se desenvolve em ambiente de assembléias políticas, onde se pode, à sombra de imunidades, propagar vigorosamente idéias e incitar ou concitar as massas eleitorais para os grandes prélios do partidarismo.

No atual sistema representativo brasileiro, conquanto o poder emane do povo e em seu nome deva ser exercido, o fato é que o eleitorado deve ser agru-pado ou estruturado em partidos nacionais, elegendo estes os candidatos que hão de compor o Legislativo nas três esferas, isto é, federal, estadual ou municipal.

Os eleitos, uma vez de posse de seus mandatos, terão que desempenhá-los como mandatários da soberania popular, mas sempre jungidos ao programa e à ação das correntes partidárias que os hajam sufragado nas urnas.

Isso deflui, de modo irrefragável, de diversos preceitos da vigente Magna carta, a destacar o seu art. 134, no qual se consagra, textualmente, o sufrágio

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Ministro Hahnemann Guimarães

universal e direto, mediante voto secreto, ficando, porém, assegurada a represen-tação proporcional dos partidos políticos nacionais, na forma que a lei estabelecer.

A legislação eleitoral aplicável já se antecedera à promulgação do Pacto Supremo, ou seja, o Decreto-Lei 7.586, 28 de maio de 1945, em cujo art. 39 está expresso que somente podem concorrer às eleições candidatos registrados por partidos.

Sem o preenchimento dessa condição essencial, portanto, não é dado a quem quer que seja conquistar um mandato eletivo.

De tudo resulta, à plena evidência, que tal mandato não há que subsistir, dês que seu portador esteja filiado a uma agremiação política que o fez candi-dato e o elegeu mas que se torne privada de funcionar, em virtude de cance-lamento de seu registro, ordenado em decisão soberana da Justiça Eleitoral, fundada na constituição citada, art. 141, § 13, segundo ocorreu com o Partido comunista do Brasil.

Os impetrantes, representando na câmara dos depu tados federais esse partido, reclamam contra o ato da Mesa daquela casa do congresso Nacional, por haver declarado extintos os respectivos mandatos, nos termos da questio-nada Lei 211, art. 1º, letra e.

Acoimam de inconstitucional o ato aludido, porque baseado naquele di-ploma que, segundo sustentam, é manifestamente atentatório dos postulados inscritos no nosso Estatuto Fundamental.

Ficou demonstrada a necessidade de existir, por meio de providência da legislatura ordinária, uma sanção que possibilite a completa executoriedade do mandato contido no predito art. 141, § 13, da constituição, consubstanciando esse preceito o ponto predominante na matéria que ora se debate, no qual se há de haurir, à margem considerações outras de ordem secundária, a verdadeira solução do problema trazido a juízo.

O focalizado preceito traduz um alto sentido político, e a malsinada Lei 211, que o veio regular, devia ter, como teve, seus imediatos efeitos pelo prin-cípio da ordem pública, não se lhe podendo atribuir qualquer eiva de inconsti-tucionalidade, pois que, ao revés, tal lei traz, em seu bojo, a virtude de melhor assegurar, no tocante à parte que interessa ao julgamento, a sobrevivência do re-gime democrático e representativo, em boa hora reimplantado em nossa Pátria.

Por conseqüência, tenho como legítimo o ato impugnado e denego o mandado.

VOTO(Mérito)

O Sr. Ministro Abner de Vasconcelos: A constituição Federal, art. 120, diz serem irrecorríveis as decisões do Tribunal Superior Eleitoral, e entre as

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suas atribuições, no art. 119, I, inclui a cassação do registro dos partidos políti-cos. cassado esse registro, o congresso elaborou a lei promulgada sob o número 221, de 1948, decretando a extinção do mandato de depu tados eleitos pelos par-tidos que tiveram anulado o seu registro.

Levanta-se, assim, o problema constitucional, sobre se pode perder o exercício do mandato o representante cujo partido desaparece.

O art. 140, § 13, da constituição dispõe ser vedada a organização, o re-gistro ou o funcionamento de qualquer partido político cujo programa ou ação contrarie o regímen democrático baseado na pluralidade dos partidos e na ga-rantia dos direitos fundamentais do homem.

Embora irrecorríveis as decisões do mais alto tribunal eleitoral, a consti-tuição abriu, contudo, exceções para as que declararem a invalidade de lei ou de ato que lhe for contrário. Logo, o ato de julgamento do Tribunal Superior Elei-toral é recorrível e anulável desde que infrinja preceito constitucional.

Somente por via oblíqua é que a decisão do Supremo Tribunal atinge a matéria eleitoral.

é a exceção contida no art. 120, embora a questão eleitoral não seja ata-cada de frente. Pelo atual sistema político-eleitoral do País, o depu tado repre-senta o pensamento do partido que o elegeu. Sem partido, não há depu tado. cassados os direitos do partido, por contrário aos interesses nacionais, não po-dem permanecer no Parlamento as vozes que o representavam e que, pela liber-dade da palavra, continuariam a agir. O espírito da constituição não pode ser de outra forma. A conjugação dos arts. 119, I, e 147, § 13, o que veda a organização de partido que atente contra o regime e as garantias fundamentais do homem, e o que lhe autoriza a cassação, não pode ter sentido diverso. Há de atingir, neces-sariamente, o exercício do mandato dos seus representantes, expressão máxima de sua existência. Se esta termina, aqueles desaparecerem automaticamente.

A constituição não assegura invariavelmente o desempenho do mandato até seu término, pela expiração da legislatura. O art. 48 contém várias hipóteses em que ele se perde, sem, contudo, esgotar todos os casos.

O regime tem também as suas garantias que ainda não expressas trans-cendem da sua carta Política. é que a constituição não esgotou a enumeração das garantias. O art. 144 o diz. O Parlamento não devia se constituir em tribuna de honra de um partido que desapareceu, por atentatório aos interesses da or-dem política e social.

A Lei 211 é constitucional; a cassação do partido em questão foi feita se-gundo o que prescreve a constituição; o ato da Mesa da câmara foi a execução do julgado e da lei.

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Ministro Hahnemann Guimarães

Nessas condições, improcedente o fundamento do mandado de segu-rança, denego-o, acompanhando o voto do eminente Sr. Ministro Relator.

VOTO(Mérito)

O Sr. Ministro Armando Prado: Senhor Presidente, nada tenho a acres-centar aos votos que já foram enunciados. Voto com o Sr. Ministro Relator, de-negando o mandado.

VOTO(Mérito)

O Sr. Ministro Edgard costa: O projeto que se converteu afinal na Lei 211, de 7 de janeiro do ano passado, foi objeto, em ambas as casas do congresso, de memoráveis debates sob o seu aspecto constitucional. As mais autorizadas vozes do Parlamento se fizeram ouvir em torno desse tema, tendo o projeto logrado aprovação com uma larga margem de votos vencedores. Relembro a elaboração da lei em questão para acentuar, de início, a sua contestada consti-tucionalidade. Fora do Parlamento, assim durante a sua elaboração como após a sua promulgação, essa constitucionalidade constituiu tema de estudos e parece-res de eminentes juristas colocados em campos opostos. Os argumentos expen-didos, por uns e por outros, foram e são realmente ponderáveis, não apenas pelo seu calado político – tomada esta expressão no seu alto sentido – mas também pelo seu lastro e aspecto jurídicos.

Se para a declaração de inconstitucionalidade pede-se que ela seja evi-dente ou manifesta – e se para o conceito do que seja evidente e manifesto não existe nenhum critério objetivo –, na espécie a solução da controvérsia, mais do que nunca, pode ser considerada meramente opinativa.

Ao argumento de que a perda do mandato legislativo somente pode ocor-rer naqueles casos expressamente previstos e determinados na constituição, aos quais lícito não é ao legislador ordinário acrescer outros, como o de que cogita a letra e do art. 1º da Lei 211, de 1948, contrapõe-se o de que, sendo bá-sica no sistema político representativo adotado a representação partidária, não passando os representantes eleitos – sob a ficção de representantes do povo – de delegados ou representantes do partido proibido de funcionar por contrário ao regime democrático.

Esse é um princípio que, embora não expresso na constituição, decorre do regime que instituiu e de outro princípio por ela adotado, o da representação partidária; decorre, em suma, da “lógica constitucional”. Se os outros casos de perda ou extinção do mandato relacionados na Lei 211 decorrem diretamente da

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constituição (art. 1º, letras d e f ) ou pela natureza das coisas (letras a, b, e c), a resultante da cassação do registro do respectivo partido, quando incidir no § 13 do art. 141 (letra e), estaria implícito nela.

O eminente e culto Dr. Procurador-Geral da República, em seu lúcido e erudito parecer, oferece um argumento que tem raízes naquele princípio e jus-tificativa no sistema eleitoral, não impugnado por incompatível, então e hoje, com a constituição, antes na conformidade do que dispõe ela para efetiva re-presentação do povo nas assembléias legislativas: o de que a vinculação a um partido político é condição de elegibilidade, que, por isso, deve ser aditada às demais expressas no art. 38, parágrafo único, e cuja perda importa, de pleno di-reito, na do mandato, ainda quando ocorrente durante o seu desempenho; com a decisão judicial, passada em julgado, sobre o cancelamento do partido sob cuja legenda foram inscritos como candidatos e eleitos os ora impetrantes, perderam eles essa condição de elegibilidade, e, conseqüentemente, o respectivo mandato, perda que está implícita na constituição, como conseqüência natural e neces-sária que independe dos textos, pois resulta dos princípios gerais e decorre da natureza mesma das coisas (Moreau, Esmein e Lubant).

Assim como o exercício dos direitos políticos é condição de elegibilidade e a sua perda acarreta a do mandato – e o mesmo se pode dizer em relação à quali-dade de brasileiro (art. 38, parágrafo único, citado, I e II) –, assim a perda daquela condição de elegibilidade deve produzir o mesmo efeito: a perda do mandato.

O argumento, que é novo no debate, se afigura procedente: se somente pode ser eleito quem, como candidato ao sufrágio popular, seja inscrito por um partido legalmente constituído, não pode continuar a pertencer à Assembléia Legislativa, para que fora assim eleito, quem, com o desaparecimento do par-tido que o inscreveu, deixou de preencher aquela condição de elegibilidade.

Importa o argumento na indagação da sua aplicação extensiva a casos ou-tros que não o do cancelamento judicial do registro do partido, de sua dissolução e no de transferência do representante de um para outro partido, o que acarreta modificação do quociente eleitoral inicial de sua representação; são hipóteses, essas, porém, que não estão em debate.

Sem desejar dar maior desenvolvimento ao meu voto, por desnecessá-rio repisar os argumentos pró e contra a inconstitucionalidade argüida da lei em causa, quero apenas frisar, concluindo, que essa inconstitucionalidade não é manifesta, evidente; sofre, antes, dúvidas razoáveis e fundadas, o que tanto basta para que não possa ser declarada inválida, por tal defeito, a lei questionada.

Poderia repetir o que disse um dos mais ilustres parlamentares que se manifestaram contrários à constitucionalidade da referida lei, o Sr. Dr. João Mangabeira, em seu livro Em torno da Constituição (edição de 1934), a

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Ministro Hahnemann Guimarães

propósito do quorum necessário para a declaração de inconstitucionalidade: “Não pode haver inconstitucionalidade mais duvidosa do que aquela repe-lida pela Assembléia, rejeitada pelo Presidente da República na sanção, e, no Supremo Tribunal, impugnada por cinco dos seus onze Ministros” (e antes de mim seis já votaram no sentido da constitucionalidade). E decretá-la nessas con-dições seria, com a anulação da lei, anular – como ainda acrescentou S. Exa. – “os dois poderes eletivos do Estado, que haviam, muita vez, feito e sancionado a lei, para atender aos mais instantes clamores populares, servir aos supremos interesses do País, ou preservar os destinos da Nação” (ob. cit., p. 115).

Feitas essas considerações, acompanho o voto do eminente Sr. Ministro Relator, indeferindo o pedido para denegar o mandado impetrado.

VOTO(Mérito)

O Sr. Ministro Annibal Freire: Senhor Presidente, o presente mandado ofereceu a este Pretório oportunidade de um memorável debate. Já antes, nas duas casas do congresso, porfiou-se uma batalha das mais destacadas, pela elevação e percuciência dos antagonistas. Seria veleidade minha querer acres-centar mais qualquer coisa, nessa altura da discussão.

Mas releve o Tribunal que aduza ligeiras considerações para fundamen-tação de meu voto.

A constituição de 1946 singularizou-se, na história das constituições políticas, por vedar o registro de partido contrário aos seus princípios. Não é da índole do julgador fazer a crítica das normas legislativas; é de crer que as oriente o mesmo interesse pela causa pública que inspirará o julgador.

Mas é a constituição e ela tem de ser executada e cumprida pelos órgãos judiciais, para que daí não resultem atritos e desvantagens para a marcha nor-mal das instituições.

A constituição, portanto, vedou o registro de partidos contrários aos seus princípios; em conseqüência desse dispositivo, foi cancelado o registro do par-tido; e as conseqüências jurídicas do cancelamento vão ser reguladas por este preceito: a sobrevivência ou não de representantes do Poder Legislativo perten-centes ao partido cancelado. Podem permanecer, depois do cancelamento feito pelo órgão competente da Justiça Eleitoral, esses representantes? Este é o tema essencial. O roteiro para a solução há de ser a constituição e as leis que se não contraponham ao Estatuto Fundamental.

é inegável que, em doutrina, na prática os partidos políticos são veículos das inspirações nacionais, diversificadas por motivos de crenças, de ideologias,

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de pensamentos de justiça social, de justiça construtora. Mas a constituição de 1946 erigiu os partidos políticos em suportes e pilares da organização po-lítica; é inegável esse ponto de vista adotado pelo legislador, não só no artigo em que fala de pluralidade de partidos, como em vários outros dispositivos re-lembrados não só no parecer do eminente Dr. Procurador-Geral, a cujo trabalho rendo as minhas homenagens, como no lúcido voto do eminente Sr. Ministro Hahnemann Guimarães. Essa proeminência dos partidos não sofre dúvida. Aludiu-se muito à liberdade de voto, às emanações dos direitos dos representan-tes hauridos do povo. Mas uma pergunta é indispensável fazer-se, em instante como este: juridicamente, é livre o eleitorado brasileiro? é livre de fazer, como lhe apraz ou satisfaz às suas conveniências, aos seus interesses, às suas inclina-ções, a escolha de qualquer candidato? Evidentemente não.

Quer dizer: a manifestação eleitoral está condicionada a limites impostos pela lei; só podem ser sufragados candidatos inscritos em nome de partidos. Quer dizer: não fica ao eleitor a capacidade de escolher quem lhe aprouver, como anteriormente se fazia em relação aos candidatos de sua simpatia; o elei-torado está, hoje, no Brasil, subordinado a condição sistemática, relativa ao funcionamento dos partidos políticos. Não há, portanto, nenhuma deformação de sentido jurídico nem da sistemática constitucional numa interpretação que procure dar, de acordo com o espírito da lei e da constituição, a proeminência aos partidos políticos e, conseqüentemente, a invalidar a eleição dos represen-tantes eleitos por um partido que desapareceu.

Sempre fui fiel, em votos proferidos neste Tribunal, às lições que o direito norte-americano, pela sua legislação e pela sua jurisprudência monumental, ins-pira a nós outros que neles vamos haurir os ensinamentos. A inconstituciona-lidade de uma lei, pela sua relevância, só pode ser determinada pelo Judiciário que não deve ter a preocupação de se atritar; a inconstitucionalidade só pode ser decretada em casos especiais: quando manifesta e flagrante. Nunca tive outra orientação. Permanentemente, reiteradamente, invocando os fundamentos dos mestres de direito norte-americano, sempre salientei este aspecto.

Não vejo, de acordo como enunciaram os votos proferidos, como conside-rar flagrantemente inconstitucional a resolução tomada pela Mesa da câmara. Sendo o mandado de segurança destinado a tutelar direito líquido e certo, não hesito em acompanhar o voto do eminente Sr. Ministro Relator.

Indefiro o mandado.

VOTO(Mérito)

O Sr. Ministro Barros Barreto: O depu tado ou senador representando o povo, organizado em partidos, da cassação do registro de partido político, pelo órgão

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Ministro Hahnemann Guimarães

competente, quando incidir ele no art. 141, § 13, da carta constitucional, há de de-correr, forçosamente, a extinção do mandato legislativo dos seus representantes.

E, porque se me afigura irrecusável a constitucionalidade da Lei 211, de 7 de janeiro de 1948, como também do ato impugnado da Mesa da câmara dos Depu tados, não encontro direito líquido e certo a ser protegido.

Denego a segurança impetrada.

VOTO(Mérito)

O Sr. Ministro José Linhares: Na lição de cooley, a dúvida à validade constitucional de uma lei jamais será razão bastante para autorizar a declara-ção de sua inexistência: “Não é por simples indução ou conjectura que se pode afirmar que o Legislativo excedeu as suas atribuições, e conseqüentemente, a nulidade de seus atos. A oposição entre a constituição e a lei deve ser de tal ordem que o juiz sinta uma convicção clara e arraigada da incompatibilidade de ambos.

O indispensável respeito, que se deve guardar para a sabedoria, integri-dade e patriotismo do corpo Legislativo, que vota uma lei, leva a presumir em favor de sua validade, até que a violação da constituição seja provada, fora de toda dúvida. Dando-se isto, a decisão judicial deve sustentar a lei (cOOLEy, The General Principles of Constitucional Law, p. 130). E Amaro cavalcanti, comentando esta passagem do insigne constitucionalista americano, logo acrescenta: “Mas, seja como for, a presunção é que na passagem de uma lei, a deliberação dos membros do corpo Legislativo foi tomada nos limites de sua autoridade, e que, portanto, ao Judiciário incumbe relevar as próprias dúvidas e sustentar, em regra, a autoridade do legislador” (Amaro cavalcanti, Regime Federativo, p. 237). Aliás, é esta a lição de Black, On Const. and Interp. of Laws, p. 93 e seguintes, e carlos Maximiliano, Hermenêutica e Impeachment, n. 366.

Vejamos se a lei que se fulmina de inconstitucional incorre nesta pe-cha manifestamente e, isto é, sem que haja qualquer dúvida. A Lei 211, de 7 de janeiro de 1948, declarou extintos os mandatos dos membros dos corpos Legislativos da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, eleitos, ou não, sob legendas partidárias: c) pela cassação do res-pectivo partido, quando incidir no § 13 do art. 141 da constituição Federal. Ora, se a constituição Federal, no preceito citado, veda a organização, o re-gistro ou o funcionamento de qualquer partido político ou associação, cujo programa contrarie o regime democrático, baseado na pluralidade dos parti-dos e na garantia dos direitos fundamentais do homem, claro é que, cassado o

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registro e o conseqüente funcionamento do Partido comunista pelo Tribunal Superior Eleitoral, teriam os membros eleitos forçosamente de perder os seus mandatos, por isto que os partidos não são entidades abstratas, que tenham a sua organização e ação independente de seus membros. Seria uma incoerência o fechar-se o partido e deixar os membros desse partido no gozo de um man-dato representativo de um programa contrário ao regime democrático, como estatui a constituição Federal. Só mediante a lei votada pelo congresso, dentro de sua competência constitucional, podia-se privar os membros do partido de seus mandatos. O argumento de que é investido pelo povo, só ele poderá retirá-lo, é por demais implícito. Basta assinalar que a expressão eleitoral do povo é o partido, e só é elegível quem for filiado a ele e por ele registrado como can-didato; no regime democrático estabelecido pela constituição Federal só tem expressão política, nos corpos Legislativos, os partidos. Em várias passagens da constituição, como sejam os arts. 134, 40, parágrafo único, e 53, parágrafo único, bem demonstram esta assertiva.

Assim, o § 13 do art. 141 da constituição Federal seria letra morta, se uma lei ordinária não criasse uma sanção. Pergunta-se: a Lei 211 é manifes-tamente (veja-se bem: manifestamente) contrária à constituição? Ninguém de boa-fé poderá responder pela afirmativa. Não há que falar em retroatividade da lei, desde que este é o complemento da cassação do registro do partido e de afirmação imediata.

Seria desconhecer o disposto no § 2º do art. 48 da constituição Federal.Sem outras considerações que bem poderiam ser aduzidas, não vejo di-

reito líquido e certo a ser resguardado por via de mandado de segurança.Indefiro o pedido.

DEcISÃOcomo consta da ata, a decisão foi a seguinte: Foi rejeitada a preliminar

relativa à não-argüição de inconstitucionalidade no mandado de segurança, contra os votos dos Ministros Relator e Barros Barreto. Rejeitada foi, igual-mente, por unanimidade, a preliminar relativa à coisa julgada. E, quanto ao merecimento, foi indeferido o mandado, por votação unânime.

Deixaram de comparecer, por se acharem em gozo de licença, os Ministros castro Nunes, Orozimbo Nonato e Goulart de Oliveira, substituídos pelos Ministros Armando Prado, Abner de Vasconcelos e Macedo Ludolf.

Tomaram parte no julgamento os Ministros Sampaio costa e cunha de Vasconcelos, do Tribunal Federal de Recursos, visto serem impedidos os Ministros Lafayette de Andrada e Ribeiro da costa.

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Ministro Hahnemann Guimarães

RECURSO CRIMINAL 1.032 — DF

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, peço permis-

são ao eminente Sr. Ministro Barros Barreto e aos que o acompanharam, para seguir o voto dos eminentes Srs. Ministros candido Motta e Luiz Gallotti. No caso anterior, no Recurso 1.021, em que foi réu o Sr. João Duarte, sustentei a opinião de que os crimes contra o Estado, a ordem política e social cometidos pela imprensa continuam a ser punidos pela Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953, que define os crimes contra a segurança nacional. Não posso, todavia, manter a minha opinião, Senhor Presidente, em vista do que dispõe o art. 9º, letras a e b, da Lei 2.083, de 12 de novembro de 1953. Daí resulta que, quando os cri-mes contra a segurança do Estado forem praticados pela imprensa e na Lei de Imprensa houverem sido previstos, evidentemente, não se poderão aplicar a eles as disposições da Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953. Há que observar o disposto na Lei 2.083, de 12 de novembro de 1953. Ora, no caso, atribui-se ao recorrido fato que constituiria crime previsto nos arts. 12 e 14 da Lei 1.802, mas esses crimes estão rigorosamente previstos na Lei 2.083, no art. 9º, letras a e b, repro-duzindo a letra a, rigorosamente, o disposto do art. 141, § 5º, da constituição Federal, que diz:

é livre a manifestação do pensamento, sem que dependa de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um, no caso e na forma que a lei preceituar, pelos abusos que cometer. Não é permitido o anonimato. é assegurado o direito de resposta. A publicação de livros e perió-dicos não dependerá de licença do poder público. Não será, porém, tolerada propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a ordem política e social, ou de preconceitos de raça ou de classe.

O que se atribui ao recorrido é estar estimulando a animosidade das classes armadas, fazendo propaganda da subversão da ordem pela violência. Ora, esse crime praticado pela imprensa só pode ser punido de acordo com a Lei 2.083, não com a Lei 1.802. Entendo que, quando os crimes definidos na Lei 1.802, de 1953, houveram sido previstos na Lei 2.083, de 1953, como abuso da liberdade de imprensa, devem eles ser punidos com as sanções previstas na se-gunda lei. Assim, estará sendo aplicada a lei posterior, a lei mais branda, a lei que assegura a manifestação da liberdade de pensamento, que é princípio fun-damental da política republicana.

Nego provimento ao recurso.

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MANDADO DE SEGURANÇA 1.114 — DF

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, resume o emi-

nente Dr. Procurador-Geral da República o propósito do impetrante em insurgir-se ele contra o ato do Exmo. Senhor Presidente da República que, aprovando parecer emitido pelo Sr. consultor-Geral da República sobre a maneira de asse-gurar o livre exercício do culto da Igreja Apostólica Romana, o encaminhou ao Sr. Ministro da Justiça e Negócios Interiores, para que lhe desse cumprimento.

O parecer do consultor-Geral da República nasceu de uma represen-tação, dirigida ao poder temporal, por Sua Eminência D. Jaime de Barros câmara, Arcebispo do Rio de Janeiro, representação redigida nos seguintes termos, transcrita no parecer já citado, do eminente Dr. Procurador-Geral da República:

Em verdade, desde o nome adotado – Igreja Apostólica Brasileira – até o culto e ritos, tudo é feito com o objetivo de mistificar e confundir. Assim, os próprios apóstatas se apresentam como “bispo do culto romano”, usam – ele e seus ministros – as mesmas vestes e insígnias do clero e bispos romanos, prati-cam os mesmos atos religiosos da Igreja de Roma, como sejam: batismos, cris-mas, casamentos, procissões, missas campais, bênçãos e lançamentos de pedras fundamentais, e em todos esses atos adotam os mesmo parâmetros, e o mesmo cerimonial do nosso culto externo.

Daí resultou a providência sugerida do Sr. consultor-Geral da República, o ilustre Prof. Haroldo Valadão, nos seguintes termos:

cabe, portanto, à autoridade civil, no exercício do seu poder de polícia, atendendo ao pedido que for feito pela autoridade competente da Igreja católica Apostólica Romana, e assegurando-lhe o livre exercício do seu culto, impedir o desrespeito ou a perturbação do mesmo culto, através de manifestações ex-ternas, quais procissões, missas campais, cerimônias em edifícios abertos ao público, etc., quando praticadas pela Igreja católica Apostólica Brasileira com as mesmas vestes, enfim, o mesmo rito daquela.

Adotando a providência sugerida neste parecer, Senhor Presidente, pa-rece-me que o poder civil, o poder temporal, infringiu, frontalmente, o princípio básico de toda a política republicana, que é a liberdade de crença, da qual decor-reu a separação da Igreja e do Estado.

Reclamada essa separação pela liberdade de crença, dela resultou, neces-sariamente, a liberdade de exercício de culto.

Devemos estes grandes princípios à obra benemérita de Demétrio Ribeiro, de cujo projeto surgiu, em 7 de janeiro de 1890, o sempre memorável ato que separou, no Brasil, a Igreja do Estado.

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Ministro Hahnemann Guimarães

é de se salientar, aliás, que a situação da Igreja católica Apostólica Romana, separada do Estado, se tornou muito melhor. cresceu ela, ganhou prestígio graças à emancipação do regalismo que a subjugava durante o Império. Foi durante o Império que se proibiu a entrada de noviços nas ordens religiosas; foi durante o Império que se verificou a luta entre mações e católi-cos, de que resultou a deplorável prisão dos Bispos D. Vital Maria Gonçalves de Oliveira e D. Macedo costa, bispos de Olinda e do Pará; foi durante o Império que prevaleceu a legislação de mão morta.

com a República, o prestígio da Igreja católica cresceu, como todos reconhecemos.

Deve-se, aliás, Senhor Presidente, atribuir, como glória da Igreja católica Apostólica Romana, ter-se ela batido pela separação da Igreja do Estado. O princípio civil da separação da Igreja do Estado foi o princípio que a Igreja católica defendeu nos seus começos, talvez contrariado na teocracia católico-feudal da Idade Média. Mas não há dúvida em que a separação da Igreja e do Estado, pela qual se bateu a própria Igreja católica, e que é a base da política republicana, só concorreu para que ela crescesse de prestígio.

O decreto de 7 de janeiro de 1890, Senhor Presidente, foi incorporado à constituição, que sempre devemos lembrar com reverência, de 1891, no seu art. 72, § 3º, a que se deve ligar a disposição do art. 11, 2.

Estas disposições vieram da constituição de 1891, através da reforma de 1926, das constituições de 1934 e 1937, até a constituição vigente, que, no art. 31, II, estabelece:

À União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado:( … )II – estabelecer ou subvencionar cultos, ou embaraçar-lhes o exercício.

Proíbe, por conseguinte, a constituição que o poder temporal embarace o exercício de qualquer culto religioso. A este princípio está ligado, por uma soli-dariedade necessária e evidente, o preceito constante do art. 141, § 7º.

Estes princípios foram profundamente violados, data venia o afirmo.No § 7º de art. 141 se dispõe:

é inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariarem a ordem pública ou os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurídica na forma da lei civil.

Sustenta-se, Senhor Presidente, que o culto religioso exercido pelo reque-rente do mandado de segurança é – como admite que seja – rigorosamente igual ao culto professado pela Igreja católica Apostólica Romana.

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Memória Jurisprudencial

Que é o culto?Nós diríamos, segundo nossa orientação positivista:– O culto é o conjunto de práticas religiosas destinadas ao aperfeiçoa-

mento dos sentimentos humanos.Dirão os teólogos, e eu os sigo, neste momento:– O culto é o complexo de ritos com que se honra Deus e se santificam

os homens.O rito, esta parte da liturgia, com que os homens veneram Deus e os

santos, é absolutamente livre no regime republicano. Não há como o Estado intervir na determinação dos cultos, quaisquer que sejam eles, desde que não ofendam os bons costumes.

Não há como se falar, aqui, em ofensa dos bons costumes, porque o culto professado pela Igreja dissidente é o mesmo culto da Igreja católica Apostólica Romana.

Pergunta-se: é lícito a uma Igreja cismática exercer o culto da Igreja católica Apostólica Romana?

A esta pergunta somente poderão dar resposta os teólogos, os canonistas.classificam eles os delitos contra a fé em três espécies: a apostasia, a he-

resia e o cisma.No caso, trata-se precisamente de um cisma. Trata-se de um bispo que

não quer aceitar o primado do pontífice romano.O primado do pontífice romano baseia-se, de acordo com a doutrina

da Igreja dominante, naquela própria monarquia estabelecida no colégio dos Apóstolos com o primado de São Pedro. Este primado é o próprio do pontífice romano.

Mas, Senhor Presidente, desde a fundação da Igreja católica Apostólica Romana existem os cismas, existem as dissidências. Desde então começou a surgir este movimento em favor das Igrejas nacionais que, no século XVII, nos seus fins, mais crescia, dando lugar àquelas célebres liberdades galicanas, ela-boradas, redigidas e preparadas pelo incomparável Bossuet.

Desde os princípios da Igreja o chamado galicanismo eclesiástico é co-nhecido. é sabida a tendência em que os graus inferiores da hierarquia católica procuraram evitar a supremacia do pontífice romano.

Já no século III surgiu a série de dissidências com a rebelião de Novaciano, em 251.

Dissidência célebre foi, no século IX, o cisma do Fócio, que deu lugar à separação da Igreja oriental da Igreja ocidental.

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Ministro Hahnemann Guimarães

Mas não nos esqueçamos do próprio cisma, provocado, no século XIV, pelos cardeais rebeldes, em que se elegeu o anti-Papa clemente VII.

Assim, a história da Igreja está repleta desses cismas, está repleta desses delitos contra a fé. Trata-se, pois, de delito contra a fé, como o classificam os canonistas. No caso particular, trata-se de delito definido no cânone 1.325, § 2º, onde se define o cismado como aquele “qui subesse renuit Romano Pontifici aut cum membris Eclesiac ci subiectis communicare recusat”.

é o que se dá, no presente momento. O ex-bispo de Maura, Dom carlos Duarte costa, não quer reconhecer o primado do Pontífice Romano, quer cons-tituir uma Igreja Nacional, uma Igreja católica Apostólica Brasileira com o mesmo culto católico. é-lhe lícito exercer esse culto no exercício da liberdade outorgada pela constituição, no art. 141, § 7º, liberdade cuja perturbação é, de modo preciso, proibida pela constituição, no art. 31, inciso II.

Trata-se, pois, de delito espiritual, podemos admitir. como resolver um delito espiritual, um conflito espiritual, com a intervenção do poder temporal, do poder civil, que está separado da Igreja? Os delitos espirituais punem-se com as sanções espirituais; os conflitos espirituais resolvem-se dentro das próprias Igrejas; não é lícito que essas Igrejas recorram ao prestígio do poder para resol-ver seus cismas, para dominar suas dissidências.

é este princípio fundamental da política republicana, este princípio da liberdade de crença, que reclama a separação da Igreja do Estado e que importa necessariamente na liberdade do exercício do culto; é este princípio que me parece, profundamente, atingido pela aprovação do parecer do eminente e meu ilustre colega de faculdade, Prof. Haroldo Valadão.

Assim sendo, Senhor Presidente, concedo o mandado.

MANDADO DE SEGURANÇA 1.159 — DF

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, o ilustre ad-

vogado do requerente fez duas afirmações com as quais estou inteiramente de acordo. Primeiro, a de que o princípio da revogabilidade dos atos administra-tivos cessa quando do ato decorrem direitos para alguém. Não é possível que o Governo, unilateralmente, revogue ato seu de que resultem direitos para ou-trem. A outra afirmação, à qual adiro inteiramente, é a que se funda no art. 17, § 6º, dos Estatutos dos Funcionários Públicos, onde se dispõe:

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Memória Jurisprudencial

Homologado o concurso, serão também exonerados os interinos inabilitados.

Daí decorre, a contrario sensu, que os interinos habilitados não serão exonerados e terão de ser nomeados. E nomeado foi o requerente. Antes de to-mar posse, porém, no vigésimo dia, antes de decorridos os trinta dias para aquele fim, o Presidente da República revogou o decreto de nomeação. Parece-me que isso foi irregular. A exigência do estágio probatório de dois anos, para o funcio-nário nomeado em virtude de concurso, não autoriza a revogação do decreto de nomeação. A constituição, que prevalece sem dúvida sobre o Estatuto, dispõe:

Art. 188. São estáveis:I – depois de dois anos de exercício, os funcionários efetivos nomeados

por concurso.

Vê-se, por conseguinte, que, durante o estágio probatório de dois anos, o funcionário pode ser demitido, mas por não haver provado a sua capacidade para o exercício do cargo. Não me parece, porém, possível, que, unilateralmente, o Governo revogue seu ato. O decreto de nomeação não pode ter sua eficácia re-vogada sem um fundamento legítimo. é preciso haver um decreto de demissão. O fundamento legítimo seria a nulidade do concurso à falta dessa prova de in-vestigação social, que se requer para a habilitação dos candidatos. Não foi feita essa prova. O requerente, habilitado em concurso, devia provar sua capacidade para ser inspetor de alunos. Diz ele, porém, que, nomeado em caráter efetivo o interino aprovado em concurso, já demonstrara, na interinidade, a idoneidade moral necessária à função pública. Realmente, não parece admissível negar-se ao interino capacidade moral; do contrário, não teria sido conservado no cargo, deveria ter sido exonerado antes de inscrever-se em concurso. O indivíduo con-servado no cargo interino tem por si o reconhecimento do Governo quanto a sua idoneidade moral. Assim, o ato revogatório da nomeação, sem forma nem figura de processo administrativo regular, parece-me, infringe a norma legal, o preceito da lei. Regular seria a demissão durante o estágio probatório, mas não a revogação do decreto de nomeação. Se o funcionário nomeado por concurso não demonstrasse, durante os dois anos do estágio probatório, idoneidade moral para o exercício do cargo, então seria lícito ao Governo demiti-lo antes de ad-quirir ele a estabilidade.

O Sr. Ministro Macedo Ludolf (Relator): Quer dizer que V. Exa. admite que o Governo demita o funcionário nomeado por concurso antes de haver ele adquirido estabilidade?

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Admito.O Sr. Ministro Macedo Ludolf (Relator): E será necessário, para isso,

inquérito administrativo? A lei só exige o inquérito para o funcionário que haja adquirido estabilidade.

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Ministro Hahnemann Guimarães

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Entendo que, mesmo durante o estágio probatório, o funcionário não é demissível ad nutum. O funcionário nomeado por concurso nunca é demissível ad nutum. O estágio probatório tem por fim verificar a capacidade do funcionário para o exercício do cargo. Nessas condições, concedo o mandado de segurança, porque não me parece possível a revogação de ato administrativo de que decorreram direitos para terceiros, sem processo administrativo ou judicial regular.

VOTO(Explicação)

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, devo uma explicação ao eminente Ministro Macedo Ludolf, que, naturalmente, habituado a ver a severidade com que julgo os pedidos de mandado de segurança, talvez haja estranhado a facilidade com que concedi este.

Mas, Senhor Presidente, minha atitude decorreu do fato de haver encon-trado, no caso, nitidamente violado um direito líquido e certo.

é certo e líquido o direito que tem o candidato, habilitado em concurso e nomeado, a ser provido no cargo, não podendo ser dele afastado mediante uma simples revogação do ato administrativo da nomeação. Esse direito é líquido e certo. O Governo não pode revogar, unilateralmente, um ato seu de que de-correu direito para outrem. Esse direito é líquido e certo. O Governo não pode revogar, unilateralmente, um ato seu de que decorreu direito para outrem. Esse direito líquido e certo é que foi infringido, no caso.

O funcionário era interino. Foi, por força da lei, inscrito no concurso. Habilitou-se no concurso e foi nomeado. Quando decorria o prazo para a to-mada de posse no cargo, o Governo, por ato seu, por iniciativa própria, revogou a nomeação. Nisto é que vejo violação do direito líquido e certo que tinha o fun-cionário de ser provido no cargo, só podendo ser afastado se, durante o estágio probatório, não desse boa conta da sua competência, da sua capacidade para a função pública.

O ato do Presidente da República, demitindo o funcionário durante o estágio probatório, não pode ser um ato imotivado, porque o funcionário não é demissível ad nutum. O ato tem de ser justificado, não pode ser arbitrário, discricionário.

Assim, data venia, mantenho meu voto.

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Memória Jurisprudencial

APELAÇÃO CRIMINAL 1.420 — SP

A atividade terrorista exercida em obediência a convicções políticas, que excluíam admitir-se a derrota do Japão, constitui o crime definido no art. 3º, 16, do Decreto-Lei 431, de 18 de maio de 1938.

é, neste caso, competente para conhecer da ação penal a Justiça Comum.

O crime é político, e, assim, cabe ao Supremo Tribunal Federal o julgamento de segunda instância.

A sentença apelada está solidamente fundada nos fatos e atendeu rigorosamente à lei, quer na parte condenatória, quer na absolvição.

AcÓRDÃOVistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação criminal 1.420, de

São Paulo, em que são apelantes Issao Nakaya e outros, e o promotor público da comarca de cafelândia, sendo apelados os mesmos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal conhecer da apelação e negar-lhe provimento, por maioria de votos, em conformidade com as notas juntas.

Rio de Janeiro, 8 de setembro de 1948 — José Linhares, Presidente — Hahnemann Guimarães, Relator.

RELATÓRIOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Em denúncia datada de 10 de

setembro de 1946, o promotor público em comissão na comarca de cafelândia promoveu no Juízo de Direito ação penal contra Issao Nakaya, Fukushigue Sato, Massaru Sakuma, Shigueto Murakami, Massamite Ono, Matsubei Uyemura, Shizuka Sasaki, Katsuke Sakuma, Eizaburo Tsutya, Iassuo Ando, Rakaya Sutmatsu, Issao Sasaki, Saiti Ono, Tioshi Shiguemoto, Kaizo Makino, Nakatsu Shigueo, Kioto Okavati, Miichi Sato, Shiguematsu Miazaki, Sasaki Sadao, Toshio Saruhashi, Satoru Nava, Seiti Ito, Tomichi Sugavara, Kaneo Nava, Tioze Murakami, Mioke Murakami, Massao Vatabe, Massaaki yoshimatsu e Massashi yukimitsu, incursos nas penas do art. 288, parágrafo único, do código Penal, pois que se associaram sob os nomes Shindo Renmei o Tokkotai para assassinar japoneses que acreditassem e propagassem a derrota do Japão na última guerra (fl. 1).

Recebida a denúncia (2º vol., fl. 1) e cumpridos os mandados de prisão preventiva (fl. 1v. a fl. 11v. do 2º vol.), foi a denúncia aditada, em 17 de setembro

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Ministro Hahnemann Guimarães

de 1946, para se acrescentarem aos réus os japoneses Masuda Minoru, Toshio Ito, Naboru Nava e Toshio Saneshigue (2º vol., fl. 12v.).

Os réus foram citados e interrogados na audiência de 17 de setembro de 1946 (2º vol., fls. 13 a 19v.).

O aditamento à denúncia foi admitido pelo juiz em 19 daquele mês e ano (2º vol., fl. 19v.).

Prosseguiu o interrogatório em 19, 21, 23, 25 e 27 de setembro e 3 de ou-tubro de 1946 (2º vol., fls. 20 a 61).

Requereu-se, em defesa prévia, o depoimento de testemunhas nomeadas (2º vol., fls. 66v. e 67).

Em despacho de 25 de fevereiro de 1947, achou o juiz haver nos autos in-dícios de que os acusados, além do crime previsto no art. 288, parágrafo único, do código Penal, cometeram os delitos do art. 171 do mesmo código e do nú-mero 26 do art. III do Decreto-Lei 431, de 18 de maio de 1938; e, assim, nos termos do art. 384 e seu parágrafo do código de Processo Penal, ordenou que o Ministério Público tivesse vista dos autos (3º vol., fl. 2v.).

O promotor público ofereceu à denúncia a aditamento de 1º de março de 1947 (3º vol., fls. 3 a 4v.).

Entendeu o juiz ser competente para o processo, porque a disposição do Decreto-Lei 8.186, de 9 de novembro de 1945, não prevalecia em face do art. 108 da constituição (3º vol., fl. 4v.).

Depuseram testemunhas em audiências de 14, 15, 25 e 26 de abril, 10 e 14 de maio de 1947 (3º vol., fls. 9 a 43).

O réu Massaaki yoshimatsu foi interrogado em 22 de maio de 1947. Realizou-se no mesmo dia o interrogatório de Massashi yukimitsu (3º vol., fls. 44 a 47).

Em suas razões, o promotor público pediu a condenação dos 34 denun-ciados nas penas dos arts. 171 e 288, parágrafo único, do código Penal, assim como nos incisos 16 e 26 do art. 3º do Decreto-Lei 431 (3º vol., fls. 48 a 62v.).

Alegaram os réus que se encontravam presos preventivamente havia nove meses. Pelos depoimentos uniformes das testemunhas, os denunciados não pra-ticaram o crime a eles imputado. Ficou provado, de modo irrefutável, o seguinte: 1) os denunciados não tomaram parte, direta ou indiretamente, em nenhum dos crimes praticados em São Paulo por seus patrícios terroristas; 2) entraram para a sociedade Shindo Renmei convencidos de que tinha finalidades filantrópicas; 3) desligaram-se dessa sociedade logo que foram desvirtuadas suas finalida-des. Não se encontraram nem sequer indícios da responsabilidade criminal dos

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Memória Jurisprudencial

acusados, e, ainda que os houvesse, não autorizariam a condenação. As teste-munhas afirmaram que os acusados não têm nenhuma responsabilidade quanto aos crimes praticados pelos jovens Tokkotai. Os acusados são, na sua absoluta maioria, homens simples, da lavoura, que não costumam ler jornais, e que, por isso, ignoram o que vai pelo mundo. A Procuradoria-Geral do Estado já reconhe-ceu, aliás, que os sócios da Shindo Renmei estão isentos de culpa (fls. 63v. a 66).

Após diligências (fls. 66v. a 70), o Juiz, Dr. Bolivar Ferraz Navarro, proferiu a sentença de 12 de julho de 1947 (fls. 70 a 81v.), em que decidiu ter ocorrido no caso apenas o crime do art. 3º, inciso 16, do Decreto-Lei 431, e, assim, sem baixar o processo a cartório, nos termos do art. 383 do código de Processo Penal, alterou o conceito dos fatos admitido na denúncia com seus dois aditamentos. Todos os acusados têm bons antecedentes. considerou o Juiz a personalidade dos réus, em vista, principalmente, de seu fanatismo, e impôs as seguintes condenações: 1º) Fukushigue Sato, no grau máximo, cinco anos de prisão; 2º) Issao Nakaya, em cujo favor ocorre a menoridade, dois anos de prisão; 3º) Massaru Sakuma, quatro anos de prisão; 4º) Massamite Ono, três anos de prisão; 5º) Shizuka Sasaki, um ano de prisão; 6º) Iassuo Ando, quatro anos de prisão; 7º) Nakatsu Shigueo, três anos de prisão; 8º) Kioto Okavati, quatro anos de prisão; 9º) Miichi Sato, menor de 21 anos, três anos de prisão; 10º) Sasaki Sadao, três anos de prisão; 11º) Toshio Saruhashi, quatro anos de prisão; 12º) Mioke Murakami, um ano e meio de prisão; 13º) Massao Vatabe, um ano e meio de prisão; 14º) Massashi yukimitsu, menor de 21 anos, dois anos de prisão; 15º) Massaaki yoshimatsu, também menor de 21 anos, dois anos de prisão; 16º) Matsukey Uyemura, um ano de prisão; 17º) Satoru Nava, dois anos de prisão; 18º) Masuda Minoru, um ano de prisão; 19º) Ioshio Ito, um ano de prisão; 20º) Toshio Saneshigue, um ano de prisão; 21º) Naboru Nava, sete anos de reclusão, pois tentou assassinar na comarca de Birigui o japonês Tominaga (código Penal, art. 121).

O crime consistiu em que os acusados referidos fizeram parte da socie-dade Shindo Renmei, nascida em 15 de agosto de 1945, que, por intermédio do seu departamento de suicidas (Tokkotai), tinha finalidade terrorista. Alguns dos condenados subscreveram a representação de fl. 39 do 1º volume.

Foram absolvidos os outros treze acusados: Katsuke Sakuma, Issao Sasaki, Kaizo Makino, Shiguematsu Miazaki, Shigueto Murakami, Eizaburo Tsutya, Nakaia Sutmatsu, Saiti Ono, Tioshi Shiguemoto, Seiti Ito, Tomichi Sugavara, Kaneo Nava e Tioze Murakami.

Os réus e o promotor público apelaram (3º vol., fl. 82).Alegam os réus (3º vol., fls. 83v. a 85) que a sentença é nula, porque clas-

sificou os fatos como crime político, que não existe, pois não ficou provado

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Ministro Hahnemann Guimarães

terem os apelantes atentado contra a estrutura e a segurança do Estado. Não existe prova de homicídio ou tentativa desse crime por parte de qualquer dos apelantes. O delito é comum. Alguns dos apelantes podem estar incursos, apenas para argumentar, no crime do art. 288 do código Penal. Nem todos os apelantes pertencem à sociedade Shindo Renmei. A única pena aplicável seria a mínima prevista pelo mencionado do art. 288. Limitaram-se os apelantes a apontar ligeiramente alguns erros de técnica do processo.

O promotor público, em suas razões (3º vol., fls. 85 a 89v.), quer a reforma da sentença, na parte em que, sem indicar os motivos, rejeitou o pedido de con-denação pelos arts. 288, parágrafo único, e 171 do código Penal, assim como pelo art. 3º, inciso 26, do Decreto-Lei 431. Impugna ainda o Ministério Público a absolvição, porque todos os acusados por ela beneficiados foram membros da Shindo Renmei. O apelante juntou certidões fornecidas pela delegacia de polícia local, para provar a periculosidade dos réus absolvidos.

Os apelados ofereceram alegações contrárias (3º vol., fl. 98 e verso).Manteve o Juiz a prisão de Shizuka Sasaki, apesar de já ter cumprido a

pena, porque, até à sentença de segunda instância, se mantém a prisão preven-tiva decretada. No mesmo despacho de 27 de agosto de 1947, mandou o Juiz que se remetesse traslado dos autos ao Supremo Tribunal Federal (3º vol., fl. 100).

Mandou o Juiz que as apelações subissem em traslado, atendendo ao art. 601, § 1º, do código de Processo Penal, porque um dos réus condenados não apelou da sentença (3º vol., fls. 101v. e 102).

O Sr. Procurador-Geral da República opina que o crime é político, sendo o caso do recurso previsto no art. 101, II, c, da constituição; e que merece provi-mento a apelação do Ministério Público, ficando, assim, prejudicada a dos réus (3º vol., fl. 106).

VOTO(Preliminar)

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): De acordo com o adita-mento feito à denúncia em 1º de março de 1947 (3º vol., fls. 3 e 4v.), os fatos impu-tados aos réus constituiriam os delitos do art. 171 e do art. 288, parágrafo único, do código Penal, e do art. 3º, 16 e 26, do Decreto-Lei 431, de 18 de maio de 1938.

é competente para conhecer da ação a Justiça comum, pois, como deci-diu o Juiz (3º vol., fl. 4v.), a disposição do art. 1º, I, do Decreto-Lei 8.186, de 19 de novembro de 1945, foi derrogada pelo art. 108, § 1º, da constituição.

Os fatos expressamente constantes da denúncia e de seus aditamentos foram, segundo o preceito do art. 383 do código de Processo Penal, definidos

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Memória Jurisprudencial

como incitamento ou preparação de atentado contra a pessoa, ou bens, por mo-tivos políticos ou religiosos (Decreto-Lei 431, art. 3º, 16).

A definição foi exata, porque, em obediência a convicções políticas, que excluíam admitir-se a derrota do Japão, os condenados exerceram atividade ter-rorista, como demonstrou a sentença apelada.

O crime é político, porque, pelo atentado que se incita contra a pessoa ou seu patrimônio, se procura sufocar a liberdade assegurada à expressão de dou-trinas, de convicções políticas ou religiosas.

O bem lesado, a liberdade de opinião, de convicções, empresta ao delito caráter político, que também é inerente, no caso, ao elemento subjetivo, pois os agentes procuravam um fim político, patriótico, que se tornou censurável pelo emprego da violência e por serem falsas as idéias defendidas.

cabe, portanto, ao Supremo Tribunal Federal julgar, em recurso ordiná-rio, esse crime (constituição, art. 101, II, c).

Não se pode admitir a existência do estelionato (código Penal, art. 171), ou da quadrilha (código Penal, art. 288 e seu parágrafo), porque os fatos cons-titutivos desses crimes passaram a ser elementos para a atividade terrorista, que se tornou delito complexo.

A sentença está solidamente fundada nos fatos provados e atendeu rigo-rosamente à lei, quer na parte condenatória, quer na absolvição.

Somente na parte relativa a Naboru Nava, acusado de tentativa de homi-cídio, deve ser reformada.

Dispõe o citado inciso 16 do art. 3º do Decreto-Lei 431 que, “se o aten-tado se verificar”, aplicar-se-á a pena do crime incitado ou preparado.

VOTO (Preliminar)

O Sr. Ministro Laudo de camargo: Não são poucos os acusados, em sua maioria japoneses, abrangidos pela denúncia e seu aditamento.

Fazendo parte da sociedade Shindo Renmei, agiam em conformidade com a sua finalidade.

Trata-se de sociedade terrorista, com uma larga esfera de ação em todo o Estado de São Paulo.

As cidades de Tupã, Marília, Penápolis e capelândia foram dele logo teatro de façanhas dos seus membros, que, mesmo com sacrifício de vidas, pro-cura vam incutir no espírito dos seus adversários, ditos terroristas, a invencibili-dade do Japão na guerra em que se empenhara.

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Ministro Hahnemann Guimarães

A sua atuação foi toda contra a do bem político social, com menosprezo à nossa lei, que deixaram de observar, e desatenção às autoridades, que não acatavam.

Era o próprio Estado que vinha a ser visado, como os atentados à sua segurança.

Tenho, pois, para mim que se trata de delito político, e, por isso mesmo, da alçada do Supremo Tribunal é apreciá-lo, em recurso ordinário, de acordo com a preceituação constitucional (constituição, art. 101, II, c).

VOTO(Preliminar)

O Sr. Ministro Barros Barreto: Senhor Presidente, sou Relator da Acr 1.422, também de São Paulo, que trata de hipótese idêntica à presente. Nestas condições, peço permissão para adiantar logo o meu pronunciamento, acerca da preliminar, entendendo que o crime não é político, como se verá em seguida.

Em certo processo instaurado contra um grupo de fanáticos, no Município de casa Nova, Estado da Bahia, o extinto Tribunal de Segurança Nacional sus-citou conflito negativo de jurisdição, perante a egrégia Suprema corte, pois, considerando de natureza comum os crimes cometidos pelos indiciados, haviam divergido do Dr. Juiz da comarca de Juazeiro quanto à classificação dos delitos no art. 3º, XVI, do Decreto-Lei 431, de 18 de maio de 1938.

Dito conflito tomou o número 1.267, e o Supremo Tribunal Federal, na sessão de 12 de julho de 1939, por unanimidade de votos, decretou a compe-tência da Justiça comum, consoante se vê do acórdão relatado pelo preclaro Ministro carvalho Mourão e inserto na Revista dos Tribunais, vol. 123, p. 247. Ficou ressaltado, então, que, para a configuração do crime sui generis, definido no citado dispositivo penal, mister seria a ocorrência de atos potencialmente capazes de abalar a ordem interna da nação; vale dizer, que o atentado contra pessoa ou bens, por motivos doutrinários, políticos ou religiosos, tenha reper-cussão nacional.

creio não me equivocar, com o afirmar que, em vários julgamentos de habeas corpus e sempre no mesmo sentido, têm sido as decisões desta colenda corte Suprema.

Em virtude da Lei constitucional 14, de 17 de novembro de 1945, extin-guindo o aludido Tribunal de Segurança – que tive a honra de presidir desde a sua instituição – e, na conformidade do Decreto-Lei 8.186, de 19 de novembro de 1945, passaram à competência dos juízes dos tribunais militares o processo e julgamento dos crimes que, por definição ou equiparação legal, atentaram con-tra a personalidade internacional, a estrutura e a segurança do Estado e contra a

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ordem social (art. 1º, I). Mas, a partir da promulgação da carta Magna vigente, modificou-se a situação, eis que, somente para a repressão de crimes contra a segurança externa do País ou a instituições militares, pode-se estender aos civis, nos casos expressos em lei, o foro militar especial, por força do art. 108, § 1º.

De sorte que, e na falta de outra jurisdição, compete à Justiça comum o processo e julgamento dos demais delitos, ressalvados os eleitorais e os co-muns que lhe forem conexos, e bem assim os casos especialíssimos, previstos na constituição de 1946, tendo esta outorgado ao Supremo Tribunal Federal a com-petência para julgar, em recurso ordinário, os crimes políticos (art. 101, II, letra c).

Ora, são de associação criminosa e de co-participação em homicídios, tentativas de morte e lesões corporais as imputações pelas quais responderam os acusados, membros da Tokkotai (Pelotão de Suicidas), ligada ou subordinada à organização secreta denominada Shindo Renmei.

Tais sociedades de nipônicos tinham por objetivo, conforme declararam alguns denunciados, a eliminação de patrícios que faziam propaganda derrotista do Japão ou do seu imperador, e, no dizer de outros, o assassínio dos elementos da colônia que enriqueciam ilicitamente, explorando os compatriotas pobres ou excluindo-os dos benefícios que as suas riquezas podiam proporcionar.

Jamais, porém, se apurou o caráter político visado pelos agentes, como atentado, ainda que indireto, contra a personalidade internacional do Estado, a ordem política, assim entendido o praticado contra a estrutura e a segurança do Estado, e a ordem social, como tal considerada a estabelecida pela constituição e pelas leis, relativamente aos direitos civil e penal, ao regime jurídico da proprie-dade, da família e do trabalho, à organização e ao funcionamento dos serviços públicos e de utilidade geral; aos direitos e deveres das pessoas de direito público para com os indivíduos, e reciprocamente (art. 1º do Decreto-Lei 431, de 1938).

E, por não se aplicar à espécie o estatuído na letra c do invocado preceito constitucional, é incompetente o Supremo Tribunal Federal para julgar o pre-sente recurso.

À vista do exposto, preliminarmente deixo de conhecer da apelação, remetendo-se os autos ao ilustre Tribunal de Justiça de São Paulo, para os devidos fins.

VOTO(Preliminar)

O Sr. Ministro Annibal Freire: Senhor Presidente, na qualidade de Revisor da Acr 1.422, também de São Paulo, tive, como o Sr. Ministro Barros Barreto, Relator daquele caso, ocasião de estudar a matéria debatida na preliminar de tra-tar-se ou não de crime político e da competência deste Supremo Tribunal Fe deral. Devo, assim, igualmente, manifestar antecipadamente o meu ponto de vista.

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Ministro Hahnemann Guimarães

Os primeiros apelantes foram pronunciados pelo Juiz de Direito de cafelândia, uns nas penas do art. 121, c/c o art. 25, do código Penal, outros como incursos nas penas do art. 288, parágrafo único, do mesmo código.

Da sentença de pronúncia recorreu a Justiça Pública.No parecer exarado sobre o recurso, o Dr. Subprocurador-Geral do

Estado declarou:com exceção de Kisso ymai e da vítima, os demais indivíduos mencio-

nados pertenciam uns à organização Shindo Renmei e outros à Toko-tai, que pretendiam subverter pela violência a ordem legal, impondo num Estado sobe-rano a soberania de entidades estrangeiras e nitidamente sectárias. Pretendiam tais organizações, em suma, coartar as liberdades públicas, como se estivésse-mos em um país antidemocrático ou totalitário da esquerda ou da direita.

Opinou então que, na hipótese em exame – crime político –, o julgamento compete ao Juiz singular, porquanto os crimes dos acusados foram além de homi-cídio e tentativa de homicídio, o do art. 3º, inciso 16, do Decreto-Lei 431, de 1938.

O Juiz acolheu esse parecer (decisão de fl. 338) e afinal condenou os ape-lantes como incursos nas cominações do art. 3º, inciso, do referido Decreto-Lei 431, c/c o art. 121 do código Penal. Entendo que a conceituação adotada pela sentença apelada tem fundamento jurídico e atende à prova evidente dos autos.

A noção do crime político continua a desafiar a argúcia e penetração dos doutrinadores.

Von Listz afirmou, há dezenas de anos:Em toda a parte se observa este fenômeno: só lentamente e depois de

repetidos reviramentos de opinião, a legislação e a ciência chegam a uma discri-minação firme e jurídica das diversas espécies de crime político.(Tratado de direito penal alemão, tradução de José Higino, 1899.)

O decurso do tempo não permitiu que se concretizasse em fórmulas de-finitivas a afirmação do insigne tratadista. Perdura a complexidade do assunto, pelas várias modalidades, que a figura delituosa apresenta.

A implantação dos regimes autoritários contribuiu para tornar mais acesa a controvérsia, conforme salientou Donnedieu de Vabre (La crise moderne du droit pénal, 1938).

No estado atual da doutrina, conforme observa Altavilla, três doutrinas se apresentam:

a) a teoria objetiva, que se limita a criar uma relação entre o direito lesado e a unidade do delito;

b) a teoria subjetiva, que tem em conta principalmente o móvel do delito;

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Memória Jurisprudencial

c) a teoria mista, que aproveita os dois elementos.Florian resumiu a última em termos nítidos:

O critério isolado da qualidade do bem que o delito ofende é critério pri-mário, pois penetra intimamente na extensão jurídica do Estado. Mas o critério do delito não basta; o delito deve ser positivo objetiva e subjetivamente.(Parte generale del diritto penale, 1934.)

Na hipótese dos autos, os apelantes pertenciam a organizações com-postas de elementos estrangeiros, penetrados de sectarismo intransigente, que culminava na eliminação sumária dos que se antepusessem ao seu credo. Essas associações terroristas, nitidamente ilícitas, substituíam-se em certas circuns-tâncias aos órgãos do Estado soberano.

A repercussão desse movimento nefasto afeta fundamentalmente a or-dem pública, na sua esfera jurídica, na sua esfera social, na sua esfera política. cabe aqui relembrar a lição de Wantrain-cavagnari, invocada por Zerboglio, em assunto correlato:

Quanto il legislatore forma dei delitti contra l’ordine publica, una classe speciale di dilitti, non considera evidentemente l’effetto comune a tutti i reati di produsse una perturbazione nell’animo della generalitá dei cittadini, lecusi riguarde il turbamento dell’ordine pubblico como un affetto immediato, dovute all condizioni intrinseche del fatto commesso, indipendentemente del pericolo remoto o immediato ch’esso puo rappresentare.(I dilitti contra l’ordine.)

O Supremo Tribunal Federal teve oportunidade de decidir um caso de re-levo, pertinente à aplicação do inciso 16 do art. 3º do Decreto-Lei 431, de 1938. Tratava-se de um grupo de fanáticos, chefiados por um “iluminado” que, no interior do Estado da Bahia, cometeu vários assassínios.

Em lúcido acórdão, prolatado pelo fulgurante Ministro carvalho Mourão, ficou consagrado o princípio constante da ementa:

Para que se configure o crime definido no inciso 16 do art. 3º do Decreto-Lei 431, de 18 de maio de 1938, é mister que o atentado contra pessoas por motivos doutrinários, políticos ou religiosos, tenha repercussão nacional; com-preende esse dispositivo a delinqüência sectária, que exalta como dever e até como ato de heroísmo a violência contra os que não compartilham do mesmo credo.

O caso dos autos, pelos seus contornos, se enquadra no espírito constru-tivo da decisão judiciária.

Não há negar a repercussão que em todos os círculos de opinião, mor-mente no Estado de São Paulo, produziram o conhecimento da existência de tais

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Ministro Hahnemann Guimarães

organizações terroristas e a revelação dos fatos criminosos, que, na execução do seu odioso programa, perpetram os seus militantes.

Tínhamos saído de uma guerra cruenta, na qual formamos parte contra o predomínio do Eixo. Estávamos de relações diplomáticas interrompidas com o país de origem dos terroristas. O credo do “Japão invencível”, levado até aos extremos do assassínio, representava, assim, um ultraje à nossa sensibilidade e um desafio à nossa consciência jurídica.

Nestas condições, preliminarmente, considero político o crime e, por-tanto, competente o Supremo Tribunal Federal.

VISTAO Sr. Ministro Armando Prado: Senhor Presidente, peço vista dos autos.

VOTO(Preliminar)

O Sr. Ministro Armando Prado: Pela infiltração étnica e pela conquista, costumam as raças fortes debelar a autonomia dos povos fracos e dos povos in-capazes de progresso. A conquista é rápida e cruel. Pode desencadear-se a qual-quer momento e por qualquer pretexto. A infiltração é lenta e sorrateira. Não suscita logo desconfianças nem assanha protestos. Desenvolve ação insinuante, sossegada e terrível como a do mata-pau, a cujo abraço lentamente progressivo perecem sufocadas robustas e altivas árvores da floresta. Por isso mesmo, é a infiltração étnica o processo mais seguro e menos arriscado de prevalência de uns povos sobre outros.

Tem ele dois agentes principais: o capital estrangeiro e o imigrante inassi-milável. Aquele, apoderando-se das fontes da riqueza nacional, pelos processos de aquisição que as leis lhe facultam, e assenhoreando-se das rendas públicas pelos canais dos empréstimos, domina as elevações estratégicas da existência nacional. Este ataca o idioma e os costumes do povo que o acolhe e ao qual se vai substituindo vagarosamente, corrói-lhe o patriotismo com a carcoma da dupla nacionalidade, debilita-lhe a energia racial, sobretudo quando se imiscui num agrupamento humano como o brasileiro, que, pelos estudos de antropoge-nia até agora feitos, permanece num como estado de sincretismo étnico, pois não adquiriu ainda completa estabilidade e homogeneidade, não inteirou e unificou um só tipo capaz de resistir a todas as influências e de vencer todos os atritos a heteróclita dosagem das raças de que é oriundo nem dominou comple-tamente os fatores mesológicos que terá de fazer com que operem no sentido do seu fortalecimento, o que só conseguirá por meio de operações longas, persis-tentes e melindrosas de fusão étnica e de formação psicológica e moral de uma

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consciência cívica esclarecida, que não se retarda nem vacila na compreensão dos destinos do Brasil e nos meios seguros de orientá-los no sentido do aperfei-çoamento cultural a que são chamados.

Um tanto esquecido desse problema, porque premido pela necessidade de povoar o seu território imenso e explorar as riquezas por ele espalhadas, das quais precisa com alucinadora urgência, para sofrear a crise econômica e financeira em que se debate há já tantos anos, o Brasil tem sido um país de portas abertas a todos os estrangeiros, mas de política imigratória titubeante e freqüentes vezes errada.

Formaram-se no seu território, sobretudo na parte meridional, grandes e compactos enquistamentos de estrangeiros impermeáveis à língua, à cultura e aos costumes nacionais.

Dado o pequeno poder de assimilação dessas âduenos pela população brasileira ainda não completamente caldeada, os núcleos alienígenas, a que me refiro, serão ameaça gravíssima à unidade nacional, se por todos os meios pre-ventivos e repressivos, não forem reduzidos, com prudência mas inflexibilidade, por um processo de abrasileiramento integral.

Enfraquecida a fluência de elementos provenientes das nações latinas, tão aproximadas da população brasileira pela formação psicológica, moral, religiosa e jurídica, pela educação política, pelos hábitos e costumes e pelas tradições históricas, foi preciso acolher a imigração asiática, em cujo fluxo os japoneses preponderaram.

A introdução desse grupo antropológico no rol dos materiais étnicos destinados à construção da nossa nacionalidade oferece, ao lado de inegáveis vantagens, sérios embaraços ao processo de assimilação.

Apropriando-se rapidamente de todas as conquistas da cultura ocidental, o Japão modernizou-as sem perder nenhuma das características da sua unidade racial, cimentada pela obra dos séculos, no mistério do isolamento nos confins da Ásia, à margem da corrente da história dos povos ocidentais.

Era, em 1866, um povo mediévico mergulhado no mais extravagante romantismo feudal. Em 1899, equiparava-se, num salto espantoso, às mais modernas nações da Europa, cujos progressos, comparados ao desse pequeno povo mongólico, pareciam canhestros e hesitantes (Wells-Esquisse de L’Histoire Universelle, chap. XXXVIII, n. 11).

O japonês moderno é operoso, inteligente, disciplinado, metódico, espe-cializado e obediente. Apesar da forte densidade da população de seu país de origem, o nipônico que emigra raramente pode ser recusado por pauperismo. Traz ele consigo forte noção de higiene, cujos preceitos se espalham até nas

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camadas mais baixas. O que mais o recomenda para fator de povoamento do Brasil é, porém, a sua predileção pelas fainas agrícolas. O japonês é risonho e insinuante, mas impenetrável. Unidos por uma solidariedade granítica, tenazes e pacientes em seus desígnios, estóicos em seus infortúnios, os japoneses resis-tem a todos os processos de absorção (Brenno Muniz de Souza – Imigração e Indesejáveis – Rev. do Brasil, vol. IX, n. 34).

é esse o maior perigo que oferece para o Brasil a imigração nipônica, que a cegueira de nossa política econômica deixou que se concentrasse em certas regiões do Estado de São Paulo, sobretudo na zona onde surgiu, como era fatal que surgisse, a Shindo Renmei, que, aliando japoneses e brasileiros filhos de ja-poneses, tinha por finalidade manter o espírito nipônico entre os imigrantes ja po- neses e seus descendentes nascidos no Brasil.

Basta este propósito de impedir a assimilação étnica até mesmo dos fi-lhos de japoneses para que se possa avaliar a nocividade dessa associação.

A Shindo Renmei não se limitou a essa obra surda de criar empecilhos à nacionalização dos japoneses radicados no Brasil, contrariando assim aberta-mente os postulados inscritos no art. 2º do Decreto-Lei 7.967, de 18 de setembro de 1945, que, na admissão de imigrantes, mandam atender à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes de sua ascendência européia, assim como a defesa do traba-lhador nacional.

A rendição incondicional do Japão, na última guerra, em que foi inimigo do Brasil, levou a Shindo Renmei a adotar um programa terrorista, para punição de todos os nipônicos que acreditassem na derrota do Império e que não pro-clamassem a invencibilidade de suas forças armadas e a divindade do Micado. A tenebrosa associação ramificou e surgiram os Tokkotai, o grupo dos suicidas, dos indivíduos dispostos a ir até o supremo sacrifício da vida, para a realização de suas missões abomináveis, os quais recebiam armas dos seus chefes e eram escalados para matarem os japoneses e seus descendentes que se não mostras-sem persuadidos da vitória do Japão.

Muitos dos atentados preconcebidos realizaram-se, outros falharam por circunstâncias independentes da vontade dos fanáticos matadores.

A sociedade constituiu-se no dia 15 de agosto de 1945 (fls. 105 e 71 da sentença) em pleno estado de guerra, declarado pelo Decreto 18.811, de 6 de junho do referido ano, entre o Brasil e o Império do Japão, e só suspenso pelo Decreto 19.955, de 16 de novembro do mesmo ano.

Essa circunstância, a que o Sr. Ministro Annibal Freire deu grande re-levo, no seu brilhante voto, concorre muito para acertar a capitulação do crime por que respondem os réus, autores de atentado, isto é, de crime que causa

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indignação, ou porque revele intuitos depravados no delinqüente, ou porque seja praticado contra quem ou contra aquilo que é geralmente venerado (Rocha Pombo, Dicionário de Sinônimos).

O que os membros da quadrilha sinistra andaram fazendo foi tudo quanto de mais diretamente poderiam cometer contra interesses vitais do Brasil e con-tra a sua segurança até mesmo internacional. Os atos de fanatismo homicida, levados a efeito com ânimo deliberado e frio, numa fase melindrosíssima da vida nacional, comocionaram profundamente todo o Brasil. Eles se enquadram no conceito amplo e feliz que o eminente Ministro carvalho Mourão deixou assinalado no cJ 1.267, da Bahia. Foram atentados oriundos de motivação polí-tica e religiosa, proveniente da crença na invencibilidade militar do Japão e na divindade do seu Imperador. Se não fossem pronta e inexoravelmente coibidos, gerariam incompatibilidades e ódios entre os grupos de opinião diversa; susci-tariam conflitos gravemente comprometedores da paz pública, porque a reação dos ameaçados e a das famílias das vítimas seria natural; semeariam germes de futuras discórdias e até de guerra civil, tal o número de japoneses que, na zona onde os atentados terroristas se deram, se eleva a alguns milhares de indivíduos, em aumento contínuo, pois se trata de gente prolífera, dentro de um enquista-mento racial, que se há de ir debelando por meios pacíficos e moderados e por processos mais severos de repressão, quando necessários ao bem-estar e à saúde da nacionalidade. Era delinqüência sectária, que exaltava, como dever e como ato de heroísmo, a violência, levada até o assassínio, pelo braço armado de adul-tos e de menores contra os que não partilhassem certo credo alucinado e abo-minoso. Eram atos potencialmente capazes de abalar a ordem interna da Nação.

Afastando-me, com a devida vênia, do brilhante voto do Sr. Minitro Barros Barreto, eu penso que os crimes de que trata o processo foram acerta-damente capitulados pela sentença no art. 3º, 16, do Decreto-Lei 431, de 18 de maio de 1938, pelo que me manifesto pela competência deste Tribunal para co-nhecer do recurso ordinário.

VOTO(Preliminar)

O Sr. Ministro Ribeiro da costa: Senhor Presidente, os votos proferi-dos pelos Srs. Ministros Hahnemann Guimarães, Laudo de camargo, Annibal Freire e, agora, pelo Sr. Ministro Armando Prado, com a devida vênia do Sr. Ministro Barros Barreto, deixam claro tratar-se, na espécie, de crime po-lítico. A natureza da infração, as circunstâncias que levaram os pacientes à prática do crime, os autos de rebeldia e, sobretudo, como assinalou com muita propriedade o eminente Sr. Ministro Annibal Freire, a organização de socieda-des que se propunham a subverter a ordem pública, substituindo-se às autori-dade legitimamente constituídas no País, levam a esta conclusão.

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Esta só consideração, a meu ver, seria suficiente para se classificar a prá-tica desse crime, oriundo da organização dessas associações, como crime defi-nidamente de caráter político.

Assim, meu voto, data venia do Sr. Ministro Barros Barreto, é acompa-nhando os Srs. Ministros Hahnemann Guimarães, Laudo de camargo, Annibal Freire e Armando Prado.

VOTO(Preliminar)

O Sr. Ministro Edgard costa: Senhor Presidente, com a devida vênia dos meus eminentes colegas, acompanho o voto do Sr. Ministro Barros Barreto.

Não enxergo nos crimes imputados aos apelantes qualquer caráter de cri- me político, nem considero, sob o critério objetivo ou sob o critério subjetivo, como político o fim, o escopo por eles, agentes, tido na prática desse crime.

Os crimes imputados aos apelantes podem ser considerados como de terrorismo; mas não pretenderam substituir, com a prática do delito, a qualquer autoridade pública, nem, de qualquer modo, atentaram contra os direitos primá-rios do Estado, da sua integridade, da sua própria segurança.

Os crimes se me afiguram crimes comuns, previstos no código Penal comum ao cogitar dos “crimes contra a paz pública”, ao se associarem mais de três pessoas para tal fim.

Foi o que fizeram esses japoneses: associaram-se para a prática de cri-mes, levados por um móvel que diz respeito às tradições do seu próprio povo e da sua própria ideologia.

Não considerando o delito praticado como crime político, data venia dos meus eminentes colegas, acompanho o voto do Sr. Ministro Barros Barreto.

VOTO(Preliminar)

O Sr. Ministro Goulart de Oliveira: Senhor Presidente, na forma dos meus votos anteriores, acompanho o Sr. Ministro Relator.

VOTO(Preliminar)

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Senhor Presidente, com respeito à pre-liminar, causa finita est, o problema está resolvido pela maioria dos votos deste Tribunal. De modo que meu voto nenhuma contribuição poderá trazer, nem qua-litativa, nem quantitativamente. Entretanto, o dever de declarar minha opinião a

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respeito leva-me, data venia dos Exmos. Srs. Ministros Barros Barreto e Edgard costa, a dar o meu voto à corrente que entende ser caso de crime político.

Ninguém ignora que se trata de noção atormentada, a ponto de um autor moderno dizer que ainda está em vias de formação. Mas a nossa lei, se não dá a definição do crime político, ministra critérios pragmáticos orientadores do con-ceito, considerando políticos não só os que atingirem a personalidade internacio-nal do Estado como a sua estrutura, e quando se verificam contra a ordem social.

Se os dois primeiros termos têm certa rigidez, já o último se presta a certa variedade, porque, entre outros, cabem aí, e por assim dizer, critérios históricos, derivados da situação política especial por ocasião da prática dos delitos.

No caso dos autos, é inútil nos inclinarmos, seja à escola objetiva, seja à escola subjetiva, ou, ainda, preferir o sistema eclético, que visa conciliar os dois sistemas, por um meio termo moderado e virtuoso. O que se tem de verificar é se o crime se enquadra entre os que atentam contra a ordem social. Parece-me que é neste particular que têm razão os eminentes colegas vencedores, o crime é contra a ordem social brasileira.

A Shindo Renmei é uma espécie de sebastianismo, mas, em vez de se per-der em sonhos vagos, assume forma agressiva e violenta, a ponto de constran-ger a liberdade de pensamento e, ainda mais, pretender criar um Estado dentro do Estado, arrogando-se o poder absoluto de impor, sob pena de extermínio, certa crença política ou patriótica. Bastaria esta atitude, para dar colorido de crime político ao caso dos autos. Mas ainda tem realce a circunstância de que se tratava, como disse o Exmo. Sr. Ministro Annibal Freire, de nacionais de país que tinha sido vencido em guerra externa, de potência inimiga do Brasil, e que perseguiam grupos de indivíduos no Brasil, visando firmar, dentro da pátria brasileira, a sua soberania, a ponto de julgar os compatriotas que não partici-passem da crença da invencibilidade do Japão. Tudo isso, pois, se passava em detrimento da soberania do Brasil.

O caso dos autos, ainda que ofereça margem a debate – e o ilustre advo-gado o versou com brilhantismo e os eminentes colegas o elucidaram em todas suas faces – é de crime político, por ser pertubador da ordem social brasileira.

Estou, assim, com os votos vencedores.

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): A disposição do art. 3º,

16, do Decreto-Lei 431 não pode prevalecer, quando o caso é de atentado contra a vida, pois que, nos termos do art. 141, § 28, da constituição, competente é o Júri. Essa competência tem de ser reconhecida em face da redação dada pelos arts. 2º e 3º da Lei 263, de 23 de fevereiro de 1948, aos arts. 74, § 1º, e 78, I, do código de Processo Penal.

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Nego, assim, provimento à apelação do Ministério Público e dou, em parte, provimento ao recurso dos réus, para excluir da condenação Naboru Nava, que terá de responder à ação penal em processo dos crimes de competência do Júri.

VOTOO Sr. Ministro Laudo de camargo (Revisor): Reconhecida a competência

do Supremo, dou provimento à apelação da Promotoria Pública, nos termos do parecer do Sr. Dr. Procurador-Geral, para incluir na condenação, segundo o pe-dido, os acusados mencionados à fl. 81.

contra eles há as próprias declarações prestadas e corroboradas por outros elementos colhidos no processo, como o mostrou o representante do Ministério Público às fls. 88 e seguintes.

Quanto aos demais acusados, abrangidos pela condenação, que se apoiou em provas dos autos, nada há a deferir na pretensão veiculada pelo recurso que interpuseram e a que nego provimento.

EXPLIcAÇÃO (1ª) O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Senhor Presidente,

devo esclarecer o Tribunal na parte concorrente à absolvição. A esse respeito, disse o Juiz, considerando os treze acusados absolvidos:

Depois do exame cuidadoso que fiz do processo e após haver pesado bem tudo que, contra estes denunciados, alinhou o Dr. Promotor Público, cheguei à conclusão de que devo absolvê-los. De fato, não há, nos autos, prova suficiente de haverem estes acusados incitado ou preparado qualquer atentado contra bens ou pessoas, por motivos políticos, doutrinários, ou religiosos.

O Juiz fez exame minucioso de todos os depoimentos dos acusados e das testemunhas. Não encontrou elementos para a condenação dos acusados. Por isso, mantenho a sentença de primeira instância, também quanto à absolvição. Só a reformo na parte relativa a Naboru Nava, condenado por tentativa de homi-cídio, que julgo pertencer ao conhecimento do Júri.

VOTOO Sr. Ministro Armando Prado: Senhor Presidente, sei bem quanto é di-

fícil divergir dos votos autorizados dos eminentes Srs. Ministros Hahnemann Guimarães e Laudo de camargo. O pedido de vista que formulei proporcionou-me ensejo de ler, minuciosamente, os três volumes de autos nos quais se com-pendiam, abundantemente, todos os elementos próprios para se firmar uma convicção. Eu me persuadi, como disse no meu voto em relação à preliminar, de que se trata de crime político e, neste sentido, a maioria do Tribunal se

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pronunciou. O crime foi, portanto, considerado crime político e não delito co-mum. Nestas condições, data venia, tenho a impressão de que o pronunciamento do egrégio Tribunal, em sua maioria, afastou a competência do Júri com relação a Nabor Nava, acusado de tentativa de homicídio. Não concordo, portanto, nesta parte, com o voto brilhante do eminente Sr. Ministro Relator. Não aceito, no ca- so, a competência do Júri, mas da autoridade judiciária chamada a julgar, no caso, o delito considerado como crime político. Divirjo, também, data venia, doeminente Sr. Ministro Laudo de camargo. Neste ponto, acompanho o voto do eminente Sr. Ministro Relator. confirmo a sentença pelos seus fundamentos, minuciosamente expostos, com relação aos trezes delinqüentes que, de acordo com a apelação do Ministério Público, deviam ser incluídos na condenação e, no entanto, foram absolvidos. Meu voto, pois, é este: nego provimento às ape-lações para confirmar inteiramente a sentença e dou pela competência do juiz singular quanto ao julgamento de Nabor Nava.

VOTOO Sr. Ministro Ribeiro da costa: Senhor Presidente, a questão está defi-

nida em dois campos opostos: o eminente Sr. Ministro Hahnemann Guimarães entende que, embora se tratando de crime político, mas tendo havido a prática de um delito doloso contra a vida, é competente o Tribunal do Júri, em obe-diência ao que dispõe o art. 141, § 28, da constituição vigente; o eminente Sr. Ministro Laudo de camargo, confirmando a sentença de primeira instância, atende à conceituação do crime político, pela sua intenção dolosa, mantendo, assim, a competência do juiz singular. O meu voto acerca da aplicação do pre-ceito constitucional apresenta pontos de contato com o caso ora exposto, tem sido sempre no sentido de lhe guardar o maior resguardo, mesmo porque as suas palavras são tão claras que dificilmente ao juiz seria dado transpor a inten-ção flagrante do legislador constitucional, quando diz: “Será obrigatoriamente da sua competência (isto é, do Júri), o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.” Mas a expressão constitucional, mesma, parece estar a indicar uma dife-rença, quando diz: “crimes dolosos contra a vida.” Parece-me querer o legisla-dor constituinte que só os crimes dolosos contra a vida sejam, exclusivamente, da competência do Tribunal Popular e não, assim, os crimes cujo dolo essencial, primordial, prevalecente não seja este, como na espécie. O crime de que se trata é um crime doloso, mas cuja intenção é de essência política. Assim, parece-me que a natureza do crime político arrasta em si, na matéria de competência, até mesmo os julgamentos do caso em que, com intenção de praticar um crime po-lítico, comete o agente, com esse, um crime contra a vida, também. Não seria, essencialmente, o delito doloso contra a vida, mas seria, ao contrário, essen-cialmente, um crime político, no qual se praticariam várias outras modalida-des de delitos, sejam quais forem. Mas, se o móvel inicial do delito é o crime

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Ministro Hahnemann Guimarães

político, parece-me que a competência reservada para o julgamento desse delito deve ser mantida, mesmo em face da preceituação constitucional, que admite, a meu ver, só faça essa distinção. Assim, data venia do eminente Sr. Ministro Relator, acompanho o eminente Sr. Ministro Revisor, nesta parte, e, divergindo de S. Exa., nego provimento a ambos os recursos para manter a decisão de pri-meira instância, sem inclusão dos treze indiciados que foram absolvidos, na pena pedida pelo Ministério Público.

VOTOO Sr. Ministro Edgard costa: Senhor Presidente, vencido na preliminar,

no mérito concordo com o Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, votando pela competência do Júri para o julgamento do crime, porque se trata de crime polí-tico, conexo com crime comum contra a vida, cujo julgamento, por disposição expressa da constituição, cabe ao Júri. Trata-se, portanto, de competência cons-titucional que arrasta a competência comum. Atenda-se ainda que por se tratar, exatamente, de crime político, é o Júri o tribunal mais próprio para o respectivo julgamento.

Acompanho, pois, o Sr. Ministro Relator, nesta parte, dando provimento aos recursos.

VOTOO Sr. Ministro Goulart de Oliveira: Senhor Presidente, a matéria de com-

petência do Júri tem sido apreciada pelo Supremo Tribunal em julgamentos anteriores. No exame do que dispõe a constituição de 1946, terá de impres-sionar ao intérprete o texto do art. 78 do código de Processo Penal defronte ao art. 141 da constituição, tendo em vista que a Lei 263 veio regulamentar o dispositivo constitucional. Toda a matéria, enfim, está desafiando um exame mais meticuloso, mais demorado em relação à competência do tribunal popular, especialmente quando se tem dado a ela uma extensão que diz respeito à própria situação do País, envolvendo um perigo, denunciado, aliás, por alguns membros do Ministério Público nos Estados, os quais têm defrontado questões precisas, concretas de julgamento locais. Na hipótese, a questão se esboça característica em se tratando de um indiciado que teria cometido um crime político, segundo a afirmação já da maioria do Tribunal, e que teria, ao mesmo tempo, praticado um delito contra a vida. Especialíssimo o problema que se delineia e que foi objeto da discussão. com a manifestação desse perigo que a mim também impressiona, como jurista e como juiz, tenho de encarar a situação. Não me detenho diante das considerações do eminente Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, com a de-vida vênia, para ficar com a opinião daqueles que excluem da competência do Júri esses delitos, embora contra a vida praticados com uma intencionalidade

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muito mais lata não de atentado contra a pessoa, mas contra a própria segurança e integridade do País. confirmo, pois, a decisão recorrida, acentuando a situa-ção que apontei no início do meu voto. Nego provimento às apelações.

VOTOO Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Senhor Presidente, posto se trate

de crime político, segundo esclarecimento dado pelo eminente Sr. Ministro Relator, cabe o seu julgamento ao Tribunal do Júri, pois que também é caso de crime doloso contra a vida. A constituição, em termos peremptórios, desenga-nados, generalíssimos, atribuiu ao Júri a competência obrigatória para esses ca-sos. Este o seu douto pronunciamento. é exato que a constituição assim o fez, e os termos de lei não comportam, ao primeiro súbito de vista, qualquer distinção. Entretanto, logicamente, adotado o critério de ver nas disposições da Lei Maior unidade orgânica em que os dispositivos se interpenetram, é outra a conclusão a que chego. Porque a constituição do mesmo passo em que dá ao Júri aquela competência obrigatória e exclusiva, atribui ao Supremo Tribunal julgar, em grau de recurso, os crimes políticos. Ora, as decisões do Júri não comportam recurso, em tese. Os seus pronunciamentos são derradeiros, via de regra. O que se tem admitido, data venia, contra o meu modesto modo de entender, é a con-vocação do Júri para novo julgamento, para revisão do caso, por ele próprio. Este mesmo entendimento está a mostrar que, no sistema da constituição, os crimes políticos não cabem na competência do Júri porque seus julgamentos são irrecorríveis. E ao Supremo Tribunal compete, em recurso, julgar os crimes po-líticos. Eis por que o eminente Sr. Ministro Relator permitirá que acompanhe os votos que divergirem do seu lúcido pronunciamento, a fim de negar provimento a ambas as apelações.

VOTO(Retificação)

O Sr. Ministro Edgard costa: Senhor Presidente, com a devida vênia do eminente Sr. Ministro Relator, eu me rendo ao argumento aduzido pelo emi-nente colega, Ministro Orozimbo Nonato, no sentido de que a competência constitucional deste Tribunal para o julgamento de recursos de crimes políticos não se pode conciliar com o dos recursos do Júri, porque admitida, como tem sido, a apelação interposta das decisões do Júri apenas para o efeito de, se refor-mada, determinar-se novo julgamento pelo próprio Júri, seria estabelecer uma limitação, uma restrição à competência deste Tribunal para “julgar” os crimes políticos, como expressamente dispõe o art. 101, II, letra c, da constituição.

confesso o meu equívoco e nenhuma dúvida tenho em considerar o voto proferido para negar provimento a ambas as apelações.

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EXPLIcAÇÃO (2ª)O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Senhor Presidente,

peço ao Tribunal que não veja na minha obstinação o impulso de uma vaidade. Não estou, entretanto, convencido de que haja incorrido em erro. Parece-me que devo permanecer fiel à convicção já sustentada, segundo a qual, nos crimes políticos conexos a crime doloso contra a vida, a competência será, necessaria-mente, do Júri. O fato de permitir a constituição, nos crimes políticos, o recurso ordinário para o Supremo Tribunal, não exclui essa competência do Júri, porque das decisões do Júri – segundo o art. 593, tal como o esclareceu o art. 8º da Lei 263, de 1948, também haverá apelação para o Supremo Tribunal, visto como a apelação é sempre um recurso ordinário. Ter-se-á, assim, de conciliar a dispo-sição da constituição, no art. 101, inciso II, letra c, onde se incluem os recursos ordinários para o Supremo Tribunal, nos crimes políticos, com a disposição do art. 141, § 28, da mesma constituição.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Essa apelação de que se trata, não de-fere ao Tribunal o julgamento dos crimes. Apenas, permite uma convocação a que o Júri julgue pela segunda vez.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Parece-me, egrégio Sr. Ministro, que a disposição da constituição, quando assevera a competência do Júri para os crimes dolosos contra a vida, tem de prevalecer na aplicação de qualquer outra das suas disposições, inclusive naquela relativa aos crimes polí-ticos. Se o crime político for conexo ao homicídio, a competência, em primeira instância, será, necessariamente, do Tribunal do Júri, qualquer que sejam as conseqüências daí decorrentes. Esta a conclusão necessária do princípio cons-titucional, onde se atribui, de modo peremptório, competência exclusiva ao Júri nos crimes dolosos contra a vida. Não me parece possível que qualquer inter-pretação seja aceitável, desde que restrinja o alcance da disposição precisa do § 28 do art. 141 da constituição, quando afirma que “é mantida a instituição do Júri, com a organização que lhe der a lei, contanto que seja sempre ímpar o nú-mero dos seus membros e garantido o sigilo das votações, a plenitude da defesa do réu e a soberania dos veredictos. Será obrigatoriamente da sua competência o julgamento dos crimes dolosos contra a vida”. Qualquer que seja o colorido que possa ter o crime doloso contra a vida, embora tenha ele o matiz de crime político, a competência do Júri não poderá ser excluída, ainda que o recurso or-dinário interposto da decisão do Júri sofra as limitações necessárias, estabele-cidas em lei, mesmo porque, quando a constituição admite o recurso ordinário nos crimes políticos, sujeita à determinação da lei o cabimento desse recurso.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Só julga os crimes políticos, sem restrição. A meu ver, o intérprete deve considerar este dispositivo com os ou-tros: primeiro, competência do Júri para julgar os crimes comuns; segundo,

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competência do Supremo Tribunal para julgar os crimes políticos. Essa inter-pretação não é mutiladora do texto, é, apenas, conciliadora dos seus dispositivos.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator). O que a constituição quis afirmar foi que, nos crimes políticos, haveria recurso ordinário para o Supremo Tribunal, respeitando-se a soberania do Júri, quando ele se manifesta sobre crimes dolosos contra a vida, embora conexos a crimes políticos. Este é o entendimento que me parece dever ser defendido em face da constituição e, por assim pensar, Senhor Presidente, e por não descobrir erro no meu raciocínio, continuo a ele fiel, mantendo o meu voto, data venia dos eminentes colegas que pensam de modo contrário.

VOTOO Sr. Ministro Annibal Freire: Senhor Presidente, o Supremo Tribunal

acaba, por grande maioria de votos, de decidir pela sua competência no caso, por se tratar de crime político. A constituição, conforme demonstrou em ter-mos sintéticos, mas lapidares, o eminente Sr. Ministro Orozimbo Nonato, dis-tingue as duas hipóteses. Atribui ao Supremo Tribunal competência especial para o julgamento dos crimes políticos. O artigo referente aos crimes dolosos contra a vida diz respeito aos delitos comuns e não aos crimes políticos.

Não há que argumentar com a apelação porquanto a apelação, no caso do Júri, é restrita, sem amplitude e largueza com que o eminente Sr. Ministro Relator justifica o seu voto.

A constituição é, a meu ver, nítida. Os crimes políticos são da compe-tência privativa do Supremo Tribunal. Os crimes dolosos contra a vida, os de-litos comuns são da competência do Tribunal do Júri. E tanto é certo isso que a própria lei complementar do Júri não faz referência alguma à espécie de crime político, que é capitulada, expressamente, na constituição. Adoto, assim, os vo-tos que acabam de ser enunciados, não considerando a competência do Júri, no caso; no mérito, data venia do eminente Sr. Ministro Revisor, nego provimento a ambas as apelações.

VOTOO Sr. Ministro Barros Barreto: Senhor Presidente, estou inteiramente de

acordo com o Sr. Ministro Laudo de camargo.

DEcISÃOcomo consta da ata, a decisão foi a seguinte:Tomaram conhecimento do recurso, contra os votos dos Ministros

Barros Barreto e Edgard costa, e negaram provimento às apelações, sendo

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Ministro Hahnemann Guimarães

que os Ministros Laudo de camargo e Barros Barreto davam provimento à do Ministério Público, e o Ministro Hahnemann Guimarães dava, em parte, pro-vimento à dos primeiros apelantes em relação a Nabor Nade, que deveria ser julgado pelo Tribunal do Júri.

Deixaram de comparecer o Ministro castro Nunes, por se achar em gozo de licença, e o Ministro Lafayette de Andrada, por motivo justificado.

MANDADO DE SEGURANÇA 1.915 — DF

RELATÓRIOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Pedro de Vasconcellos requer

mandado de segurança, para que, considerada ilegal a denegação de registro oposta pelo Tribunal de contas a sua aposentadoria com vencimentos integrais, a pretexto de ser o requerente extranumerário, seja o referido órgão compe-lido a registrar a aposentadoria com vencimentos integrais e correspondentes a sua situação de funcionário titulado letra “f” do Departamento de correios e Telégrafos, por força do Decreto-Lei 1.229, de 13 de novembro de 1950.

Informou o Tribunal de contas que, no desempenho de suas atribuições constitucionais (constituição, art. 77, III) ordenou o registro da aposentadoria com os proventos de 70% (fl. 12).

O Sr. Procurador-Geral da República opinou pelo não-conhecimento do pedido, nos termos do art. 101, I, i, da constituição (fl. 14).

VOTO(Preliminar)

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Já se reconheceu que a constituição não enumera taxativamente, no art. 101, I, i, as autoridades contra cujos atos se pode requerer ao Supremo Tribunal Federal mandado de segu-rança, nos termos do preceito constitucional do art. 141, § 24.

Para proteger direito líquido e certo, violado por ato do Tribunal de contas, deve ser concedido o mandado de segurança pelo Supremo Tribunal Federal, pois é aquele Tribunal um órgão auxiliar do Poder Legislativo (constituição, art. 22; Lei 830, de 23 de setembro 1949, art. 1º); seus Ministros têm os mesmos direitos, garantias, prerrogativas e vencimentos dos juízes do Tribunal Federal de Recursos (constituição, art. 76, § 1º), funciona como Tribunal de Justiça nos processos de tomada de contas (Lei 830, arts. 69 e 70).

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Memória Jurisprudencial

A natureza e as funções do Tribunal de contas não me permitem seguir a jurisprudência dominante, que defere a competência para conhecer dos man-dados de segurança requeridos contra atos daquele órgão aos juízes locais, com o recurso do art. 104, II, b, da constituição.

conheço de pedido.

MANDADO DE SEGURANÇA 2.248 — DF

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, o mandado de

segurança é requerido por três motivos: primeiro, o inquérito administrativo de que resultou a punição dos requerentes foi totalmente nulo; segundo, não existe a punição imposta aos requerentes; terceiro, não praticaram nenhum ato que legitimasse a punição impugnada.

Em princípio, penso que não se podem examinar defeitos do inquérito administrativo neste processo. No caso, no entanto, o inquérito administrativo sofre defeitos fundamentais e manifestos, como apontaram os requerentes, e V. Exa., em brilhante voto, demonstrou cabalmente.

Em realidade, no inquérito, os impetrantes foram ouvidos como testemu-nhas; não foram sequer indiciados; não receberam citação nem tiveram prazo para a defesa.

Esses defeitos invalidam completamente o inquérito, e essa invalidação pode ser declarada em mandado de segurança.

A meu ver, o mandado de segurança deveria ter sido deferido, princi-palmente, pela segunda razão, porque não existe mais a disponibilidade sem remuneração. Essa pena existiu na reforma oriunda do Decreto 19.592, de 15 de janeiro de 1931 (Reforma Mello Franco), e foi mantida na reforma cavalcante Lacerda, pelo Decreto 24.239, de 15 de maio de 1934. Essa pena, no entanto, foi completamente abolida pela reforma Oswaldo Aranha, consoante o Decreto-Lei 791, de 14 de outubro de 1938, art. 46.

Assim, desejo salientar que a segunda razão me parece mais fácil de aco-lher em mandado de segurança.

O Sr. Ministro Nelson Hungria: é um ponto de vista formal; o direito dos impetrantes é líquido.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Eu deferiria o pedido, princi-palmente, pela segunda razão, embora aceite a argüição a que obedeceu o bri-lhante voto do Sr. Ministro Relator, Orozimbo Nonato, julgando nulo o processo administrativo.

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Ministro Hahnemann Guimarães

MANDADO DE SEGURANÇA 2.278 — DF

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, a matéria que

se discute não é nova neste Tribunal. Ela já foi apreciada no MS 1.915, julgado no dia 8 de abril deste ano.

Naquele caso, Pedro de Vasconcelos requereu mandado de segurança, para que, considerada ilegal a denegação de registro oposta pelo Tribunal de contas à sua aposentadoria com vencimentos integrais, a pretexto de ser o requerente extranumerário, fosse o referido órgão compelido a registrar a apo-sentadoria com vencimentos integrais e correspondentes a sua situação de fun-cionário titulado, letra f, do Departamento de correios e Telégrafos.

Naquela ocasião, o eminente Dr. Procurador-Geral, opinou pelo não-conhecimento do pedido, nos termos do art. 101, I, i, da constituição.

Na qualidade de Relator, proferi o seguinte voto no MS 1.915:

Já se reconheceu que a constituição não enumera taxativamente, no art. 101, I, i, as autoridades contra cujos atos se pode requerer ao Supremo Tribunal Federal mandado de segurança, nos termos do preceito constitucional do art. 141, § 24.

Para proteger direito líquido e certo, violado por ato do Tribunal de contas, deve ser concedido o mandado de segurança pelo Supremo Tribunal Federal, pois é aquele Tribunal um órgão auxiliar do Poder Legislativo (constituição, art. 22; Lei 830, de 23 de setembro de 1949, art. 1º); seus Ministros têm os mesmos direitos, garantias, prerrogativas e vencimentos dos juízes do Tribunal Federal de Recursos (constituição, art. 76, § 1º), funciona como Tribunal de Justiça nos processos de tomada de contas (Lei 830, arts. 69 e 70).

A natureza e as funções do Tribunal de contas não me permitem seguir a jurisprudência dominante, que defere competência para conhecer dos manda-dos de segurança, requeridos contra atos daquele órgão, aos juízes locais, com o recurso do art. 104, II, b, da constituição.

conheço do pedido.

O Relator, naquela o casião,160 conheceu do pedido, por ter entendido que a competência originária era do Supremo Tribunal, tendo sido a única voz dis-cordante, pois a maioria do Tribunal não conheceu do pedido.

Assim, renovando as razões do meu voto, conheço do pedido, por enten-der que é competente o Supremo Tribunal Federal.

160 No MS 1.915/DF, decidido em 8 de abril de 1953, Presidente o Ministro José Linhares, Relator para o acórdão o Ministro Nelson Hungria, o Relator inicial era o próprio Ministro Hahnemann Guimarães, sendo o único vencido. (N. A.)

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Memória Jurisprudencial

MANDADO DE SEGURANÇA 2.655 — DF

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, segundo a

teoria religiosa dos salários, instituída há um século por Augusto comte, deve o proletariado receber salário constituído por uma parte fixa e uma parte vari-ável, que pode chegar até o dobro da primeira, correspondente ao produto do seu serviço. A parte fixa há de permitir que o proletariado possa desenvolver completamente sua existência doméstica.

Um século depois, que presenciamos nós? O triste espetáculo do proleta-riado acampado fora da sociedade, no meio da sociedade ocidental, sem receber salário suficiente e regular.

Sentindo o perigo da situação criada, tem o legislador procurador obviar ao mal, estabelecendo salário que corresponda tanto quando possível às neces-sidades normais do operário. Este cuidado se começou a fazer sentir, entre nós, com o Decreto 19.770 de 19 de março de 1931, em cujo art. 8º, letra d, se atribuía aos sindicatos a incumbência de promover a fixação de salário mínimo para tra-balhadores urbanos e rurais. Sobreveio a constituição de 1934, em cujo art. 121, § 1º, letra b, se assegurou aos operários salário mínimo que correspondesse às suas necessidades normais, em cada zona ou região. De acordo com a disposi-ção constitucional, a Lei 185, de 14 de janeiro de 1936, instituiu as comissões de salário mínimo, em vinte disposições, que foram incorporadas e desenvol-vidas na consolidação das Leis do Trabalho, nos arts. 76 a 128. Pois bem: de acordo com as disposições constantes da consolidação das Leis do Trabalho, o Presidente da República expediu o Decreto 35.450, de 1º de maio último, esta-belecendo novos níveis de salário mínimo, à semelhança do que havia feito em 24 de dezembro de 1951, com o Decreto 30.342.

Argúi-se, pelo mandado de segurança, de inconstitucional o Decreto 35.450. Tenho acompanhado aqui a orientação do Sr. Ministro Barros Barreto, segundo a qual não é possível, em mandado de segurança, discutir a constitu-cionalidade de lei, formalmente válida. Mas temos sido vencidos nessa sustenta-ção. Resta-nos, assim, examinar a possibilidade de ser o mandado de segurança oposto à lei, em tese:

Evidentemente, trata-se de lei, em tese. Isso é reconhecido pelo eminente professor e depu tado Bilac Pinto, que, na justificação de projeto recentemente apresentado à câmara Federal, disse o seguinte:

A usurpação de funções privativas e indelegáveis, do congresso Nacional, pelo Senhor Presidente da República, constitui grave e frontal aten-tado à constituição de 1946, que S. Exa. jurou manter, cumprir e defender. Em

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Ministro Hahnemann Guimarães

matéria de salário mínimo, o Senhor Getúlio Vargas, por duas vezes, invadiu a competência do congresso Nacional: ao baixar o Decreto 30.342, de 24 de de-zembro de 1951, e o Decreto 35.450, de 1º de maio último.

Esta opinião do eminente professor e depu tado Bilac Pinto foi acolhida pelo nosso querido colega Ministro Ribeiro da costa, em seu eloqüentíssimo voto, de que lamento divergir, mas que não posso deixar de admirar. Trata-se, sem dúvida, de lei.

como acentuou o Sr. Ministro Nelson Hungria, o Poder Executivo com-pletou a lei. As disposições por ele estabelecidas nesse decreto incorporaram-se à lei, às condições estabelecidas na lei, no art. 81 da consolidação, fixando-se o salário mínimo de acordo com inquérito promovido pelas respectivas comis-sões. Impugna-se a lei, e creio que isso ninguém contesta.

Ora, a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal, como muito bem mostrou o Sr. Ministro Afrânio costa, não tem admitido mandado de segurança contra a lei em tese. Não é possível atacar pelo mandado de segurança a lei, antes de ser ela posta em execução, antes de serem infringidos os direitos sub-jetivos por acaso decorrentes do sistema legal em vigor. O Sr. Ministro Mario Guimarães sustenta que há, no caso, uma delegação vedada pelo art. 36, § 2º, da constituição. Realmente: aí se proíbem as delegações de poder.

O Sr. Ministro Mario Guimarães: Não sustentei bem isso. Argumentou-se que havia delegação e este ponto é que eu refutei. Houve um ato arbitrário.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: V. Exa. diz que não houve dele-gação, para qualificar o ato mais pejorativamente ainda, declarando-o arbitrário.

A meu ver, não há ato arbitrário, nem delegação. O Poder Executivo, de acordo com a disposição constante, principalmente do art. 81 da consolidação das Leis do Trabalho, artigo de que fez justa menção o Sr. Ministro Nelson Hungria; o Poder Executivo, de acordo com esta disposição legal e com dados estatísticos, estabeleceu novos níveis de salário mínimo. Não exerceu função que lhe houvesse sido delegada pelo Poder Legislativo. Exerceu função den-tro dos limites estabelecidos pelo Poder Legislativo. Este estabeleceu como se procederia, quando se alterasse profundamente a situação econômica, com sacrifício do proletariado. Estabelece a lei condições que permitem ao Poder Executivo que fixe novos níveis de salário mínimo. Foi o que se fez. Não houve delegação. O Legislativo não renunciou a uma faculdade que essencial-mente lhe competisse, e da qual não pudesse abrir mão. A função atribuída ao Executivo foi exercida de acordo com disposições legais, com as normas cons-tantes da consolidação das Leis do Trabalho, como já disse, particularmente a do art. 81. Não vejo como atacar o Decreto 35.450, de 1º de maio de 1954, pelo mandado de segurança.

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Memória Jurisprudencial

Se for vencido nesta preliminar, ainda indeferirei o pedido, porque os novos níveis do salário mínimo foram estabelecidos de acordo com a lei, que não exigiu o inquérito censitário, desde que o Governo dispõe de dados es-tatísticos que lhe permitem conhecer perfeitamente as necessidades normais do proletariado. Além disto, no caso, trata-se de aplicação do art. 116, § 2º, da consolidação das Leis do Trabalho, que prevê situações…

O Sr. Ministro Nelson Hungria: Excepcionais.O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: …realmente, excepcionais, desde

que se altere gravemente, profundamente, a ordem econômica e financeira, com sacrifício dos recursos de que dispõem os operários. Se for vencido na prelimi-nar do não-conhecimento do pedido, Senhor Presidente, eu o indeferirei.

MANDADO DE SEGURANÇA 3.557 — DF

RELATÓRIOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: João café Filho requer mandado

que lhe assegure o pleno exercício de suas funções e atribuições constitucionais de Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, pela evidente incons-titucionalidade das resoluções da câmara dos Depu tados e do Senado Federal, que, por manifesto e insuportável abuso de poder, determinaram que perma-necia o impedimento declarado pelo requerente em observância de prescrição médica. O suplicante tem direito de voltar à efetividade das funções presiden-ciais mediante a só comunicação de haver cessado o impedimento, conforme a atestação de eminentes e respeitados clínicos e especialistas. Não é possível que a temerária tarefa de alguns elementos rebelados das Forças Armadas de terra vingue por meio de uma resolução, que implica emenda à constituição, onde não se conhecem outros meios de afastamento do Presidente da República além dos mencionados nos arts. 79, § 1º, e 88, parágrafo único. A doutrina sobre o art. 2º, seção I, n. 6, da constituição dos Estados Unidos da América do Norte não admite a liberdade de as câmaras do congresso, ou este, virem pronunciar, como no caso, que o Presidente está impedido de exercer funções. A declara-ção de ambas as casas do congresso é ainda mais subversiva, porque não tem tempo determinado, mantendo-se até deliberação em contrário, condição potes-tativa, que é indeclinável e universalmente nula.

Se a câmara (o que se contesta) tivesse a iniciativa, o caso seria para decreto legislativo (constituição, art. 66; Regimento, art. 95), e não para reso-lução, com que se decidem situações concorrentes à economia interna de cada

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Ministro Hahnemann Guimarães

ramo do poder legislativo, e este é exercido em conjunto, pela câmara e pelo Senado, nos termos expressos dos arts. 37 e 69 da constituição. O pedido versa sobre atos inconstitucionais das câmaras, que afetam relação jurídica consubs-tanciada no exercício de função eletiva. compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer do pedido, segundo a constituição, arts. 141, § 4º, e 101, I, i. O reque-rente sustentou que se devia conceder a medida liminar referida pelo art. 7º, II, da Lei 1.533, de 31 de dezembro de 1951.

As Mesas da câmara dos Depu tados e do Senado Federal iniciam suas informações por uma ressalva de ordem moral, quanto ao zelo no resguardo da constituição, porque o requerente se mostrara incurialmente desidioso na defesa da constituição, evidentemente ameaçada. Alegam que não cabe ao Supremo Tri-bunal Federal apreciar pedido de mandado contra uma resolução legislativa, ato de soberania e de cunho eminentemente político. Ao Poder Legislativo é inerente a atribuição de decidir da subsistência ou da cessação do impedimento do Presi-dente da República. O requerente assevera que foi esbulhado do poder político. Sua pretensão implica típica questão política, insuscetível de solução judicial. Não cabe ainda o amparo judiciário, pois o que se sustenta é que a resolução legislativa se afastou de princípios, fez a má interpretação, não foi sábia na inteligência do texto constitucional. O congresso Nacional, além de ter agido patrioticamente, usou de poderes inerentes ao Legislativo, na interpretação do § 1º do art. 79 da constituição, evitando o estado de necessidade. A resolução legislativa baseou-se em que o conceito de impedimento é mais amplo que o de impeachment, e em que o congresso Nacional tinha a faculdade implícita de decidir da permanência, ou não, do impedimento, em que espontaneamente se colocara o impetrante. Os constitucionalistas norte-americanos afirmam que cabe ao congresso proclamar o estado de inability. Além dos fundamentos jurídicos, a resolução legislativa teve por motivo fato público e notório, já agora selado pelo reconhecimento do estado de sítio. O perigo nacional foi criado ou, pelo menos, agravado pela óbvia inability do impetrante. Só a alegação da moléstia gravíssima poderia justificar a transmis-são do exercício do cargo a seu substituto. Quando, porém, as Forças Armadas impediram se consumasse um golpe contra o regime, o impetrante anunciou sua intenção de voltar ao exercício da Presidência da República, e estabeleceu, com esse gesto da notória incoerência, sua vinculação com a trama posta em começo de execução no dia 10 de novembro. As informações terminam com a afirmação de que o congresso cumpriu seu dever, ao avocar a competência para manter o impedimento em que se colocara o Presidente da República, salvando, nesta emer-gência, através de um ato de soberania política, as instituições e o regime (fl. 22).

O Vice-Presidente do Senado informou que assumiu a chefia de Estado pelas razões que deram as Mesas das casas do congresso, e com o propósito de corresponder aos reclamos de ordem pública e aos imperativos de sobrevivência da democracia brasileira (fl. 20).

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Memória Jurisprudencial

O Procurador-Geral da República opinou pelo não-conhecimento do pedido, em virtude da Lei 2.654, de 25 de novembro último, art. 2º, parágrafo único, e porque envolve matéria de fato controvertida; e, no caso de conheci-mento, manifestou-se pelo indeferimento do pedido, visto que não há direito líquido e certo contra o ato do congresso Nacional, decorrente de seus poderes implícitos, inerentes a sua soberania (fls. 39 e 55).

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Julgo improcedente a

alegação de que não cabe ao Tribunal apreciar pedido de mandado de segurança contra resolução legislativa de caráter político.

A competência dada na constituição, art. 101, I, i, compreende os atos não-legislativos que pratique a câmara ou o Senado e lesem direito individual. Assim entendeu o Tribunal no julgamento do mandado pedido contra resolu-ção da câmara que ordenara a publicação do chamado “Inquérito do Banco do Brasil” (castro Nunes. Do mandado de segurança, 4. ed., p. 275, n. 135).

O cunho político da resolução não pode, em virtude da garantia da constituição, art. 141, § 4º, excluir da apreciação do Poder Judiciário a argüida lesão do direito individual (castro Nunes, op. cit., p. 216, n. 101).

Sendo o ato impugnado anterior ao estado de sítio, o pedido não está su-jeito à disposição da Lei 2.654, art. 2º, parágrafo único.

Resta, pois, indagar se a resolução causou a pretendida lesão de direto subjetivo.

Afirma a resolução que o congresso tem o poder de, em situação de fato criada por graves acontecimentos, decidir sobre o impedimento previsto no art. 79, § 1º, da constituição. No exercício desse poder, o congresso declarou que permanece, até deliberação em contrário, o impedimento do requerente, “por ter sido envolvido nos mesmos acontecimentos sob imperativo de condi-ções notoriamente irremovíveis, de ordem pública e institucional, sem possibi-lidade de reassumir o pleno exercício do cargo, assegurando a sobrevivência do regime e em conseqüência a tranqüilidade da Nação”.

A constituição não define nem dispõe sobre como se verifica o impedi-mento de que cuida no art. 79, § 1º. A mesma omissão existe na constituição dos Estados Unidos da América do Norte a propósito da “incapacidade para o desempenho dos poderes e deveres do referido cargo”, isto é, de Presidente, da qual trata o art. II, sec. 1, cláusula 6 (inability to discharge the powers and duties of the said office). O professor John William Burgess, em Political Science and Constitutional Law (II, p. 24), sugeriu que caberia às duas casas

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Ministro Hahnemann Guimarães

do congresso determinar a existência da incapacidade (J. A. Woodburn, The American Republic and its Government, 1916, p. 141).

O professor John Randolph Tucker considera provável que o poder de remover por incapacidade em virtude de impeachment indique o método para decidir se existe incapacidade; mas admite que seja concebido qualquer modo (The Constitution of the United States, II, 1899, p. 712). Willoughby, no trecho citado pelo requerente, opina que, afinal, a corte Suprema pode ser chamada a determinar se, de fato, houve uma incapacidade do Presidente que justificasse o exercício dos poderes presidenciais pelo Vice-Presidente.

Penso que cabe às duas casas do congresso verificar a existência de impedimento para o Presidente da República exercer o cargo. Tal poder está implícito no sistema constitucional, que dá à câmara dos Depu tados competên-cia para declarar procedente ou improcedente acusação contra o Presidente da República, que, no primeiro caso, ficará suspenso de suas funções (arts. 59, I, e 88, parágrafo único); e atribui competência ao congresso Nacional para autori-zar o Presidente da República a se ausentar do País (arts. 66, VII, 85). Se o poder de declarar o Presidente da República impedido, ou desimpedido, está sujeito a exame, este há de caber ao congresso Nacional.

No caso, reconheceram a câmara dos Depu tados e o Senado Federal que o requerente estava impedido de reassumir o pleno exercício do cargo, assegu-rando a sobrevivência do regime e, em conseqüência, a tranqüilidade da Nação. O congresso Nacional verificou, pela maioria absoluta de seus membros, a exis-tência desse impedimento (fl. 22, n. 2), e o Tribunal não pode rever a verificação neste processo, que não comporta a discussão de fatos.

A cessação do impedimento não está sujeita a condição potestativa que anule a resolução; não está sujeita ao mero arbítrio do congresso, que, certa-mente, não se negará ao reconhecimento da possibilidade de reassumir o reque-rente o exercício do cargo.

A forma adotada é válida, porque a resolução tem por fim regular maté-ria de caráter político (Resolução 582, de 31 de janeiro de 1955, da câmara dos Depu tados, art. 96).

Rejeito a argüida inconstitucionalidade do ato do congresso Nacional e nego o mandado requerido.

SOBRE PETIÇÕES PARA JULGAMENTO IMEDIATOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Senhor Presidente,

foram-me dirigidas pelo advogado Jorge Dyott Fontenele duas petições nos au-tos do mandado de segurança, em que ele é advogado do Senhor Presidente da República, João café Filho.

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Memória Jurisprudencial

Destinam-se as duas petições a obter que seja feito o julgamento adiado na sessão de 14 de dezembro último.

Parece-me, Senhor Presidente, que não me cabe relatar estas duas peti-ções, porque fui vencido na decisão citada. Não só não achei que devesse adiar o julgamento, como proferir meu voto, indeferindo o pedido de mandado de segurança.

O que quer agora o requerente prende-se à decisão tomada em 14 de de-zembro, para a qual não concorri e de que não posso ser, assim, o Relator.

Parece-me que as duas petições de que se trata devem ser relatadas e apreciadas em primeiro lugar pelo Sr. Ministro designado para redigir a deci-são de 14 de dezembro. é um caso semelhante ao dos embargos declaratórios. Os embargos declaratórios não são relatados pelo relator do feito, mas pelo do acórdão.

Aqui trata-se de uma conseqüência do acórdão; esta conseqüência não pode ser relatada por mim, que dissenti da maioria.

Sendo assim, proponho que sejam as duas petições remetidas ao Sr. Ministro designado para redigir a decisão de 14 de dezembro.

VOTO(Sobre o julgamento imediato)

(Sobre a preliminar)O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, já proferi meu

voto na causa. Não tenho dúvida em admitir que se decida imediatamente sobre as duas petições do advogado requerente do mandado de segurança.

Realmente, como acentuou o eminente Ministro Mario Guimarães, seria mais regular que se aguardasse a publicação do acórdão. Todos, entretanto, te-mos presente o que ocorreu na sessão do 14 de dezembro. Neste caso especial, parece-me que se pode dispensar a juntada das notas taquigráficas e a publica-ção do acórdão.

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, na sessão de

14 de dezembro último, julguei o mérito da causa, indeferindo o pedido de man-dado de segurança. Desejo ressalvar esse julgamento. Obediente à decisão da maioria, devo apreciar a argüida inconstitucionalidade da prorrogação da lei que decretou o estado de sítio. Não é possível mais renovar a questão sobre a cons-titucionalidade da Lei 2.654, de 25 de novembro último, que decretou o estado de sítio. Essa constitucionalidade já foi reconhecida pela maioria do Tribunal. Resta, pois, averiguar se é constitucional o Decreto 38.402, de 23 de dezembro

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Ministro Hahnemann Guimarães

último, que prorrogou a estado de sítio. Essa prorrogação parece-me que se ba-seia, cabalmente, na disposição do art. 208 da constituição, onde se estabelece:

No intervalo das sessões legislativas, será da competência exclusiva do Presidente da República a decretação ou a prorrogação do estado de sítio, obser-vados os preceitos do artigo anterior.

Parágrafo único. Decretado o estado de sítio, o Presidente do Senado Federal convocará imediatamente o congresso Nacional para se reunir dentro em quinze dias, a fim de o aprovar ou não.

Essa prorrogação, estabelecida pelo decreto citado, já foi aprovada pelo congresso Nacional, em sessão das câmaras separadas, que, a meu ver, obser-varam, data venia do eminente Sr. Ministro Nelson Hungria, as disposições da constituição constantes dos arts. 5º, III, e 65, IX, pois que, se compete à União decretar o estado de sítio, a sua prorrogação deve ser estabelecida em lei, e essa lei só pode ser aprovada pelas câmaras separadamente. Parece-me, assim, que foi perfeitamente aprovado o decreto que prorrogou o estado de sítio. Logo, a con-tinuação do julgamento pedida, nos dois requerimentos, não deve ser concedida.

RECURSO ExTRAORDINáRIO 9.002 — DF

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, o eminente

advogado do segundo recorrente suscitou, da Tribuna, uma preliminar que me parece requerer detido exame. Acha o ilustre advogado que, desde que se afirme, reiteradamente, certa jurisprudência, nos tribunais, não caberá mais o recurso extraordinário, com fundamento na letra d do inciso III do art. 101.

Por maior que seja a auctoritas rerum similiter iudicatarum, nunca se pode, em nosso direito, admitir que a jurisprudência não possa ser alterada, e a divergência, desde que seja apontada, embora, posteriormente, o Tribunal tenha adotado decisões reiteradas em certo sentido, dá cabimento para o recurso ex-traordinário. Basta que se aponte a divergência, para que seja possível o recurso extraordinário, embora, depois do acórdão dado como divergente, o Tribunal se tenha manifestado reiteradamente, repetidamente, sem variação, em certo sen-tido, contrário ao mesmo acórdão.

Assim, por mais que o Supremo Tribunal Federal e outros tribunais do País hajam afirmado que é transponível o limite fixado no parágrafo único do art. 27 do Decreto-Lei 3.365, de 1941, acho eu que haverá sempre cabimento para o recurso extraordinário, desde que há, sem dúvida, decisões que entende-ram que esse limite era intransponível.

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Memória Jurisprudencial

Por mais que se tenha, pois, afirmado a jurisprudência no sentido da transponibilidade desse limite, divergência houve, divergência existe, e ela basta pra justificar a interposição do recurso extraordinário.

A meu ver, o limite fixado no art. 27, parágrafo único, do Decreto-Lei 3.365, de 1941, não é intransponível; a indenização deve ser justa, deve reparar o prejuízo decorrente da extinção da propriedade; deve corresponder ao valor da propriedade. Não é justo que se empobreça, que se desfalque o patrimônio alheio, sem que o desfalque seja completamente reparado pelo poder expro-priante. O preço da expropriação é o preço da propriedade; deve ser pago todo o valor da propriedade. O limite, portanto, fixado na lei é um limite transponível.

A meu ver, a lei procurou, apenas, fornecer um critério exemplificativo, orientador, que não será o único critério que se imporá à observância do juiz. A esse respeito já me tenho manifestado, reiteradamente.

Quanto aos honorários de advogado, havia eu, entretanto, manifestado, até aqui, a opinião de que não deviam ser incluídos na indenização devida pelo poder expropriante. Mas, desde que eu sustento que o preço da expropriação deve cobrir todo o desfalque sofrido pelo expropriado, é natural que entenda, também, devidos os honorários do advogado. Esses honorários, porém, a meu ver, devem ser calculados sobre a importância que o poder expropriante foi obri-gado a pagar além daquela importância que ele ofereceu, porque, a respeito da importância oferecida pelo poder expropriante, pode-se dizer que houve acordo entre as partes, e não é razoável que se paguem honorários de advogado sobre esta importância. Estes devem ser calculados sobre o excesso, isto é, sobre aquilo que foi o poder expropriante obrigado a pagar, além da importância que ele se ofereceu, voluntariamente, a pagar ao expropriado.

De modo que, em resumo, tomo conhecimento de ambos os recursos, com fundamento no inciso 101, III, letra d, da constituição. E, tomado deles conhecimento, nego provimento ao recurso da Prefeitura do Distrito Federal e dou, em parte, provimento ao segundo recurso, de João Guilbaud, para con-ceder-lhe os honorários de advogado, que devem se calculados à razão de 20% sobre a importância em que a indenização exceder aquela que o poder expro-priante, voluntariamente, se ofereceu a pagar.

VOTO(Retificação)

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, em face do esclarecimento dado pelo Sr. Ministro Relator, dou provimento a todo o recurso, na forma pedida.

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Ministro Hahnemann Guimarães

RECURSO ExTRAORDINáRIO 10.182 — DF

A presunção estabelecida no art. 859 do Código Civil tem eficácia meramente processual, e não considera absolutamente exato o conteúdo do registo de imóveis em favor de quem adquira direito real de boa-fé e a título oneroso.

AcÓRDÃOVistos, relatados e discutidos estes autos de RE 10.182, do Distrito Federal,

em que são partes, como recorrente, Emiliana Rocha Freire de Vasconcelos e, como recorridos, Eduardo Nogueira de Sá, sua mulher e outros, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, que constituem a Segunda Turma, co-nhecer do recurso e negar-lhe provimento, por unanimidade de votos, em con-formidade com as notas taquigráficas juntas.

Rio de Janeiro, 2 de dezembro de 1947 — Orozimbo Nonato, Presidente — Hahnemann Guimarães, Relator.

RELATÓRIOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Eduardo Nogueira de Sá; sua mu-

lher, Elvira Soares de Sá; Francisco da Silva; sua mulher, Delmira Rosa da Silva; e Nayde Fontes Pinheiro, assistida de seus pais, Almerinda Fontes Pinheiro e Jurandir de Andrade Pinheiro, impugnaram, com fundamento no art. 853 do código de Processo civil, o acórdão da 5ª câmara do Tribunal de Apelação, que, opondo-se às decisões de outras Turmas, admitira-se haver-se filiado ao código civil, em matéria de transcrição, ao chamado sistema germânico; dera à transcrição feita em 8 de março de 1915 eficácia somente criada pelo art. 859 do código civil; negou-se a reconhecer o domínio, nos casos de duplicidade de transcrições, em favor daquele em cuja posse se integraram os demais requisitos da prescrição aquisitiva; não respeitou a transcrição feita em 1920, na vigência do código civil; desprezara a aquisição feita em hasta pública, conforme carta de 15 de janeiro de 1920, transcrita em 16 do mesmo mês e ano.

Em acórdão de 28 de dezembro de 1944, as câmaras cíveis Reunidas de Tribunal de Apelação (fls. 97 a 99v.) deram provimento ao recurso, restaurando a sentença de primeira instância, pois a transcrição não origina presunção abso-luta de propriedade, sanando a nulidade do título de aquisição.

Discordou desta decisão o Sr. Desembargador A. Sabóia Lima, Relator do acórdão proferido pela 5ª câmara, e que entende resultar da transcrição pre-sunção iuris et de iure em favor de terceiros que hajam adquirido, de boa-fé e a título oneroso, a propriedade (fls. 101 a 107).

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Memória Jurisprudencial

D. Emiliana Rocha Freire de Vasconcelos, que adquirira a propriedade pela transcrição de 1915, impugna a revista deferida, pelo art. 101, III, a e d, da constituição de 1937, visto que se ofendeu a letra dos arts. 859 e 530, I, do código civil e não se observaram as decisões constantes da Revista dos Tribunais, 133, p. 193; Revista Forense, 88, p. 443; Diário da Justiça de 15-9-1942 e Arquivo Judiciário 58, p. 306-309 (fls. 109 a 113).

A recorrente desenvolveu suas alegações de fls. 117 e 126v.Sustentam os recorridos que é infundado o recurso extraordinário, ao

qual não se deveria, aliás, dar provimento (fls. 128 a 145).

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): é conhecida a contro-

vérsia sobre se o nosso direito adotou o princípio da fé pública do livro predial, consagrado nos arts. 892 e 893 do código civil alemão. Philadelpho Azevedo, com sua reconhecida autoridade, insiste em defender esse princípio em favor do adquirente de boa-fé e a título oneroso, sustentando a doutrina de Lisipo Garcia, que, com veemência, foi combatida pelo professor José Soriano de Souza Neto (Registro de Imóveis: Valor da Transcrição, 1942).

Admitiu-se, em nosso direito, que pudesse haver divergência entre a ver-dadeira situação jurídica e o registro de imóveis. Essa divergência é, porém, excepcional, justificando-se, assim, a presunção, que, à semelhança do art. 891 do código civil alemão, o nosso código civil estabeleceu no art. 859.

Essa presunção legal, iuris tantum, tem eficácia meramente processual; regula o encargo da prova, dispensando de provar que é titular do direito real a pessoa em cujo nome o mesmo direito foi inscrito ou transcrito.

Nada autoriza a admitir que, no citado art. 895, a presunção tenha outro fim além de conceder uma dispensa do ônus da prova, ou de inverter esse ônus. Se a lei quisesse estabelecer uma praesumptio iuris et de iure, teria enunciado expressamente essa grave conseqüência, pela qual o registo de imóveis seria considerado absolutamente exato em favor de quem adquirisse direito real de boa-fé e a título oneroso.

Assim fez o código civil alemão, que, repelindo o princípio da eficácia formal ou constitutiva do registro, aceitou em favor do terceiro adquirente de boa-fé uma exceção emanada do mesmo princípio (arts. 892 e 893). A presun-ção do art. 891, que pode ser destruída pela prova contrária, é transformada em ficção irrefragável pelo art. 892.

O código civil brasileiro exprimiu, no art. 859, a praesumptio iuris tantum, sem adotar a ficção de que o conteúdo do registro é absolutamente ver-dadeiro, se nele confiou, de boa-fé, terceiro adquirente.

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Ministro Hahnemann Guimarães

O acórdão de 28 de dezembro de 1944 não ofendeu, assim, a letra dos arts. 859 e 530, I, do código civil, havendo, pelo contrário, dado à presunção seu verdadeiro caráter.

Pela divergência apontada nas decisões dos tribunais, conheço do recurso extraordinário e lhe nego provimento.

VOTOO Sr. Ministro Orozimbo Nonato (Presidente): O eminente Sr. Ministro

Hahnemann Guimarães versou o assunto com a habitual lucidez. A matéria suscita controvérsia entre nossos autores. Baste dizer que uma grande corrente, em que se filiam nosso eminente colega Ministro Philadelpho Azevedo, Lisipo Garcia e outros, entende que se deve dar ao registo a presunção legis et de lege em face de terceiros de boa-fé. Data venia, discordo da doutrina e, em mais de um voto, desenvolvi as razões que autorizam essa divergência.

Data venia do eminente Relator, teria modestas objeções quanto a ger-manar a presunção absoluta com a ficção, já extremadas no conhecido conceito de cujacio.

Não obstante, concluo com S. Exa. em negar provimento ao recurso, in-vocando, ainda, o trabalho do professor Soriano de Souza Neto, que provocou a réplica do professor Philadelpho Azevedo.

No caso, segundo demonstrou o eminente Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, a razão está com o acórdão recorrido. conheço do recurso, pela letra d, e nego-lhe provimento.

RECURSO ExTRAORDINáRIO 11.148 — PA

Na execução da sentença que acolheu a reivindicação, é ve-dado ao possuidor exercer direito que não lhe foi reconhecido no juízo da reivindicação.

AcÓRDÃOVistos, relatados e discutidos estes autos de RE 11.148, do Pará, em que

são partes, como recorrente, Amalia Gordilho Guimarães Pontes e, como re-corridos, Diva de campos Proença e outros, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal que constituem a Segunda Turma conhecer do recurso e

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Memória Jurisprudencial

dar-lhe provimento, por maioria de votos, em conformidade com as notas taqui-gráficas juntas.

Rio de Janeiro, 1º de julho de 1947 — Orozimbo Nonato, Presidente — Hahnemann Guimarães, Relator para o acórdão.

RELATÓRIOO Sr. Ministro Lafayette de Andrada: Adoto o seguinte relatório que bem

esclareceu a questão em exame:

I) Histórico. Há trinta anos as terras da Vila do Mosqueiro, Município de Belém, ainda pouco valor tinham: invadidas pelo impaludismo, quase despo-voadas, caracterizavam-se pela residência de pescadores e gente pobre. E tanto assim que o comandante Rodolfo Rodrigues Pampocha e sua esposa, D. Rosa condoru Pampocha, que aí possuíam um terreno medindo cento e vinte me-tros de frente por cento e oitenta e cinco metros de fundos, venderam em 1904 um trecho desse terreno (trinta e dois metros de frente e duzentos e sessenta metros de fundos) pela quantia de quinhentos mil réis, moeda de então, isto é, pouco mais de quinze cruzeiros, atualmente. Pouco mais de quinze cruzeiros por um metro de terra. O ilustre médico paraense comprador desse terreno, Dr. Teodoro Brito Pontes, jamais o ocupou nem o beneficiou, ficando o imóvel em poder dos vendedores. E tão completo e tão prolongado foi o abandono que, em 1925, isto é, vinte anos depois, os vendedores, devolvendo-o à área primi-tiva, o hipotecavam como seu a carlos Santiago e como seu o inventariou a viúva Pampocha, pela morte de seu esposo, em 1927, para mais tarde vendê-lo (1933) à firma comercial S. Marques cia. desta capital. No decorrer de todo esse tempo a humilde vila de pescadores, pela excelência de suas praias e proximi-dade da capital, recebeu notável impulso. Ficou em moda ter um retiro de férias, uma casa de repouso na Vila do Mosqueiro. A saúde pública iniciou enérgico saneamento da região. Valorizaram-se as terras; vendiam-se bem; e aumentara rápida a construção de bangalôs. Em breve, o antigo viveiro de moscas atraídas pelas postas de peixe salgado se transformava em concorrida praia balnear, em risonha “Riba Amena”, como, num dia de bucólico entusiasmo, a denominou o espírito elegante e culto de Artur Lemos. Foi quando, em 1939, um homem in-teligente empreendedor, o Sr. Dr. Zacarias dos Santos Mártires, compra à firma S. Marques e cia. o antigo terreno que tivera como dono o casal Pampocha e no qual se encravara novamente o vendido por este ao Sr. Dr. Teodoro Brito Pontes. A área inteira é retalhada em lotes. Acorrem compradores e entre eles os apelados de hoje. Mas não tiveram sorte, eis que adquirem exatamente esse trecho. cheios de boa-fé, jamais podendo imaginar o golpe que iriam sofrer, iniciam a construção de confortável casa. E foi assim que, de prédio em prédio, modernos todos, se transformou a velha tapera numa vila confortável e atraente. Despertou, então, o procurador da A. O negócio se apresentava certo, rápido e vantajoso. Em outubro de 1940, D. Amália Gordilho Guimarães Pontes ingres-sava em juízo com uma ação de reivindicação. Em sentença de 5 de abril de 1943 a justiça de primeira instância foi-lhes favorável: o digno e ilustrado Juiz a quo decidiu pela procedência da ação e condenou os réus a restituírem à A. o ter-reno com todos os seus acessórios e rendimentos. Os réus apelaram. O egrégio

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Ministro Hahnemann Guimarães

Tribunal reformou a sentença “julgando extinto o direito da A. e prescrita a ação que o assegurava”. Surge o recurso extraordinário por ter “o acórdão recorrido decidido contra a letra dos arts. 550, 551 e 168, IV, do código civil brasileiro”. O colendo Supremo Tribunal Federal acolhe o recurso e, em sua alta sabedoria, dá-lhe provimento para restabelecer a sentença de primeira instância. Promove, agora, a A. a execução desse venerando julgado; requer a entrega do terreno reivindicado com todos os acessórios nele existentes, tais como construções, cercas, plantações, etc. Os réus opõem embargos de retenção e, chamando à autoria o Sr. Dr. Zacarias dos Santos Mártires, alegam nos embargos terem ad-quirido de inteira boa-fé, como, aliás, de boa-fé agira o vendedor, o que, nada obstante, o eximia da responsabilidade da venda. Os embargos são processados regularmente; uma perícia legal fixa em oitenta mil cruzeiros a indenização aos embargantes. O Juiz – porque não há como desconhecer a boa-fé dos mesmos – “julga os embargos procedentes para condenar a embargada a indenizar aos em-bargantes as aludidas benfeitorias no valor dos oitenta mil cruzeiros, ressalvado aos embargantes o direito de reter o terreno reivindicado até serem pagos das benfeitorias realizadas na forma do art. 516 do código civil”. Surge então esta apelação, que é recebida em ambos os efeitos e legalmente processada.

II) A apelante argúi a preliminar de nulidade da sentença recorrida por-que a Lei de Organização Judiciária do Estado, em vigor, atribui competência aos pretores para o processo e julgamento das causas cujo valor não exceda cr$ 5.000,00 (cinco mil cruzeiros). Tendo essa lei entrado em vigor na pendên-cia da execução, os autos, argumenta o ilustrado patrono da A., deveriam ter sido estes enviados ao distribuidor para designação do pretor a quem competiria prosseguir no feito, pois a presente causa tem o valor de cr$ 3.500,00, como consta da inicial (fl. 2 do 1º vol.). Os apelantes respondem a essa preliminar: “firmada a competência, é curial princípio de processo, com ela vai este até o final, sem que surjam as causas pelas quais pode ser alterada, modificada ou prorrogada”.

De meritis alega, em resumo, a apelada que o colendo Supremo Tribunal Federal restabeleceu a sentença de primeira instância que condenou os réus a restituírem à A. o terreno em causa com todos os seus acessórios e rendimentos e que, durante todo o curso da ação principal, os réus não invocaram nenhum direito a tais benfeitorias nem à retenção do terreno até o ressarcimento do va-lor das construções; que a sentença exeqüenda mandou, pois, que a restituição se operasse com todos os acessórios e rendimentos e não mandou fossem esses acessórios e rendimentos indenizados aos réus. Que a sentença exeqüenda man-dou que o terreno fosse restituído com acessórios e rendimentos e que a sen-tença apelada mandou que os réus não restituíssem senão depois de indenizados dos acessórios; que esta segunda decisão infringe os arts. 287 e 289 do código de Processo civil.(Fl. 264.)

Os apelados defendem a oportunidade processual dos embargos de reten-ção só cabíveis no momento em que a A. quer tornar efetiva a entrega do terreno reintegrado e insistem “na melhor e mais pura boa-fé com que o adquiriram e fizeram suas construções em lugar à visita de todos comprovada não somente pelo valor destas como ainda pela ostensiva situação, em ponto saliente por

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Memória Jurisprudencial

todos preferido e que tinha cuidadosa atenção dos poderes públicos. Que, por-tanto, o direito à indenização é, pois, o mais legítimo”.

O Tribunal local manteve a decisão de primeira instância que, dando pela procedência dos embargos, determinou que a restituição fosse feita após o pa-gamento das benfeitorias necessárias e úteis.

Daí o presente recurso extraordinário com fundamento na letra a do in-ciso III da constituição de 1937.

como lei violada, a recorrente aponta os arts. 287 e 289 do código de Processo civil e o art. 516 do código civil.

O recurso está devidamente arrazoado pelas partes às fls. 282 e 185.é o relatório.

VOTO(Preliminar)

O Sr. Ministro Lafayette de Andrada (Relator): como acentuei no relató-rio, numa ação de reivindicação de terras, o Juiz de primeira instância deu pela procedência da ação, determinando fosse restituído o terreno, com todos os seus acessórios e rendimentos (fl. 98 – 1º volume).

Reformada a sentença pelo Tribunal de Justiça do Estado, foi ela restabe-lecida, em grau de embargos, pelo Supremo Tribunal.

Trata-se, portanto, de execução daquele jurado.Decidiu o juiz da causa “julgar procedentes os embargos para condenar

a embargada a indenizar aos embargantes as aludidas benfeitorias no valor de 80 mil cruzeiros, ressalvando aos embargantes o direito de reter o terreno rei-vindicado até serem pagos das benfeitorias realizadas na forma do art. 516 do código civil” (fl. 262).

O Tribunal deu plena concordância a essa decisão, e daí o fundamento do presente extraordinário: ofensa de letra de lei federal – arts. 287 e 289 do código de Processo civil e art. 536 do código civil.

Dispõem os arts. 287 e 289:A sentença que decidir total ou parcialmente a lide terá força de lei nos

limites das questões decididas.Parágrafo único. considerar-se-ão decididas todas as questões que cons-

tituam premissa necessária da conclusão.(Art. 287.)

Nenhum juiz poderá decidir novamente as questões já decididas, relati-vas à mesma lide, salvo:

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Ministro Hahnemann Guimarães

I – nos casos expressamente previstos;II – quando o juiz tiver decidido, de acordo com a eqüidade, determinada

relação entre as partes, e estas reclamarem a revisão por haver-se modificado o estado de fato.(Art. 289.)

Teria a decisão recorrida ofendido esses preceitos?A decisão da causa deu pela procedência da ação reivindicatória, man-

dando fosse feita a restituição do terreno com todos os seus acessórios e rendi-mentos, e a decisão na execução, sem ofensa a anterior, reconheceu o direito aos réus da reivindicatória, a serem indenizados das benfeitorias necessárias e úteis realizadas no aludido terreno, admitindo a retenção do imóvel até o pagamento.

Tenho para mim que as duas decisões não se chocam, ao contrário, ajus-tam-se perfeitamente na aplicação da lei.

O Juiz da execução respeitou a coisa julgada: manteve a restituição do imóvel.Não foram novamente discutidos os mesmos fatos e nem os direitos já re-

conhecidos, e a restituição dos acessórios e rendimentos passou a ter força de lei.Fundado no art. 516 do código civil, o Juiz subordinou a entrega ao pa-

gamento das benfeitorias necessárias e úteis.Ora, o acórdão deste Supremo Tribunal, restaurando a sentença de pri-

meira instância, não proibiu esse entendimento, não impediu fossem indeni-zadas as benfeitorias dessa natureza. Silenciou sobre esse ponto, aliás, não discutido na demanda principal.

A restituição determinada, o foi dos acessórios e rendimentos, mas não das benfeitorias úteis e necessárias, que não se confundem com os primeiros.

Entendeu o Juiz que as construções e melhoramentos levadas a efeito pe-los recorridos no terreno reivindicado constituíam essa espécie de benfeitorias, e esse entendimento não ofendeu a lei (arts. 536 e 516 do código civil).

A determinação da natureza das benfeitorias e da boa-fé do possuidor são questões de fato, que ao arbítrio, à prudência do juiz cabe decidir. Assim, ba sea do nas provas dos autos e depois de examinar as vantagens que as benfei-torias levaram ao terreno, o juiz pode classificá-las, sem que com isso fosse de encontro à lei, e tendo-as considerado úteis e necessárias deu completa aplica-ção ao art. 516, pois admitiu, ainda, boa-fé dos recorridos.

Muito bem acentuou o acórdão do Tribunal local que “a sentença é justa, é palpitante de forte sentimento moralizador” porque “não há como desconhe-cer a boa-fé dos embargantes”. E quem semeia ou planta, repara ou constrói de boa-fé em terra alheia deve perder a colheita ou o teto reparado ou construído,

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mas tem direito à indenização honesta e eqüitativa. Decidir de outra forma seria estimular chocante, clamorosa injustiça, a locupletação mais condenável contra o bem alheio” (fl. 277).

Não encontro, pois, qualquer ofensa aos dispositivos de lei federal indi-cados pela recorrente.

Não conheço do recurso.

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, trata-se de

e xe cu ção de uma sentença que julgou procedente a ação de reivindicação. Na exe- cução não se admitem, em princípio, embargos infringentes do julgado. Não se admite que, na execução, se renove a discussão de que resultou a sentença exeqüenda. A sentença exeqüenda considerou procedente a reivindicação e mandou que o bem reivindicado fosse restituído cum omni causa, com todos os seus acessórios. O possuidor, demandado pela reivindicação, não fez valer, no momento próprio, o seu direito a haver a indenização pelas benfeitorias. Este direito havia de ser reconhecido no próprio processo reivindicatório. Aí é que o possuidor havia de fazer valer exceptionis ope o seu direito a haver a indeniza-ção pelas benfeitorias úteis, e faria valer esse direito, nos termos da lei, ou pelo ius tollendi – o direito de levantar as benfeitorias – ou pelo ius retentionis – o direito de retenção. Mas isso devia ser reconhecido pela própria sentença que deu pela procedência da reivindicação.

Não me parece possível que, na execução da sentença, que julgou proce-dente a reivindicação, o possuidor fosse fazer valer um direito que não lhe fora reconhecido no processo reivindicatório. Isso seria infringir o julgado e discutir a validade do próprio julgado. Os embargos do executado não são embargos de nulidade e infringentes do julgado; não renovam a discussão já encerrada pela sentença exeqüenda.

A meu ver, o acórdão violou as disposições legais, que vedam que os embargos sejam infringentes do julgado. O acórdão não podia deferir ao pos-suidor uma indenização que não lhe foi reconhecida na sentença que se está executando. Essa indenização havia de ser reconhecida no próprio processo da reivindicação, não pelo juiz da execução da sentença que deu a reivindicação, que concedeu a restituição pedida da coisa cum omni causa. conheço, pois, do recurso e lhe dou provimento, nestes termos, porque, a meu ver, os embargos foram infringentes do julgado.

VOTOO Sr. Ministro Edgard costa: Senhor Presidente, data venia do

Sr. Ministro Relator, conheço do recurso e lhe dou provimento, de acordo com o Sr. Ministro Hahnemann Guimarães.

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Ministro Hahnemann Guimarães

VOTOO Sr. Ministro Goulart de Oliveira: Senhor Presidente, acompanho o voto

do Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, conhecendo do recurso e lhe negando provimento.

VOTO(Preliminar)

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato (Presidente): Data venia, acompanho o voto do emitente Sr. Ministro Relator. No caso dos autos, inexistente, a meu entender, colisão entre acórdão deste Supremo Tribunal e a decisão do Juiz. A declaração de que o réu devia restituir a coisa com os acessórios deriva da própria natureza da reivindicação. A procedência da reivindicação leva, neces-sariamente, a esse resultado. Durante o processo de reivindicação, o réu opôs, como afirma, defesa radical. Pretendia ser dono pelo usucapião. Esse usucapião chegou a ser reconhecido e, depois, foi negado, de modo que as questões que sur-gem nos autos apresentavam esse aspecto. contra a afirmativa do reivindicante opôs-se a afirmativa do réu, que declarou ser o dono. A decisão do Supremo Tribunal não reconheceu o usucapião. é exato que se mandou restaurar a sen-tença de primeira instância e por esta é o réu constrangido a devolver ao autor a coisa reivindicada com seus acessórios, o que é a conseqüência da reivindicação.

Não suscitou o réu, durante o processo, a alegação de benfeitorias porque pretendia ser dono, e ninguém pode ser, ao mesmo tempo, benfeitorizador e dono, para o efeito de que se trata. Não reconhecido o seu direito de dono, ele pretende indenização pelas benfeitorias, o que não briga com a sentença exeqüenda. O caso não se ventilava no juízo da ação, onde só se discutiu a questão do domínio.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Mas no processo reivindicatório é que havia de ser reconhecida a boa ou má-fé do possuidor, caso decaísse da sua propriedade.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato (Presidente): A questão de má-fé foi suscitada, mas não quanto à questão das benfeitorias, senão para o reconheci-mento da prescrição aquisitiva. Pessoalmente, concluí que o réu era mandatário e, como tal, não podia usucapir.

Mas foi esse pronunciamento individual.O que o acórdão mandou foi restaurar a sentença de primeira instância

e não se desdobrou controvérsia sobre benfeitorias, afastada, aliás, pela defesa radical que opunha, contra o A., alegação de domínio.

A única dúvida possível dizia respeito, pois, à oportunidade da alega-ção de benfeitorias, pela primeira vez, no processo de execução, mas não se

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demonstrou, a esse propósito, ofensa de letra de lei. E nem se argumentou, ao que me parece, nesse sentido.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Então V. Exa. reconhece a má-fé do réu. Por conseguinte, não havia direito à retenção.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato (Presidente): Já aludi ao meu voto. Mas o de que se trata é de verificar a extensão da sentença, que é, ao cabo de contas, o que prevalece.

O que se alegou foi infringência do julgado, desrespeito da res iudicata, através de argumentos que se enterreiram em plano doutrinário, termos em que não conheço do recurso.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Admitiria e admito mesmo que houve infração do disposto no art. 516 do código civil, quando, somente, se dá ao possuidor de má-fé o direito de haver indenização com benfeitorias úteis e neces-sárias, mas sem o direito de retenção, nem o ius tollendi. Houve, portanto, infração.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato (Presidente): Seria necessário que V. Exa. demonstrasse que a decisão predominante eliminasse o direito a indeni-zação das benfeitorias pela má-fé do possuidor.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Na reivindicação é que devia ser apreciada a questão, não pela execução.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato (Presidente): Na reivindicação, foi jul-gado improcedente o usucapião, sem que algo se decidisse quanto às benfeitorias.

Não conheço do recurso, de acordo com o eminente Sr. Ministro Relator.

DEcISÃOcomo consta da ata, a decisão foi a seguinte:conheceram do recurso e deram-lhe provimento, contra o voto do

Relator e do Presidente.

RECURSO ExTRAORDINáRIO 11.682 — AM

VOTO(Preliminar)

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, apesar de sua imensa autoridade, Pedro Lessa não conseguiu fazer vingar a doutrina, que

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Ministro Hahnemann Guimarães

sustentou, de ser o Supremo Tribunal Federal uma terceira instância. O Supremo Tribunal Federal é uma instância extraordinária. Poder-se-á dizer, em face do in-ciso II do art. 101, que será o Supremo Tribunal Federal uma terceira instância, nos dois casos ali citados, em que se admite um recurso ordinário. Mas, quanto ao disposto no art. 101, inciso III, é evidente que se afirma o princípio de que todas as decisões de outras Justiças são irrecorríveis; o que o art. 120 afirma da Justiça Eleitoral aplica-se, em virtude do inciso III do art. 101, a todas as Justiças; as de-cisões de todas as outras Justiças são irrecorríveis; elas não se podem impugnar, para que o Supremo Tribunal Federal as aprecie, senão extraordinariamente.

O art. 120 teve, a meu ver, sem dúvida, o intuito de reafirmar uma regra do art. 101, inciso II, e de abrir uma exceção ao inciso III do mesmo art. 101. Efetivamente dispõe o art. 120: “São irrecorríveis as decisões do Tribunal Su-pe rior Eleitoral” – isso, como eu pretendia assinalar, afirma-se de todas as Justiças; as decisões de todas as outras Justiças também são irrecorríveis, pois o Supremo Tribunal Federal não é uma terceira instância –, “salvo as que de-clararem a invalidade de lei ou ato contrário à constituição e as denegatórias de habeas corpus ou mandados de segurança, das quais caberá recurso para o Supremo Tribunal Federal”. Nesta segunda parte do art. 120 reafirmou-se, quanto ao Tribunal Superior Eleitoral, o disposto no art. 101, inciso II, mas ape-nas na letra a, excluindo-se a letra b, porque o art. 101, inciso II, diz: “compete ao Supremo Tribunal Federal julgar, em recurso ordinário [letra a] os mandados de segurança e os habeas corpus, decididos em última instância pelos tribunais locais ou federais, quando denegatórias as respectivas decisões; [letra b] as cau-sas decididas ( … )”. O art. 120 manteve, a respeito da Justiça Eleitoral, apenas a letra a, excluindo a letra b do inciso II do art. 101.

Daí, a meu ver, o evidente propósito do legislador constituinte de, no art. 120, estabelecer exceção à regra enumerada no art. 101. Quanto aos recur-sos ordinários, só admitiu o da letra a, e, quanto aos recursos extraordinários, o art. 120 só admite que sejam eles interpostos das decisões do Tribunal Superior Eleitoral que declararem a invalidade de lei ou ato contrário a constituição.

Estabeleceu-se, assim, uma exceção ao inciso III do art. 101, permitindo-se que, em matéria eleitoral, caiba recurso para o Supremo Tribunal Federal apenas no caso da letra b do inciso III, ao qual se acrescentou, entretanto, a hipótese do ato inconstitucional, uma vez que a letra b prevê apenas a hipótese de lei inconstitucional, dizendo-se caber recurso extraordinário quando se ques-tionar sobre a validade da lei federal, em face da constituição.

O legislador constituinte, no art. 120, estabeleceu caber o recurso extraor-dinário, em matéria eleitoral, para o Supremo Tribunal Federal, não só quando se declarar a invalidade da lei, em face da constituição, mas também quando se declarar a invalidade de qualquer ato, em face da constituição, pois que, em

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Memória Jurisprudencial

matéria de ato, caberá recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal apenas quando o ato for do Governo local, nos termos da letra c do mesmo in-ciso III do art. 101.

Assim, Senhor Presidente, entendendo que o art. 120 cria para a Justiça Eleitoral uma exceção quanto às regras enumeradas no art. 101, estou de acordo, inteiramente, com o eminente Sr. Ministro Relator: não conheço do recurso.

RECURSO ExTRAORDINáRIO 13.160 — SP

Para ser completo o ressarcimento do patrimônio diminuído pela expropriação, deve pagar-se ao réu vencedor o que razoavel-mente despendeu para retribuir os serviços do advogado. Essa despesa corresponde a certa quota usual da diferença entre o justo preço e o oferecido pelo expropriante.

AcÓRDÃOVistos, relatados e discutidos estes autos de RE 13.160, de São Paulo,

em que é recorrente a Municipalidade de São Paulo, sendo recorrido Gustavo Backeuser, acordam, em Segunda Turma, os Ministros do Supremo Tribunal Federal conhecer do recurso e, por maioria de votos, negar-lhe provimento, em conformidade com as notas juntas.

Rio de Janeiro, 8 de abril de 1949 — Edgard costa, Presidente — Hahnemann Guimarães, Relator.

RELATÓRIOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Em sentença de 17 de setembro

de 1947 (fls. 102 e 103), o Juiz dos Feitos da Fazenda Municipal, Dr. Antônio carlos Pereira da costa, condenou a Municipalidade de São Paulo a pagar a Gustavo Backeuser, pela desapropriação de terreno da rua Machado de Assis, esquina da rua Guimarães Passos, a quantia de cr$ 450.000,00, e os honorários do advogado do réu, arbitrados em 10% da diferença entre a quantia oferecida pela autora e a fixada pela sentença, como justo preço do prédio.

Ao acórdão de 30 de janeiro de 1948 (fl. 126), que confirmou a sentença, a autora opôs recurso fundado no art. 101, III, a e d, da constituição, porque a condenação ao pagamento de honorários violara a letra dos arts. 63 e 64 do código de Processo civil e dos arts. 20 e 30 do Decreto-Lei 3.365, de 1941, e divergira da jurisprudência (fls. 127 a 129).

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Ministro Hahnemann Guimarães

A recorrente deduziu alegações de fls. 141 a 148, contrariadas pelo recor-rido, de fls. 151 a 154.

Segundo reiterada opinião, o Sr. Procurador-Geral da República entende que o recurso merece provimento (fl. 162).

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): O acórdão impugnado

está exatamente conforme à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.No julgamento dos embargos opostos no RE 10.123, do Distrito Federal,

em 2 de julho de 1948, sustentei que, negando-se a pagar o justo preço, o expro-priante deve sofrer a poena temere litigantium, nos termos do art. 63 do código de Processo civil. O expropriado foi compelido a sustentar o litígio, porque o autor não quis concordar com o valor real da coisa, cedendo à impugnação do réu, como se prevê no art. 22 do Decreto-Lei 3.365, de 21 de junho de 1941. Essa pena decorre do princípio de que, perdendo a lide, o litigante deve reembolsar das despesas feitas na causa o adversário (decreto-lei citado, art. 30).

Há, porém, outro argumento, talvez de maior peso, em favor da condena-ção do expropriante vencido nos honorários devidos ao advogado do réu, calcu-lados sobre a quantia em que o justo preço ultrapassou o oferecido.

é o de que não será completo o ressarcimento do patrimônio diminuído pela expropriação, se o réu vencedor não obtiver o pagamento da despesa razo-ável, que foi obrigado a fazer, para retribuir os serviços de seu advogado. A in-denização deve reintegrar o patrimônio atingido pela desapropriação, que só é lícita quando se repara o dano causado ao proprietário.

Essa é a jurisprudência preponderante, embora não lhe tenham dado seu valioso apoio os Srs. Ministros Lafayette de Andrada, Ribeiro da costa e Barros Barreto (Arquivo Judiciário, vol. 89, p. 127). Em decisão anterior, de 6 de maio de 1947, a Segunda Turma já afirmara que, se for condenado ao paga-mento de preço que exceda o oferecido, o expropriante terá de indenizar o ex-propriado pelos honorários de advogado, calculados sobre o excesso (Diário da Justiça, 10-11-1948, ap., p. 3012).

conheço, em conclusão, do recurso e lhe nego provimento.

VOTOO Sr. Ministro Abner de Vasconcelos: Senhor Presidente, estou de acordo

com o voto do eminente Sr. Ministro Relator e com a jurisprudência deste Supremo Tribunal. conheço do recurso e lhe nego provimento.

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Memória Jurisprudencial

VOTOO Sr. Ministro Lafayette de Andrada: Senhor Presidente, conheço do re-

curso e lhe dou provimento, para excluir os honorários do advogado, os quais não admito em desapropriações.

VOTOO Sr. Ministro Edgard costa (Presidente): Acompanho o voto do emi-

nente Sr. Ministro Relator, sob o fundamento de não haver desfalque na indeni-zação, de maneira a corresponder esta ao justo valor do imóvel desapropriado. Nessas condições, conheço do recurso e lhe nego provimento.

DEcISÃOcomo consta da ata, a decisão foi a seguinte:conheceu-se do recurso, unanimemente, e negou-se-lhe provimento con-

tra o voto do Ministro Lafayette de Andrada.Presidiu o julgamento o Ministro Edgard costa.Deixaram de comparecer o Ministro Orozimbo Nonato, por se achar em

gozo de licença, e o Ministro Goulart de Oliveira, por motivo justificado.

RECURSO ExTRAORDINáRIO 31.179 — DF

Compete exclusivamente a autoridade eclesiástica decidir a questão sobre as normas de confissão religiosa, que devem ser res-peitadas por uma associação constituída para o culto.

AcÓRDÃOVistos, relatados e discutidos estes autos número 31.179, a Segunda

Turma do Supremo Tribunal Federal conhece do recurso de D. Jaime de Barros câmara, e lhe dá provimento, conforme as notas juntas.

Rio de Janeiro, 8 de abril de 1958 — Lafayette de Andrada, Presidente — Hahnemann Guimarães, Relator.

RELATÓRIOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Restaurou-se em embargos a

sentença apelada (fl. 292), pois cabia a ação do cPc, art. 371, para a defesa do

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Ministro Hahnemann Guimarães

direito de eleger a autora sua administração pelo compromisso de 1858 e 1861, sem a intervenção das autoridades eclesiásticas; e para impedir que a Junta Interventora reformasse o compromisso, segundo o Direito canônico, que é “direito estrangeiro” (fl. 738).

Os réus alegaram violação do Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890, e da constituição de 1891, art. 72, § 3º, conforme a jurisprudência (fl. 1144).

As partes arrazoaram (fls. 1162 e 1246).

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): conheço de recurso pe-

los fundamentos indicados, e lhe dou provimento. A autoridade temporal não pode decidir questão espiritual, surgida entre a autoridade eclesiástica e uma as-sociação religiosa. Esta impossibilidade resulta de completa liberdade espiritual, princípio de política republicana, que conduziu à separação entre a Igreja e o Estado, por memorável influência positivista, de que foi órgão Demétrio Ribeiro, com o projeto apresentado ao Governo Provisório em 9 de dezembro de 1889.

O citado Decreto 119-A proíbe ao poder público intervir na disciplina das associações religiosas, dispondo, no art. 3º, que a liberdade de culto “abrange não só os indivíduos nos atos individuais, senão também as Igrejas, associações e institutos em que se acharem agremiados; cabendo a todos o pleno direito de se constituírem e viverem coletivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder público”.

Esta proibição tem de ser observada sob a constituição vigente, que garante, no art. 141, § 7º, a liberdade de culto, como as constituições de 1891, art. 72, § 3º; de 1934, art. 113, 5; e de 1937, art. 122, 4.

compete exclusivamente à autoridade eclesiástica decidir a questão sobre as normas da confissão religiosa, que devem ser respeitadas por uma associação constituída para o culto. Esta não se isenta da disciplina espiritual, por ser pes-soa jurídica de direito civil, ou por ser, na Igreja católica, associação approbata, e não erecta.

A recorrida é associação religiosa, católica, constituída para o culto da Eucaristia. Seu compromisso dispõe, no art. 1º: “O serviço e culto do Santíssimo Sacramento, para cujos fins foi instituída esta Irmandade, consti-tuem a parte essencial dos seus deveres e a base fundamental das obrigações de todos os irmãos”. A Irmandade não pode conseguir seus fins sem respeitar as leis da Igreja católica, que não são direito estrangeiro, na disciplina eclesiástica.

Exercendo a jurisdição espiritual, o recorrente exigiu a observância do cânone 715 e da Lei Sinodal, art. 229. Não satisfeita a exigência, anulou a

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Memória Jurisprudencial

eleição e nomeou a Junta Interventora. Estes atos não podem ser considerados pelo poder público turbativos da posse.

Julgo improcedente a ação, restaurando a decisão de fl. 459.

VOTOO Sr. Ministro Afrânio Antônio da costa: O fim essencial, precípuo, das

irmandades religiosas é a difusão da fé católica.O roteiro é a doutrina de cristo, para cuja aplicação se torna indispensá-

vel a observância das regras emanadas das autoridades eclesiásticas e consubs-tanciadas no Direito canônico.

O código de Direito canônico é o corpo das regras que orientam as práti-cas religiosas do cristianismo. A submissão a elas é essencial para a manutenção do culto.

A parte temporal, os bens, a administração das irmandades entram como amparo à parte espiritual.

é, todavia, parte secundária, subsidiária inteiramente da primeira.Procurar subtrair à disciplina das autoridades eclesiásticas a direção das

irmandades seria subverter-lhes completamente a finalidade.E, no caso vertente, o art. 1º do compromisso da irmandade é taxativo

quanto ao seu objetivo. A personalidade jurídica é reconhecida para que esse objetivo seja observado e não descumprido.

Pretende a recorrida, através de um curioso raciocínio, sobrepor-se às autoridades eclesiásticas, recusando-lhes obediência, mas aproveitar-se dos be-nefícios que lhe podem advir do culto.

A autonomia da irmandade, como pessoa jurídica, não pode significar esse afastamento pretendido pela recorrida.

Já o Supremo Tribunal, através de julgados memoráveis, sufragou a tese dos recorrentes.

Acompanho integralmente o voto do Sr. Ministro Hahnemann Guimarães.

DEcISÃOcomo consta da ata, a decisão foi a seguinte:conheceram do recurso e lhe deram provimento. Decisão unânime.Ausente, justificadamente, o Ministro Vilas Boas.Tomaram parte do julgamento os Ministros Hahnemann Guimarães

(Relator), Sampaio costa, Afrânio costa (substitutos, respectivamente, dos

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Ministro Hahnemann Guimarães

Ministros Ribeiro da costa, que se acha em gozo de licença, e Rocha Lagôa, que se encontra em exercício no Tribunal Superior Eleitoral) e Lafayette de Andrada, Presidente da Turma.

HABEAS CORPUS 34.103 — SP

RELATÓRIOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, foram-me

distribuídas três petições de ordem de habeas corpus, em favor do doutor Ademar Pereira de Barros, condenado a dois anos de reclusão, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos da Ação Penal 43.732, em 6 de março último.

O acórdão impôs a pena de dois anos de reclusão, multa de cinco mil cruzeiros e a interdição de direitos, nos termos do art. 69, inciso I, e parágrafo único, inciso I, do código Penal.

O Tribunal rejeitou a preliminar de sua incompetência, entendendo que aprovação das contas pela Assembléia Legislativa não excluía a apreciação da ação penal fundada em peculato, imputado ao paciente. As contas aprovadas, pela Assembléia Legislativa, abrangeriam o exercício financeiro de 1949, e nestas con-tas não figurava o fato que deu causa à ação penal ajuizada no Tribunal de Justiça.

Essa preliminar foi rejeitada por unanimidade de votos. Rejeitou o Tribunal, por 22 votos contra 6, a preliminar de coisa julgada, porque a defesa alegou que a absolvição dada no Processo 43.530, pelo acórdão de 9 de novem-bro de 1955, constituía coisa julgada sobre o fato principal, que excluía a ação penal do segundo processo, de número 43.732.

O Tribunal não aceitou essa preliminar, porque entendeu que não havia crime continuado e porque os fatos que deram causa às ações penais eram dis-tintos, não se confundiam.

No primeiro caso, teria sido imputada ao paciente a apropriação de 31 veí culos automotores e, no segundo, ter-se-ia imputado o crime de apropriação de valor pertencente à Força Pública de São Paulo. Esse valor consistiria no che-que 371.778 contra o Banco Ítalo-Belga, de cr$ 378.352,50.

Entendeu o Tribunal de Justiça paulista que a apropriação desse valor nada tinha que ver com a apropriação dos 31 automóveis, segundo a denúncia constante do primeiro processo, de número 43.530.

Afinal, o Tribunal de Justiça, por 16 contra 12, condenou o paciente nos termos do art. 312 do código Penal, pelo crime de peculato, por se haver

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Memória Jurisprudencial

apropriado, no segundo processo feito, do pagamento de veículos que já tinham sido pagos, por intermédio do Banco do Estado de São Paulo.

A primeira petição consta dos autos de número 34.093, e está subscrita pelos advogados Milton Augusto Asensi e Arnoldo c. Peres.

Estes requerentes desistiram do pedido, conforme petição protocolada a 10 de abril último.

A segunda petição consta dos autos de número 34.103. Está subscrita por Antonio Mesquita Pereira e pelo advogado Luiz Mezavilla.

Nessa petição, alega-se a nulidade da condenação: primeiro, por ilegiti-midade de parte, porque não era titular da ação penal, inicialmente, o Ministério Público, mas a iniciativa cabia à Assembléia Legislativa, que aprovara as contas do exercício de 1949, e só poderia ter essa iniciativa por meio de representação. Além disso, a Assembléia Legislativa local, pela aprovação das contas, elimi-nara a punibilidade pelo crime de peculato e, se essa punição fosse possível, seria necessário um reexame das contas do paciente, o que só poderia fazer a própria Assembléia Legislativa.

São esses, Senhor Presidente, os três argumentos capitais da segunda peti-ção, de 12 folhas, a que se juntou uma folha do Diário Oficial de 13 de março pas-sado, com o acórdão de 6 do mesmo mês, isto é, o acórdão impugnado pela petição.

Afinal, a terceira petição consta dos autos de número 34.114, apresentada pelo próprio paciente, Dr. Ademar Pereira de Barros, e por seu advogado, Dr. Oscar Pedroso Horta.

é uma petição de 152 folhas, acompanhada de documentos que se esten-dem de fls. 154 a 316, dos autos, com vários pareceres.

À fl. 321, acha-se outra petição, solicitando que fossem requisitados os autos dos processos penais de número 43.530 e 43.732.

Afinal, às fls. 323 e 339, juntaram-se mais dois pareceres.Os requerentes iniciam a petição apreciando os fatos políticos e partidá-

rios que haviam dado origem às duas ações penais.Não me parece oportuno deter-me em considerações em torno desses fatos,

porque acho que não têm nenhuma relevância para a decisão da causa. Não a ti-veram no Tribunal de Justiça de São Paulo e, por certo, não terão nesta instância.

Os argumentos de ordem jurídica em que se baseia a petição são os seguintes, isto é, os que interessam à decisão da causa: primeiro – incompe-tência do Tribunal de Justiça, porque a competência para apreciar as contas e, portanto, qualquer irregularidade nelas cometida pelo Governo do Estado é da Assembléia Legislativa, dado o sistema parlamentar adotado em nosso direito.

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Ministro Hahnemann Guimarães

A Assembléia Legislativa, de acordo com o parecer do Tribunal de contas, aprovou as contas relativas ao exercício de 1949 e, assim, não havia como o Tribunal de Justiça, reexaminando essas contas, nelas descobrir a prática do crime de peculato. A aprovação das contas, pela Assembléia Legislativa, tolhia a competência do Tribunal de Justiça para apreciar crime resultante de irregula-ridade ou de ilegalidade, na observância da lei orçamentária.

O segundo argumento se refere à defeituosa constituição do Tribunal de Justiça, e por três razões: primeira, o Tribunal de Justiça deveria constituir-se apenas de seus membros efetivos. Entendem os requerentes que não podiam fazer parte do Tribunal de Justiça, para essa causa, membros substitutos ou provisórios; só desembargadores poderiam constituir o Tribunal incumbido de julgar réu de crime em que o próprio Tribunal fosse competente, nos termos do art. 87 do código de Processo Penal. Esta seria a primeira razão da defeituosa constituição do Tribunal de Justiça de São Paulo.

A segunda razão: foram convocados, para fazer parte do Tribunal de Justiça, três juízes de 4ª entrância. Não se observou, entretanto, na convocação desses três juízes, a ordem rigorosa de antiguidade. O que deveria ter observado o Presidente do Tribunal de Justiça, na convocação. Seria, assim, nulo o julga-mento, por esse fundamento.

A terceira razão da defeituosa constituição do Tribunal de Justiça: sete juízes se declararam impedidos por suspeição, sem que tivessem declinado a na-tureza da suspeição, nos termos dos arts. 97 e 254 do código de Processo Penal.

Não é lícito, afirmam os requerentes, a um Juiz dar-se de suspeito, sem que indique a causa de suspeição, nos termos do artigo 254 do código de Processo Penal.

O terceiro argumento é que estaria extinta a segunda ação penal, pela coisa julgada.

Não era possível, ao Tribunal de Justiça, julgar o fato imputado ao paciente, no processo de Ação Penal 43.732, quando deste fato já tinha sido absolvido, em processo anterior, de número 43.530. O acórdão proferido no segundo processo, isto é, o acórdão de 6 de março último, seria incoerente com o acórdão anterior dado no Processo 43.530. Afirmam os requerentes que o Tribunal de Justiça, na primeira ação penal, absolvera o paciente do crime de peculato, por entender que ele assumira o compromisso de pagamento da dívida, que, a princípio, fora contraída pelo Governo do Estado, com o Banco do Estado de São Paulo, que se obrigara, com a General Motors, a pagar a importância de dois milhões, oitocen-tos e oitenta e cinco mil cruzeiros, pela aquisição de 36 veículos automotores, sendo 25 caminhões da marca “chevrolet”, tipo “Gigante”, e 11 automóveis, tipo “Sedan”, sendo dez da marca “chevrolet” e outro da marca “Oldsmobile”.

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Memória Jurisprudencial

O Tribunal de Justiça, na primeira decisão, entendeu que só o paciente comprara esses 36 veículos automotores. Assim, só ele assumira o compromisso de pagamento da dívida, correspondente ao preço desses automóveis, no valor de dois milhões, oitocentos e oitenta e cinco mil cruzeiros; e, se o Estado nada pa-gou desse capital, nem juros, o paciente não se apropriara de bens pertencentes ao Estado. Além de não se admitir a possibilidade de apropriação, estaria exclu-ído o crime de peculato, nos termos do código Penal, porque não teria havido o dolo genérico. Portanto, o crime de peculato estaria excluído, por não ter ocor-rido apropriação de bem público e, ainda, porque, caso se admitisse essa apro-priação, estaria excluída pela falta do elemento doloso, por faltar ao paciente a consciência de se estar apropriando de bem público.

Afirmam então os requerentes: se o paciente foi absolvido do crime de peculato, no primeiro processo, não podia ser condenado por haver recebido o cheque da importância de cr$ 378.352,50, correspondente aos 5 caminhões incorporados à Força Pública, porque tal cheque dizia respeito ao destinatário, sem dúvida o paciente, que assumira a obrigação de pagar a importância total dos 36 veículos. O preço das viaturas incorporadas à Força Pública, sem qual-quer dúvida, deveria ser pago ao próprio paciente. Nesse pagamento, de que era natural destinatário, não há possibilidade de se vislumbrar o crime de peculato, dizem os requerentes.

Afinal, sustentam os requerentes: a ação penal deveria ter sido rejeitada, pela inexistência do crime previsto no art. 312 do código Penal. Não se praticou tal crime, porque não ocorreu dano atual, dano efetivo, e o dano potencial não basta para caracterizar o crime de peculato. Além disso, não haveria o dolo ge-nérico, com que se integra a figura delituosa.

São esses, Senhor Presidente, os argumentos a que se pode resumir a terceira petição.

Ao pedido de informações, constante do meu oficio de 12 de abril último, respondeu o eminente Senhor Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Desembargador Alexandre Delfino de Amorim Lima, com o ofício de 20 de abril, recebido dia 23, pelo motivo seguinte: dia 21 foi feriado; 22, domingo. Recebi, portanto, no primeiro dia útil, o ofício mandado em 20 de abril.

Nele, o Senhor Presidente do Tribunal de Justiça dá-se ao trabalho, para mim desnecessário, de considerar o argumento relativo aos fatores políticos das ações penais. Não me parece que S. Exa. devesse entrar nessa parte da petição inicial, destituída de qualquer relevância jurídica, para a decisão da causa.

Quanto à incompetência do Tribunal de Justiça, pondera o Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo: as contas aprovadas pela Assembléia Legislativa, com o parecer do Tribunal de contas, não abrangem o fato imputado

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Ministro Hahnemann Guimarães

ao paciente. São contas que dizem respeito apenas ao exercício financeiro de 1949, à gestão do exercício financeiro, não abrangendo particularmente o fato de que resultou a ação penal.

No que concerne à defeituosa constituição do Tribunal de Justiça, acha o respectivo Presidente que foi muito bem constituído.

O Tribunal de Justiça paulista constitui-se, não só dos membros efetivos, como daqueles que no Tribunal exercem jurisdição, de acordo com a Lei de Organização Judiciária.

Ora, o Tribunal de Justiça de São Paulo compõe-se de 36 desembargado-res. Estavam afastados ou em férias 10 desembargadores. Havia, portanto, 26 desembargadores. Era mister a convocação dos juízes substitutos de 2ª instân-cia. Existe, em São Paulo, essa categoria de juiz substituto. Foram convocados os seis juízes substitutos de 2ª instância, mas o Dr. Dimas de Almeida, um dos juízes substitutos, alegou suspeição. Os 6 juízes substitutos, assim, ficaram reduzidos a 5, e, de acordo com a Lei da Organização Judiciária, foram con-vocados 3 juízes de 4ª entrância. Não se observou, realmente, na convocação desses juízes, a rigorosa ordem de antiguidade, mas trata-se de juízes da maior competência, sendo um deles penalista consumado, como salienta o Presidente do Tribunal de Justiça, em suas informações. Por outro lado, a convocação dos juízes de 4ª entrância se fez com a anuência do conselho de Magistratura. O Presidente do Tribunal da Justiça fez a convocação com urgência e, assim, não era possível que observasse, nessa convocação, rigorosamente formalida-des. Fê-la conforme a legislação da organização judiciária local.

Ficou, desse modo, o Tribunal constituído de 20 desembargadores, 5 juí-zes substitutos de 2ª instância, 3 juízes de 4ª entrância. Ao todo, 28 juízes, que julgaram a causa, juízes no exercício pleno de suas jurisdições. O Tribunal foi, assim, bem constituído.

A respeito da coisa julgada, entende o Presidente do Tribunal de Justiça que não ocorreu – o paciente fora responsabilizado por fato subseqüente ao pri-meiro peculato, que, aliás, dele se distingue.

Se os primeiros atos constituem apenas atos de improbidade, o segundo fato, de apropriação da verba da Força Pública, constituiria, segundo o pa-recer do Presidente do Tribunal de Justiça, positivamente crime de peculato. O paciente não se detivera no iter criminis, fora adiante, não se limitando à apropriação dos 31 “chevrolet”, caminhões e carros de passeio, no segundo processo, se apropriara da verba da Força Pública, coisa distinta da apropriação do primeiro processo.

Assim, Senhor Presidente, dou por feito o relatório.

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Memória Jurisprudencial

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Senhor Presidente, cabe-

me em primeiro lugar, manifestar a minha homologação ao pedido de desistência constante do autos da primeira petição de habeas corpus, número 34.093.

Passando aos dois outros pedidos de ordem de habeas corpus, devo, em primeiro lugar, apreciar a preliminar de incompetência do Tribunal da Justiça. Rejeito-a. Não me parece que a aprovação das contas pela Assembléia Legislativa excluísse a competência do Tribunal de Justiça para conhecer do crime de peculato, por fato não abrangido nestas contas, expressamente.

As contas dizem respeito apenas à gestão financeira. Não se acusou o Dr. Ademar Pereira de Barros de ter exorbitado dos limites orçamentários; as contas foram bem aprovadas. Mas esta aprovação das contas não excluía a possibilidade de haver ele praticado um crime de peculato pela apropriação da verba de cr$ 378.352,50.

Não me parece, também, que haja sido mal constituído o Tribunal de Justiça de São Paulo para o conhecimento da causa.

O Tribunal, mesmo no caso do julgamento de um governador de Estado, não se constitui apenas dos seus membros efetivos, mas, também, daqueles que, pela Lei de Organização Judiciária local, devem integrá-lo, completando quorum porventura deficiente.

No caso, o Tribunal de Justiça de São Paulo, constituído de 36 desembar-gadores, estava com 10 deles afastados, ou em férias. Era necessária a convoca-ção de juízes que suprissem a ausência desses 10 desembargadores.

Foram convocados, como já salientei no relatório, 6 juízes substitutos de segunda instância, dos quais um, o Dr. Dimas de Almeida, se deu de suspeito.

Além desses 5 juízes substitutos de 2ª instância, funcionaram 3 juízes de 4ª entrância, que foram, a meu ver, regularmente convocados, de acordo com a legislação de organização judiciária local e com a aprovação do conselho da Magistratura.

Quanto a não haverem os juízes, que se declararam impedidos, indicado o motivo de sua suspeição, nos termos do art. 254 do código de Processo Penal, não me parece que constitua isto nulidade.

é verdade que, em acórdão deste Supremo Tribunal, afirmou o eminente Ministro Edgard costa que, se o juiz não justificar a sua suspeição, serão nulos os atos praticados pelo seu substituto.

No caso, os 7 juízes impedidos não tiveram substitutos. O Sr. Desem-bargador Amorim Lima salienta, em suas informações, que, apesar de ser

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Ministro Hahnemann Guimarães

permitida a substituição dos juízes impedidos, por outros juízes de inferior ins-tância, não os convocou ele, entretanto.

Os juízes impedidos, que se declararam suspeitos, não foram substituídos.Passo, agora, ao motivo que me parece mais significativo, isto é, a exce-

ção da coisa julgada.como salientei, em meu relatório, o Tribunal da Justiça, no acórdão pro-

ferido em 6 de março último, nos autos da Ação Penal 43.732, julgou improce-dente esta exceção, por 22 votos, contra 6.

Devo suprir, aliás, omissão do meu relatório: o Senhor Presidente do Tribunal de Justiça remeteu, com as suas informações, manifestações do Ministério Público e, em fotocópia, integralmente os autos do referido Processo 43.732, onde consta que o Tribunal de Justiça rejeitou a exceção de coisa jul-gada, pelas seguintes razões.

À fl. 570, diz o Tribunal que improcede a argüição de coisa julgada, por-que não houve crime continuado.

À fl. 571, diz-se que não há unidade de fatos: apropriação de veículos e apropriação de verba da Força Pública. Os cinco caminhões eram estranhos à primeira apropriação.

Às fls. 572 e 573, diz-se que é impossível considerar a segunda ação, dis-tinta da primeira em seus elementos subjetivo e objetivo, ato material da execu-ção do primeiro delito.

Rejeita, portanto, o acórdão que possa o segundo delito considerar-se continuação do primeiro, desde que se distinguem subjetiva e objetivamente.

À fl. 575, afirma-se que o réu não pretendeu assumir a responsabilidade pelo pagamento dos caminhões entregues à Força Pública.

Afinal, à fl. 576, diz-se que o paciente, Dr. Ademar Pereira de Barros, se apropriou do segundo pagamento.

Teria havido dois pagamentos: um, feito pela Secretaria do Governo de São Paulo, por intermédio do Banco do Estado, à General Motors, e o segundo pagamento, feito pela Força Pública.

coisa julgada, pode-se deduzir da disposição do art. 110, § 2º, do código de Processo Penal, é a resultante de decisão definitiva e irrecorrível, proferida sobre o fato principal, que constituiu a causa petendi.

A coisa julgada, no processo penal, caracteriza-se pela identidade de causa petendi, do fato que dá lugar ao pedido de ação penal. Qual o fato prin-cipal, no caso? O fato principal, no caso, foi haver a Secretaria do Governo,

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Memória Jurisprudencial

conforme diz o primeiro acórdão do Tribunal de São Paulo, comprado 36 au-tomóveis por cr$ 2.885.000,00, sendo 25 caminhões “chevrolet Gigante” e 11 automóveis tipo “Sedan”, os quais foram pagos pelo Banco do Estado aos vendedores, a General Motors. O paciente, Ademar Pereira de Barros, diz a de-núncia, se apropriara desses bens comprados pela Secretaria do Governo ou do preço a eles correspondente. Esse o fato principal, que deu lugar à ação penal. Sobre esse fato principal é que versa o acórdão proferido a 9 de novembro de 1955, nos autos da Ação Penal 43.530, do Tribunal de Justiça de São Paulo. Diz o acórdão, em certa passagem:

Mas um embaraço surgira com a incorporação dos cinco primeiros ca-minhões ao patrimônio da Força Pública: o preço destes veículos deveria, então, ser pago ao acusado, uma vez que passaria ele a figurar como devedor do preço total de cr$ 2.885.000,00 pago pelo Banco, logo que se fizesse o estorno para a sua conta particular. Inconcebível seria a subsistência parcial do débito em nome da Secretaria e a transferência do restante para a conta do réu. Daí o outro plano a que se refere o processo distribuído ao Desembargador Laurindo Minhoto e cuja execução consumira alguns meses, durante os quais persistiu a situação originária, dada a impossibilidade de se proceder ao estorno contábil.

O acórdão do Tribunal de São Paulo faz, pois, referência expressa aos cinco caminhões abrangidos no preço total de cr$ 2.885.000,00. Mais adiante diz o mesmo acórdão:

O escopo originário da transação era a compra de veículos para a ad-ministração pública, por intermédio da Secretaria de Negócios do Governo. Logo depois de virtualmente firmado o contrato, descobriram-se obstáculos de ordem legal e orçamentária para o seu integral adimplemento por parte daquela Secretaria. Em conseqüência, inspirado por uma sugestão da própria vendedora, deliberou o réu assumir a posição da Secretaria, como verdadeiro comprador e real responsável pelo negócio, destinando-se apenas cinco caminhões ao serviço público e transferindo-se os demais veículos, posteriormente e por meio de um refaturamento, a ele próprio e a particulares, sem que se conseguisse completar a realização do plano urdido, com o estorno do débito para a sua conta particu-lar, em virtude de certas dificuldades alheias à sua vontade. E manifesto que, assim agindo, aproveitou-se o acusado, em benefício próprio e alheio, do prestí-gio, das regalias e até mesmo do crédito do Poder Público. E se é positivamente irrecusável a evidente improbidade administrativa que semelhante conduta de um governador de Estado envolve, todavia, o seu entrosamento no âmbito da ilicitude penal, como crime de peculato, segundo a classificação da denúncia, exige prévia e acurada investigação doutrinária, devido às especiais circunstân-cias que enleiam o fato.

Ainda o mesmo acórdão diz em outra passagem:

como se viu, a Secretaria de Negócios do Governo é que figurava como compradora, no contrato respondendo ela, perante o Banco do Estado como de-vedora da quantia mutuada. Entretanto, mal iniciada a execução do contrato, com

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Ministro Hahnemann Guimarães

a entrega dos primeiros carros pela vendedora, transferiu-se a direção do negócio para as mãos do Sr. José Soares de Souza, que se intitulava “assistente particular do Governador”. é o que ficou demonstrado, inclusive pelos dizeres do ofício de fls. após o qual o único ato da Secretaria relacionado com a execução do contrato foi o ofício de 24 de setembro, em que pede à General Motors, o cancelamento da compra, providências destinadas exclusivamente a proporcionar, digo, propi-ciar o refaturamento. é que, na verdade, o réu assumira a posição de comprador, substituindo-se à Secretaria, embora continuasse essa a figurar como responsável pela abertura de crédito bancário. Foi essa a razão por que a vendedora entregou os 31 veículos restantes a prepostos particulares do acusado, credenciados pelo seu assistente particular, se bem que o faturamento inicial se fizesse em nome da Secretaria. Nenhuma dessas pessoas exercia, no momento, funções públicas. Eram empregados particulares do réu, como afirma o próprio Soares de Souza no seu depoimento de folhas, nada se provando em sentido contrário.

Diz adiante o acórdão textualmente:

O Estado nada pagou ao Banco, nem mesmo parcela de juros precisa-mente porque jamais reconheceu como sua a dívida, hoje saldada pelo próprio acusado, ainda que na qualidade de terceiro.

Afinal diz o acórdão:

Finalmente, mesmo que se aceitasse a presença dos elementos integran-tes do peculato, até aqui, apreciados, forçoso seria reconhecer ainda, à vista das considerações anteriormente consignadas, a ausência de dolo genérico no com-portamento do réu. Faltaria sobretudo a consciência de se apropriar do dinheiro ou de bens pertencentes ao Estado, a vontade ou o ânimo de lesar o patrimônio da Administração Pública. Estava o réu sinceramente convencido de que os veí-culos lhe pertenciam por ter sido o verdadeiro comprador, ao mesmo passo que lhe caberia a inteira e exclusiva responsabilidade pelo pagamento do débito ao Banco do Estado. Advertido de que a Secretaria do Governo não dispunha de verba suficiente para fazer a compra, caso em que a lei o responsabilizava pelo pagamento do débito ao Banco do Estado. A, digo, responsabilizava pessoal-mente pelo pagamento da despesa, pretendeu ele desfazer o contrato. Diante, porém, da oposição da vendedora e da responsabilidade pelos gastos já efetua-dos, levianamente se deixou seduzir pela trama do refaturamento sugerido por ela mesma, destinando os 31 veículos a si próprio, a seus parentes correligioná-rios políticos e amigos. é bem verdade que, para executar o plano, não titubeou em aproveitar-se, inescrupulosamente, das regalias, do prestígio e até mesmo do crédito do Estado, dando causa a comprometedora e reprovável situação de que se originou o presente processo penal. contudo, menos certo não é, também, que de tudo isso somente se infere a prática de um crime de responsabilidade previsto na citada Lei 1.079, de abril de 1950, cujo processamento pelo órgão competente já não teria razão de ser. Defrontamo-nos na espécie, com o retrato fiel do improbus administrator, mas não de um peculatário.

como vê o Tribunal, o fato principal, de que resultou o segundo processo, foi detidamente considerado o primeiro acórdão, de 9 de novembro de 1955,

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Memória Jurisprudencial

proferido no Processo 43.530, do Tribunal de São Paulo. Aí se afirma, expressa-mente, primeiro, que o único comprador dos 36 caminhões foi Ademar Pereira de Barros, que se substituiu à Secretaria do Governo; segundo, que Ademar Pereira de Barros assumiu a dívida de dois milhões oitocentos e oitenta e cinco mil cruzeiros; terceiro, que Ademar Pereira de Barros não teria agido com dolo genérico. Ora, se, a respeito do fato principal, assim entendeu o acórdão abso-lutório, não é possível que o segundo acórdão imponha a Ademar Pereira de Barros condenação por ter recebido pagamento de que era o necessário destina-tário. O pagamento do cheque emitido por cássio Muniz S.A. tinha por desti-natário necessário Ademar Pereira de Barros, porque a Força Pública não havia pago os 5 caminhões incorporados à sua frota. Daí o plano engendrado, e que consistia em vender à Força Pública os carros a cássio Muniz; este os revende-ria, incorporando-os a um lote de 12 caminhões, e emitiria cheque ao portador correspondente aos 5 caminhões que comprara e revendera simuladamente. Isto tudo se fez para que Ademar Pereira de Barros recebesse a importância de que era credor, por haver assumido a responsabilidade pelo pagamento total do preço dos 36 automóveis, isto é, cr$ 2.885.000,00.

Assim sendo, concedo a ordem, por julgar extinta a ação penal constante dos autos do Processo 43.732, julgado pelo acórdão de 6 de março de 1956, em virtude da coisa julgada resultante da decisão proferida nos autos do Processo 43.530 de 9 de novembro de 1955.

HABEAS CORPUS 36.402 — DF

Não pode ser expulso o estrangeiro que tenha filho brasileiro dependente da economia paterna.

AcÓRDÃOVistos estes Autos 36.402, concede-se habeas corpus a Moisés calina,

conforme as notas juntas.Rio de Janeiro, 7 de janeiro de 1959 — Orozimbo Nonato, Presidente —

Hahnemann Guimarães, Relator.

RELATÓRIOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, o advogado

Vivaldo Ramos de Vasconcelos requer ordem de habeas corpus em favor de

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Ministro Hahnemann Guimarães

Moisés calina, cuja expulsão foi decretada pelo Governo Federal em 30 de março 1936.

Alega o requerente que é o paciente pai de filhos nascidos no Brasil, fun-dando seu pedido nos arts. 141, § 23; 129, § 1º; e 143 da constituição Federal bem como no art. 647 do código de Processo Penal.

Em suas informações, o Exmo. Sr. Ministro da Justiça esclarece que, por ofício de 7 de março de 1936, o Secretário da Segurança Pública de São Paulo dirigiu-se ao Ministro Vicente Ráo, sugerindo a expulsão de diversos estrangei-ros, entre eles Moisés calina, romeno, assim se manifestando sobre eles:

Trata-se de elementos cuja presença no País é altamente perniciosa, devido às atividades extremistas que vinham desenvolvendo, conforme bem o demonstra a autoridade que presidiu o inquérito, no seu relatório de fls. 86 e seguintes.

Em face do exposto, foi lavrado o seguinte decreto:

O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil.considerando que o romeno Moisés calina, conforme foi apurado pela

Polícia do Estado de São Paulo, se tem constituído elemento nocivo aos interes-ses do País e perigoso à ordem pública;

Resolve, em conformidade com o disposto no art. 113, 15, da constituição da República, expulsar o referido estrangeiro do território nacional.

é o relatório.

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): concedo a ordem para

que o paciente não seja expulso do território nacional. O art. 143 da constituição não permite a expulsão de estrangeiro que tenha cônjuge brasileiro e filhos bra-sileiros, nos termos do art. 129, incisos I e II, dependentes da economia paterna.

Este Tribunal tem entendido nos últimos tempos, sem variação, que basta um dos requisitos. No caso, está provada a filiação por certidão que consta de fotocópia, conferida pelo oficial que autenticou essa cópia.

Sendo assim, concedo a ordem, nos termos do art. 143 da constituição.

VOTOO Sr. Ministro Luiz Gallotti: Senhor Presidente, eu, quando Procurador

da República, já sustentei opinião contrária à do eminente Sr. Ministro Relator. Mas, num exame mais detido do problema, convenci-me de que a razão está com S. Exa., porque o dispositivo da constituição no art. 143 é este:

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Memória Jurisprudencial

O Governo Federal poderá expulsar do território nacional o estrangeiro nocivo à ordem pública, salvo se o seu cônjuge for brasileiro e se tiver filho bra-sileiro (art. 129, I e II) dependente da economia paterna.

Ora, se a constituição tivesse dito: “salvo se o seu cônjuge for brasileiro e tiver filho brasileiro ( … )”, então seria caso de se exigirem os dois requisitos; mas dispondo como dispôs, formulou duas hipóteses diferentes em que a expul-são não cabe: “salvo se o seu cônjuge for brasileiro e se tiver filho brasileiro.” São, portanto, duas hipóteses em que se abre exceção à regra contida no artigo.

Assim, estou de acordo com o eminente Sr. Ministro Relator.

VOTOO Sr. Ministro Ribeiro da costa: Senhor Presidente, esta questão já

foi muito debatida neste Tribunal, não só em relação ao modo pelo qual é re-digido o atual texto da constituição Federal, como em relação ao texto das constituições anteriores, havendo até citações de vários autores, entre estes, carlos Maximiliano, e o Tribunal chegou, afinal, a uma compreensão pacífica quanto à aplicação do dispositivo que erige em favor da mulher ou dos filhos a proteção e a assistência material e moral do marido e pai, condições essas que impedem, desde que se objetive uma delas, a expulsão do cidadão, desde que seja casado com mulher brasileira ou que tenha filhos brasileiros.

Assim, acompanho integralmente o voto do eminente Sr. Ministro Relator.

DEcISÃOcomo consta da ata, a decisão foi a seguinte: contra o voto do Ministro

Barros Barreto, concederam a ordem para impedir a expulsão do paciente.Ausente, justificadamente, o Ministro Vilas Boas.Presidência do Ministro Orozimbo Nonato.Tomaram parte no julgamento os Ministros Hahnemann Guimarães

(Relator), Afrânio costa, Henrique D’Ávila (substitutos, respectivamente, dos Ministros Rocha Lagôa e Nelson Hungria, que se encontram em exercício no Tribunal Superior Eleitoral), candido Motta, Ary Franco, Luiz Gallotti, Ribeiro da costa, Lafayette de Andrada e Barros Barreto.

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Ministro Hahnemann Guimarães

HABEAS CORPUS 36.403 — DF

O assistente não tem legitimidade para impugnar pela via extraordinária a concessão de habeas corpus.

AcÓRDÃOVistos estes Autos 36.403, concede-se habeas corpus a Pedro catalão

Filho, conforme as notas juntas.Rio de Janeiro, 30 de janeiro de 1959 — Orozimbo Nonato, Presidente —

Hahnemann Guimarães, Relator.

RELATÓRIOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, o advogado

Evandro Lins e Silva requer habeas corpus em favor de Pedro catalão, que sofre coação ilegal por decisão deste Supremo Tribunal Federal, proferida na Segunda Turma e em Tribunal Pleno, na sessão de 13 de julho de 1958, na qual foram rejeitados os embargos oferecidos, diante do voto dos eminentes Srs. Ministros Henrique D’Ávila, Afrânio costa, candido Motta Filho, Luiz Gallotti e Lafayette de Andrada, contra os votos dos eminentes Srs. Ministros Ary Franco, Relator dos embargos infringentes, Sampaio costa, Vilas Boas e meu. Achou o Tribunal, em maioria, que o assistente do Ministério Público tem legitimidade para impugnar pelo recurso extraordinário a decisão concessiva de habeas corpus. O requerente baseia seu pedido na lição de Ary Franco, que disse, em seu voto: (lê).

Sustenta o requerente esta tese, defendida tão brilhantemente pelo emi-nente Sr. Ministro Ary Franco, de que o assistente do Ministério Público não tem legitimidade para o recurso extraordinário contra decisão concessiva de habeas corpus, porque sua legitimidade para recorrer extraordinariamente se limita aos casos previstos nos arts. 584, § 1º, e 598 do código de Processo Penal.

é o relatório.

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Senhor Presidente, con-

cedo a ordem requerida, para restabelecer a decisão do Tribunal de Justiça da Bahia, que concedeu a ordem de habeas corpus. A legitimidade do assistente do Ministério Público para recorrer está limitada aos casos dos arts. 584, § 1º, e 598 do código de Processo Penal, nos termos do art. 271, que diz:

Ao assistente será permitido propor meios de prova, requerer pergun-tas às testemunhas, aditar o libelo e os articulados, participar do debate oral e

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Memória Jurisprudencial

arrazoar os recursos interpostos pelo Ministério Público, ou por ele próprio, nos casos dos arts. 584, § 1º, e 598.

Quer dizer: da decisão de impronúncia e contra aquela que declarar a prescrição, ou, por outra qualquer maneira, a extinção da punibilidade, pode recorrer o assistente. Tem ele ainda o direito de apelar. Mas nunca, nem explí-cita, nem implicitamente, concede o código de Processo Penal legitimidade ao assistente para impugnar pela via extraordinária a concessão de habeas corpus.

concedo, pois, a ordem para estabelecer a decisão do Tribunal de Justiça da Bahia que concedeu habeas corpus ao paciente.

VOTOO Sr. Ministro Vilas Boas: Senhor Presidente, o art. 272 do código de

Processo Penal define a atuação do assistente. Ampliar essa atuação é impossí-vel. Dou provimento ao recurso, para conceder a ordem.

DEcISÃOcomo consta da ata, a decisão foi a seguinte: impedido o Ministro

Lafayette de Andrada. concederam a ordem, ficando restabelecido o acórdão de concessão do habeas corpus. Unanimemente.

Presidência do Ministro Orozimbo Nonato.Ausentes justificadamente, os Ministros Rocha Lagôa e Nelson Hungria.Tomaram parte no julgamento os Ministros Hahnemann Guimarães

(Relator), Vilas Boas, candido Motta, Ary Franco, Luiz Gallotti, Hahnemann Guimarães, Ribeiro da costa e Barros Barreto.

HABEAS CORPUS 40.910 — PE

RELATÓRIOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Os advogados Justo de Morais,

Joaquim correia de carvalho Jr. e Inezil Penna Marinho alegam que Sérgio cidade de Rezende sofre constrangimento ilegal imposto pelo Juiz da 3ª Vara criminal do Recife, que decretou a prisão preventiva e recebeu denúncia por fatos imputados ao paciente, que não constituem os crimes definidos na Lei 1.802, de 5-1-58, arts. 11, a e § 3º, e 17. O decreto de prisão não observou o dis-posto no código de Processo Penal, art. 315. O paciente exerceu as liberdades

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Ministro Hahnemann Guimarães

do pensamento e de cátedra, garantidas pela constituição, arts. 141, § 5º, e 168, VII. Professor da Faculdade de ciências Econômicas da Universidade católica de Pernambuco, o paciente distribuiu entre 26 alunos, que haviam comparecido à aula para prestação de provas, no dia 26 de junho do corrente ano, um mani-festo contrário à situação política vigente, sem nenhum incitamento à prática de processos violentos para a subversão da ordem política ou social, ou à desobe-diência coletiva ao cumprimento de lei de ordem pública.

O Dr. Nelson Pereira de Arruda remeteu, com presteza, as informações solicitadas, instruídas por 15 certidões (fl. 33).

VOTOO Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Defiro o pedido, para

tolher a ação penal, pois a denúncia narra fatos que evidentemente não consti-tuem crime (fl. 61). Diz a denúncia que o paciente, no exercício da cadeira de Introdução à Economia, distribuiu a seus alunos um manifesto, com o fim de fa-zer propaganda de processos violentos para a subversão da ordem e propaganda de ódio de classe, conduta que está em consonância com as idéias comunistas do denunciado, o qual no exercício de sua cadeira de professor, na Universidade católica de Pernambuco, escreveu, em um pedaço de papel, dizeres subversi-vos: “Viva o Pc”. No manifesto, que se encontra por certidão à fl. 41, o paciente faz crítica desfavorável à situação política atual, acentuando, afinal, que aos estudantes “cabe uma responsabilidade, uma parcela de decisão dos destinos da sociedade e para isto têm que optar entre ‘gorilizar-se’ ou permanecerem seres humanos. A estes cabe a honra de defender a democracia e a liberdade”. Não há no manifesto nada que se possa considerar propaganda de processos violentos para subversão da ordem política ou social (Lei 1.802, art. 11, a e § 3º), ou insti-gação pública à desobediência coletiva ao cumprimento da lei de ordem pública (Lei 1.802, art. 17).

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Ministro Hahnemann Guimarães

íNDICE NUMéRICO

Rp 94 Rel.: Min. Min. castro Nunes 245Rp 106 Rel.: Min. Abner de Vasconcelos 248Rp 111 Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 265Ext 177 Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 273Rp 179 Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 276MS 760 Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 300MS 767 Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 305MS 875 Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 312MS 900 Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 320Rc 1.032 Rel. p/ o ac.: Min. Hahnemann Guimarães 347MS 1.114 Rel.: Min. Lafayette de Andrada 348MS 1.159 Rel. p/ o ac.: Min. Hahnemann Guimarães 351Acr 1.420 Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 354MS 1.915 Rel. p/ o ac.: Min. Nelson Hungria 375MS 2.248 Rel.: Min. Orozimbo Nonato 376MS 2.278 Rel.: Min. Barros Barreto 377MS 2.655 Rel. p/ o ac.: Min. Afrânio Antonio da costa 378MS 3.557 Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 380RE 9.002 Rel. p/ o ac.: Min. Hahnemann Guimarães 385RE 10.182 Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 387RE 11.148 Rel. p/ o ac.: Min. Hahnemann Guimarães 389RE 11.682 Rel.: Min. Laudo de camargo 396RE 13.160 Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 398RE 31.179 Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 400Hc 34.103 Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 403Hc 36.402 Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 412Hc 36.403 Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 415Hc 40.910 Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 416

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