Memórias Midiatizadas: a noção de ciência construída pelos indivíduos a partir do consumo...

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    MEMRIAS MIDIATIZADAS: A NOO DE CINCIA CONSTRUDAPELOS INDIVDUOS A PARTIR DO CONSUMO MIDITICO

    MEDIATED MEMORIES: THE NOTION OF SCIENCE BUILT BYINDIVIDUALS FROM MEDIA CONSUMPTION

    MEMORIAS MEDIATIZADAS: LA NOCIN DE CIENCIA CONSTRUIDA PORLOS INDIVIDUOS A PARTIR DEL CONSUMO DE LOS MDIOS

    Knia Beatriz Ferreira MaiaUFRN

    [email protected]

    Emily Gonzaga de ArajoUFRN

    [email protected]

    Resumo

    Este artigo tem como objeto o fenmeno sociocultural da midiatizao (Fausto Neto, 2008;Sodr, 2002), visualizado a partir da recepo, no qual destacado o processo de consumosimblico com o contedo miditico (Garca Canclini, 1999) e seu entrelaamento com

    elementos extra-miditicos, recuperados segundo as mediaes de Martn-Barbero (2006).Para tanto, realizamos entrevistas com dez pessoas em uma fbrica relacionada Informticae instalada na regio metropolitana de Natal (Rio Grande do Norte). A inteno foi, por meiode suas narrativas (os discursos de memria), perceber as dinmicas do consumo miditico norecorte escolhido, o tema cincia. No trabalho de campo, usamos a tcnica das entrevistas em

    profundidade, no qual a fala de nossos entrevistados constituiu nosso corpus.

    Palavras-chave: Recepo. Midiatizao. Consumo miditico.

    Abstract

    This article is about the sociocultural phenomenon of mediatization (Fausto Neto, 2008;Sodr, 2002), taken from the angle of reception, in which we emphasize the process ofsymbolic consumption with media content (Garca Canclini, 1999) and its interweaving withextra-media elements, recaptured from the perspective of mediations by Martn-Barbero(2006). Thus, we conducted interviews with ten employees from a Computing-relatedindustry, installed in the metropolitan region of Natal (state of Rio Grande do Norte). Ourgoal was, through their narratives (the discourses of memory), try to understand the dynamicsof media consumption about the subject science. In field work, we used the technique of in-depth interviews, so that the speech of our interviewers was ourcorpus.

    Keywords: Reception. Mediatization. Media Consumption.

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    Resumen

    Este artculo habla sobre el fenmeno sociocultural de la mediatizacin (Fausto Neto, 2008;Sodr, 2002), que se ve desde la recepcin, donde se destaca el proceso de consumosimblico con contenido multimedia (Garca Canclini, 1999) y su entramado de significadoscon los elementos extra de los medios, de acuerdo con la perspectiva de las mediaciones deMartn-Barbero (2006). As, llevamos a cabo entrevistas con diez personas, empleados de unaindustria relacionada a Informtica y instalada en la regin metropolitana de Natal (RioGrande do Norte). La intencin era, a travs de sus relatos (discursos de la memoria),entender la dinmica del consumo de los medios en la rea seleccionada, el tema ciencia.Durante el trabajo de campo, se utiliz la tcnica de entrevistas en profundidad, donde eldiscurso de los entrevistados constituyeron nuestro corpus.

    Palabras clave: Recepcin. Mediatizacin. Consumo de los medios.

    O conhecimento acumulado na pesquisa em comunicao nos evidencia que a presena

    da mdia alterou sobremaneira nossa forma de viver, nossa experincia, tanto enquanto

    indivduos como em termos de coletividade. Indagar o que os meios fazem conosco - e o que

    ns fazemos com eles - uma provocao que no de hoje nos estudos da mdia e que se

    mantm em aberto, revelando a complexidade que a questo comporta, bem como a

    dinamicidade que os processos da comunicao assumem no contexto da cultura

    contempornea.Quem deseja vislumbrar os traos da resposta a essa questo instigado a descer mais

    profundamente nas camadas que permeiam nossa relao com a mdia. Este foi o intento

    quando nos propusemos a fazer uma incurso tomando como objeto um fenmeno 1: a

    midiatizao, (Fausto Neto, 2008; Sodr,2002)

    J no mais novidade falar que vivemos em uma sociedade midiatizada, isto , na

    qual a presena das mdias no cotidiano do indivduo intensificada, de modo que os meios e

    as dimenses imbricadas neles passam a ser elementos integrantes do processo de

    estruturao da sociedade e da elaborao da realidade (noo do real). O fluxo da informao

    e o processo de produo e apropriao de sentidos so reconfigurados no curso deste

    fenmeno, desdobrando-se em diversas prticas sociais, evidenciadas de maneira to clara em

    nosso tempo pelas novas sociabilidades.

    1 "MEMRIAS MIDIATIZADAS: percepes sobre cincias reconfiguradas a partir do consumo miditico",

    Dissertao de Mestrado (2011). Autor (orientador da dissertao) e Co-autor .

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    Fausto Neto (2008, p. 2) afirma que a midiatizao (...) resulta da evoluo de

    processos miditicos que se instauram nas sociedades industriais. Esses processos dizem

    respeito convergncia de fatores scio-tecnolgicos, principalmente nas ltimas trs

    dcadas, os quais produziram profundas e complexas alteraes na nossa constituio

    societria. O autor fala da disseminao de protocolos tcnicos em toda extenso da

    organizao social e da intensificao da transformao de tecnologias em meios de produo,

    circulao e recepo de discursos. Para ele, o que precisamente distingue esta sociedade

    midiatizada de sua precedente o protagonismo dos meios nos modos de estruturao e

    funcionamento das dinmicas sociais.

    J no se trata mais de reconhecer a centralidade dos meios na tarefa de

    organizao de processos interacionais entre os campos sociais, mas deconstatar que a constituio e o funcionamento da sociedade de suasprticas, lgicas e esquemas de codificao esto atravessados epermeados por pressupostos e lgicas do que se denominaria a cultura damdia. Sua existncia no se constitui fenmeno auxiliar, na medida em queas prticas sociais, os processos interacionais e a prpria organizao social,se fazem tomando como referncia o modo de existncia desta cultura, suaslgicas e suas operaes (FAUSTO NETO, 2008, p. 4).

    Sodr (2002), por sua vez, compreende a midiatizao em termos de uma qualificao

    virtualizante da vida. Observando a passagem do que denomina mdia tradicional ou linear

    para as teletecnologias e/ou comunicao em rede, verifica a mudana de paradigma de uma

    comunicao centralizada, vertical e unidirecional para um universo de novas possibilidades

    no bojo da hipermdia, a exemplo da interatividade e multimidialismo. Possibilidades essas

    que, para o autor, se realizam e se evidenciam em uma tendncia virtualizao.

    Tudo isto, associado a um tipo de poder designvel como ciberocracia,confirma a hiptese, j no to nova, de que a sociedade contempornea(dita ps-industrial) rege-se pela midiatizao, quer dizer, pela tendncia virtualizao ou telerrealizao das relaes humanas, presente na

    articulao do mltiplo funcionamento institucional e de determinadaspautas individuais de conduta com as tecnologias da comunicao. A estasse deve a multiplicao das tecnointeraes setoriais (SODR, 2002, p. 21).

    Dessa forma, Sodr (2002,p. 25-26) menciona a existncia de um quarto bios.

    Recuperando aqui as ideias aristotlicas em relao s dimenses da existncia, a quarta e

    hodierna ambincia seria precisamente a miditica, companheira da vida contemplativa

    (bios theoretikos), poltica (bios politikos) e do prazer (bios apolaustikos). Em outras

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    palavras, este autor expressa a afetao das formas de vida tradicionais por uma qualificao

    de natureza informacional.

    Estamos tomando aqui, quanto midiatizao, o pensamento de autores que nos levam

    a perceber a onipresenada realidade miditica (SANTAELLA, 2002) em nosso contexto.

    Isso significa, em outras palavras, a intensificao da cultura miditica em termos de vida em

    sociedade e, mais precisamente nos ltimos trinta anos, de uma cultura miditica alinhada ao

    virtual, s tecnologias advindas das telecomunicaes.

    Assim, nos parece cabvel falar em processos complexos de negociao, assinalados por

    continuidades e descontinuidades. Em coexistncia da cultura miditica com outras formas de

    cultura, fomentando um envoltrio cultural heterogneo, por assim dizer hbrido (GARCA

    CANCLINI, 2006). Tal postura apresenta-se, para ns, mais consoante com uma percepoadequada: nem desmerece ou desvaloriza a fora simblica do campo miditico e nem reduz a

    capacidade crtica e proativa dos sujeitos receptores.

    Precisaremos examinar a mdia como um processo, como uma coisa emcurso e uma coisa feita, e uma coisa em curso e feita em todos os nveis,onde quer que as pessoas se congreguem no espao real ou virtual, onde secomunicam, onde procuram persuadir, informar, entreter, educar [...]Entender a mdia como um processo e reconhecer que o processo fundamental e eternamente social insistir na mdia como historicamente

    especfica. [...] Entender a mdia como processo tambm implica umreconhecimento de que ele fundamentalmente poltico ou talvez, maisestritamente, politicamente econmico (SILVERSTONE, 2005, p. 16-17).

    No eco das consideraes de Silverstone (2005), estamos concebendo mdia para alm

    dos suportes tcnicos, isto , dos meios propriamente ditos. Ela um ente social que diz

    respeito s construes de significados, valores e prticas (WOLF, 2005), e por isso mesmo

    est relacionada experincia do indivduo, tessitura dos modos de vida em sociedade, nas

    suas diversas esferas de socializao. Conforme aponta Sodr (2002), ela ambincia;

    mediao (MARTN-BARBERO, 2006); fenmeno sociocultural em contnuo, o qual se

    articula e dialoga com outras dimenses (poltica, econmica, histrico-conjuntural, etc.) e

    no existe apartada delas.

    No obstante, o entendimento que temos de nossa relao com os meios e sua cultura

    pode ser compreendida pelo vis do consumo.

    Consumimos a mdia. Consumimos pela mdia. Aprendemos como e o queconsumir pela mdia. Somos persuadidos a consumir pela mdia. [...]Consumimos objetos. Consumimos bens. Consumimos informao. Mas,

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    nesse consumo, em sua trivialidade cotidiana, construmos nossos prpriossignificados, negociamos nossos valores e, ao faz-lo, tornamos nossomundo significativo (SILVERSTONE, 2005, p. 150).

    Consumo este onde os elementos miditicos dos quais o indivduo se apropriaentrelaam-se com outros de sua experincia. Sobre estes outros, evocamos atores de natureza

    no-miditica, provenientes do contexto (relaes sociais diretas e indiretas; grupo ou setor

    scio-econmico, dentre outros) e da subjetividade (aqui, nos ser vlido pr em relevo mais

    adiante a dimenso da memria).

    Para esclarecer do que estamos falando exatamente quando situamos estes outros,

    pertinente pontuar sobre a perspectiva das mediaes, de Martn-Barbero. Elas so elementos

    constituintes de nossa experincia; so dimenses intrnsecas ao viver em sociedade, as quaispossuem um efeito engendrador de nossa forma de vida. Para Martino (2009, p. 179),

    mediaes so (...) as estruturas de construo de sentido s quais o receptor est vinculado

    e abarcam aspectos como histria pessoal, cultural de grupo, relaes sociais imediatas e

    capacidade cognitiva, para dar exemplos. A mdia, por sua vez, tambm uma mediao2.

    Dessa maneira, as mediaes tambm nos valem como uma espcie de pano de fundo sobre

    o qual as apropriaes do contedo miditico se debruam; a, tambm se articulam. Estes

    mecanismos esto diretamente relacionados com a construo de nossas vises de mundo.

    A perspectiva das mediaes mantm ntima relao com a teoria sociocultural do

    consumo, principalmente em Garca Canclini (1999). Alm de alinhar consumo recepo,

    ele mostra como as prticas de consumo so, na verdade, prticas sociais. O consumo visto

    como vetor de produo de sentido e ressignificao medida que mediao nas trocas

    objetivas e simblicas entre os indivduos.

    O consumo o conjunto de processos socioculturais em que se realizam aapropriao e os usos dos produtos. Esta caracterizao ajuda a enxergar os

    atos pelos quais consumimos como algo mais do que simples exerccios degostos, caprichos e compras irrefletidas, segundo os julgamentos moralistas,ou atitudes individuais (GARCA CANCLINI, 1999, p. 77).

    2 Da surge um trocadilho: a mediao da mdia seria uma midiao (POLITSCHUK; TRINTA, 2003).

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    Memria: lugar de cristalizao das apropriaes simblicas

    Para completar nosso horizonte conceitual, agregamos a dimenso da memria.

    Recuperada sob a tica da histria de vida, ela diz respeito ao acervo pessoal de registros denossa experincia como um todo, ainda que essa se desdobre em mltiplos episdios, tais

    como as faces de um diamante que perpassado por um feixe de luz. Dito de outra forma,

    trata-se de uma instncia reconstituidora do passado que habita dent ro de ns (SARLO,

    2007, p. 28).

    Segundo Maurice Halbwachs (2004), a experincia da memria no estritamente

    individual, pessoal. Nossas impresses podem se apoiar no somente sobre nossa lembrana,

    mas tambm sobre as dos outros. Teramos ento, na evocao do lembrar, uma experincia

    partilhada. Nossas lembranas permanecem coletivas mesmo que tratemos de momentos onde

    somente ns estivemos presentes,por que nunca estamos ss: levamos os outros dentro de

    ns (HALBWACHS, 2004, p. 30). Logo, o ato de lembrar coletivo e pessoal ao mesmo

    tempo, onde o indivduo entra e sai de grupos sociais.

    No mbito desses grupos pelos quais passeamos socioculturalmente, expomos nossas

    percepes, nossas vises de mundo, e tambm internalizamos algo da percepo coletiva

    com a qual tivemos contato. Fazemos trocas simblicas. Em ns, esto verdadeiros

    palimpsestos, isto , tramas de textos entrecruzados cuja procedncia mescla fontes

    miditicas e no-miditicas, as quais se inscrevem na memria dos sujeitos (BONIN, 2006, p.

    134).

    A memria nos serviu como operador terico para uma finalidade especfica: por meio

    de discursos produzidos em seu mbito, alcanarmos empiricamente a midiatizao e o

    consumo miditico.

    Empiria

    Utilizando da tcnica das entrevistas em profundidade, objetivamos visualizar nas

    narrativas dos entrevistados - isto , por meio dos seus discursos de memria e, ao mesmo

    tempo, de consumo simblico sobre o recorte temtico definido - como essas pessoas

    reproduzem suas percepes reconfiguradas a partir da midiatizao, deixando entrever as

    reverberaes entre aquilo que se apropriaram na mdia com informaes provenientes de

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    outras esferas de socializao (mbito familiar, escolar, de trabalho, etc). Essa reconfigurao

    como que a partcula visvel da midiatizao enquanto fenmeno sociocultural que

    captamos. Junto a ela e, possivelmente, to imbricadas a ponto de no conseguirmos

    dissoci-las - esto as prticas sociais, as quais constituram-se como fio condutor de todo

    raciocnio terico-metodolgico do trabalho.

    Nosso eixo temtico foi "cincia". Poderamos ter escolhido outro assunto para nortear

    nossa conversa com os entrevistados, contudo, selecionar a cincia - ainda que no seja aquela

    em seu estado mais original, uma vez que est no mbito do discurso miditico e modificada

    por ele - nos permite perceber, por conseguinte, do ponto de vista do receptor, como as mdias

    esto contribuindo com seu papel de difuso de conhecimento, de colaboradoras na formao

    intelectual/cultural do indivduo em tempos de aprendizado multi-tarefa, isto , um no qual aaquisio de saberes no se d apenas nos domnios escolares, nos territrios tradicionais da

    educao formal3, mas se amplia para vias alternativas.

    A etapa emprica propriamente dita foi realizada nas dependncias de um ambiente

    industrial, em uma fbrica relacionada Informtica e instalada na regio metropolitana de

    Natal (Rio Grande do Norte) na primeira semana do ms de agosto de 2010. Realizamos

    entrevistas em profundidade na modalidade semi-aberta (o entrevistador tem um roteiro de

    perguntas). A fala de nossos entrevistados (total de dez) constituiu nosso corpus, de modoque, por meio de suas narrativas (os discursos de memria), percebemos as dinmicas do

    consumo miditico no recorte escolhido.

    Definiu-se um perfil: pessoas de ambos os sexos, cujas idades estivessem entre 18 e 35

    anos, entendendo que nesta faixa etria conseguiramos alcanar um pblico jovem, em

    princpio mais familiarizado com os segmentos de mdia disponveis no contexto

    sociocultural nacional e local (veculos impressos, rdio, televiso e Internet), isto , seriam

    usurios mais provveis destas mdias. Alm disso, estariam situados em um estgio de vidano qual boa parte da educao formal (nvel mdio completo ou incompleto; nvel superior

    em andamento ou concludo) j teria sido cumprida, em tese; isso nos sinalizava que os

    entrevistados j seriam iniciados no tema (cincia). Por fim, preferimos optar por

    indivduos legalmente responsveis, isto , maiores de dezoito anos, para eliminar a questo

    da autorizao de pais ou tutores.

    3

    O livro, o professor e o ambiente de ensino, por exemplo.

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    No tocante ao tempo, definimos que o mximo de durao das entrevistas seria de 60

    (sessenta minutos). No entanto, durante a realizao das mesmas, percebeu-se que a conversa

    com as fontes, na maioria das vezes, no extrapolava os trinta minutos. O instrumento de

    coleta utilizado foi a gravao de udio.

    Nossos entrevistados ficaram, ento, assim relacionados (indicados por pseudnimos, a fim de

    respeitar o sigilo de suas identidades4, porm mantendo a identificao de gnero):

    1. Joo (nvel superior incompleto; 31 anos; setor administrativo);2. Antnio (nvel superior como tecnlogo; 26 anos; setor de criao);3. Isabel (nvel mdio; 22 anos; setor administrativo);4. Charles (nvel superior incompleto; 23 anos; setor tcnico);5. Gasto (nvel superior em curso; 24 anos; setor de produo);6. Bertoldo (nvel superior incompleto; 34 anos; setor tcnico);7. Lavnia (nvel mdio; 22 anos; setor administrativo);8. Francisco (nvel superior em curso; 31 anos; setor tcnico);9. Incio (nvel superior em curso; 34 anos; setor de criao);10.Cntia (nvel superior como tecnloga; 30 anos; setor de controle);

    As perguntas cujas respostas foram mais significativas para nossas anlises

    constituram-se em trs: na primeira, se o entrevistado(a) tinha ou no interesse sobre cincia.Quando a resposta era positiva, lhe pedamos que mencionasse alguma lembrana sobre o

    assunto que estivesse situada no contexto da mdia. J na segunda pergunta, tratvamos de

    saber o qu cincia para ele(a) e, por fim, se este identificava diferenas entre o

    conhecimento cientfico e outros tipos de conhecimento (senso comum, sabedoria popular,

    etc.). Desse modo, no primeiro questionamento, procuramos captar por meio do fazer

    memria de nossos respondentes a midiatizao enquanto fenmeno (leia-se aqui as

    narrativas proferidas pelos sujeitos).

    Na segunda e na terceira pergunta, objetivamos visualizar a matriz de pensamento dos

    nossos entrevistados sobre o nosso recorte. Aqui, percebemos repertrio cultural; nveis de

    iniciao no campo cientfico e, sobretudo, viso acerca de cincia; no obstante, percebemos

    como as apropriaes miditicas vo agregando elementos para este repertrio, fornecendo

    assim referncias para construo desta viso que o indivduo tem/faz de cincia. Apareceram

    de maneira mais evidente os palimpsestos dos quais falamos anteriormente.

    4

    Um dos requisitos enfatizados no termo de consentimento para participao na pesquisa.

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    O bloco analtico do trabalho foi dividido em duas partes maiores, as quais

    funcionaram tambm como categorias analticas: a primeira, intitulada Discursos de

    memria midiatizada, foca-se na midiatizao e no consumo. A ltima parte, Percepesde

    cincia, centralizou-se nas matrizes de pensamento sobre o tema.

    Para ambas as partes, foram utilizados operadores analticos, definidos segundo

    premissas advindas da perspectiva das mediaes. Constaram de trs variveis, as quais

    constituram-se como mediaes: famlia e cotidiano, repertrio cultural e formao

    continuada e crenas. Quanto famlia e cotidiano, tratamos do ambiente familiar5 e/ou

    domstico como um lugar primeiro de socializao, isto , uma esfera fundamental na

    constituio da experincia do indivduo. Nas palavras de Martn-Barbero (2006, p. 295), est

    a a situao primordial de reconhecimento, no qual a cotidianidade familiar um lugarsocial de uma interpelao fundamental para os setores populares. tambm no mbito

    familiar que transcorre o tempo da cotidianidade, (...) um tempo repetitivo, que comea e

    acaba para recomear (...) (MARTN-BARBERO, 2006, p. 297); este tempo comporta a

    recursividade das interaes, das prticas e dos fluxos que do sentido ao dia-a-dia dos

    sujeitos e so naturalizados no comum, no ordinrio da rotina diria.

    J em repertrio cultural e formao continuada, fizemos referncia ao acervo

    intelectual do indivduo e as competncias desenvolvidas a partir deste, considerando aquimatizes de conhecimento provenientes tanto da educao formal quanto de outras fontes, as

    quais constituem saberes de outras ordens (cunho artstico-cultural, cunho popular ou

    vinculado a alguma tradio especfica, experincia de vida, etc.). Preferimos aliar a

    expressoformao continuada neste operador para enfatizar o carter processual e contnuo

    na construo deste repertrio.

    Nas crenas, detivemo-nos no campo dos saberes dignos de credibilidade e adeso por

    parte do indivduo, isto , aqueles nos quais ele acredita e deposita confiana em grausdiversos. Entram neste hall as crenas de cunho religioso, cientfico e popular (vinculadas ao

    senso comum), dentre outras. Muito embora esta nomenclatura no seja usada por Martn-

    Barbero (2006) como uma mediao especfica a rigor, pensamos que no fugimos da ideia

    deste autor quando desmembramos as crenas e as elevamos como parmetro significativo o

    5Famlia para alm dos vnculos biolgicos, abrangendo tambm a dimenso dos amigos e demais pessoas de

    convvio mais prximo.

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    suficiente para constituir uma mediao particular. O universo das crenas tambm est

    inserido na cotidianidade como um filtro mediador do mundo nossa volta; elas dizem

    respeito a um campo de representaes bastante considerado pelos sujeitos, conforme

    percebemos na fala de nossos entrevistados.

    As tabelas abaixo expressam os hbitos de consumo miditico dos nossos

    entrevistados, conforme seu acesso e uso dos meios. Foram elaboradas com base nas suas

    respostas de modo geral (na conversa inteira, e no somente em uma resposta especfica).

    Muito embora este dadoeminentemente quantitativono diga tudo que traduz as prticas

    relativas ao consumo miditico destes indivduos, ela aponta elementos significativos nessa

    direo. Tambm nos sinaliza midiatizao que pode se realizar como uma tendncia

    virtualizao, a um multimidialismo centrado nas hipermdias, na cibercultura6. Note-se que, exceo de Lavnia, todos os demais situaram a Internet em primeiro lugar, citando os

    demais meios que utilizam em segundo e/ou terceiro plano.

    Jornal

    impressoRevistas Rdio Televiso Internet

    Antnio X X

    Bertoldo x X X

    Cntia X X

    Charles x X X

    Francisco X x X

    Incio X X

    Lavnia x X X X

    Isabel X

    Joo X

    Gasto X X

    Tabela 01 - Qual o meio de comunicao que mais usa para se informar?

    6Uma observao que se restringe aos nossos entrevistados, sem carter generalizante.

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    De 06 a 08 horas/dirias

    (consumo que se d em horrio de trabalho;

    motivaes relativas a este fim)

    10 horas, em mdia

    (consumo que se d para alm do horrio de

    trabalho; h interesse do indivduo em realiz-lo

    durante seu tempo livre, geralmente antes do

    expediente ou aps seu retorno ao ambiente

    domstico)

    Joo, Isabel e Gasto Antnio, Charles, Bertoldo, Lavnia, Francisco,

    Incio e Cntia

    Tabela 02- Tempo despendido no consumo miditico

    Vale ressaltar que, nas tabelas acima, a mensurao deue em termos de rotina de

    nossos entrevistados durante os dias teis da semana (de segunda sexta-feira), noabrangendo seus hbitos em dias de sbado e domingo, quando no ocorre o regime de

    trabalho formal. Nos fins de semana, o consumo miditico deles assume outros ordenamentos

    (quantidade de horas, preferncia por determinados meios em relao a outros) por

    motivaes diversas (lazer pessoal ou familiar, descanso, dentre outros), os quais no

    aprofundamos7.

    Discursos de memria midiatizada

    Neste bloco, percebemos que a formao intelectual exerce forte influncia mediadora

    enquanto delimitador de contedo no consumo miditico. Compreendendo que a formao

    intelectual e o repertrio acumulado (em termos de saberes relacionados educao formal)

    mantm ntima relao com a rea de atuao profissional, verificamos que o consumo de

    mdia est, no raro, em um primeiro momento, vinculado demanda de qualificao para o

    mercado de trabalho. O estar informado quanto a motivaes de ordem pessoal aparece

    depois.

    7O clculo dos valores mencionados simples: o expediente dirio semanal corresponde de seis a oito horas, de

    modo que um consumo mais restrito ao ambiente de trabalho seja mais ou menos equivalente a isso; no casodaqueles que citaram um consumo para alm desse perodo, convencionamos quantificar esse excedente em duashoras alm do relacionado ao expediente, incluindo neste ndice os telejornais (alguns os assistem antes de sair

    para trabalhar, pela manh, enquanto outros o fazem ao retornar para casa, noite, ou no fim denoite/madrugada, aps retornar da faculdade), os filmes (preferencialmente noite), a leitura de revistas e/ou

    jornais e os programas de rdio (situao semelhante a do consumo de telejornais).

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    Esse trao se sobressaiu fortemente na conversa com Bertoldo e Charles; eles falaram

    demoradamente sobre o consumo de informao na mdia relacionado s suas reas de

    interesse antes que pudssemos adentrar no assunto central da entrevista. O primeiro, por

    exemplo, mencionou a nanotecnologia, citando uma matria que viu no site Convergncia

    digital, hospedado pelo portal Uol, que falava de tendncias para nanotecnologizar baterias

    e demais aparelhos. Ele prprio explicou do que se tratava o termo antes mesmo que isso lhe

    fosse pedido: (...) fazer uma coisa que ocupava um espao maior, fazer a mesma coisa em

    um espao menor e acrescentar mais recursos.

    Bertoldo encarna o perfil do "workaholic", isto , das pessoas que respiram sua

    realidade profissional mesmo fora do ambiente corporativo. Atuando em Tecnologia da

    Informao, o uso que faz dos meios intimamente vinculado a isso. O meio que mais utilizapara se informar a Internet, dedicando a maior parte de sua navegao virtual a contedo

    relacionado com sua rea (sites de fabricantes, blogs, fruns de discusso sobre tpicos do

    mundo da informtica). Mesmo quando acessa portais, escolhe o que vai ler muito motivado

    pela vinculao da matria com o campo da tecnologia. Em sua fala, comenta ainda que se

    interessa pelas notcias de economia, por exemplo, quando v se tratar de algo relacionado ao

    Programa de Acelerao do Crescimento (PAC), pois sabe que a Tecnologia da Informao

    contemplada pelo governo neste pacote (Internet para todos). L revistas com frequncia,sendo estas focadas em programao, redes e banco de dados. Em televiso, assiste

    preferencialmente noticirios (Jornal Nacional, Jornal da Band, Jornal da Record, Jornal da

    Globo) e, s vezes, filmes. Em princpio, temos a ntida impresso de que seu interesse em

    cincia percorre apenas as vias por onde esta se aproxima da tecnologia. No entanto, quando o

    questionamos sobre sua lembrana de alguma coisa sobre cincia vista na mdia, sua primeira

    meno sobre o antigo embate entre as vises cientfica e religiosa acerca de certos

    fenmenos.Ele cita a noticia que leu em uma revista semanal, de atualidades, possivelmente Veja

    oupoca, sobre a simulao do Big-Bang feita na Sua, onde cientistas tentavam reproduzir

    a origem do universo, e afirma sua opinio diante da polmica: "(...) Eu vejo que muitas

    pessoas utilizam a religio como... conformismo; sem pensar se isso real ou no. Eu acho

    que tem a um dado muito importante, que a f; seja na religio ou no, a f, eu acho que...

    Movimenta montanhas. (...) Foi comprovado cientificamente que a pessoa que te f...A

    possibilidade de se curar de doenas superior a de uma pessoa que j se entregou.

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    Charles, por sua vez, lembrou primeiramente da entrevista de Steve Ballmer, diretor

    da Microsoft, falando sobre as ferramentas de comunicao instantnea via Internet. O

    entrevistado citou uma declarao de Ballmer na qual o Brasil seria o pas com o mais alto

    nmero de usurios de MSN no mundo at 2012 ou 2014 (o entrevistado no sabia precisar a

    data). A visita se deu pelo lanamento de uma verso nova deste software, e, segundo

    reportou Charles, a escolha do Brasil se deu pelos altos ndices dos brasileiros em relao

    quantidade de horas na Internet.

    Charles entende que atualizar-se faz parte de seu trabalho, principalmente dentro da

    rea em que atua (Informtica). Informao poder, afirma, e por isso mesmo a pesquisa

    faz parte de seu hbito profissional. Internet e revistas so os meios que mais utiliza, de

    maneira que assiste televiso geralmente ao fim do dia, quando retorna do trabalho ou dafaculdade que faz noite, em um quantitativo de tempo bastante reduzido em relao aos

    primeiros citados. Quando tem tempo, assiste o Jornal da Globo (ltimo noticirio da

    emissora, exibido aps as 23h).

    Quando acessa a Internet, logo pela manh, ele tem uma rotina em termos de

    navegao virtual: as primeiras pginas que acessa so as pginas do Globo.com e do jornal

    local Tribuna do Norte, a fim de atualizar-se tanto em relao s novas tecnologias quanto

    para ter uma viso global do que est acontecendo no mundo. Depois, vai para as pginasde Informtica (sites, blogs), direcionado para buscar contedo que lhe sirva em termos

    profissionais. No campo das revistas, Charles l as especficas de sua rea (RN Informtica) e

    tem acesso a elas na empresa. Outras do tipo informativas, como Veja e poca, no as

    costuma ler. Quando questionado sobre seu interesse em cincia, Charles admite que o tema

    lhe passa despercebido; que no faz parte de seu foco, no lhe desperta muito interesse.

    Diante dessa resposta, foi colocada para Charles (pelo entrevistador) a relao entre

    tecnologia e cincia, de modo a evidenciar que a rea de atuao dele no est muito distantedo campo cientfico. Posta a provocao e refeito o questionamento sobre a lembrana de

    alguma coisa vista na mdia sobre o tema, Charles fala de computao nas nuvens, que se

    trata da possibilidade de armazenar informaes no mais no HD do computador em que se

    opera ou em outras unidades materiais, mas no prprio servidor (na rede, da a conotao de

    nuvens), disponvel ao acesso em qualquer lugar onde haja conexo. " a portabilidade dos

    arquivos, conforme sintetiza Charles, que viu o assunto em uma matria publicada no site

    Globo.com, na seo sobre Tecnologia. Posteriormente, fez um curso voltado para assunto, de

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    carter presencial, e o fez porque percebeu naquele assunto especfico a necessidade de

    qualificar-se para manter-se em dia com a demanda de seu mercado de trabalho.

    Agora sim, "computao nas nuvens" e "cincia" tm tudo a ver segundo este

    entrevistado: (...) Toda a parte de Informtica est envolvida com cincia, afirma.

    "Pesquisa", "inovao" e "atualizao" lhes so palavras-chave tanto para o campo da

    tecnologia quanto para a cincia, e por isso acredita que Cincia... Envolve planejamento,

    envolve pesquisa, envolve ao, execuo... E tudo isso para se chegar a um resultado, a

    alguma coisa. (...) A palavra que vem em mim a palavra cincia; uma palavra de pesquisa,

    de apresentao (...) voc pesquisar uma nova tecnologia, um novo medicamento, uma nova

    espcie de animal; pesquisar aquele novo ser, ver as caractersticas dele (...) pegar essas

    informaes, organizar e apresentar para o... O mundo.Em ambos os casos, a ttulo de repertrio cultural e formao continuada, percebemos

    que o vis miditico apareceu como agregador a uma formao inicial, esta construda em

    termos de escola e ensino superior. O componente miditico apropriado com mais nfase em

    termos de formao subsequente. Aqui, talvez no estejamos afirmando nada de novo; o dado

    relevante, contudo, nos pareceu ser a visualizao dos fluxos de consumo simblico, em seus

    ordenamentos; a dinmica da interao, nas aproximaes iniciais entre indivduo e

    fenmeno. No obstante, visualizar tambm as contradies entre o os interesses assumidos(ditos, colocados em nvel de conscincia professada, dita durante as conversas) e os

    mecanismos de funcionamento da memria midiatizada: Bertoldo afirma claramente seu

    interesse pela "fatia" da cincia que se relaciona com sua rea profissional, mas seu primeiro

    registro (lembrana) narrado no se coaduna tanto com essa preferncia manifestada.

    Quanto cotidianidade familiar, verificamos como esta mediao um articulador

    subsequente (ou seja, em um contexto mais alinhado ao processo de ressignificao e

    posterior produo de sentido, este agora reconfigurado) em termos de consumo miditico: setraduz no comentrio, na conversa informal de algum tema apropriado a partir da mdia com

    outros sujeitos integrantes ou pertinentes a essa dimenso. Isabel, durante o perodo que tinha

    assinatura semanal de uma revista especializada em cincia (um ano), fazia a troca da mesma

    com o primo que assinava uma publicao semelhante para, posteriormente, comentar com

    ele a respeito do que tinha considerado mais interessante. A essa altura, ela j havia concludo

    o ensino mdio e estudava para o vestibular. Quando perguntada se buscou a assinatura

    tambm pela preparao para aquelas provas, consentiu que este tambm tinha sido um fator,

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    mas a curiosidade foi de fato preponderante. Isabel assume seu gosto pela temtica, mas

    pondera quando diz que nem tudo relacionado lhe causa interesse: depende muito do

    assunto, afirma.

    Para Isabel, cincia algo extraordinrio, pois sempre descobre algo novo.

    Descoberta, coisas inusitadas como o porco que brilha, sade, cura de doenas: essas

    foram as noes que lhe vieram mente sobre o que cincia, bem como cura de A IDS,

    cura de cncer. Afirma: (...) sempre penso em cura quando penso em cincia. Ela citou

    ainda uma matria que assistiu no noticirio de televiso sobre a possibilidade da cura para a

    AIDS em recm-nascidos como tendo sido algo que lhe marcoue chamou a ateno. Mais

    adiante, a entrevistada explicou que costumava ler muito sobre drogas, pois tinha amigos

    usurios dessas substncias e entendia que sua atitude de buscar informao sobre o assuntolhe ajudaria a ter argumentos mais fortes para dialogar com eles no sentido de faz-los desistir

    dessa prtica: (...) Voc sabendo como a droga funciona, voc pode querer usar ela para o

    mal ou para o bem. Tipo assim, tem gente que pode usar a informao para o bem ou para o

    mal. (...) Tipo, cocana serve para tal coisa, ento vou usar para dopar aquela menina e tal....

    Joo, por sua vez, se lembrou de um debate com amigos, colegas da faculdade em que

    cursava na poca, em torno do assunto aquecimento global, o qual tinha visto na capa de

    uma revista, a qual no lembrava exatamente qual era, mas acreditava se tratar da revistaVeja: (...) Que era sobre a questo global (...) Uma questo que era levantada sobre se (...) a

    terra hoje consome mais do que o planeta pode oferecer; alis, se os humanos hoje consomem

    mais do que a terra pode oferecer (...) A gente discutia bastante. Tem at um autor, que eu

    tambm no me lembro o nome, que um amigo me falou, que me recomendou a leitura, que

    ele defende a tese de que o ser humano o cncer da terra; que a terra tem vida; um ser que

    tem vida; claro, no pensa, mas como se fosse mais ou menos animado, a eu achei bastante

    interessante mas no me aprofundei tambm no.Mas a matria da revista no foi a primeira lembrana citada por Joo. Este mesmo

    entrevistado tinha bem mais facilidade em situar registros relativos cincianos filmes do

    cinema hollywoodiano8 do que em outras mdias. Ele expressou um imaginrio de elementos

    pertinentes ao campo da cincia ancorados muito mais no patamar da fico do que

    8"O dia em que a terra parou (remake), A Estrada e O livro de Eli.

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    propriamente em termos do real, isto , o que se espera dos meios de comunicao ditos

    "informativos", mais prximos da no-fico.

    Por isso mesmo, quo surpreendente nos foi perceber que, ainda no mbito da

    midiatizao, a fico comunica mais cincia que os gneros informativos. No somente Joo,

    como outros entrevistados apresentaram mais referncias de cincia relacionadas a formatos

    ficcionais (incluem-se aqui os documentrios feitos para televiso com vis ficcional, como

    nos canais a cabo ou por assinatura). Foram feitas citaesa filmes como Armagedom, O

    livro de Eli, O dia em que a terra parou e A Estrada, alm do documentrio A Terra

    sem ningum, exibido pelo History Channel (verso do canal em portugus). Esse dado

    rompeu com nossas expectativas, pois espervamos pela predominncia de lembranas

    relacionadas a reportagens ou outros formatos eminentemente informativos e/ou opinativos,tanto em televiso como nos demais (Internet, revistas especializadas ou em jornal impresso).

    Admitamos at uma possvel meno a um artigo de algum cientista ou jornalista. Mas fomos

    oportunamente desconstrudos.

    Voltando fala de Joo, por exemplo, que estabelece comentrios crticos sobre a

    questo do aquecimento global a partir das lembranas associadas a dois filmes, notamos a

    teia que o entrevistado vai compondo, conectando um assunto ao outro; a partir da reflexo

    feita por ele nos filmes (apropriao/reapropriao), ele migra para dimenses aparentementeno relacionadas:

    (...) Por exemplo, aquele filme que foi um remake agora, com o KeanuReeves, O dia em que a terra parou, porque que ele foi feito agora? (...)mas aquele filme j de 58, nem lembro; poxa vida, o pessoal j tinha essapreocupao naquela poca, alguma coisa deve estar acontecendo mesmo,embora muita gente comente que o aquecimento global lorota, coisa quefoi inventado, mas acho que no; e a voc vai assistir outro;coincidentemente eu assisti dois filmes no final de semana que falavam j deum caos, no sei se voc j assistiu 'A estrada' (...) Puxa vida, pouco tempo

    que eu assisti dois filmes com o mesmo tema e isso, assim, j t ficandorotineiro, inclusive; se a gente for falar sobre aquecimento global (...). Se agente realmente for conversar sobre aquecimento global, o cinema j umbrao, que se for pra alertar, se for realmente pra alertar ou s fazer filmemesmo, se for s para trabalhar em obras, literaturas que to sendo faladas,mesmo que fictcias, chama a ateno de uma certa maneira. Eu estava atconversando um tempo desses sobre essas questes e (...) No sei se ospartidos polticos que tm essa bandeira de ambientais solicitam ou gritampor um espao maior de uma maneira oportunista ou realmente de umanecessidade. Partido verde, por exemplo, no sei se... No umacoincidncia, claro, que a nossa prefeita do Partido Verde, mas ele vaiganhando um pouco mais fora; no sei se um oportunismo, no sei se

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    uma coisa toa, no sei se isso vai ser uma ideologia mais para frente (...)(JOO, entrevistado).

    Essa aproximao com a cincia, operada pela fico, mantm relao importante com

    o campo da tecnologia:

    Assim, a fico cientfica uma narrativa resultante do processo datecnocincia e sua construo s foi possvel porque seus autores procuraramexplicitar as possibilidades ficcionais que a tecnologia de cada poca, cadatempo, permitia. Acabaram por obter, assim, uma interseo entre narrativas,relatos e tcnicas, ou seja, entre a arte e a cincia, cruzando as criaestecnolgicas com os dilogos narrativos, ficcionais e literrios. Comoconsequncia direta, diminuram as distncias entre o universo cientfico, alinguagem da arte e a vida cotidiana (COUTINHO, 2008, p. 18).

    No caso de nossos respondentes, as narrativas de fico cientfica de fato estreitaram

    dois mundos: o dos sujeitos e o da cincia, ainda que estas no tenham como objetivo

    primordial uma alfabetizao cientfica a rigor. Sob um olhar mais criterioso, perceberemos

    que este tipo de fico incorre, por vezes, em erros cientficos (COUTINHO, 2008). Contudo,

    no h problema; este o territrio da fico, da literatura, da arte; a licena potica abre tal

    precedente.

    Nesse sentido, oportuna a noo de MEDEIROS (2011, p. 38), na qual (...) a fico

    cientfica no sobre cincia, mas sobre a ideia que fazemos dela. Desse modo, torna-sepossvel dizer que o mais importante no o futuro, mas como projetado o futuro no

    presente. Estas proposies da autora nos servem para, aqui, estabelecer duas importantes

    conexes com os discursos de nossos entrevistados, mediante o nosso enfoque de pesquisa: o

    primeiro ponto apreender que as narrativas de fico cientfica apresentam, sobretudo, uma

    viso de cincia, uma percepo sobre o agir cientfico, seu mtodo e suas implicaes; o

    segundo que, dado o carter antecipatrio caracterstico maioria dessas narrativas, elas

    propem, alm de uma viso especfica de cincia, uma projeo sobre o futuro, de maneiratal que este futuro fortemente perpassado pela cincia9, como que em boa medida alicerado

    em referncias cientficas.

    Gasto resumiu emblematicamente essa relao entre cincia e futuro a partir das

    narrativas de fico cientfica. Para este entrevistado, a cincia no somente (...) o futuro,

    mas um que (...) bem diferente do que agora (...), intimamente associado tecnologia

    9 Isso nos remete ao pensamento positivista de Auguste Comte: cincia/progresso/futuro.

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    (...) de ponta, seno no consegue bons resultados. Esse caminho de mudanas rumo ao

    futuro comportaria, na viso do entrevistado, mudanas em regime gradativo, sem rupturas

    bruscas ou repentinas.

    Ele se diz um homem atento quanto sua necessidade de atualizao. Utiliza mais a

    Internet como fonte de informao, de maneira que procura contedo tanto em termos

    profissionais, no que diz respeito a sua rea, como tambm para inteirar-se dos

    acontecimentos (grandes portais, como Globo.com, Uol, Terra, e a pgina do jornal local

    Tribuna do Norte). Ele assiste pouco televiso devido ao tempo reduzido que dispe para

    estar em casa, mas, quando pode, opta por noticirios, geralmente matutinos e s vezes os

    noturnos, dedicando mais ateno s notcias de economia e esporte. Alm desses, v

    programas de debate e/ou entrevista. No costuma ouvir rdio e nunca teve prazer em lerjornal. J em relao s revistas, l as que so especializadas na sua rea de atuao.

    Em seu interesse sobre cincia, afirmou ter uma postura de quem procura saber um

    pouco de tudo, sem especializar-se em algum assunto exceo do que diz respeito sua

    rea. Porm, gosta de ver coisas ligadas cincia quando percebe se tratar de uma

    descoberta, dependendo da cincia na qual esta esteja inserida. Ele explica que alguma vez

    na vida aquilo vai servir para voc, independente de voc precisar agora ou daqui a um ano, a

    dois anos...Mas [ importante] voc ter alguma informao daquilo.Para ele, (...) todas as descobertas hoje, de alguma forma vai afetar na sua vida; na

    sua vida daqui a 5 anos, a 10 anos (...) na cincia, eu sempre acho que uma coisa puxa a outra,

    uma descoberta que puxa outra descoberta que puxa outra descoberta...Que de alguma forma,

    independente do lugar do mundo que seja, alguma coisa na sua vida pode lhe afetar, e

    justamente por isso que, na viso de Gasto, a cincia aponta para o futuro.

    Consideraes Finais

    A midiatizao, enquanto fenmeno sobre o qual nos debruamos, se verificou. Mas

    seus fluxos, seus ordenamentos no nos eram de todo previstos inicialmente. A partir da

    experincia de nossos respondentes, expressas em seus discursos, percebemos como ela se

    confirma, na prtica, como uma tendncia virtualizao; ao multimidialismo capitaneado

    pela hipermdia, pela cibercultura. Mas embora a preferncia pelos meios se reconfigure, o

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    uso de um e de outro se assemelha: a pauta de interesses dos entrevistados, quer seja na

    Internet, quer seja na televiso ou em mdias impressas, mostrou-se a mesma. Quem quer

    informao sobre cincia ou outro assunto (esporte, tecnologia, etc) vai busc-la; o meio no

    inibe ou incita esse movimento em princpio; nesse sentido, a mediao da mdia (ou

    midiao) no mudou muita coisa. Pelo menos no para os nossos entrevistados.

    Por outro lado, onde a fico aproximou mais os sujeitos do mundo da cincia, h um

    agir miditico que no pode ser desconsiderado. Ele no foge ao escopo da cultura d o

    consumo pertinente ao contexto da sociedade midiatizada. Vises especficas da cincia so

    ensejadas, propostas. Consumidores apropriaram, ressignificaram e se tornaram produtores de

    sentido, manifestando suas percepes, evidenciando prticas sociais. A mdia encontrou eco

    nas representaes manifestas pelos entrevistados.No que tange s mediaes e ao campo da memria, entendemos que esta associao

    se confirmou. A hiptese de Halbwachs (2004) de que a representatividade da lembrana est

    diretamente proporcional ao tempo de durao do grupo e fora do vnculo para seus

    integrantes obteve respaldo em nossa empiria. No partilhamento de vnculo, a mediao

    propiciou um grupo social, cujo desdobramento foi uma dimenso de memria coletiva a

    perpassar seus membros. Quando os vnculos eram efmeros, a lembrana era mais fraca ou

    ausente do plano da conscincia. O contrrio tambm ocorreu: vnculos resistentes e/ouduradouros mantiveram a lembrana viva por mais tempo.

    Alm disso, visualizamos as mediaes extra-miditicas ora delimitando contedo a

    priori, ora articulando contedo a posteriori. claro que a mecnica real das mediaes

    sempre analisada sob um ponto de vista interacional muito mais dinmica, muito mais

    dialtica; hbrida. Estamos bem lembrados de que o fenmeno que tomamos como objeto

    fundamentalmente processual. Nossa captao dele pode ter sido apenas um frame. Nem por

    isso perde sua consistncia, sua validade.No obstante, a tendncia concepo positivista da cincia ainda presente no

    discurso miditico sobre cincia, conforme pudemos observar em nosso emprico10. bom

    deixar claro que estamos falando de uma inclinao a uma determinada matriz de

    pensamento, sem absolutiz-la, deixando margens para abarcar outras noes na composio

    10 As anlises especficas a estas concluses esto presentes no segundo bloco analtico, Percepes de Cincia,as quais, por fora de espao, no recuperamos aqui.

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    das vises acerca de cincia. Faz-se necessrio adotar esta postura moderada porque foi isso

    que encontramos em nosso trabalho. Vale lembrar como, por vezes, percebamos na fala da

    mesma pessoa pontos de aquiescncia e de ruptura com o ideal cientfico calcado no

    positivismo.

    Isso nos permitiu entrever tessituras hbridas nas vises de nossos entrevistados. Ao

    passo que encontramos indicadores pendentes para a concepo positivista (percepo da

    cincia como fonte de conhecimento superior em relao a outras formas; cincia e

    conhecimento proveniente das crenas religiosas como distintos e opostos, bem como a

    atribuio de confiabilidade concepo cientfica baseada motivaes da ordem da

    tangibilidade, concentrao de referncias que privilegiam certas reas da cincia,

    principalmente as cincias exatas e naturais), tambm identificamos aqueles sugestivos avises mais abrangentes (processo de construo do conhecimento na cincia segundo uma

    perspectiva no-linear; processo contnuo-inacabado; viso do agir cientfico como promotor

    no somente de progresso para a sociedade; conscincia das implicaes ticas).

    Os palimpsestos se revelaram a: nos traos de negociao que ora remetiam ao

    discurso miditico, como advindos do consumo simblico no mbito da mdia; ora remetiam a

    outras procedncias, a exemplo das mediaes de mbito familiar. Esta polivalncia de

    afetaes culturais desvelou, em ltima anlise, a prpria complexidade da experincia dossujeitos.

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    Original recebido em: 30/10/2012Aceito para publicao em: 03/12/2012

    Resumo sobre o autor

    Emily Gonzaga de Arajo Graduada em Comunicao Social

    pela Universidade Federal do RioGrande do Norte. Mestre emEstudos da Mdia pela UFRN(2011); atualmente professora nodepto. de Comunicao Social damesma instituio;

    Kenia Beatriz Ferreira Maia doutora em Cincia da Informao

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    e da Comunicao - Universit deMetz (2003). Professora doDepartamento de Comunicao eCoordenadora do Programa de

    Ps-Graduao em Estudos daMdia da UFRN. Vice-presidenteda Associao Brasileira dePesquisadores em Jornalismo(SBPJor).