Memorial de Uma Flamenca Sudaca
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UFRN
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE ARTES
BIBIANA ANDRADE ESTEVES
ANAMNESE ESSENCIAL DE UMA FLAMENCA
SUDACA POTIGUAR
Natal
2013
2
BIBIANA ANDRADE ESTEVES
ANAMNESE ESSENCIAL DE UMA FLAMENCA
SUDACA POTIGUAR
Memorial descritivo das atividades
Realizadas durante o curso
De dança apresentado como
Requisito para aprovação e conclusão do
Curso de Graduação na
Federal do Rio Grande do Norte – UFRN
.
Natal
2013
3
UFRN
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE ARTES
FOLHA DE APROVAÇÃO
O presente memorial da aluna foi aprovado em ____ de
_______________de _______.
Profº. de Trabalho de Conclusão de curso 1
Coordenação
4
Dedicado a Jesus Cristo, pois sem
Ele em minha vida, nada teria eu conseguido.
5
Agradeço ao meu filho que é, e sempre será a motivação maior de minha carreira.
A minha mãe, cunhada, irmãos e sobrinho pela presença indispensável nesta aventura que
chamamos de vida.
Ao meu namorado, amado amante, que jamais me permitiu ceder à tentação de desistir.
Agradeço a Amalia Moreira ‘La Morita’, minha primeira mestra na arte da dança flamenca. A
todo o corpo docente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte que contribuiu,
diretamente, para minha formação acadêmica como professora.
6
“O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...”
Fernando Pessoa
7
SUMÁRIO
1. De olhos fechados: conceitos que me guiam 8
2. Olhando para trás: minha formação de andarilha 10
3. Olhando para a direita e para a esquerda: assentando o caminho 12
4. Olhando para cima: em direção ao diploma 15
5. Quando a vista não alcança: os rumos que pretendo seguir 18
6. Considerações finais 19
Referências 20
8
1- De olhos fechados: Conceitos que me guiam
Para a construção destas memórias tomei como inspiração a prática de anamnese
essencial de Jean Ive-Leloup. Ele cita o processo de anamnese como ‘a arte e a prática de
lembrar-se do Ser, através da memórias do corpo físico e das marcas psicológicas deixadas
neste corpo físico’ (LELOUP, 1998:16). Esta prática nos convida a reconhecer o ser de forma
ontológica partindo de uma investigação de nossas porções rotuladas de físicas, espirituais e
psicológicas. Ele segue a linha de Platão quanto ao conhecimento, ou seja, que cada indivíduo
possui verdades intrínsecas acessíveis quando entramos em estado contemplativo, meditativo
ou de maior atenção para com o próprio corpo.
Memória aqui é entendida como ‘amplo rótulo para um grande número de processos
que formam as pontes entre o passado e o presente e que determinam o sentido do eu’
(GLEITMAN, 2003:343). Foi fazendo o uso livre dos vários processos que formam a
memória, que efetuei o levantamento e seleção das lembranças para mim mais relevantes:
tomei contato com a rede de conhecimentos pré-conscientes através de estímulos externos
sonoros e visuais dentro do tema, (memória priming) e as relacionei as lembranças de vida
(memória episódica) a partir de uma livre associação metafórica de um dos segmentos do meu
corpo. Depois tornei minhas livres associações mais legíveis, através das palavras (memória
semântica).
O corpo é o tema nuclear persistente deste memorial. Filosoficamente busco o
compreender dentro da perspectiva fenomenológica, pois ‘a partir dos estudos da
Corporeidade, é possível vislumbrar uma compreensão do corpo fundada na complexidade, na
imprevisibilidade e no paradoxo da existência humana. O corpo não sucumbe aos ditames
racionalistas, mas em sua realidade sensível dialoga com a razão, funde-se a esta gerando
novos sentidos, criando novas possibilidades e compreensões que vão muito além da clássica
dicotomia’ (PORPINO, 2006:46). Mesmo me detendo a um segmento corporal específico,
9
não se trata de uma investigação ou aprofundamento da parte para explicar o todo e sim de um
diálogo do todo tendo como ponto inicial uma das partes. Em outras palavras, o corpo não é
compreendido aqui como um objeto, igual a qualquer outro objeto, coisificado. Antes como
um ser-corpo atado ao ser-mundo, passível mais de apreciação estética que análise
hermenêutica racional. No ser-corpo não é possível distinguir a expressão do expresso, é um
nó de significações vivas que aqui atribuo sentidos a partir de livres associações entre o que
eu vivi, compreendi e conheci.
Além desta breve explanação sobre a concepção e fundamentação deste trabalho, julgo
importante esclarecer o significado da palavra ‘sudaca’ presente no título. Trata-se de uma
espécie de gíria espanhola de natureza pejorativa.
‘Sudaca’ é uma contração livre da palavra ‘sudamericano’ e, portanto, usada para
designar pessoas nascidas na América do Sul. Quando um espanhol refere-se a um artista
como ‘sudaca’ o toma como inferior aos artistas espanhóis. Aqui emprego a palavra como um
vocábulo de designação do lugar de onde vim – sul americana - e da arte que estudo – o
flamenco - menosprezando seu sentido preconceituoso.
10
2- Olhando para trás: minha formação de andarilha
Curitiba, verão de 1999. A música quase atonal de Bejork estilhaçava falsetas agudas
de sinos, xilofone e harpa nas paredes da ampla sala de ensaio. Para meus pés desnudos aquilo
era uma explosão de vidro que eu não tinha a menor intenção de pisar. Dancei como uma
estúpida fadinha pintando ou aspergindo algo pelo ar. Tratava-se de um dos intermináveis
ensaios/criação para o ato ‘narciscism’ do experimento teatral ‘The Last Supper’, dirigida pela
minha colega do curso de Bacharelado em Teatro da Faculdade de Artes do Paraná (FAP).
No final do dia de ensaio, após a roda de conversa, a diretora coreográfica me chamou
e sentenciou:
-Você não pisa no chão. Por isso sugiro a você fazer esta série de exercícios em casa
para corrigir isto.
Foi um choque para mim! Argumentei que tinha em mente uma fadinha mas ela não se
convenceu, me dando uma lista interminável e bem convincente de outros momentos que
testificavam sua sentença. Olhei para meus sujos pés e fiquei intrigada. Como eu não pisava
no chão se conseguia fazer uma sequência inteira de um sapateado por Fandangos?
Fiz os exercícios e foi quando meus pés nasceram: macios, limpos e perfeitos como
um recém-nascido em minhas mãos. Só depois deste ‘nascimento’ é que consegui entender a
diferença entra ‘fazer uma sequência’ e ‘entender uma sequência’.
Para Freud, simbolicamente, o pé é associado a libido, ou seja, possui uma
significação fálica diretamente relacionada ao prazer. Para o psicólogo Paul Daniel o pé está
relacionada a força, pois é o suporte que nos permite ficar em pé e conquistar o mundo. Sem
meus pés eu não sinto prazer, sem meus pés eu não posso andar. Quer maior prazer que
dançar? Que dança há na Terra que não precisa dos pés?
11
Depois de ‘nascer’ meus pés, a dança flamenca realmente começou a ser um prazer e
dar todo sentido a minha vida. Cada aula na escola de ‘La Morita’ era ansiada como uma festa
Foram três anos como aluna de ‘La Morita’. Três anos treinando meus pés tecnicamente e em
tempo integral. Foi neste tempo que passei a prestar mais atenção a forma como eu
caminhava, como pisava e como se movimentava meus dedos dentro do sapato. Cremes,
massagens, sapatos confortáveis e toda sorte de coisas para prevenir calos, bolhas, fungos ou
incômodos nos joanetes foram as minhas maiores preocupações naqueles anos. Tudo para
sons cada vez mais claros e precisos nos sapateados. Quanto mais meus pés aprendiam, mais
prazer eles me davam e mais cuidados a eles eu proporcionava. E nesta relação simbiótica
com o flamenco, através dos pés, o teatro foi negligenciado ao ponto de eu desistir da
graduação.
Enquanto progredia na técnica cheguei a constatação de que tudo parecia partir dos
pés: qualquer colocação do peso de forma equivocada provocava desalinhamento na coluna e
me levava a forçar mais braços, pescoço e consequentemente me desconcentrando nos
delicados movimentos de punhos e dedos. Pesquisei na internet meios de corrigir isto e
descobri que relações interessantes entre a anatomia e o movimento.
Dentre estas protopesquisas eu descobri que o pé possui 26 ossos e 33 articulações que
lhe permite sustentar prodigiosamente o peso do corpo. Já na universidade compreendi que
‘as estruturas do pé são anatomicamente interconectadas, de forma que a carga é distribuída
de maneira uniforme sobre o pé durante a sustentação do peso. Cerca de 50% do peso
corporal se distribui da articulação subtalar até o calcâneo e o 50% restante é transmitido ao
longo das cabeças dos metatarsos (HALL, 2009:260) e que são os pequenos movimentos
ocorridos em todas as articulações dos seus três segmentos – retropé, mediopé e antepé – que
12
proporcionam a flexibilidade dos arcos para a distribuição deste peso. Todo o conjunto
harmonioso do corpo depende deste equilíbrio de distribuição do peso sobre os pés.
Foi a partir do aprendido que passei a compreender melhor a natureza dos meus pés e
por isso respeitá-los. Tomei consciência que quando em postura flamenca, meus pés pisam
com estabilidade sobre os calcanhares mas são pronados. Que são dotados de músculos
abaixo da aponeurose plantar muito delicados, mas vem desta delicadeza o apoio titânico
sobre os metatarsos que me permite soar generosos sapateados. Que meus ossos merecem
respeito e qualquer dor persistente e aguda deve ser levada em conta como um alerta. Dentre
as estruturas ósseas, as envolvidas nos meus herdados halúx valgos, são os pontos que
requerem mais cuidados para que não comprometam a estabilidade do meu corpo. Creio que
para impedir uma deformação progressiva do meu pé, sempre terei que buscar sapatos
arredondados e procurar manter os dedos o mais espalhados e alinhados possíveis enquanto
danço. Quando o desvio alcançar inevitável impedimento de minha saudável locomoção,
tenho consciência de que precisarei fazer uma correção cirúrgica. Isto posto regressemos as
lembranças daqueles iniciais momentos em Curitiba.
Enquanto eu escutava meus pés, o corpo me preparava uma inefável alegria: a
chegada de um parzinho de pés que dependeriam dos meus para existir e crescer. No inverno
de 2000 soube que estava grávida e viveria toda a dimensão de cuidar de outro pés.
Não me parecia mais possível manter o estilo de vida de antes onde minhas
preocupações giravam apenas em torno do dançar flamenco. Agora eu teria que lidar com
algo novo. Meus pés teriam que se adaptar a novas estradas: regressei a Natal em busca do
aconchego materno da areia da praia de Ponta Negra e o calor paterno da ‘Cidade do Sol’.
13
3- Olhando para a direita e para a esquerda: assentando o caminho
Natal, um dia muito quente de 2006. Sozinha na pequenina sala climatizada e forrada
com isolamento acústico da academia de dança, eu repetia minha costumeira sequência
coreográfica de aquecimento. Meus olhos pregados na minha imagem no espelho buscava
qualquer imperfeição, qualquer desalinhamento entre linhas imaginárias. Em um momento
fugaz, percebi que um homem me olhava pela janela de observação. Quando sai da sala, ele se
aproximou com um pequeno papel e me entregou: ‘Desta vez o sol veio do chão.
Mais precisamente dos pés
Da bailarina de flamenco.
Pois não há também o sol de nascer
Por entre pregos cravados
No salto do sapato de Bibiana Esteves?
Embora claro e forte
Não entrava pela janela o sol habitual
Lá, dentro, na sala em penumbra,
Um outro que vem dos subterrâneos,
Do fundo da terra ressurgia
No sapateado da bailarina
A testa altiva, as castanholas
A saia encarnada que rodava
Anunciavam esse outro sol sem horizonte,
Quase sempre inesperado
Girando agora com sua galáxia
14
Na sala de dança’
Daquela homenagem tomei consciência de que meus pés estavam crescidos e
carregavam muito peso: o corporal, o financeiro e a responsabilidade de ser uma referência do
flamenco na minha cidade. A dança flamenca já não era apenas uma fonte de prazer. Ela fora
acoplada a minha missão de vida. Fazia parte de minhas preocupações de sustento familiar.
Estava escrevendo algumas linhas da minha história na História da dança potiguar.
O impacto daquele poema em minha alma, me levou a uma tomada de consciência do
corpo-mundo em minha volta e passei a fazer alguns cursos de empreendedorismo no
SEBRAE. Foi lá que compreendi a dinâmica que estava envolvida na minha profissão.
As apresentações mensais e as aulas semanais, que faziam parte da minha rotina como
profissional autônoma, dependiam do meu crescimento técnico e teórico. Apesar de, na época,
ser a única a ofertar este tipo de modalidade de dança em Natal, meus lucros dependiam da
excelência de meus serviços. Eu precisava sempre atender as expectativas de quem me
contratava. Contudo, ao mesmo tempo que Natal abria as portas do mercado para mim, ela
não me oferecia recursos suficientes quanto a me manter dentro dele. Isto era um desafio!
Consequentemente eu não conseguia alcançar um patamar economicamente confortável com
o nível de conhecimento que eu tinha.
Além disso, o flamenco seguia crescendo em outros estados brasileiros, ampliando
novas oportunidades de negócio. Festivais nacionais mobilizavam artistas flamencos do
nordeste, centro-oeste, sudeste e sul. Academias de dança, profissionais da música e ateliês
especializados em artigos flamencos surgiram no território nacional em progressão aritmética
e graças a grande rede de contatos, a internet, seguiam crescendo e se mantendo como
microempresas. Economicamente eu me sentia privada de usufruir daquelas oportunidades
mas, ao mesmo tempo, capaz de acompanhar este desenvolvimento em tempo real. Eu sentia
que podia avançar muito mais se estudasse, e um anseio se formou no meu espírito.
15
4- Olhando para cima: em direção ao diploma
Em uma quente tarde de 2008, eu me dirigia emocionada até o centro de um enorme
ginásio de uma escola particular da Zona Norte para receber um troféu. Dos três grupos de
adolescente, que fui contratada pelas Professoras para coreografar, dois tinham ganho
respectivamente o primeiro e o terceiro lugar no Festival Cultural da escola. Aquele troféu
para mim era o reconhecimento do meu trabalho. Dias depois a mesma diretora me convida
para um período de experiência e futura contratação. Aceitei.
Eu dei assim como iniciada minhas andanças pelo universo da educação formal. E
aquilo que era apenas um anseio nascido de um ato de reflexão provocado por um poema, se
tornou meta de vida profissional: ingressar no curso de graduação em dança da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Fui a sétima colocada no Vestibular de admissão para discente do curso de graduação
em dança. Uma grande satisfação pessoal, quase indescritível. Como um efeito dominó,
aquela alegria desencadeou outras tantas que só depois aprendi e reconheci como raras no
universo acadêmico, contudo fiz questão de cultivá-las mesmo diante de tantas não-alegrias.
Conheci e cultivei a alegria de compreender muito melhor o que antes me parecia
enigmas; a alegria de me sentir progredindo, produzindo e alcançando resultados que eu nem
pensava ser capaz de alcançar; a alegria motivadora da conquista na proporção dos meus
hercúleos esforços para fazer um bom trabalho, um bom seminário, um bom artigo ou uma
boa coreografia ; a alegria de sentir que estou me preparando para um futuro muito melhor
que me dará a chance de viver uma vida mais confortável materialmente; a alegria do
reconhecimento e da consideração, saber que sou tratada de igual para igual por aqueles que
se dedicam a dança e já passaram pela formação superior.
16
Para sentir estas alegrias precisei, em vários momentos, descalçar meus pés do salto
flamenco e os permitir dançar a Capoeira, Araruna, Pastoril, Congos de calçola, Balé clássico,
Moderno, Contato e improvisação e Butô. Experiências que me enriqueceram e ampliaram o
meu fazer artístico e pedagógico. Sei que pude contar com um ambiente que me permitiu
cometer erros e isto me levou ao amadurecimento:
‘...no tocante à responsabilidade: muito mais do que a um trabalhador, concede-se ao estudante o direito do erro – ou melhor, o direito ao erro faz parte de seu trabalho, já que seu
objetivo é investigar, compreender as questões mais difíceis, e ninguém chega a isso num percurso sem erros. A alegria de investigar, de investigar a si mesmo, é inseparável da
liberdade de se enganar...’ (SNYDERS, 1995:53)
Dentre os Projetos de extensão e pesquisa que participei o ‘Grupo de Ópera Canto Dell
Arte’ em 2010, foi o mais significativo. Dançar a Habanera ‘L'amour est un oiseau rebelle’ do
1º Ato da Ópera Carmen de Georges Bizet, foi como reviver a emoção de dançar o mesmo
tema no espetáculo ‘Nella Fantasia’ no Teatro Alberto Maranhão em 2005. Em ambos os
eventos, e mais com o Canto Dell Arte, meus pés se sentiram desejados. ‘É muito difícil
alguém rir e ter prazer de viver se não foi desejado, se não foi esperado’ e ‘este riso, este
prazer de viver depende da saúde de nossos pés’ (LELOUP, 1998:38).
Meu maior fracasso acadêmico foi ser bolsista do Projeto de Pesquisa ‘Almodóvar e
Khalo: estéticas constituintes para processos criativos’ que integrei em 2011. Desta memória
amarga, a boa lição que tiro foi ter entendido na prática a diferença entre professor e
Professor.
O professor – com o ‘p’ minúsculo – denomino como o tipo de educador
‘cientificamente preparados mas autoritários a toda prova’ (FREIRE, 2010:92) que não
compreende que ‘o clima de respeito que nasce de relações justas, sérias, humildes, generosas,
em que a autoridade docente e as liberdades dos alunos se assumem eticamente, autentica o
17
caráter formador do espaço pedagógico’. Este se apoia em uma ‘arrogância farisaica’ na
‘indulgência macia’, ‘pedantismo’ e no ‘mandonismo’.
Os Professores, com ‘p’ maiúsculo, são exemplos de ética, comprometimento,
generosidade, humildade, tolerância, eficiência, liderança, empreendedorismo e amor. São
capazes de unir ‘prática com teoria, autoridade com liberdade, ignorância com saber, respeito
ao professor com respeito ao educando, ensinar com aprender.’ (FREIRE, 2010: 95). O
Professor é capaz de reconhecer quando um estudante faz aliança com ele por seu grande
valor e juntos ‘encontram a alegria em participar da vitória contra a opinião geral dos adultos
reticentes ou francamente hostis’. (SNYDERS, 1995:49)
Foi também no fracasso de minha participação neste projeto, e alguns outros fracassos
também, que realimentei meu amor pelo flamenco. Senti um prazer maior: ‘os fracassos, as
decepções, as tristezas podem adquirir um sentido positivo se conservarmos a força de não
nos abandonarmos’ a dor. (SNYDERS, 1995: 59).
Passado um tempo eu compreendi que não era uma aluna que tinha o privilégio de
estar na Universidade, mas uma artista que estava dando a oportunidade ao Universo
acadêmico de se beneficiar com o que eu tinha de melhor e queria oferecer. Com isto,
abandonei a necessidade de ser notada e passei a buscar relações de sinergias. Alguns
Professores entenderam e fui capaz de viver mais e mais alegrias.
Sinergia ‘em uma definição bem simples, significa que o todo é maior do que a soma
das partes. Significa que a relação estabelecida entre as partes é, em si, também uma parte’
(Covey, 2012:317) que unifica, cria poder de realização e supera com mais facilidade e
agilidade qualquer obstáculo ou infortúnio.
Nesta dinâmica do saber que visa criar sinergias, principalmente no ambiente
universitário, é sempre imperioso um espírito de serenidade onde se deve: cultivar a
humildade para aceitar as coisas que não se pode mudar, coragem para mudar as que se pode
18
e muita sabedoria para saber distinguir uma da outra. Sempre buscando se render aos
desígnios Divinos e nestes confiando. Só assim se é razoavelmente feliz na Universidade.
5- Quando a vista não alcança: os rumos que pretendo seguir
21 de março de 2013. Meus pés ecoaram seus saltos no saguão do Aeroporto
Internacional de Guarulhos em São Paulo. Regressava de mais uma viagem a Buenos Aires
onde participei como convidada de um Festival de Dança. Graças a um projeto sobre o
flamenco, fui pela segunda vez estreitar os laços da dança ‘sudaca’ no país do vinho e do
tango. Estar com os artistas e pesquisadores portenhos, foi como experimentar os caminhos do
meu futuro tendo uma ideia de quão longe podem me levar o caminho do bom Professor. Com
estas novas qualidades tornei meus pés em ‘pés de Hermes’, ou seja, pés com asas.
Na mitologia grega Hermes é filho de Zeus e Maia. Nasceu em uma caverna, no monte
Cilene, na Arcádia. Ainda pequeno, calçou um par de sandálias e roubou parte do rebanho do
rei Admeto e o escondeu no monte Pito. Este rebanho era dedicado a Apolo que descobriu e
pediu providências à Zeus quanto ao ato reprovável de Hermes. Num gesto de extrema
diplomacia e inteligência, Hermes presenteou Apolo com uma lira e deste obteve perdão
representado por um caiado de ouro. Segundo Leloup, ter ‘pés de Hermes’ é ter
experimentado um caminho de transformação e amadurecimento. Com asas nos pés se vai
mais longe de forma assertiva e eficiente, contudo humildemente pois não são como as asas
imponentes e perfeitas dos anjo. São asas diminutas, atadas ao tornozelo ‘símbolo de nossa
articulação com o outro e com o Todo-Outro’ (LELOUP, 1998:40).
Eu atribuo a deferência profissional que experimentei, nos eventos em Buenos aires, a
minha condição de formando comprometida com o caminho certo, estreito e difícil da ética do
bom Professor. Para a futura carreira internacional que se aproxima, mas meus olhos ainda
não alcançam, pretendo jamais permitir que a desesperança, a avareza epistemológica e a
arrogância farisaica lesionem meus pés.
19
Seguirei firme acreditando que ‘nada sou’, mas jamais que ‘não sou nada’!
6 Considerações finais
Escrever este memorial foi uma das minhas mais extenuantes tarefas acadêmico-
profissionais. A medida que o fui desenvolvendo, repensei minha trajetória artística e isto me
fez modificar minhas atitudes que se desviavam do que acredito e já não seguia.
Deste memorial pude revisitar e reformular minha missão pessoal. Missão pessoal aqui foi
compreendida como o meu modelo moral que concentra tudo aquilo que desejo ser (caráter) e
fazer (contribuições e conquistas). Sem ela, nada do que passei ou do que passarei faria algum
sentindo.
Outro ponto que levo em consideração e julgo pertinente registrar é a oportunidade
documental que este memorial assumiu para minha história como profissional da dança.
Cunha explica que ‘o memorialismo é um gênero mais dado à expressão do que à
contenção e mais propenso a ceder a impulsos celebrativos e exibicionistas’ (CUNHA,
2008:30). Tendo em vista o tempo que passei contemplando meus registros pessoais para
escrever estas memórias, não tiro a razão desta afirmativa. Contudo se isto pode ser uma
perigosa armadilha para um historiador ou um processo de catalogação de acervo, para o
Professor de dança é um salutar exercício de motivação e humildade.
Motivação pois esta sistematização leva a compreender que os registros pessoais de uma
trajetória artística são possíveis documentos históricos que podem, um dia quem sabe, auxiliar
na própria construção da identidade da dança flamenca potiguar, pois ‘o arquivamento do eu é
feito em função de um futuro leitor’ (CUNHA, 2008:36). Humildade pois, o registro destas
memórias, não se trata da concepção de um documento preciso da conjuntura cultural que se
vive no cenário da dança potiguar. Este memorial, por mais acadêmico-científico que busquei
formular, é subjetivo e incompleto porque é constituído por memórias. As memórias abertas
20
‘á dialética das lembranças e do esquecimento’ e portanto jamais poderíamos mostrar ângulos
imparciais do cenário da dança potiguar ou do ensino da dança nas escolar potiguares.
Referências:
COVEY, Stephen R. – Os sete hábitos das pessoas altamente eficazes. Tradução: Alberto Cabral Fusaro, Márcia do Carmo Felismino Fussaro, Claudia Gerpe Duarte. Rio de Janeiro, RJ: BestSeller, 2012.
CUNHA, Mari Tereza S. – Memória, História e Biografia: escritas do eu e do outro, escritas da vida. IN Seminários de Dança: História em movimento biografias e registros de Dança. Org. Roberto Pereira, Sandra Meyer e Sigrid Nora. Caxias do Sul, RS: Lorigraf, 2008.
FREIRE, Paulo – Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo, SP: Paz e Terra, 1996 (Coleção Leitura)
GLEITMAN, Henry, FRIDLUN, Alan J. e REISBERG, Daniel – Psicologia. Portugal, Lisboa: Fundação Calouste Gubenkian, 2003.
HALBWACHS, Maurice – A Memória Coletiva. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo, SP: Centauro, 2006
HALL, Susan J.- Biomecânica básica. Barueri, SP: Manole, 2009
LELOUP, Jean-Yves – O corpo e seus símbolos: uma antropologia essencial. Trad. Lise Mary de Lima. Petrópolis, RJ :Vozes, 1998.
NÓBREGA, Terezinha Petrucia da – Uma fenomenologia do corpo. São Paulo, SP: Editora Livraria da Física, 2010 (Coleção contextos da ciência).
21
PORPINO, Karenine de O. – Dança é educação: interfaces entre corporeidade e estética. Natal, RN: EDUFRN, 2006.
SNYDERS, Georges - Feliz na universidade: estudo a partir de algumas biografias. São Paulo, SP: Paz e Terra, 1995.
Referências virtuais:
http://revistanovaeraletras.blogspot.com.br/2009/06/memorial-de-formacao-academica.html Acesso:13 de março de 2013
http://claudiofilosofo.blogspot.com.br/2010/06/teoria-do-conhecimento-em-platao.html. Acesso: 28 de março de 2013.
http://www.espiraistempo.com.br/2012/04/mitologia-grega-hermes.html Acesso: 20 de Abril de 2013.
http://www.allaboutprayer.org/portuguese/oracao-da-serenidade.htm Acesso: 23 de abril de 2013.