Memoria Walter Benjamin

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4 P2 Sexta-feira 12 Março 2010 Walter Benjamin O mais sozinho dos homens em Portbou Atrás, a montanha, à frente o mar. De um lado, França, do outro, Espanha. Isto é Portbou, uma terra que sempre viveu da fronteira e agora vive de Walter Benjamin. Judeu, acossado pelo nazismo, Benjamin atravessou os Pirenéus a pé. Queria chegar a Lisboa, de onde iria para a América. Mas em Portbou não o deixaram passar. Em poucos lugares a consciência do que os homens fazem aos homens pode ser tão solitária. Por Alexandra Lucas Coelho, em Portbou 1. A fronteira Todos os comboios que vão de Barcelona para França param em Portbou, a fronteira, agora invisível. Por isso, é possível sair de manhã cedo num comboio rápido internacional (duas horas) e voltar ao começo da tarde num regional (três horas). Uma das vantagens deste plano é que os comboios internacionais partem da histórica Estação de França, onde as lajes e as cúpulas guardam toda uma memória do século XX, guerra, exílio, fuga, libertação, que acompanha o comboio à medida que ele avança. Girona fica a meio caminho, e a partir daí há bosques de plátanos e pinheiros entre masías, as casas rurais catalãs de pedra ocre. Os Pirenéus aparecem escuros e ondulantes do lado direito, e depois mais altos e nevados do lado esquerdo. Quando o sol bate na neve, o cume fica incandescente. Passando Figueres, avista-se o azul do Mediterrâneo, e em breve o comboio abranda para entrar na estação de Portbou. O refugiado Walter Benjamin — hoje lido em todo o mundo como um dos pensadores mais importantes do século XX —, chegou aqui a pé, vindo do lado francês, depois de uma caminhada extenuante pelas montanhas, no dia 26 de Setembro de 1940. Mas quem chega de comboio encontra os seus passos logo na estação. A empregada da bilheteira está tão habituada a que perguntem por Benjamin que já tem um mapa na ponta da língua. — Desce aquelas escadas que vão dar à Rua do Mercado, e depois vira à esquerda para a Rua do Mar. Portbou vivia da alfândega e agora vive do seu morto mais célebre. Não apenas dele ter morrido aqui, mas dele ter morrido aqui “em circunstâncias trágicas”, como dizem painéis espalhados pela vila. Judeu alemão, acossado pelo avanço dos nazis, Benjamin tinha 48 anos e uma vida desfeita quando decidiu atravessar os Pirenéus a pé, de modo a fugir à vigilância da polícia francesa colaboracionista. Trazia vistos de trânsito para Espanha e Portugal e um visto para os Estados Unidos, onde o esperava um lugar de investigador, o primeiro que uma instituição académica lhe dava. Alcançou Portbou na companhia de uma refugiada com quem se cruzara, Henny Gurland, e do filho dela, Joseph. Inesperadamente, a polícia de Portbou impediu-os de seguir, concedendo-lhes apenas uma noite de descanso antes de os recambiar. Benjamin não viveu para isso. No dia seguinte estava morto. Matou-se deliberadamente ou por acidente? Foi assassinado que vem da estação. Depois, a Rua do Mercado desce, ladeada por plátanos, e logo à esquerda a Rua do Mar tem o chão esventrado por obras em curso. É preciso caminhar na lama até ao prédio que em 1940 era a pensão Fonda de Francia, onde Benjamin dormiu a sua última noite. Agora é um prédio de habitação, três andares recém-pintados de vermelho-escuro, com portadas cinzentas. Ao lado da porta, há uma placa. Primeiro, diz “Aqui viveu e morreu Walter Benjamin”, como se Benjamin se tivesse instalado em Portbou. E depois tem uma citação (“Todo o conhecimento é uma forma de interpretação”) com o desenho dos óculos de Benjamin como se fosse uma banda desenhada. — Agora não estão, só vêm no Verão e na Semana Santa. Estão em Barcelona — esclarece uma simpática avó de passagem, Paquita Bonet, queixo levantado para a fachada. — Fizeram tudo de novo. Vem muita gente ver, muitos jovens. E para a terra é algo que atrai o turismo. Antes, Portbou era a alfândega, e agora é a terceira idade. Mas quem sabe tudo é aquela senhora. E, despedindo-se, aponta a loja na esquina, misto de recuerdos com bebidas. É aí que está Niebes Mallol, de 48 anos, entediada de não ver entrar ninguém: — Foi ali que Walter Benjamin viveu os últimos dias quando passou a fronteira. Sei que morreu ali e tinha uma mala com uns comprimidos para se suicidar. A célebre mala que teria também um manuscrito nunca encontrado. — Mas não sabemos se foi suicídio ou foram os nazis — acautela Niebes. — O memorial lá em cima está muito bonito. E depois vá ao cemitério e suba dois pisos, que há lá uma pedra com umas coisas bonitas. É o que tem valido a Portbou, a gente que vem por causa de Benjamin, sobretudo quando já não faz este frio de faca. — Há que ganhar a vida como pudermos, e o tema de Walter Benjamin ainda não está suficientemente trabalhado. Não é tirar proveito, mas é para a terra ter alguma saída, porque estamos muito mal. O fim da alfândega foi um golpe terrível, e tanto para a administração espanhola como para a catalã estamos um pouco esquecidos. Continuando pela Rua do Mar, vamos dar à rambla que desemboca na marginal. Eis a dimensão de Portbou: três ruas paralelas e umas tantas perpendiculares à volta de uma baiazinha, com os Pirenéus atrás das costas. Na ponta esquerda da marginal há mais um painel com a fotografia de Benjamin junto a uma escultura. Aqui se homenageiam os 470-480 mil pelos franquistas ou pela Gestapo? Ainda hoje os pormenores do que aconteceu não são claros. Há incongruências e lapsos. Mas a hipótese mais forte, a única sustentada por um testemunho da época e pelo que se sabe de Benjamin, é que se tenha suicidado com morfina. Seja como for, a sua morte é a do mais sozinho dos homens, e isso é cada vez mais evidente à medida que seguimos os seus passos em Portbou. O primeiro painel com o nome de Benjamin está ao fim da escada DR O memorial feito por Karavan

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Walter BenjaminO mais sozinho dos homens em PortbouAtrás, a montanha, à frente o mar. De um lado, França, do outro, Espanha. Isto é Portbou, uma terra que sempre viveu da fronteira e agora vive de Walter Benjamin. Judeu, acossado pelo nazismo, Benjamin atravessou os Pirenéus a pé. Queria chegar a Lisboa, de onde iria para a América. Mas em Portbou não o deixaram passar. Em poucos lugares a consciência do que os homens fazem aos homens pode ser tão solitária. Por Alexandra Lucas Coelho, em Portbou

1. A fronteiraTodos os comboios que vão de Barcelona para França param em Portbou, a fronteira, agora invisível. Por isso, é possível sair de manhã cedo num comboio rápido internacional (duas horas) e voltar ao começo da tarde num regional (três horas).

Uma das vantagens deste plano é que os comboios internacionais partem da histórica Estação de França, onde as lajes e as cúpulas guardam toda uma memória do século XX, guerra, exílio, fuga, libertação, que acompanha o comboio à medida que ele avança.

Girona fi ca a meio caminho, e a partir daí há bosques de plátanos e pinheiros entre masías, as casas rurais catalãs de pedra ocre. Os Pirenéus aparecem escuros e ondulantes do lado direito, e depois mais altos e nevados do lado esquerdo. Quando o sol bate na neve, o cume fi ca incandescente.

Passando Figueres, avista-se o azul do Mediterrâneo, e em breve o comboio abranda para entrar na estação de Portbou.

O refugiado Walter Benjamin — hoje lido em todo o mundo como um dos pensadores mais importantes do século XX —, chegou aqui a pé, vindo do lado francês, depois de uma caminhada extenuante pelas montanhas, no dia 26 de Setembro

de 1940. Mas quem chega de comboio encontra os seus passos logo na estação. A empregada da bilheteira está tão habituada a que perguntem por Benjamin que já tem um mapa na ponta da língua.

— Desce aquelas escadas que vão dar à Rua do Mercado, e depois vira à esquerda para a Rua do Mar.

Portbou vivia da alfândega e agora vive do seu morto mais célebre. Não apenas dele ter morrido aqui, mas dele ter morrido aqui “em circunstâncias trágicas”, como dizem painéis espalhados pela vila.

Judeu alemão, acossado pelo avanço dos nazis, Benjamin tinha 48 anos e uma vida desfeita quando decidiu atravessar os Pirenéus a pé, de modo a fugir à vigilância da polícia francesa colaboracionista. Trazia vistos de trânsito para Espanha e Portugal e um visto para os Estados Unidos, onde o esperava um lugar de investigador, o primeiro que uma instituição académica lhe dava. Alcançou Portbou na companhia de uma refugiada com quem se cruzara, Henny Gurland, e do fi lho dela, Joseph. Inesperadamente, a polícia de Portbou impediu-os de seguir, concedendo-lhes apenas uma noite de descanso antes de os recambiar. Benjamin não viveu para isso. No dia seguinte estava morto.

Matou-se deliberadamente ou por acidente? Foi assassinado

que vem da estação. Depois, a Rua do Mercado desce, ladeada por plátanos, e logo à esquerda a Rua do Mar tem o chão esventrado por obras em curso. É preciso caminhar na lama até ao prédio que em 1940 era a pensão Fonda de Francia, onde Benjamin dormiu a sua última noite. Agora é um prédio de habitação, três andares recém-pintados de vermelho-escuro, com portadas cinzentas.

Ao lado da porta, há uma placa. Primeiro, diz “Aqui viveu e morreu Walter Benjamin”, como se Benjamin se tivesse instalado em Portbou. E depois tem uma citação (“Todo o conhecimento é uma forma de interpretação”) com o desenho dos óculos de Benjamin como se fosse uma banda desenhada.

— Agora não estão, só vêm no Verão e na Semana Santa. Estão em Barcelona — esclarece uma simpática avó de passagem, Paquita Bonet, queixo levantado para a fachada. — Fizeram tudo de novo. Vem muita gente ver, muitos jovens. E para a terra é algo que atrai o turismo. Antes, Portbou era a alfândega, e agora é a terceira idade. Mas quem sabe tudo é aquela senhora.

E, despedindo-se, aponta a loja na esquina, misto de recuerdos com bebidas. É aí que está Niebes Mallol, de 48 anos, entediada de não ver entrar ninguém:

— Foi ali que Walter Benjamin

viveu os últimos dias quando passou a fronteira. Sei que morreu ali e tinha uma mala com uns comprimidos para se suicidar.

A célebre mala que teria também um manuscrito nunca encontrado.

— Mas não sabemos se foi suicídio ou foram os nazis — acautela Niebes. — O memorial lá em cima está muito bonito. E depois vá ao cemitério e suba dois pisos, que há lá uma pedra com umas coisas bonitas.

É o que tem valido a Portbou, a gente que vem por causa de Benjamin, sobretudo quando já não faz este frio de faca.

— Há que ganhar a vida como pudermos, e o tema de Walter Benjamin ainda não está sufi cientemente trabalhado. Não é tirar proveito, mas é para a terra ter alguma saída, porque estamos muito mal. O fi m da alfândega foi um golpe terrível, e tanto para a administração espanhola como para a catalã estamos um pouco esquecidos.

Continuando pela Rua do Mar, vamos dar à rambla que desemboca na marginal.

Eis a dimensão de Portbou: três ruas paralelas e umas tantas perpendiculares à volta de uma baiazinha, com os Pirenéus atrás das costas.

Na ponta esquerda da marginal há mais um painel com a fotografi a de Benjamin junto a uma escultura. Aqui se homenageiam os 470-480 mil

pelos franquistas ou pela Gestapo? Ainda hoje os pormenores do que aconteceu não são claros. Há incongruências e lapsos.

Mas a hipótese mais forte, a única sustentada por um testemunho da época e pelo que se sabe de Benjamin, é que se tenha suicidado com morfi na.

Seja como for, a sua morte é a do mais sozinho dos homens, e isso é cada vez mais evidente à medida que seguimos os seus passos em Portbou.

O primeiro painel com o nome de Benjamin está ao fi m da escada

DR

O memorial feito por Karavan

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Judeu alemão, acossado pelo avanço dos nazis, Walter Benjamin tinha 48 anos quando chegou a Portbou

exilados da Guerra Civil Espanhola, e a tragédia do escritor aparece como símbolo individual.

A seguir está o quiosque do turismo, onde a funcionária tem para venda vários livros relacionados com Benjamin. E, para oferta, tal como noutras terras, há mapas e folhetos, um montinho de fotocópias agrafadas que são a memorabilia da morte de Benjamin.

A saber: — registo do juiz comprovando

a morte de “D. Benjamin Walter Dr.”, falecido na Fonda de Francia em consequência de “hemorragia cerebral”

— relato do juiz quanto às circunstâncias em que o defunto foi encontrado e ao que tinha em sua posse (um relógio “aparentemente de ouro”; uma nota de 500 francos; uma nota de 50 dólares; uma nota de 20 dólares; um passaporte com vistos; um certifi cado do Institute of Social Research de Nova Iorque; seis fotografi as; uma radiografi a; um cachimbo “aparentemente de âmbar”; óculos; cartas; jornais)

— resumo das despesas tidas com o morto (médico, 75 pesetas; dona da pensão, 166,95 pesetas; padre, 93 pesetas; carpinteiro, 313 pesetas; juiz, 50 pesetas)

— factura da pensão (quarto e ceia, 12 pesetas; mais quatro noites cobradas, 20 pesetas; cinco gasosas com limão, 5 pesetas; quatro telefonemas, 8,80 pesetas; farmácia, 13 pesetas; vestir defunto, duas pessoas, 30 pesetas; desinfectar quarto, lavar colchão, 75 pesetas).

— factura do aluguer de um nicho no cemitério por cinco anos (93 pesetas).

— factura do médico (“quatro visitas com injecções, medir pressão arterial e sangria ao viajante D. Benjamin Walter, 75 pesetas”)

— factura da carpintaria (caixão, seis homens para o levar ao cemitério, mão-de-obra para fechar o nicho, 313 pesetas).

— visto para a América e uma carta a confi rmar o posto de investigador.

Benjamin gostava de inventários. Sonhava concluir uma obra só com citações, em que a simples correlação das frases iluminaria a verdade. Mas é difícil saber que verdade emerge do inventário da sua morte.

Imune ao frio, nas traseiras do quiosque do turismo senta-se José, octogenário de boina.

— Benjamin? Está ali…Aponta a colina do cemitério, no

lado direito da baía, onde o artista israelita Dani Karavan escolheu situar o memorial que fez para Benjamin em 1992.

— Está bastante deteriorado, partiram o vidro. Não o acho muito bonito.

Que sabe José de Benjamin?— Era um poeta. Um pensador

alemão, judeu. Hospedou-se numa pensão e a polícia, ou a Gestapo, foi buscá-lo. Dizem que se matou. Recordo-me de ouvir falar, eu tinha 10 ou 11 anos. Mas era o tempo do franquismo e ninguém podia falar à vontade.

— Que recorda do que ouviu?— Que se tinha matado. Depois José fez-se funcionário da

alfândega.— Havia muitas agências aqui,

agora está tudo fechado. Portbou passou de 3000 e tal pessoas para 1200.

Basta caminhar ao longo da baía para ver isso.

Restaurante-Bar Espanha, fechado com grades. Art In Restaurante,

IMAGEM DISPONIBILIZADA PELA ASSÍRIO & ALVIM

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fechado. Restaurante-Bar El Club, fechado. Hostal Juventus, fechado. Uma bela casa antiga, entaipada. E esta é a marginal, com a câmara e os bombeiros ao fundo. Seguindo até lá, há setas a indicar o caminho para o memorial de Walter Benjamin. Sobe-se então a colina, com o mar sempre do lado esquerdo, e ao cimo da rampa mais um painel Walter Benjamin, a contar em catalão, castelhano e inglês como o pensador foi enterrado a correr no cemitério católico, nicho 563, pago por Henny Gurland durante cinco anos, fi ndos os quais passou a uma vala comum.

Há uma passagem a dizer que o espaço deste memorial “está aberto ao universo, confi gurado por tudo o que o pensamento e o sentimento possam capturar”. E outra com “o anjo da história” — aquele que avança para a frente mas com o rosto voltado para trás, presença central na obra de Benjamin —, aqui evocado de forma esperançosa: “A memória é um acto de fé para o presente.” O texto não fala numa “morte em circunstâncias trágicas”, mas especifi camente em “sobredose de morfi na”, embora não mencione a palavra suicídio.

Voltando costas, o horizonte abre-se para o recorte prodigioso do Mediterrâneo, colinas de um verde espesso sobre água azul-azul.

Hannah Arendt, outra pensadora essencial do século XX, veio a Portbou mal soube da morte de Benjamin, e está aqui a frase com que descreveu esta colina: “Um dos lugares mais belos que vi.”

Com tempo, hão-de avistar-se gaviões, falcões, corvos-marinhos, diz a placa do miradouro, que também se chama Walter Benjamin.

E seguindo o caminho até ao cimo, aparece então uma entrada em ferro a afundar-se na terra, mesmo na beira do precipício. Está feita para o tamanho de uma pessoa. O que vemos ao entrar é uma escadaria para a água. Não para uma praia, ou para as rochas, mas suspensa sobre a água. Ou seja, é uma escada entre o céu e o mar, perfurando a colina em diagonal.

— Bom dia — diz uma voz.É um homem que vem do

cemitério, a descer para a vila, e vê a forasteira parada à entrada do túnel. Desaparece na curva como o último dos vivos.

O vento sopra da terra para o mar. Ouve-se o vento e vê-se a espuma lá em baixo, no fundo. E depois uma sombra projectada no mar, que é o nosso próprio corpo. Impossível não descer.

Um, três, cinco, sete, nove degraus.

A luz vai fi cando mais escura, o som mais fechado. O ferro oxida lentamente nas paredes e no tecto. Olhando para trás, já não se vê terra, só um rectângulo de céu lá em cima.

10, 20, 30, 40. A luz vai fi cando mais clara, o som

mais amplo. Ao 43.º degrau, o tecto acaba e o céu abre-se por cima da cabeça. O túnel já furou a montanha

e sai do outro lado. A partir daqui são mais 25 degraus até ao vidro que nos impede de cair para a água.

O velho José tinha razão nisto: o vidro está todo estalado. Mas podemos ler a citação de Benjamin em alemão, catalão e espanhol: “É mais difícil honrar a memória dos anónimos do que a dos famosos. A construção da história é dedicada aos anónimos.”

O vento assobia no metal. Os ramos batem no tecto. Numa saída, o céu, na outra, o mar. Podemos descer ou subir. Uma escada tem sempre duas direcções, mas qual é a vida e qual é a morte?

2. O suicidaNão havia “ninguém mais isolado do que Benjamin, ninguém tão absolutamente só”, escreveu Hannah Arendt (Homens em Tempos Sombrios, Relógio d’Água, 1991).

Nele se conjugaram “mérito, grandes dotes, falta de jeito e infortúnio”, até ao ponto em que a vida lhe apareceu como um “monte de destroços”. Tão inclassifi cável como pouco prático, era um alvo perfeito da “habitual suspeição académica em relação a tudo quanto não seja garantidamente medíocre”. E “poucos se lembravam ainda do

Talvez muitos alguénstenham morto Walter Benjamin num sentido muito lato e não apenas aplicável a eleMaria Filomena Molder

seu nome quando escolheu a morte, nesses dias do começo do Outono de 1940”.

A academia gosta de gavetas arrumadas. Mas Benjamin, meio século antes da Internet, era um espírito em rede, ligando matérias, criando relações, não sendo exactamente fi lósofo, sociólogo, crítico, jornalista, tradutor, mas colhendo algo de tudo isto para uma obra única, a de quem interroga “a verdade cuja chama viva continua a arder por sobre os pesados toros do passado e as leves cinzas da vida de outrora”.

A sua matéria era a realidade. O seu dom “muitíssimo raro”, resumiu Hannah Arendt, era “pensar poeticamente”. E, como faz um poeta, deu forma material ao invisível.

Andava sempre com caderninhos de capa preta cheios de citações, que tanto podiam ser poemas como notícias, cenas de rua ou listas de coisas, como nas assemblages surrealistas. À semelhança de Goethe, acreditava num Urphänomen, “uma coisa concreta na qual a signifi cação coincidiria com a aparência, a palavra com a coisa, a ideia com a experiência”. E a fi gura certa para arrancar esta verdade era o fl âneur, aquele que se opõe ao útil, que vagueia entre os homens, a quem as coisas revelarão o seu sentido íntimo.

Filho de um rico negociante de arte, educado à mesa com garfos de ostra, Benjamin cresceu no mundo da burguesia judaica culta e assimilada, essencialmente europeia. E como genuíno fl âneur que era, oscilou sempre entre comunismo e sionismo, sem nunca se tornar militante, ou ir para Palestina, como o seu amigo Gerschom Scholem.

Depois, perante o avanço do nazismo, faltou-lhe a habilidade dos sobreviventes. Refugiou-se em Paris, mas os franceses fecharam-no três meses num campo de prisioneiros quando Hitler retirou a cidadania aos judeus. Seguiu-se o Sul de França, de onde partiu a pé, pelos Pirenéus. Estava separado da mulher, perdera todos os seus livros, e sofria do coração.

Hannah Arendt não teve dúvidas de que o que aconteceu em Portbou foi um suicídio.

“Várias razões o levaram a isso. A Gestapo confi scara o seu apartamento em Paris, que continha a sua biblioteca […] Como iria ele viver sem a sua biblioteca, como podia ganhar a vida sem a vasta colecção de citações e excertos que se encontrava entre os seus manuscritos? Além disso, nada o atraía na América, onde, conforme costumava dizer, provavelmente ninguém saberia o que fazer dele além de o passearem pelo país inteiro, exibindo-o como o ‘último europeu’.”

Mas “a causa imediata do suicídio de Benjamin foi um azar verdadeiramente excepcional”, crê Arendt.

O registo do juiz que comprova a morte de Benjamin em consequência de “hemorragia cerebral”

SEQUÊNCIA DE IMAGENS RETIRADA DO CATÁLOGO DA EXPOSIÇÃO PASSAGENS, DE DANI KARAVAN

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“Os refugiados [que nesse dia chegaram a Portbou] teriam de regressar a França pelo mesmo caminho no dia seguinte. Durante a noite, Benjamin pôs termo à vida, e os funcionários, impressionados com o suicídio, autorizaram os seus companheiros a seguir viagem até Portugal. Algumas semanas mais tarde, o embargo aos vistos foi revogado. Um dia antes, Benjamin teria passado a fronteira sem difi culdade; um dia depois já se saberia em Marselha que nesse momento não era possível atravessar a Espanha. Só naquele dia era possível a catástrofe.”

No fi lme Quem Matou Walter Benjamin?, de 2007, o realizador argentino David Mauas conduz uma exaustiva investigação sobre a morte do pensador. Além de entrevistar académicos na Alemanha, nos Estados Unidos ou em Israel, consulta arquivos e vai a Portbou onde fala com muita gente. O ponto de Mauas é que não é possível cruzar provas que assegurem o suicídio. Há o testemunho de Henny Gurland, a refugiada com quem o pensador veio pela montanha: na manhã seguinte à chegada a Portbou, contou ela, Benjamin disse-lhe que tomara uma grande dose de morfi na na noite anterior, e pouco depois perdeu consciência. O realizador acha isto insufi ciente, sublinha contradições e buracos em todo o processo, e lança dúvidas sobre quem eram, e para quem trabalhavam, várias das fi guras de Portbou envolvidas, como o médico.

O germanista João Barrento acha o fi lme interessante e trouxe-o a Lisboa, quando começou a publicar a sua tradução da obra de Walter Benjamin na Assírio & Alvim (saíram três volumes, há um quarto pronto, faltam três).

“Não foi só o David Mauas que pôs essa hipótese, de não ser um suicídio”, relativiza Barrento. “Há muitas referências ao carácter enigmático daquela morte. Apesar de que Walter Benjamin vinha extremamente cansado e com grande desalento, e é muito natural que tenha sido ele a tomar aquela dose. O suicídio como libertação ou um gesto de medo em relação ao que o esperava. Mas não está nada provado, e nada impede que alguém vá remexer naqueles interstícios da história.”

Maria Filomena Molder, que tem mantido um diálogo constante com a obra de Benjamin, e lhe dedicou um livro (Semear na Neve, Relógio d’Água, 1999) não gosta do fi lme, a começar logo pela pergunta do título, Quem Matou Walter Benjamin?

“Talvez muitos alguéns tenham morto Walter Benjamin num sentido muito lato e não apenas aplicável a ele”, diz. “Muitos judeus e outros perseguidos e acossados pelos nazis se suicidavam tomando substâncias tóxicas que transportavam consigo. Que se saiba, ele não sofria de dores atrozes que exigissem regularmente a ingestão de morfi na. Sofria de uma doença crónica do coração. Mas parece que tomava morfi na para diminuir mal-estar agudo, medo e angústia que algumas dores haviam de arrastar. Daí não ser tão estranho que ainda pudesse falar para confessar o seu suicídio algumas horas depois de tomar uma dose mais forte de morfi na, pois o corpo já lhe estaria habituado.”

Esta pensadora crê que o fi lme faz um jogo para “forçar a prova de uma tese, a saber, Walter Benjamin não se suicidou”, convertendo a

dúvida em argumento. Mas “porquê duvidar de modo tão desconfi ado dos documentos testemunhais?”, pergunta. “A vida e a memória são ariscas e indomáveis, por isso esses documentos só podem ser o que são, jamais restituições exactas do que não o é: alguma coisa sempre escapa. Ora, pôr em causa a sua boa-fé é fazer destas testemunhas cúmplices de uma conspiração política e policial.”

Tudo isto não signifi ca que Quem Matou Walter Benjamin? não seja “importante”, dado que “permite ver como se constrói um fi lme de tese, que inclui os depoimentos daqueles que não estão de acordo com ela”. Mas, na linha do que diz Hannah Arendt sobre o mais sozinho dos homens, é preciso ter presente que “o pessimismo de Benjamin é uma constante a partir do fi m dos anos 20, e cada vez mais sombrio (que nunca o leva a caluniar a vida, em todo o caso), pessimismo no qual se inscreve uma espécie de desilusão consigo próprio”, diz Filomena Molder.

Uma carta ao amigo Gerschom Scholem, de 1932, “mostra bem o que está em causa na vida dele, uma forma de fracasso irreparável”. E Scholem confi rma (no livro que escreveu, A História de uma Amizade), que nessa altura Benjamin pensou suicidar-se.

3. O redemoinhoO cemitério fi ca ao lado do memorial, ou seja, mesmo sobre o mar.

Nichos com fl ores de plástico, como aquele que albergou o corpo do pensador durante cinco anos, antes da passagem à vala comum. Ninguém sabe onde, exactamente, e por isso a “campa” é simbólica — mas existe. Subindo as escadas, do lado direito vemos um banco, uma árvore e ao fundo a lápide “Walter Benjamin, Berlim, 1892-Portbou, 1940”, com uma citação dele: “Não há documento de cultura que não seja ao mesmo tempo um documento de barbárie.” Em cima e à volta, os peregrinos foram deixando pedrinhas brancas, pretas e castanhas, algumas com nomes e mensagens.

Apenas por ser judeu, Walter Benjamin morreu aqui, absolutamente só, perseguido, sem poder atravessar uma fronteira. É uma memória do mal maior, o Holocausto. E 70 anos depois, os herdeiros dessa memória, que somos todos nós, continuam a impedir outros de atravessar fronteiras, a matar e a deixar morrer.

No cimo da colina em Portbou, somos um diante da morte de um, e é isso que é avassalador. Não há memória colectiva. Toda a memória é individual porque cada homem faz com ela coisas diferentes. A memória do maior mal tanto serve o bem como o mal, depende de cada homem.

Depois disto, descer as escadas, sair pelo portão, voltar àquela passagem de ferro entre o céu e o mar pode ser uma espécie de libertação.

João Barrento esteve aqui duas vezes, e escreveu numa crónica (revista Ler, 2002) que, ao ligar “várias fronteiras num lugar de fronteira”, este memorial torna-se “símbolo da tolerância, da necessidade de derrubar todas as barreiras”, num “século de exílios,

perseguições, migrações forçadas que continuam”.

É raro uma encomenda resultar em algo tão poderoso, mas é assim que o israelita Dani Karavan, de 80 anos, trabalha. “Recebo encomendas, e depois vou aos sítios”, resume com simplicidade, por telefone, a partir de Telavive. “Para este memorial, recebi um convite da Alemanha, em colaboração com o Pujol [então presidente do governo da Catalunha]. Disseram-me para ir a Portbou e escolher um lugar.”

Primeiro foi à pensão onde Benjamin morreu. “Mas viviam lá pessoas. Então fui ao cemitério. E vi um redemoinho na água como nunca vira de forma tão expressiva. O mar criava uma espécie de buraco, ora com espuma, ora calmo, como se a natureza estivesse a gritar. O que pensei foi: ‘Bem, a natureza está a contar a história daquele homem. Não a posso contar melhor. Quero trazer as pessoas para verem isto.’ Portanto, tinha de criar uma espécie de corredor. E depois nasceram outros elementos, como ter encontrado a oliveira que luta pela vida, e lá em cima a plataforma.”

Dani está a falar do percurso que parte do seu túnel de ferro. Uma passadeira também em ferro leva a um muro de xisto, de onde temos de trepar a colina para chegar a uma oliveira encostada ao muro do cemitério. Contornando-o, chegamos a uma espécie de plataforma onde nos podemos sentar diante do Mediterrâneo.

“Foi por etapas. O túnel foi-me dado pela topografi a. Quando comecei a escavar, percebi que tinha

de furar. Eu só queria chegar ao mar, à luz, e foi a natureza que me deu isso. Depois insisti com o presidente da câmara para não pavimentar o caminho na colina até à oliveira, porque as pessoas têm de sentir o que Benjamin sentiu ao subir a montanha.”

Os próprios materiais surgiram naturalmente: “O vidro no fi m do túnel foi para proteger as pessoas de cair na água, mas depois decidi usá-lo, com a frase dele sobre os anónimos, para homenagear todos os que fugiram dos nazis e de Franco.” E o ferro? “Trabalho muito com betão branco, e no princípio pensei fazê-lo branco, mas senti que a natureza não o aceitava, porque a pedra ali tem muito ferro, é ruiva. E então foi claro que tinha de ser ferro. O ferro veio da natureza.”

Alimentado pelo presente, Benjamin “trabalha sobre os fragmentos do pensamento que consegue arrancar ao passado e reunir à sua volta”, escreveu Hannah Arendt, “como um pescador de pérolas que desce ao fundo do mar, não para o escavar e para o trazer à luz do dia, mas para extrair das profundezas e devolver à superfície os insólitos tesouros, as pérolas e o coral”, na convicção “de que no fundo do mar, onde se afunda e se dissolve o que outrora viveu, certas coisas sofrem uma transmutação e sobrevivem sob novas formas”.

Ainda que Dani Karavan não o tenha pensado, é esse ânimo que nos resta, aqui, agora, vendo a nossa sombra no mar, ao fundo do túnel, onde o redemoinho acalma e volta, como o mal.

Em Portbou, o mais sozinho dos homens somos nós.

Várias razões o levarama isso [ao suicídio]. A Gestapo confiscara o seu apartamento em Paris, que continha a sua biblioteca […] Como iria ele viver sem a sua biblioteca? Hannah Arendt

Hannah Arendt não teve dúvidas sobre o que aconteceu em Portbou

BETTMANN/CORBIS