Memórias de Silvio Pellico

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Prisão e conversão

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    Qass

    __

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    AS

    MINHAS

    PRISES.

    MEMORIAS

    IILf

    20.

    FIILM

    VERSO

    DO

    ITALIANO

    pou

    FRANCISCO

    ANTNIO

    DE

    SVIELLG

    SEGUSJDA

    EDIO

    AUTHORISADA

    PELO

    CONSELHO

    SUPERIOR

    DE

    ItSTRUClO

    PUBLICA

    PARA

    AS

    ESCOLAS

    PRIMARIAS.

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    MEMORIAS

    DE

    SILVIO PELLICO.

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    MEMORIAS

    DE

    SILVIO

    PELLICO

    VERSO

    DO

    ITALIANO

    POR

    FRANCISCO

    ANTNIO

    DE

    MELLO

    SEGUNDA

    EDIO

    AUCTORISADA

    PELO

    CONSELHO

    SUPEROR

    DE WSTRUCCO

    PUBLICA

    d

    PA.RA Is

    ESCOLAS

    PRIMARIAS.

    LISBOA

    /^

    IMPRENSA

    NACIONAL

    18S6.

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

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    PQ4T

    Z?

    ~J

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    JLevar-me-hia

    a

    escrever

    estas

    memorias s

    pura

    vaidade

    de

    fallar

    de mim?

    Por certo

    que no

    foi

    este

    o

    meu

    desejo

    ; e

    se

    permittido a

    algum

    tor-

    nar-se

    juiz

    em

    causa

    sua,

    cuido

    que

    entrara

    nisto

    fim

    mais

    bem

    acceito.

    Foi

    meu

    intento

    cooperar

    para

    fortalecer

    o

    ani-

    mo

    dos

    affligidos,

    fazendo

    a exposio dos

    infor-

    tnios

    que soffri,

    e das

    consolaes, que

    a

    minha

    prpria

    experincia

    me

    fez

    conhecer,

    que

    se

    po-

    dem

    alcanar,

    at

    nas

    maiores

    tribulaes

    ;

    pre-

    tendi

    dar

    um

    testmunho

    de

    que

    no

    meio

    de

    meus

    longos

    tormentos,

    no

    encontrei

    a

    humanidade

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    tam

    iniqua

    como

    a pintam,

    nem

    tam

    desmerece-

    dora

    de

    indulgncia,

    nem

    tam

    escassa

    de

    almas

    boas;

    procurei instigar

    os coraes

    generosos

    ao amor

    do

    prximo,

    e

    a

    que

    no

    hajam

    de odiar

    um nico

    de

    seus

    similhantes,

    e

    a

    que no

    detes-

    tem

    irreconciliavelmente seno a

    falsidade,

    a

    per-

    fdia,

    a

    pusillanimidade,

    ou

    outro qualquer avil-

    tamento

    moral;

    emfim, quiz

    repetir uma

    ver-

    dade, com

    quanto

    j

    bem sabida, muitas vezes

    deslembrada

    :

    que

    a

    Religio

    e

    a

    verdadeira

    Fi-

    losofia

    demandam,

    uma

    e

    outra,

    enrgica

    vontade

    e

    juizo

    assente ; e

    que, sem

    a

    unio

    de

    ambas

    es-

    tas

    condies,

    no

    pode haver

    justia,

    nem

    digni-

    dade,

    nem

    firmeza

    de

    princpios.

    O

    AUCTOR,

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    Iieste

    sculo tam

    sedicioso e

    turbulento,

    em

    que

    os

    homens divorciados uns contra

    os

    outros

    andam

    tam

    alheios e desacordados de si, que

    nem

    sequer

    lhes

    so-

    bra

    tempo

    de

    reflectir em

    seus

    desconcertos

    ; neste

    s-

    culo

    de

    aturada

    lida

    de

    paixes

    desenfreadas,

    um

    li-

    vro

    de moral que

    falle

    ao corao

    linguagem

    meiga e

    de

    paz, que

    lhe

    entranhe

    sentimentos

    puros

    de

    bene-

    volncia, de

    virtude

    e

    de

    Religio,

    um

    dom

    do

    ceo,

    como

    o

    farol de

    salvamento em

    noite

    de

    cerrao

    e

    tempestade

    para

    o

    nauta

    perdido

    que

    vaga

    merc

    das ondas,

    a

    nova

    de

    perdo

    para o

    infeliz condem-

    nado

    morte

    e

    j

    sem esperana, que est

    escuta

    da

    hora fatal, que

    lhe

    marca o

    derradeiro

    instante

    de

    vida.

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    Bemdita seja

    a

    Providencia,

    que, por

    mais

    ingratos

    que

    lhe

    sejam

    os

    homens,

    nunca

    chega

    a

    desamparal-os

    quando

    mais

    carecem

    de

    remdio e

    conforto

    Em

    tam

    tristes

    e

    desesperados

    dias,

    ainda

    se

    no

    apagou

    em

    to-

    dos

    os

    coraes

    o

    amor

    da

    virtude

    e

    o respeito

    s

    cren-

    as de

    outras

    eras,

    ainda

    ha

    quem

    se doa de

    ver

    como

    os

    nimos

    vo

    tam

    inquietos

    e

    resentidos,

    tam

    cheios

    de

    rancor

    e

    de

    malquerena,

    e

    ponha todo

    o

    esforo

    em

    lhes

    applicar

    remdio:

    bem

    como a

    planta

    emmur-

    checida

    e sequiosa

    mingoa

    de

    cuidoso

    trato e cul-

    tura,

    em lhe

    lanando

    uma

    gota de

    agua

    vai tornando

    a

    si

    e

    chega

    a

    recobrar

    o

    vio

    perdido,

    assim

    o

    amor

    da

    virtude

    e dos

    bons costumes, definhado e

    esmore-

    cido

    no

    corao

    do

    homem,

    ha de

    ir

    revivendo

    com

    o

    exemplo a

    pela medida

    que

    lhe

    forem

    lanando

    algu-

    mas gotas

    de

    blsamo

    de

    Religio e de

    moral

    christaa.

    Honra

    a esses

    poucos

    escriptores,

    que

    se

    no

    deixam

    levar

    da

    indifFerena

    e desleixamento,

    que mais parece

    desprezo e

    desamor

    da

    humanidade

    em

    lhe

    no

    procu-

    rarem preservativo contra a

    lepra que tam

    funda

    e

    as-

    querosa

    lhe

    vai lavrando,

    do

    que

    receio

    de

    lhes

    ficar

    baldado

    e

    intil

    seu

    trabalho;

    persuadidos

    talvez

    de

    que,

    por

    mais que

    fallem,

    a sua linguagem ha

    de

    ser

    sempre

    um

    dialecto

    estranho

    e desentendido; por mais

    que

    gritem,

    ho

    de

    encontrar

    sempre

    ouvidos

    cerrados

    e

    ensurdecidos,

    e

    que

    por

    mais

    que escrevam,

    e mostrem

    com

    vivas

    cores

    luz

    do

    meio

    dia

    o

    painel

    de

    costumes

    devassos

    e soltos, ho de

    topar sempre

    com

    olhos

    fie-

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

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    chaclos.

    Honra

    a

    todos

    esses

    espritos i

    Ilustrados e bem-

    fazejos

    desta

    nossa

    poca,

    que

    tanto

    se

    esforam

    por

    arraigar de novo a arvore

    da

    Religio

    e do

    Christia-

    nismo,

    j

    quasi

    extica

    entre ns. Eterna

    gratido a

    essa

    alma

    pura e singella, a

    essa

    voz

    eterna

    e

    edifica-

    tiva de

    Silvio Pellico,

    que tam

    suave

    e affectuosa

    nos

    entra

    no

    corao.

    Este

    seu

    livro,

    cujo

    titulo

    j

    tam

    conhecido,

    uma

    Odyssa

    christa,

    cheia de sublimes

    pensamentos

    de

    filosofia

    moral,

    e

    de

    simples

    e evang-

    lica poesia,

    um modelo

    de resignao e

    de Religio,

    o

    livro

    do

    povo,

    que merece ser

    lido

    por

    todas as

    classes e

    traduzido

    em

    todas

    as

    lnguas.

    Nestes

    tempos

    de

    instabilidade

    de

    fortuna,

    em que

    de

    dia para

    dia

    mudam

    a sorte e

    o

    destino

    do homem

    merc

    das

    ambies,

    nestes

    tempos

    de

    vicissitude

    de condies

    hu-

    manas

    que

    este

    livro

    deve andar

    pelas mos

    de

    to-

    dos,

    e ler-se

    com

    mais

    avidez, e

    meditar-se

    com

    mais

    reflexo.

    Aqui aprender

    o

    affligido e atribulado a

    le-

    var

    com

    pacincia

    os

    trabalhos

    e angustias da

    vida;

    aqui

    deparar

    com

    allivio e conforto

    o

    triste

    e

    perse-

    guido,

    a quem

    coube

    a m

    ventura de habitar

    a

    mo-

    rada do

    crime,

    e

    de

    ver

    murchar-se-lhe

    a

    flor

    dos

    an-

    nos

    encarcerado

    em

    lbrega

    enxovia;

    aqui

    aprender

    a

    escudar-se

    de

    coragem e

    resignao

    o

    desgraado

    ao

    ouvir

    ler

    a sua

    sentena

    de

    morte; e

    o

    infeliz

    subir

    menos

    convulso

    at

    ao

    ultimo

    degro

    do

    cadafalso;

    lon-

    ge

    de

    sua

    doce

    ptria

    e

    dos

    seus

    mais

    caros

    amigos,

    desenganado

    da

    esperana

    lisonjeira de tornar

    a

    ver

    e

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

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    apertar

    em seus

    braos

    os

    queridos

    entes

    que

    lhe de-

    ram

    o

    ser,

    o desditoso

    peregrino

    e

    desterrado

    em terra

    alheia

    ir

    pouco

    a

    pouco

    mitigando

    o

    vivo sentimento

    da saudade,

    que

    tanto

    lhe

    chora

    n'alma;

    aqui

    achar

    conformidade

    o enfermo

    cortido

    de

    dores

    espera

    da

    hora

    do

    passamento e sem

    poder

    despregar

    os olhos

    do

    logar

    de seu

    futuro

    jazigo.

    E

    qual

    corao

    haver

    ahi

    tam

    resequido,

    que

    se no

    doa

    dos tractos e

    tormentos

    por

    que

    passara

    aquelle

    homem virtuoso?...

    quaes

    olhos

    nunca affeitos

    a

    chorar, d'onde

    no

    rebente

    uma lagri-

    ma

    ao ler

    algumas

    paginas

    deste livro,

    que

    tanto

    nos

    enleva

    e

    arrebata?...

    Tal

    foi

    o

    interesse

    e

    affeio

    que

    me

    inspirou

    n'alma este

    pobre preso

    em

    idade

    flrida,

    condemnado a

    viver

    vida

    de angustias

    por

    tam

    largo

    espao

    de annos;

    qual

    outro

    canto de cisne, tanto me

    soaram

    dentro

    do

    corao os

    seus

    meigos

    accentos de

    dor,

    tanto

    me

    encheo de

    ternura

    e

    consolao

    a

    lei-

    tura

    deste

    livro, e

    tanto me commoveo

    que o no pude

    ler

    a

    olhos

    enxutos

    e protestei logo

    traduzil-o

    para

    o

    tornar

    a

    ler

    s

    comigo uma e

    muitas vezes. Succedeo

    porm,

    que,

    instado por

    amigos,

    a

    quem

    mostrei al-

    guns

    pedaos

    desta

    traduco, e

    mais

    que

    tudo

    pelo

    de-

    sejo

    que tenho

    de

    fazer

    vulgarizar

    os

    princpios

    de

    mo-

    ral

    e rectido

    em

    que elle

    tanto

    abunda,

    eu mudasse

    de teno,

    e me

    afoite hoje a

    dal-a

    luz tal

    qual

    a

    verti

    em

    linguagem. Por

    muito

    inferior a

    tenho

    eu, e

    ousadia fora

    comparal-a com a

    expresso

    sentimental

    e

    genuina

    que constitue uma

    das

    grandes

    bellezas

    do

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    17/326

    XI

    original;

    mas

    o

    Publico,

    nem sempre

    severo e

    rigoroso,

    desculpar

    os

    muitos

    deffeitos

    delia,

    bem

    persuadido

    de

    que

    eu,

    mesquinho e

    apoucado

    engenho, no

    aspiro

    a

    gloria

    tam alta

    como

    de

    escriptor

    publico, para o

    que

    fra

    mister mais cabedal

    de conhecimentos, mais

    atu-

    rada leitura, e

    talento

    menos escasso.

    (Prefacio

    da

    /.

    a

    edio).

    Coimbra,

    Setembro

    de

    1841.

    F.

    A.

    DE

    MELLO.

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    18/326

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    19/326

    ELOGIO

    HISTRICO

    DO

    SCIO

    DO

    INSTITUTO D

    ACADEMIA

    DRAMTICA

    FRANCISCO

    ANTNIO

    DE

    MELLO

    RECITADO

    NA

    SESSO

    SOLEMNE

    DO

    1.

    DE ABRIL DE 1849

    PELO

    sono

    FRANCISCO

    DE CASTRO

    FREIRE.

    lio

    extranheis,

    senhores,

    que

    nesta

    reunio

    solem-

    ne,

    consagrada

    unicamente

    commemorao

    dos

    nos-

    sos scios finados, venha

    eu, para

    quem

    so desconhe-

    cidas

    as flores da

    eloquncia,

    occupar este logar,

    e no

    hesite

    invocando

    os

    direitos, ou

    antes

    os deveres

    da

    amizade,

    em

    pagar,

    em

    vosso

    nome,

    uma

    divida

    de

    saudade e

    lagrimas

    memoria do

    nosso

    fallecido

    scio

    o

    sr.

    Francisco Antnio

    de Mello.

    No o

    extranheis, senhores.

    Tendo

    sido forado

    pe-

    los

    titulos

    sagrados

    da

    amizade

    a seguir

    at

    ao jazigo

    fnebre

    o

    fretro

    deste

    nosso

    conscio,

    um

    dos

    poucos

    amigos

    da infncia

    que a

    morte

    ainda

    me havia

    pou-

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    20/326

    XIV

    pado:

    tendo

    sido

    forado

    a

    dar a

    volta

    chave

    fatal,

    que

    para

    sempre,

    c

    na

    terra,

    me

    escondeu,

    com

    os

    restos

    mortaes

    do

    amigo,

    um

    corao que

    chorava

    com

    as

    minhas

    maguas

    e que

    se comprazia

    com

    as

    minhas

    venturas; um corao

    onde

    palpitaram

    constantes

    os

    sentimentos da

    mais

    firme e

    nunca desmentida

    affei-

    o:

    cumpria-me

    por

    isso

    tambm

    lanar

    aqui

    hoje,

    primeiro

    que

    todos,

    sobre

    o

    seu

    tumulo,

    e

    depois

    de

    regadas

    com

    as

    minhas

    lagrimas,

    as flores

    da

    saudade,

    que

    vs,

    pela

    maior

    parte mancebos

    cheios de

    vida,

    trou-

    xestes

    em

    tributo

    espontneo

    a esta festa

    dos

    mortos.

    Alm

    disto,

    senhores,

    sigo

    assim,

    como

    me

    dado,

    uma nobre

    practica encetada

    nesta

    casa

    por

    occasio

    de

    se

    memorar

    a

    perda

    do primeiro

    dos

    nossos

    scios,

    que

    a

    morte nos

    roubara

    (a)

    ;

    sigo

    uma

    practica

    que

    vs

    hoje acabaes

    de

    ver

    imitada

    pelo

    eloquente

    e digno

    scio

    que

    me

    precedeu

    (6).

    Sei

    que a minha

    voz

    frouxa,

    e que

    mal

    poder

    de-

    senhar

    em

    quadro breve uma

    vida curta

    sim,

    mas

    abun-

    dantemente

    entretecida de

    virtudes

    e

    talentos;

    anima-

    me

    porm a

    esperana

    de

    que

    a

    verdade

    dos

    traos,

    e

    ()

    Allude-se

    ao

    elogio

    histrico

    do

    scio

    o

    sr.

    Joo

    de

    Vascon-

    cellos Pereira

    Coutinho

    de

    Mendona

    Falco,

    recitado

    pelo

    scio

    o

    sr. Manoel

    Maria

    da Silva

    Bnischy, e

    publicado

    no n.

    6

    da

    Revista

    Acadmica.

    (b) O

    sr.

    Antnio

    Joaquim

    Ribeiro

    Gomes

    d'

    Abreu,

    que

    nesse

    mesmo

    dia

    recitou

    o

    elogio

    histrico

    do

    scio

    do

    instituto

    o

    sr.

    Hen^

    rique

    Jos

    de

    Castro;

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    21/326

    a

    expresso

    sincera

    da

    minha

    dor,

    suppriro

    em

    parte

    este

    deffeito.

    No

    reino do

    Algarve

    e

    na cidade

    de

    Tavira

    nasceu,

    aos

    17

    de

    outubro

    de

    1804,

    o

    nosso

    chorado

    scio

    o

    sr. Francisco

    Antnio

    de

    Mello, de pes

    no

    abastados

    em

    bens

    da

    fortuna,

    ricos,

    porm,

    de

    sentimentos

    chris-

    tmente

    virtuosos e honrados.

    Alli,

    imbudo desde

    en-

    to

    nestes

    sentimentos,-^

    que plantados desveladamente

    em

    seu tenro

    corao se radicaram

    como em

    terreno

    prprio, e cresceram

    depois

    viosos

    debaixo daquelle

    sol

    mais

    creador,

    a

    ponto de

    no

    vergarem

    nunca

    com

    as

    tempestades das paixes nem

    com

    as seducoes

    dos

    mos exemplos,

    passou

    o

    nosso conscio

    a

    sua

    infn-

    cia

    at

    edade

    dos

    onze annos, tendo

    concludo

    por

    esse

    tempo

    o estudo das primeiras

    letras,

    para o qual

    mostrou grande

    amor

    e

    inclinao.

    Regressava

    por

    essa

    epocha

    das

    suas

    viagens

    scienti-

    ficas,

    que

    por

    ordem

    do

    nosso

    governo,

    fizera

    pelo

    in-

    terior

    da

    Frana, pela

    Hollanda,

    Blgica

    e

    Itlia,

    seu

    tio,

    o sr.

    Manoel Pedro

    de

    Mello,

    lente

    de

    Mathematica

    nesta

    Universidade.

    Este

    homem

    extremamente

    am-

    vel,

    este

    sbio

    distincto*

    de

    quem

    eu

    me

    ufano

    de

    ter

    sido

    discpulo,

    e

    a

    quem

    devi,

    em

    memoria

    s

    cinzas

    de

    meu pae, amizade

    e

    proteco;

    reunia

    celebri-

    dade

    do

    seu

    nome, entre

    conterrneos

    e

    extranhos,

    como

    mathematico

    abalisado,

    consummado

    filosofo,

    h-

    bil

    e experiente

    engenheiro,

    e

    litterato

    profundo

    so-

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    22/326

    lida religio e

    todas

    as virtudes sociaes

    que delia

    deri-

    vam;

    distinguindo-se entre

    estas as

    de

    bom

    parente

    e

    soccorredor

    de

    sua

    famlia,

    Assim

    um dos seus

    primei-

    ros cuidados,

    logo

    depois

    da

    sua

    volta,

    foi o

    de

    chamar

    para

    esta

    nossa

    Coimbra

    e

    para

    junto de

    si,

    aquelle

    so-

    brinho,

    que,

    na

    boa estra dos seus primeiros

    estudos,

    deu

    abonos

    de

    distinco

    para

    os

    estudos superiores

    e

    para

    as scieneias,

    Estas

    esperanas

    no

    falharam;

    e

    ao

    passo

    que

    o

    nosso

    scio

    ia percorrendo

    brilhantemente

    o

    circulo dos estu-

    dos preparatrios,

    no tracto

    com

    o

    seu virtuoso tio,

    e

    nos

    exemplos

    contnuos

    que

    este

    lhe

    dava,

    fortificava-se

    nos

    bons

    e

    sos

    princpios da

    sua

    primeira

    educao,

    e

    ad-

    quiria

    essa urbanidade

    singela

    e

    affavel,

    que

    unida a

    muita

    bondade

    e

    grandeza d'alma,

    formaram

    depois

    aquelle seu

    caracter,

    pelo

    qual,

    apezar

    de um exterior

    melancholico

    e,

    primeira

    vista,

    talvez

    pouco

    attracti-

    vo,

    elle

    se

    tornou

    summamente

    sympathico

    para

    todos

    os

    que

    o

    conheceram.

    Hesitando entre o

    estudo

    das

    mathematicas,

    para

    as

    quaes

    tinha

    reconhecida

    aptido,

    e o

    de medicina,

    de-

    cidiu-se

    por

    esta

    ultima

    sciencia.

    Longo,

    porm,

    e

    cheio

    de

    angustias

    foi o

    perodo

    desta

    sua

    terceira

    epocha

    lit-

    teraria.

    As

    idas

    de

    reforma

    e

    liberdade

    que

    no

    anno

    de

    1820

    comearam a

    ser

    proclamadas

    no

    nosso

    paiz,

    acharam

    echo

    prompto

    e

    fcil

    nos

    coraes virgens

    dos

    mance-

    bos

    que

    ento

    frequentavam

    a

    nossa

    Universidade,

    e

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    23/326

    XVII

    que

    embalados

    nos

    sonhos

    de

    Esparta

    e

    Roma,

    e sem

    poderem

    avaliar

    ainda

    os

    muitos

    descontos

    que

    devem

    dar-se

    nas cousas

    humanas,

    levavam na fora

    do

    seu

    enthusiasmo as

    theorias

    liberaes s suas

    consequncias

    as

    mais

    exageradas.

    Assim a

    reaco,

    que

    estas

    idas

    soffreram

    em

    1823

    devia

    encontrar

    muitos

    destes

    cora-

    es

    insoffridos, e

    como

    abafando

    debaixo

    de

    idas re-

    trogradas.

    J

    ento

    o

    nosso

    Portugal

    comeava

    a ser

    victima dos dios

    e

    dissenes politicas,

    que, por mal

    nosso, o

    tem

    dilacerado tanto,

    e promettem,

    se

    Deos

    se

    no

    de de

    ns,

    de

    o

    levar

    sua ultima

    ruina,

    e

    de

    o

    riscar

    do

    numero

    das

    naes.

    Por

    occasio

    de

    uma

    festa

    acadmica

    em

    que se celebravam

    as

    ultimas mudanas,

    commetteram-se

    imprudncias,

    e

    perpetrou-se

    um cri-

    me.

    Os

    rastos

    deste

    no

    se

    poderam

    descubrir:

    mas

    as

    imprudncias

    trouxeram

    em

    resultado

    a

    priso

    de

    grande

    numero

    de acadmicos,

    pela

    maior

    parte

    innocentes.

    O

    nosso

    scio

    foi

    uma das victimas,

    e

    teve

    de ver

    por

    este

    motivo

    interrompida

    a sua carreira

    litteraria,

    at

    que

    outra faze

    politica,

    lanando

    o

    vo

    da

    amnys-

    tia

    sobre

    estes

    acontecimentos,

    o restituiu

    liberdade.

    No

    entretanto

    sobreviveu

    para

    atormental-o

    uma

    mo-

    lstia

    fatal

    na

    sua

    famlia,

    da

    qual

    se

    pde escapar,

    no

    evitou

    comtudo

    que delia se

    lhe

    originassem

    os primei-

    ros

    symptomas

    de

    novas

    enfermidades,

    que

    progredindo

    pouco

    a

    pouco, e

    amargurando-lhe

    successivamente a

    existncia,

    conseguiram

    mais

    tarde

    roubal-o

    vida

    na

    flor

    dos

    annos.

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    24/326

    XVIII

    E

    no

    bastava

    tudo isto

    para

    provar

    a

    sua

    pacin-

    cia.

    Seu

    tio,

    aquelle

    segundo.

    pae

    carinhoso,

    que

    lhe

    havia

    proporcionado

    a

    espectativa de

    uni

    futuro

    lison-

    geiro, foi

    tambm

    victima innocente

    em

    1828

    das

    nos-

    sas fataes

    dissenes.

    Homiziado,

    para

    evitar

    maior

    per-

    seguio,

    na

    casa

    generosamente

    hospitaleira

    do

    virtuoso

    Capito

    mr

    de

    Murtede

    o

    sr.

    Antnio

    Jos

    Affonso,

    e

    alli,

    quasi

    sempre separado

    de

    sua

    virtuosa

    esposa,

    de

    um filho

    innocente

    e

    do seu

    querido

    sobrinho,

    arrastou

    atribulado,

    apezar

    dos

    carinhos

    e

    assduos

    cuidados

    da-

    quella

    boa

    famlia,

    uma pesada existncia

    de

    quatro

    an-

    nos

    decorridos

    at

    ao

    dia

    13

    de

    abril

    de

    1833,

    em

    que

    uma

    apoplexia fulminante o roubou

    vida

    na

    edade

    de

    68 annos.

    Se nesta

    lucta com

    as

    enfermidades

    -do

    corpo,

    e

    com

    as dores

    d'alma

    ainda

    mais

    pungentes, no

    afrouxou

    a

    pacincia

    do

    nosso

    conscio;

    cerlo

    que

    o

    seu

    espi-

    rito avergou

    um

    pouco

    com

    tanto

    pezo,

    e d'ahi

    lhe

    pro-

    veio

    aquelle

    ar

    de

    resignada

    melancholia

    e

    uma

    certa

    timidez,

    bem natural

    s

    almas

    sensveis,

    quando se lhes

    rasga

    o

    vo

    das doces

    illusoes,

    e encaram finalmente o

    mundo

    real

    e

    descarnado

    com

    todas

    as

    suas

    misrias.

    A

    esta

    timidez

    porventura, e em muito grande

    parte

    ainda aos

    tristes

    preconceitos

    polticos,

    devemos

    attri-

    buir

    o no

    se

    haver

    feito

    devida

    justia

    ao

    seu

    mrito

    litterario

    nos

    ltimos

    annos

    da

    sua

    formatura.

    Concluda

    esta,

    e

    seguindo-se

    logo

    a

    morte

    do

    seu

    bom

    tio, no

    hesitou,

    por

    gratido

    s

    suas

    cinzas,

    em

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    25/326

    XIX

    unir

    a sua

    sorte

    da

    viuva

    e filho do seu

    bemfeitor,

    aos

    quaes

    prestou

    sempre

    todo

    o

    amparo

    que coube

    em

    suas foras, e consagrou at

    morte

    o mais extremoso

    affecto.

    Data

    de

    ento a

    sua

    vida

    clinica, a

    qual

    encetou

    como

    ferveroso

    sacerdote. Mal

    convalescido ainda

    da

    cholera-morbus,

    que

    ento

    com

    os

    outros

    dois

    lagel-

    los de Deos, parecia querer acabar com esta

    nossa

    terra,

    e chamado

    para

    dirigir um hospital, que para

    os

    en-

    fermos desta

    epidemia

    se

    organisra no

    convento de

    S.

    Francisco

    da

    Ponte,

    acudiu

    logo;

    e

    charidoso

    e des-

    velado

    occupou-se

    todo,

    no

    s

    em

    soccorrer

    os

    doen-

    tes

    com

    os remdios da

    arte, mas

    tambm em

    dirigir

    e

    zelar

    os

    escassos soccorros,

    que para

    a sustentao

    daquelle hospital lhe

    foram

    consignados.

    Tereis

    visto, senhores,

    o

    retrato que

    o

    sbio e

    vir-

    tuoso

    Hufeland

    fez

    do

    homem

    que

    .desempenha,

    como

    deve,

    o sacerdcio

    da

    Medicina no menos

    respeitvel

    que o sacerdcio

    dos

    altares. Este retrato,

    ouso di-

    zel-o

    o

    do

    meu

    amigo,

    o

    do scio

    que

    hoje

    chora-

    mos.

    E

    se

    no

    interrogae

    a

    memoria

    ainda

    fresca

    da

    maior

    parte

    das

    famlias

    desta

    cidade,

    no

    s

    as

    abas-

    tadas, mas as

    mais

    pobres e

    desvalidas,

    que

    todas,

    com

    uma

    s voz, respondero: que no conheceram

    nunca

    medico, que

    o

    excedesse

    no desapego

    a

    idas

    de inte-

    resse;

    no desvelo

    pelos

    seus doentes;

    na

    assiduidade e

    atteno

    que

    lhes

    prestava;

    na

    charidade

    com

    que

    os

    ouvia; e

    na

    consolao

    que

    sabia

    derramar

    pelos cora-

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    26/326

    coes

    dos que

    os

    cercavam.

    Nem

    os

    progressos

    das

    suas

    enfermidades

    poderam

    afrouxar

    o

    zelo,

    com

    que desem-

    penhou

    sempre

    as

    obrigaes

    deste

    seu

    ingrato

    minis-

    trio;

    zelo

    excessivo

    ao qual

    se

    deve

    talvez

    a

    mais

    breve

    terminao

    dos

    seus

    dias.

    Foi

    com

    estes

    ttulos,

    que

    elle

    grangeou

    a estima

    geral, e

    que

    se

    tornou

    bemquisto

    de

    todos

    os partidos,

    sem

    que

    influencia

    destes,

    mas

    sim

    daquella,

    se

    deva

    attribuir

    a sua eleio

    para

    os

    cargos

    de

    conselheiro

    da

    municpio

    e

    do

    districlo,

    que

    por

    vezes

    occupou.

    E

    de tudo

    isso ainda lhe

    sobravam

    horas

    que dedicava

    ao

    estudo

    das

    boas

    letras,

    e

    principalmente

    ao

    da nossa

    hella

    lingua

    portugueza.

    Esta

    escolha

    de

    estudos,

    com

    que

    se

    feriava

    das suas

    occupaes, revelam

    o quanto

    era de

    bem

    formada a

    sua

    alma,

    e quam

    grande

    era

    o

    seu

    patriotismo,

    porque vs bem sabeis, senhores,

    que

    no

    amor

    da

    nossa lingua

    vai a

    dose

    maior

    do

    amor

    pela terra

    e pelas

    cousas

    da ptria.

    Na

    aturada

    lio dos

    nossos clssicos

    adquiriu elle

    colheita abundante

    de

    linguagem pura;

    e

    nestes

    pontos

    chegou

    o

    seu voto

    e

    o

    seu

    conselho

    a ser de

    grande

    pezo para

    os

    muitos

    que

    o

    consultavam.

    No

    exercido

    de

    traduzir e

    verter

    para a

    lingua

    ptria

    os

    bons

    es-

    criptos

    das

    alheias,

    ganhou

    avultado cabedal

    dos

    conhe-

    cimentos

    practicos da

    propriedade,

    copia,

    indole e

    mys^

    terios

    dos

    termos da nossa

    lingua.

    Como

    provas

    ahi

    nos

    deixou

    nessas

    publicaes

    peridicas

    que

    sahiram

    luz

    debaixo

    da

    responsabilidade

    do

    Instituto,

    algumas

    das

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    27/326

    \\i

    formosas

    paginas

    que

    tanto

    accreditaram

    aquellas

    pu-

    blicaes.

    Lede,

    senhores,

    no

    1.

    volume

    da Chronica

    Littera-

    ria, a

    traduco do

    hespanhol

    para

    excellente

    portu-

    guez,

    de um artigo

    sobre

    Mr.

    de

    Lamartine,

    no qual

    se

    d

    o

    verdadeiro

    apreo

    ao

    mrito

    sublime,

    como

    poeta,

    do

    cantor das

    Meditaes

    e

    das

    Harmonias

    reli-

    giosas.

    Lede

    aquelle seu

    Prefacio

    verso do

    italiano das

    Minhas

    Prises de Silvio

    Pelico,

    de

    que

    logo

    fallarei,

    desse

    prefacio

    que, segundo

    lhe

    escrevia

    o

    nosso

    scio

    e

    mximo

    litterato

    o

    sr.

    Agostinho

    de

    Mendona

    Fal-

    co, era

    bastante

    s

    por si para

    documento

    sobejo das

    suas

    muitas virtudes, e

    dos dotes

    innegaveis para

    es-

    criptor da

    lingua portugueza.

    Lede,

    finalmente, no

    2.

    volume

    da

    Chronica^

    aquella

    traduco

    das

    Lagrimas

    de

    Elisa

    desse

    trecho

    tam

    sentimental

    e

    melancholico, dessa

    epopa

    de dores e

    angustias

    por

    que passa o pobre

    corao de uma

    mu-

    lher

    sacrificada

    barbaramente

    nas

    mais

    doces

    aflfeies

    do

    seu

    corao.

    Tambm

    cultivou

    com

    aproveitamento

    os

    amenos cam-

    pos

    da

    poesia,

    porm

    aquella

    sua

    timidez

    e

    natural

    mo-

    dstia levaram-no

    a

    rasgar

    ou

    queimar

    a

    maior parte

    destas producoes.

    Somente

    em alguns

    desses

    livros,

    que

    hoje

    se

    consagram s

    preciosas

    memorias

    da

    ami-

    zade,

    escaparam

    alguns fragmentos:

    e

    eu

    bem

    desejara,

    senhores,

    poder

    repetir-vos

    aqui

    alguns

    delles:

    um

    *2

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    28/326

    XXII

    principalmente

    em

    que

    elle

    derrama,

    em

    sentidos

    ver-

    sos,

    religiosas

    consolaes

    no

    corao

    de

    uma

    triste

    me

    viuva,

    que

    s

    com

    blsamos

    destes

    tem

    podido

    mitigar

    a

    saudade

    de

    um

    filho

    virtuoso

    e

    nico,

    nosso

    commum

    e

    nunca

    esquecido

    amigo

    da infncia,

    morto

    no vio

    da

    edade

    e

    das

    esperanas

    mais

    lisonjeiras

    (a);

    quizera

    repetil-o

    aqui,

    para

    que

    melhor

    podesseis

    avaliar

    a

    tem-

    pera

    sonora

    daquella

    alma

    sensvel.

    E

    voltando

    agora

    aquella

    sua

    traduco

    das

    Minhas

    Prises,

    o

    maior

    floro

    da

    sua coroa

    litteraria;

    eu

    no

    vos

    canarei

    em

    elogiar,

    com

    os nossos

    Casilhos

    e

    pri-

    meiros

    litteratos,

    o

    aprimorado

    merecimento

    daquelle

    seu

    trabalho,

    nem

    em

    tecer

    o

    panegyrico

    daquelle

    livro,

    que

    attrahiu

    a

    sua

    escolha,

    daquelle

    verdadeiramente

    livro

    de

    oiro,

    repassado,

    desde

    a

    sua

    primeira

    at

    ultima

    pagina,

    de

    sincera e

    ardente religio,

    de

    amor

    practico

    de

    Deos

    e

    dos

    homens;

    e

    que,

    segundo

    a

    frase

    de

    um

    escriptor

    francez,

    mundano e

    terrestre

    como

    ,

    captivando

    pela

    sua

    realidade,

    interessando

    como ro-

    mance, pode

    sem receio

    depositar-se

    em

    todas

    as mos,

    at

    nas de

    uma

    virgem

    no

    dia mesmo da sua

    coramu-

    nho,

    O

    nosso

    scio,

    a

    quem

    a

    leitura daquelle

    livro

    fez

    (a)

    Manoel

    Matinas Vieira,

    repetente

    e bacharel

    formado

    na

    fa-

    culdade

    de

    mathematica,

    onde

    se

    distinguiu por

    seus

    talentos,

    e foi

    premiado

    em

    todos

    os

    annos.

    Morreu no dia 29

    de

    abril

    de

    1834,

    aos

    'i5

    annos

    edade,

    Jaz

    ria

    capella

    do

    cyImjIo

    coHeiru de

    Santa Rita

    de

    Coimbra.

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    29/326

    XX11I

    derramar

    lagrimas de

    ternura por mim

    presenciadas,

    bem

    disse

    a

    Providencia

    pelo

    presente

    que

    lhe enviara,

    e considerando

    o

    auxilio e

    conforto que

    a sua leitura

    poderia levar

    aos

    tantos coraes que soffrem,

    os ran-

    cores

    e malquerenas que poderia destruir,

    protestou

    logo

    traduzil-o, e

    com

    animo

    charidoso,

    e

    a

    instancias

    de

    amigos,

    decidiu-se

    a

    publical-o.

    O

    Instituto soube apreciar

    a

    tempo

    tanto

    mrito e

    tantos

    talentos,

    e

    poude honrar-se

    com

    todos

    estes seus

    trabalhos,

    tendo

    escripto, logo na

    sua

    installao,

    o seu

    nome

    entre

    os dos seus scios.

    Nesta

    obra

    sancta

    da

    civilisao

    pela

    arte,

    foi eile

    um

    dos

    obreiros

    os

    mais

    assduos.

    Censor quasi

    perpetuo

    das

    publicaes

    litte-

    rarias

    do Instituto,

    desempenhou este

    cargo com

    o

    mes-

    mo

    zelo

    que applicava a tudo

    o

    que

    se

    lhe

    incumbia.

    Censor de

    algumas peas

    dramticas,

    apresentou

    sem-

    pre

    o

    seu parecer

    com

    a

    conscincia

    do

    homem

    probo,

    que

    no

    se

    deixando

    prender

    por

    cantos de

    sereias,

    no

    receia,

    quando

    preciso, vir

    apontar

    com o dedo

    para

    a

    immoralidade

    escondida debaixo

    de

    flores.

    Final-

    mente,

    no

    s foi,

    como

    j

    fica

    dito,

    collaborador,

    se-

    no

    tambm,

    muitas

    vezes,

    redactor dos

    nossos

    peri-

    dicos

    litterarios.

    Porm,

    senhores,

    o aperto do

    tempo ora-me

    a

    dei-

    xar

    em

    silencio

    muitos

    outros

    louvores,

    que eu

    pode-

    ria

    ir

    buscar

    sua

    vida

    publica e

    privada,

    e

    a des-

    enrolar diante

    de

    vs

    a

    ultima pagina

    luctuosa

    da sua

    vida.

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    30/326

    XIV

    A

    morte

    que

    ao

    principio

    insidiosamente

    atacara

    o

    nosso

    scio,

    havia-se

    adiantado

    a

    passo

    largo, e

    j

    nos

    fins de

    1845

    estivera

    a

    ponto

    de

    lhe

    cortar

    os

    fios da

    vida,

    Fez

    ento

    uma

    pequena

    pausa;

    porm

    elle

    no

    se

    illudiu,

    e

    conhecendo

    que

    era

    com

    fim

    de

    descarregar

    golpe

    mais

    seguro,

    tractou

    de

    prepara

    r-se

    para

    a

    jor-

    nada

    da

    eternidade,

    fazendo

    no

    principio

    de

    1846

    uma

    confisso

    geral,

    e

    soccorrendo-se

    sua f, cada vez mais

    viva

    nos

    auxilios

    da

    religio,

    para arrostar

    com as

    an-

    gustias

    que

    j

    ento soffria,

    e que

    estava

    certo

    haviam

    de

    crescer

    progressivamente.

    No

    vos

    aligirei,

    senhores,

    demorando-me

    na

    des-

    cripo

    destes lances

    dolorosos; e

    s

    para que delles

    faaes

    leve

    ideia,

    accrescentarei que nas vsperas da

    sua

    morte,

    elle

    se

    viu

    obrigado a prescindir do nico

    refrigrio

    que ainda

    lhe

    restava,

    o

    da

    companhia e con-

    solaes

    dos

    seus

    amigos,

    porque

    os

    amigos

    lhe

    rouba-

    vam

    o

    ar,

    cuja

    falta

    lhe

    dava

    as

    ancis

    da

    morte.

    E

    a

    morte, que elle

    j

    invocava como

    libertadora*

    veiu

    finalmente

    acabar com

    s

    seus

    tormentos,

    e

    des-

    prender

    para o

    seio de Deos a sua

    alma

    involta

    nas

    consolaes

    da

    religio,

    e

    nas

    oraes

    dos

    seus

    amigos.

    Foi no dia,

    para

    mim

    nunca

    esquecido, 14

    de

    janeiro

    de

    1847.

    O

    seu

    testamento

    foi

    o

    epilogo

    de

    uma

    vida

    tam

    vir-

    tuosa.

    Escripto

    com

    a

    conscincia

    da

    morte

    prxima,

    e

    com

    a

    hora

    marcada

    quasi

    profeticamente,

    so

    nelle

    para

    edificar,

    e

    para

    fazer correr

    lagrimas

    dos

    coraes

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    31/326

    XXV

    os

    mais

    frios, as

    palavras

    de

    compuno

    com

    que

    aquelle

    Anjo

    se

    humilha

    perante

    a

    Bondade

    Suprema,

    e

    lhe

    pede perdo

    de suas culpas

    e

    fragilidades;

    as

    palavras

    com

    que honra a

    memoria dos seus virtuosos

    pes

    e

    parentes, aquellas que

    dirige

    agradecido

    viuva do

    seu

    bemfeitor

    e

    sua

    famlia

    pelos

    cuidados e

    carinhos

    com

    que

    o

    tractaram

    na

    sua

    doena.

    Na

    repartio

    dos

    seus

    poucos

    haveres

    quiz

    pagar

    todas

    as suas dividas de

    amizade

    e gratido.

    Os

    seus

    ntimos

    receberam penhores

    da

    sua affectuosa

    saudade.

    A

    mim

    legou-me,

    entre

    outras memorias,

    uma

    obra

    de

    suas

    mos,

    concluda

    oito

    dias

    antes

    da

    sua

    morte,

    e

    que

    ento

    pela primeira vez

    me

    esteve

    mostrando

    pla-

    cidamente,

    occultando-me

    o

    seu

    destino

    A

    confraria

    da

    Misericrdia, de

    que era

    medico

    e

    ir-

    mo, o

    acompanhou

    com

    as

    honras

    fnebres

    at ao seu

    jazigo,

    que,

    por

    sua

    disposio,

    foi

    o

    adro

    lageado

    da

    igreja

    do

    mosteiro

    de

    Sancta

    Clara.

    Parece

    que

    a

    sua

    alma

    queria

    regozijar-se

    com a ideia,

    de

    que

    as ora-

    es

    daquellas

    boas

    freiras,

    que

    amava

    como

    irmas,

    reboando

    pelo

    templo

    e

    misturadas

    com os solemnes

    sons

    do

    rgo,

    sahiriam

    pelo

    portal,

    e

    viriam bater

    so-

    bre

    a

    sua

    loisa

    para

    de

    l

    se

    repercutirem

    para o

    co.

    O aspecto

    dos

    que

    acompanhavam

    o prstito

    fnebre

    era

    profundamente triste;

    ouviram-se

    muitos

    elogios;

    correram

    muitas lagrimas,

    e

    estas eram

    misturadas

    com

    as

    de

    muitos

    pobres,

    a

    quem

    elle

    tinha

    tractado

    e

    soccorrido.

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    32/326

    XXVI

    Concluirei,

    senhores,

    repetindo

    uma

    passagem,

    que

    ha

    pouco

    encontrei

    no

    nosso

    Fr.

    Amador

    Arraes,

    n'um

    exemplar

    que

    pertenceu ao

    meu

    amigo,

    e

    a

    qual mar-

    cada por

    elle

    com

    um

    signal,

    nos servir, como estou

    certo serviu

    a

    elle,

    de

    refrigrio.

    Diz

    assim

    :

    Ditoso

    o

    que

    passa

    por

    dores

    e

    tribulaes,

    e

    nesta

    vida

    exer-

    citado

    como

    em

    um

    campo

    de

    pacincia

    e

    uma

    con-

    tenda

    de

    gloria.-

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    33/326

    AS

    IIIH1S

    PRISES.

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    34/326

    Homo natus de

    muliere,

    brevi vivens

    tempore^

    repletar

    mutti

    nseriis.

    Job.

    C.

    XLV.

    1

    Q

    homem

    nascido da mulher,

    que

    vive

    breve

    tempo,

    cercado

    de

    muitas

    misrias.

    Job. log.

    cit.

    ftrad.

    de

    *

    Pi

    de

    Fig>)

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    35/326

    .

    iLm

    uma sexta

    feira, 13

    de

    outubro de

    1820,

    fui

    preso

    em

    Milo

    e

    escoltado

    at

    Santa

    Margarida:

    eram

    trs horas

    da

    tarde.

    Tive

    de

    soffrer um

    longo

    interro-

    gatrio, que durou todo

    aquelle

    dia e

    alguns

    dos que

    se

    lhe

    seguiram.

    Mas

    no direi cousa

    alguma

    do que

    alli

    passei:

    como timbroso

    namorado, que

    protesta re-

    sentir-se

    da

    amante

    que

    o maltrata,

    assim

    eu

    dou

    de

    mo

    politica e fallarei

    de

    outra

    cousa.

    s

    nove

    horas da

    noite

    daquella

    malaventurada

    sexta

    feira,

    o

    escrivo me entregou

    ao

    carcereiro, o qual

    con-

    duzindo-me

    logo

    ao

    quarto

    que

    me

    fora

    destinado,

    me

    pedio

    com

    certo

    ar

    de

    polidez,

    que

    houvesse

    de

    confiar-

    lhe

    o

    meu

    relgio, dinheiro, e

    o

    mais que

    trouxesse

    na

    algibeira,

    o

    que

    tudo a

    seu

    tempo

    me seria

    restitudo,

    depois

    do

    que

    se

    retirou,

    dando-me respeitosamente as

    bas-noites.

    1

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    36/326

    AS

    MINHAS

    PRISES.

    Esperai

    um

    pouco,

    amigo,

    lhe

    disse

    eu;

    mandai-

    me

    dar

    alguma

    cousa

    de

    comer,

    que

    ainda

    estou

    sem

    jantar.

    Promptamente,

    senhor,

    que

    o

    remdio

    no

    est

    longe;

    e

    o senhor

    ver

    o que

    bom

    vinho ...

    Vinho ...

    no

    o bebo.

    Espantado

    com

    similhante

    resposta,

    Angelino

    fitou

    os olhos

    em

    mim,

    persuadido

    de

    que eu

    gracejava:

    os

    carcereiros

    que tem

    taberna

    por

    sua

    conta

    horrorizam-

    se

    do

    preso

    que no

    bebe

    vinho.

    No

    o bebo,

    seriamente.

    Pois

    condoo-me

    de

    vs,

    senhor,

    que

    assim

    tereis

    de

    soffrer

    em dobro as

    tristezas

    da

    solido...

    E desenganado

    de que eu

    lhe fallava

    com

    seriedade,

    saio:

    e em menos

    de

    uma

    hora

    trouxe-me

    de

    jantar.

    Enguli

    alguns boccados,

    bebi

    um

    copo

    de

    agua,

    e

    fi-

    quei

    s.

    O

    quarto

    era trreo, e

    dava

    sobre um

    pateo:

    pri-

    ses

    direita,

    prises

    esquerda,

    prises

    por

    cima,

    e

    prises defronte...

    Encostei-me

    para

    a

    janella, e

    alli

    me

    deixei

    ficar

    por

    algum

    tempo

    a reparar

    na

    afervorada

    lida

    dos

    guardas

    e

    no

    cantar

    frentico

    de

    muitos

    dos

    presos.

    E entrei

    a

    considerar...

    Vai em um

    sculo

    que isto

    aqui

    era

    um

    mosteiro ...

    Das

    sanctas

    e

    penitentes

    vir-

    gens que

    ento

    o

    habitavam,

    quando

    que pela

    mente

    lhes

    passara,

    que

    suas

    cellas acostumadas

    a

    feminis

    ge-

    midos

    e

    a

    devotos

    hymnos,

    viriam ainda

    pelo discorrer

    dos

    tempos a

    tornar-se

    a

    estancia

    de homens de

    todas

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    37/326

    CAPITULO

    I.

    as

    condies,

    destinados

    a

    maior

    parte

    s gals

    e s

    for-

    cas...

    e

    em

    que

    nellas

    haveriam

    de

    resoar cantigas

    tor-

    pes

    e

    blasphemas ...

    E

    daqui

    mais a

    um sculo,

    quem

    respirar

    nesta

    morada?

    Ai tempo...

    que

    tam

    rpido

    foges ... Oh

    perpetua

    instabilidade

    das cousas ...

    E

    o

    que vos

    contempla

    ainda

    ousa

    lastimar-se, porque

    a

    fortuna

    deixou

    de

    sorrir-lhe,

    porque

    se

    v

    sepultado

    em um

    crcere,

    porque

    o

    ameaa

    um patbulo ?...

    On-

    tem

    era eu

    ainda

    um

    dos

    mais

    felizes mortaes

    que

    ha-

    via

    no

    mundo ...

    Hoje...

    eil-as

    perdidas,

    todas as do-

    uras que

    faziam o

    encanto

    da

    minha existncia

    Li-

    berdade,

    convivncia

    com

    os

    amigos,

    esperana...

    ai

    tudo

    se

    acabou

    para

    mim ...

    No,

    no

    me

    fascinas,

    louca

    illuso Bem

    sei

    que

    j

    daqui no torno

    a

    sair,

    seno

    para

    ser

    ferrolhado

    em mais

    hrridos calabou-

    os,

    ou para ser

    entregue

    a

    mos

    de algoz...

    Embora ...

    que

    esse

    dia,

    que

    houver

    de

    seguir-se

    ao

    da

    minha

    morte,

    ha

    de

    ser

    tal, como

    se

    eu

    vivera

    em

    um palcio,

    e

    como

    se dalli fora

    Jevado

    com

    as

    honras de

    mais

    lu-

    zida

    pompa ao logar da minha

    sepultura.

    E

    assim

    reflectindo na rapidez com que

    foge

    o

    tem-

    po,

    minha

    alma

    se

    ia

    fortalecendo.

    Mas

    a

    lembrana

    de

    meu

    pai, de minha mi, de meus

    dois

    irmos,

    de

    minhas

    duas

    irmas,

    e de outra

    familia que

    eu

    amava

    com

    tanto extremo

    como

    se

    fosse

    minha,

    veio

    ento

    apoderar-se-me

    do

    espirito

    com tal fora

    e

    predom-

    nio,

    que

    me

    embargou

    todas

    as

    reflexes

    filosficas.

    E tanto

    me

    enterneci, que

    chorei

    como

    uma

    criana.

    *

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    38/326

    AS

    MINHAS

    PRISES,

    II.

    Havia

    trs

    mezes

    que

    eu

    estivera em

    Turim,

    onde

    tive

    a

    ventura

    de

    tornar

    a

    ver,

    depois de

    alguns

    annos

    de

    separao,

    os

    meus

    queridos

    pais,

    um

    de

    meus

    ir-

    mos e

    minhas

    duas

    irms.

    Toda

    a

    nossa

    famlia

    se

    amara

    sempre

    tanto Nunca

    houve

    filho,

    que mais

    cu-

    mulado

    fosse dos

    benefcios

    de

    seu

    pai e

    de

    sua

    mi.

    Oh ...

    e como

    ao

    tornar

    a

    ver

    estes

    velhos

    venerandos,

    no

    sentia

    commover-se-me

    o

    corao,

    achando-os

    desfi-

    gurados

    pela

    idade

    muito

    mais

    do

    que imaginara

    Quam

    grato me no fora

    ento, o

    nunca mais

    separar-me

    delles,

    e

    o

    dedicar-me

    affanoso

    a lhes

    suavisar

    o

    pezo

    da velhice

    Qual no

    foi

    o

    meu pezar, nesses

    poucos

    dias que

    me

    demorei

    em

    Turim,

    por

    ter

    de

    cumprir

    tantos deveres,

    que

    me

    consumiam

    o tempo

    todo,

    e

    que

    me

    no

    dei-

    xavam

    ter

    a

    consolao

    de

    estar

    sempre em

    casa,

    na

    companhia

    de

    meus queridos

    pais

    A

    minha

    pobre

    mi

    exclamava

    com

    amargurada

    tristeza:

    Ah

    no

    foi

    para

    nos

    ver

    que

    o

    nosso

    Silvio

    veio

    a

    Turim

    Na

    manha

    em

    que voltei

    para

    Milo, a

    separao

    foi

    para mim das

    mais dolorosas.

    Meu

    pai entrou comigo na

    carruagem

    e acompanhou-me

    a distancia

    quasi

    de meia

    legoa; de-

    pois

    se

    partio

    s...

    Eu me

    voltava

    para

    o

    seguir

    com

    os

    olhos

    at

    o

    perder

    de

    vista,

    e

    no

    podia

    suster

    as

    lagrimas; olhava

    para

    um annel,

    prenda

    que

    minha

    mi

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    39/326

    CAPITULO II.

    me

    dera,

    e

    no

    me fartava de o

    beijar:

    nunca

    me

    des-

    pedi

    de

    meus

    pais

    que

    tam

    angustiado

    me

    sentisse.

    Sem

    dar

    credito

    a presentimentos,

    admirava-me

    de no

    po-

    der

    superar

    tamanha dor, e aterrado

    disto,

    perguntava

    a mim

    mesmo:

    donde

    que

    me

    vem tam extraordi-

    nria inquietao

    como

    a

    que

    sinto?

    Parecia-me

    estar

    a

    ler

    no

    meu

    futuro

    alguma

    grande

    catastrophe.

    Agora

    na priso, representavam-se-me

    de novo

    aquelle

    susto e

    aquellas angustias; volviam-me lembrana to-

    das

    as

    palavras

    que, trs

    mezes

    antes,

    ouvira

    da bocca

    de

    meus pais.

    Aquella

    queixa

    de

    minha mi:

    Ah

    no

    foi

    para

    nos

    ver,

    que

    o

    nosso

    Silvio

    veio

    a

    Turim

    era

    um golpe de

    pesada

    maa

    de chumbo,

    que me

    es-

    magava

    o corao. Eu me

    reprehendia

    a

    mim

    mesmo,

    por

    me

    no

    haver

    mostrado mil

    vezes

    mais

    carinhoso

    para

    com

    elles...

    Eu,

    que

    tanto

    amor

    lhes

    tenho...

    ex-

    primir-lho

    com

    tanta

    sequido ...

    Eu, que

    talvez

    mais

    no

    tornaria

    a

    vel-os...

    saciar-me

    tam

    pouco

    de rever-

    me em

    suas feies

    tam queridas ...

    Ai

    que tam

    ava-

    rento

    lhes

    fui

    em

    provas de

    minha

    afeio ...

    E a

    alma

    se

    me

    cortava

    com

    pensamentos

    taes.

    Fechei

    a

    janella,

    passeei

    uma

    hora,

    cuidando

    de

    no

    lograr

    repouso

    em

    toda

    aquella

    noite.

    Atirei

    comigo

    ao

    leito,

    e

    a fadiga

    me

    adormecco.

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    40/326

    AS

    jYILXHAS

    PRISES.

    III.

    O

    despertar

    do

    somno

    ao cabo

    da

    primeira

    noite

    de

    priso,

    cousa

    horrvel.

    possvel, dizia

    eu,

    at-

    tentando

    no

    logar

    em

    que

    me

    achava;

    pois

    possvel

    que eu

    aqui

    esteja ...

    no

    ser

    um sonho

    isto

    que

    vejo?...

    No

    ha

    duvida...

    prenderam-me

    ontem;

    ontem

    que

    me

    fizeram

    aquelle

    longo

    interrogatrio,

    que deve

    con-

    tinuar

    amanha...

    e

    quem

    sabe

    at quando

    se

    prolon-

    gar?...

    Sim,

    foi

    ontem

    noite

    antes

    de adormecer,

    que

    as

    lagrimas

    me

    correram

    em

    fio, ao lembrar-me

    de

    meus

    queridos

    pais...

    O

    repouso,

    o

    perfeito

    silencio,

    e

    o

    curto

    somno que

    me

    havia

    restaurado

    as

    foras do

    espirito,

    pareciam

    centuplicar

    a

    vehemencia

    da

    minha

    dor.

    Naquella

    ab-

    soluta

    privao de distraces, a angustia da

    minha

    cara

    famlia,

    e principalmente

    de meu

    pai

    e de minha

    mi,

    logo que

    minha priso

    lhes

    constasse,

    se

    me

    gra-

    vava na imaginao

    com

    incrvel fora.

    E

    eu

    dizia:

    Neste

    instante,

    ou

    elles

    dormem

    ainda

    tranquillos,

    ou

    velam

    talvez pensando em

    mim

    com

    ternura,

    longe...

    e bem

    longe de

    suspeitarem

    o triste

    logar

    em

    que

    me

    vejo ...

    Oh ...

    felizes, se a

    Deus prou-

    vesse

    arrebatal-os do mundo,

    antes

    que lhes

    l

    chegue

    a

    insfausta

    nova

    do

    meu

    infortnio

    Quem

    lhes

    dar

    fora

    para

    supportarem

    golpe

    tamanho?

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    41/326

    CAPITULO

    III

    Uma

    voz

    c

    de

    dentro

    parecia

    responder-me

    :

    Aquelle

    a

    quem

    todos

    os

    affligidos

    invocam,

    amam

    e

    sentem

    dentro

    em si

    mesmos;

    Aquelle

    que

    prpria

    Mi

    deo fora

    para

    seguir

    seu

    Filho ao

    Golgotha,

    e

    para

    collocar-se

    perto

    de

    sua

    cruz o

    Amigo

    dos des-

    graados, o

    Amigo

    dos

    mortaes.

    Foi

    este

    o

    primeiro

    momento

    em

    que

    a

    Religio

    triumphou

    milagrosamente do meu

    corao: ao

    amor

    filial devo este

    beneficio. Noutro

    tempo,

    com

    quanto

    eu

    no fosse

    inimigo

    da

    Religio, pouco

    ou

    nada me es-

    merava em

    a

    seguir.

    As

    objeces

    triviaes

    com que

    de

    ordinrio

    costumam

    atacal-a,

    no

    me

    pareciam

    de

    vul-

    to,

    e ainda

    assim, mil

    duvidas

    sophisticas

    affracavam

    a

    minha f. J

    de

    muito

    tempo,

    que estas duvidas

    no

    versavam

    sobre a

    existncia

    de

    Deus, e no

    deixava

    de

    reflectir,

    que

    existindo Deus,

    necessria

    consequn-

    cia

    de

    sua

    justia

    haver

    outra

    vida

    para

    o

    homem

    que

    soffre

    em

    um mundo

    tam injusto: e

    daqui

    conclua

    eu,

    com

    quanta razo devemos

    procurar

    os

    bens

    dessa

    segunda

    vida: e

    daqui

    tornava

    a

    concluir,

    que

    era

    mister

    seguirmos

    um

    culto todo

    de amor de Deus

    e

    do

    prximo,

    e

    havermos

    um

    desejo

    constante

    de nos

    ennobrecermos

    por

    meio

    de

    generosos

    sacrifcios.

    Ha-

    via

    j

    muito, que

    eu

    discorria

    por este modo, e

    ac-

    crescentava:

    E

    que

    pois

    o Christianismo seno

    este

    aturado

    desejo

    de

    ennobrecer

    a alma?

    Admirava-me

    como

    revelando-se

    tam

    pura,

    filosfica

    e

    inexpugnvel

    a

    essncia

    do

    Christianismo,

    viesse

    tempo

    em que a

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    42/326

    8

    AS

    MINHAS

    PRISES.

    orgulhosa

    filosofia

    ousasse

    dizer:

    D'ora

    em

    diante

    cabe-me

    a

    mim

    fazer

    as

    suas

    vezes.

    E

    por

    que

    modo

    has

    de

    tu

    fazer

    as suas

    vezes?...

    Ensinando o

    vicio?

    De

    certo,

    no;

    pois,

    ensinando

    a

    virtude?...

    bem ...

    eis

    ahi

    em

    que

    consiste

    o amor de

    Deus

    e do

    prxi-

    mo;

    ,

    nem

    mais

    nem

    menos,

    o que o Christianismo

    ensina.

    Assim,

    vergonha

    dizel-o,

    discorria

    eu

    desde

    mui-

    tos annos,

    abstendo-me

    sempre

    de deduzir

    consequn-

    cias:

    s

    pois

    consequente ...

    s

    christo ...

    nem

    mais

    te

    escandalisem

    abusos;

    nem

    mais subtilizes

    sobre

    qual-

    quer

    ponto

    difficil

    da

    doutrina

    da

    Igreja,

    desde

    o

    in-

    stante em que

    lhe decifras o dogma

    principal

    e de

    to-

    dos o

    mais

    claro:

    Ama

    a

    Deus e

    ao prximo.

    Depois

    que

    me

    vi preso, resolvi

    em

    fim

    tirar

    aquella

    concluso,

    e

    effectivamente

    a

    deduzi.

    Hesitei

    por al-

    gum

    tempo,

    cuidando,

    que

    se

    algum

    viesse

    a

    me

    co-

    nhecer

    mais

    religioso

    do

    que

    era d'antes,

    se

    julgaria

    com

    direito

    de

    reputar-me

    hypocrita

    ou envilecido

    pela

    desgraa.

    Mas

    eu,

    conhecendo

    interiormente

    que no

    era

    um

    hypocrita,

    nem

    um

    homem

    envilecido,

    protes-

    tei

    de

    nunca

    mais

    me

    importarem

    quaesquer

    censuras

    no

    merecidas;

    e desde

    ento

    deliberadamente me re-

    solvi

    a

    ser christo.

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    43/326

    CAPITULO

    IV

    IV.

    Com

    o

    anelar

    do

    tempo

    que

    pude

    conseguir

    per-

    severana

    naquelle

    sancto

    propsito;

    mas

    puz-me

    a

    re-

    volvel-o

    no

    pensamento,

    e

    quasi

    a

    abraal-o

    dentro

    do

    corao,

    desde

    aquella

    primeira

    noite

    de

    captiveiro.

    Pela

    volta

    da

    manha

    achei-me

    mais

    desafogado

    das

    angustias

    que

    me

    opprimiam,

    e

    com

    o

    espirito

    mais

    tranquillo.

    Tornei

    a

    lembrar-me

    de

    meus

    pais

    e

    de

    outras

    pessoas,

    que

    tambm

    me

    eram

    queridas,

    e

    no

    desesperava

    da

    fora

    de

    sua

    alma...

    que

    tanto

    me

    con-

    solava

    a

    doce

    lembrana

    dos

    virtuosos

    sentimentos

    que

    outr'ora

    lhes

    conhecera

    Q*

    Extraordinria

    maravilha ...

    Por

    aue

    ainda

    ha

    pouco

    tam

    grande

    perturbao

    me

    abalava,

    imaginando

    qual

    seria

    a

    delles;

    e

    agora tamanha confiana

    tinha

    na

    sua

    fortaleza

    de

    animo?...

    Seria um prodgio esta

    feliz

    mudana?...

    seria

    um eFeito

    natural do

    maior vi-

    gor

    de

    minha crena em

    Deus?...

    E

    que

    importa

    to-

    mar,

    ou

    no,

    em

    conta

    de

    prodgios

    os benefcios

    reaes

    e sublimes

    da Religio?...

    A

    meia noite, vindo visitar-me dois segundos

    (assim

    chamavam

    os

    carcereiros

    subalternos), deram comigo

    de

    pssima

    catadura.

    Ao

    amanhecer tornaram,

    e

    acha-

    ram-me

    tranquillo

    e

    animado

    de

    cordial

    desenfado.

    Com efleito

    disse

    Tirola,

    o

    senhor,

    esta

    noite,

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    44/326

    10 AS MINHAS PRISES*

    estava com um

    parecer

    de basilisco;

    agora

    j

    me

    no

    parece

    o

    mesmo

    ;

    signal

    de

    que

    no

    (ha

    de

    me

    per-

    doar)

    um

    malfeitor; porque os

    malfeitores

    (eu

    j

    sou

    velho no

    officio, e

    a

    minha

    experincia

    tem

    algum

    peso),

    os malfeitores

    esto

    sempre

    mais furiosos

    no

    segundo

    dia de

    priso

    do

    que no

    primeiro.

    O

    senhor

    toma ta-

    baco?

    No

    uso,

    mas

    no

    desagradeo vossa

    offerta.

    Quanto

    vossa

    observao,

    perdoai-me,

    mas

    no a jul-

    go

    prpria

    de

    homem

    avisado

    como

    me

    pareceis.

    Se

    agora

    de

    manha

    j

    me

    no

    achais

    exterior

    de basilis-

    co, no

    poder ser

    esta

    mudana

    uma

    prova

    de

    nece-

    dade,

    ou de

    facilidade

    em

    me

    illudir,

    antevendo

    como

    chegado

    o

    dia

    de meu

    livramento?

    No o

    duvidara

    eu,

    se

    o

    senhor

    estivesse

    na

    ca-

    da

    por

    outros

    motivos;

    mas por

    estes

    -negroci

    os

    d

    p

    Es-

    tado,

    e

    no

    dia

    de

    hoje...

    nada...

    isso

    tem

    mais

    que

    se

    lhe

    diga;

    e

    o

    senhor

    no

    tam

    simples

    que

    assim

    o

    entenda.

    Ha

    de

    me

    perdoar:

    toma

    outra

    pitada?

    Venha

    ella.

    Mas

    como

    que

    se

    pde

    ter

    cara

    tam

    alegre,

    como

    a

    que

    representais,

    vivendo

    sempre

    entre

    desgraados?

    O

    senhor

    cuidar

    que

    por

    no

    fazer

    caso

    dos

    malles

    alheios:

    o

    por

    que,

    eu

    mesmo

    o no

    sei,

    a fallar

    a

    verdade;

    mas

    o

    que

    lhe

    posso

    asseverar

    ,

    que

    basta

    n*

    tes

    vezes

    me

    faz

    mal

    o

    ver

    chorar; e

    ento

    disfaro

    e

    me

    finjo

    alegre,

    para

    que

    os

    pobres

    presos

    tambm

    se

    riam.

    Bom

    homem

    veio-me

    agora

    um

    pensamento, que

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    45/326

    CAPITULO

    IV. 11

    ainda no

    tive;

    e

    ,

    que se

    pode ter o officio

    de

    car-

    cereiro, e

    ser

    de

    bem

    boa

    laia.

    O

    officio no faz

    nada ao caso ...

    E

    perguntando-me o

    que

    eu appetecia para

    almoo,

    saio. Passados

    alguns minutos

    trouxe-me o

    caf.

    Puz-me

    a

    olhar

    para elle

    com

    um

    sorrir

    ardiloso,

    como

    se

    quizesse

    perguntar-lhe:

    Levar-me-hias

    tu

    um

    escriptinho

    a

    outro

    infeliz como eu, ao meu

    amigo

    Piero

    *

    ?

    E

    elle

    me

    tornou com

    igual

    sorriso,

    como

    se

    quizesse

    responder-me

    :

    No senhor,

    e se vos

    dirigir-

    des

    a outro

    qualquer de meus companheiros,

    que

    se

    aprompte,

    ficai

    certo

    que

    vos

    trahir.

    Se

    eu

    e

    elle

    mutuamente

    nos entendamos,

    no

    o

    affiano

    de certeza.

    verdade

    porm, que

    por

    dez

    ve-

    zes

    estive

    quasi

    a

    pedir-lhe um

    pedao

    de

    papel

    e um

    lpis,

    e que

    me

    no

    atrevi;

    pois

    certo

    no-sei-que

    em

    seus

    olhos

    parecia

    avisar-me,

    que

    me

    no

    fiasse

    em

    nin-

    gum,

    e

    muito

    menos

    em outrem que

    no

    fosse

    elle.

    v.

    Se

    Tirola,

    sua expresso

    de

    bondade,

    no

    reunisse

    olhar

    tam

    malicioso,

    se eu lhe devisra mais

    nobre phy-

    sionomia,

    no

    teria,

    por

    certo,

    resistido

    tentao

    de

    *

    Piero

    Maroncelli,

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    46/326

    12

    AS MINHAS

    PRISES.

    fazer

    delle

    um

    mensageiro;

    e talvez

    um

    bilhete

    meu,

    chegando

    a

    tempo

    ao

    meu

    amigo,

    lhe

    desse

    fora

    de

    reparar

    algum

    descuido;

    e isto

    salvaria

    talvez,

    no

    a

    elle,

    que

    o

    infeliz

    j

    estava

    assas

    denunciado,

    mas

    a

    mim

    e

    a

    muitos outros. Pacincia

    assim

    tinha

    de

    acon-

    tecer.

    Fui

    chamado

    para

    a

    continuao

    do

    meu

    interro-

    gatrio,

    que

    durou todo

    aquelle

    dia

    e

    outros

    que

    se

    lhe

    seguiram,

    sem mais

    intervallo

    do

    que

    o

    das

    co-

    midas.

    Em

    quanto durou o processo, os dias

    para

    mim

    voa-

    ram

    rpidos;

    que

    tamanha

    energia

    de

    espirito

    me

    era

    mister

    para

    responder

    a

    perguntas

    interminveis e

    tam

    diversas;

    para

    reflectir, recolhendo-me

    s

    horas

    da

    co-

    mida

    e noite, em

    tudo quanto

    me

    haviam

    pergun-

    tado;

    no que tinha

    respondido;

    e em

    tudo emfim

    so-

    bre

    que,

    provavelmente,

    teria

    ainda

    de

    ser

    interrogado.

    No

    fim

    da

    primeira

    semana passei

    por

    um

    grande

    desgosto: o

    meu

    pobre amigo

    Piero, desejoso

    tanto

    quanto eu

    o

    estava

    de ver estabelecida

    entre

    ns

    algu-

    ma

    correspondncia,

    enviou-me

    um

    escriptinho; para

    o

    que

    no

    se

    srvio

    dos segundos,

    mas

    sim

    de

    um

    in-

    feliz

    preso,

    que com

    estes vinha fazer algum

    servio

    aos

    nossos quartos:

    era

    um

    homem de sessenta

    a

    setenta

    annos,

    condemnado a

    no

    sei

    quantos

    mezes

    de

    priso.

    Com

    um

    alfinete

    que

    trazia comigo

    piquei um

    dedo

    e

    escrevi

    com

    sangue

    algumas

    regras

    em

    resposta,

    que

    entreguei

    ao

    mensageiro. Teve este a

    mventura

    de ser

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    47/326

    f

    A

    PI

    Tl

    LO

    V.

    3

    espreitado,

    apalpado

    e

    apanhado

    com

    o

    escripto

    em si,

    e

    chibatado,

    segundo

    julgo.

    Senti

    horrveis

    gritos,

    que

    me

    pareceram

    ser do

    des-

    graado,

    e

    depois

    no

    o

    tornei mais a

    ver.

    Sendo de

    novo

    chamado

    a

    perguntas,

    estremeci

    ao

    ver

    que

    me

    appresentavam o

    tal

    bilhete,

    rabiscado

    com

    o

    meu

    sangue.

    Por

    fortuna

    minha

    no

    continha

    elle

    cousa

    alguma

    que

    podesse reputar-se de

    suspeita.

    Tudo

    se

    reduzia

    a

    um

    simples cumprimento.

    Perguntaram-me

    com

    que tinha tirado

    o

    sangue;

    tomaram-me o alfinete,

    e

    puzeram-se

    a

    rir

    por nos

    terem assim burlado.

    Ah ...

    mas

    eu

    no

    me

    ria ...

    A

    mim,

    no

    se

    me

    podia

    tirar

    de diante

    dos

    olhos

    o velho mensageiro De

    bom grado

    comprara

    eu

    o

    seu

    perdo

    custa

    de

    qualquer

    cas-

    tigo

    que me

    infligissem.

    Pois

    quando

    me

    retiniram

    ambos

    os ouvidos

    com aquelles

    gritos,

    que

    suppuz

    se-

    rem

    do

    desgraado?...

    ento

    que

    o

    corao

    me

    cho-

    rou

    de

    lastima

    Debalde

    procurei

    informar-me

    a

    seu

    respeito

    com

    o

    carcereiro

    e

    segundos;

    abanavam

    a

    cabea,

    e diziam:

    Pobre

    homem...

    coitado

    custou-lhe

    bem

    caro

    o tal

    recado;

    j

    se

    no

    torna

    a

    encarregar

    de

    outro:

    agora

    est elle

    mais

    descanado.

    E no

    me davam

    mais

    ex-

    plicao.

    Alludiriam

    elles

    estreita

    priso

    em

    que talvez

    es-

    taria

    o

    desditoso,

    ou

    fallariam

    assim,

    por

    que

    tivesse

    morrido

    na

    occasio

    das

    chibatadas,

    ou

    em

    consequn-

    cia

    das

    mesmas?

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    48/326

    H

    AS

    MINHAS

    PRISES.

    Um

    dia

    pareceo-me

    vel-o da

    parte de

    l do

    porto

    com

    um

    feixe

    de

    lenha

    s costas:

    e

    o

    corao

    me

    pul-

    sou

    tam

    forte,

    como

    se

    eu

    tornasse

    a ver

    um

    irmo

    ca-

    rinhoso.

    vi.

    Quando

    deixei

    de

    ser

    martyrisado

    com

    interrogat-

    rios,

    e

    no

    tinha

    cousa

    alguma

    em

    que

    occupasse

    os

    meus

    tristes

    dias,

    ento

    que senti carregar

    sobre

    mim

    o

    enorme

    peso

    da

    solido.

    Permittio-se-me

    o

    ter uma

    Biblia e o Dante

    ; o

    car-

    cereiro

    offereceo-me

    a

    sua livraria, que

    consistia

    em

    alguns

    romances

    de

    Scuderi,

    de

    Piazzi,

    e em

    outros

    de

    menor

    valia;

    mas tamanha era

    a inquietao

    do

    meu

    espirito,

    que

    ento

    fora

    impossvel

    applicar-me

    a

    qualquer

    leitura. Entretinha-me

    em decorar

    todos

    os

    dias

    um canto

    do Dante; e

    todavia

    este

    exerccio

    era

    tam

    machinal,

    que menos se me occupava

    o pensamento

    com

    aquelles versos

    do que com

    as

    minhas

    desaventuras.

    O

    mesmo

    me

    acontecia

    ao

    ler

    outras

    obras,

    excepto

    s

    vezes

    alguma

    passagem da

    Biblia.

    Este livro divino,

    que

    eu

    sempre

    muito

    prezara, ainda em tempos

    em

    que me

    tive

    por

    incrdulo, era

    agora

    por

    mim

    estu-

    dado

    com

    mais respeito

    do

    que

    nunca; s

    muitas

    ve-

    zes

    succedia,

    que,

    bem

    apezar

    meu,

    o

    lia

    com

    animo

    distrahido,

    e ento

    no

    o comprehendia; mas

    pouco a

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    49/326

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    50/326

    II.

    AS

    MINHAS

    PKISOES.

    me

    deixar

    levar

    de

    distraces,

    descuidando-me

    da

    ida

    do

    culto.

    Esta minha

    atteno

    em

    ter-me

    aturadamente

    na

    presena de

    Deus,

    em

    vez

    de

    fatigar-me

    o

    espirito e

    encher-me

    de

    susto,

    era

    para

    mim

    de

    extremo

    apra-

    zimento.

    O

    no

    deslembrar-me

    nunca, de que

    Deus

    est

    sempre

    cerca de

    ns,

    que

    est dentro

    de ns

    mes-

    mos,

    ou

    antes, que

    ns

    estamos

    nelle,

    insensivelmente

    me ia

    fazendo

    perder

    o horror

    da

    solido,

    e

    c

    no

    meu

    interior

    perguntava

    a mim

    mesmo:

    No

    estou

    eu

    por

    ventura em

    tam boa companhia?...

    Este

    s

    pen-

    samento era bastante

    para

    tranquillizar

    a

    minha

    alma;

    punha-me

    a cantar

    com

    ternura,

    e cheio

    de

    interior

    satisfaco.

    Oh

    sim...

    dizia eu, pois

    no podia vir uma

    febre

    que

    me cortasse

    os

    dias

    da

    vida,

    e me levasse

    sepul-

    tura?

    E

    por

    certo

    que

    a minha

    morte havia

    de

    ser sen-

    tida

    no fundo

    d'alma, e pranteada

    por

    essas pessoas

    que

    amo; mas

    com o

    tempo

    haviam

    de

    ir

    ganhando

    fora

    de se

    resignarem

    com

    minha

    perda. Pois ento...

    porque,

    em vez

    de uma cova,

    pouco

    a pouco

    me

    ha

    de

    ir

    tragando

    uma

    enxovia,

    deverei acreditar que Deus

    os

    no

    alentar

    com a

    mesma

    fora?

    E

    o

    meu

    corao

    erguia por

    elles

    ao

    ceo as

    mais ar-

    dentes

    supplicas,

    supplicas,

    que as

    mais

    das

    vezes eram

    mixturadas

    com

    lagrimas;

    mas

    estas

    minhas

    lagrimas,

    tinham

    certa

    doura.

    E

    eu

    tinha

    inteira f

    em

    que

    Deus

    os

    protegeria,

    a

    elles

    e

    a

    mim.

    E

    no me

    enganei.

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    51/326

    CPITLLO

    VII.

    17

    VII.

    Muito

    mais

    suave

    viver

    em

    liberdade do que

    fer-

    rolhado

    em

    um

    crcere;

    quem

    o

    duvida?

    Bem ...

    pois

    at

    nas

    misrias

    de

    um

    crcere,

    quando

    se

    vive

    entre-

    gue ao

    pensamento,

    que

    Deus

    est

    presente;

    que

    as ale-

    grias

    c

    deste

    mundo

    vo

    de

    fugida;

    que

    o

    verdadeiro

    bem mora

    na

    conscincia,

    e

    no

    em deleitaes terre-

    nas,

    pde

    ainda

    Iograr-se

    algum prazer na vida.

    Em

    menos

    de

    um

    mez

    j

    eu

    tinha deliberado

    tornar

    o

    meu

    destino,

    seno

    de

    todo,

    ao

    menos,

    um

    tanto ou

    quanto

    supportavel. E

    conheci

    que,

    no querendo

    commetter

    a

    aco

    indigna

    de comprar

    a

    impunidade

    custa

    da

    runa

    de

    outrem,

    ou

    me

    havia

    de

    caber

    por

    sorte

    um

    patbulo,

    ou

    um

    dilatado

    captiveiro.

    E

    foroso

    era

    con-

    formar-me.

    Hei

    de

    respirar

    em

    quanto me

    deixarem

    um filego

    de

    vida,

    dizia eu

    comigo;

    e

    se

    me tolhe-

    rem

    os

    ltimos

    alentos,

    farei como

    todos os

    moribun-

    dos,

    quando

    se lhes aproxima a hora do

    passamento:

    morrerei.

    E

    pondo

    todo o

    estudo

    em

    me

    no

    queixar de

    cousa

    alguma, procurava

    dar

    minha

    alma

    todas

    as

    conso-

    laes possveis.

    O

    que

    mais

    me

    recreava

    era

    a

    enume-

    rao

    de

    cadaum

    dos

    bens que tinham

    aformosentado

    meus

    dias:

    um

    bom

    pai,

    uma

    boa

    mi,

    irmos

    e

    irmas

    excellentes,

    estes e aquell'outros

    amigos,

    boa

    educao,

  • 5/19/2018 Mem rias de Silvio Pellico

    52/326

    18

    AS MINHAS

    PRISES,

    o amor

    das

    letras...

    A quem

    sobrou

    mais do

    que

    a

    mim

    feliz

    ventura?

    E

    ainda

    que

    agora

    esta

    ventura

    me

    seja

    amargurada

    pelo

    infortnio,

    por

    que

    o

    no

    hei

    de agra-

    decer

    a Deus? E

    quasi

    sempre

    aquellas

    recordaes me

    enterneciam,

    fazendo-me

    correr

    as

    lagrimas

    por

    um

    in-

    stante;

    mas

    logo

    outra

    vez

    me

    revestia

    de

    animo e de

    alegria.

    Alcancei

    um

    amigo desde

    os primeiros

    dias

    da

    mi-

    nha

    priso: e no

    era o carcereiro, nem

    algum

    dos

    se-

    gundos,

    nem

    dos

    que

    instruam

    o

    meu

    processo, mas

    era

    todavia

    uma

    creatura

    humana.

    Quem

    seria?...

    um

    menino

    surdo-mudo

    de

    cinco

    ou

    seis

    annos...

    O

    pai

    e

    a mi,

    tinha-os a

    lei

    punido

    por ladres.

    O

    infeliz

    or-

    fosinho

    era

    sustentado custa

    do

    Estado

    com

    outras

    muitas crianas

    da

    mesma condio.

    Habitavam todos

    uma casa

    fronteira

    ao

    meu

    crcere,

    e

    a certas horas se

    lhes

    abria

    a

    porta

    para

    poderem

    sair

    a

    tomar

    ar

    no

    pateo.

    O

    surdo

    e mudo

    chegava-se

    para debaixo

    da

    minha

    janella,

    e

    punha-se

    a

    fazer-me assenos com

    meiguice

    e

    ar de

    riso.

    Ento

    eu

    atirava-lhe

    com

    um

    bom

    pedao

    de

    po;

    e

    elle,

    assim

    que

    o

    apanhava, dava

    um

    salto

    de

    contente,

    e

    corria

    a

    repartil-o

    com

    os

    companhei-

    ros;

    depois

    vinha

    comer

    o

    seu

    boccado

    para

    junto

    da

    minha

    janella,

    e com

    o

    sorrir

    de

    seus

    lindos

    olhos

    me

    exprimia

    o

    seu

    agradecimento.

    As

    outras

    crian