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1 MEMÓRIAS, HISTÓRIAS: WALTER BENJAMIN E A CONTRUÇÃO DA MEMÓRIA SOBRE A GUERRA DAS MALVINAS NO CINEMA ARGENTINO. Maurineide Alves da Silva 1 RESUMO O objetivo da minha pesquisa é analisar as memórias construídas sobre a Guerra das Malvinas no cinema argentino entre os anos 1982-2014. Esse tema me remete as concepções de Walter Benjamin sobre narrativa histórica e memória, que defende que um historiador deve buscar o lembrar ativo, ou seja, o esforço de compreensão e esclarecimento do passado, não só por piedade dos mortos, mas para promover ações ativas no presente, ou seja, o olhar para os vivos. Seria um processo de rememoração daquilo que foi esquecido, que não teve direito à lembrança. Para essa análise trabalharei com o debate bibliográfico entre autores como Jeanne Marie Gagnebin, Michael Lowe, Beatriz Sarlo, Michael Pollack, entre outros. As leituras de obras de Benjamin e de autores que as analisaram nos remetem a ideia de que é papel do historiador lutar para superar a força da memória oficial, apresentando o que sempre foi desprezado por está, o que foi renegado ao esquecimento, buscar espaço para a memória dos vencidos e não apenas para a dos vencedores e, assim, abrir para a possibilidade da vitória desses grupos, no presente. PALAVRAS-CHAVE: Walter Benjamin. Memória. História. Cinema. Guerra das Malvinas. Em 2002, no momento de definição do tema a ser trabalhado na monografia de conclusão do curso de História Licenciatura e Bacharelado na Universidade Federal de Goiás, a primeira certeza é de que trabalharia com produções cinematográficas. Com o decorrer do curso surgiu a ideia de trabalhar o chamado cinema de gênero guerra dos Estados Unidos, analisando como este representava as intervenções militares norte-americanas em outras regiões do mundo. Na dissertação de mestrado continuei com as narrativas fílmicas e com o tema intervenções militares norte-americanas, mas buscando entender quais os aspectos da história do povo norte-americano, de suas origens, de como eles forjaram a sua “identidade nacional”, influenciaram os Estados Unidos na criação dessa imagem de país belicista. Em 2012, o ingresso no curso de Doutorado da UNB, as orientações do professor José Walter Nunes e novas leituras me fizeram repensar meu projeto e dar um novo rumo às 1 Doutoranda em Sociedade, cultura e política pela UNB Professora de História da América na UEG Unu-Itapuranga e-mail: [email protected]

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MEMÓRIAS, HISTÓRIAS: WALTER BENJAMIN E A CONTRUÇÃO DA

MEMÓRIA SOBRE A GUERRA DAS MALVINAS NO CINEMA ARGENTINO.

Maurineide Alves da Silva1

RESUMO

O objetivo da minha pesquisa é analisar as memórias construídas sobre a Guerra das Malvinas

no cinema argentino entre os anos 1982-2014. Esse tema me remete as concepções de Walter

Benjamin sobre narrativa histórica e memória, que defende que um historiador deve buscar o

lembrar ativo, ou seja, o esforço de compreensão e esclarecimento do passado, não só por

piedade dos mortos, mas para promover ações ativas no presente, ou seja, o olhar para os

vivos. Seria um processo de rememoração daquilo que foi esquecido, que não teve direito à

lembrança. Para essa análise trabalharei com o debate bibliográfico entre autores como Jeanne

Marie Gagnebin, Michael Lowe, Beatriz Sarlo, Michael Pollack, entre outros. As leituras de

obras de Benjamin e de autores que as analisaram nos remetem a ideia de que é papel do

historiador lutar para superar a força da memória oficial, apresentando o que sempre foi

desprezado por está, o que foi renegado ao esquecimento, buscar espaço para a memória dos

vencidos e não apenas para a dos vencedores e, assim, abrir para a possibilidade da vitória

desses grupos, no presente.

PALAVRAS-CHAVE: Walter Benjamin. Memória. História. Cinema. Guerra das Malvinas.

Em 2002, no momento de definição do tema a ser trabalhado na monografia

de conclusão do curso de História Licenciatura e Bacharelado na Universidade Federal de

Goiás, a primeira certeza é de que trabalharia com produções cinematográficas. Com o

decorrer do curso surgiu a ideia de trabalhar o chamado cinema de gênero guerra dos Estados

Unidos, analisando como este representava as intervenções militares norte-americanas em

outras regiões do mundo. Na dissertação de mestrado continuei com as narrativas fílmicas e

com o tema intervenções militares norte-americanas, mas buscando entender quais os

aspectos da história do povo norte-americano, de suas origens, de como eles forjaram a sua

“identidade nacional”, influenciaram os Estados Unidos na criação dessa imagem de país

belicista. Em 2012, o ingresso no curso de Doutorado da UNB, as orientações do professor

José Walter Nunes e novas leituras me fizeram repensar meu projeto e dar um novo rumo às

1Doutoranda em Sociedade, cultura e política pela UNB

Professora de História da América na UEG Unu-Itapuranga

e-mail: [email protected]

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minhas pesquisas. Continuei trabalhando com narrativas fílmicas, mas dessa vez sobre o

cinema argentino e sobre uma guerra argentina: a Guerra das Malvinas.

A guerra das Malvinas foi um conflito armado entre Argentina e Inglaterra

pelas denominadas Ilhas Malvinas localizadas no Atlântico Sul, que trouxe consequências de

grande importância para a história mundial. Foi pela vitória nessa guerra que a primeira

ministra britânica Margaret Thatcher garantiu sua reeleição, enquanto pela derrota, a

Argentina saiu de um regime ditatorial que durou sete anos e que foi responsável por trinta

mil desaparecidos, segundo organizações de defesa de direitos humanos. Mais de 30 anos

depois de seu desfecho, o conflito pelas Malvinas continua sendo um assunto que incomoda

tanto britânicos, quanto argentinos. A Argentina ainda reivindica seus direitos sobre as ilhas,

o Reino Unido se nega a debater o assunto, o que faz o mundo ficar incrédulo diante de uma

possível solução para tal conflito. O fato é que um território de pouco mais de 12 mil

quilômetros quadrados, cuja atividade de exploração se reduzia, durante muito tempo,

unicamente à pesca, tem sido motivador dessa interminável animosidade entre as duas nações.

Esse aspecto nos leva a questionar: quais os argumentos, usados pelos dois lados, para que

ambos se sintam legitimados nas suas reivindicações por Malvinas? Tal questionamento me

levou a buscar a dimensão histórica dos relatos sobre Malvinas e da luta por seu território.

De acordo com Paulo Duarte, na obra Conflitos das Malvinas (1986), os

relatos da existência de uma terra desconhecida e desabitada na latitude 52.º sul do continente

americano, datam do século XVI2. A Espanha defende que o descobrimento das Ilhas

Malvinas foi realizado em 1540 pelo navio Incógnita da Marinha do bispo de Plascência, mas

a prioridade do descobrimento foi creditado aos holandeses, que em 1600 se aproximaram da

porção de terra, na realidade de três ilhas, que fazem parte do arquipélago das Malvinas, com

o navio Geleof, batizando-as Sebaldinas. Só em 1690, a bordo do navio corsário Welfare, o

capitão inglês John Stron atingiu o canal que separa as ilhas Sebaldinas do restante do

arquipélago e batizou-o com o nome de Falkland Sound, em honra ao Lord Falkland,

tesoureiro do Almirantado britânico, nome que a Inglaterra, posteriormente, estendeu a todo

arquipélago que possui mais de 200 ilhas, sendo que o nome Malvinas veio de Malouines,

creditado aos exploradores da francesa Companhia de Pesca do Mar do Sul.

2Com o apoio de Carlos V, de Castela, em 1520 o português Fernando de Magalhães chegou a ilhas, 18 léguas ao

oriente do Porto de San Jullián, que deram o nome de ilhas Sanson e dos Patos. Segundo Paulo de Queiroz

Duarte (1986) esse descobrimento foi registrado no Mapa XV do “Islário de Santa Cruz”, de 1541, que pertence

à Biblioteca Nacional de Madri.

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Os primeiros colonos ingleses chegaram em 1764, sendo que ao tomar

conhecimento, o governador de Buenos Aires, dom Francisco de Paula Bucarelli, mandou

uma expedição para as Malvinas para reivindicá-las, alegando estas estarem consignadas à

Argentina pelo Tratado de Tordesilhas. Depois de já ter se tornado um caso discutido

internacionalmente, a ocupação inglesa é oficializada em 1833 quando o capitão inglês J. J.

Onslow aporta nas Malvinas e expulsa os representantes do governo argentino que tentavam

manter a presença oficial do país na região. Uma invasão que, segundo Paulo Duarte

(1986:27), “[...] só se interromperia momentaneamente quase 150 anos depois, com a invasão

argentina de abril de 1982”.

A Grã-Bretanha exerceu, desde então, a soberania sobre as ilhas do

Atlântico Sul, mas o tema jamais foi esquecido pelos líderes políticos e pelo povo argentino,

fermentando um sólido sentimento de revanche, cada vez mais consistente, a medida que se

tornava mais consistente a ideia de nação e os sentimentos nacionalistas na Argentina. A

crença em uma humilhante perda de seu território por um ato imperialista inglês tomou conta

dos livros da escola aos noticiários de TV que repetiam “As Malvinas são nossas”, tornando o

tema no que Paulo Duarte (1986:30) chama de “uma espécie de obsessão coletiva que,

impaciente, aguardava uma oportunidade”.

Essa oportunidade foi forjada em 1982, quando comandava o país, sob um

regime militar ditatorial, o general Leopoldo Galtieri. Diante da greve da central sindical CGT

e do desgaste político provocado pelas acusações de violações dos direitos humanos, um ato

“antiimperialista” poderia dar um novo fôlego ao regime militar. Ao apelar para o sentimento

patriótico da sociedade, cujo imaginário já era povoado pela ideia de posse das Malvinas,

Galtieri viu as praças repletas pelo povo que declarou apoio a recuperação de algo que

acreditavam lhes ser de direito.

O conflito se inscrevia no que Federico Lorenz (2012: 81) ressaltou como

“ritos de forte presença simbólica no imaginário público argentino”, tendo como principal

argumento uma imagem da Grã- Bretanha como potência imperialista que visava usurpar o

pequeno território da nação argentina. No dia 2 de abril de 1982, Galtieri ordenou a tomada

das Ilhas Malvinas, mesmo sem o apoio logístico militar necessário para as proporções do

conflito que tal ação desencadearia. Faltavam armas, vestimentas adequadas ao intenso frio

das ilhas e principalmente soldados bem treinados, recorrendo, em sua grande maioria, a

conscritos (jovens treinados durante o período de alistamento militar). No mesmo dia 2 de

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Abril, a pedido da Grã-Bretanha, o Conselho de Segurança da ONU condena a agressão

argentina e reconhece o direito britânico de exercer a legítima defesa, sendo que a OEA

(Organização dos Estados Americanos), ao contrário, considera legítima a reivindicação do

país sul americano.

Na Inglaterra a primeira ministra Margareth Thatcher passava por um

momento de impopularidade por suas medidas econômicas que provocaram desemprego e

distúrbios populares, o que fez com que o conflito nas Malvinas se tornasse um trunfo para

que a chefe de estado recuperasse a sua imagem e garantisse a reeleição em 1983. Sob suas

ordens, no dia primeiro do maio de 1982 aviões britânicos bombardearam a pista de aviação

de Puerto Argentino nas Malvinas e no dia seguinte atingiram o Cruzeiro argentino General

Belgrano, perecendo 323 tripulantes. Com uma frota moderna e centralizada, soldados

preparados e bem armados, a vitória da Grã-Bretanha era iminente, levando a um saldo de 649

mortos argentinos, sendo que do lado britânico pereceram 255 combatentes em 74 dias de

conflito. Com a rendição argentina e a volta para casa dos ex- combatentes, muitos outros

conflitos relacionados às Malvinas estavam por vir, dessa vez não no front, mas nas tentativas

de se discutir o tema, tanto no âmbito político-diplomático, quanto no âmbito das ciências

humanas. Depois da guerra, vários esforços de governos argentinos para negociar

diplomaticamente Malvinas com a Grã-Bretanha foram empreendidos sem sucesso.

As relações entre os dois países foram retomadas no governo de Carlos

Menem (1989-1999), que foi recebido pela rainha em Londres e posteriormente, foram

recebidos na Argentina os príncipes Andrews e Charles. No governo de Néstor Kirchner

(2003-2007) houve um abalo nas relações diplomáticas, já que o presidente proibiu que

navios vindos das Malvinas parassem em portos argentinos, abalo que se intensificou em

2009, com o inicio da exploração de petróleo pela Grã-Bretanha na região, o que levou a

intensificação das discussões, agora com o apoio à Argentina da UNASUL (União de Nações

Sul-Americanas) e do MERCOSUL (Mercado Comum do Sul).

Em 2012 fez-se 30 anos que ocorreu a Guerra das Malvinas e em meio a

comemorações e debates sobre o tema, fortalece-se o pedido argentino pela retomada das

negociações com a Grã-Bretanha. No ano seguinte, um plebiscito com a população

malvinense retifica a vontade dos moradores de continuarem sob a jurisdição britânica, uma

decisão que é, hoje, o principal argumento da Grã-Bretanha para recusar as constantes

tentativas argentinas de retomar as negociações.

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O premiê britânico, James Cameron, disse que pretende proteger os

habitantes das ilhas e que age dentro da carta de autodeterminação da ONU, enquanto o

chanceler argentino Hectór Timerman defende que “Trata-se na realidade de uma pesquisa

organizada pelo governo britânico para que um punhado de cidadãos britânicos afirmassem

que queriam que o território que foi ocupado militarmente fosse reconhecido pelo mundo

como britânico”3. Ainda em 2013, a atual presidente da Argentina, Christina Kirchner, pede

ao então Papa argentino Francisco, o apoio a causa de seu país. Ela, em seu discurso4 na

cidade de Puerto Madryn/Argentina, classifica o domínio britânico nas Malvinas como

“anacrônico encrave colonial”, pede a exumação de corpos de soldados, ainda não

reconhecidos, no território malvinense e acusa a Grã-Bretanha de militarizar o Atlântico Sul.

Portanto, o fim da guerra entre Argentina e Grã-Bretanha nas Malvinas

inaugurou outro conflito, de período bem mais extenso, no campo político- institucional e fora

dele, abrangendo dimensões nos campos social e cultural, pois controversos debates

emergem. De fato as discussões sobre o tema se avolumam com o passar dos anos pós-

guerra, marcando o desfecho do conflito como o início de lutas pela sobreposição de

memórias. Federico Lorenz (2013) ressalta que desde 1982 se tem construído diferentes

formas de representação sobre a guerra, numa interminável luta pela memória em relação ao

conflito, sobre o qual quatro construções memorialísticas se sobressaem.

Um das memórias construídas tem cunho patriótico nacionalista e nela a

guerra figura entre outros conflitos bélicos argentinos, como a guerra da independência,

deixando o fracasso de lado para enaltecer a pátria e seus heróis. Uma construção que Lorenz

(2013) diz ser problemática, já que anula o aspecto mais complexo sobre o conflito nas

Malvinas, que foi sua condução pelas mesmas forças armadas que impunham uma ditadura à

sociedade argentina, e governavam sob o signo da repressão, prisão, tortura, assassinatos e

exílio de seus opositores. Já na segunda construção de memória, prevaleceu as narrações

vitimizadoras dos jovens soldados argentinos. A sociedade argentina, que anteriormente se

mostrou solidária e patrioticamente a favor do conflito, indagou, ao final deste, que o mesmo

ator que conduziu à guerra, foi o responsável pelo terrorismo de estado vigente desde 1976.

3COMITÊ DA ONU reitera apoio a pedido argentino de negociar sobre Malvinas. RJ, 2013. Disponível em

<http://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/06/comite-da-onu-reitera-apoio-pedido-argentino-de-negociar-sobre-

malvinas.html > Acesso em 20 de Agos. 2014. 4ARIEL, Palacios. Em aniversário da guerra das Malvinas, Cristina pede negociação. São Paulo, 2013.

Disponível em < http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,em-aniversario-da-guerra-das-malvinas-

cristina-pede-negociacao,1016176,0.htm >. Acesso em 25 de Agos. 2014.

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Para Federico Lorenz (2012:158) “A identificação simbólica dos mortos na guerra e dos

sobreviventes com os jovens, vítimas da ditadura militar, passaria a ser uma das vias de

apropriação social da derrota”. Os relatos dos recrutas sobre os maus tratados sofridos no

front, praticados por seus oficiais superiores e a constatação de terem ido para a guerra sem

haver completado os requisitos básicos de capacitação militar, assinalou os ex-combatentes

como vítimas, e foram comparados aos cometidos pela violação dos direitos humanos durante

a ditadura militar. Na homenagem que a X Brigada de Infantaria ofereceu aos ex-combatentes

logo depois da guerra, estes manifestaram revolta contra oficiais, gritando seu

descontentamento cada vez que citavam alguma autoridade militar. Para setores da sociedade,

o Estado ditatorial condenou seus jovens à violência, seja através das violações dos direitos

humanos em terras argentinas, seja no campo de guerra nas Malvinas.

Falar sobre Malvinas nos primeiros anos do pós-guerra significava recordar

o apoio popular a um empreendimento que acreditaram ser de cunho patriótico, mas foi

ressignificado por setores sociais como forma de manutenção do poder ditatorial vigente.

Seria recordar que oficiais que mataram jovens nas cidades, estavam a frente do comando de

guerra. Recordar era reviver o papel social no massacre de seus jovens nas Ilhas Malvinas.

Muitos preferiram, portanto, esquecer, esquecer a guerra, o apoio popular a ela, os jovens

mortos nela e consequentemente, esquecer os ex-combatentes, até porque, como nas palavras

de Lorenz (2012:144) “questionar-se ou falar sobre a guerra significa revisar a própria

responsabilidade frente a um passado que a derrota nas ilhas faz sair à luz.”

Os setores da sociedade argentina que optaram pelo esquecimento da guerra

tentaram tornar o tema um tabu, mas a resistência de outros grupos, como dos ex-combatentes

e de familiares de soldados mortos, mantiveram as discussões e intensificaram os debates

sobre o conflito, revelando como o mesmo tem sido ressignificado com o tempo. Setores

desses grupos5 se recusam a definir a guerra como apenas mais um episódio da ditadura

militar e alegam que os argentinos apoiaram espontânea e massivamente o conflito, mas que

não estavam a apoiar o regime militar. Houve voluntários que se ofereciam para participar da

guerra e houveram milhares de doações de alimentos e roupas de frio para os soldados no

front. O silêncio a respeito da guerra e o desprezo social frente a experiência marcante dos ex-

5TADDEO, Luciana. Familiares dos argentinos mortos recordam luta para permanência dos corpos nas

Malvinas. Buenos Aires, 2012. Disponível em

<http://operamundi.uol.com.br/conteudo/reportagens/20869/familiares+dos+argentinos+mortos+recordam+luta+

para+permanencia+dos+corpos+nas+malvinas.shtml >. Acesso em 20 de Mar. 2014.

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combatentes foram considerados os fatores decisivos para que o número de suicídios6 desse

grupo fosse maior do que o número dos que morreram em terra durante a guerra. Diante

desses dados, Vicente Palermo (2007) questiona se não é possível considerar os ex-

combatentes como vítimas, sem comprometer a percepção que eles têm de si próprios, sua

auto-estima.

A terceira forma de construção de memória a respeito do conflito,

destacada por Lorenz (2013), apresenta os ex-combatentes como uma geração que trouxe da

guerra a base do que daria legitimidade a sua voz política na luta latino-americana contra o

imperialismo, construção bastante criticada porque desesponsabiliza forças armadas e

sociedade do empreendimento bélico. E finalmente, a quarta forma de narração que se

sobressai é a que relata os aspectos técnicos do conflito, afastando qualquer conotação política

e privilegiando as ações militares e diplomáticas de luta por Malvinas, deixando de lado o

material que motiva as pesquisas históricas atuais: as experiências humanas relacionadas ao

conflito e às suas consequências.

Tais construções de memória sobre a guerra das Malvinas levaram a dois

questionamentos que tem norteado debates acalorados e tem tomado cada vez mais espaço

entre pesquisadores argentinos: como analisar a guerra das Malvinas, ressaltando suas

problemáticas, como a que relaciona sua deflagração com uma decisão do sistema político

ditatorial para se manter mais tempo no poder através de um ato nacionalista, sem, no entanto,

invalidar a reivindicações sobre as ilhas Malvinas? E como reconhecer a coragem e a

combatividade dos soldados que lutaram na guerra, reconhecendo, ao mesmo tempo, que

foram vítimas, ao serem levados para uma guerra que já estava perdida e torturados pelo seu

próprio comando dentro do front?.

Tais debates levaram ao surgimento dos conceitos de malvinização e

desmalvinização. Malvinizar em uma definição mais simples seria focar na legitimidade da

luta pelas ilhas Malvinas dentro da guerra, e não em aspectos como a participação da ditadura

militar em sua deflagração, em contraposição ao desmalvinizar que ressalta a guerra como um

grande equívoco que ceifou vidas de jovens inocentes e manchou de vergonha a sociedade

argentina, traída por um falso discurso nacionalista de um sistema político ditatorial. Há, no

6A questão do suicídio é uma das mais impressionantes estatísticas pós- conflito: foram mais de 400 argentinos e

264 britânicos ex-combatentes das Malvinas que suicidaram até 2014. Esses dados são o principal argumento

dos que defendem a situação de abandono e exclusão social dos veteranos argentinos.

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entanto, grupos que defendem que o ideal seria a Argentina buscar o processo de

desmalvinização no sentido de esquecer o conflito e focar em se colocar novamente no

mercado internacional, visando seu crescimento político e econômico, objetivo prejudicado,

também, pela insistência em continuar reivindicando as ilhas Malvinas.

Ao analisar um conjunto de filmes argentinos, que também procuram

construir memórias da guerra das Malvinas, torna-se importante examinar o papel dessas

narrativas fílmicas dentro desses debates, as quais carregam, também, os dilemas e indagações

enfrentados pelas narrativas de outros campos do conhecimento, sendo que o principal é como

construir as memórias dessa guerra, levando em consideração o fato desta ter sido um

empreendimento das forças armadas, responsável pelo governo ditatorial.

Portanto, além de ter suas próprias problemáticas, o conflito nas Malvinas

se inscreve numa questão maior, que é o período da ditadura militar na Argentina e que, por si

só, já envolve uma infinidade de construções de memórias conflitantes. Para compreender as

memórias construídas no cinema argentino sobre a guerra é preciso perguntar: quais

memórias são escolhidas, representadas e quem são os personagens valorizados nesses

filmes? O que é rememorado, como o é e por que essa rememoração ganha tem tal forma?

Que diálogo essas obras fílmicas estabelecem com outras linguagens e com os debates que

vários grupos da sociedade argentina travam no processo de repensar o passado recente do

país?

Do ponto de vista conceitual, minha pesquisa tem como eixo principal o

estudo da memória relacionada à história. Esse tema me remete às concepções de Walter

Benjamin (1993:224-225) sobre memória e narrativa histórica em que o processo ativo de

rememoração, fundado na experiência, expressa a possibilidade de compreensão do passado e

de construção de narrativas históricas que podem constituir em ações ativas no presente, ou

seja, olha-se para o passado na sua articulação com o presente, pois:

o dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do

historiador convencido de que, também, os mortos não estarão em segurança se o

inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.

Assim, há que recuperar os projetos sonhados e não construídos, ou

construídos e vencidos no passado para evitar que caiam no esquecimento, por isso, é

fundamental sua reconstrução, não em narrativas heróicas, mas ao contrário, o narrador deve

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ser, segundo Gagnebin (2006:52), como um catador de sucata e lixo, aquele que recolhe restos

e detritos, e, portanto, não tem por objetivo recolher grandes fatos e sim “deve muito mais

apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que não tem significação [...] que a

história oficial não sabe o que fazer” ou até mesmo tenta apagar. Seria um processo de

rememoração daquilo que foi esquecido, que não teve direito à lembrança.

Portanto, é papel do historiador contrapor seus estudos e perspectivas à

memória oficial, retomando aquilo que foi desprezado, relegado ao esquecimento e buscar

espaços para as memórias de pessoas e grupos que tiveram seus projetos preteridos ou

derrotados, tiveram suas lutas interrompidas ou vencidas, enfim, é preciso reabrir aquilo que a

história oficial fixou como tal, reabertura esta a partir de processos de rememoração daquelas

experiências que pareciam perdidas, mas que quando retomadas, ressurgem enquanto

possibilidades de redenção e de reparação de tudo aquilo que poderia ter sido e que não foi.

Tema abordado, também, em outro interprete de Benjamin, Michael Lowe

(2005:51), quando ele analisa as teses “Sobre o conceito de História” e vê na perspectiva de

história benjaminiana a defesa da redenção das gerações oprimidas no passado, através da

rememoração, com o objetivo de promover transformações no presente: “É preciso para que a

redenção aconteça, a reparação” através da realização dos objetivos pelos quais lutaram as

gerações vencidas e que não conseguiram alcançar seus objetivos. A tarefa do historiador não

se reduziria apenas a salvar do esquecimento aqueles que foram desprezados pela história

oficial, mas levar adiante sua luta e vencê-la, numa realização de uma utopia social, já que a

disputa no campo da memória tem sido vencida quase sempre pelas memórias oficiais de

grupos hegemônicos.

Parece que assim tem se processado no pós-guerra das Malvinas, mas

tentativas de consolidação de uma memória oficial, depara em muitos momentos dessa

história com memórias de grupos que insistem em transmitir suas experiências relacionadas à

guerra. Grupos de ex-combatentes, que vivenciaram a guerra no front, mas, também, grupos

que não foram à batalha, mas vivenciaram a guerra de outras formas, aguardando seu

desenrolar a distância, apoiando ou criticando seu empreendimento, o que não deixa de ser

uma experiência relacionada ao conflito.

Essas memórias, muitas vezes relegadas ao esquecimento, podem, no

presente, transformar o papel desses grupos dentro da sociedade e a própria sociedade

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Argentina, até porque, segundo Lowe (2005: 60-61), ao analisar as teses de Benjamin, “O

passado é iluminado pela luz dos combates de hoje, pelo sol que se levanta no céu da

história”, ou seja, “o presente ilumina o passado e o passado iluminado torna-se uma força no

presente”. Beatriz Sarlo (2007) inspirada, também, em Benjamin, vê a memória como

redenção das opressões do passado, com vistas a mudar o presente, sendo como um impulso

moral da história, além de ser uma de suas fontes. Sarlo (2007), contudo, alerta para fatores

que implicam cuidado ao trabalhar com a memória: primeiramente deve-se desconfiar de um

discurso da memória como construção de verdade; estar atento para o fato de que o

ressarcimento feito de memória induz a uma relação afetiva com o passado, o que não é

compatível com uma analise problematizadora do mesmo; é importante, também, ter

consciência sobre a dimensão coletiva da memória e, por último, atentar-se para o fato de que

o excesso de memória pode, também, conduzir a uma nova guerra.

A importância de se buscar memórias subterrâneas, relegadas ou oprimidas,

pode ser eficiente para evitar que se repita acontecimentos que macularam e marcaram a

história de um povo, pois exige atos de lembrar, relembrar, rememorar. Em contrapartida,

alguns lutam pelo esquecimento, como o exemplificado por Gagnebin (2006:47), ao citar o

objetivo de Hitler, que ao querer eliminar todo um povo desejava destruir uma face da história

e da memória: “o esquecimento dos mortos e a degeneração do assassínio permitem, assim, o

assassinato tranquilo, hoje, de outros seres humanos cuja lembrança, deveria igualmente se

apagar”.7

Porém, tal empreendimento nunca se dá de forma eficiente, de acordo com

Beatriz Sarlo (2007:10) que acredita que uma família, um governo ou um Estado podem até

tentar proibir a memória de um determinado acontecimento, mas só de maneira ineficiente, ou

então tentando eliminar todo um povo, coisa que nem Hitler conseguiu: “Em condições

subjetivas e políticas ‘normais’, o passado sempre chega ao presente”. Segundo Michel

Pollack (1989) “Assim como as razões de um tal silêncio são compreensíveis no caso de

antigos nazistas ou de milhões de simpatizantes do regime, elas são difíceis de deslindar no

7No momento da escrita deste texto – julho/agosto de 2014 -, após ocupação e intermitentes bombardeios

realizados por tropas de Israel na Faixa de Gaza, os palestinos contam seus mortos, entre eles, centenas de

crianças e mulheres, enfim, população civil. Os grandes meios de comunicação, os governos europeus e o dos

USA a tudo assistem em silêncio, numa tentativa de ocultar os fatos, de impedir a construção de uma memória,

ou seja, tentam impor o esquecimento. Ângela Davis, historiadora e ativista norte-americana, em viagem ao

Brasil, afirma que Israel é o único país colonizador no século XXI e o único que construiu e que mantém uma

prisão a céu aberto: a Palestina (ver: entrevista concedida a Paulo Moreira Leite, no programa Espaço Público,

da TV Brasil, em 29/07/2014).

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caso das vítimas”, mas ocorre, também, que “o longo silêncio do passado, longe de conduzir

ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de

discursos oficiais”.

A importância do papel das vítimas na rememoração é analisada por Sarlo

(2007:20) ao apresentar o poder da memória no passado recente da Argentina em que os

testemunhos possibilitaram a condenação do terrorismo de Estado: “os atos de memória foram

uma peça central da transição democrática” e, por isso,“nenhuma condenação teria sido

possível se esses atos de memória, manifestados nos relatos de testemunhas e vítimas, não

tivessem existido”. Mas até nesse caso existem conflitos entre os que defendem manter as

lembranças e os que sugerem encerrar o assunto, assim como ocorre com o conflito nas

Malvinas, tão implicado com o período ditatorial, e que vive, ainda hoje, envolvido por

discursos que defendem a memória, por mais diversas que sejam, e discursos que argumentam

a importância do esquecimento.

A memória é transmitida através de narrativas e uma das formas de narrativa

é a histórica. Segundo Beatriz Sarlo (2007:24) “não há testemunho sem experiência, mas

tampouco há experiência sem narração” e a História como disciplina remete a narração. Para

Walter Benjamin a narrativa histórica é o resultado da relação experiência e memória e ao

juntar os rastros, os restos da historia oficial, os historiadores cumprem a tarefa de “narrador

autêntico”, o que Gagnebin (2006:118) explica como “essa reunião paciente e completa de

todas as almas do Paraíso, mesmo as mais humildes e rejeitadas”. A autora (2006:43-44)

lembra dos estudos de Ricoeur que defendia que a História como disciplina remete a narração,

na “reconstrução do passado sobre a base dos rastros deixados por ele” sendo que o “rastro

inscreve a lembrança de uma presença que não existe mais e que sempre corre o risco de se

apagar definitivamente”. A memória utiliza frenquentemente a imagem do rastro, porque a

memória vive essa tensão entre a presença e a ausência, presença do presente que se lembra

do passado desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção

em um presente evanescente.

Michael Pollack (1989) defende que essa memória “proibida” e

”clandestina” ocupa toda a cena cultural, o setor editorial, os meios de comunicação, o cinema

e a pintura, comprovando, caso seja necessário, o fosso que separa de fato a sociedade civil e

a ideologia oficial de um partido e de um Estado que pretende a dominação hegemônica. O

autor (1989) ressalta que as lembranças mais próximas daquelas que guardamos, as

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recordações pessoais, são de ordem sensorial - barulho, cheiro, cores, como explosões, gritos,

choros - e ainda que seja tecnicamente “impossível captar todas essas lembranças em objetos

de memória confeccionados hoje, o filme é o melhor suporte para fazê-lo: donde seu papel

crescente na formação e reorganização, e, portanto, no enquadramento da memória”.

Na busca pelas construções de memória dos excluídos, nos deparamos,

portanto, com um rico material de pesquisa: a produção cinematográfica. Por suas

peculiaridades, as narrativas fílmicas se tornaram um veículo fundamental na difusão de

memórias oficiais, mas, também, na difusão de memórias de grupos sociais que pouco

tiveram espaço nas narrativas tradicionais. As narrativas fílmicas configuram, portanto, um

espaço importante para as memórias “silenciadas” por memórias oficiais e hegemônicas.

Influenciada por esse debate sobre memória, essa pesquisa toma um conjunto de filmes e

depoimentos orais sobre a guerra e o pós-guerra das Malvinas. Muitas análises têm sido feitas

sobre construções de memória sobre o conflito nas Malvinas no âmbito das ciências sociais,

mas carecemos de um trabalho voltado especificamente para analisar o papel das narrativas

fílmicas argentinas nessas construções.

De acordo com Viviana Rangil (2007:15) a Argentina passa por um período

em que se busca a rememoração de uma série de acontecimentos que marcaram a vida do seu

povo, através de atos institucionais, como a criação do feriado nacional no dia 3 de março,

para lembrar o golpe de estado em 1973, e, também, através de ações que nascem dentro do

seio da sociedade, como os filmes sobre a ditadura e outros temas que marcaram a história do

país, “Desde 1973 com seu golpe de Estado e até a crise de 2001, com uma queda de todos os

sistemas, se trata de recordar”. A autora (2007:15) reporta as concepções de Canclini (2004)

para defender que na America Latina muitas vezes a memória ser reduz a exibição de

monumentos em honra as vítimas e, também, a criação de datas comemorativas, mas estas são

manifestações governamentais-institucionais, impossibilitadas de uma articulação com uma

memória coletiva, de recuperar atores e processos: “Talvez seja na arte, onde tarefas de

memória permanecem ligadas à audácia das vanguardas”. No caso da arte cinematográfica,

esse papel tem sido cada vez mais importante no quadro de construções de memória na

Argentina.

Ignorar a importância do cinema no debate sobre questões políticas e sociais

é abrir mão de um rico material de análise no âmbito das pesquisas históricas. Porém, a

concepção do cinema, enquanto documento histórico enfrenta, ainda hoje, certo desafio

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quanto à hierarquização das fontes com as quais o historiador trabalha. Apesar da notável

expansão da cultura audiovisual nos séculos XX e XXI e a ampliação de pesquisas dos

historiadores com o cinema, tais produções ainda são vistas com ressalvas, quando se trata da

busca de documentos que atestem o teor científico dos trabalhos. Para muitos historiadores, a

maior preocupação são as diversas possibilidades de manipulação de imagens e do discurso a

disposição do cineasta através da linguagem cinematográfica. O fato é que este artifício de

“manipulação” não é uma característica apenas das produções cinematográficas, mas de

qualquer documento histórico com o qual o historiador venha a trabalhar, pois trata-se de uma

reconstrução ou interpretação através da linguagem, seja ela qual for. Como ressalta Ginzburg

(2002:44)

As fontes não são nem janelas escancaradas, como acreditam os positivistas, nem

muros que obstruem a visão, como pensam os cépticos: no máximo poderíamos

compará-las a espelhos deformantes. A análise da distorção específica de qualquer

fonte implica já um elemento construtivo.

As fontes devem ser, portanto, questionadas, como ressalta José Walter

Nunes (2009:157), inspirado em Benjamin (1987): “Saber ler as fontes, portanto, contra os

interesses de quem as produziu, é tarefa do historiador crítico, que constrói assim, uma contra-

análise, uma história a contrapelo”, já que tais evidências podem ser fruto de relações de

força, e estão a expressar a história dos vencedores.

Atento à “licença poética”, comum nas manifestações artísticas e às relações

de poder que permeiam as mesmas, o historiador encontra na narrativa cinematográfica um

rico objeto de estudo. Porém, é importante para o historiador, ao tomar as narrativas fílmicas

como documento, problematizar seu papel representacional. A representação de um

determinado acontecimento no filme, assim como em outras artes, não implica a reprodução

do próprio acontecimento, mas a reconstrução deste, segundo seus realizadores. Ou seja, é

sempre mediatizada pelo tratamento fílmico. Como defendem os autores Gaudreault e Jost

(1995:42), o cinema tem sua própria problemática, ao ser comparado com outras formas

narrativas. Todo plano fílmico, por exemplo, contem uma pluralidade grande de enunciados

narrativos: “O mundo da ficção é um mundo parcialmente mental, que possui suas próprias

leis”. Este universo construído pelo filme chama-se diegese8.

8Diegese no cinema é a realidade da narrativa fílmica, diferente da nossa realidade, ou seja, é a dimensão

ficcional da produção cinematográfica. Aspectos que só tem coerência dentro da produção , como, por exemplo,

o tempo e o espaço no filme respeitam uma coerência que só existe no próprio filme.

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A análise de uma produção cinematográfica deve, segundo Casseti e Chio

(2007), trilhar inicialmente três passos: delimitação do campo de investigação, a eleição do

método de exploração e a exploração dos aspectos específicos que foram questionados no

início da pesquisa. Em relação ao método, os autores (2007:27) explicam que pode-se servir

dos instrumentos da semiótica, considerando o filme como texto, ou dos instrumento da

sociologia, “afrontando o filme como uma representação mais ou menos completa do mundo

em que operamos, como um espelho e as vezes como um modelo”9; pode-se analisar

recorrendo a instrumentos da psicanálise, analisando os impulsos e complexos dos

personagens e, finalmente, a parte mais importante para o meu trabalho, os autores ressaltam

que podemos relacionar o filme com os instrumentos da história, considerando-o como

qualquer outro documento do seu tempo, tendo que lidar com determinados enfoques e

métodos. Para os autores (2007) são cinco os momentos que assinalam a entrada em cena do

analista: por um lado, a pré compreensão do texto e a hipótese explorativa, por outro, a

delimitação do campo, a eleição do método e a definição dos aspectos a estudar. O objeto de

análise no filme deve ser decomposto e recomposto para compreender suas regras de

construção e funcionamento.

As produções cinematográficas que abordam a Guerra das Malvinas,

diretamente ou indiretamente, participam do processo de construção de memórias sobre o

evento. A cada filme, uma nova leitura sobre a guerra, uma nova ressignificação que carrega

questões do momento presente da sociedade argentina e que podem, também, influenciar

pensamentos e direcionamentos dentro dos vários grupos sociais envolvidos, ou seja, a cada

momento histórico da Argentina, novas releituras sobre a guerra são feitas, inclusive pelo

cinema, influenciado pela sociedade e ao mesmo tempo a influenciando e por isso a

importância de se questionar: como o cinema argentino tem construído memórias sobre a

guerra; as problemáticas levantadas por seus realizadores; as influências dos pensamentos de

grupos políticos e sociais na forma em que são construídas as memórias sobre o conflito nas

9Tomar o filme como representação da sociedade em que ele foi produzido é um caminho a ser trilhado com

bastante cuidado. Isso porque, o filme pode representar costumes, crenças, ideologias de um pequeno grupo, mas

não da sociedade como um todo e mesmo dentro de um pequeno grupo, há pensamentos divergentes. A narrativa

fílmica pode, portanto, estar a representar algumas ideologias de seus realizadores, que não são compartilhadas

por seu grupo social. O fato é que ao tomar uma narrativa fílmica, com o objetivo de que esta desvele aspectos

da sociedade em que foi produzida, sem levar em consideração a questão da representação, que as crenças

representadas não são únicas e plenas e que podem ser contestadas no âmbito dessa sociedade, o historiador

estaria comprometendo seu trabalho.

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Malvinas no cinema, ou seja, como as narrativas cinematográficas dialogam com as narrativas

oficias e não oficiais sobre a guerra; e, em contrapartida, quais as influências dessas

construções de memória feitas no cinema, na sociedade argentina. Para isso, trabalharei com

seis obras cinematográficas: os dramas Los Chicos de la Guerra (1984) de Bebe Kamín, La

Deuda Interna (1988) de Miguel Pereira e El visitante (1999) de Javier Oliveira; o curta-

metragem Guarisove, los olvidados (1995) de Bruno Stagnaro, o filme do gênero guerra

Iluminados pelo Fogo (Iluminados por el Fuego; 2005) de Tristán Bauer e a comédia Um

Conto Chinês (Un Cuento Chino; 2011) de Sebastián Borensztein. São obras de distintos

gêneros, que apresentam diretamente ou indiretamente a guerra e as consequências dela

dentro da sociedade argentina. A seleção das mesmas foi pautada no fato de cada uma dessas

obras representa uma tendência narrativa, temática e estilística diferente de abordagem do

tema, em diferentes períodos, década de 80, 90 e início do século XXI.

Em minha proposta de pesquisa serão fundamentais, também, as entrevistas

com ex-combatentes nas Malvinas, observando suas concepções sobre as construções de

memórias feitas pelas narrativas cinematográficas. Esse processo vai possibilitar responder ao

questionamento de como eles têm visto a representação de suas experiências no cinema e de

que forma essas construções de memórias sobre a guerra, dialogam com as memórias

daqueles que foram testemunhas diretas desse conflito. Esse objetivo me leva ao recurso

metodológico da História Oral. A professora Valentina da Rocha Lima (1983) em sua palestra

“Problemas metodológicos da História Oral” explica que no trabalho com a História Oral o

que se busca hoje é a memória dos esquecidos, já que estamos dentro de um fértil período de

pesquisas em que tem havido uma democratização dos sujeitos a serem estudados. Lima

(1983) ressalta que se trata de um terreno pantanoso, cujos problemas metodológicos são

muitos, principalmente porque os recursos da História Oral estão relacionados com as

tradições intelectuais, as indagações teóricas, a visão de mundo, o conhecimento daqueles que

realizam a entrevista. O desafio maior para o entrevistador é, para a autora (1983:09), o

reconhecimento de sua interferência e de sua subjetividade, é “reconhecer o outro como

sujeito produtor de significados, significados que não são os meus” e, portanto, não são as

minhas categorias que devem ser consideradas. O objetivo deve ser o de estabelecer uma

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relação dialógica10 com o entrevistado. Uma característica importante que difere o documento

oral, do escrito, é para Valentina (1983:7) a ideologia:

A ideologia que se expressa no documento escrito, é aquela ideologia transparente

no momento em que aquele documento se formulou, correspondente àquele evento,

correspondente àquela circunstância, enquanto que a ideologia num documento

resultante da História Oral é uma ideologia que aparece na reconstituição de um

momento que é anterior àquele momento em que está se criando o documento.

Ou seja, é a ideologia do momento em que o entrevistado está falando que

vai permear a narrativa que é de um tempo passado. Além disso, há a subjetividade do

entrevistado que, também, traz em seus depoimentos suas especificidades - fatores como a

idade, o gênero, a posição social, interferem na construção de sua memória. São aspectos que,

de acordo com Lima (1983:09-12), se apresentam na relação de interação entre entrevistado e

entrevistador: “é uma relação dual, de interrogações recíprocas, mesmo que da parte do

entrevistado essas interrogações não se explicitem, não sejam verbalizadas”, uma relação que

traz, também, não o vivido, mas a reconstituição deste, o “vivido na memória”. Tais

considerações atestam a complexidade de se trabalhar com a História Oral, o que exige um

anterior preparo do entrevistador, no que diz respeito aos seus conhecimentos teóricos e

metodológicos. Quanto à metodologia, Lima (1983:03) recomenda

Olhar cada depoimento como uma unidade de análise em si mesmo, cada um deles.

Então, o trabalho seria quase que um trabalho de exegese, trabalho de decodificação

do discurso, o trabalho de observar como a memória em funcionamento situou

coisas, e, através de cada depoimento, procurar definir, no universo das

determinações e das escolhas, de que forma as determinações pesaram para aquele

ator e como ele soube criar ou usar o seu espaço de autonomia.

Sobre a influencia das determinações sociais nas narrativas é importante

salientar outras abordagens que questionam esse poder do contexto social. A professora

Nancy Alésio Magalhães, em seu artigo Narradores: vozes e poderes de diferentes

pensadores (2001:95), defende que o esfacelamento do social e da experiência em nossos dias

atuais levou a um declínio da memória, em que “o significado de nossas vidas não está mais

dado implícita nem imediatamente pelo contexto social”, e somente reconhecendo essa perda,

10Valentina da Rocha Lima (1983) defini como relação dialógica entre entrevistador e entrevistado uma busca de

abrir o discurso daquele que entrevistamos, que normalmente vem preparado, arrumado. A superação desse

discurso inicial só vem com a relação prolongada entre entrevistador e entrevistado, onde predomina o respeito

ao tempo, a lógica do segundo e para isso, é necessário o reconhecimento desse sujeito como produtor de

significados.

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podemos entender melhor a relação entre a experiência e a narrativa. Tais debates sobre

História Oral serão fundamentais no momento que trabalharei com os relatos dos ex-

combatentes nas Malvinas, questionando-os sobre as representações das narrativas fílmicas

argentinas.

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