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1 OBAN / DOI-Codi Endereço: Rua Tutóia, 921, Vila Mariana, São Paulo, SP. Classificação: Aparato Repressivo. Identificação numérica: 005-01.016 “Casa da vovó”, “Hotel Tutóia”, “Inferno” e “Hospital” foram nomes dados sarcasticamente pelos agentes do governo militar que trabalhavam no prédio da Rua Tutóia número 921, localizado no bairro da Vila Mariana. Neste prédio, ficou sediada a Operação Bandeirante e, seu desdobramento, o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna de São Paulo (DOI-Codi/SP). Em junho de 1969, como resposta ao crescimento de ações contra o Estado repressivo militar, e seguindo as Diretrizes para a Política de Segurança Interna vindas de Brasília, deu-se início a Operação Bandeirante (OBAN). O lançamento oficial do projeto OBAN aconteceu no dia 01 de julho de 1969; contando com a presença do Governador do Estado, Roberto Costa de Abreu Sodré, do Secretário de Segurança Pública Paulista, Professor Hely Lopes Meirelles, de representantes das Forças Armadas e de empresários e personalidades civis que apoiavam a iniciativa. A operação ficou sediada no atual prédio da 36ª Delegacia de Polícia de São Paulo. Como não dispunha de verbas consignadas em orçamento, coube a Antônio Delfim Neto – futuro Ministro da Economia – e a Gastão Vidigal – dono do Banco Mercantil de São Paulo – reunir os representantes de grandes bancos brasileiros para pedir fundos, procedimento repetido na Federação das Indústrias de São Paulo Memorial da Resistência de São Paulo PROGRAMA LUGARES DA MEMÓRIA

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OBAN / DOI-Codi

Endereço: Rua Tutóia, 921, Vila Mariana,

São Paulo, SP.

Classificação: Aparato Repressivo.

Identificação numérica: 005-01.016

“Casa da vovó”, “Hotel Tutóia”, “Inferno” e “Hospital” foram nomes dados

sarcasticamente pelos agentes do governo militar que trabalhavam no prédio da

Rua Tutóia número 921, localizado no bairro da Vila Mariana. Neste prédio, ficou

sediada a Operação Bandeirante e, seu desdobramento, o Destacamento de

Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna de São Paulo

(DOI-Codi/SP).

Em junho de 1969, como resposta ao crescimento de ações contra o Estado

repressivo militar, e seguindo as Diretrizes para a Política de Segurança Interna

vindas de Brasília, deu-se início a Operação Bandeirante (OBAN). O lançamento

oficial do projeto OBAN aconteceu no dia 01 de julho de 1969; contando com a

presença do Governador do Estado, Roberto Costa de Abreu Sodré, do Secretário

de Segurança Pública Paulista, Professor Hely Lopes Meirelles, de representantes

das Forças Armadas e de empresários e personalidades civis que apoiavam a

iniciativa. A operação ficou sediada no atual prédio da 36ª Delegacia de Polícia de

São Paulo.

Como não dispunha de verbas consignadas em orçamento, coube a Antônio Delfim Neto – futuro Ministro da Economia – e a Gastão Vidigal – dono do Banco Mercantil de São Paulo – reunir os representantes de grandes bancos brasileiros para pedir fundos, procedimento repetido na Federação das Indústrias de São Paulo

Memorial da Resistência de São Paulo

PROGRAMA

LUGARES DA MEMÓRIA

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(Fiesp). O empresário Paulo Sawaia também fazia a ponte entre empresários e industriais e o órgão. Henning Albert Boilesen, presidente da Ultragás – dinamarquês naturalizado brasileiro -, exercia forte pressão sobre seus colegas de outras empresas no sentido de contribuírem para garantir a “paz nos negócios”. Centro aglutinador de esforços, a Operação Bandeirante, além de contar com forças policiais e militares em seu efetivos com o financiamento do empresariado, também recebeu o apoio de autoridades políticas paulistas (...) (JOFLLY, 2008, 33).

A partir da coordenação, três eixos de ação figuraram naquele espaço: a

Central de Informações (oficiais responsáveis pela coleta e análise de informações),

a Central de Operações (oficiais responsáveis pelas ações de combate) e a Central

de Difusão (oficiais responsáveis pela ação psicológica e pelo controle de notícias

vinculadas à segurança interna). Por fim, a Coordenação de Execução, que para

muitos era o centro do projeto, pois eram responsáveis pelo combate, captura

averiguação e interrogatórios. Seria um plano piloto para uma política nacional de

segurança pública. Uma proposta inovadora, com atividades integradas entre as

forças repressivas, em uma mobilização que envolvia ação e coleta de informações.

Na sede da OBAN ocorriam os interrogatórios preliminares, permeados por

abusos de poder, torturas e mortes, à margem da legalidade. Foi determinado que

todo e qualquer indivíduo relacionado a atividades políticas suspeitas deveria ser

encaminhado a Operação Bandeirante. Assim, o órgão seria responsável por

centralizar as informações e encaminhar as ações apropriadas. O projeto piloto foi

um sucesso. A Operação Bandeirante, em 1969, desmantelou diversas

organizações de esquerda e o projeto, então, virou política de segurança pública

nacional em 1970.

A REPRESSÃO E AS DEPENDÊNCIAS DO DOI-Codi

O novo ‘órgão’ contava com autoridades civis e militares do estado de São

Paulo, além de empresários. A OBAN foi criada para “centralizar as atividades

repressivas nas grandes cidades (...) desenvolvendo e aprimorando as bases de

uma política oficial de repressão que se tornou a mais cruel do país”1. Criada pelo II

Exército, se tornou a polícia política dentro do Exército, passando a receber todos

os suspeitos de atividades terroristas para os chamados “interrogatórios

1 Parecer Técnico UPPH nº GEI 256-2012. Pedido de Tombamento das Antigas Instalações do DOI-Codi

em São Paulo. Janeiro/2014. Pg. 21.

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preliminares”, sendo posteriormente encaminhados os civis para o Deops e os

militares para suas corporações, Joffly (2008,38).

As informações obtidas por meio destes interrogatórios preliminares não tinham valor jurídico por duas razões: a primeira é justamente a ilegalidade da existência da OBAN, portanto, tratava-se de informações colhidas de maneira ilegal, e em segundo, pelo método empreendido pela organização para obter tais informações. A tortura como método de obter confissão e informações foi aprimorada na OBAN com a experiência de Sérgio Paranhos Fleury, que atuava no Deops paulista e já tinha experiência nesse método (CONDEPHAAT, 2014, pg. 22).

O êxito repressivo da OBAN provocou em 1970 sua continuidade nos

chamados DOI-Codi, unificando em uma mesma organização o Departamento de

Operação e Informação (DOI) e o Centro de Operações de Defesa Interna (Codi),

experiência que foi copiada por todo o país2. As pesquisas realizadas em torno dos

DOI-Codi destacam que ao CODI cabia o planejamento das ações, enquanto que

os DOI ficavam a cargo da ação repressiva. Foram instituídos os DOI-Codi do Rio

de Janeiro (1970 - RJ), Recife (1970 - PE), Brasília (1970 - DF), Curitiba (1971 -

PR), Belém (1971 - PA), Salvador (1971 - BA), Fortaleza (1971 - CE) e Porto Alegre

(1974 - RS).

Os CODI (Centros de Operações de Defesa Interna) eram responsáveis

pelo planejamento e organização das ações, e os DOI (Destacamentos de

Operações de Informações) eram responsáveis pelas capturas, averiguações e

interrogatórios; atuavam conjuntamente e eram subordinadas a Secretaria Nacional

de Informação (SNI). O efetivo do aparelho dispunha de cerca de 250 homens sob

o comando do então major Carlos Alberto Brilhante Ustra.

2 Para maiores informações sobre a OBAN e o DOI-Codi sugere-se a consulta da tese de Doutorado em

História Social de Mariana Joffly, No centro da Engrenagem. Os interrogatórios na Operação Bandeirante e no DOI de São Paulo (1969-1975). Tese da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2008. Disponível em:< www.teses.usp.br/teses/disponiveis/.../TESE_MARIANA_JOFFILY.pdf >, acessado em 14/04/2014. Outra referencia a pesquisa sobre o tema, mas referente ao DOI-Codi do estado do Rio de Janeiro pode ser encontrado no trabalho de Rafaella Lúcia “O DOI-CODI carioca: Memória e cotidiano no "Castelo do Terror", resultado do mestrado em história da Fundação Getúlio Vargas. Disponível em:< http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/9611/Dissert.%20Rafaella%20FINAL%20P%C3%93S-DEFESA%20pendrive.pdf?sequence=1>, acessado em 14/04/2014.

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O sistema DOI-Codi seguiu com o padrão dos interrogatórios. Dezenas de

presos morreram em decorrência das torturas físicas e psicológicas; por meio da

montagem de cenários, elaboração de falsos laudos periciais e certidões de óbito,

os agentes buscavam ocultar a causa da morte dos corpos dilacerados.

Imagem 01: DOI-Codi nos anos 70. Foto: Sérgio Sade. Fonte: Revista Veja nº 967,

18/03/1987.

Existiam três equipes que trabalhavam de 24 por 48 horas. As equipes

eram dividas em três seções: 1- Busca e Apreensão; 2- Interrogatório/investigação

(momento das torturas em que atuavam alguns oficiais, militares e também civis); 3-

De Informações e Análises (equipe com alto poder de concentração e análise sobre

as informações “colhidas” dos presos durante os interrogatórios)3. Popularmente

conhecido como a “sucursal do inferno” entre os ex-presos políticos, o DOI-Codi é

cenário de inúmeros relatos de tortura, que em seus espaços constituía-se como

prática contínua e institucionalizada, ocasionando a morte de muitos militantes

políticos nas suas dependências.

O DOI-Codi figura como lugar de memória e de esquecimento para muitos

brasileiros que ousaram combater a repressão imposta a sociedade brasileira pelos

militares entre 1964 e 1985. Uma importante publicação sobre as torturas sofridas

por brasileiros pelos militares durante a ditadura se chama “Brasil Nunca Mais”,

3 Informações obtidas através do Testemunho da Expresa e militante da ALN Darci Miyaki ao Programa

Coleta Regular de Testemunhos do Memorial da Resistência em 24/04/2014.

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publicada em 1985. Entre os principais métodos de tortura relatados pela

publicação e de conhecimento público são:

Pau de Arara – “Consiste numa barra de ferro que é atravessada entre os punhos amarrados e a dobra do joelho, sendo o “conjunto” colocado entre duas mesas, ficando o corpo do torturado pendurado cerca de 20 ou 30 cm do solo”. Eletrochoque – “Dado por um telefone de campanha do Exército que possuí dois fios longos que são ligados ao corpo, normalmente nas partes sexuais, além dos ouvidos, dentes, língua e dedos”. Pimentinha – “Trata-se de uma máquina constituída de uma caixa de madeira, em cujo interior possuí um ímã permanente, no campo do qual gira um rotor combinado, de cujos terminais uma escova recolhe corrente elétrica que é conduzida através dos fios para os terminais”. Afogamento – “Conhecido como um dos complementos do pau-de-arara. Um pequeno tubo de borracha é introduzido na boca do torturado e passa a lançar água”. Cadeira do Dragão – “O torturado é obrigado a se sentar em uma cadeira, tipo barbeiro, com correias revestidas de espumas, além de outras placas de espuma que cobriam seu corpo. Seus dedos são amarrados com fios elétricos, dedos dos pés e mãos, iniciando-se uma série de choques elétricos, e ao mesmo tempo outro torturador com um bastão dá choques elétricos entre as pernas e o órgão genial”. Geladeira – “O preso é colocado nu em um ambiente de temperatura baixíssima e dimensões reduzidas, onde poderia ter sons estridentes” 4.

Conhecido por ser um dos lugares em que mais se torturou nos anos da

ditadura em São Paulo, no DOI-Codi, para além das torturas físicas, os presos

eram submetidos a torturas psicológicas, como encenação de fuzilamento e assistir

à tortura de companheiros de militância presos. Darci Miyaki relata um pouco dessa

prática de tortura em entrevista ao Programa Coleta Regular de Testemunhos do

Memorial da Resistência de São Paulo.

Uma coisa que era terrível, depois que você passa por aquele período de tortura, é interessante. Logo no início, a tortura era diária e praticamente sem interrupção. Você passa de uma equipe para outra. Depois passa a ser mais espaçado, se tem um pouco mais de folga. Depois é assim: quando me davam café da manhã eu pensava, puxa, agora de manhã eu não vou ser torturada. Quando não me davam almoço eu ia voltar para a tortura. E uma coisa que eles faziam que era estudar. Conforme caia um companheiro e ele estava sendo torturado, eles abriam, tinha uma porta de ferro que isolava as celas do restante lá do DOI-Codi. Eles abriam para nós ouvirmos os gritos. Gente vocês não sabem o que significa isso.

4 Essas informações foram colhidas no livro Brasil Nunca Mais, 1985, pg. 34-37.

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Então os pensamentos que te ocorrem é o seguinte: Você lembra do que você passou. Depois você pensa assim: Quem caiu? Será que me conhece? Será que vai falar de mim? Será que eu vou voltar para a tortura? A bem da verdade aquilo lá, o que você tem praticamente o tempo todo é medo”. (DARCI MIYAKI: 2014).

A descrição da porta de ferro destacada por Darci aparece na matéria do

Jornal do Brasil em 23 de janeiro de 1976, intitulado “O prédio cinza do bairro

Paraíso”.

Ao se transpor o portão cinza, de duas folhas, imediatamente após o corpo-da-guarda, integrado por soldados do Exército e da Polícia Militar, tem-se a direita uma sala de espera e à esquerda um amplo estacionamento com os mais diversos tipos de viaturas. Já dentro do prédio cinza, à direita se encontra o refeitório dos funcionários e, à esquerda, dependências em ampla área edificada. Uma porta de ferro impede o acesso a estranhos. Veem-se uma mesa, com cadeira, e uma saleta destinada a identificação dos presos. No extenso corredor, à direita, há quatro celas de cada lado, com portas gradeadas, podendo ver-se seu interior. Apenas uma cela, no fundo do corredor, possui um chuveiro de água quente. Ainda no mesmo corredor, uma solitária, onde permanece o preso incomunicável.

No sentido, ainda, dois grandes portões de entrada, tem-se à frente uma escada de dois lances. Chega-se à parte assombrada, onde se localizam as salas de interrogatório. No seu interior, uma mesa simples, tendo de cada lado duas cadeiras de plástico. Na parte de cima, também, instalam-se o comando do DOI-Codi e as equipes de análise que interpretam os depoimentos feitos pelos presos. Além dessas dependências, mais três celas estão ali instaladas5.

A descrição acima dos espaços do DOI-Codi coincide com relatos de

descrições feitas por ex-presos políticos que por este espaço passaram. Entidades

de Direitos Humanos, Ordem dos Advogados do Brasil, Comissões da Verdade e

outros organismos como o CONDEPHAAT realizaram algumas visitas técnicas ao

espaço com ex-presos a fim de reconhecê-lo como lugar de memória. Abaixo, é

possível verificar planta reconstituída a partir de visita da Comissão Nacional da

Verdade com ex-presos políticos.

5 O prédio cinza do Bairro Paraíso, Jornal do Brasil, 23 de janeiro de 1976. JOFLLY (2008,47).

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Imagens 02 e 03: Planta do DOI-Codi, térreo e 1º andar realizada a partir de indicações de sobreviventes que acompanharam uma visita técnica da Comissão Nacional da Verdade. Fonte: Cedido por Darci Miyaki.

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A Operação Bandeirante – e posteriormente o DOI-Codi – ganhou intensa

repercussão entre os militares no chamado “combate aos terroristas”. Com isso, a

relação entre o Deops (que passou a figurar como o lugar de formalizar inquéritos)

e o DOI foi de intensos conflitos e disputas. Mariana Joffly (2008, 63) relata em sua

pesquisa um dos acontecimentos representativos dessa disputa.

“(...) No dia 21 de março de 1970, o DOPS prendeu Shizuo Ozawa – conhecido como “Mário Japa” -, procurado militante da VPR, que havia estado em área de treinamento de guerrilha do Vale do Ribeira. Tratava-se de um preso importante, pois possuía informações que poderiam levar à captura do odiado capitão Carlos Lamarca, militar que havia desertado do 4º Regimento de Infantaria, levando armas e munições do próprio exército para usar na guerrilha. Ao tomarem conhecimento da prisão, agentes da Operação Bandeirante invadiram o DOPS em busca do preso político, que o delegado Fleury recusara-se a enviar-lhes. Obrigado a ceder, antes de entregar Shizuo Ozawa, pulou sobre seu peito, quebrando-lhe várias costelas, a fim de impedir que seus colegas o interrogassem e soubessem o paradeiro do Lamarca”.

Durante o governo de Ernesto Geisel, dá-se inicio a um processo de

desativação do aparato repressivo montado pelo Estado, considerando entre outros

o momento político de retorno à democracia. No caso do DOI-Codi de São Paulo, o

grande marco desse processo é a saída do comandante do II Exército, o general

Ednardo d’Ávilla Mello, removido pelo presidente após os casos de assassinato do

jornalista Vladmir Herzog e do metalúrgico Manuel Fiel Filho, respectivamente nos

meses de outubro de 1975 e janeiro de 1976. Essas mortes causaram grande

comoção social, gerando intensas mobilizações nas ruas. Nesse contexto, merece

destaque a Missa Ecumênica realizada em 31 de outubro de 1975, na Catedral da

Sé, em protesto pela morte de Vladimir Herzog. O ato reuniu mais de 10.000

pessoas, no que ficou conhecido como a primeira grande manifestação de protesto

da sociedade civil contra a repressão militar após a promulgação do Ato

Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968.

A extinção do DOI-Codi se deu em 18 de janeiro de 1982, através da

Portaria Interministerial nº 13-Sec. Com isso, se cria um novo órgão responsável

por operações de informações e contra informações chamado Setor de Operações

(SOP), através da mesma portaria de extinção do DOI-Codi.

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RESISTÊNCIA E SOLIDARIEDADE ENTRE OS PRESOS

As dependências do DOI-Codi, para além da repressão, foi palco de intensa

resistência e solidariedade entre os militantes políticos presos. Nas palavras de

Mariana Joffily (2008), ali era o “centro da engrenagem” da repressão em São

Paulo. E no cerne dessa repressão, a maior resistência apontada por vários dos

militantes que por ali passaram e sobreviveram às torturas, eram as canções. A

música derrubava os muros que separavam as celas e penetravam na alma dos

presos, numa atitude de conforto e solidariedade com os companheiros que iriam

ser torturados.

O nosso confronto se dava com as nossas canções. Quando um companheiro era levado para o presídio ou para outro estado agente cantava. Quando a jangada vai para o mar. Várias canções. Então era uma forma de nos manifestarmos. (DARCI MIYAKI: 2014)

A música, como símbolo de resistência e solidariedade, não apareceu

apenas no DOI-Codi. Era uma ferramenta de sobrevivência em muitas das

unidades prisionais, tendo sido recorrentes os depoimentos de presos políticos

sobre a função da música em meio à barbárie e ao terror. A música destacada na

entrevista por Darci Miyaki é “Suite do Pescador” de Dorival Caymmi (Minha

jangada vai sair pro mar / Vou trabalhar, meu bem querer / Se Deus quiser quando

eu voltar do mar / Um peixe bom eu vou trazer / Meus companheiros também vão

voltar / E a Deus do céu vamos agradecer (...)). Muitos outros compositores da

chamada Música Popular Brasileira compuseram canções que se tornaram ícones

da resistência ao terror da repressão militar. Entre os que mais se destacaram:

Chico Buarque, Caetano Veloso, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Milton Nascimento,

Gonzaguinha, entre outros compositores que, através de metáforas, denunciavam à

sociedade e ao mundo os crimes existentes no Brasil6.

6 Há uma vasta literatura sobre a função da música nas prisões da ditadura e a força que dispunha na

sociedade, sobretudo entre os resistentes ao regime militar instaurado. Para maiores informações sugere-se a consulta ao artigo: VELOSO, Flávia Gotelip Corrêa. Ditadura Militar: o papel da música

popular brasileira no processo de resistência política para mulheres na situação de prisão e tortura.

Outro interessante artigo que especifica mais a obra de Chico Buarque na resistência é: COSTA, Carina. A

música na ditadura militar brasileira - Análise da sociedade pela obra de Chico Buarque de Holanda. Disponível em: < ftp://ftp.usjt.br/pub/revistaic/pag35_edi01.pdf>, acessado em 28/04/2014.

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Desse modo imaginativo, a música na prisão cumpre funções que vão além da comunicação de uma aspiração ideológica, conclui Lúcia. Ao modo brasileiro, as canções rompiam o padrão de medo e barbárie do universo carcerário, embalavam e acalentavam os companheiros após as sessões de tortura, que eram recebidos com o afago das doces melodias tropicais. Esse sopro de vida ajudou a introduzir na rotina dos porões da guerra política a solidariedade, a alegria e o conforto para a dor, humanizando o horror da opressão (WANDELLI, Raquel, 2010)7.

Para além da solidariedade através das canções, os presos políticos se

solidarizavam uns com os outros, no sentido de amenizar as sequelas físicas e

psicológicas das torturas. Compartilhavam cobertas, doavam o pouco que

dispunham para estancar o sangue dos companheiros que voltavam das salas de

tortura com graves hemorragias. Auxiliavam os que não conseguiam se locomover

por fraturas oriundas dos “processos de interrogatório”, entre outras ações que, no

cotidiano, parecem menores, mas que, naquele lugar e naquelas condições de

tratamento que recebiam do Estado, se tornavam gigantes e essenciais para a

sobrevivência.

Outro aspecto era a solidariedade protetiva, na qual, os militantes presos

tentavam ‘controlar’ as saídas de seus companheiros, buscando saber para onde

iriam, a finalidade, e em alguns casos, tentando evitar a retirada do preso. No

Brasil, essa referência protetiva entre os presos, é anterior ao Golpe de 1964.

Durante o governo de Getúlio Vargas, em 1942, a militante comunista de

origem judaica Olga Benário, que estava no Brasil como companheira e guarda-

costas de Luís Carlos Prestes, foi deportada para a Alemanha, que a época

exterminava todos os judeus, através da chamada Solução Final do Nazismo. Olga

estava grávida quando presa pelos militares brasileiros, e as detidas se

solidarizaram a ela quando, com sete meses de gestação, sob a justificativa de que

seria encaminhada para um hospital, foi levada para o navio cargueiro alemão La

Coruña, que a levou à prisão de mulheres de Barnimstrasse em Berlim, onde deu a

luz à sua filha e, pouco tempo depois, foi levada a câmara de gás8.

7 Matéria publicada no site da Sociedade Brasileira para o Desenvolvimento da Ciência por Raquel

Wandelli sobre palestra da professora e ex-presa política Lúcia Coelho durante a 62ª Reunião Anual da SBPC intitulada Ciências do Mar: heranças para o futuro (25 a 30 de julho/2010 – UFRN). Disponível em: < http://www.sbpcnet.org.br/natal/imprensa/newsletterdia28_5.php>, acessado em 28/04/2014. 8 Para maiores informações sobre Olga Benário, sugere-se leitura de artigo escrito por sua filha que

nasceu no carecer, Anitta Prestes intitulado: Olga Benario Prestes: um exemplo para os jovens de hoje. Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/node/5617, acessado em 30/04/2014.

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O nazismo ficou conhecido como um dos maiores crimes de lesa-

humanidade já existentes. E a referência às condenações no Tribunal Penal

Internacional aos principais militares alemães, bem como as ações de memória e

verdade realizadas posteriores ao Holocausto, tem servido de exemplos por todo o

mundo no trato com memórias de dor e violações aos direitos humanos.

A PRÁTICA DE FALSIFICAR LAUDOS DE CAUSA MORTE –

RESPONSABILIZAÇÃO

A categoria militar possui em sua tradição o apreço pelo registro de

informações e respeito à hierarquia. Nesse sentido, a produção de documentação

sobre suas ações durante o golpe de estado deflagrado foi intensa e constante. No

entanto, as informações dos acontecimentos em alguns casos era

ajustada/manipulada de seu real cometimento. Uma prática constante nesse

sentido foram os laudos de causa morte dos presos políticos que morriam em

decorrência das torturas que sofriam nas seções de interrogatório.

No estado de São Paulo, o caso mais divulgado foi a atuação do médico

legista Harry Shibata, por ocasião da morte do jornalista e diretor de jornalismo da

TV Cultura Vladimir Herzog. A morte do jornalista ocorreu nas dependências do

DOI-Codi, em 25 de outubro de 1975, vítima de graves torturas. Em seu laudo de

óbito, feito pelo médico Shibata, a causa morte foi descrita como sendo asfixia

mecânica por enforcamento (suicídio).

A morte de Herzog causou intensa agitação social e promoveu uma série de

protestos contra a repressão militar à época. O Exército divulgou uma nota

afirmando que o jornalista teria ido ao DOI-Codi espontaneamente, após solicitação

para prestar depoimento e que, em decorrência de sua prisão por ‘crimes políticos’,

dado sua participação no Partido Comunista Brasileiro, teria escrito sua declaração

de ‘culpa’ e, após ser deixado sozinho em uma sala do DOI-Codi, se suicidou9.

9 As informações relativas a nota publicada pelo Exército pode ser melhor analisada no artigo de Christa

Berger intitulado Memória enquadrada: 30 anos se passaram e Vlado segue morrendo. Disponível em:< http://sbpjor.kamotini.kinghost.net/sbpjor/admjor/arquivos/coord1_christa_berger.pdf>, acessado em 15/04/2014.

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Imagem 04: Fotografia do falso suicídio do jornalista Wladimir Herzog. Foto: Silvaldo Leung Vieira;

Ser político todos nós somos, claro, mas o Vlado não era um cara

de partido. Era alguém que queria fazer algo para melhorar a

sociedade. E nós – ele, eu e os amigos jornalistas dele – sabíamos

que ele seria preso por conta de envolvimento. O procuraram na

minha casa, meus filhos estavam lá comigo, inventaram que

queriam que ele fotografasse um casamento. Eu disse que ele não

era profissional na área, despistei e o avisei que eles estavam indo

para a Cultura. Nisso foi muito rápido e no dia seguinte já

recebemos a notícia da morte. (...) Eu acredito que a morte dele foi

um ponto alto, algo que começou um desmascaramento da

Ditadura. Naquela época as coisas eram mascaradas demais,

sempre a versão oficial e com a morte do Vlado, por ele ser

extremamente querido e conhecido, isso começou a cair. Saiu em

jornais internacionais, muito aqui no Brasil. Houve uma organização

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da sociedade civil em torno da fragilidade criada com o assassinato

(HERZOG, Clarice)10.

O fotógrafo do falso suicídio de Herzog foi Silvado Leung Vieira11, fotógrafo

oficial da Polícia Civil de São Paulo. Três meses depois, o mesmo fotógrafo

testemunharia a morte do metalúrgico Manoel Fiel Filho, assassinado sob tortura e

igualmente apresentado pelo regime como "suicida".

A prática de alterar a causa da morte dos perseguidos políticos tornou-se

uma constante entre os agentes da repressão. A intenção era para, além de livrar a

culpa da morte (demonstrando a violência do regime), destacar o suposto

arrependimento da pessoa em ir contra o regime. Para isso, o apoio dos médicos

legistas do Instituto Médico Legal (IML) era mais que fundamental. Os médicos

acompanhavam as seções de tortura dos presos para verificar até que ponto seus

corpos suportariam as torturas empreendidas, e em caso de morte, falsificavam os

laudos e atestados de óbitos para esconder torturas e mortes. A família Herzog,

não acreditando na versão do suposto suicídio, ingressou com ação judicial e, em

1978, o juiz Márcio José de Moraes condenou a União pela morte do jornalista. A

morte do operário Manoel Fiel Filho, morto nas dependências do DOI-Codi em

1976, também foi pauta de condenação, em 1980, pela 5ª Vara Federal de São

Paulo.

Em setembro de 2012, após solicitação da Comissão Nacional da Verdade,

o juiz Márcio Martins Bonilha Filho, da 2.ª Vara de Registros Públicos do Tribunal

de Justiça de São Paulo, determinou a retificação do atestado de óbito de Vladimir

Herzog. A decisão reafirmou o crime de falsificação de laudos de causa morte nos

anos de chumbo no Brasil. E o médico legista responsável pelo laudo, Harry

Shibata, teve seu exercício profissional suspenso em 1980 pelo Conselho Regional

de Medicina12.

10

Entrevista concedida da viúva do jornalista Vladimir Herzog, Clarice Herzog, ao site Yahoo por ocasião dos 50 anos de ditadura no Brasil. Disponível em: < https://br.noticias.yahoo.com/ditadura-brasileira/vladmir-herzog/>, acessado em 15/04/2014. 11

Para maiores informações sobre o fotógrafo e suas capturas emblemáticas da história política do Brasil, sugere-se consulta na reportagem de Lucas Ferraz no jornal Folha de São Paulo disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/24012-o-instante-decisivo.shtml>, acessado em 15/04/2014. 12

Outros médicos legistas foram condenados pelos crimes de falsificação de atestados de óbitos. Outro caso emblemático foi o de Amílcar Lobo, que em 1989 teve seu registro de médico cassado pelo Conselho Federal de Medicina sob a acusação de envolvimento com tortura nas dependências do quartel da Polícia do Exército, onde funcionava também o DOI-Codi do Rio de Janeiro.

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Imagem 05: Atestado de óbito de Vladimir Herzog com reconhecimento de morte por tortura, 2012.

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O ano de 2012 foi marcado por protestos de jovens do grupo chamado

Levante Popular da Juventude, que realizaram uma série de manifestações,

denominadas escrachos, aos torturadores do período ditatorial, com destaque para

os médicos legistas. Os primeiros médicos legistas a serem denunciados

publicamente na ação dos jovens foram: Harry Shibata (em abril de 2012, São

Paulo), João Bosco Nacif da Silva (em maio de 2012, Minas Gerais) e José Carlos

Pinheiro (em maio de 2012, Sergipe)13.

Imagens 06: Escracho em frente da casa do médico legista Harry Shibata. Foto: Filipi Araújo/Agencia do Estado.

13 Para maiores informações sobre os escrachos do Levante Popular da Juventude e a reivindicações dos jovens na memória do período militar sugere-se a consulta a pesquisa: O

TEMPO DA MEMÓRIA POLÍTICA: (RE) SIGNIFICANDO OS USOS SOBRE A MEMÓRIA DO PERÍODO MILITAR NO BRASIL de Ana Paula Brito. Dissertação de Mestrado em Memória Social e Patrimônio Cultural, 2014. Universidade Federal de Pelotas.

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PATRIMONIALIZAÇÃO DO LUGAR

A solicitação do tombamento foi requerida por Ivan Seixas, ex-preso politico

e, também, presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana. Ivan

ficou preso junto com seu pai, Joaquim Seixas, nas instalações do DOI-Codi. Suas

irmãs, Ieda e Iara, e sua mãe, Fanny, também ficaram detidas no prédio. O DOI-

Codi foi o ultimo lugar que Ivan viu seu pai com vida, e lá ouviu os gritos das

torturas que levou seu pai a óbito.

A solicitação de Ivan Seixas, sob o processo 66578-2012 junto ao Conselho

de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de

São Paulo – CONDEPHAAT –, considerava que, para além de sua memória

particular, o local possui representatividade para a história nacional, por ser um

lugar marco da repressão e da resistência nos anos de chumbo. Solicitou o

tombamento do prédio no dia 01 de junho de 2012. O tombamento14, instrumento

jurídico de reconhecimento do lugar como patrimônio histórico/cultural, foi

observado pelo CONDEPHAAT. A abertura do estudo de tombamento pelo

CONDEPHAAT foi realizada em 05/09/2012 e a principal observação dos

pesquisadores foi à perspectiva da imaterialidade do lugar.

O tombamento, em sua proteção jurídica, observa a materialidade do lugar,

suas especificidades arquitetônicas e históricas. Nesse sentido, o pedido de

tombamento do prédio que abrigou o DOI-Codi inovou na acepção do conceito em

torno do tombamento, por considerar as memórias em torno do lugar

(imaterialidade).

Cabe destacar que o ano de 2012 se destacou em torno das políticas

públicas de memória sobre a ditadura civil-militar. As leis que regulamentaram a

14 O tombamento foi instituído pelo Decreto-Lei nº 25 de 30/11/1937 pela Presidência da República

visando organizar a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Existem quatro livros de tombo: 1- Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; 2- Histórico, as coisas de interesse histórico e as obras de arte histórica; 3- Belas Artes, as coisas de arte erudita, nacional ou estrangeira; 4- Artes Aplicadas, as obras que se incluírem na categoria das artes aplicadas, nacionais ou estrangeiras. Uma vez tombado, o bem recebe uma série de restrições e proteção. A nível federal o órgão que estuda e promulga o tombamento de um bem é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Os estados igualmente possuem institutos, que em sua maioria vinculados a Secretaria do Estado atua promovendo estudos e ações de preservação do patrimônio cultural.

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abertura dos arquivos da repressão e a lei que cria a Comissão Nacional da

Verdade15 impulsionaram a sociedade civil e os órgãos do estado a compreender a

importância dessas memórias de violações do passado. Essa consciência incentiva

uma nova leitura desses lugares de dor, que passam a ser observados como

espaços de memória ativa, sendo ainda uma oportunidade de “reparar”, mesmo que

socialmente, as vítimas que sobreviveram as barbáries sofridas nesses espaços,

como o DOI-Codi. O parecer sobre o tombamento foi aprovado pelo CONDEPHAAT

em 27/01/2014 por unanimidade. Entre os sobreviventes, a notícia foi muito bem

recepcionada, pela importância das memórias do lugar.

Eu acho fantástico justamente por isso. Porque vai ser um local em que vai-se reviver o passado sim, porque o passado ajuda um pouco a construir o futuro. Ajuda a evitar erros do passado. E eu acho que é um local, olha eu vou ser sincera, eu tenho umas ideias pré-concebidas. Até fui para o Chile em função disso. Tem um memorial que é maravilhoso, é suntuoso que é o Museu da Memória do Chile, e tem a Vila Grimaldi. Sabe o que é que me comoveu? A Vila Grimaldi. Você entendeu? Nós já temos aqui, tem um memorial que está sendo construído em Belo Horizonte (o memorial da anistia), nenhum retrata a realidade do que foi a repressão. Então é um espaço grande, acho que poderíamos reunir as duas coisas. É, a linguagem de vocês hoje é diferente da nossa, e a linguagem da criançada que vai frequentar lá já é uma outra linguagem. Então nós temos que ter atenção para isso. Foi tombado. Ótimo. Temos que criar um mecanismo de unir o passado, com o presente e o futuro. (DARCI MIYAKI, 02:52:40 – 02:54:54).

Para além do tombamento, a expectativa gerada em torno do edifício,

que reúne tantas memórias dolorosas e caras para a sociedade brasileira, é que

seja transformado em um memorial.

15

As leis respectivamente são: LEI Nº 12.527, DE 18 DE NOVEMBRO DE 2011 e LEI Nº 12.528, DE 18 DE NOVEMBRO DE 2011. Cabe destacar que as leis são do ano de 2011, mas entraram em vigor a partir do ano 2012.

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ATUALMENTE E/OU ACONTECIMENTOS RECENTES:

Em 9 de outubro de 2008, o juiz Gustavo Santini Teodoro proferiu uma

sentença que declarou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do

DOI-Codi/SP entre 1970 e 1974, como torturador. Ao reconhecê-lo como culpado, e

definir o DOI-Codi como centro de tortura, tomou-se uma decisão histórica para o

Brasil.

Atualmente, o espaço é utilizado pelo 36° Distrito Policial da Vila Mariana, o

que causa certo desconforto social, uma vez que o lugar continua sendo um espaço

de repressão policial. Com o tombamento, a expectativa é que seja utilizado como

centro de memória das violências aos direitos humanos do passado ditatorial.

Entidades de direitos humanos, familiares e ex-presos políticos têm atuado

significativamente no sentido de que o lugar passe a ser observado como lugar de

memória da ditadura. Na semana alusiva a descomemoração do golpe militar, no

dia 31/03/2014, foi realizado um ato político-cultural denominado “Ato Unificado

Ditadura Nunca Mais: 50 anos do golpe militar” no pátio de acesso externo da

delegacia. A ação reuniu cerca de 600 pessoas entre familiares, ex-presos e muitos

jovens.

Imagem 07: Folder de divulgação do Ato Unificado no antigo DOI-Codi, março de 2014.

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“Nunca na minha vida eu poderia imaginar que nesse pátio aconteceria isso. Ouvir a Internacional aqui. Eu vou te falar uma coisa muito séria. Essas lembranças, esse ato foi magnífico, foi algo que eu nunca imaginei. Junto com esse sentimento bom, vêm os sentimentos duros. E junto com isso tudo vem uma preocupação muito grande com o nosso futuro”. (DARCI MIYAKI: 2014).

Imagem 08: Darci Miyaki no ato do DOI-Codi 50 anos. Foto: Ana Paula Brito/Memorial da Resistência.

Darci Miyaki, representada na fotografia acima, realizou quatro visitas a 36ª

Delegacia da Rua Tutóia, no sentido de identificá-la como lugar de repressão em

que ficou presa por sete meses em 1972. A Ordem dos Advogados do Brasil e a

Comissão Nacional da Verdade foram algumas das organizações que requereram a

presença da militante durante as diligências feitas no local. Outros militantes como

Antônio Carlos Fon, Ivan Seixas e Amélia Teles também realizaram diligências ao

local, com outros organismos, como o CONDEPHAAT, durante os estudos, dada a

solicitação do tombamento do prédio.

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ENTREVISTAS RELACIONADAS AO TEMA

O Memorial da Resistência possui um programa especialmente dedicado a

registrar, por meio de entrevistas, os testemunhos de ex-presos e perseguidos

políticos, familiares de mortos e desaparecidos e de outros cidadãos que

trabalharam/frequentaram o antigo Deops/SP. O Programa Coleta Regular de

Testemunhos tem a finalidade de formar um acervo, cujo objetivo principal é

ampliar o conhecimento sobre o Deops/SP e outros lugares de memória do Estado

de São Paulo, divulgando, desta forma, o tema da resistência e repressão política

no período da ditadura civil-militar.

- Produzidas pelo Programa Coleta Regular de Testemunhos do Memorial da

Resistência

ROQUE, Adílio. Entrevista sobre militância, resistência e repressão durante a

ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São Paulo, entrevista concedida

a Kátia Filipini em 17/04/2013.

PADILHA, Anivaldo. Entrevista sobre militância, resistência e repressão

durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São Paulo, entrevista

concedida a Karina Alves em 30/08/2013.

OLIVEIRA, Antonio M. de. Entrevista s obre militância, resistência e repressão

durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São Paulo, entrevista

concedida a Karina Alves em 23/10/2013.

PIRES, Áurea Moretti. Entrevista sobre militância, resistência e repressão

durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São Paulo, entrevista

concedida a Karina Alves em 25/10/2013.

JUNIOR, Belisário dos Santos. Entrevista sobre militância, resistência e

repressão durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São

Paulo, entrevista concedida a Kátia Filipini em 01/11/2012.

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CASTRO, Cloves de. Entrevista sobre militância, resistência e repressão

durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São Paulo, entrevista

concedida a Karina Alves em 12/06/2013.

ULRICH, Emílio Ivo. Entrevista sobre militância, resistência e repressão

durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São Paulo, entrevista

concedida a Karina Alves em 13/06/2013.

PIVETTA, Idibal. Entrevista sobre militância, resistência e repressão durante a

ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São Paulo, entrevista concedida

a Kátia Filipini em 19/10/2012.

ALMEIDA, Leane de. Entrevista sobre militância, resistência e repressão

durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São Paulo, entrevista

concedida a Karina Alves em 23/07/2013.

NETO, Manoel Cyrillo de Oliveira. Entrevista sobre militância, resistência e

repressão durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São

Paulo, entrevista concedida a Karina Alves em 26 de julho de 2013.

BENACCHIO, Maria Albertina Gomes. Entrevista sobre militância, resistência e

repressão durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São

Paulo, entrevista concedida a Karina Alves em 04/10/2013.

SANTOS. Maria Aparecida dos. Entrevista sobre militância, resistência e

repressão durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São

Paulo, entrevista concedida a Karina Alves em 11/10/2013.

BELLOQUE, Maria Luiza Locatelli Garcia. Entrevista sobre militância, resistência

e repressão durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São

Paulo, entrevista concedida a Kátia Filipini em 31/10/2012.

VANNUCHI, Paulo de Tarso. Entrevista sobre militância, resistência e

repressão durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São

Paulo, entrevista concedida a Kátia Filipini em 21 de dezembro de 2012.

SIPAHI, Rita Maria de Miranda. Entrevista sobre militância, resistência e

repressão durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São

Paulo, entrevista concedida a Kátia Filipini em 19/03/2013.

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SZERMETA, Stanislaw. Entrevista sobre militância, resistência e repressão

durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São Paulo, entrevista

concedida a Karina Alves em 27/09/2013.

LOPES, Guiomar Silva. Entrevista sobre militância, resistência e repressão

durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São Paulo, entrevista

concedida a Karina Alves em 08/04/2014.

SILVA, Ilda Martins da. Entrevista sobre militância, resistência e repressão

durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São Paulo, entrevista

concedida a Karina Alves em 18/03/2014.

DOWBOR, Ladislau. Entrevista sobre militância, resistência e repressão

durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São Paulo, entrevista

concedida a Karina Alves em 07/02/2014.

MIYAKI, Darci. Entrevista sobre militância, resistência e repressão durante a

ditadura civil-militar no DOI-Codi. Memorial da Resistência de São Paulo,

entrevista concedida a Karina Alves em 24/04/2014.

FILMES E/OU DOCUMENTARIOS

Documentário: 15 Filhos. Direção de Maria Oliveira e Marta Nehring, 1996.

Sinopse: Relato de filhos de ex-combatentes políticos. Impressões e situações

vividas.

Documentário: Vlado – 30 anos depois. Direção de João Batista de Andrade,

2006. Sinopse: Morto há trinta anos pela ditadura militar, o jornalista Vladimir

Herzog é homenageado neste documentário dirigido por João Batista de Andrade.

O longa é um apanhado da vida, carreira e morte de Vlado, contando com

depoimentos de amigos e familiares. Entre os entrevistados estão Clarice Herzog,

Paulo Markun, Diléa Frate e Fernando Jordão.

Documentário: Jango. Direção de Silvio Tendler, 1984. Sinopse: Rodado em

1984, Jango retrata a carreira política de João Belchior Marques Goulart, presidente

deposto pelos militares em 1º de abril de 1964. Na obra, Tendler procurou mostrar a

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política brasileira da década de 60, desde a candidatura de Jânio Quadros,

passando pelo golpe militar, as manifestações da UNE e os exílios. O filme é

narrado pelo ator José Wilker e conta com depoimentos de Magalhães Pinto, Aldo

Arantes, Raul Ryff, Afonso Arinos e Francisco Julião, entre outros.

Documentário: Cidadão Boilesen. Direção de Chaim Litewski, 2009. Sinopse: O

documentário revela as ligações de Henning Albert Boilesen (1916-1971),

presidente do famoso grupo Ultra, da Ultragaz, com a ditadura militar, ajudando no

financiamento da repressão violenta e também participando da criação da Oban –

Operação Bandeirante, projeto piloto para o DOI-Codi.

Filme: Peões. Direção de Eduardo Coutinho, 2004. Sinopse: Trata-se sobre a

história pessoal de trabalhadores da indústria metalúrgica do ABC paulista que

tomaram parte no movimento grevista de 1979 e 1980, mas permaneceram em

relativo anonimato. Eles falam de suas origens, de sua participação no movimento e

dos caminhos que suas vidas trilharam desde então. Exibem souvenirs das greves,

recordam os sofrimentos e recompensas do trabalho nas fábricas, comentam o

efeito da militância política no âmbito familiar, dão sua visão pessoal de Lula e dos

rumos do país.

REMISSIVAS: DEOPS, AUDITORIA MILITAR, TIRADENTES.

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PLANTAS E MAPAS

Imagem 09: Mapa desenvolvido para visita virtual pelo site Uol. Disponível em:www.uol.com.br/infografico/2014/04/02-visita-virtual-ao-DOI-Codi-e-ao-Deops.htm, acessado em 24/04/2014.

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REFERÊNCIAS

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de Janeiro: Editora Achiamé, 2010.

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1985.

BRITO, Ana Paula Ferreira de. O TEMPO DA MEMÓRIA POLÍTICA: (RE)

SIGNIFICANDO OS USOS SOBRE A MEMÓRIA DO PERÍODO MILITAR NO

BRASIL. Dissertação de Mestrado em Memória Social e Patrimônio Cultural, 2014.

Universidade Federal de Pelotas.

COELHO, Marco Antônio Tavares. Herança de um sonho: as memórias de um

comunista. Rio de Janeiro: Record, 2000.

Comissão de Familiares e Desaparecidos Políticos, Instituto Estudos sobre a

violência do Estado. Dossiê ditadura: mortos e desaparecidos políticos no

Brasil (1964-1985). São Paulo: Imprensa Oficial. 2ed. 2009.

FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar:

espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001

Filho, João Roberto Martins. Movimento Estudantil e Ditadura Militar (1964-

1968). Campinas-SP: Papirus editora, 1987.

FON, Antonio Carlos. Tortura – A história da repressão política no Brasil. São

Paulo: Global, 4°ed. 1979.

GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras,

2002.

HUGGINS, Martha K. Polícia e Política: relações Estados. Unidos/América

Latina. São Paulo: Cortez, 1998.

JORDÃO, Fernando. Dossiê Herzog. Prisão, Tortura e Morte no Brasil. São

Paulo: Global Editora. 1979.

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JOFFILY, Mariana. No Centro da Engrenagem – Os interrogatórios na

Operação Bandeirante e no DOI de São Paulo (1969-1975). Tese de Doutorado,

História Social da Universidade de São Paulo, 2008.

LAQUE, João Roberto. Pedro e os Lobos – Os Anos de Chumbo na trajetória de

um guerrilheiro urbano. São Paulo: Ava Editorial, 2009.

MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo. São Paulo:

Fundação Perseu Abramo, 1999.

MIYAKI, Darci. Entrevista sobre militância, resistência e repressão durante a

ditadura civil-militar no DOI-Codi. Memorial da Resistência de São Paulo,

entrevista concedida a Karina Alves em 24/04/2014.

NEVES, Deborah. Paracer Técnico UPPH nº GEI – 256-2012 (Pedido de

Tombamento das Antigas Instalações do DOI-CODI em São Paulo), 2014.

SALINAS, Luiz Roberto. Retrato calado. São Paulo: Marco Zero, 1988.

SOUZA, Percival de Souza. Autópsia do medo: vida e morte do delegado

Sergio Paranhos Fleury. São Paulo: Globo, 2000.

USTRA, Carlos Alberto Brilhante. Rompendo o silêncio. Brasília: Editerra, 1987.

COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:

Programa Lugares da Memória. OBAN/DOI-Codi. Memorial da Resistência de São

Paulo, São Paulo, 2014.