memórias

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Formei-me em 2 de Fevereiro de 1949 e no próprio dia, de tarde, comecei a trabalhar num bairro municipal de Lisboa, o Bairro da Boa Vista. Refiro-me a este primeiro trabalho, porque foi um marco na minha vida profissional. Dele tirei muitas ideias. A Miteza Maria Teresa Andrade Santos ao criar o “Beiral”, escola pré-primária e primária, deixava no Bairro um Centro Social bem estruturado, com Casa de Trabalho, para as raparigas aprenderem costura, creche, jardim-escola, serviços médicos de adultos e pediátricos, uma maternidade e serviços religiosos celebrados numa capela. Os médicos eram especializados e muito estimados no meio. Nunca esquecerei o Dr. Farmouse, o Dr. Simão e o Dr. Rocha, obstetra na Maternidade Alfredo da Costa. Não os esquecerei. Também o senhor padre Valdomiro pertenceu à nossa equipa e foi ele que me casou, casou uma das minhas filhas e baptizou os meus netos. Obrigada por tudo, Sr. Padre Valdomiro, meu amigo de sempre. No dia 5 de Dezembro de 1950 tomei posse num serviço da Função Pública e fui trabalhar na Delegação de Beja, no Instituto de Assistência à Família. Como alojamento tinha uma dependência do Albergue das Crianças Abandonadas, instituição que pertencia ao Comando da Polícia chefiada pelo capitão Salvador Pinheiro com quem óptimas relações e que influenciaram o meu trabalho. Trocávamos muitas impressões daí a facilidade de resolver problemas urgentes assim como a situação das crianças do próprio albergue. As crianças estavam a preparar-se para serem “criadas de servir”, por isso limitavam-se a limpar a casa e a ajudar na cozinha. Comiam sempre pão duro, o pão era comprado semanalmente, Acabavam por comer menos pão, a despesa era menor. Expus ao Sr. Capitão a minha ideia: as crianças deviam estudar mesmo que fizessem a limpeza da casa, as crianças que tivessem aulas de tarde fariam as limpezas de manhã e vice-versa. Assim, elas podiam ter outro futuro conforme as suas capacidades. A minha ideia foi aceite e as crianças foram matriculadas na escola imediatamente e começaram a estudar. A vida delas melhorou, conheceram outras crianças, de outros meios. Podiam ter um futuro melhor. Também começaram a aprender costura e a fazer enxovais de criança com uma funcionária a quem o serviço pagava com subsídio. Em Beja eu estava a substituir a Delegada. Contactei com muitas entidades oficiais, entre elas o Governador Civil e principalmente o Dispensário da Tuberculose cujo Director era o Dr. Covas Lima. No Alentejo havia muita gente que padecia de tuberculose devido à má alimentação, consequência da falta de meios de subsistência. De Inverno os trabalhadores do campo não tinham trabalho. Cultiva-se o trigo e só no Verão é apanhado. Não havia empresas, não havia uma vida estável. Os trabalhadores no Inverno comiam a “Sopa dos Pobres” organizada pela Igreja, havia filas à espera dessa refeição. De verão o trabalho era muito, mas repartido por ranchos que vinham de outras partes do país. O Alentejo sofria muito e era preciso auxiliar as pessoas, principalmente na doença. O Dr. Covas Lima expunha-me os casos mais graves e desta grande colaboração nasceu uma grande amizade. Foi das melhores recordações da vida, essa colaboração. Umas freiras organizaram uma colónia de férias em Vila Nova de Mil Fontes onde possuíam uma instalação destinada a essa finalidade e pela primeira vez as crianças do Alentejo tiveram férias à beira- mar. Fui convidada a orientar essa colónia que também recebeu crianças da freguesia de Cuba. Foi uma nova experiência para mim. Percorri muitas terras do Distrito e para isso a Delegação de Saúde cedia-nos transporte conduzido pelo motorista do serviço. Assim conheci muitos serviços alentejanos. Dois anos depois, por conveniência do serviço, fui trabalhar para o distrito de Leiria. Tive de adaptar-me às novas realidades. Alojei-me na Casa de Protecção às Raparigas onde encontrei muitas professoras que trabalhavam em escolas particulares e oficiais da cidade e noutras instituições. Tinha um chefe médico que me ajudou nas novas tarefas. Percorri todas as instituições do distrito e com as auxiliares sociais fui a todas as vilas que compunham o concelho. Procurava contactar pessoas que me contassem as histórias das diferentes terras, colaborava com Juntas de Freguesia e párocos das diferentes paróquias para que me apresentassem os casos sociais para assim solicitar apoio aos serviços. Fiquei com uma lenda na memória que, por ser bonita, conto: «O Rei D. Dinis, que mandou plantar o pinhal de Leiria, costumava chegar à casa real muito tarde, constando que o seu comportamento como marido era muito duvidoso. A rainha sofria calada, por isso o povo a chamava Santa. Mas além do Milagre das Rosas ela queria outro, que o rei a amasse. Então decidiu levar os seus reais servidores pela estrada fora com archotes. Era tarde de mais e o Rei ao vê-la

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Formei-me em 2 de Fevereiro de 1949 e no próprio dia, de tarde, comecei a trabalhar num bairro municipal de Lisboa, o Bairro da Boa Vista. Refiro-me a este primeiro trabalho, porque foi um marco na minha vida profissional. Dele tirei muitas ideias.

A Miteza – Maria Teresa Andrade Santos – ao criar o “Beiral”, escola pré-primária e primária, deixava no Bairro um Centro Social bem estruturado, com Casa de Trabalho, para as raparigas aprenderem costura, creche, jardim-escola, serviços médicos de adultos e pediátricos, uma maternidade e serviços religiosos celebrados numa capela.

Os médicos eram especializados e muito estimados no meio. Nunca esquecerei o Dr. Farmouse, o Dr. Simão e o Dr. Rocha, obstetra na Maternidade Alfredo da Costa.

Não os esquecerei. Também o senhor padre Valdomiro pertenceu à nossa equipa e foi ele que me casou, casou uma

das minhas filhas e baptizou os meus netos. Obrigada por tudo, Sr. Padre Valdomiro, meu amigo de sempre. No dia 5 de Dezembro de 1950 tomei posse num serviço da Função Pública e fui trabalhar na

Delegação de Beja, no Instituto de Assistência à Família. Como alojamento tinha uma dependência do Albergue das Crianças Abandonadas, instituição que pertencia ao Comando da Polícia chefiada pelo capitão Salvador Pinheiro com quem óptimas relações e que influenciaram o meu trabalho.

Trocávamos muitas impressões daí a facilidade de resolver problemas urgentes assim como a situação das crianças do próprio albergue.

As crianças estavam a preparar-se para serem “criadas de servir”, por isso limitavam-se a limpar a casa e a ajudar na cozinha. Comiam sempre pão duro, o pão era comprado semanalmente, Acabavam por comer menos pão, a despesa era menor. Expus ao Sr. Capitão a minha ideia: as crianças deviam estudar mesmo que fizessem a limpeza da casa, as crianças que tivessem aulas de tarde fariam as limpezas de manhã e vice-versa. Assim, elas podiam ter outro futuro conforme as suas capacidades. A minha ideia foi aceite e as crianças foram matriculadas na escola imediatamente e começaram a estudar. A vida delas melhorou, conheceram outras crianças, de outros meios. Podiam ter um futuro melhor. Também começaram a aprender costura e a fazer enxovais de criança com uma funcionária a quem o serviço pagava com subsídio.

Em Beja eu estava a substituir a Delegada. Contactei com muitas entidades oficiais, entre elas o Governador Civil e principalmente o Dispensário da Tuberculose cujo Director era o Dr. Covas Lima. No Alentejo havia muita gente que padecia de tuberculose devido à má alimentação, consequência da falta de meios de subsistência. De Inverno os trabalhadores do campo não tinham trabalho. Cultiva-se o trigo e só no Verão é apanhado. Não havia empresas, não havia uma vida estável. Os trabalhadores no Inverno comiam a “Sopa dos Pobres” organizada pela Igreja, havia filas à espera dessa refeição.

De verão o trabalho era muito, mas repartido por ranchos que vinham de outras partes do país. O Alentejo sofria muito e era preciso auxiliar as pessoas, principalmente na doença. O Dr. Covas Lima expunha-me os casos mais graves e desta grande colaboração nasceu uma grande amizade. Foi das melhores recordações da vida, essa colaboração.

Umas freiras organizaram uma colónia de férias em Vila Nova de Mil Fontes onde possuíam uma instalação destinada a essa finalidade e pela primeira vez as crianças do Alentejo tiveram férias à beira-mar. Fui convidada a orientar essa colónia que também recebeu crianças da freguesia de Cuba. Foi uma nova experiência para mim.

Percorri muitas terras do Distrito e para isso a Delegação de Saúde cedia-nos transporte conduzido pelo motorista do serviço. Assim conheci muitos serviços alentejanos. Dois anos depois, por conveniência do serviço, fui trabalhar para o distrito de Leiria.

Tive de adaptar-me às novas realidades. Alojei-me na Casa de Protecção às Raparigas onde encontrei muitas professoras que trabalhavam em escolas particulares e oficiais da cidade e noutras instituições. Tinha um chefe médico que me ajudou nas novas tarefas. Percorri todas as instituições do distrito e com as auxiliares sociais fui a todas as vilas que compunham o concelho. Procurava contactar pessoas que me contassem as histórias das diferentes terras, colaborava com Juntas de Freguesia e párocos das diferentes paróquias para que me apresentassem os casos sociais para assim solicitar apoio aos serviços.

Fiquei com uma lenda na memória que, por ser bonita, conto: «O Rei D. Dinis, que mandou plantar o pinhal de Leiria, costumava chegar à casa real muito tarde,

constando que o seu comportamento como marido era muito duvidoso. A rainha sofria calada, por isso o povo a chamava Santa. Mas além do Milagre das Rosas ela queria outro, que o rei a amasse. Então decidiu levar os seus reais servidores pela estrada fora com archotes. Era tarde de mais e o Rei ao vê-la

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perguntou-lhe para onde ia ao que a Santa lhe respondeu “Vim iluminar o caminho de Sua Alteza por amor.”

Ainda hoje existe ali uma terra chamada Amor. Com esta história acabo a referência ao meu trabalho realizado em Leiria, pois pouco depois eu

quis ir para Lisboa, para perto da minha família. Consegui a minha transferência, desta vez a custo do interesse do Eng. Duarte Abecasis que interferiu na minha transferência, pois os serviços levantaram obstáculos. Não era fácil a minha substituição. Mas não fui trabalhar em Lisboa, mas sim nos arredores, em zonas de enorme pobreza, como Sacavém e Moscavide, áreas pertencentes ao Concelho de Loures. Casei em 1956. A vida já era diferente, trabalhava com auxiliares sociais muito interessadas no seu trabalho e que sempre me demonstraram a maior confiança e amizade. Trabalhei nesta zona cerca de dois a três anos até que a Directora do Serviço me falou da possibilidade de ser transferida para outro serviço, o que me permitiria ter um horário livre para me poder dedicar às três filhas que entretanto nasceram. Tinha a minha filha mais nova três anos, quando me foi feito o convite. Iria ganhar mais 500$00, pois o Ministério das Cooperações pagava melhor às suas assistentes sociais. É incompreensível que houvesse esta desigualdade entre vencimentos de pessoal da mesma categoria, mas, de facto, a proposta agradou-me, pois beneficiava muito a minha família. E assim, mais uma vez, teria um novo trabalho com novos desafios Foi-me atribuído o Bairro dos Olivais-Sul, recentemente construído e que começava a ser habitado. O Bairro tinha três zonas: a Poente, a Central e a Nascente. Havia prédios de três andares e moradias. Todas as casas eram de renda resolúvel, quer dizer que ao fim de vinte e cinco anos ficavam na posse dos moradores. Beneficiavam de seguros de vida, de saúde e de desemprego incluídos na renda, que variava entre os 100$00 e os 180$00, conforme o número de divisões. As moradias tinham rendas entre 980$00 e 2500$00, conforme o tipo de moradia, número de divisões e acabamentos. As casas-de--banho variavam, sobretudo, nos azulejos e loiças sanitárias. Todas possuíam um quintal à frente da casa e havia quintais atrás de algumas das moradias, que muitos moradores aproveitavam para ai plantarem produtos hortícolas para serem consumidos pelas famílias. A atribuição de casas era feita por concurso documental. Os rendimentos não poderiam exceder uma determinada quantia e o número de filhos teria de ser superior a dois. Havia famílias com treze filhos! As famílias das moradias eram de um nível social e cultural superior, os seus chefes de família eram quase todos licenciados. Havia uma finalidade na execução deste bai rro, pretendia-se a integração das diferentes “classes sociais” nesta comunidade e era uma experiência nova e difícil. Já na Bélgica e noutros países Europa se fizera essa experiência e, apesar das consequências graves para alguns governos desses países, a experiência avançou em Portugal. Foi meu orientador o Padre Abel Varzim, meu Professor cuja tese de doutoramento versava este assunto, o da integração, tese que foi muito considerada mas pouco estudada em Portugal. Foi nesta tese que me baseei para realizar o meu trabalho. A comunidade trabalhava para a própria comunidade por elementos das diversas “classes sociais”. E assim aconteceu, graças a um grupo que, a pouco e pouco, se foi alargando e trabalhando com maior consciência e dedicação.

Mas como iniciar um trabalho tão complexo se eu não conhecia nenhuma pessoa nos Olivais, e onde ainda só existiam casas de habitação social. O meu posto de trabalho era o Centro Social, mobiliário novo, ambiente acolhedor. O prédio onde estava localizado o Centro era de três andares e possuía uma cave destinada a arrumações.

Fui contactar o Pároco de Santa Maria dos Olivais, igreja mais próxima do bairro e frequentada por algumas famílias. O Pároco atendeu-me e indicou-me um nome: João Pereira, pai de um seminarista, pessoa educada, empregado numa empresa em que era muito estimado. Era certamente a pessoa mais indicada. Começámos a trabalhar em conjunto e passámos a ser grandes amigos.

Ele também tinha as suas ideias e a de formar um grupo de colaboradores foi a inicial. Os seus próprios vizinhos, seus amigos, estariam certamente disponíveis para deitar mãos à obra. Não havia policiamento, nem os estabelecimentos necessários. Não havia lojas, apenas uma pequena venda de bananas da Madeira que também vendia sal, açúcar e produtos enlatados, nada mais. Uma carrinha trazia o pão diariamente e uma rapariga, a São, vendia o pão pelas portas das casas mais próximas.

Não havia escolas, nem igreja. As crianças já eram perto de 4000 em idade escolar e a Direcção Escolar parecia desconhecer a

existência do bairro e os seus problemas. Tive a certeza disso quando me dirigi a esse serviço. As crianças frequentavam as escolas de Santa Maria dos Olivais, se morassem nas zonas Central e Nascente, e da Encarnação, se fossem da zona Poente. Eram grandes as distâncias que as crianças tinham de percorrer, sujeitas aos perigos das duas estradas, a de Cabo Ruivo e a Avenida de Berlim. As

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escolas já funcionavam em dois turnos e não conseguiam dar resposta ao número de alunos que aumentava cada vez mais. Desloquei-me então à Direcção Escolar de Lisboa para expor a situação. Foi com espanto que o Sr. Director me recebeu, ao aperceber-se da dimensão do problema. No entanto pediu-me que aguardasse pois primeiro teria de ver o bairro e só depois me daria uma resposta. Tive a resposta dias depois: seria criada uma escola provisória cuja localização me foi indicada, era perto daquela que seria em 1967 a minha casa, e também perto do Centro Social, por isso eu contactava quase diariamente com as professoras da escola, das quais ainda hoje sou muito amiga.

A escola foi construída, mas era um autêntico barracão cujas portas, janelas, portões e telhas caíam com demasiada facilidade. No Inverno os terrenos à volta da escola ficavam enlameados e dentro da escola as crianças não tinham um recreio em condições para poderem brincar em segurança. Não havia qualquer apoio para as crianças com necessidades especiais que acabavam por destabilizar o ambiente na escola. Muitas dessas crianças eram oriundas do Bairro de S. Jacinto, cujas barracas foram destruídas para a construção da, na altura designada, Ponte Salazar, mais tarde baptizada 25 de Abril. Os problemas dessas crianças foram atenuados com a criação de uma classe especial orientada por uma professora especializada nessa área, tendo os casos mais graves sido encaminhados „pelo Centro Social para uma instituição no Areeiro. Durante muito tempo vaguearam pelo Bairro muitas dessas crianças para as quais a recuperação nunca foi possível.

Dada a falta de uma alimentação adequada, o rendimento escolar destas crianças não era o desejável, por isso e por nossa diligência abriu a primeira cantina escolar na nova escola acabada de construir na Rua Cidade de Nampula. Estávamos no período em que as Cantinas Escolares pertenciam à Obra das Mães Pela Educação Nacional. Foi bem montada e as crianças tinham uma refeição completa e como sobremesa, além da fruta, tomavam uma colher de óleo de fígado de bacalhau, na época considerado indispensável ao crescimento e desenvolvimento das crianças. Essa cantina fornecia, por vezes, a única refeição do dia aos seus alunos, cujas famílias demasiadamente pobres não conseguiam dar.

A integração das diferentes famílias não foi fácil. Os que viviam nas moradias queixavam-se com alguma frequência, e com razão, que os seus estendais de roupa eram frequentemente roubados. Não havia vigilância.

Por este e outros motivos, o Centro Social colaborava com a Santa Casa da Misericórdia e, em especial, com o Centro Domingos Barreiros que concedia uma assistência exemplar à mãe e à criança, com consultas pré-natais e fornecendo, desde o nascimento, leite em pó e medicamentos aos bebés. Mas ainda era necessário encontrar quem mais colaborasse comigo na resolução dos problemas que iam surgindo e aos quais era urgente dar resposta. Este centro, Domingos Barreiros, foi um dos grandes apoios do Bairro, mas alguns médicos que residiam no bairro também se dispuseram a dar a sua contribuição. Desta forma, gratuitamente, numa das nossas dependências médicos apoiados por duas enfermeiras, pagas pelo Centro, auxiliavam a população do bairro. Ainda assim, sentia-se a necessidade de um Serviço de saúde, mais próximo e mais eficaz dada a cada vez maior extensão do Bairro. Várias diligências foram feitas para esse fim até ser criado o Serviço de saúde num prédio, em dois andares, sem grandes condições de acessibilidade.

Era bom o pessoal médico e de enfermagem e os serviços estavam bem montados, mas tinham um carácter provisório, tal como a primeira escola construída.

Ao mesmo tempo que tratava da questão das escolas necessárias e urgentes para aquelas crianças pensávamos também na criação de Biblioteca.

Criámos uma Biblioteca Infantil e Juvenil cedida pela Câmara Municipal de Lisboa com uma única recomendação «Não quero os livros arrumadinhos na prateleira, prefiro que eles se percam nas mãos das crianças», terá dito Álvaro Salvação Barreto, antigo Presidente da Câmara Municipal de Lisboa. E assim foi, o movimento dos livros gerado pelas requisições das crianças enorme, o que fez com que tivéssemos uma só funcionária responsável pela biblioteca.

Aconteceu um dia que um pai se apresentou no Centro e me disse «O meu filho morreu, mas ele perdeu o livro que tinha requisitado. Pretendia entregá-lo. Em memória do meu filho, eu comprei um livro igual e venho entregá-lo.» Fiquei sensibilizada. Era uma das nossas crianças e eu nem sequer a conhecia. Eram tantas as que iam ao centro, era impossível conhecê-las todas.

Também era necessária uma Capela, não havia serviços religiosos no Bairro e as famílias católicas frequentavam a Igreja de santa Maria dos Olivais ou a de São João de Deus. Só as pessoas que tinham transporte próprio podiam frequentar essas igrejas. As pessoas da zona nascente tinham de andar a pé grandes distâncias, daí que o nosso grupo de trabalho se lembrou de utilizar a cave do Centro como Sala de Convívio e Capela provisória, desde que o condomínio autorizasse. E assim surgiu a primeira capela do Bairro dos Olivais-Sul, parece que foi a primeira vez que tal coisa aconteceu. Dirigi-me ao depósito de móveis do Ministério das Finanças que tinha móveis antigos não utilizados pelos serviços do Estado. Escolhi um aparador que podia ser utilizado como altar durante a Missa e que podia guardar todo o tipo de

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coisas necessárias a uma sala de convívio. E assim foi, o nosso grupo preparava o altar aos Domingos e nos restantes dias a sala era usada por muitos moradores como sala de convívio.

Os padres escolhidos eram sempre novos e actualizados, era necessário conquistar a comunidade, novos colaboradores surgiram e desta vez de classes profissionais superiores. O primeiro dói o Sr. Dr. Professor Mendes Ferrão, funcionário superior do Instituto de Agronomia. Mais tarde outras figuras se juntariam ao nosso grupo de trabalho. A acção começava a dar frutos. A integração dos moradores enquanto comunidade começava a fazer-se. Tudo se estava a tornar pequeno para tantos habitantes.

A capela da cave já era demasiado pequena para tanta gente. Desta vez, o Professor Ferrão com os seus conhecimentos conseguiu que a capela viesse a funcionar no espaço destinado à cantina da escola provisória – grande espaço e bem arejado. Aqui funcionou a capela anos e anos até à construção de uma outra capela também considerada provisória e que ficou definitiva. É a nossa capela dedicada à padroeira da Freguesia - Nossa Senhora da Conceição. Passados alguns anos, foi construída a Igreja Matriz. O Sr. Prior ao inaugurar a nova Igreja Paroquial fez uma procissão, levando a imagem da Nossa Senhora à nossa cave, depois à cantina da escola tendo finalmente sido colocada no seu lugar da nova igreja. O nosso trabalho, o do nosso grupo era assim reconhecido e louvado. Estiveram todos presentes menos eu que faltei por doença, mas pela minha janela eu vi passar a procissão. A capela passou a chamar-se de S.José. Foi lá que as minhas filhas frequentaram a catequese, fizeram a Primeira Comunhão e a Profissão de Fé. Foi lá também que o meu neto Afonso foi baptizado pelo padre Valdomiro.

Mas o nosso trabalho continuava. A população precisava de muito mais. Foi criado um curso de alfabetização, a 4ª classe para adultos, as pessoas queriam continuar os

seus estudos. Era preciso criar um Curso Nocturno. Não foi fácil o Ministério aceitar a criação de um curso nocturno num bairro novo quando em toda a cidade de Lisboa se sentia a mesma necessidade. Lá consegui convencer o Sr. Director e a escola acabou por ser criada. Novos barracões foram construídos que serviam os alunos do Ensino Preparatório durante o dia e à noite neles funcionavam as aulas para adultos. O número de alunos foi elevado, porque não deixei de informar as empresas da zona, instaladas junto ao Bairro, UTIC, CARRIS, PETROQUÍMICA… Eram muitos os alunos e muita a vontade de se ser alguém na vida. E o Bairro começava a ser um bem diferente. Tinha vida, vida que fora iniciada por um pequeno grupo de moradores cujo principal orientador foi o Sr. João Pereira, um grande aliado desta assistente social.

Senti, passados alguns anos, que desconhecia as novas técnicas que se aprendiam na minha escola, no meu curso de Assistência Social no Instituto de Serviço Social. Tinha mudado a Direcção e o ensino fora actualizado. Para fazer um bom trabalho eu tinha que estar em contacto com novo pessoal e actualizado. E foi assim que voltei à minha escola. Encontrei um director novo, compreensivo que me propôs que eu tivesse no centro estagiárias, alunas finalistas, capazes de fazer um trabalho útil. Elas propuseram a criação de uma cooperativa, dado que não havia estabelecimentos comerciais nos Olivais-Sul. Os moradores poderiam ser sócios e pagariam uma quota de 100$00, e a cooperativa poderia estar aberta a todos os moradores. Elas ajudaram a criar os estatutos e a cooperativa funcionou até surgirem lojas e cafés nos prédios que, entretanto, foram sendo construídos.

Veio um segundo turno de estagiárias que promoveu conferências para a população menos instruída com assuntos mais prementes, como a natalidade e o planeamento familiar. Algumas pessoas lamentaram o facto de essas questões terem sido abordadas tardiamente, havia muitas famílias numerosas a viver em pobreza extrema.

Um dos estagiários com quem trabalhei tornou-se Director da Colónia Infantil “O Século”. Aproveitámos essa feliz coincidência para enviar vários grupos de crianças para essa colónia, algumas das quais veria pela primeira vez o mar e teria direito a uma

Foi criada a carreira nº 21 que ligava os Olivais ao Rossio. O Bairro deixava de estar isolado, tinha já uma vida própria. A vida continuava e novas necessidades surgiam. A sala de convívio da cave passou para o Palácio do Contador-Mor, porque lá havia melhores condições. Mas uma vez o Professor Ferrão actuava, acompanhando o grupo e trabalhando com ele. Ali estiveram até à construção da actual BEDETECA. Criou-se lá também a Quinta Pedagógica. Obra da Câmara Municipal de Lisboa, com a intervenção da Vereação da Cultura assessorada pelo actual Secretário de Estado da Cultura, o meu sobrinho Elísio Summavielle.

Falta-me falar das Festas da Cidade, festas em que o Bairro participava através do nosso grupo. Realizaram-se arraiais e marchas populares. O Bairro chegou a ganhar um 2º lugar! Dizia-me um vizinho, meu amigo: “Gosto tanto do Bairro que até gosto das Marchas Populares que o Bairro organiza!»

Eu gosto tanto do meu Bairro, sobretudo, porque o ajudei a desenvolver e trabalhei com um grupo de moradores simples, grandes homens que hoje são desconhecidos da população, mas a quem devo prestar a minha homenagem e manifestar a minha enorme gratidão , assim como Os Olivais o devia fazer. Mas já não me lembro de todos os nomes, foi há tanto tempo! Só me lembro do Sr. Gaspar, porque ia mensalmente fazer a leitura do contador da água, era empregado da Companhia das Águas.

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Mas lembro-me bem do Sr. João Pereira e do Sr. Professor Ferrão, a quem o Bairro tanto deve! Obrigada a todos os que me acompanharam nesse grupo que tanto me ajudou e ainda ajuda hoje,

porque recordo e recordar é viver. Embora tenha uma idade avançado, sinto uma obrigação moral de realçar as origens do nosso

Bairro e o trabalho que todos realizámos, pelo bem-estar de todos. Um abraço de gratidão a todos os que trabalharam depois eu ter sido transferida para outro

serviço, com muito pesar. Sem a vossa actuação o Bairro não teria a mesma vida. Obrigada por tudo. Eu também amo o Bairro dos Olivais-Sul onde resido, onde vi crescer as

minhas filhas e as minhas netas, onde tenho amigos que me ajudam a enfrentar a vida. Embora apoiada numa bengala, não me sinto velha. Há dentro de mim um mundo de recordações.

Amo os Olivais, a minha casa e este meu mundo que constitui parte da minha vida, a qual chegou quase ao fim, até Deus querer.

Yolanda Martins Vaz 13/08/2010