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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN
GABRIEL AUGUSTO SOARES
MEMRIAS E SENTIMENTOS EM LPIDES ROMANAS ANTIGAS DE REGIES
ANFITEATRAIS
CURITIBA
2016
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GABRIEL AUGUSTO SOARES
MEMRIAS E SENTIMENTOS EM LPIDES ROMANAS ANTIGAS DE REGIES
ANFITEATRAIS
Monografia apresentada como trabalho de
concluso do curso Histria
Licenciatura e
Bacharelado,(Departamento de Histria,
Setor de Cincias Humanas da
Universidade Federal do Paran)
Orientadora: Renata Senna Garraffoni
CURITIBA
2016
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Agradecimentos
Toda trajetria, seja ela pessoal ou profissional, precisa de um suporte emocional que
apenas pessoas podem nos dar. Tive a sorte de, nos cinco anos que estive estudando Histria
na UFPR, ter contado com o apoio de pessoas muito especiais que fizeram com que essa
minha vontade fosse mais prazerosa. Agradeo inicialmente minha famlia, em especial
minha me e minha av, que me propiciaram, desde cedo, as condies para que eu pudesse
estudar, e me apoiou em todas as minhas escolhas na vida at ento.
Agradeo aos meus colegas de curso, principalmente os do GRR2012 (meu ano de
entrada), que foram uma turma sempre alegre e que diminuram o fardo dos momentos
difceis do curso; como falei, nenhuma trajetria se faz sozinha, e vocs foram importantes
no s como colegas de provas, atividades e trabalhos, mas tambm como pessoas e amigos
que me ensinaram muitas coisas e contriburam para que eu crescesse como pessoa. Poderia
dizer aqui o que e o quanto aprendi com cada um de vocs, pois todos me ensinaram algo,
mas me limito a agradecer por ter tido a chance de conhec-los.
Destaco agora aqui melhores amigos da faculdade, o chamado beco, sempre me
incentivando e lidando com meu gnio difcil em todos os momentos: Kelleny, que quase
que um outro eu, com mapa astral e forma de ver a vida muito parecido; Vinicius, que com
seu jeito nico de ser e sempre compreensivo comigo, se tornou meu amigo mais especial;
Ana Paula, com quem sempre tive conversas muito importantes para meu autoconhecimento;
e Yasmin, que escolheu sair do curso no primeiro ano, mas uma pessoa doce que jamais vou
esquecer e que colaborou muito pros meus primeiros passos na universidade. Vocs foram o
melhor grupo de amigos que eu fiz na vida! E claro, outras pessoas do curso que no do meu
ano tambm foram essenciais nessa trajetria, como a Yonara, uma pessoa incrvel que a
faculdade me deu a sorte de deixar conhecer, admirar e conviver. Agradeo tambm a todas as
pessoas e professores que sempre foram legais comigo, vocs sabem quem so e o quanto
considero vocs, so muito especiais.
Por fim, e no menos importante, agradeo minha orientadora, a professora Renata,
sempre prestativa e atenciosa. Mais do que orientadora, a professora foi fundamental para a
produo da monografia com suas dicas, ajudas e correes; agradeo por toda a sua
orientao e incentivo, uma grande profissional.
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RESUMO
A presente pesquisa tem como objetivo um estudo de caso de lpides romanas encontradas em
regies anfiteatrais, feitas em pedra e escritas em latim. As lpides so referentes tanto a
membros da elite local e organizadora dos jogos anfiteatrais quanto aos prprios gladiadores
que deles participavam. O foco dado na anlise da construo de memria dos sujeitos
histricos presentes nessa cultura material e, tambm, os sentimentos entre familiares, que
faz-se presente nos epitfios, na maioria dos casos custeados pela famlia do enterrado. Assim,
a pesquisa busca um olhar mais plural para a sociedade romana antiga, em dilogo
interdisciplinar com a Arqueologia Clssica, ressaltando a importncia das fontes epigrficas
para a historiografia. Essa monografia avana, portanto, no sentido de ressaltar a importncia
de retratar os espetculos anfiteatrais com um vis cultural e social, levando em considerao
no o que as fontes oficiais (repletas de julgamentos morais de uma elite) narraram sobre tais
eventos histricos e seus personagens tendo como objetivo, em contraposio, demonstrar que
os personagens envolvidos nos jogos eram dotados de vivncias e relaes interpessoais.
Palavras-chave: Histria Antiga; Histria da Famlia; Epigrafia.
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Sumrio
1 Introduo..............................................................................................................6
2 Os jogos anfiteatrais e as camadas populares: novas abordagens...........................8
2.1 Histria Antiga e Arqueologia Clssica: um dilogo necessrio........................................10
2.2 Repensando os conceitos de famlia e infncia na Roma Antiga.......................................14
2.3 O conceito de escravido na Roma Antiga: repensando os modelos econmicos..............20
3 A epigrafia na construo de modelos
interpretativos....................................................26
3.1 As fontes epigrficas e sua relao com a historiografia...................................................26
3.2 Epigrafia funerria: as lpides e a busca por modelos interpretativos................................28
3.3 Construo de uma metodologia de anlise dos epitfios: memrias e famlias................31
3.4 Catlogo das lpides contempladas pela pesquisa.............................................................33
4 Memrias, sentimentos e famlias nos epitfios das lpides...........................................44
4.1 Os indivduos nas memrias construdas...........................................................................45
4.2 Escravido e liberdade nos epitfios...................................................................................49
4.3 Sentimentos e relaes familiares nas lpides....................................................................52
5. Consideraes finais........................................................................................................57
6. Referncias bibliogrficas...............................................................................................60
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1. Introduo
Essa monografia busca compreender e analisar a construo de memria feita por
agentes histricos que por muito tempo foram marginalizados na historiografia, como os
gladiadores e os escravos. Assim, o processo histrico dos jogos anfiteatrais romanos passa a
ser analisado por um vis cultural, que prioriza a subjetividade destes agentes e, sobretudo, as
relaes familiares em que eles estavam inseridos, tendo em mente que as estruturas
familiares so construes sociais, que variam de acordo com o espao e o tempo e no
podem ser interpretadas como estruturas fechadas e anacrnicas; logo, foi preciso estudar o
que era a famlia na Antiguidade romana para desenvolver o trabalho. Ainda nesse sentido,
procurei problematizar os espetculos anfiteatrais tomando como base a anlise, a partir de
uma tica plural, de memrias construdas e de sentimentalidade em torno das relaes
familiares dos agentes histricos envolvidos nesse processo. A problemtica da pesquisa
busca, portanto, uma perspectiva cultural, revendo, assim, anlises dos espetculos anfiteatrais
que privilegiem apenas uma histria poltica tradicional.
Os primeiros passos foram dados no edital de iniciao de cientfica da UFPR nos
anos de 2014/2015. O plano de trabalho inicial era estudar a infncia no mundo romano
antigo, mas pela dificuldade de acesso s fontes para o andamento da pesquisa, o foco foi
mudado, no retratando apenas as crianas, mas ampliando o tema para as relaes familiares
romanas antigas. Assim, o objetivo passou a ser o estudo de caso de lpides romanas
encontradas em regies anfiteatrais, realizando uma anlise da construo de memria dos
sujeitos histricos presentes nessa cultura material e, tambm, os sentimentos entre familiares
presente nos epitfios, visto que, na maioria dos casos, os epitfios foram custeados pela
famlia do enterrado. A presente monografia um aprofundamento da pesquisa voluntria de
IC , que foi realizada durante dois anos (2014-2016); destaco a importncia da IC para a
construo dessa pesquisa pois, em reunies com a orientadora, foi possvel delimitar a
escolha de trabalhar como essas fontes, que se tratam de um conjunto de lpides romanas
antigas presentes em regies anfiteatrais, feitas em pedra e escritas em latim.
Essa monografia repensa e discute anlises sobre os personagens envolvidos nos
espetculos anfiteatrais que privilegiem apenas uma histria poltica tradicional,
possibilitando, assim, a discusso de aspectos culturais e sociais da Roma Antiga, como:
relaes familiares, sentimentos afetivos, construo e seleo de memria, e estudo do status
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social presente (cidados, gladiadores/escravos e libertos, por exemplo). Nesta tica de
analisar os indivduos com base em suas subjetividades e evitando fontes tradicionais, tornou-
se possvel a desconstruo de esteretipos que a historiografia da antiguidade reforou ao
tomar como base apenas as fontes oriundas apenas de elites dominantes.
Aliada a essa vontade de estudar a subjetividade de agentes histricos, indaga-me
tambm a percepo de sentimentos na Histria; memrias e sentimentos podem ser
denotados pelas lpides por meio de uma construo seletiva de memria entre maridos,
esposas, pais, mes e filhos. Tal construo, mesmo que no seja apenas afetiva ou emocional,
pode possibilitar esse campo de anlise nas relaes familiares, bem como levantar uma srie
de questionamentos sobre relacionamentos na sociedade romana antiga. Como essa memria
ps-morte construda nas lpides e com qual possvel finalidade? Quais so as recorrncias e
as dissidncias nas escritas dos epitfios? Como a carga de sentimentalidade comumente
aparece neles, e quais so as relaes sociais presentes nas fontes? Diante de tais perguntas,
surgiu o interesse pela famlia e pelas relaes interpessoais na sociedade romana antiga,
temas que vem sendo pertinentes a Histria Cultural nas ltimas dcadas, e que considero
essenciais para a compreenso subjetiva e cotidiana dos sujeitos histricos que a Histria
Antiga pretende abordar.
No primeiro captulo, abordarei um breve balano historiogrfico com as principais
leituras sobre os temas pertinentes pesquisa (Arqueologia Clssica, famlia,
escravido/liberdade); no segundo, tratarei da relevncia da epigrafia (sobretudo a funerria)
para a Histria e de que modo ela colabora para a construo de interpretaes do passado,
apresentando, em seguida, a metodologia adotada para a anlise das lpides; por fim, no
terceiro captulo, analisarei os epitfios em suas especificidades, discutindo o contedo dos
mesmos.
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2. Os jogos anfiteatrais e as camadas populares: novas abordagens
A Arqueologia Clssica, como ser argumentado, trata-se de uma rea que nos permite
uma aproximao com o cotidiano dos agentes sociais da Antiguidade, e no somente retrat-
los com base na viso de uma elite dominante. Nisso surge a ideia de estudar as camadas
populares envoltas nos jogos anfiteatrais por meio de epigrafia funerria, levando em conta
trs eixos: memria, sentimentos e relaes familiares. A elite dominante, por sua vez,
tambm passa a ser entendida por outro prisma, o das relaes familiares e o da constituio
de uma memria seletiva, atingindo o objetivo de compreender a subjetividade das suas
relaes interpessoais.
Para se estudar as camadas populares na Antiguidade romana, preciso se ater ao
modo como a historiografia a retratou ao longo dos sculos. Vises como as de Mommsen e
Friedlnder retrataram, no sculo XIX, os marginalizados da sociedade romana com uma
viso extremamente moralista, baseada em julgamentos morais de seu presente (Garraffoni,
2008). Ento, a conotao sobre membros da camada popular era extremamente negativa e
opressora, repleta de preconceitos, numa viso capitalista que valorizava o trabalho e criticava
o cio; a subjetividade desses sujeitos era renegada, enquadrando-os como um grupo
desprovido de moral e at mesmo de relevncia social.
Segundo Garraffoni, somente ao longo da dcada de 1960, com o surgimento da
desconstruo de conceitos raciais e o incio mais acentuado de movimentos por direitos
sociais (no qual se inserem mulheres, homossexuais e negros), inicia-se uma espcie de
tomada de conscincia que viria a influenciar os estudos classicistas, repensando essas
camadas populares e marginalizadas por outro vis:
Neste sentido, os anos de 1960 representaram um marco importante na historiografia
e seus ecos foram sentidos entre os classicistas. E neste momento que estudos sobre
a escravatura ganham foras, assim como se constitui um longo debate se haveria
classe ou estamento no mundo romano. Alm disso, influencia marxista, a busca por
uma histria vista de baixo trouxe a cena os conflitos sociais renovando os estudos
sobre economia e a sociedade romana, tornando os membros das camadas populares
sujeitos de sua histria. Assim, escravos, libertos, cidados pobres, gladiadores,
bandidos, prostitutas, velhos, crianas passaram a constituir parte das interpretaes
no como massa manipulada, mas como sujeitos capazes de expressar suas vontades,
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explicitando os conflitos que eram silenciados em modelos interpretativos mais
tradicionais. (GARRAFFONI, 2008, pp. 174-175)
Essa concepo de anlise das camadas populares foca, portanto, nos prprios
registros e memrias deixados ao longo de suas vivncias em sociedade; disto vem a
importncia das fontes arqueolgicas e, consequentemente, do dilogo entre Histria e
Arqueologia Clssica para a busca de modelos interpretativos plurais nos estudos classicistas.
Visando atingir esse objetivo de desconstruir uma concepo tradicional e que pouco
menciona acerca da subjetividade de agentes histricos sobretudo das camadas populares
envoltos nos jogos anfiteatrais, uma das principais influncias da pesquisa est na historiadora
Garraffoni (2004), que afirma que os historiadores da Antiguidade necessitam produzir
interpretaes de cotidiano e de dia a dia que sejam mais dinmicas. Esse dinamismo se
encontra na inteno de valorizarmos a pluralidade dos sujeitos, para questionar as
concepes e estudos normatizadores dos indivduos.
A ideia de po e circo em seus diversos contextos interpretativos ou o prprio
conceito de evergetismo proporcionou, portanto, uma valorizao de um nico
aspecto dos munera, isto , o poltico, em detrimento de outras possibilidades. Uma
srie de imagens acerca deste fenmeno particular da cultura romana foi sendo
construda e transformada, enquanto outras esquecidas. Falou-se de ociosidade,
parasitismo do Estado, violncia, prazeres profanos e nefastos, politizao das
arenas, mas pouco se comentou sobre o cotidiano destes homens e mulheres que
combateram nas arenas romanas, o que nos leva a pensar nos limites desta linha de
interpretao que aprisiona a diversidade dos sujeitos impedindo que sejam agentes
de sua Histria. (GARRAFFONI, 2005, p. 75)
Essa abordagem proposta por Garraffoni sugere uma desconstruo dos jogos
anfiteatrais pautados na tradicional ideia da plebe ociosa e ansiosa por diverso, bem como
de compreend-los apenas como uma demonstrao do poder poltico do imperador. Essa
monografia avana no sentido de ressaltar a importncia de retratar os espetculos anfiteatrais
com um vis cultural e social, levando em considerao no o que as fontes oficiais (repletas
de julgamentos morais de uma elite) narraram sobre tais eventos histricos e seus personagens
(como gladiadores e escravos), mas sim entender que os personagens envolvidos nos jogos
eram dotados de vivncia e agncia histrica, no sendo definidos somente pelas suas relaes
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com os anfiteatros, seja em sua organizao (no caso da elite) ou em suas experincias de
combate (no caso dos gladiadores).
A escolha para destacar suas vivncias para alm dos jogos , no caso da presente
pesquisa monogrfica, o estudo de suas relaes familiares e memrias afetivas. A ideia de
retratar os jogos anfiteatrais com base nas camadas populares desconstri o exposto por Paul
Veyne (1976), em O Po e O Circo, em que o historiador afirma que os espetculos nos
anfiteatros retratavam uma disputa poltica entre povo e imperador. Os jogos funcionavam,
assim, como um evergetismo, em que as elites locais comandavam uma poltica de po e circo:
os espetculos, a diverso e doaes eram ofertados plebe como uma maneira de angariar
votos e evitar uma resistncia poltica:
Nas [...] cidades helensticas, eles [as elites locais] consagravam cidade o seu
tempo e o seu dinheiro, ofereciam-lhe [aos pobres] edifcios, punham a sua
influncia a servio dela; em Roma, davam plebe espetculos e festins, como
convinha a chefes paternais [...] (VEYNE, 1984, p. 245).
A anlise de Paul Veyne, embora inove ao reconhecer o posicionamento do povo, no
privilegiou o cotidiano e a subjetividade dos agentes envolvidos nos jogos anfiteatrais. Veyne,
ento, no avana no sentido de compreender de que forma as pessoas integrantes da chamada
plebe vivenciavam e sentiam aqueles espetculos, no estudando registros histricos
cotidianos e pertinentes ao universo dos membros das camadas populares.
Quanto ao estudo das epigrafias (grafites, pinturas paretais e lpides) de regies
anfiteatrais, este confere, segundo Garraffoni (2005), uma individualidade aos gladiadores que
participavam dos espetculos, visto que nos permitem compreend-los enquanto pessoas, pois
na construo dessa memria esto presentes suas relaes afetivas (mulheres, filhos, parentes,
admiradores e/ou amigos). Nesse processo, o dilogo entre Arqueologia e Histria, a ser
comentado no prximo tpico, faz-se essencial para a construo de modelos interpretativos
do passado.
2.1 Histria Antiga e Arqueologia Clssica: um dilogo necessrio
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Ao longo do sculo XIX, a predominante escola metdica, influenciada pelas ideias de
Ranke acerca da importncia do fato, da neutralidade e da Histria Poltica, ignorou a maior
parte das fontes consideradas como testemunhos involuntrios, possibilitadoras de uma
Histria Cultural. Nessa perspectiva, documentos oficiais (cartas, decretos, manuscritos),
produzidos pelas elites que estavam no poder, foram tomados como os nicos realmente
vlidos para uma produo historiogrfica consistente. O papel da Arqueologia nos estudos do
mundo antigo, nesse contexto do dilogo entre a escola metdica com os estudos clssicos, foi
a de uma disciplina auxiliar da Histria; logo, no era produtora do conhecimento histrico,
mas sim interpretada como uma ferramenta.
A partir de 1920, crticas fundamentais para uma mudana na conscincia da
epistemologia histrica foram realizadas. Trata-se principalmente das ideias da Escola dos
Annales, em que se destacaram nomes como Lucien Febvre e Marc Bloch, contrrios a essa
concepo de Histria da escola metdica. Os Annales criticaram fortemente o privilgio
dado aos acontecimentos, aos fatos polticos e a recusa de arriscar uma interpretao das
fontes. Essa ampliao no modo de se pensar a operao historiogrfica aberta pelos Annales
trouxe a busca por outros documentos e outras formas mais subjetivas de Histria, que
fugissem quela histria poltica tradicional dos metdicos. Assim, buscava-se uma Histria
econmica, social e/ou cultural; as fontes arqueolgicas, dentre outras, ganham importncia
ao longo do sculo XX, principalmente com a emergncia da Nova Histria Cultural e da
nova histria social inglesa.
Quanto s origens da Arqueologia Clssica, encontram-se no Renascimento, com a
coleta de obras de arte gregas e romanas. De acordo com Carlan (2007), essa disciplina estava,
no incio, muito associada Histria da Arte; posteriormente, a rea se consolidou por meio
de estudos tipolgicos, inspirados em modelos filolgicos. Se por muito tempo a Arqueologia
Clssica foi considerada uma rea conservadora e legitimadora de discursos de dominao
racial, nas ltimas dcadas, como argumenta Carlan, ela tem sido pautada em uma srie de
questes e problemticas sobre o mundo antigo, repensando seu papel social e dialogando
com as teorias ps-modernas. Esta tomada de conscincia dialoga justamente com novas
concepes e preocupaes dos estudos clssicos e dos historiadores antigos que buscam
desconstruir os discursos tradicionais da Antiguidade Clssica, pautados por muito tempo nos
documentos oficiais e ignorando uma sorte de documentaes involuntrias e de origens
populares.
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preciso entender de que modo a pesquisa se utiliza desse dilogo interdisciplinar
entre Arqueologia Clssica e Histria. No devemos considerar a Arqueologia como uma
mera ferramenta auxiliar da Histria; na realidade, trata-se de um campo cientfico prprio,
com sua prpria metodologia e histrico, mas com a habilidade de um proveitoso dilogo
interdisciplinar com a historiografia:
A dificuldade de estabelecer um dilogo entre Arqueologia e Histria, embora tenha
suas particularidades no territrio nacional, no uma exclusividade dos estudos
clssicos no Brasil. Ray Laurence (2005), em um recente estudo, afirma que na Gr-
Bretanha as pesquisas nestes dois campos correm quase em paralelo e nem sempre
os profissionais concordam com o dilogo, procurando reafirmar a separao entre
ambas as disciplinas. Neste contexto, possvel afirmar que a separao entre as
disciplinas mais uma postura terico-metodolgica que uma dificuldade de acesso
s fontes, pois implica em discutir a percepo de Histria e Arqueologia na qual o
classicista formado e, tambm, na sua postura diante da possibilidade ou no de
concretizar este dilogo. (GARRAFFONI & FUNARI, 2010, p. 11)
Nessa pesquisa, concorda-se e se incentiva o dilogo entre Histria e Arqueologia para
a compreenso de conceitos e processos histricos. A arqueologia no deve servir para
reforar alguma tentativa de veracidade sobre o passado, mas sim como um modo de abrir, ao
historiador, um leque de possibilidades de estudos de caso:
Num trabalho no qual a arqueologia no cumpre o papel de confirmar os textos, as
hipteses de desdobrar as questes so maiores, abrindo caminhos para se construir
o dialogo almejado por tantos estudiosos. A construo das pontes, por mais que
seja um trabalho rduo, abre, por um lado, espao para novas abordagens,
expandindo as noes sobre a sociedade romana como um todo e das camadas
populares em especfico e, por outro, propicia uma anlise sistemtica dos mtodos
de cada disciplina, explicitando as relaes de poder inerentes a elas.
(GARRAFFONI, 2008, p. 177)
Por meio do dilogo com os trabalhos arqueolgicos, o historiador pode atingir as
camadas populares de sociedades, e aproximar-se das suas realidades mais cotidianas. As
fontes arqueolgicas so uma alternativa s tidas como oficiais/estatais, que retratam a
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viso dos grupos dominantes sobre os grupos populares, ou mesmo s literrias, que tambm
so repletas de julgamentos morais e satricos. claro que, pela anlise dessas outras fontes,
tambm podemos desconstruir e problematizar as vises construdas ao longo da
historiografia; tudo depende do modelo e do olhar que utilizamos para interpret-las.
Assim como a Histria, a Arqueologia Clssica tambm se trata com um discurso
subjetivo, e que pode variar de acordo com a inteno e a metodologia de cada pesquisador,
ou dos interesses polticos de grupos dominantes. Os trabalhos dessas reas tratam-se,
portanto, de modelos interpretativos construdos sobre o passado:
O que temos em vista desvendar o campo de possibilidades e, no, as relaes de
determinao. O importante ter em mente que a construo do fato histrico e o
trabalho com ele devem se dar de forma a dele extrair os mais diversos sentidos.
Sem dvida, neste processo de construo est embutido um dilogo entre o
historiador e o conjunto de valores da poca que objeto de estudo. (CARLAN,
2007, p. 56)
Por isso, importante pontuar as relaes entre a Arqueologia Clssica e a construo
de discursos histricos sobre o mundo romano antigo, a fim de concluir qual o
posicionamento da pesquisa ao produzir esse dilogo entre Histria e Arqueologia. A
Arqueologia Clssica, ao longo dos sculos XIX e XX, esteve fortemente vinculada aos
interesses de legitimaes imperialistas, como afirma Hingley (1996). Com o declnio do
Imprio Britnico, os estudos clssicos sobre a Antiguidade romana foram atualizados,
destacando o papel da elite local/nativa nos processos de recepo cultural da dominao
romana.
Mas no se pode negar que os Estudos Clssicos tm consigo o estigma de
conservadorismo, por terem sustentado, na modernidade, discursos de poder violentos,
opressivos e repletos de concepes moralizantes e racistas sobre as camadas populares.,
como o imperialista e o fascista. Essa conexo ideolgica que existiu deve no s ser
assumida pelos historiadores atuais como tambm superada, bem como seus resqucios
metodolgicos e empricos. Devemos ampliar teoricamente a viso sobre a sociedade romana,
e questionar o dado considerado concreto de quem so os romanos, e o que romano, dando
margem a muitas possibilidades de estudo e pesquisa sobre a sociedade romana antiga. Nesse
objetivo, o dilogo entre Arqueologia Clssica e Histria Antiga se faz fundamental:
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[] acreditamos ser fundamental destacar que os trabalhos de Hingley, assim como
de outros estudiosos ps-coloniais, apresentam a possibilidade da construo de
uma postura crtica, baseada na interdisciplinaridade e na exposio dos avanos e
limites das abordagens constitudas. Essa metodologia permite aos estudiosos uma
reflexo crtica sobre a relao entre seu presente e o passado a ser interpretado,
refresca as possibilidades de entendimento do mundo romano, to marcado pela
homogeneidade e interpretaes normativas, e deixa aberto alguns caminhos para
novas pesquisas sobre os marginalizados e os conflitos, praticamente esquecidos
pelas perspectivas mais tradicionais de conhecimento. [] Assim, um dilogo
profcuo [da Arqueologia] com a Histria fundamental no s para rever conceitos
e desafiar as meta-narrativas, mas tambm para pensar outras formas de
sensibilidades e de vises de mundo. (FUNARI & GARRAFFONI, 2010, pp. 13-14)
Ou seja, os estudos ps-coloniais foram e so fundamentais para a construo de
modelos interpretativos que descentrem o olhar do historiador dos discursos produzidos pelas
elites. Esse olhar descentrado o que nos permite atingir camadas mais populares da
sociedade antiga, dando voz a estes sujeitos na produo historiogrfica. A Arquelogia
Clssica, ao dialogar com a Histria Antiga, apresenta, ao historiador, novas possibilidades de
anlise para uma histria cultural e social da Antiguidade romana que desconstrua, repense e
discuta as noes e conceitos criados pelos discursos da histria poltica tradicional. A seguir,
discorrerei sobre de que foma os conceitos presentes na monografia sero repensados na
abordagem efetuada.
2.2 Repensando os conceitos de famlia e infncia na Roma Antiga
Como citado, as camadas populares e as elites organizadoras dos jogos anfiteatrais
sero analisados, no presente trabalho, com base na construo de memria pstuma em torno
das suas relaes familiares. Para se produzir historiografia sobre famlia, em qualquer
perodo histrico, necessrio termos em mente que o conceito de famlia se trata de uma
construo social, variando de acordo com o espao e o tempo; relaes familiares no podem,
portanto, ser interpretadas como estruturas fechadas e anacrnicas, ou julgadas do ponto de
vista moral de nossa sociedade presente. Assim, ao trabalharmos com estruturas familiares no
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mundo romano antigo por meio das fontes, preciso tomar o cuidado de evitar anacronismos,
e tambm de entender que vivncias familiares so dinmicas. equivocado generalizar ou
pretender reproduzir o que era viver em famlia no mundo romano antigo, mas possvel
tentar compreender a diversidade lgica das etapas e estruturas da vida familiar, como
estgios de idade (infncia/adolescncia/vida adulta), condies sociais variveis e relaes de
paternidade, maternidade, matrimoniais, entre outras.
Atualmente, vivemos uma concepo da famlia, e do que viver em famlia
pensando em categorias como paternidade, maternidade e infncia , que comeou a se
esboar sobretudo na Europa do sculo XIX, como demonstra Philippe Aris (1960) em
Histria Social da Criana e da Famlia. Inspirando-se em Aris, pode-se afirmar que, ao se
estudar a famlia romana antiga, estamos analisando uma conjuntura cultural distinta da nossa
no apenas temporalmente; ou seja, o historiador da famlia, no geral, deve estar atento para
as particularidades e singularidades do momento histrico a que se debrua, e compreender
que a famlia como conhecemos uma construo cultural dos ltimos sculos.
Porm, essa anlise de Aris enxerga a famlia romana antiga apenas pelo prisma da
violncia, da indiferena, da violncia e do abuso, principalmente s crianas e mulheres. Um
dos grandes critrios de anlise para tal argumentao construda pelo autor, e que inspirou
uma gerao de historiadores, foi a alta mortalidade dos indivduos desse perodo, sobretudo
infantil, e a relativa falta de representao de crianas na arte. Os direitos de violncia
garantidos culturalmente e juridicamente ao pai, e tambm de abandonar ou vender seus filhos
recm-nascidos como escravos, tambm fortaleceram esse tipo de discurso na historiografia,
no qual a criana e as mulheres eram tidas como um pequeno adulto (e inferiores) por seus
familiares.
claro que, por aquela sociedade possuir uma lgica familiar distinta da nossa, no
estamos lidando com o sentimento de infncia e de maternidade/paternidade que foi
construdo aps a modernidade e que vivenciamos no presente. Mas, como ser demonstrado,
havia ali relaes, sentimentos e o descaso estava longe de ser um fator definidor, ou a
principal caracterstica; mesmo em relao ao direito do pater familias sobre a vida e a morte
de sua prole, por exemplo, era necessrio que o grupo familiar concordasse com seu ato para
que ele fosse legtimo, o que demonstra a importncia da famlia e no a reduz s mos de um
homem apenas.
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Para desconstruir essa viso do descaso e da violncia como sendo o marco da famlia
na Antiguidade, destaco como referncia os historiadores Mary Harlow e Ray Laurence
(2010), cujo conceito de ciclo da vida importante para a compreenso da estrutura familiar
romana. Isto se explica pelo fato de que o conceito de ciclo da vida procura abordar os
estgios da vida dos cidados romanos, de seu nascimento at sua morte, e permite uma
viso menos generalizante do que a de Aris sobre a vida romana em famlia. Por exemplo:
enquanto para Aris a infncia no era um estgio da vida naquela sociedade (as crianas j
podiam, de certo modo, serem compreendidas como pequenos adultos), para Harlow e
Laurence a infncia, ao contrrio, era um estgio do ciclo da vida separado da vida adulta; isto
evidenciado pelo estudo de fontes epigrficas e construtivas de memria de pais para filhos,
onde se inserem as lpides que a pesquisa contempla.
Esta perspectiva, influncia no campo de estudos de famlia e ciclo da vida da
Antiguidade romana, assume que a infncia no era uma etapa indiferente, invisvel ou
inexistente na vida familiar romana, pois evidencia cdigos e regras prprios para esta fase na
vida dos cidados, sejam elas comportamentais, rituais, pessoais ou emocionais. A infncia
durava para os romanos do seu nascimento at prximo de sua puberdade (cerca de 12 anos
para meninas e 14 para meninos), mas Harlow e Laurence ressaltam que esse critrio era
muito mais uma construo social de costume do que um fator biolgico. Disso, pode-se
concluir, ainda sob essa perspectiva, que havia sim uma percepo do que ser criana na
Roma Antiga; um claro momento divisrio no crescimento dos indivduos que o distingue de
estgios de vida posteriores. Se h tamanha preocupao dos pais em relao s expectativas
de gnero e de idade de seus filhos e filhas enquanto crianas, evidentemente elas no podem
ser vistas como um objeto de descaso at que crescessem.
Ter em mente essa concepo de infncia na Antiguidade romana e afirmar que as
crianas faziam sim parte da vida em famlia importante para repensarmos as relaes
familiares, paternais e maternais, principalmente do ponto de vista da existncia dos
sentimentos afetivos, como prope discutir esse trabalho monogrfico. Sobre a importncia
das crianas e dos filhos nas famlias, os autores concluem:
Crianas eram desejadas pelas famlias romanas e, quando nascidas e aceitas,
cresciam com cuidado e ateno. A dificuldade das interpretaes modernas o
contexto cultural e social em que as crianas nasciam, e as expectativas sociais
assumidas por elas. A cruz do debate da indiferena mentiu em duas afirmaes
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[a primeira] que crianas nascidas em tempos de alta mortalidade infantil no
recebiam investimento emocional de seus pais; [a segunda] que a sociedade s
valorizava as crianas quando essas atingissem a vida adulta. (HARLOW &
LAURENCE, 2010, p.52)1
No podemos, ento, lidar apenas com as percepes e estatsticas econmicas ou
demogrficas para discutir relaes familiares na Antiguidade romana, tampouco concluir que
o afeto era algo inexistente; a desconstruo da ideia de indiferena e violncia precisa ser
realizada, pois enxerga essa sociedade de maneira muito esttica.
No discurso que reduz a famlia romana violncia ou opresso, evidentemente a
mulher tambm acaba sendo apagada, pois interpretada do ponto de vista de submisso e
procriao. Nesta lgica, uma criana do sexo feminino cresceria at a idade do casamento
(12 anos) como se esta fosse apenas sua funo, desprovida da sentimentalidade ou de outras
preocupaes dos pais; novamente, predomina uma viso econmica sobre famlias na
Antiguidade; o casamento visto meramente como uma estratgia.
Esta outra generalizao que a pesquisa desconstri ao pensarmos essas expectativas
de gnero com base no conceito de ciclo da vida. Se as fontes jurdicas nos do a impresso
sobre a opresso s mulheres, a sensibilidade e a sentimentalidade em torno das mulheres na
vida em famlia (sejam elas filhas, mes ou esposas) se fazem presentes nas memrias
construdas pelas prprias e por seus familiares, o que nos permite repensar a agncia
feminina nessa sociedade.
No correto ignorar e tampouco reduzir as ms condies jurdicas s mulheres e
crianas nesse perodo; mas podemos realizar abordagens para alm dessas fontes tradicionais,
pois elas no podem determinar e significar a vida cotidiana desses indivduos, e nem definem
o que eram as relaes familiares, pois estas eram dotadas tambm de sentimentos, paixes e
afetos. importante considerarmos que as fontes jurdicas e oficiais foram escritas por
homens adultos, pertencentes a uma camada da elite; logo, trazem-nos a viso de um grupo
dominante sobre esses sujeitos sociais, pois sempre um homem (de posio autoritria e
privilegiada) escrevendo sobre mulheres e sobre crianas. Acreditar que, por modelos
1 Children were desired by Roman families and once born and accepted were raised with care and attention.
The difficulty for modern interpreters is the cultural/social context into which children were born and the
social expectations assumed of them. The crux of the indifference debate lies in two assumptions that
children born in a time of high infant mortality were not invested in emotionally by their parents and that a
society which practised exposure had little time for young children and only valued them once they had
achieved childhood. Ressalto que, daqui a diante, todas as tradues so de minha autoria.
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jurdicos impostos, todas as mulheres eram meros objetos de procriao na sociedade uma
generalizao que comete o grave erro de silenci-las na historiografia. Se buscarmos fontes
que deem voz a mulheres e crianas, conseguimos compreend-las na vida em famlia com
um outro olhar.
A despeito da autoridade social do pater famlias e da necessidade de arranjos
matrimoniais como ascenso social, registros histricos demonstram cargas de afeto e
sentimento entre maridos e esposas, como no exemplo do elogio fnebre Tria:
Um elogio fnebre a uma senhora, datada do ano 2 a.C., demonstra quais os pontos
destacados em uma boa rainha do lar: "Suas qualidades domsticas, virtude,
docilidade, gentileza, bom carter, dedicao ao tric, piedade sem superstio,
discrio nas roupas e na maquiagem, por que relembr-las? Por que falar do seu
carinho e devoo aos familiares, j que voc tratava to bem meus pais quanto os
seus.." (Elogio fnebre a Tria, 5-25). (FUNARI, 1994)
Ainda que este elogio esteja focado nas qualidades domsticas de Tria e deva ser
problematizado nesse aspecto (claramente uma viso masculina sobre a mulher), a
importncia desse trecho que demonstra uma alternativa aos discursos dominantes sobre a
opresso absoluta nas relaes matrimoniais e parentais, visto que h, na construo de uma
memria afetiva sobre a cnjuge, um discurso de carinho e admirao.
Discorrendo sobre a estrutura familiar romana, preciso entender que a compreenso
lgica dessa estrutura, no perodo, no era a do mesmo modelo nuclear que vivemos.
Pensando de modo mais amplo, o conceito de famlia na Antiguidade Romana baseava-se na
ideia de famlia estendida, ou seja, a famlia era compreendida como uma grande casa, na
qual todos os parentes possuam seu papel:
A sociedade romana estruturava-se em torno da famlia, termo que compreendia no
apenas pai, me e filhos, mas inclua os escravos, a casa, os animais e todos os bens
sob o controle do chefe da famlia: o pai. Todo o parentesco estruturava-se na
oposio entre pai e me e seus parentes. Os parentes do pai, que definia a
identidade dos filhos e estabelecia os vnculos de hierarquia, nome, culto, residncia,
eram severos. Os tios e avs paternos eram distantes e exigentes. Os parentes do
lado materno, sem vinculaes institucionais j que as crianas no herdavam bens,
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nome, culto e residncia da me, estabeleciam relaes muito mais ternas com seus
afilhados, netos e sobrinhos. (Funari, 1994)
Havia duas principais formas de parentesco na famlia romana: o direto (linha reta, ou
seja, ascendente e descendente) ou colateral (em graus). Tambm o chamado parentesco de
afinidade, que ligava o cnjuge aos parentes de seu par. Segundo Leda de Pinho (2002), as
relaes familiares no eram somente hierrquicas por uma disposio jurdica; estavam
permeadas por uma forte conotao religiosa, baseada na importncia de uma descendncia
slida e garantida. Era essencial para qualquer famlia que houvesse uma descendncia capaz
de se manter socialmente, o que pode nos ajudar a compreender, para alm de um mero ato de
violncia ou de situao econmica, o abandono de filhos incapazes, estreis ou infrteis,
assim como o incentivo em um sistema de adoes para se ter mais filhos, ato comum na
Antiguidade romana.
Outro ponto de destaque para se repensar as relaes familiares desse perodo histrico,
de forma a no retrat-las de forma esttica e homognea, prestar ateno para as
disparidades econmicas, regionais e sociais. As condies sociais faziam com que a vida em
famlia diferisse entre pobres e ricos/plebeus e patrcios, ento, ao lidar com fontes desse tema,
temos que levar em considerao a condio social dos sujeitos para saber de que tipo de
vivncia familiar ou de relao matrimonial estamos lidando:
A grande maioria dos romanos constitua famlias informais e vivia na pobreza. As
habitaes familiares dessa massa no eram confortveis. Alm disso, havia muitas
diferenas entre os habitantes de diferentes cidades e regies. Roma, uma cidade
imensa e bem dotada de servios pblicos como banhos, padarias, lojas de todo tipo,
servios mdicos, gua encanada, esgoto e iluminao noturna era, certamente, uma
exceo. Mesmo ali, os pobres viviam em apartamentos pequenos, em grandes
edifcios com at seis andares de altura, correndo riscos que iam do desabamento ao
incndio. Em cidades menores, havia menos riscos mas, tambm, menos riqueza e,
portanto, menor rede de servios pblicos. A vida dos pobres no campo era bem
mais ingrata. [] Uma minoria [da sociedade], contudo, vivia em casas amplas e
confortveis. Estas so as que melhor conhecemos, j que as habitaes dos pobres,
muito menos ricas, deixaram menos vestgios arqueolgicos e, tambm, sempre
despertaram menos ateno dos estudiosos modernos. (FUNARI, 1994)
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Ou seja, o fator econmico e social da poca interfere diretamente na produo
historiogrfica sobre a famlia romana antiga. provvel que famlias mais humildes tivessem
sim, em muitos casos, a necessidade de vender filhos ou diminuir sua prole, o que explique e
justifique esse sistema; contudo, essa concluso no pode ser uma generalizao de descaso
ou desafeto, pois a memria pstuma de escravos (gladiadores e vilicus, por exemplo) faz
meno a filhos e filhas com a mesma importncia que em memrias construdas por
membros da elite.
Esse panorama de ideias apontou maneiras de repensarmos historiograficamente as
relaes familiares na Antiguidade romana, dando destaque para os pontos mais relevantes de
desconstruo para essa monografia: a ideia de violncia/opresso, as questes de gnero e o
debate da indiferena. Relaes familiares na Histria Antiga so um tema ainda pouco
estudado, principalmente no Brasil; necessrio avanarmos nesse tema, para evidenciar a
importncia do dilogo da Arqueologia Clssica com a Histria Antiga para a produo de
modos mais plurais de se estudar questes sociais do perodo, e propor, assim, novos modelos
interpretativos, na busca do estudo da vida cotidiana e prtica daqueles agentes, cada vez mais
valorizando a subjetividade histrica e evitando modelos que generalizam e reduzem a
vivncia familiar romana.
Foi argumentado, nesse tpico, que as diferenas econmicas e sociais devem fazer
parte da anlise sobre a vivncia em famlia na Antiguidade romana. As relaes familiares e
matrimoniais das elites podem, por exemplo, diferir das de camadas menos favorecidas da
sociedade, como escravos. Portanto, pensar famlia nesse perodo histrico no pode estar
dissociado dos indivduos que compe esse grupo familiar; nesse sentido, faz-se necessrio
discutirmos os conceitos de escravido e liberdade na Roma Antiga.
2.3 O conceito de escravido na Roma Antiga: repensando os modelos econmicos
Os personagens envolvidos nos jogos anfiteatrais e que esto citados nos epitfios so,
em sua maioria, libertos e escravos. Disto, surge a necessidade de analisar
historiograficamente conceitos como cidadania, escravido e liberdade na sociedade romana
antiga, para assim discutir como estas posies sociais, que so conceitos construdos por uma
sociedade e interpretados pelos historiadores, j foram abordados e estudados pela produo
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historiogrfica, e de que modo a pesquisa, com o estudo das fontes, pode repensar e inovar
essas concepes.
comum que a historiografia aborde o tema da escravido com base nos modelos
marxistas ou weberianos; apesar da importncia e da contribuio desses modelos para as
relaes de escravido e liberdade na Antiguidade, h a necessidade de um maior dilogo com
as subjetividades desses agentes histricos, para que a escravido no seja compreendida
como um conceito homogneo e possa ser entendida a partir da memria construda pelos
prprios indivduos e suas relaes interpessoais, e no somente pelas relaes econmicas
em que estavam inseridos.
A concepo jurdica de escravido e liberdade norteou muitos estudos sobre o
escravo na antiguidade. Yvon Thbert (1992), arquelogo francs de tradio marxista,
aborda o conceito de escravido antiga muito vinculado apenas a uma noo pautada na
coisificao destes sujeitos, da qual deriva a denncia da violncia e da opresso que eles
sofriam. Ou seja, a argumentao do autor nos leva a concluir que, na maior parte dos casos,
os escravos no passavam, na sociedade romana, de propriedades objetificadas de seus donos,
como uma espcie de ferramentas que auxiliavam nas tarefas necessrias. Embora o autor
pontue que, em determinados momentos da Histria Antiga, como no Principado (justamente
a poca na qual as fontes da pesquisa se remetem), os escravos tenham possudo uma maior
chance de liberdade e de privilgios, a argumentao exposta por Thbert no valoriza como
deveria, sob meu ponto de vista, a agncia histrica do escravo na Antiguidade, limitando-os a
oprimidos.
O problema no consiste em denunciar a violncia em torno da escravido que de fato
existia, j que o pater familias poderia escolher a vida ou a morte do seu escravo; o problema
consiste em, analisando a escravido apenas por esse vis, silenciar os escravos como
propriedades e ignorar uma diversidade de fontes que podem indicar outras abordagens. O
conceito de escravido, em Thbert, colocado sob uma viso apenas mercadolgica, ou seja,
analisado sob uma preocupao estritamente econmica, tirando-lhe sua subjetividade e
reduzindo a escravido noo ou ao esteretipo de que os escravos eram todos submetidos
mesma condio e tipo de vida em sociedade.
Isso pode ser percebido j pela preocupao do autor de tentar definir o que o
escravo, como se todos fossem iguais, pelo ttulo do captulo; como podemos generalizar em
uma sociedade to diversa o que ser um escravo? No busco negar na pesquisa,
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evidentemente, a violncia e a opresso que os escravos sofriam; porm, os epitfios
demonstram que escravos possuam famlias, sentimentos e buscavam a construo de uma
memria. As anlises do arquelogo marxista Thbert avanaram e inovaram no sentido de
incluir o escravo, indivduo de situao social marginalizada, na Histria; um grande mrito
do marxismo em relao ao estudo das camadas populares antigas. Mas faltou compreend-
los mais subjetivamente, em suas inseres e relaes culturais. Mais do que apenas coisas
ou propriedades, tambm foram agentes sociais e possuam relaes distintas em seus
espaos de sociabilidade, podendo ser estudados por abordagens no apenas econmicas.
Sobre o conceito de liberto, Jean Andreau (1992) destaca alguns aspectos interessantes
sobre a maior possibilidade de liberdade que ocorreu a partir do Principado, no qual os
escravos tinham mais condies de atingir a liberdade. Esta liberdade, porm, no garantia ao
liberto o direito de cidadania; ao contrrio de seus filhos e filhas, os ingenui, considerados
livres por nascimento. Essa disposio da liberdade e cidadania da descendncia dos libertos
claramente nos remete anteriormente citada importncia da descendncia para a sociedade
romana antiga.
Andreau afirma que os libertos possuam grande ligao com suas origens geogrficas
e culturais de antes de serem escravizados e deslocados regionalmente, e que, quando em boas
condies econmicas (o que era raro), buscavam imitar a construo de memrias feitas
pelas elites, atravs de bustos e lpides, nos quais era costumeiro citarem e exaltarem seus
locais de origem. Isto vai de encontro com o interesse de anlise de construo de memria da
pesquisa, j que os escravos e libertos (ou seus parentes) costumam citar, em alguns epitfios,
sua origem social como um elemento de destaque.
Contudo, Andreau ainda associa muito o conceito de liberto com o de o fardo de um
ex-escravo ou um servo, o que tambm lhe confere uma diminuio na sua agncia social e
histrica, como se o liberto continuasse um servo e nunca se livrasse da imagem de escravo:
[O liberto] no tem a coerncia do aristocrata, seguro da sua superioridade e
protegido por valores que o fortificam, ainda que no os ponha em prtica na vida
cotidiana. No tem a simplicidade rstica do verdadeiro campons indgena, nem a
irreverncia bem controlada do escravo domstico. O liberto encontra-se na
encruzilhada de vrias foras divergentes ou mesmo opostas. Por um lado, foi
escravo, coisa que nem ele nem os outros podem esquecer. Por outro, o seu estatuto
de liberto parcialmente contraditrio, porque a libertao confere-lhe a mesma
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cidadania do seu patrono, mas sujeita-o a uma srie de obrigaes e de costumes que
o separam dos ingnuos. (ANDREAU, 1992)
Esse argumento, a meu ver, deve ser problematizado e discutido. Mesmo que existisse
o preconceito contra libertos e ingnuos, estes procuram, nos epitfios, exaltar sua conquista
de liberdade a todo custo, o que indica um orgulho da condio como um acontecimento
importante em suas vidas, denotando um marco social importante e que lhes diferencia do
passado em que eram sujeitos escravido. Tambm no pode ser ignorado o fato de que o
status na sociedade romana antiga era muito mais flexvel do que determinado:
Na prtica, status [a condio jurdica] era fluda. Uma pessoa podia vivenciar vrias
mudanas de status ao longo da vida. Um cidado romano poderia (por ser
capturado em uma guerra, por exemplo) cair na escravido. (TREGGIARI, 1996, p.
875)2
Uma abordagem sobre escravido e liberdade no mundo antigo que dialoga mais e
contraste menos com o posicionamento adotado pela presente pesquisa monogrfica o de
Geza Alfldy3. O historiador, que interpreta a sociedade romana no como dividida entre
classes pois este seria um conceito anacrnico de aplicaes marxistas , mas sim entre
estamentos. O arquelogo procura privilegiar a agncia social dos escravos e as suas diversas
possibilidades de vida, de liberdade e de ascenso, que podia ocorrer at mesmo por
casamentos, o que demonstra uma dinmica cultural bem maior do que a abordada pelos
outros dois autores citados. Alfldy pontua, por exemplo, no apenas o maior direito de
liberdade no incio do Principado, j considerado por Andreau; mas tambm do maior direito
de conquistas de cidadania, o que demonstra que a escravido ou a conquista de liberdade no
podem ser compreendidas como algo homogneo em nenhum tempo histrico.
Oprimidos ou no, os libertos tambm ampliaram seus direitos de conquistar a
cidadania e de ascender socialmente. Sobre a dinmica cultural dos libertos, no Principado
aumenta o nmero de libertos ricos (perodo de intensa ascenso econmica deste grupo
social), assim como de escravos urbanos. A compreenso desse enriquecimento fundamental
2 In practice, status was fluid. A person might experience several changes of status in a lifetime. A
Roman citizen might (through being captured in a war for example) fall into slavery.
3 ALFOLDY, Geza. A Histria Social de Roma. Lisboa: Presena, 1989.
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para a pesquisa, visto que o custeamento de uma lpide era relativamente caro, o que nos faz
pensar que os libertos citados nos epitfios faziam parte desse estamento, bem como dos
ingenui. A anlise de Alfldy , portanto, uma anlise econmica e social guiada por uma
viso mais detalhada e plural da escravido, na qual o escravo no estudado como uma
coisa social apenas vtima da propriedade de algum.
O escravo e o liberto devem ser enxergados, para alm de suas dificuldades jurdicas e
sociais, como agentes histricos que faziam uso de suas possibilidades para resistncia e
ascenso, mesmo em condies limitadas e opressoras; isso nos faz enxerg-los como dotados
de uma agncia social no processo histrico. Ao contrrio do que argumenta Andreau, a
liberdade compreendida por Alfldy como um direito buscado e conquistado, no sendo o
liberto necessariamente para sempre associado escravido ou servido, visto que o autor
evidencia que muitos enriqueceram e prosperaram na sociedade romana antiga.
Por fim, uma das obras mais clssicas sobre a escravido no mundo antigo consiste no
livro Escravido Antiga e Ideologia Moderna, de Moses Finley (1980). Finley pretende
elencar cinco grandes formas de escravido: a grega e a romana antigas, relacionando-as s
trs grandes formas de escravido modernas (EUA, Brasil e o Caribe). O autor chama a
ateno para a separao de duas grandes motivaes para o estudo da escravido: uma viso
moralista e espiritualizada com o intuito de fortemente recrimin-la e denunci-la, viso esta
dominante na academia do sculo XIX e condenada pelo historiador por ser insuficiente.
Em contraposio, Finley apresenta outra viso, a chamada por ele de sociolgica, que
visava compreender o fenmeno da escravido enquanto um processo social e econmico
ineficiente para a produo. Para o historiador, em sua obra, ambos os modelos de se pensar a
escravido so ineficazes, e ele sugere como alternativa a busca das razes da escravido, que
estariam nas sociedades greco-romanas antigas; disto viria a importncia de se refletir sobre a
escravido antiga: para ele, as bases das sociedades escravistas moderna estariam nela. Finley
coloca o escravo, desde a Antiguidade como uma propriedade:
[o escravo] sofria no s uma perda total de seu trabalho, mas tambm do controle
sobre sua personalidade. (FINLEY, 1991, p.77)
Isto posto, podemos compreender a nfase de Finley na aplicao de um olhar
historiogrfico para o indivduo escravo pautado sobretudo em sua condio jurdica de
propriedade; os escravos foram interpretados pelo autor, nas sociedades clssicas, como a
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pea em um jogo: uma mo-de-obra a qual homens livres no se submeteriam. Essa
interpretao, embora avance para uma reflexo sobre a importncia do estudo da escravido
antiga, omitia outras possibilidades de estudos dos escravos na historiografia, ao consider-los
apenas uma pea de trabalho da engrenagem econmica de uma sociedade.
Com base nesse balano efetuado, analisamos e discutimos questes de concepes
sobre a escravido e a liberdade na Antiguidade, concluindo que a escravido no pode ser
um conceito homogneo. A compreenso dessa discusso historiogrfica apresentada e de que
modo os escravos e libertos personagens majoritrios presentes nos epitfios das lpides de
regies anfiteatrais contempladas pela pesquisa foram retratados pelos historiadores,
permite um posicionamento da pesquisa diante dessa discusso, oferecendo uma nova
possibilidade de anlise que no se paute apenas em aspectos econmicos para retrat-los
enquanto agentes histricos, mas tambm na construo da memria e de relaes
interpessoais. Alm disso, no buscamos aqui definir o que era ser escravo ou liberto, mas
sim valorizar, mesmo que eles fossem oprimidos e em condies jurdicas inferiores a
cidados, suas sociabilidades, vivncias e agncias, que no podem ser ignoradas pela
historiografia.
Foram discutidas as interpretaes sobre relaes familiares e condies sociais com
base em anlises literrias e legislativas, bem como a necessidade de repensarmos o que j foi
produzido sobre o tema para construir novas abordagens. Essa monografia, como apresentar
o prximo captulo, visa deslocar essas abordagens para uma pautada na anlise de vivncias
familiares e de escravido/liberdade com base na construo de memrias e sentimentos nos
epitfios de lpides romanas antigas de regies anfiteatrais.
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3. A epigrafia na construo de modelos interpretativos
No captulo anterior, ressaltei a importncia do dilogo entre Arqueologia e Histria para
uma abordagem historiogrfica mais dinmica e que alcance mais as camadas populares, sendo,
portanto, uma alternativa histria poltica tradicional sobre a Antiguidade. Neste segundo captulo,
discorrerei sobre de que maneira, no interior desse dilogo exposto, o estudo de fontes epigrficas
colabora para a construo de um modelo interpretativo para o aqui proposto estudo de memrias,
relaes familiares e escravido no mundo romano antigo.
Entende-se como epigrafia as inscries deixadas por sociedades do passado grafadas em
materiais slidos, como pedras e cermica, por exemplo. No caso da Roma Antiga, as fontes
epigrficas se destacam, sobretudo, pela prtica comum daquela sociedade de realizar inscries
paretais, os chamados grafites. Para alm dos grafites, outro campo de estudo no qual se insere o
presente trabalho tambm tem relevncia: a epigrafia funerria, da qual fazem parte como fonte
os tmulos e as lpides erguidas como dedicaes ps-morte a parentes e/ou entes queridos. Essa
monografia possuiu como fontes um conjunto de lpides romanas antigas presentes em regies
anfiteatrais, feitas em pedra e escritas em latim. O recorte de fontes da presente pesquisa compe-se
em 21 lpides, que tem como datao os sculos I-III d.C, ou seja, pertencem ao perodo poltico do
Principado.
As lpides esto presentes na coleo italiana Epigrafia Anfiteatrale dell'Ocidente Romano,
que divide-se em cinco volumes. No catlogo, encontram-se tanto as lpides transcritas em latim
com um comentrio analtico em italiano quanto registros fotogrficos das mesmas. Essa coleo
foi iniciada em 1988, com o trabalho de Patrizia Sabbatini Tumolesi, tendo a pretenso de reunir
toda a epigrafia possvel referente a gladiadores e espetculos anfiteatrais; trata-se, portanto, da
catalogao dessas fontes, aliado a uma anlise das mesmas, facilitando e possibilitando assim
estudos mais aprofundados e especficos em torno delas.
3.1 As fontes epigrficas e sua relao com a historiografia
Voltando a refletir acerca das fontes epigrficas, fundamental ressaltar de que modo elas
nos auxiliam na pretendida aproximao com o cotidiano dos indivduos histricos, demonstrando
representaes sobre grupos sociais para alm de suas imagens repletas de cargas morais que foram
usualmente construdas por elites dominantes:
A opo por estudar diferentes tipos de inscries (lpides, inscries oficiais e grafites)
justifica-se pela diversidade de elementos que elas proporcionam para o estudo da relao
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entre as pessoas dentro e fora dos anfiteatros. [] a Epigrafia, em geral, tem proporcionado
uma anlise crtica aos modelos normativos de cultura. (GARRAFFONI, 2004, p. 150)
Ao estudar a epigrafia estamos, portanto, lidando com uma maneira distinta de
representao (ou de autorrepresentao) dos membros da sociedade romana antiga, revelando suas
aes histricas, seus sentimentos, anseios, desejos, relaes interpessoais, emoes e, enfim,
subjetividades. Como a pesquisa procura demonstrar a relevncia do estudo de fontes epigrficas
para a historiografia sobre a Roma Antiga, essencial, do ponto de vista terico-metodolgico,
compreender com que vis a Epigrafia deve ser analisada enquanto fonte histrica.
Enrique Gozalbes Cravioto (2001) expe um debate sobre duas grandes principais vertentes
de estudo das lpides latinas da Antiguidade: o estudo demogrfico (iniciado no sculo XIX,
preocupando-se com aspectos como migraes, natalidade, mortalidade e outras concluses de
cunho estatstico) e o estudo sociolgico (trabalhos de anlises das fontes com base em estudar
determinados aspectos e particularidades sociais/cotidianas, como escravos, libertos, elementos
religiosos e nomenclaturas).
Tomando como base as anlises sociolgicas dos epitfios indicadas por Gozalbes Cravioto,
encontramos a valorizao exatamente do que a monografia est propondo: um olhar para
indivduos da sociedade romana que raramente tm suas particularidades contempladas por uma
historiografia que lida apenas com fontes oficiais, como as mulheres e as crianas, problematizando
e analisando suas memrias com o intuito de dar voz a eles naquela sociedade.
Como as fontes epigrficas lidam com a produo de um registro deixado por determinado
sujeito histrico, sendo este pertencente a determinado grupo/camada social, o historiador deve se
atentar ao contexto originrio da fonte com a qual est lidando (Lopez Barja, 2002). Contudo, aqui
reside um grande perigo: essa aproximao com o cotidiano e a subjetividades de indivduos no
pode ser interpretada como um retrato fiel da realidade. Sobre isso, Lopez Barja alerta,
metaforicamente:
Como toda fonte histrica, a epigrafia no um espelho, mas sim um prisma deformador da
realidade social que est em sua raiz; ser necessrio conhecer a fundo as lentes ticas que
sero escolhidas antes de decidirmos utiliz-las. (LOPEZ BARJA, 2002, p 38)4
No devemos estudar as fontes epigrficas, portanto, buscando uma verso verdica da
Histria, mas sim uma aproximao com grupos sociais e a produo de suas memrias que estejam
4 Como toda fuente histrica, la epigrafa no es un espejo sino un prisma deformador de la realidad social que est
em su raz y ser necesario conocer a fondo las leyes pticas que lo rigen antes de decidirnos a utilizarlo.
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deslocadas de fontes oficiais. As chamadas por Lopez Barja de lentes ticas so aqui interpretados
como os modelos interpretativos com os quais o historiador, em seu presente e com suas respectivas
problemticas, produz um discurso historiogrfico utilizando-se da interpretao e discusso das
fontes epigrficas. A fonte epigrfica no deve ser interpretada uma verdade sobre o passado, mas
sim como uma possibilidade de anlise sobre indivduos e aspectos sociais de seu determinado
perodo.
Nesse sentido, em um manual para leitura de fontes epigrficas intitulado Taller de epigrafia
latina, Fernando Redonet demonstra as variadas possibilidades de anlises das fontes epigrficas ao
articular os conhecimentos tericos e historiogrficos sobre o mundo romano antigo com o
contedo e o contexto originrio dessas fontes, como, por exemplo, os sentimentos, o respeito aos
parentes, o amor de pais pelos filhos, de maridos e esposas e vice-versa. No campo social, as fontes
epigrficas possibilitam ainda o estudo de aspectos como liberdade, escravido, gnero e relaes
de trabalho na Roma Antiga, como demonstrarei no prximo captulo.
3.2 Epigrafia funerria: as lpides e a busca por modelos interpretativos
Exposta a breve anlise acima sobre a importncia da epigrafia para o estudo da
historiografia do mundo antigo, partirei para a discusso sobre o tipo de fonte especfico da
pesquisa: a epigrafia funerria (no caso, as lpides de regies anfiteatrais). Tmulos, lpides e
placas funerrias denotam a busca da legitimao de uma memria ps-morte para indivduos
queridos, amados ou admirados pelos financiadores desses registros. A prtica de erguer tmulos e
lpides era muito mais urbana do que rural no mundo romano antigo, e ainda assim no era uma
regra, pois, pelo custo, boa parte dos cidados pouco abastados eram enterrados em valas comuns.
O preo de custeamento de uma lpide era elevado, o que explica, por exemplo, a existncia
de epitfios curtos para famlias menos abastadas, com uma dedicatria feita em pequenas lpides,
enquanto as famlias mais ricas ostentavam com tmulos, bustos e outras esculturas simblicas. Ter
isso em mente foi fundamental para a seleo de lpides como fontes de pesquisa, pois pude, de fato,
me aproximar mais de camadas populares, mais do que lidando com grandes tmulos, que estariam
restritos vida em elite e sua maneira de construir a memria familiar. A centralidade de anlise da
epigrafia funerria est nos epitfios, que contm dedicaes amorosas e enaltecedoras, bem como
informaes destacadas dos feitos dos indivduos (tanto dos falecidos quanto dos dedicantes dessa
memria pstuma).
perceptvel que existia um certo padro na maneira de se construir a maioria dos epitfios
das lpides, como ser demonstrado em discusses do captulo posterior. Este padro, a meu ver,
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pode ser um aspecto social, semelhante ao nosso presente aqui jaz, mas no pode, de modo algum,
estar dissociado de aspectos financeiros: quanto maior e mais escrita uma lpide conter, certamente
mais cara foi sua confeco, o que colabora para explicar o fato de lpides possurem uma
estruturao parecida, como uma espcie de modelos para fabricao, que apresentavam um custo
tambm padronizado e acessvel.
E quando encontramos uma lpide mais trabalhada de um indivduo fora da elite que a
ateno se torna ampliada, por ser uma exceo aos casos mais comuns. Mas o que levava os
romanos, sobretudo os mais pobres ou em condies inferiores como escravos, por exemplo , a
buscarem a construo de uma memria para alm da vida para seus familiares? Podemos nos
deparar com algumas possveis respostas, dependendo do vis de anlise das fontes.
Meyer (1990) destaca a importncia da denotao de um status por meio das construes
funerrias, clamando a legitimao de um reconhecimento dos feitos, cargos e posses da famlia ou
do familiar jazidos, bem como do dedicador e/ou financiador da lpide. Assim, o funeral ou a
dedicao de uma memria pstuma no era apenas um ato sacro, mas uma legitimao social. A
autora chama a ateno para o fato de que a construo de uma cerimnia funerria para os entes
falecidos era um fator preponderante em disputas por heranas, por exemplo. Contudo, embora seja,
para a historiadora, o motivo central de se erguerem lpides, Meyer ressalta que esta no pode ser
compreendida como a nica motivao:
A nfase do status na interpretao dos epitfios no exclui muitas outras possibilidades
para erguer uma lpide; somente tida [para a autora] como o motivo majoritrio. Outros
motivos, como a afeio, podem ser facilmente relacionadas [], mas no podem ser
compreendidas como motivaes principais [...] (MEYER, 1990, p. 83)5
Para alm dessa centralidade da preocupao com o status social no ato de se erguer uma
lpide, Saller & Shaw (1984) demonstram que os epitfios presentes em tmulos e lpides da
Antiguidade romana possuem, de fato, uma grande e preponderante carga de afeio:
Outro motivo, a afeio, ainda que difcil de mensurar, estava, sem dvida, envolvida na
deciso de erguer um epitfio. Isso bem perceptvel nos memoriais para crianas
5 The emphasis on status in the interpretation of epitaphs does not exclude the many other possible motives for
erecting a tombstone it is merely singled out here as a major motive. Other motivos, such as affection, can easily be
combined it with [] but cannot stand as sucessfully on their own as driving forces [].
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pequenas, nas quais os dedicadores expressam afeio e carinho. (SALLER & SHAW,
1984, p. 126)6
O caso de lpides para crianas ou filhos nos faz refletir que a lpide no era, de fato,
somente uma estratgia social ou uma dvida moral (como uma obrigao social), mas um ato que
expressava sentimentos do povo romano diante de suas relaes interpessoais; nesse sentido,
demonstrarei que possvel realizarmos anlises dos epitfios que se orientem nesse sentido. A
despeito da importncia status, havia sim uma importncia dos sentimentos familiares envoltos na
memria construda e selecionada nessa epigrafia funerria, e tais fatores no podem ser omitidos
pela historiografia.
Discutido esse panorama sobre o ato e a motivao de se erguer uma lpide naquela
sociedade, hora de pensarmos nos agentes sociais que esto presentes nos epitfios. O estudo da
epigrafia confere, uma individualidade aos sujeitos histricos marginalizados, sobretudo os
gladiadores e outros tipos de escravos, visto que nos permite compreend-los enquanto pessoas.
Isso se explica pelo fato de na construo dessa memria selecionada estarem presentes suas
relaes interpessoais:
[] os registros de prprio punho e os epitfios de amigos, amantes ou parentes se
constituem em indcios fragmentados dos sentimentos e imagens que estes combatentes
desejavam produzir de si mesmos, muitas vezes omitidos na historiografia moderna.
(GARRAFFONI, 2004, p. 229).
Este possvel caminho dos sentimentos exposto por Garraffoni , justamente, um dos
objetivos na anlise das lpides que norteia a pesquisa, j que outras abordagens pertinentes ao tema
da epigrafia funerria sobre a gladiatura, como a de Valerie Hope (2000), afirmam que os epitfios
focam excessivamente nas glrias e conquistas deles como homens guerreiros, dificultando o estudo
de suas relaes afetivas.
O trabalho de Hope ressalta a importncia das lpides e dos epitfios na compreenso do
fenmeno da gladiatura, mas no avana para alm do esteretipo de infames que os gladiadores
carregavam; para Hope, os gladiadores carregariam essa imagem mesmo em sua memria pstuma.
A anlise de Hope se foca excessivamente na imagem do gladiador guerreiro e viril, negando a
possibilidade de estudar suas relaes ntimas ou pessoais por meio dos epitfios:
6 Another motive, affection, though difficult to measure, was no doubt also involved in the decision to erect an
epitaph. This seems especially clear in the memorials for young children expressing the dedicators affection and
grief.
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A mais comum e popular forma de expor as virtudes de um gladiador era a de bene merens:
ele era digno de uma comemorao no por ser um bom marido ou pai, mas porque ele foi
um grande combatente, que encarou bravamente a sua morte na arena. (HOPE, 2000, p.
105)7
Contrastando com essa ideia exposta por Hope, essa monografia refora que possvel
outras leituras para essa cultura material: a de percepo de sentimentos, afetos, relaes familiares
e desejos de representao na construo dessas memrias dos gladiadores e escravos, efetuando
uma anlise para alm dos feitos ou do status presente nas memrias deixadas por esses epitfios.
3.3 Construo de uma metodologia de anlise dos epitfios: memrias e famlias
Nos tpicos anteriores desse captulo, foi exposta a importncia dos estudos epigrficos
(principalmente os funerrios) para a produo historiogrfica e a construo de modelos
interpretativos do passado. Essa discusso fundamental para a compreenso das razes de ter
escolhido as lpides como as fontes; mas toda interpretao de fontes deve estar ligada a uma
metodologia de anlise, sobre a qual discorrerei neste tpico. J foi afirmado que possvel, por
meio das lpides, atingirmos as camadas populares de forma deslocada de abordagens normativas,
bem como aspectos muitas vezes relegados pela historiografia moderna, como sentimentos,
memrias, infncia, posies sociais e relaes familiares. Mas de que modo possvel estudarmos
essas questes por meio desses epitfios?
Uma possibilidade de anlise, proposta por Saller e Shaw (1984), a de categorizao das
fontes por exemplo: de pai(s) para filho(s), de filho(s) para pai(s), de marido para esposa, entre
outros. Assim sendo, a metodologia da pesquisa no busca apenas as particularidades de cada fonte,
mas tambm as pensa em categorias, para a compreenso de como a famlia nuclear ou a famlia
estendida aparecem mais nas lpides, bem como sobre como recorrente, na escrita, a maneira de
se preservar a memria do falecido ou da falecida.
Por essa categorizao, possvel notar quais indivduos esto mais presente nas lpides
selecionadas, bem como a que posio social, gnero e papel familiar estes pertencem. Com esse
recorte inicial e a criao de categorias, a anlise de suas especificidades torna-se mais eficaz.
Evidentemente, todo cuidado para evitar generalizaes histricas que no levam a lugar algum ser
7 The most suitable and popular way of summarizin a gladiators virtues was bene merens: he was well deserving of
his commemoration not because he was a good husband or father, but because he had been a good comrade who
bravely faced his death in the arena.
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necessrio; Gozalbes Cravioto (2001) afirma que essa criao de categorias das lpides, embora
denote uma srie de aspectos sociais e culturais, no pode ser dissociada de suas especificidades que
tambm devem ser trabalhadas. As lpides devem, portanto, ser pensada como um conjunto de
informaes, nos quais cada fonte possui tambm as suas individualidades especficas.
importante considerar tambm os limites da documentao selecionada. Alguns epitfios,
por exemplo, esto com seus textos parcialmente ilegveis; alm disso, a datao de parte das fontes
nem sempre exata, bem como nem sempre se encontra no catlogo a informao de provenincia
exata das lpides; o que sabemos que, pela separao dos catlogos originais (em cinco volumes),
esto agrupadas em referncia a grandes regies.
Isto posto, o primeiro passo metodolgico (a categorizao geral das fontes) foi feito com
base nos seguintes aspectos:
1) Grau de parentesco presente entre dedicado e dedicante.
2) Posio social dos indivduos (era um gladiador, um escravo de outro tipo ou estava
envolvido na organizao dos espetculos?).
Aps essa categorizao mais geral, parto para um mtodo de anlise mais especfico,
sendo que nem todos estes itens se fazem sempre presente; cito aqui os aspectos mais recorrentes a
serem percebidos, pois cada lpide pode conter informaes relevantes que lhe so particulares:
1) Como o dedicante se refere ao dedicado no epitfio (muitas vezes um termo sentimental
ou afetuoso utilizado). Isso fundamental para a percepo da carga de afeto presente na
construo de memria das lpides.
2) Demonstrar como suas qualidades e feitos so apresentados e como isso se articula com a
memria proposta pelo epitfio, j que recorrente, no caso dos gladiadores, por exemplo, a
presena de seu nmero de vitrias.
3) Buscar no catlogo ou em outras referncias bibliogrficas uma explicao sobre o cargo
ou profisso exercida pelo dedicado/dedicante
4) Idade dos envolvidos no epitfio, j que isto revela em que estgio da vida em sociedade
se encontram
5) Local de origem do falecido, muitas vezes reforado no epitfio, o que demonstra uma
escolha de construo de memria
6) Datao e localizao regional da fonte
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Aps a categorizao das fontes, o segundo passo para as anlises foi a procura, nos detalhes
oferecidos pelos epitfios, a percepo dos relacionamentos e sentimentos envoltos nessa memria
entre os dedicadores e os falecidos, e a apreenso de como a preservao de memria constri-se
nas lpides. Os aspectos mais especficos de cada lpide, em conjunto, revelam os padres
recorrentes que ocorrem nos epitfios. A percepo desses padres recorrentes, assim como
qualquer informao particular e destoante do resto contida em uma lpide, demonstra uma escolha
de construo de memria, e disto vem a importncia da anlise das informaes que se fazem
presente nos epitfios.
Essa anlise constri um conhecimento no apenas categrico sobre a epigrafia funerria; a
inteno da pesquisa no demonstrar como eram dedicadas as lpides na Roma Antiga do incio
do primeiro milnio d.C., mas sim destacar, nessas dedicatrias, a individualidade dos agentes
sociais envolvidos, j que a memria dedicada a eles os retrata como indivduos particulares, com
vivncias, sentimentos e relaes prprias para alm dos jogos anfiteatrais. a subjetividade desses
personagens que me interessa metodologicamente ao analisar tais lpides, para possibilitar a
construo de um olhar mais plural para a Antiguidade, e sobre como a Arqueologia e a Histria,
em dilogo, podem construir um mtodo de historiografia que vai nessa direo.
A inteno de anlise de relaes familiares, portanto, demonstrar que as famlias no
eram tidas com absoluta indiferena nas sociedades antigas como alguns estudos procuraram propor,
j que elas sugerem a preocupao de preservao de uma memria familiar aliada a uma carga de
afeto deixada pelas dedicatrias. Alis, o prprio ato de dedicar uma memria pstuma j pode ser
considerado um ato de carinho, afeto, admirao ou, minimamente, respeito. A pesquisa e sua
metodologia, alm desta concluso, pretende ir alm e analisar como essa carga de sentimento se
faz demonstrada nos epitfios, e como as fontes epigrficas funerrias abrem caminhos de
interpretar a famlia romana para alm dos critrios de fontes legislativas ou literrias.
3.4 Catlogo das lpides contempladas pela pesquisa
A seleo das fontes para a pesquisa foi feita com critrios adotados de acordo com o
objetivo da pesquisa: foram escolhidas lpides que possuam qualquer tipo de relaes familiares
mencionadas na memria construda, desde que restritas aos jogos de gladiadores, visto que a
inteno desconstruir esteretipos dos personagens envolvidos nos espetculos anfiteatrais.
Tambm serviu como critrio de escolha a possibilidade de leitura dos epitfios, j que muitas
fontes, embora mencionem relaes familiares nos epitfios, esto incompletas em seus escritos, e
dificultaram uma anlise eficaz para o andamento da pesquisa.
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No tpico anterior, discutimos a metodologia de anlise dos epitfios adotada. Antes de
discorrer, no prximo captulo, sobre a categorizao e o estudo das especificidades das fontes,
apresentarei, neste tpico, um catlogo das lpides que a pesquisa contempla. importante entender
que a produo de um catlogo em um trabalho de Arqueologia e de Histria no apenas um
anexo com as fontes, tampouco uma opo arbitrria para apresentar, descrever e/ou citar a
cultura material aos leitores.
A catalogao das fontes constitui parte do processo de anlise ao lidar com as fontes
arqueolgicas, pois cria um corpus documental a ser discutido em seu trabalho (Carlan, 2007). No
caso dessa monografia, estamos criando um corpus de lpides encontradas em regies anfiteatrais,
para dar visibilidade a presena de gladiadores, outros escravos e membros da elite local e
organizadora dos espetculos. Nesse catlogo, apresentaremos os seguintes itens: o cdigo de cada
lpide; o epitfio transcrito; a descrio do contedo do epitfio; a referncia bibliogrfica referente
lpide.
CATLOGO DAS LPIDES
LPIDE 01
CIL, VI 10162, cfr. 33981
Flviae
Athenaidi,
Augustlis
Aug(usti) lib(ertus) tabul(arius)
a muneribus et
Appia Istina
filie dulcissim(ae).
Lpide que um dedicante principal (um contador liberto imperial, Flavius Augustalis), com sua
esposa, Appia Istina, dedica filha, Flviae Athenaidi, a qual se referencia carinhosamente como
encantadora filha. A fonte pertence ao sculo I, j que o contador um liberto imperial de Flvio
(Tumolesi, 1988).
In: SABBATINI, TUMOLESI, P.L., Epigrafia anfiteatrali dell'Occidente Romano I Roma,
Edizioni, 1988, pp. 20-21.
LPIDE 02
CIL, VI 10089, cfr. p. 3492; ILS 1766
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D(is) M(anibus)
Claudiae Faustinae,
filiae pientissimae,
quae vix(it) ann(is) XVI,
Ti(berius) Cl(audius) Aug(usti) lib(ertus) Philetus,
a comment(ariis) rat(ionis) vestium scaenic(ae) et
gladiat(oriae) et Flavia Procula parentes.
Item Flavius Daphnus et Cl(audius) Martialis
fratres fecerunt et sibi, lib(ertis), libertabus
suis, posterisq(ue) oerum
Lpide dedicada pelo pai, o liberto imperial Tiberius Claudius Augusti, para a falecida filha de 16
anos, Claudiae Faustinae. No epitfio, o pai cita sua profisso de ratio vestiaria, ou seja,
trabalhava na confeco de vesturios para os atores e gladiadores dos espetculos. uma das
poucas fontes sobre esse cargo (Tumolesi, 1988). O pai expressa carinho pela filha atravs do
termo filha estimada.
In: SABBATINI, TUMOLESI, P.L., Epigrafia anfiteatrali dell'Occidente Romano I Roma,
Edizioni, 1988, p. 23
LPIDE 03
CIL, VI 33981, cfr. 10162
D(is) M(anibus)
T(iti) Flavi Augustalis
tabulari a muneribus, filia at optaticia cense
Flavia Alexandra fecit coniugi Albineo se bibos
et alumnae
Elviniae Atticeni
et Flaviae Maximinae vernae mae Euos possedere d(e)bere ita nequ(e) vendant neque
donent
Lpide construda ao falecido liberto imperial tabularius a muneribus Flavius Augustalis por parte
de sua filha adotiva, Flavia Alexandra. Tambm do perodo flaviano e data do sculo I.
(Tumolesi, 1988). A especificao da filha ser adotiva chama a ateno nesse epitfio.Mesmo sem
ser consangunea do pai, esta dedicou a ele uma lpide com um epitfio relativamente grande, o
que demonstra que provavelmente ela foi cara.
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In: SABBATINI, TUMOLESI, P.L., Epigrafia anfiteatrali dell'Occidente Romano I Roma,
Edizioni Quazar, 1988, p. 21
LPIDE 04
CIL, VI 10083; ILS 1768
Habe (!) Marce, dulcis a[nima],
adiut(or) proc(uratoris) summi chor[agi];
Marcus piisimo patri.
Curta lpide dedicada do filho Marcus ao pai Marce, que se tratava de um provvel liberto. A
fonte provavelmente data do sculo III (Tumolesi, 1988). O filho se refere ao pai como piisimo
patri (pai pientssimo).
In: SABBATINI, TUMOLESI, P.L., Epigrafia anfiteatrali dell'Occidente Romano I Roma,
Edizioni Quazar, 1988, p. 27
LPIDE 05
CIL, VI 10163, ILS 5155
D(is) M(anibus).
Claudiae
Thallusae Aug(usti)
lib(ertae) et Thalliae
f(illiae) eius, Hyacin =
thus vilicus ma=
phiteatri (!), con=
iugi suae et filiae.
Eius et sibi et su=
is.
Lpide dedicada me e filha de um escravo vilicus; esta fonte data do perodo claudio-
neroniano (Tumolesi, 1988). Ainda, pela nomenclatura, perceptvel que sua esposa se tratava de
uma liberta, o que gera uma indagao interessante sobre as posies do vilicus na sociedade, j
que no era uma prtica comum no mundo romano antigo.
In: SABBATINI, TUMOLESI, P.L., Epigrafia anfiteatrali dell'Occidente Romano I Roma,
Edizioni Quazar, 1988, p. 45
LPIDE 06
CIL, VI 10201; ILS 5131
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D(is) M(anibus).
Cornelio Eugeniano
summa (!) rudi
et Corneliae Rufinae
parentibus dulcissimis,
bene merentibus,
filia fecit.
Lpide dedicada aos pais Cornelio Eugeniano e Corneliae Rufina, ambos libertos, por parte de sua
filha, cujo nome no consta no epitfio. O pai exercia a profisso de summa rudis, uma espcie de
rbitro dos espetculos anfiteatrais, com a funo de interromper os jogos caso um gladiador
desistisse, por exemplo; a fonte data do sculo II ou III (Tumolesi, 1988). A carga de afeto na
construo da memria pode ser denotada pelo uso do termo pais to bons.
In: SABBATINI, TUMOLESI, P.L., Epigrafia anfiteatrali dell'Occidente Romano I Roma,
Edizioni Quazar, 1988, p. 58
LPIDE 07
CIL, VI 10167; ILS 5125
Aos Deuses,
Publiciae Aromte,
estimada esposa.
fec(it) Albanus, um eques veteranus
Ludi Magni; vixit annis
XXII, mensibus V, diebus VIII.
In fronte pedes III, in agro pedes VIII.
Lpide dedicada falecida esposa (livre ou liberta), Publicia Aromate, pelo marido Albanus, um
gladiador eques veteranus (Tumolesi, 1988), ou seja, um veterano que lutava montado em um
cavalo. O esposo se referencia mulher carinhosamente com o termo estimada esposa.
In: SABBATINI, TUMOLESI, P.L., Epigrafia anfiteatrali dell'Occidente Romano I Roma,
Edizioni Quazar, 1988, p. 67
LPIDE 08
CIL, VI 4335
Caius Iulius Iucundus
Iucundus
essedarius,
v(ixit) a(nnis) XXV;
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filia patri.
Lpide dedicada, pela filha sem nome citado, ao pai Claius Iulius Iucundus, gladiador essedarius e
morto aos 25 anos (Tumolesi, 1988), o que indica que a filha uma criana de cerca de 10 anos de
idade.
In: SABBATINI, TUMOLESI, P.L., Epigrafia anfiteatrali dell'Occidente Romano I Roma,
Edizioni Quazar, 1988, p. 67-68
LPIDE 09
CIL, VI 10177 = 33977; ILS 5104
Diis Manibus
M(arci) Ulpi Felicis mirmillonis
veterani; vixit ann(is) XXXX;
natione Tunger;
Ulpia Syntyche liberta coniugi
suo dulcissimo, benemerenti
et Iustus filius fecerunt.
Lpide dedicada pela mulher liberta Ulpia Syntyche, com com o filho, para o mirmilho veterano
Marci Ulpi Felicis, falecido aos 45 anos (Tumolesi, 1988). O epitfio faz questo de recordar que
o gladiador era de origem Tungri, uma opo de construo de memria que possibilita refletirmos
a importncia dos locais de origem para parte dos gladiadores. Como demonstrao de afeto do pai
pelo filho, a mulher afirma que o filho era, para o morto pai, doce e benevolente.
In: SABBATINI, TUMOLESI, P.L., Epigrafia anfiteatrali dell'Occidente Romano I Roma,
Edizioni Quazar, 1988, p. 70
LPIDE 10
CIG 7021; IG, XIV 2008; ICUR, 1.4032, IGUR, II 939
A inscrio est ilegvel para a livre traduo completa e eficaz, mas pela sua descrio em
italiano no catlogo do qual foi retirada, podemos saber que se trata de uma lpide dedicada pelos
pais, Fuscinus e Taos, e de origem egpcia, ao falecido filho, cuja idade de falecimento
desconhecida. No epitfio ressalta-se que o pai era um gladiador do tipo provocatores (Tumolesi,
1988).
In: SABBATINI, TUMOLESI, P.L., Epigrafia anfiteatrali dell'Occidente Romano I Roma,
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