Memoricídio - UnB

70
Universidade de Brasília Faculdade de Ciência da Informação Graduação de Biblioteconomia MIRELLY DE PAULA SALES Memoricídio A destruição dos livros e bibliotecas Brasília, DF 2016

Transcript of Memoricídio - UnB

Page 1: Memoricídio - UnB

Universidade de Brasília

Faculdade de Ciência da Informação

Graduação de Biblioteconomia

MIRELLY DE PAULA SALES

Memoricídio

A destruição dos livros e bibliotecas

Brasília, DF

2016

Page 2: Memoricídio - UnB

MIRELLY DE PAULA SALES

Memoricídio

A destruição dos livros e bibliotecas

Monografia apresentada à Faculdade de Ciência da

Informação como requisito parcial para obtenção do título

de bacharel em Biblioteconomia.

Orientador Prof. Msc. Carlos Henrique Juvêncio

Brasília, DF

2016

Page 3: Memoricídio - UnB

SA163 Sales, Mirelly de Paula, 1989 -.

Memoricídio : a destruição dos livros e das bibliotecas / Mirelly de Paula

Sales. 2016.

70 p.: il. color.

Orientação: Prof. Msc. Carlos Henrique Juvêncio

Monografia (Bacharelado em Biblioteconomia) - Universidade de Brasília,

Faculdade de Ciência da Informação, 2016.

1.Memoricídio. 2.Memória. 3.Bibliotecas

I. Título.

Page 4: Memoricídio - UnB
Page 5: Memoricídio - UnB

AGRADECIMENTOS

A gratidão também é consequência da memória, pois agradecer é lembrar. Por isso aqui

vai a minha memória em forma de agradecimentos.

Agradeço a Deus por toda a sua onipresença em minha vida, por seu amor e cuidado

comigo, por tornar real um sonho. Obrigado Senhor por todos esses momentos e por todas as

outras infinitas bênçãos que me concede diariamente.

A minha amada mãe Luísa, que faz jus ao significado de seu nome, e é uma verdadeira

guerreira. Por ter sempre me amado tanto e apoiado em toda a minha vida. Mãe sem você e sem

Deus, nem saberia o que seria de mim, pois foi graças a você com seu amor e dedicação que

realizei o nosso sonho de estudar em uma federal e realizar o meu tão sonhado curso de

Biblioteconomia. Mãe isso tudo é graças a senhora te amo muito! Obrigada por apenas ser a

minha mãe!

A minha irmã Suelem, por ser minha irmã e amiga, por todas as vezes que te perturbei

e por todo nosso companheirismo. Por todas as coisas que vivemos juntas e ainda viveremos.

Cada vez mais fortalece o nosso laço eterno de irmãs e amigas, te amo muito!

Ao meu companheiro e amigo Vítor, que me apoiou de todas as formas. Obrigada por

sua paciência e dedicação, e por me ajudar a ser uma pessoa melhor. Agradeço imensamente

por suas revisões e críticas, por todos os puxões de orelha e por me forçar sempre a melhorar

esse trabalho. Por me incentivar e apoiar em todo esse processo. Obrigado apenas por você

fazer parte da minha vida, sempre me ensinando tantas coisas, por toda a felicidade que tenho

com você. A você, o meu amor!

Ao meu pai Raimundo por seu amor e todo incentivo. Obrigado pai por tudo! Ao meu

irmão Hugo e cunhada Marysa.

Aos meus tão queridos amigos:

Mariana, que com sua doçura cativante fez todas as aulas serem muito engraçadas e

legais, minha lindinha, sempre bom estar com você!

Letícia minha amorinha, você nem sabe, mas é minha fonte de inspiração! Amiga foi

ótimo partilhar esses anos ao seu lado, aprendi mais do que você acha que eu ensinei. Obrigado

pela amizade, por me ensinar sempre, por me apoiar e ajudar na vida acadêmica e fora dela.

Hellen, me ensinou todas as malandragens da vida... Só que não! Miga sua louca,

passamos por tantas coisas nesse curso, crescemos tanto em vários aspectos. Nem posso falar o

quanto foi ótimo te conhecer e por fazer parte de sua vida! Obrigado por trazer ao mundo uma

estrelinha tão linda! Obrigada amiga por tudo, obrigada apenas por ser minha amiga!

Page 6: Memoricídio - UnB

Chico Bruno, o que dizer de todas as nossas brigas filosóficas e históricas?! Enchíamos

o ouvido de todos com as nossas discordâncias intelectuais, mas elas foram ótimas. Foi graças

a elas que crescemos em muito bons argumentos. Obrigada por sempre me fazer rir das suas

trapalhadas e sandices. Ao nosso amado existencialismo, aos nossos eternos debates, você é

demais!

Ângela, obrigado por todas as coisas que passamos juntas, obrigada por sempre me

ajudar a crescer e melhorar. Obrigada por sempre rir das minhas palhaçadas sem graça, elas

eram feitas para te alegrar. Você é uma pessoa linda e incrível, nunca se permita pensar ao

contrário. Você merece tudo de melhor!

Tainara, por sua simplicidade e por sua alegria!

Karen, por sempre ser tão amável e atenciosa comigo, por sua amizade e conselhos nessa

monografia, obrigado por sempre me escutar nas horas de “desespero” e se desesperar comigo!

A UnB me trouxe muitas coisas boas, e com certeza vocês são uma boa parte delas, amo

vocês, por todas as coisas que aprendemos e partilhamos, vocês são pessoas incríveis!

Ao meu orientador Carlos por me apresentar um tema tão legal, que resultou nessa

monografia.

Page 7: Memoricídio - UnB

“There are books that have devastated continents,

destroyed thousands.

What war hasn’t been a war of fiction?”

Alan Moore, 1998.

Page 8: Memoricídio - UnB

“Destruidores derrubam impérios, fazem telas com os

destroços, onde os criadores erguem mundos melhores. ”

Alan Moore, 1982.

Page 9: Memoricídio - UnB

RESUMO

O livro é um símbolo de imenso poder, ao tornar-se portador de todas as ideologias e histórias

em suas páginas, tornam – se também inimigos para aqueles que se desagradam de suas ideias.

O memoricídio é o ato de destruição da memória, e como bibliotecas e livros possuem uma

vasta representatividade da memória coletiva, são constantemente alvos dessas atrozes

destruições por causa de sua força e poder para a identidade de uma nação. Esse trabalho tem

como mote principal demonstrar as causas da destruição dos livros e bibliotecas e quais são os

principais biblioclastas, além de demonstrar como o livro é um valioso patrimônio. Conclui- se

que o ato de destruição das bibliotecas e livros, é uma tática para dominação de pensamentos

opositores e sobre a representatividade que a biblioteca tem para uma nação: a liberdade de

pensamento.

Palavras – chave: Memoricídio. Bibliotecas. Memória.

Page 10: Memoricídio - UnB

ABSTRACT

The book is a symbol of immense power, to become the bearer of all ideology and stories on

its pages become - also enemies to those who displease their ideologies. The memoricide is the

act of destruction of memory, and how libraries and books have a wide representation of

collective memory, are constantly targets of these atrocious destruction because of their strength

and power to the identity of a nation. This work has as main theme demonstrate the causes of

destruction to books and libraries and what are the main biblioclast, and show how the book is

a valuable heritage. What we saw in this work is a small part and attempt to understand the

causes of destruction in libraries, and especially how important it is to protect them and preserve

them for future generations, showing the value of its importance to society and nation, because

libraries are always friendly man and should not be seen as the opposite. It is concluded that

the act of destruction to libraries and books are a tactic to domination of opponents and thoughts

about the representation that the library has a nation : freedom of thought.

Keywords: Memoricide. Libraries. Memorie.

Page 11: Memoricídio - UnB

LISTA DE QUADROS E FIGURAS

Quadro 1 – Maravilhas do mundo antigo.................................................................................29

Figura 1 – Capa do Index Librorium Prohibitorium................................................................. 41

Figura 2 – São Domingos queimando livros heréticos dos albigenses......................................44

Figura 3 – Queima de livros na biblioteca de Mosul............................................................... 46

Figura 4 – Cidade de Palmira antes e depois da destruição...................................................... 47

Figura 5 – Liberdade guiando o povo....................................................................................... 52

Figura 6 – Queima de livros em Schillerplatz.......................................................................... 55

Figura 7 - Estudantes alemães reúnem livros que eles consideram "não-alemães................... 55

Figura 8 – Leitores na biblioteca de Holland House em Londres............................................ 56

Figura 9 – Jornal Estado da Bahia.......................................................................................... 58

Page 12: Memoricídio - UnB

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..................................... ................................................................................ 13

2 OBJETIVOS.................................... ...................................................................................... 15

3 METODOLOGIA............................. ..................................................................................... 15

4 REVISÃO DE LITERATURA ............................................................................................. 17

4.1 PATRIMÔNIO E MEMÓRIA .................................................................................. 26

5 MEMORICÍDIO..................... ............................................................................................... 35

5.1 CONCEITOS DO MEMORÍCIDIO ........................................................................ 37

5.2 RELIGIÃO: COM FOGO DEUS PURIFICA .......................................................... 39

5.2.1 A Biblioteca de Alexandria ........................................................................ 42

5.2.2 Quem é contra Cristo, não pode falar de seus seguidores .......................... 43

5.2.2.1 Constantinopla e seus livros entre as cruzadas ........................................ 43

5.2.2.2 Quando o extremismo religioso destrói ................................................... 45

5.3 POLITÍCA: EM TEMPOS DE CENSURA, LIVROS SE ESQUECEM E

AQUECEM........................................... .................................................................................... 48

5.3.1 Shi Huandi, é proibido ler............................................................................ 50

5.3.2 Revolução francesa: “Se não tem livros, que queimem livros! ” ................ 51

5.3.3 Revolução na Espanha ................................................................................. 53

5.3.4 Hitler aquece a Alemanha com sua fogueira de livros ................................ 53

5.3.5 No Brasil, vermelhos não são amados ......................................................... 57

6 ESQUECIMENTO.......................... ...................................................................................... 62

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 65

REFERÊNCIAS......................................... .............................................................................. 67

Page 13: Memoricídio - UnB

13

1 INTRODUÇÃO

A biblioteca é um patrimônio cultural, pois conserva e preserva toda a memória coletiva

e intelectual da humanidade. Ela tem sido o lar dos pensamentos universais, com a sua mais

repleta diversidade de pensamentos e histórias. Por séculos, os livros são escritos para

disseminar ideias, inspirar, criticar, etc. Por esse motivo alguns livros incomodam tanto por

seus escritos que se tornam inimigos de pessoas que são contrárias a tais ideologias.

Mas não são apenas ideologias que levam livros às fogueiras. Histórias ficcionais ou

reais com teor considerado imoral ou subversivo aos bons costumes religiosos também são

postos a prova do fogo santo.

Este trabalho tem como mote analisar as causas que levam à destruição dos livros e das

bibliotecas, demonstrando alguns exemplos dessas aniquilações causadas. O memoricídio, ao

contrário do que pensa o senso comum, não é cometido por homens ignorantes de seus atos e

do poder dos livros, é cometido por pessoas que entendem muito bem o que estão praticando.

O memoricídio é um ato muito bem estudado de dominação e por isso é preciso entender quais

as causas que geram o sentimento e despertam a biblioclastia.

Livros são símbolos de poder. Mas como qualquer símbolo carregado de significado,

grande importância e como portador de memória, é passível de ser destruído. E o meio mais

usado para isso é o fogo. Talvez houvesse a ideia de que a chama reteria todo pecado ou

imundice ali presente. Seria uma forma de expurgação, de livramento. É com ele que espalham

todo o terror para aqueles que ainda pensam em resistir. Informação é poder, mas tal como

acontece com todo o poder, há aqueles que o querem guardar para si.

As bibliotecas sempre foram mágicas, um lugar de memória coletiva. Elas são o recanto

do saber e de diversidade intelectual de uma nação e por assim, arriscado dizer, de toda a

humanidade. Mas por detrás de toda a magia ela possui um poder extremo: o poder da memória

coletiva, do conhecimento. Ela é portadora da cultura de um país, e a sua força reside nisso.

Lugar da memória nacional, espaço de conservação do patrimônio intelectual, literário

e artísticos, uma biblioteca [...]. É um lugar de diálogo com o passado, de criação e

inovação, e a conservação só tem sentido como fermento dos saberes e motor dos

conhecimentos, a serviço da coletividade inteira (BARATIN e JACOB, 2008, p. 9)

Claro que como guardiões de um grande símbolo de poder e de uma memória tão vasta,

os bibliotecários acabam por algumas vezes sendo, juntamente com o símbolo, um dos grandes

Page 14: Memoricídio - UnB

14

alvos do memoricídio. Houve casos na história em que bibliotecários foram perseguidos ou até

mesmo assassinados juntamente com acervo.

Durante séculos estudasse a história e construção dos livros e bibliotecas, vimos como

ela se tornou parte do patrimônio de uma nação, um monumento a ser apreciado por seu

tamanho e imponência. Porém, pouco estudado, a história de destruição das bibliotecas e o que

leva o homem a acreditar que deve exterminar esse patrimônio cultural.

A forma de destruição dos livros é quase sempre a mesma: com uso do fogo. As

bibliotecas são demolidas, bombardeadas em guerras, saqueadas, arrasadas, apagadas da

memória coletiva. Tudo isso com o intuito de aniquilar a cultura de um povo, pois sem cultura

e identidade, ele torna- se presa fácil para dominação e subjugo completo.

Em toda a história, convive -se com as mais variadas formas de destruição, tais como

da natureza e da humanidade, da sabedoria ancestral, de patrimônios pertencentes a humanidade

e que são violados e destruídos em meio a uma violência simbólica; guerras religiosas onde se

determinam o que é de Deus ou do Diabo, o que Deus aprova ou desaprova, e assim é perdida

a identidade cultural e intelectual ancestral contrária a Deus ou seria do próprio homem se

escondendo atrás de uma figura tão poderosa?

A política também entra na dança do memoricídio, em que transformam símbolos e

memórias ao seu querer. Inúmeras vezes são apagados tais símbolos para reescrever uma nova

memória em virtude do egocentrismo e interesse político.

Por muitas vezes tal destruição gera uma nova criação, para mais tarde ser destruída

pelas mais diversas razões. Isto acontece por ser um ciclo infinito de criação e destruição, onde

ambas são tão próximas e tão distintas. Mas por que o homem destrói? Existe alguma finalidade

para a destruição da memória?

O memoricídio em bibliotecas é ao mesmo tempo inexplicável para uns e totalmente

justificado para outros, seja por preceitos religiosos, políticos, loucura ou pela mais completa

ignorância. Como dito, a destruição e a criação são mais antigas que o mundo ou coadunam

com a humanidade desde seu primeiro passo. Nietzsche (1884, p. 21) afirma: “É necessário ter

o caos cá dentro, para gerar uma estrela”. Com essa frase pode-se ter a ideia de que em meio a

destruição, há uma criação, uma desconstrução e uma reconstrução muito natural e necessária.

Há também o efeito colateral do memoricídio: o esquecimento, que nasce em meio de

toda a tentativa do apagar. E por aí vai, a lista é extensa de destruições ocorridas ao longo dos

milênios e esta continuará extensa ainda por toda a eternidade, até que o ultimo ser humano

pereça.

Page 15: Memoricídio - UnB

15

2 OBJETIVOS

Objetivo geral: Analisar os efeitos que a destruição dos livros e das bibliotecas tem

sobre a memória.

Objetivos Específicos:

Analisar o livro e a biblioteca como símbolo, patrimônio e memória.

Analisar porque a memória é tão importante para a construção da memória no âmbito

das bibliotecas.

Descrever e exemplificar as mais diversificadas formas de destruição de livros e

bibliotecas ocorridas ao longo do tempo.

Descrever o efeito colateral na sociedade em virtude do memoricídio.

3 METODOLOGIA

Trata–se de uma pesquisa qualitativa, cuja coleta de dados é feita mediante revisão de

literatura, sendo também caracterizada com pesquisa documental. A revisão de literatura foi

realizada através de um levantamento bibliográfico e análise de livros, dissertações, artigos,

estudos de caso, debates, etc., que abordem as questões do memoricídio, acompanhando a

construção da memória e sua importância, assim como a causa de sua destruição, e os seus

efeitos na cultura social, individual e coletiva.

Os principais autores analisados na revisão de literatura são: Fernando Báez, que tornou-

- se notório ao estudar as causas do memoricídio, memória, esquecimento, patrimônio e cultura,

a importância do livro e bibliotecas, e que apresenta as destruições mais conhecidas de

bibliotecas, no passado e na atualidade. Pierre Nora, que apresenta o significado de lugares de

memória e sua importância na construção da memória social e individual além da sua

importância na identidade. Michael Pollak, que estuda as formas de esquecimento e memória.

Regina Abreu que aborda a questão da importância do patrimônio e sua construção na

sociedade. Pedro Paulo Funari, que analisa o cenário brasileiro em virtude do reconhecimento

cultural e do reconhecimento aos seus símbolos de memória. Maurice Hallbwachs, que traz a

Page 16: Memoricídio - UnB

16

questão da memória individual e coletiva e como ambas são construídas. Os autores são

unanimidades em estudos sobre memória coletiva, individual, patrimônio e lugares de memória

e memoricídio.

A pesquisa deste trabalho foi realizada inicialmente na internet, que apontou os autores

Fernando Báez; Nora; Le Goff, os principais termos utilizados para a pesquisa foram:

Destruição de bibliotecas; queima de livros; memoricídio, destruição da memória, destruição

de patrimônios, e memória coletiva. Outro meio que direcionou as pesquisas foi o aprendizado

em sala de aula, as matérias que mais influenciaram na pesquisa foram: Museologia, Patrimônio

e Memória e História dos livros e das bibliotecas, que forneceram a bibliografia básica para a

pesquisa e conhecimento do tema.

O presente trabalho tem como apresentação o capítulo de Memória que explica como

ela é importante ao homem em sua essência, e como ele a transfere para símbolos externos com

a mais forte vontade de lembrança e imortalidade. Patrimônio e memória são a

representatividade da memória coletiva e como tais símbolos suportam toda a ideia de nação e

identidade ao seu povo, esses dois capítulos têm como mote a importância da memória e do

patrimônio e como tudo converge aos livros e bibliotecas como representantes desses.

O capitulo de Memoricídio traz as causas que levam a destruição de livros e bibliotecas

e quais são os maiores causadores de sua destruição. Além de exemplificar algumas das

destruições de bibliotecas mais notáveis para a memória da humanidade.

Por fim no capítulo final: Esquecimento, são abordadas algumas das causas e efeitos

que a destruição da memória através de livros e bibliotecas podem causar a uma nação.

A Justificativa para a escolha do tema deste trabalho, se deve principalmente ao interesse

da autora por livros, bibliotecas e museus. Sua principal motivação para a escolha desse tema

além do já citado anteriormente, é a tentativa de entender o porquê de tais lugares serem

destruídos. Averiguando quais os motivos e o perfil de quem comete tais atos de destruição.

Por fim, considerando a importância das bibliotecas como agente formador do cidadão, essa

pesquisa se justifica pelo interesse em contribuir para a conservação e preservação de livros e

bibliotecas, trazendo à voga novos elementos de discussão sobre o assunto oferecendo uma

contribuição para o tema.

Page 17: Memoricídio - UnB

17

4 REVISÃO DE LITERATURA

De acordo com a metodologia adotada, apresenta- se a seguir a revisão de literatura

composta pelos tópicos: Memória; patrimônio, memoricídio e esquecimento.

A memória é imprescindível. Ela é o elemento fundamental da identidade individual ou

coletiva.

Segundo Baéz (2010), a palavra memória, é de origem latina, derivada da palavra

memor-oris, e significa “o que se lembra”, interligando o presente ao que já foi vivido.

O homem criou ao longo do tempo as mais variadas formas de exteriorizar seus

pensamentos e percepções do mundo, um jeito de deixar sua marca e ser lembrado futuramente.

Esse é o desejo mais profundo dos homens, feitos que os perpetuem.

Umas das primeiras formas de memória coletiva da qual tem- se conhecimento não

foram registradas em documentos escritos, mas sim nas paredes de cavernas antigas, as

chamadas pinturas rupestres. As primeiras pinturas são datadas de 500.000 a.C. (Paleolítico

Inferior). Esses vestígios eram de forma muito simples, apenas traços feitos nas paredes das

cavernas. As pinturas consistiam em negativos de mãos, na natureza, caças de animais, etc.1,

tudo dentro da perspectiva de seu tempo e habilidade. Logo viriam a refinar seus desenhos

passando a ilustrar a vida coletiva e alguns comportamentos.

O povo que não possui a escrita tem por principal meio de comunicação a oralidade, e

foi através dela que os homens começaram a criar e contar os seus mitos. “Desde o “Paleolítico

Médio”, aparecem figuras nas quais se propôs ver “mitogramas”, paralelos à “mitologia”, que

se desenvolve na ordem verbal” (LE GOFF, 2003, p. 427). Como Le Goff afirmou essas figuras

trouxeram os paralelos para a mitologia, e foi através dela que os homens começaram a criar

explicações sobre a sua existência e sobre o mundo que lhe cerca. Esse foi o “primeiro” domínio

no qual a memória coletiva se cristalizou, foram através dos mitos de origem de seu povo, e

claro que a própria memória, não deixaria de ser explicada pela mitologia.

Uma das mais conhecidas mitologias no ocidente é a mitologia grega. O Olimpo, que

era a morada dos deuses, com sua vastidão de deuses e seus vários dons e egos, era morada de

1 “Como a duração da pré-história foi muito longa, os historiadores a dividiram em três períodos: Paleolítico

inferior (cerca de 500.000 a.C), paleolítico superior (aproximadamente 30.000 a.C) e Neolítico (por volta do ano

10.000 a.C). (...) As expressões de arte consistiam em traços feitos nas paredes de argila das cavernas ou “das

mãos em negativo”. Somente muito tempo depois de dominarem a técnica das mãos em negativo, é que os artistas

pré-históricos começaram a desenhar e pintar animais. A principal característica dos desenhos da idade da pedra

lascada, nome pelo qual é conhecido o paleolítico superior, é o naturalismo. O artista pintava os seres, um animal,

por exemplo, do modo como o via de uma determinada perspectiva”. (PROENÇA, 2002, p. 10).

Page 18: Memoricídio - UnB

18

uma deusa em especial: Mnemósine.2 Ela é a deusa da memória, filha do deus Urano (deus do

céu) e da deusa Gaia (deusa da terra), irmã de Cronos (deus do tempo) e amante escolhida de

Zeus, que apaixonado por ela se fingiu de pastor, a seduziu, e durante nove dias a possuiu em

Pieria; dessa união nasceram as nove e mais inspiradoras Musas: Calíope (Musa dos poesia

épica), Clio (Musa da história), Euterpe (Musa da poesia lírica), Melpômene (Musa da

Tragédia), Terpsícore (Musa da dança e do canto), Eráto (Musa da poesia erótica), Polínia

(Musa da poesia sacra), Urânia (Musa da astronomia) e Tália (Musa da Comédia). As musas

tornaram-se inspirações nas artes e história e também protetoras destas. Eram aclamadas por

poetas que desejavam um sopro sobre suas inspirações artísticas. Mnemósine, representando a

memória, era tida como uma das deusas mais importantes, pois sem a memória não existiria a

arte (BÁEZ, 2010).

No Hades, nas regiões infernais, um de seus rios é conhecido como Lete. Nesse, os

mortos desejosos de esquecer de sua vida passada bebiam de sua água, o esquecimento. Tal rio

era o oposto da fonte mnemósine, que, ao beber de suas águas, faria relembrar de tudo,

alcançando assim a onisciência e imortalidade. Aos novos moradores do Hades, era dada a

escolha de qual rio ele gostaria de beber. A memória é muito próxima do esquecimento, não

existe um sem existir o outro (BULFINCH, 2006).

Dessa forma os antigos povos ainda sem o domínio da escrita, explicavam suas origens

através dos mitos, neles explicavam também as suas formas de obter inspiração para as artes.

Mais uma vez o mito explicando o que os homens não compreendiam em sua época.

Sócrates, em seu diálogo com Fedro, relatando a mitologia egípcia, conta sobre como

nasceu a escrita. O deus Toth revela ao Faraó suas infinitas artes e dentre elas ensina a arte da

escrita aos egípcios, dizendo: “- Eis oh rei, uma arte que tornará os egípcios mais sábios e os

ajudará a fortalecer a memória, pois com a escrita descobri o remédio para a memória. ”

(PLATÃO, 1986, p. 120). O Faraó, admirado interrogaria a Toth, dizendo que mesmo uma arte

tão admirável tornaria os homens esquecidos, pois no momento que ele depositasse seu

conhecimento e memória nas escritas, não confiaria mais em sua mente, mas apenas nas

escrituras. “Por isso não inventaste um remédio para a memória, mas sim para a rememoração”

(PLATÃO, 1986, p. 120). Sócrates, também desconfiava da escrita, pois acreditava que o

esquecimento se torna mais próximo quando as lembranças são depositadas em signos

exteriores ao indivíduo. Platão, ao contrário, acreditava que a memória era um bloco de cera

onde as lembranças se imprimiam e ficavam guardadas.

2 Mnemósine é considerada a deusa da memória. Porém alguns autores a declaram como Titânide, forma feminina

para Titã. Fonte: Dicionário Etimológico da mitologia grega, p. 194.

Page 19: Memoricídio - UnB

19

A memória tem como propriedade guardar certas informações necessárias a cada

indivíduo.

A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em

primeiro lugar, a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode

atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa passadas. (LE

GOFF, 2003, p. 423)

Segundo Le Goff (2003), para Platão e Aristóteles, a memória era parte da alma. Ela

não se manifestava na sua parte intelectual, mas sim na parte sensível. A memória platônica

começa então a perder o senso mítico, não procura fazer do passado um conhecimento, mas sim

uma subtração de experiência temporal. Já Aristóteles dizia que a memória era uma faculdade

de conservar o passado, a mamnesi, é a faculdade de evocar voluntariamente esse passado.

Começa assim a laicização da memória, mas ainda não haveria uma ruptura total de divinização

da memória.

De acordo com Báez (2010), logo os gregos dominariam a arte da memória, pois alguns

dos seus mais notáveis homens criaram a Mnemotécnica, ou seja, técnicas de memorização. O

mais conhecido por tal feito é Simônides de Ceos, conhecido por possuir uma memória

admirável. Conta- se que um dia ele compôs um poema para um nobre de Tessália, chamado

Scopas, e que na apresentação pública de seu poema Simônides relembrava muitos fatos de

Castor e Polux e vários outros deuses, mas pouco elogiava a Scopas. Esse, muito insatisfeito,

amaldiçoou o poeta dizendo que o seu pagamento fosse feito pelos deuses aos quais ele tinha

escrito. Uma terrível tragédia aconteceu quando o poeta saiu do local, a casa acabou por desabar

e matou todos os presentes no evento de Scopas, vendo que os corpos ficaram irreconhecíveis.

Apenas Simônides, com sua admirável memória, conseguiu reconhecer as vítimas e fazer uma

lista das pessoas presentes.

Para a justiça grega, existia o mnemon, este era um magistrado da justiça, que se ocupava

em lembrar todas as decisões tomadas. Le Goff observa como a memória era divinizada para

os gregos. “[...] a relação com o mito, com a urbanização. Na mitologia e na lenda, o mnemon

é o servidor de um herói que o acompanha sem o cessar, para lembrar – lhe uma ordem divina

cujo esquecimento traria a morte”. (LE GOFF, 2003, p. 433). Esses magistrados responsáveis

pela memória eram extremamente necessários, pois como não possuíam a arte da escrita, a

oralidade era a principal fonte de memória, e por isso memorizar ou tentar rememorar todos os

fatos ocorridos era de suma importância. Pomiam (2000), afirma que a arte da memória é a arte

Page 20: Memoricídio - UnB

20

da linguagem, porque ensinava a conservar as narrativas e permitia ao indivíduo receptor tornar-

se o depositário de recordações de pessoas as quais ele jamais conheceu.

Segundo Báez (2010), sabe- se sobre a mnemotécnica por causa de três textos de origem

latina, é precisamente de Roma, que durante séculos fez parte da clássica memória retórica. É

o Ad Herenium, supostamente compilado por um mestre anônimo de Roma, aproximadamente

em 86 a.C., que já classificava a memória em dois tipos: a natural e a artificial. Os demais

documentos escritos em latim eram o De Oratore de Cícero (55 a.C) e o Insitutio oratória de

Quintiliano. Esses três textos desenvolvem a mnemotécnica grega, mostrando a distinção entre

os lugares e as imagens, e reforçando o caráter ativo dessas imagens no processo de

rememoração, e a divisão entre a memória das coisas e a memória das palavras, cada uma em

sua distinção rememorativa. Esses três livros são muito importantes para entender os problemas

da memória relacionados com a retórica.

A oralidade era o principal meio de memória. Existiam nas sociedades os homens-

memória que, como já observados aqui, retinham toda a recordação do cotidiano coletivo:

nascimentos, genealogia de seu povo, mortes, colheitas, casamentos, histórias. Foram eles os

principais elucidadores da mitologia. Todas as histórias ou fatos tidos como muito importantes

nas comunidades eram “gravadas” na memória por esses homens e depois passadas a outros

futuros narradores. Porém, a oralidade apresenta a sua maior peculiaridade, pois esses

especialistas em memórias não decoravam palavra por palavra, suas memórias possuíam uma

liberdade criativa, sendo sempre reconstruída, como é o caso apresentado por Silva.

Um exemplo pode ser os griots da África ocidental, cidadãos de países como Gâmbia,

por exemplo. Os griots são especialistas responsáveis pela memória coletiva de suas

tribos e comunidades. Eles conhecem as crônicas de seu passado, sendo capazes de

narrar fatos por até três dias sem se repetir. Quando os griots recitam a história

ancestral de seu clã, a comunidade escuta com formalidade. [...] tais mestres da

narrativa são exemplos de como a tradição oral e a memória podem ser enriquecedoras

para a história: ambas são vivas, emotivas. (SILVA, 2006, p. 2)

A história oral se afirmava como instrumento de construção da identidade coletiva e

transgeracional. Pomian (2000), afirma que haviam vários vestígios do passado que poderiam

ser transmitidos das mais diversas formas exteriores ao próprio indivíduo, como os narradores

que transmitiam suas histórias a outros narradores e assim sucessivamente, sempre conservando

a sua identidade, sempre as transmitindo aos seus descendentes, preservando recordações

passadas. Isso não impedia um narrador de apropriar-se das narrativas como sendo suas, e a

Page 21: Memoricídio - UnB

21

falta de um suporte escrito reconhecido fazia com que a tradição oral fosse mais flexível e

contínua, pois a história poderia se adaptar às necessidades e interesses de seus narradores,

desviando- se do fato original.

Como citado, a memória oral não guardava palavra por palavra, ela tinha a liberdade em

se transformar. O avanço da oralidade para a cultura escrita trouxe uma enorme ruptura histórica

para a memória da humanidade, afinal sempre foi muito debatido sobre a credibilidade que a

oralidade possuía, pois, com o passar da história para outro indivíduo, os fatos poderiam sofrer

alterações que o próprio esquecimento traria, ou até mesmo o aumento de fatos inexistentes,

para assim trazer maior interesse do público ouvinte. Com a escrita houve a ressalva de que

essa permaneceria intacta, por isso ela era indubitável para o homem com o passar do tempo.

Porém, é preciso lembrar que a cultura oral e cultura escrita não são certas ou erradas, ambas

são apenas diferentes, uma não anula a outra.

Segundo Lyons (2011), as primeiras formas de escrita que se tem conhecimento foram

registradas na antiga mesopotâmia, por volta de 3.500 a.C. Os sumérios desenvolveram a forma

de escrita cuneiforme. Eles usavam placas de barro onde cunhavam a escrita. Muitos desses

escritos sobreviveram e são eles que nos esclarecem um pouco desse passado histórico. Esses

escritos consistiam em ser apenas registros cotidianos, administrativos, econômicos e políticos

da época. A forma de escrita era simples com poucos signos feitos sobre a superfície de argila,

pedras ou madeiras. Com o tempo, as transcrições de signos foram evoluindo e ficando mais

complexas e ricas. As antigas sociedades usavam muitos símbolos para escrever, a escrita

egípcia é um exemplo, mas a leitura e escrita eram restritas a uma pequena elite de burocratas

e escribas. No Egito antigo apenas 1% da população sabia escrever. Esse grupo era composto

pelo faraó, talvez as esposas de alguns deles, líderes militares, antigos administradores

econômicos e os sacerdotes. Os suportes dos escritos eram cascas de árvores, folhas de

palmeiras ou bananeira, madeira, argila, papiro, carapaças de tartarugas, bambu, seda,

pergaminhos e finalmente o papel. Durante muito tempo se procurou suportes resistentes onde

esses escritos perdurassem. Por isso tantos suportes foram testados ao longo do tempo, até

finalmente chegarem aos pergaminhos, papiros e papel.

Pomian (2000), destaca que a invenção da escrita representou uma grande mudança no

processo de memória coletiva, pois agora as gerações não tinham apenas uma fonte de

transmissão de lembranças, no caso a oralidade. Possuíam também a escrita e objetos que

constituíam a linguagem das imagens transmitidas aos receptores dessa memória, além do qual

os documentos escritos tinham uma duração muito maior das lembranças.

Page 22: Memoricídio - UnB

22

Como afirmado por Pomian (2000), na tradição oral não havia imediata percepção entre

presente e passado, oposta à escrita em que se podia delinear as diferenças entre passado e o

presente, separados por um intervalo de tempo.

Os gregos logo desenvolveram seu alfabeto, assim como, pouco depois, os romanos, e

em toda a cidade, tanto grega, quanto romana, podiam se observar os escritos, como também

nos templos, cemitérios, praças, ruas, estradas, entre outros lugares mais, atestando assim a sua

soberania sobre as escrituras.

Os Reis tiveram um papel fundamental, pois graças a eles possuí- se o que foi chamado

de memória real. Todo rei queria guardar para futuras gerações os seus feitos de seu reinado e

vida. Para isso ele se desdobrava em um ato de rememoração, no qual o rei era o centro, e com

isso foram criadas as instituições-memória: museus, arquivos, bibliotecas. Tudo para

salvaguardar a sua grandiosidade na memória coletiva presente e futura. Pomian (2000), cita

que a China e o Egito possuíam coleções de objetos e documentos sobre o indivíduo, e no

momento que eram expostos nos templos ou palácios, à vista de cada homem, cada objeto podia

ser comparado com outros mais antigos. Ou seja, eles também viviam e pensavam como todos

no presente, guardando objetos para a posteridade, para mostrar como viviam e para percepção

da evolução, sendo possível traçar similaridade entre passado e presente. Como afirmado por

Pereira (2006), não há vida sem expectativas, e não é o passado que dá sentido ao presente, mas

as expectativas de futuro que dão sentido ao passado. É isso que faz a memória ser tão dinâmica,

porque ela faz parte da vida.

Essas memórias coletivas nada mais são do que uma constituição de memórias

individuais. Cada uma delas traz suas densidades, percepções do tempo, valores, ambições,

temores e recordações individuais, de forma que convergem em torna-se uma coletividade de

memórias, como observado por Halbwachs (2006), de modo que cada indivíduo possui as suas

lembranças, e com isso ele sempre estará interagindo com o coletivo. Isso porque nem sempre

quando o indivíduo constrói a sua percepção de memória está sozinho. Ele sempre está ligado

a outro indivíduo mesmo sem querer. A memória é uma coletividade, mesmo que individual.

As memórias individuais são densas e contínuas, já a memória coletiva é mais ampla,

resumida e esquemática. A memória não é algo pronto e cristalizado, não é a ciência do morto,

ela é viva, vibrante, dinâmica e tem como função o caráter primordial para a elevação da

identidade de uma nação, sendo a essência da constituição individual, coletiva e institucional.

O passado pode ser narrado de várias formas, um fato pode desencadear diversas

memórias, isso porque cada um tem a sua percepção de um acontecimento, do tempo, da

rememoração e de como o reconta. Pollak (1992), afirma que a memória é uma operação

Page 23: Memoricídio - UnB

23

coletiva de acontecimentos e interpretações do passado que quer se salvaguardar. Já Pomian

(2000), afirma que a memória é o que permite ao ser vivo remontar-se no tempo, relacionando-

se com o passado. Isso também traz o efeito do tempo na rememoração: o esquecimento. Afinal

a memória não pode ser cem por cento perfeita. Não importa o esforço para relembrar, ela se

fragmenta com o passar do tempo, dificultando a sua reconstituição. É preciso lembrar que a

recordação é seletiva, pois essa não pode ser restituída na íntegra. “É na contra corrente do rio

Lete que a amnese faz seu curso” (RICOUER, 2000 apud GONÇALVEZ, 2007, p. 38).

Lembranças não são voluntárias, elas são involuntárias, e o esquecimento não é uma disfunção.

A memória não é apenas uma lembrança e esquecimento, ela é uma construção.

Segundo Ferreira (2002 apud PEREIRA, 2006, p. 97) “A memória é também uma construção

do passado, mas pautada em emoções e vivências; ela é flexível, e os eventos são lembrados à

luz da experiência subsequente e das necessidades do presente”. Com isso a autora quis dizer

que a memória coletiva é capaz de se transformar em determinadas condições, uma lembrança,

imagem, etc. A recordação é muito sinestésica, pois algo como um perfume, música, frase, entre

outros, reativam lembranças de algo e podem trazer as mesmas sensações sentidas há muito

tempo, e é com esses vestígios que pode- se tentar reconstruir o passado. Se o que nota-se hoje

toma lugar no quadro de referência de nossas lembranças antigas, elas se adaptam as nossas

percepções atuais. Pode- se reconstruir algumas lembranças da forma que se reconhece, porque

no fundo elas concordam no essencial, apesar de possíveis divergências. É nesse contexto que

as lembranças se constroem: São elas que garantem ao indivíduo a sua identidade.

Na estrutura da socialização, são determinadas quais as experiências devem ser

recordadas e quais devem ser esquecidas, como afirmado por Báez (2010), diz que a identidade

como feito social forma uma autoconsciência do que se reporta a um sistema que exclui e inclui.

Existem estudos sociológicos que separam o conceito da memória histórica da memória social,

pois a história é associada ao Estado, tudo sobre um consenso oficial cheio de interesses e jogos

de poder. A memória social por outro lado é mais pessoal ou coletiva. A história por vezes tem

caráter opressor sobre a memória, e nesse caso ela se fortalece com um aspecto muito

importante: o testemunho. Nora (1993), observa como a memória é seletiva, onde nem tudo se

mantém registrado, e a bem verdade que na memória coletiva, mesmo mais esquemática e

organizada, é conhecido que até as datas oficias são fortemente estruturadas do ponto de vista

político. Reforçando assim a ideia de que a memória não é algo pronto e acabado, que no seu

processo de reconstituição perde-se alguns fatos por interesses e é fortalecido novos jogos de

poder sobre a memória.

Page 24: Memoricídio - UnB

24

Como dito por Funari (2001), pode-se ver o quanto a história pode ser elitista e

escolher a seu bem querer quais fatos devem ser rememorados. Na história percebe-se várias

perdas de memórias, testemunhos que descartados vivem a penumbra do esquecimento. Um

exemplo é o testemunho das mulheres que ao longo da história, tiveram suas memórias

ignoradas, caladas, e esquecidas, pois mulheres não possuíam nenhuma visibilidade e direitos

aos reconhecimentos sociais por seus feitos, artes, livros, estudos, etc. Quantas levaram consigo

aos túmulos boas lembranças e histórias que jamais serão conhecidas? Quantas tiveram papeis

de enorme notoriedade na história e foram esquecidas, enterradas na memória coletiva por

escolhas elitistas e patriarcais? É observado o atual esforço de alguns pesquisadores em trazer

a memória de algumas dessas mulheres ou outras várias minorias esquecidas, mas todo esforço

nunca trará na integra tais fatos e memórias, elas foram violadas com o tempo, destituídas de

detalhes pelo esquecimento. A história é construção problemática e incompleta do que não

existe mais, a história é a ciência do morto. Se a história é fria, calculada, morta, a memória é

viva, carregada por grupos vivos e por isso em crescente evolução, ela é aberta à dinâmica entre

o esquecimento e a lembrança.

Nora (1993), também aponta sobre como vive- se acelerando a história, que produz e

necessita de vários suportes para gerar e guardar a memória, tornando-a menos espontânea.

“Não é mais o saldo mais ou menos intencional de uma memória vivida, mas a secreção

voluntária e organizada de uma memória perdida” (NORA, 1993, p. 16). Ao observarmos como

o foco sobre a memória e o passado traz consigo um grande paradoxo, registrando que, com

frequência crescente, vários outros críticos alegam que a cultura de memória moderna do

embotamento, que insiste em tudo armazenar e guardar, pode trazer a amnésia, um efeito

colateral de tamanho acesso a memória, e destacam ainda a incapacidade de lembrar, trazendo

uma perda de memória histórica:

A acusação é feita através de uma crítica à mídia, a despeito do fato de que é

precisamente essa, desde a imprensa e a televisão até os CD´s- Roms e a internet, que

faz a memória ficar cada vez mais disponível para nós a cada dia. Mas se o aumento

explosivo de memória for inevitavelmente acompanhado de um aumento explosivo

de esquecimento? E se as relações entre memória e esquecimento estiverem realmente

sendo transformadas, sob pressões nas quais as novas tecnologias de informação, as

políticas midiáticas e o consumismo desenfreado estiverem começando a cobrar seu

preço. (HUYSSEN, 2000. p. 18)

Page 25: Memoricídio - UnB

25

Interessante é observar esses contrapontos observados por Nora e Huyssen. Seria

realmente possível que uma overdose de memória traria o esquecimento? Pode-se observar o

que acontece nos arquivos, bibliotecas, museus, que lotados de memórias encontram- se em boa

parte, vazios.

A percepção de passado que possuímos, é a apropriação de algo que sabe- se que não

nos pertence mais:

Chegamos, simetricamente, da ideia de um passado visível a um passado invisível; de

um passado coeso a um passado que vivemos como rompimento; de uma história que

era procurada na continuidade de uma memória a uma memória que se projeta na

descontinuidade de uma história. O passado nos é dado como radicalmente outro, ele

é esse mundo do qual estamos desligados para sempre. (NORA, 1993, p. 4)

Segundo Vieira (2015) o significado do passado permanece preservado em seus

vestígios, trazidos ao tempo presente e interpretados no presente numa cadeia de significação,

ou seja, a lembrança é a imagem que se produz do passado, o que se imagina como imagem

deste passado no presente.

A memória está nos alicerces da história, a ponto de serem confundidas com o

documento, o patrimônio, o monumento, a oralidade e com a escrita. Mas a memória é muito

mais que isso, é muito mais do que um relembrar, ela é nossa raiz e identidade. A memória não

é apenas individual ela é também coletiva, viva. Como Nora e Hyussen observaram pode haver

uma morte da memória pelo seu excesso, pois “é na contra corrente do rio Lete que a amnese

faz seu curso” (RICOUER, 2000 apud GONÇALVEZ, 2007, p. 38). A memória é irmã do

esquecimento.

Um fato importante nos testemunhos colhidos para se montar uma memória coletiva,

é que a memória individual passa a ser um lugar de disputa, à procura de grandiosidade

individual e com seus interesses próprios. Por isso, na coleta de testemunhos, o historiador ou

pesquisador, busca semelhanças nas memórias individuais, procura um consenso entre elas, é

assim que se trabalha a história, ela é uma unificação de testemunhos, é daí que nasce uma

memória coletiva local. Pollak (1992) percebeu as dificuldades e enobrecimento individuais

sobre suas rememorações. Ele dizia: “é natural o conflito entre a memória individual e a

memória alheia; assim a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e

intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos. ” (POLLAK,

1992, p. 200).

Page 26: Memoricídio - UnB

26

O fato é que, mesmo com tantas controvérsias que a memória pode trazer, mesmo com

tantos interesses sujos e escusos do poder na tentativa de apagar o passado e de tentar reconstruir

um presente, a memória é extremamente necessária, pois ela é o alicerce e a identidade de uma

nação. Suas formas são sempre as mais variadas, mas sempre com o mesmo intuito, o de trazer

ao presente fatos do passado, acrescentando sempre um aprendizado a mais sobre quem somos.

Como dito por Pereira (2006), o que se espera do futuro, está limitado ao que se sabe do passado.

Não haverá memória coletiva sem suporte de memória, que são compartilhados de formas tão

ritualísticas. A raiz da memória mergulhada num espaço de experiência, aberta as recordações,

expectativas, horizonte que o recebe como herança e como possibilidade de se perpetuar.

4.1 PATRIMÔNIO E MEMÓRIA

O patrimônio cultural é uma construção social que diz respeito a todos. É um dos

suportes que a memória necessita para transmitir as histórias e memórias de uma nação, isso é

o que faz parte da afirmação e identidade de sua cultura.

O significado etimológico de patrimônio vem do latim, pater (pai) e moneo (recordação)

(Báez, 2010). A tradução pode ser algo como “recordação dos pais”, ou seja, memória que

provém do pai. Para os gregos o direito ao patrimonium trazia todos os poderes, deveres e

propriedades herdados do pai ou de antepassados, uma herança.

Segundo Báez (2010), mais tarde, no governo Justiniano, viriam reformulações desse

direito, que seria o res in patrimonium, que significa “pertences próprios a uma pessoa”. E o

res extra patrimonium eram as coisas patrimoniais que não estavam declaradas como bens

pessoais, logo poderiam pertencer ao império. A igreja cristã declarou as suas posses no

patrimonium sancti petri (santo patrimônio de Pedro). Até meados do século XIV, essa

expressão era muito usual. Ainda hoje é predominantemente conhecida como herança ou legado

transmissível no plano pessoal ou coletivo. Existe uma associação entre patrimônio e noção de

tempo de uma tradição entre o antigo, sagrado e coletivo.

Funari (2001) explica como é a percepção que os alemães usam Denkmalpflege, que

tem por significado “o cuidado dos monumentos daquilo que nos faz pensar”, já os ingleses

adotaram o heritage, no sentido de “aquilo que foi ou pode ser herdado”. Mas a palavra

patrimonium passou também a ser usual de referência aos monumentos herdados de

antepassados. É percebido uma nítida referência à memória ao observar as palavras monumento

e patrimônio. O termo Moneo, “fazer pensar”, está presente tanto em um como em outro.

Page 27: Memoricídio - UnB

27

De acordo com Abreu (2007), a emergência da noção de patrimônio, com o sentido que

é conhecido hoje enquanto um bem coletivo, um legado ou uma herança artística e cultural onde

um grupo social se reconhece enquanto tal, foi lenta e gradual. Na França, o significado da

noção de patrimonium se estende pela primeira vez para as obras de arte e para os edifícios e

monumentos públicos no período pós revolução francesa. A população, tomada pelo sentimento

revolucionário, destruiu vários vestígios do antigo regime. Enfurecido, o povo quis destruir as

bibliotecas públicas. Foi neste momento que alguns intelectuais começaram a chamar a atenção

para a perda significativa que estava acontecendo na França. “A noção de patrimônio afirma-

se em oposição à noção de vandalismo” (ABREU, 2007, p. 267). Por isso alguns de seus

cidadãos em racionalidade, desencadearam uma mobilização salvacionista das obras

consideradas imprescindíveis para a nação. A ideia de monumento nacional começa a tomar

sua forma. Leis que os salvaguardavam foram promulgadas em 1974, a partir daí tornou-se

crime qualquer destruição destes monumentos, um crime contra o próprio povo. Isso foi

necessário para conter os ânimos dos revolucionários. Porém, este foi o ponto de partida para

uma política francesa de proteção à memória coletiva de sua nação.

O exemplo da França toma a dimensão de um movimento que se processaria por toda

a moderna sociedade ocidental. O significado da noção de patrimônio estaria a partir

de então indissoluvelmente relacionado à formação dos estados nacionais. As nações

passam a construir e inventar seus patrimônios: Bibliotecas, museus, monumentos,

obras de arte e todo um acervo capaz de expressa-las e objetificá- las. (ABREU, 2007,

p. 267)

O Patrimônio pode se dividir de várias maneiras, porém a divisão mais tradicional é

entre patrimônio material e patrimônio imaterial. Ambos se enquadram no que é chamado

patrimônio cultural.

Patrimônio material é um objeto, um monumento que é dotado de materialidade, e que

na sua existência possui algum registro de passagem do tempo; é a história da passagem da

humanidade, nas construções sociais e culturais. É uma forma a mais de memória, um suporte

que sustenta todo o simbolismo de coletividade. Resgatar a memória do passado através de

lugares de lembrança e objetos que nos rodeiam, nos confortam no poder de ir e vir no universo

de memórias, assegurando uma identidade com as raízes do passado. Os objetos materiais nos

trazem a certeza da permanência em transcender o tempo.

Patrimônio imaterial é uma prática, uma representação subjetiva de memórias. A

Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (UNESCO) define como

Page 28: Memoricídio - UnB

28

patrimônio cultural imaterial práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas

junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados que as

comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante

de seu patrimônio cultural. Ele é transmitido de geração em geração e constantemente recriado

pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de

sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para

promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. Apesar de manter um senso

de identidade contínua, este patrimônio é bem frágil, pois está em constante mutação e

multiplicação de seus portadores. Por isso, a UNESCO, adotou a convenção para a salvaguarda

cultural imaterial.

É amplamente reconhecida a importância de promover e proteger a memória e as

manifestações culturais representadas, em todo o mundo, por monumentos, sítios

históricos e paisagens culturais. Mas não só de aspectos físicos se constitui a cultura

de um povo. Há muito mais, contido nas tradições, no folclore, nos saberes, nas

línguas, nas festas e em diversos outros aspectos e manifestações, transmitidos oral

ou gestualmente, recriados coletivamente e modificados ao longo do tempo, [...]. Para

muitas pessoas, especialmente as minorias étnicas e os povos indígenas, o patrimônio

imaterial é uma fonte de identidade e carrega a sua própria história. A filosofia, os

valores e formas de pensar refletidos nas línguas, tradições orais e diversas

manifestações culturais constituem o fundamento da vida comunitária. Num mundo

de crescentes interações globais, a revitalização de culturas tradicionais e populares

assegura a sobrevivência da diversidade de culturas dentro de cada comunidade,

contribuindo para o alcance de um mundo plural. (UNESCO, ONLINE)

Cada grupo ou nação necessita ter monumentos que representem algo que simbolize

suas lembranças coletivas. Geralmente esses monumentos são de comemoração, seja por um

ato individual ou coletivo. É necessário comemorar e representar trazendo ao presente um fato

ausente.

De acordo com Halbwachs (2006), monumento é toda aquela construção que faz parte

da memória, é uma referência para a comunidade, tudo aquilo que evoca o passado, uma

identidade, e lhes perpetua a recordação. Interessante observar o seguinte quadro: Um

estrangeiro visita determinado país, que possui vários monumentos, mas esses não significam

nada para ele, que é externo à comunidade. Esse monumento passa a dispor de uma faceta

apenas histórica, que representa a história e memória daquele país, porém não há um sentimento

de pertencimento a sua identidade, é uma memória ausente a esse indivíduo.

Page 29: Memoricídio - UnB

29

Patrimônio assim como a memória, não é passado, é futuro. Eles são importantes

portadores de mensagens, e que por sua vez tornam-se portadores de recordações. Possuem um

significado no conceito de identidade nacional e diferença étnica. Le Goff discorre sobre Roma,

quando a lei monumenta huius ordinis designou atos comemorativos, ou seja, os decretos do

senado. Porém, desde a antiguidade romana os monumentos têm duas especificações: “1. Obra

comemorativa de arquitetura ou de escultura: arco do triunfo, coluna, troféu, pórtico, etc. 2. Um

monumento funerário destinado a perpetuar a recordação de uma pessoa no domínio em que a

memória é particularmente valorizada: a morte ” (LE GOFF, 2003, p. 535).

Quantos monumentos não foram feitos com a questão de afirmar a soberania e poder de

um povo, tudo com o intuito de fortalecer a sua identidade como nação? Eles possuem

características ligadas ao poder de perpetuação, tanto voluntária ou involuntária das sociedades

históricas, são testemunhos unificados. Essas legitimações de coletividade como forma de

reconhecimento são numerosos e, por vezes, mais que grandiosos. Cada tribo e país possuem

monumentos que aos seus olhos são os maiores e mais esplêndidos do mundo.

Na história, ouve - se contar sobre os famosos jardins suspensos, que pertenciam ao

palácio de Nabucodonosor. E não era apenas isso que ele possuía de belo, havia o chamado

gabinete das maravilhas, que continha tesouros de outros povos por ele conquistados.

Báez (2010), demonstra que no mundo antigo, sete monumentos foram declarados como

maravilhas. Essa lista os destacam como os mais impressionantes do mundo antigo. Elaborada

por Antípatro de Sidon, foi uma das primeiras a enumerar em um ranking todos esses antigos

monumentos, grandiosos e muito admirados no seu tempo (Quadro 1). Estes patrimônios são a

tradução de orgulho e demonstração de poder e riqueza do seu país.

Quadro 1 – Maravilhas do mundo antigo

1. A grande pirâmide de Gizé (Egito)

2. Jardins suspensos da Babilônia (Iraque)

3. O Templo de Ártemis em Éfeso (Turquia)

4. A Estátua de Zeus em Olímpia (Turquia)

5. O Mausoléu de Halicarnasso (Turquia)

6. O Colosso de Rodes (Ilha grega de Rodes)

7. O Farol de Alexandria (Egito)

Fonte: Báez, 2010, p. 269

Page 30: Memoricídio - UnB

30

Dessa lista3, apenas as pirâmides de Gizé, ainda permanecem, sobrevivendo e

desafiando a lógica o tempo. Todos os outros foram destruídos por guerras, incêndios,

terremotos, etc.

Os lugares de memória são extremamente necessários à existência, esses lugares se

tornam portadores de significado. A memória, ao contrário do que muitos acreditam, não chega

pronta, ela é construída, cultuada através daqueles que precedem, e são eles que a transmitem

para outros que virão, e assim sucessivamente. A memória, é um ato transgeracional, não é a

ciência do morto, ela é viva e flexível.

Para Nora (1993), os lugares de memória são todos, e em todos os sentidos, desde a

forma material, concreta, até o mais abstrato e simbólico. Ele afirma que mesmo um local de

aparência puramente material, um depósito de arquivo, uma associação de antigos combatentes,

só poderiam entrar nessa categoria se possuírem algum ritual memorial, com fundo de

significado para aqueles que o cultuam como tal. Porém nem tudo é um lugar de memória, pois

para ele ser considerado como tal precisa se ter a vontade de memória, deve ter intenção

memorialista que garanta a sua identidade, interagindo com o seu grupo.

São esses os lugares de externalização da memória coletiva, que demostram os muitos

sentidos que a memória possui. Os lugares de memória também apresentam sua multiplicidade

de sentidos. O Patrimônio nacional é o lugar de memória por excelência, pois além de expressar

e sediar a memória nacional, ele materializa-se em prédios, monumentos, edifícios, que podem

ser olhados, visitados e percorridos.

A necessidade de resguardar tais monumentos torna necessário pensar em formas que

os delimitem e os protejam judicialmente. Após a segunda guerra mundial, período de vasta

destruição patrimonial, se popularizou a expressão bens culturais, dando a noção de um bem no

direito civil. De acordo com Báez (2010), para os romanos, o patrimônio era constituído em

tangi possunt, que são as coisas corporais, e tangi no possunt, as coisas não corporais. Era

herdado um bem, mas junto dele viria qualquer obrigação. “A categoria de bem cultural, supõe

conceder um objeto o sentido de obra de arte digna de conservação e proteção, sem importar o

regime de propriedade pública ou privada. ” (BÁEZ, 2010, p. 270), ou seja, é necessário

salvaguardar essas obras consideradas artes. Importante lembrar que patrimônios não são

3 Alguns desses locais são suposições pois não sobraram nenhum vestígio que comprove a existência deles, além

dessa lista. Vide: Jardins Suspensos. A Turquia foi capital do império romano (330- 390), e do Império Bizantino

no oriente (395–1204 e 1261–1453), por isso possui muitos monumentos dedicados a divindades romanas. (BÁEZ,

2010).

Page 31: Memoricídio - UnB

31

apenas prédios enormes, estátuas ou qualquer outra grande construção, são também pinturas,

móveis, danças, livros, bibliotecas, artefatos, objetos, arquivos, entre outros vários exemplos.

A Organização das Nações Unidas elaborou uma conferência, em Londres, em

novembro de 1945, para a criação de uma organização educacional e cultural. As 44 delegações

presentes decidiram por fim criar uma organização que iria encarnar a verdadeira cultura da

paz. Essa organização teria a responsabilidade de trazer a solidariedade intelectual e moral da

humanidade. No dia 16 de novembro do mesmo ano, trinta e sete países assinam a carta que

estabelece a UNESCO. Na conferência, Ellen Wilkinson, então Ministra britânica da educação

e presidente da Conferência geral, lê a recém-adotada Constituição, oficializando a organização

de proteção aos bens culturais mundiais. A UNESCO, entre 21 de abril e 15 de maio de 1954,

fixou um documento jurídico chamado de Convenção para a proteção dos bens culturais em

caso de conflito armado. Foram estabelecidos os bens que deveriam ser assegurados e

resguardados, porém ainda não há como avaliar ou julgar o seu alcance jurídico e efetivo na

humanidade, pois tais leis não completaram nem 100 anos. (UNESCO, ONLINE)

No artigo 1º do Decreto n° 44.851 da Unesco, ficou estabelecido que os bens culturais

dignos de conservação e proteção, são para fins da presente Convenção considerados como

bens culturais, qualquer que seja a sua origem ou o seu proprietário:

a) Os bens, móveis ou imóveis, que apresentem uma grande importância para o

patrimônio cultural dos povos, tais como os monumentos de arquitetura, de arte ou de

história, religiosos ou laicos, ou sítios arqueológicos, os conjuntos de construções que

apresentem um interesse histórico ou artístico, as obras de arte, os manuscritos, livros

e outros objetos de interesse artístico, histórico ou arqueológico, assim como as

coleções científicas e as importantes coleções de livros, de arquivos ou de reprodução

dos bens acima definidos;

b) Os edifícios cujo objetivo principal e efetivo seja, de conservar ou de expor os bens

culturais móveis definidos na alínea a), como são os museus, as grandes bibliotecas,

os depósitos de arquivos e ainda os refúgios destinados a abrigar os bens culturais

móveis definidos na alínea a) em caso de conflito armado;

c) Os centros que compreendam um número considerável de bens culturais que são

definidos nas alíneas a) e b), os chamados "centros monumentais".

(UNESCO, 1954, p. 2)

Reconhecia-se dessa forma que o patrimônio e, sobretudo os bens culturais, são

instituições da memória coletiva. As bibliotecas e os museus são centros de saber, eles

representam a proteção da memória coletiva, guardiões da sabedoria de toda a humanidade, por

Page 32: Memoricídio - UnB

32

esse motivo também o são patrimônio cultural. A destruição ou mesmo o roubo desses é um

atentado à humanidade e sua cultura e à afirmação da identidade de um povo.

O patrimônio cultural é histórico, é tudo aquilo de condição material e imaterial que

tenha valor de identidade para cada comunidade local ou internacional e que seja de interação,

estímulo social. O Patrimônio cultural existe, pois, o povo o assim considera, ele representa

cada indivíduo ou grupo. Ele tem a capacidade de impulsionar um sentimento de afirmação e

domínio, garantindo e estimulando a consciência de identidade da comunidade em seu território

e permitindo o resguardo de ações culturais que integrem cada um ao seu redor. Como

defendido por Báez (2010, p. 273): “A tendência predominante agora é eliminar as restrições e

utilizar um conceito mais amplo, mais plural menos elitista, mais antropológico, mais

comunitário e mais tolerante com as mudanças no mundo”.

Importante salientar que os patrimônios são, muitas vezes, elitistas, pois pessoas comuns

são ensinadas, em especial no Brasil, a esquecer seus patrimônios. Por várias vezes foram

demolidos prédios de enorme valia para a nossa cultura, como visto na avenida Paulista, em

São Paulo, e na avenida Rio Branco no Rio de Janeiro. Outros exemplos que possuem

relevância histórica, e pouco são lembradas por causas elitistas de controle da memória, são

indígenas; espaço de história dos negros, pobres, mestiços, entre vários outros. Essas minorias

aprendem a venerar patrimônios que por vezes não trazem identificação com o seu passado.

“Neste contexto, a tarefa acadêmica a confrontar os arqueólogos e aqueles encarregados do

patrimônio, no Brasil, é particularmente complexa e contraditória. Deve -se lutar para preservar

tanto o patrimônio erudito, como popular, afim de democratizar a informação e a educação em

geral. ” (FUNARI, 2001, p. 6). Como observado por Potter (s.d apud FUNARI, 2002, p. 2),

“deveríamos, entretanto, procurar encarar os artefatos como socialmente construídos e

contestados, em termos culturais antes que como portadores de significados inerentes e a-

históricos, inspiradores, pois, de reflexões, ainda mais do que admiração. ” Nesse quesito Funari

(2001) contesta a experiência brasileira a esse respeito, a falta do patriotismo e identidade com

a sua cultura, que por vezes é desconhecida ao seu povo.

É muito clara a manipulação oficial do passado incluindo o gerenciamento do

patrimônio, que, de forma constante, é reinterpretada pelo povo.

O patrimônio brasileiro preservado oficialmente mostra um país distante e estrangeiro,

apenas acessível por um lado, não fosse o fato de que os grupo sociais o reelaboraram

de maneira simbólica, esses estratos são excluídos do poder, e assim da preservação

do patrimônio. (ARANTES, 1990 apud FUNARI, 2001, p. 2)

Page 33: Memoricídio - UnB

33

Nem mesmo igrejas coloniais foram devidamente preservadas no Brasil, ou mesmo

bibliotecas, vide a situação frágil da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, que devida a falta

de cuidados e reparos em sua estrutura põe em risco todas as obras de enorme valia a nação.

Qualquer edifício moderno é considerado melhor que o antigo, como o que aconteceu

ao Palácio Monroe em 1975, que teve por desculpa para a sua demolição, que ele atrapalhava

o trânsito do centro na cidade, depois foram os gastos que o prédio trazia, logo era porque estava

no meio das linhas de metrô, que depois de várias discussões com os interessados em proteger

o palácio desviaram a linha, a justificativa final, foi sobre a estética do prédio (WESTIN, 2015).

De acordo com Westin (2015), o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

(IPHAN) recebeu uma proposta de tombamento dos prédios públicos da Cinelândia. Porém, o

arquiteto Lúcio Costa, manifestou–se contra a proteção do Monroe, pois na visão dele era um

prédio sem valor arquitetônico, apenas uma presença estorvante na cidade. Lúcio dizia que a

arquitetura brasileira se resumia à colonial, como a de Ouro Preto, e à moderna, como a de

Brasília. Tudo que existisse entre as duas, como o estilo eclético, não passaria de reles imitação

de estilos estrangeiros.

Esse pensamento traduz toda a filosofia para as demolições e destruições feitas no país

e no mundo: É destruindo o antigo, para construir o novo, melhor: o moderno. Mas será mesmo

que para ter o novo e moderno precisa -se sempre destruir o velho? O passado necessita do

presente com ideias de futuro, ressaltando as memórias e identidade do povo. Quando apagados

da história, trazem consigo o esquecimento, um lapso temporal na sua história.

Funari (2001, p. 6) argumenta que deve- se lutar e preservar tanto o patrimônio erudito

como o popular, a fim de democratizar a informação e a educação em geral. Para que se tenha

acesso ao conhecimento, para que esses desconhecimentos e destruições ocorridos não mais

aconteçam, ensinando o povo a amar o passado, os objetos de toda a sorte que eles representam.

A memória social, deslocada da vida cotidiana de seres projetados para o futuro,

encontra abrigo em um patrimônio que começava a ser tombado e protegido da ação destruidora

do tempo e dos homens. De acordo com o IPHAN, a palavra tombamento, tem origem

portuguesa e significa fazer um registro do patrimônio de alguém em livros específicos num

órgão de Estado que cumpre tal função. Ou seja, a palavra é utilizada no sentido de registrar

algo que é de valor para uma comunidade protegendo-o por meio de legislação específica.

Atualmente, o tombamento é um ato administrativo realizado pelo poder público com o

objetivo de preservar, através da aplicação da lei, bens de valor histórico, cultural, arquitetônico

e ambiental para a população, impedindo que venham a ser destruídos ou descaracterizados.

Page 34: Memoricídio - UnB

34

Cada país possui o seu livro do tombo com itens que devem ser protegidos. Cada livro

está de acordo como estabelecido pela UNESCO. Portanto, o tombamento visa preservar

referenciais, marcas e marcos da vida de uma sociedade e de cada uma de suas dimensões

interativas.

A história nos pertence. Os monumentos, patrimônios em suas diversas formas, nos

pertencem. Assim, é necessário cada vez mais reforçar o sentimento de pertencimento e

reconhecimento destes patrimônios como comunitário e acessível a cada um. Eles são a

representatividade individual, ou pelo menos deveriam ser. Eles são a tradução da memória

coletiva, lugares de memória viva. Somos uma nação porque possuímos uma história e

memória, e essa história está documentada nos livros, em monumentos, prédios, bibliotecas,

museus, arquivos, e outros mais, que carregam o simbolismo da identidade nacional, todos eles

são portadores do maior valor cultural que uma nação possui.

Percebe-se que o patrimônio cultural tem sido alvo de um campo de conflitos e

interesses contraditórios. Os patrimônios se firmaram como base de um estado forte

comprometido com a ideia que a nação tinha um passado, e era este passado que precisava ser

salvo do esquecimento. Todo monumento é histórico e artístico, e possuem seu valor perante a

sociedade, que firma nele a sua memória e identidade, tornando- o simbólico para eles, um

lembrete de algo a ser memorado. Hoje ele se assegura com a certeza de futuro e em direção a

ele. Mas é preciso ter em mente a necessidade de salva-los ou guardar suas reminiscências, para

que assim, seja garantido as condições para que ele se promova no porvir.

Page 35: Memoricídio - UnB

35

5 MEMORICÍDIO

O livro é um símbolo extremamente significativo, e que por vezes se torna uma ameaça,

necessitando ser destruído por aqueles que não suportam a sua representatividade e força, e o

que ele pode oferecer aos que o leem. Esse vínculo entre o livro e a memória faz um texto ser

visto como patrimônio cultural de uma sociedade, devendo ser compartilhado com a

humanidade, pertencendo a todos. Como um patrimônio, ele reforça a identidade e promove

um sentimento de afirmação.

As bibliotecas são lugares de continuidade, mas também de ruptura da tradição. A ideia

de universalização das bibliotecas é indissociável da realidade das escolhas e dos processos de

recapitulação do conhecimento, a história que elas transmitem e possuem é pertencente à

sociedade, às instâncias de poder, um meio intelectual. É parte do que se constitui essencial à

cultura e ao patrimônio. Mas elas coexistem com biblioclastas4, censuras, ideais políticos ou

instabilidade religiosa. Porque também as bibliotecas são mutáveis e destrutíveis. Mas por que

é tão necessário destruí-las?5

Ao longo da história vemos inúmeras formas de modificações, manipulações e

destruições da memória coletivas e de seus símbolos portadores, tudo com o intuito de implantar

uma nova memória. Essa violência simbólica, onde há uma imposição de cultura do dominante

sobre o dominado, é tão secular que seria uma ironia não as recordar, elas também fazem parte

da história da sociedade.

Muitos acreditam que a modernidade não pode conviver com o antigo, que eles apenas

apresentam um retrocesso em sua nova ideia de sociedade. É esquecido que o antigo é portador

de toda a nossa história enquanto humanidade, e não apenas algo local. Ela é mais abrangente

em vários termos de identidade humana.

Existem várias mitologias sobre a destruição do mundo, de acordo com Báez (2006), essa

destruição é conhecida para alguns como apocalipse. Isso ocorreria para se alcançar o novo

mundo, uma nova vida. O fogo, água e alguns outros elementos eram tidos como purificadores

da maldade humana. Essa crença foi amplamente adotada por hebraicos, iranianos, greco-

latinas e vários outros. Essa apocatástase (restauração), tem a ideia de destruição do antigo para

trazer o novo. Esse pensamento se tornou intrínseco ao homem, e talvez seja aqui o começo da

idealização humana do destruir em prol do progresso.

4 Biblioclasta segundo o dicionário Aurélio (2001, p. 94): Adversário; Destruidor de livros. 5 Há 55 séculos ocorrem destruições de livros, e as razões de fato ainda são desconhecidas. (BÁEZ, 2006).

Page 36: Memoricídio - UnB

36

Para Báez (2006, p. 22) “Ao destruir, o homem reivindica o ritual de permanência,

purificação e consagração; ao destruir, atualiza uma conduta movida a partir do mais profundo

de sua personalidade, em busca de restituir um arquétipo de equilíbrio, poder ou

transcendência”. Esse ritual destrutivo é como o ritual construtivo aplicado à construção de

templos, casas ou de qualquer obra, tem como finalidade devolver o homem a comunidade, a

ideia de amparo ou de pureza.

Um livro é destruído com a intenção de aniquilar a memória, ou seja, é o patrimônio das

ideias de uma cultura inteira. Ocorre a destruição contra tudo o que se considera ameaça direta

ou indireta a um valor superior. O livro não é destruído por ser odiado como objeto, mas por

ser portador de ideias que podem ser ameaçadoras a governos, religiões, causas ou a qualquer

um contrário ao conteúdo nele presente.

O destruidor de livros é dogmático no sentido de possuir uma concepção de mundo

uniforme, de ideias irrefutáveis, autossuficiente e atemporal. Ele não suporta nada antagônico,

nada que o desafie e mostre contrariedades. É um erro acreditar que os biblioclastas são

ignorantes, inconscientes de sua intolerância aos livros. Como Báez afirma (2006, p. 27)

“Depois de 12 anos de estudo, conclui que quanto mais culto é um povo ou um homem, mais

disposto se mostra em eliminar livros, sobre pressão de mitos apocalípticos”. Há vários

exemplos de escritores e eruditos que fizeram atos repulsivos com livros, tais como: Renée

Descartes (1596 – 1650) pediu aos leitores que queimassem livros antigos, pois estava certo

que tinha alcançado todas as respostas com seu método. David Hume, que por ironia era

bibliotecário e filósofo, pediu a queima de todos os livros sobre a metafisica, pois discordava

das ideias. O imperador Shi-Huandi decretou a destruição de livros que falassem sobre qualquer

vestígio do passado. Platão não considerava os livros como bens maiores, e deixou claro em

Fedro, demonstrando como a escrita é irrelevante, ao falar sobre o mito egípcio que explicava

sobre como ela prejudicaria a memória.

George Orwell descreveu em 1984, um governo totalitário que controlava e manipulava

a memória, as notícias, qualquer livro era reescrito e apagado em um pequeno incinerador que

ficava a mesa do escritor.

O memoricídio é um ato manipulado e muito bem orquestrado por aqueles que procuram

destruir reminiscências do passado para controlar o futuro. Os interesses são diversos e escusos.

Para eles o queimar, o destruir, significa renovar o presente, controlá-lo.

Page 37: Memoricídio - UnB

37

5.1 CONCEITOS DO MEMORÍCIDIO

Memoricídio significa “destruição da memória”. No sentido mais literal da tradução da

palavra pode ser algo como “assassinato a memória”. O memoricídio, consiste na eliminação

de todo o patrimônio, seja ele tangível ou intangível, que simboliza resistência a partir do

passado. Báez, afirma “um povo sem memória, é como um homem amnésico: não sabe o que é

nem o que faz e é presa eventual de quem o rodeia. Pode ser manipulado” (BÁEZ, 2010, p.

288).

Controlar o passado é a melhor forma de planejar o futuro. Por isso, as elites culturais,

subordinadas a centros hegemônicos metropolitanos, aproveitam- se da amnésia para assim

deixar qualquer tipo de resistência quase inexistente.

A transculturação ou substituição da memória foi executada com perfídia em três

etapas: a) pelo estilhaçamento da memória subjugada, aparecendo nas perdas e

nostalgias; b) pela incorporação forçada da cultura dominante; c) e, pela elaboração,

por parte dos sobreviventes, de estratégias de resistência e integração assinaladas pelo

grau de contato. (BÁEZ, 2010, p. 37)

Se no passado as obras culturais foram derretidas e destruídas, mais tarde passaram a

fazer parte do tráfico de bens artísticos do continente, sendo superadas em valores apenas pela

venda de armamentos e pelo comércio de entorpecentes.

Segundo Báez (2006) antigos catálogos de livros gregos e romanos mostravam que na

Antiguidade, mesmo havendo interesse por bibliotecas, seleção dos livros e sua classificação,

houve poucas denúncias sobre a destruição de livros e bibliotecas. Sêneca, relata o dia em que

Júlio César, queima cerca de 40 mil livros, mas suavizou a tragédia, pois se irritava com o

excesso de livros que havia.

Enciclopedista, Isidoro de Sevilha (560-570) fala sobre as bibliotecas destruídas, em

“Etimologias”, livro escrito a pedido do bispo de Saragoça. Cita no capitulo III: “[...] Esdras,

movido pelo espirito de Deus, retornando aos judeus a Jerusalém, consertou a biblioteca do

antigo testamento, incendiada pelos caldeus consertou os estragos do fogo e corrigiu todos os

livros da lei dos profetas. ” (BÀEZ, 2006, p. 220).

Philobliblion, de Richard Bury (1281-1345), foi um dos primeiros livros a mencionar a

proteção aos livros contra a destruição. Ele possuía uma das maiores bibliotecas de seu tempo.

O livro consiste em uma série de normas padrões da biblioteca de Durham College de Oxford

Page 38: Memoricídio - UnB

38

(BÀEZ, 2006). De Bury, dizia que apenas pessoas possuidoras de ódio extremo à sabedoria,

destruiria os livros. Mencionou também as guerras como inimiga dos livros e bibliotecas, pois

nela se destruía sem piedade.

Báez (2006), afirma que apenas no século XIX que a bibliografia e preocupação com o

tema sobre destruição de livros e bibliotecas aumentou. William Blades, era um bibliófilo e sua

paixão por livros levou a estudar o comportamento e as causas da destruição dos livros.

Escreveu o livro “Inimigos dos livros” (1881), esse livro; contém o primeiro estudo sobre a

destruição de bibliotecas e livros. Dividiu as causas em tipos: Fogo, água, gás e calor, poeira,

negligência, ignorância, maldade, entre outros.

Cornelius Walford (1827- 1885) é citado por Báez (2006), como o pioneiro no campo

de preservação de bibliotecas; A pedido de seus clientes escreveu um pequeno ensaio chamado

de “A destruição das bibliotecas pelo fogo: Considerada como práticas históricas”, que foi

publicado em fascículos no ano de 1880, pelo London Chiswick press. Nele, Waldorf, elencou

as principais destruições por incêndio das bibliotecas, desde Alexandria até sua época.

Os livros são um símbolo, e como tal são passíveis de eliminação. A história das

bibliotecas é também a história de uma sociedade, instâncias de poder, um meio intelectual que

é decidido a transmitir a humanidade. O poder das bibliotecas reside na transmissão do saber e

cultura. É de conhecimento que os reis possuíam sua coroa e uma biblioteca, pois isso

demonstrava todo o seu poder. Quanto maior a biblioteca real, mais poderoso era o rei. A

identidade intelectual do rei se assegurava na biblioteca, no saber que ela transmitia. Informação

é poder, por isso era tão importante aos reis possuírem uma vasta biblioteca, edificada em um

lindo e grandioso monumento arquitetônico. Nesse sentido Ptolomeu I, aspirou uma biblioteca

universal que abarcaria todo o saber do mundo, seria o centro de cultura, saber e pesquisa.

Pessoas viriam de longe para apreciar seu acervo, e perceber a grandeza de seu império. A vinda

da biblioteca real de Portugal para o Brasil retrata bem a importância dada pelos monarcas.

Os Estados Unidos, se gabam por possuir a maior e mais completa biblioteca do mundo,

a Biblioteca do Congresso em Washington. Seu acervo conta com 162 milhões de itens,

materiais em 470 idiomas, mais de 70 milhões de manuscritos e uma das maiores coleções de

livros raros (LIBRARY OF CONGRESS, 2015). Isso tudo é um complemento para a nação que

se declara a mais poderosa do mundo. Mas nem mesmo a imponente biblioteca norte

americana, escapou de ataques e perdas. Em 24 de agosto de 1814, os Canadenses em revanche

ao ataque americano, contra-atacaram e incendiaram a biblioteca do Congresso, como relatado

por Báez (2006, p. 196), “O general Robert Ross, mandou queimar tudo o que fosse

representativo da cultura inimiga e recomendou fidelidade ao juramento da reciprocidade no

Page 39: Memoricídio - UnB

39

combate”. A Casa Branca, a Casa do Tesouro o Capitólio e a Biblioteca arderam nas chamas

sobrando apenas as ruínas.

A biblioteca é um símbolo muito poderoso, considerada um patrimônio e como todo

patrimônio forte e simbólico, se torna para alguns uma ameaça à paz, por fazer pensar e

questionar governantes. É um lugar de subversão da fé onde os livros desviam o indivíduo com

suas “heresias”. Como diria capitão Beatty, personagem fictício em Fahrenheit 451, o quão

perigoso é o livro:

Um livro é uma arma carregada na casa vizinha. Queime-o. Descarregue a arma. [...].

Você precisa entender que nossa civilização é tão vasta que não podemos permitir que

nossas minorias sejam transtornadas e agitadas. Pergunte- se a si mesmo: o que

queremos neste país acima de tudo? As pessoas querem ser felizes não é certo? [...].

Se os negros não gostam de Little Black sambo, queime-o. Os brancos se sentem mal

em relação a Cabana do pai Tomás, queime-o. Queimemos o livro. Serenidade,

Montag, paz Montag, leve sua briga lá pra fora, o melhor ainda: para o incinerador.

(BRADBURY, 2014, p. 77-78)

Por mais que esse diálogo seja fictício, é apresentado alguns dos sentidos que tornam o

livro um ameaça a sociedade. O fogo é apresentado mais uma vez como purificador, destruir

através do fogo, liberta, apraz a alma do biblioclasta. Destruir o que lhe é nefasto, destruir o

que é desnecessário, apagar a memória de resistências, aceitar imposições, nunca questionar

nenhuma autoridade santa instituída por Deus, nunca se rebelar a governos abusivos, deixar- se

controlar.

Quando destroem livros e bibliotecas, destroem a memória, retiram o poder de

refutações e sabedorias que os livros nos transmitem e, mais que isso destroem a afirmação

intelectual e cultural de uma nação.

5.2 RELIGIÃO: COM FOGO DEUS PURIFICA

A Igreja Católica Apostólica Romana surgiu com o fim da perseguição aos cristãos, em

313 d.C., quando o imperador Constantino colocou o cristianismo e o paganismo em igualdade

legal (AMARAL, 2009). A substituição do Império Romano pela Igreja católica ficou associada

à decadência do poder imperial, o que acabou resultando na desorganização administrativa; da

economia e em desgastes sociais decorrentes das invasões germânicas (LEITÃO, 2011). Com

esse cenário, apenas a igreja católica, com sua sede em Roma, se manteve, consolidando-se.

Page 40: Memoricídio - UnB

40

Sendo assim acabou por se consolidar como instituição em Roma e logo depois por toda a

Europa. Em razão de sua influência em diversos setores na Idade Média, a Igreja católica

exercia um papel político muito importante na unificação da sociedade feudal.

Segundo Báez (2006), o termo católico tem origem grega e significa universal. Foi

adotada no concilio de Trento em (1545- 1563), com o intuito de diferenciar a Igreja romana,

das igrejas de reformas.

O imperador Constantino deu início à censura, mandando queimar livros considerados

contrários à doutrina católica. A censura da igreja católica se destacou por imposição de normas

e regras sobre a escrita. No século XV houve a criação, e logo expansão, da prensa, ampliando

a censura por todos os países seguidores da religião. Para eles, apenas na palavra de Deus, ou

de cunho religioso, que poderiam se fortalecer e ser inspiradores aos seus fiéis, demais falas

eram apenas heresias que desvirtuavam seus seguidores, logo, precisavam ser proibidos ou

queimados.

Isso acabou por consolidar a censura católica como um instrumento institucional,

autorizado por Deus e seus Reis. Seus mecanismos de controles e administração eram muito

rígidos e também injustos.

Martinho Lutero (1483-1546), depois de ordenado padre, fixa na porta de Wittenberg as

95 teses, denunciando os abusos e indulgências que a igreja católica praticava. Assim teve início

a reforma protestante na Alemanha. “Esse foi o marco de uma revolução da imprensa,

responsável pela rápida disseminação e propagação dos livros que continham as ideias do

protestantismo” (LEITÃO, 2011, p. 61).

O edito de Nantes, de 1598, foi promulgado com a intenção de controlar os livros

escritos por teólogos, proibindo a difusão de escritos considerados infames pela igreja.

Em 1559, de acordo com Manguel (1997), a Sagrada Congregação da Inquisição

Romana publica o primeiro Índex de livros proibidos pela Igreja, que considerava perigosos

para a fé e moral dos fiéis (Figura 1). Os livros que constavam no Índex além de proibidos de

leitura, e banidos da melhor forma possível, ou seja, queimados, destruídos, para que assim não

houvesse tentação de leituras aos seus fiéis.

Ao longo dos anos a lista do Índex contou com vários autores, tais como: Maquiavel,

Rebelais, Erasmo, Bocaccio, entre outros mais. O Índex tinha como finalidade erradicar da

memória os nomes desses hereges. A Igreja não queimou apenas livros em suas fogueiras

santas, mas também pessoas que se recusavam a aceitar o que a Igreja impunha ou que se

recusava a se retratar perante a sociedade por suas ideologias, como Giordano Bruno.

Page 41: Memoricídio - UnB

41

Em 1948, o Índex foi reeditado e atualizado, mas em 1966, depois de 4 séculos

resistindo, foi abandonado. É importante lembrar que a igreja católica não foi a única a realizar

atos de censura e destruição dos livros, várias outras religiões, como o protestantismo, também

praticaram atos similares. Atualmente outras religiões e seitas continuam praticando esses atos.

Figura 1 – Capa do Index Librorium Prohibitorium, de 1595.

Fonte: Página Catholic gene6, 2011.

As destruições que a igreja e seus religiosos causaram estão exemplificadas a seguir,

ilustrando que não houveram apenas perdas locais, mas sim uma devastação da memória e

história da humanidade.

6 Disponível em <https://catholicgene.wordpress.com/2011/09/24/index-librorum-prohibitorum/>. Acesso em 18

de junho, 2016.

Page 42: Memoricídio - UnB

42

5.2.1 A Biblioteca de Alexandria

De acordo com Báez (2006), Demétrio de Falero, é o homem que está por detrás de toda

a construção e planejamento da Biblioteca de Alexandria. No ano de 306 a.C., e Ptolomeu I de

Sóter, assumira o reinado no território egípcio. Demétrio logo se torna o conselheiro do Rei,

devido sua grande inteligência e habilidade com a escrita. Ele aconselha o rei a adquirir e ler

livros sobre a monarquia, “pois o que os amigos não se atrevem a dizer ao rei, os livros dirão”

(BÁEZ, 2006, p. 62). E logo o seu papel na corte se define para o lado mais intelectual.

Logo viria a convencer o rei a construir um prédio dedicado as musas, por isso foi

nomeado de museu. A obra foi concluída e se tornou anexa ao palácio real. “A ideia do museu

era extraordinária. De um lado contribuía para substituir na região a cultura grega, e de outro

serviu ao rei em seu objetivo de aumentar o prestígio de suas ações. Logo o museu contou como

uma incrível biblioteca” (BÁEZ, 2006, p. 63).

Demétrio quis aumentar o acervo da biblioteca. Ele recebeu para isso uma grande

quantia de dinheiro para comprar todos os livros que precisasse. A ideia era alcançar 500 mil

livros. Isso elevou a produção de cópias dos papiros.

O crescimento do acervo motivou a ampliação do espaço da biblioteca, sendo construída

a biblioteca do Serapeum. A biblioteca ficou dividida em duas partes: a primeira permanecia

no museu, e a segunda no templo de Serapis (ou Serapeum).

Os Ptolomeus não mediram esforços para consagrar a biblioteca de Alexandria. Para

isso, pagavam pelo direito de obter os originais e poder copiá–los. Nem sempre devolviam o

original, mandando de volta as cópias oficiais de Ésquilo, Sóflocles, Eurípedes, etc. para

Atenas. Por lei, quem visitava Alexandria devia doar uma obra.

Porém não foi Demétrio que se tornou diretor da biblioteca. O primeiro foi Zenódoto de

Éfeso (325 a.C – 260 a.C). O mais conhecido bibliotecário de Alexandria foi Calímaco, que

contribuiu com a bibliografia da biblioteca.

O brilhante trabalho da biblioteca foi ofuscado por Júlio César, na guerra pelo trono do

Egito, acabou gerando uma guerra civil em várias regiões do Egito, em especial em Alexandria.

Em uma dessas ofensivas foram queimados cerca de 40 mil rolos de papiros.

Mais tarde Marco Antônio deu como prova de amor para Cleópatra cerca de 20 mil

pergaminhos da biblioteca de Pérgamo.

Metade da biblioteca fora destruída por guerras, e a outra metade ficou a cargo dos

cristãos da cidade, liderados por Teófilo. A multidão de devotos enfurecida destruiu vários

pergaminhos e papiros do museu (389) e do Serapeum (391). Teófilo, ao concluir a conquista

Page 43: Memoricídio - UnB

43

do templo de Serapis, juntamente com seus cristões, encheu-a de cruzes e demoliram as paredes

da biblioteca e do templo, culminando no fim da biblioteca de Alexandria.

5.2.2 Quem é contra Cristo, não pode falar de seus seguidores

Segundo Báez (2006), Porfirio de Tiro (232- 305) era editor de livros de nomes

consagrados como Plotino, filósofo neoplatônico, ele escreveu o livro Contra os cristãos

(BÁEZ, 2006). Era um tratado de 15 livros contendo análises contra a ideologia cristã da época

e apresentando aspectos que eram contrários ao cristianismo. Porfírio desmentiu datas, se opôs

ao culto de Cristo. Para ele era uma hipocrisia o culto de imagens

Obviamente muitos se manifestaram contra a obra. Em 448 d.C. alguns teólogos

queimaram todos os exemplares que puderam encontrar. Atualmente não há nenhum texto

completo, apenas alguns fragmentos iluminados do livro.

5.2.2.1 Constantinopla e seus livros entre as cruzadas

De acordo com Báez (2006), O Império Bizantino teve uma influência marcante da

cultura grega clássica. Graças a sua contribuição nos textos antigos, o mundo lhe deve a chance

de ler um livro de Platão, Aristóteles, Heródoto, Tucídides, Arquimedes e etc.

A bibliofilia dos bizantinos era notável, e abrangeu vários campos. Os bizantinos tinham

muito orgulho de sua espiritualidade. Em 357 d.C., Temístio quis uma biblioteca imperial para

impedir o desaparecimento dos clássicos. Ele e os eruditos de seu tempo acreditavam ser o

último refúgio intelectual do ocidente.

Entre bibliotecas particulares e de mosteiros eles possuíam ótimas bibliotecas e rico

acervo. Mas os esforços para serem de fato o refúgio intelectual do ocidente veio por terra. Em

730 d.C., um incêndio no palácio, e em metade da cidade, reduziu a cinzas centenas de textos.

Na tomada das basílicas (802-807) foram destruídos cerca de 120 mil livros.

A Igreja de bizâncio censurava obras, mas nunca a de escritores clássicos. Porém, em

1117, Eustácio de Nicéia analisou dezenas de livros para atacar a igreja da Armênia e descobriu

algumas heresias ocultas nas obras do ortodoxo São Cirilo. Logo, ele escreveu um informe que

trouxe a destruição de centenas de cópias de livros analisados por Eustácio.

Em 1204, A quarta cruzada chegou a Constantinopla e milhares de manuscritos foram

destroçados. Durante três dias os cruzados assassinaram, saquearam e destruíram com

Page 44: Memoricídio - UnB

44

inabalável fé. Inúmeros clássicos desapareceram para sempre na mais cruel cruzada de fé

(Figura 2).

Figura 2 – São Domingos queimando livros heréticos dos albigenses. De Pedro Berruguete

Fonte: Coetus international is fidelium7

Constantinopla não desistiu e continuou com seu trabalho na área de filologia. De 1261

até meados do século XVI os manuscritos começaram a povoar as bibliotecas. Porém,

Constantinopla sofreu o golpe final em 1453. Os turcos liderados pelo sultão Maomé saquearam

a cidade, destruíram ícones, igrejas e manuscritos e eliminaram todos os livros que encontraram.

7 Disponível em: <http://coetusinternationalisfidelium.blogspot.com.br/2010/07/deslealdade-suprema-para-com-

deus-e.html>

Page 45: Memoricídio - UnB

45

Cerca de 120 mil manuscritos impróprios para a fé mulçumana foram lançados ao mar.

A queda de Constantinopla ecoou por toda a Europa, e o império ruiu.

5.2.2.2 Quando o extremismo religioso destrói

Segundo Báez (2006), em 1921, no mesmo ano em que foi declarado o “Iraque

moderno”, era inaugurada a biblioteca pública de Mosul, seu acervo histórico possuía vários

manuscritos e livros raros.

A primeira destruição ocorreria em 2003, com a invasão norte americana ao Iraque, a

biblioteca foi destruída em parte e saqueada. Os moradores e bibliotecários conseguiram salvar

alguns livros, e logo depois alguns dos ricos moradores conseguiram comprar no mercado e

devolve-los, enriquecendo novamente a biblioteca.

Porém no dia 22 de fevereiro de 2015, o grupo extremista, o Estado Islâmico, invadiu a

mesma biblioteca, e incendiou cerca de 8 mil livros (Figura 3), dentre eles manuscritos raros

datados de 5.000 a.C., livros impressos na primeira gráfica do país, títulos que datam do Império

Otomano, jornais locais e antigos astrolábios, o acervo da alta sociedade local também era

abrigado na biblioteca (O GLOBO, 2016).

O Iraque é o berço da civilização, o local de nascimento da agricultura e da escrita, a

casa dos sumérios, arcádios, assírios, babilônios e árabes, desde a Era Mongol, nunca na sua

história se testemunhou tamanha destruição e saque aos seus pertences culturais.

Essa é mais uma das várias destruições que o Estado Islâmico tem feito. Na cidade de

“al-Anbar”, no ocidente do Iraque, o grupo extremista a continuou a saga de queima aos livros.

O grupo conseguiu destruir mais de 100 mil títulos. Em dezembro de 2014, a biblioteca da

Universidade de Mosul, foi queimada (FOLHA DE SÃO PAULO, 2014).

De acordo com a Folha de São Paulo (2014), o Estado Islâmico8, foi criado em 2013, e

cresceu como braço direito da organização terrorista al-Qaeda no Iraque, mas em 2014

romperam a aliança com o grupo. Os extremistas declararam um califado, uma forma de

governo monárquico e totalitário comandado pela sharia, conjunto de antigas leis islâmicas e

da fé do Alcorão (o livro sagrado do Islamismo), e da Suna (os escritos sagrados sobre a vida

8 O Estado Islâmico foi citado dentro do quesito religioso. Mas é preciso entender que as questões islâmicas são

muito difíceis de discernir entre político e religião, afinal não existe estado laico para os mulçumanos. Religião e

política são unilaterais. As leis deles são ditadas pelos livros: Alcorão (livro sagrado), Suna e Sharia. Fonte: O

Globo, 2016.

Page 46: Memoricídio - UnB

46

do profeta Maomé) além de trazer de volta tradições e costumes dos primeiros séculos do Islã,

(FOLHA DE SÃO PAULO, 2014). Em junho de 2014, anunciaram ao mundo que iriam impor

o monopólio de seu domínio pela força. Assim como a Al-Qaeda, o Estado Islâmico também

se guia por uma interpretação extremista da Jihad (guerra santa islâmica) e alimenta a

possibilidade de ataques terroristas a países ocidentais, já que encara o Ocidente como um

reduto de degenerescência moral e decadência religiosa.

Figura 3 – Queima de livros na biblioteca de Mosul, 2015.

Fonte: Adventismo em foco9

Dentre as vastas destruições dos patrimônios culturais que o grupo tem causado no

Iraque e Síria, estão o museu e a biblioteca de Mosul, o Mosteiro do Mártir Elian, Hatra e

Palmira. Segundo o Jornal RTP (2015), a cidade de Palmira, foi tomada e destruída (Figura 4),

o arqueólogo responsável por Palmira Khaled Al-Asaad, de 82 anos, diretor do museu e dos

diretórios de antiguidade, foi capturado torturado por cerca de um mês para revelar aonde

estavam os tesouros da cidade, como obras de alto valor e etc. Al- Asaad resistiu e não declarou

nada, por isso foi decapitado e seu corpo exposto nas colunas da cidade.

A limpeza cultural, na minha perspectiva, é exatamente o que se está a passar”,

afirmou a diretora da UNESCO Irina Bokova, (referindo-se ao Iraque) mas numa

análise extensível a outros locais. Estes extremistas querem impor uma visão diferente

do mundo. Querem dizer-nos que não há memória [destes locais], que não há cultura,

que não há herança. (JORNAL RTP, 2015)

9 Disponível em: <https://adventismoemfoco.wordpress.com/2015/02/27/estado-islamico-destroi-biblioteca-e-

preciosos-livros-antigos-se-perdem/ >

Page 47: Memoricídio - UnB

47

Figura 4 – Cidade de Palmira antes e depois da destruição, 2016.

Fonte:Aurelia Bailly10

Nas práticas para controle e submissão do povo são sempre utilizadas as mesmas

ferramentas, e isso independentemente de qualquer religião, sejam católicas, protestantes,

islâmicas, hebraicas, etc. Isso foi muito bem traduzido por Leitão (2011, p.64):

Com maior ou menor organização, o que podemos observar é que as igrejas, sejam

elas católicas, protestantes, se encontram e se unificam na prática da censura, do

controle, da regulação, da proibição, utilizando para isso, métodos de castigo, de

tortura, de estimulo à declaração, de promoção do medo aqueles que ousassem

conceber ideias e conhecimento que deixasse de afirmar e consolidar o poder sagrado

sobre a razão.

A religião é só mais um meio irracional para a destruição de livros e bibliotecas,

fanáticos religiosos enxergam nos livros o demônio ditando suas regras, iludindo as pessoas e

desviando seus pensamentos mais “puros” para outras vontades que não a de Deus. Para eles

10 Disponível em: < https://twitter.com/aureliabailly/status/715824005295554560 >

Page 48: Memoricídio - UnB

48

não há a ideia de que são os homens em sua natureza que são subversivos, que eles possuem

uma natureza corruptível. Os livros apenas traduzem esses pensamentos, mas não são eles que

fazem atrocidades na humanidade, eles não invadem cidades e julgam homens como hereges e

que por isso devem morrer, não são eles que queimam cidades e matam em nome de Deus.

São esses homens divinos que inspirados por loucuras cometem atos atrozes, e depois

procuram culpados para isso. O vilão está na biblioteca à espreita de vítimas, nas suas

entrelinhas que escondem mensagens obscuras.

Mas o verdadeiro motivo está nos homens que, com sede de poder, desejam apagar a

memória de tudo o que lhe contradiz, tudo o que dá margem a pensamentos contraditórios e

rebeldes.

A religião é só mais um meio para o memoricídio, logo vêm mais um inimigo das

bibliotecas tão poderoso quanto: os Políticos, opressores do pensamento livre.

5.3 POLITÍCA: EM TEMPOS DE CENSURA, LIVROS SE ESQUECEM E AQUECEM

Segundo Leitão (2011), a transição do poder da Igreja para o Estado foi ocasionada por

mudanças nas organizações socioeconômicas da Europa. O sistema de produção feudal entrou

em colapso, e logo veio a falência, deixando seus servos sem um meio de sobrevivência. Logo

eles migrariam para as cidades em busca de melhores condições e trabalho.

No século XV o Estado Nação, passa a assumir o lugar da Igreja. A descentralização do

Feudalismo é substituída pela Monarquia estruturando a unificação do povo, há uma

intensificação das atividades urbanas. A Nobreza e a Igreja entram em conflito e a consolidação

da burguesia se torna mais evidente. O crescimento e fortalecimento econômico evidenciam

ainda mais o poder Real centralizador, o poder local torna- se o poder nacional. (LEITÃO,

2011).

Essa nova estrutura socioeconômica e sociopolítica foi a razão para a ruptura na visão

teocêntrica imposta pela Igreja. O fim das explicações baseadas em fé, que passam a ser

explicadas cientificamente, o pensamento cientifico ganha mais força e liberdade sem a

coibição da igreja.

Com a contribuição de burgueses, o pensamento filosófico se torna mais forte. Suas

características são mais empíricas, criticando a intolerância religiosa e a democracia. Não

tardaria que a consolidação dessa estrutura fizesse surgir oposições ao absolutismo, clero e

Page 49: Memoricídio - UnB

49

nobreza, principalmente por injustiças administrativas como gastos abusivos, excessos de

ostentação, condições tributárias extorsivas, controle nos tribunais, pena de morte sem

julgamento adequado. “A história mostra ainda que a luta entre o poder em suas diferentes

formas de repressão, é contínua e muitas vezes surpreendente” (LEITÃO, 2011 p. 65).

O desenvolvimento da indústria editorial na metade do século XVIII, promoveu o

aumento da multiplicação de livros e a criação de jornais diários. Tudo isso trouxe maior

informação, mas ainda demorou algum tempo para que as informações fossem acessíveis ao

povo.

A leitura é um aprendizado único, durante muitos séculos governos suprimiram o direito

popular ao aprendizado da leitura e escrituras, durante muito tempo as escrituras e leituras eram

feitas apenas por nobres, reis e rainhas. Aos que não tinham nenhuma, esses ficavam sujeitos a

ignorância. Manguel (1997) afirmou que durante séculos os ditadores tinham conhecimento que

uma multidão analfabeta era mais fácil de dominar, pois o aprendizado a leitura era único, uma

vez aprendido, não se desaprenderia. Por isso foi limitado o alcance a leitura.

Leitão (2011) explica como os ventos mudaram quando a Revolução Francesa em 1789,

contribuiu com a disseminação de ideais liberais e democráticos. Nos movimentos

revolucionários a liberdade de expressão, seja individual ou da mídia, se tornou um dos pilares

da democracia e do pensamento livre. Porém, tamanha liberdade de expressão começou a trazer

problemas para os governantes, iniciando-se a busca por censura.

Segundo o dicionário Houaiss (2003, p. 244) Censura pode ser definida como: “análise,

feito por censor, de trabalhos artísticos, informativos, etc.” Geralmente é feito com base em

critérios morais e políticos, para julgar a conveniência de suas liberações para publicação,

exibição e divulgação.

Essa atitude tem por fim interferir na divulgação das ideias do autor, ás vezes impedindo

a publicação, outras vezes a circulação e venda dos livros. As bibliotecas também sofrem

censuras, através da proibição de acesso dos leitores às obras. Desta maneira, a censura resulta

em um jogo de forças entre o poder político e o poder abstrato das palavras, ideias e as

escrituras.

A caça aos livros não é privilégio de um determinado regime político. No entanto a

censura é promovida pelo Estado, como aquela descrita [...] é a que mais resistência

desperta, pois intimida, emudece e é exercida em nome da defesa dos cidadãos.

(LEITÃO, 2011, p. 47).

Page 50: Memoricídio - UnB

50

A censura não atua sozinha. Para toda censura haverá um movimento de diálogo e

oposição, com seus mecanismos necessariamente libertários e transgressores que demonstram

o embate de diálogos, duas forças poderosas e distintas, entre o poder de dominar e o poder de

libertar ideias e o povo. Tal embate, milenar, é desencadeado ao longo do tempo.

Os livros tem sido uma maldição para as ditaduras. Para eles apenas a palavra do

governante deve bastar. Esses governos permitem apenas as leituras oficiais definidas pelo seu

ditador e seus censores. Em vez de bibliotecas inteiras recheadas das mais diversas opiniões

somente as palavras do governante.

Voltaire escreveu em seu panfleto satírico sobre “o terrível perigo da leitura, dissipam

a ignorância, a custódia e a salvaguarda dos estados bem policiados” (VOLTAIRE apud

MANGUEL, 1997, p. 315). A censura é a consequência de todo poder autoritário. “A história

da leitura está iluminada por uma fileira interminável de fogueiras de censores dos primeiros

rolos de papiros aos livros de nossa época” (MANGUEL, 1997, p. 315).

Algumas das censuras e totalitarismos destruíram parte da história e das bibliotecas,

conforme abaixo guardado pela memória coletiva.

5.3.1 Shi Huandi, é proibido ler

Segundo Báez (2006), Zhao Zheng tinha apenas treze anos quando se tornou líder de

Qin, um dos vários feudos antigos não unificados da antiga China. Em 238 a.C. subiu ao trono

de fato e logo começou sua campanha contra outros feudos, subjugando-os um a um. Ele achava

que as constantes guerras que haviam eram por causa dos feudos, e por isso decidiu eliminar

todos (BÁEZ, 2006). Várias vezes tentaram assassina-lo, mais isso sempre fortalecia a sua

coragem em continuar com seu domínio e autoridade. Em 215 a.C. tinha dominado todos os

feudos, para isso não hesitara em matar, subornar e aniquilar todos os seus opositores. Logo

possuía um Império, ele proclamava que tinha juntado todo o mundo pela primeira vez.

Proclamou-se Huandi (Augusto soberano) e, acreditava ser imortal e se deu o título de

Shi (Primeiro), assim se tornou Shi Huandi. Assessorado por seu leal ministro Li Si, que era

um dos discípulos mais inteligentes de Xunzi, começaram a espalhar leis de uniformidade por

todo Império. As escolas, roupas, ruas, opiniões, lutas, idioma, enfim, tudo deveria ser

uniforme, nada poderia ser diferente e se estivesse fora dos conformes ditados, o povo era

punido severamente. Em seus 36 distritos, todos os seus respectivos administradores eram

vigiados minunciosamente.

Page 51: Memoricídio - UnB

51

Mandou construir monumentos grandiosos, como a Grande muralha com finalidade

militar para conter os xiongnus. Também mandou construir uma tumba monumental em

Xyanyang, na qual foram esculpidos milhares de soldados de terracota com a missão de guardar

o túmulo.

Em 213 a.C, enquanto Alexandria almejava possuir todos os livros possíveis, Shi

Huandi mandou queimar todos os livros, salvo os de agricultura, medicina ou profecias. Criou

uma biblioteca imperial dedicada a defender os escritos dos legalistas e dos defensores do seu

regime. Ordenou que fossem confiscados todos os textos chineses, indo de casa em casa e se

apoderando dos livros, para depois os queimarem numa pira.

Um dos piores delitos era esconder um livro. Como punição, o infrator era enviado para

trabalhar na grande muralha. Aqueles que continuavam a desobedecer eram mortos e sua

família sofria várias retaliações.

Shi Huandi odiava os escritos de Confúcio e os mandou queimar. Depois de vários anos

numa das limpezas da biblioteca central foi descoberto um único exemplar de Confúcio

escondido.

Em 206 a.C. houve uma guerra civil e a biblioteca do Imperador foi arrasada. Em 191

a.C., na Dinastia Han, foi que puderam reconstituir a memória da China, pois alguns de seus

eruditos conservavam na memória livros inteiros.

5.3.2 Revolução francesa: “Se não tem livros, que queimem livros! ”

De acordo com Báez (2006), a Revolução começou em 1789 na França, o regime

Monarquista chegara ao fim. Mas todo o movimento era cheio de desordem, saques,

assassinatos e ataques diretos aqueles que se opunham a liberdade. A guilhotina colocou fim a

vida de milhares de franceses, mais isso não saciava a vontade dos revolucionários, eles tinham

por desejo a morte dos representantes do centro do poder francês, ou seja, o Rei e a Rainha. Em

21 de janeiro de 1793, Luís XVI foi executado, logo depois em 16 de outubro do mesmo ano a

Rainha Maria Antonieta também fora executada (BÁEZ, 2006).

Em 10 de outubro, houve uma Convenção que anunciava que a França só seria

revolucionária se houvesse paz, mas a paz demorou 10 anos para chegar. Uma tentativa de

matar Robespierre trouxe a criação da Lei do Terror, que condenou milhares de suspeitos do

atentado.

Page 52: Memoricídio - UnB

52

Enquanto isso, as bibliotecas foram severamente atacadas, em Paris destruíram mais de

oito mil livros; no resto do país mais de quatro milhões de livros desapareceram, entre eles vinte

e seis mil manuscritos antigos (BÁEZ, 2006).

Os escritos de Simon Nicolas Henry Linguet, sofreram com censuras e confisco. O

Parlamento de Paris, em um contra-ataque a difusão das ideias revolucionárias, ordenou que

116 Anais, onde continham textos reformistas de sua autoria, fossem destruídos publicamente,

o local escolhido foi a escadaria do Palácio da Justiça.

Inúmeros incêndios provocados aniquilaram milhares de obras. Os arquivos também

sofreram perdas de valiosos arquivos. Em 1794 foi incendiada a abadia de Saint-Germain de

Prés, e toda a biblioteca foi queimada. Não apenas bibliotecas e arquivos sofreram danos e

perdas, monumentos de toda a cidade também foram depredados por revolucionários

ensandecidos. Foi um momento muito crítico para a cultura e memória na França.

Irônico mesmo é pensar, que os revolucionários que tinham por lema a Liberdade,

Igualdade e Fraternidade, não respeitaram a liberdade de expressão e ideologias, queimando

milhares de livros, nem trataram com igualdade e fraternidade aqueles que se opunham as suas

práticas (Figura 5).

Figura 5 – Liberdade guiando o povo. De Eugene Delacroix

Fonte: Literatura é show11

11 Disponível em: <http://www.literaturaeshow.com.br/2016/02/analise-da-obra-liberdade-guiando-o.html >

Page 53: Memoricídio - UnB

53

5.3.3 Revolução na Espanha

Segundo Báez (2006), a guerra da independência da Espanha se prolongou de 1808 até

1814, quando o rei Fernando VII retomou o controle do poder da monarquia. Foi um tempo

sangrento, de muita crueldade.

A Abadia de Montserrat contava com uma das bibliotecas mais extraordinárias da

Espanha. Possuíam um arquivo completo e organizado, que foi arrasado por tropas francesas,

para evitar que fosse um local de fortificação. É conhecido que as tropas invasoras usaram

centenas de livros para causar incêndios.

A biblioteca e o arquivo foram alimento para as chamas. Poucos foram os livros que se

salvaram, boa parte da produção impressa de Montserrat (eles possuíam sua própria gráfica

desde 1499), desapareceram (Baéz, 2006).

Durante a guerra, o despojo francês a bibliotecas, palácios e mosteiros espanhóis foram

tão graves, que Bonaparte proibiu que seus generais levassem a França os bens espanhóis.

Parte dos tesouros foram devolvidos a Espanha, em 1815, com o tratado de Paz em

Viena. Mas o que foi deixado pelos franceses foi levado pelos ingleses que ajudaram na luta

contra a França.

Em 1868, a decomposição política da Espanha produziu a fragmentação da sociedade e

trouxe uma verdadeira crise que trouxe a Revolução de Setembro e a instalação de um governo

provisório. Manuel Ruiz Zorrilla, então ministro do desenvolvimento, este publicou um decreto

em 26 de janeiro de 1869, no qual evidenciava a deterioração que os livros haviam sofrido.

5.3.4 Hitler aquece a Alemanha com sua fogueira de livros

Segundo Báez (2006), em 30 de janeiro de 1933, Hitler foi designado por Paul Von

Hinderburg, para ser o novo Chanceler alemão. Logo após a sua posse, começam as suas

intimidações a outros partidos políticos, sindicatos e contra os judeus.

No dia 4 de fevereiro de 1933, a Lei de proteção do povo alemão restringiu a liberdade

de imprensa e definiu o esquema de confisco de qualquer material que fosse considerado

perigoso. As sedes do Partido comunista foram atacadas na manhã do dia seguinte com

violência e sua biblioteca foi destruída. Em 27 de fevereiro, o Parlamento Alemão foi

incendiado junto com o seu arquivo.

Page 54: Memoricídio - UnB

54

A liberdade de reunião e de imprensa foram restringidas. Em uma eleição manipulada o

Partido Nazista venceu, nascia o terceiro Reich. Joseph Goebbels convenceu Hitler a fazer

mudanças drásticas. Hitler assim o designou para um novo órgão do Estado, o Ministério do

Reich para a Educação do Povo e para a Propaganda. Goebbels tinha carta branca para fazer o

que quisesse.

Goebbels, tinha doutorado em filologia pela universidade de Heidelberg, em 1922.

Universidade em que Heigel dava aula. Era apaixonado por clássicos da literatura grega,

admirava Nietzsche, recitava poemas de memória e escrevia textos dramáticos (BÁEZ, 2006).

Sendo o Ministro da educação logo colocou em prática as mudanças nas escolas e

universidades. Em 8 de abril enviou um memorando às organizações estudantis nazistas

propondo a destruição dos livros que considerava perigosos.

No dia 26 de março, livros foram queimados na Schillerplatz (Figura 6). A fogueira já

estava acesa e Goebbles fez ainda um discurso que explicava os motivos para a queima de livros

alegando que o intelectualismo judeu chegara ao fim e a revolução da Alemanha estava para

confirmar a verdadeira essência alemã. Hitler se orgulhava dos feitos de Goebbles, afirmava

que ele sempre sabia o que fazer (BÁEZ, 2006).

Uma espécie de febre apoderou- se dos estudantes e intelectuais, e em 11 de abril em

Dusserdolf, destruíram vários outros livros. Em 5 de maio, os estudantes da Universidade de

Colônia foram à biblioteca e recolheram todos os livros de autores judeus e os queimaram

(Figura 7). No dia 8 de maio, houve desordem em Friburgo e destruição de livros, o filósofo

alemão Heidegger participou deste ato.

Em 10 de maio, membros da Associação de estudantes alemães se acotovelavam na

biblioteca da Universidade Whilhelm von Humboldt e começaram a recolher os livros

proibidos, das bibliotecas de judeus, levando aproximadamente 25 mil livros.

Em 10 de maio de 1933, ocorreram em várias cidades alemãs fogueiras literárias,

apagando o que não era conveniente ao ideal ariano. Báez (2006) afirmou que, durante todo o

mês de maio ocorreram várias queimas de livros por toda a Alemanha, destruindo em média

5.500 autores. Em 1933, a Comissão para Reconstrução Cultural Judaico – Europeia

estabeleceu que haviam 469 coleções de livros judaicos com mais de 3.307.000 volumes

distribuídos de forma irregular pela Europa. Ao fim da segunda guerra mundial, não havia

sobrado um quarto dessas coleções.

Page 55: Memoricídio - UnB

55

Figura 6 – Queima de livros em Schillerplatz, Alemanha, 1933.

Fonte: Made for Minds12

Figura 7 - Estudantes alemães reúnem livros que eles consideram "não-alemães”, 1933.

Fonte: Enciclopédia do Holocausto13

12 Disponível em <http://www.dw.com/pt/1933-grande-queima-de-livros-pelos-nazistas/a-834005 > 13 Disponível em: <https://www.ushmm.org/wlc/ptbr/media_ph.php?ModuleId=10005852&MediaId=681 >

Page 56: Memoricídio - UnB

56

Os impactos das queimas foram tão grandes que Freud comentou com um jornalista:

“Na idade média eles teriam me queimado. Agora contentam em queimar meus livros [...]”

(FREUD apud BÁEZ, 2006, p. 246).

Na Polônia, os Brenn-Kommandos acabaram com as sinagogas judaicas e botaram fogo

na grande biblioteca talmúdica com o seguinte informe: “[...] tiramos a notável biblioteca

talmúdica para fora do prédio e colocamos os livros no mercado, onde botamos fogo neles. O

fogo se estendeu por vinte horas. ” (BÁEZ, 2006, p. 248).

Figura 8 – Leitores na biblioteca de Holland House em Londres, bombardeada na segunda guerra

mundial

Fonte: Pinterest14

A Biblioteca Nacional de Varsóvia foi destruída em outubro de 1944, com a queima de

setecentos mil livros. Logo depois a biblioteca militar perdeu 350 mil livros. Quando os alemães

abandonaram o país, queimaram os arquivos da biblioteca pública de Varsóvia.

14 Disponível em: <https://br.pinterest.com/pin/472244710906573273/ >

Page 57: Memoricídio - UnB

57

Inúmeras foram as bibliotecas que sofreram com ataques nazistas e foram destruídas.

Apenas na Polônia é estimado que houve uma perda de aproximadamente de 15 milhões de

livros (BÁEZ, 2006). As perdas irreparáveis evidenciaram que Hitler queria mesmo aniquilar

outras culturas para demostrar todo o seu poderio alemão e superioridade ariana, com um

império como o seu que seria fonte inspiradora e incomparável a nenhum outro na história.

Como afirmado por Báez (2006), o fato curioso é que Hitler adorava as artes, livros,

música, etc. Pouco depois de sua morte os livros de sua biblioteca pessoal foram encontrados

em uma mina de sal perto de Berchtegaden, por um grupo de soldados da 101ª divisão

americana 1.200 livros foram enviados para Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, a

outra parte foi perdida ou destruída.

Quando a guerra acabou, em 7 de maio de 1945, trouxe à tona a imensa destruição ao

patrimônio cultural e também o genocídio causado pelos nazistas. Essa guerra é lembrada com

muito terror e pesar. As perdas e os horrores praticados são incalculáveis e irreparáveis perante

a memória coletiva.

5.3.5 No Brasil, vermelhos não são amados

Segundo Báez (2010), no ano de 1930 começa a Era Vargas (1930 - 1945), um governo

que duraria 15 anos. Até o ano de 1930 vigorava no Brasil a República Velha, conhecida hoje

como Primeira República. A característica política brasileira principal, centralizava o poder

entre partidos políticos, a conhecida aliança política "café-com-leite" entre São Paulo e Minas

Gerais. A República Velha tinha como base a economia cafeeira e, portanto, mantinha fortes

vínculos com grandes proprietários de terras.

Em março de 1930, foram realizadas as eleições para presidente da República. O

Presidente eleito foi o candidato Júlio Prestes. Entretanto, Prestes não tomou posse, sob a

acusação de que sua eleição era uma fraude. Em 3 de novembro de 1930, Getúlio sobe ao poder

(BÁEZ, 2010).

Logo reprimiu os setores adversos, no caso a imprensa e os grupos culturais. Editoras

de revistas foram fechadas, escritores foram perseguidos e censurados. O Departamento de

Imprensa e Propaganda (DIP) iniciou processos para cassar os intelectuais e silencia-los. Não

se salvaram autores, nem editores.

Em novembro de 1937, militares baianos queimaram publicamente cerca de 1.640 livros

de Jorge Amado, a mando de Getúlio Vargas.

Page 58: Memoricídio - UnB

58

Ocorreu a queima de 1.827 livros considerados “propagandistas do credo vermelho”,

como eram chamados pelos militares. Nos dias anteriores, os militares haviam percorrido as

livrarias da cidade e apreendido todos os exemplares que encontraram (BÁEZ, 2010). A maioria

dos livros que viraram cinzas, eram do escritor baiano Jorge Amado (Figura 9).

Figura 9 – Jornal Estado da Bahia, de 1937

Fonte: Correio 24 horas15

Várias bibliotecas sejam públicas, particulares, universitárias e até mesmo livrarias do

país foram fiscalizadas por censores em busca de livros da capa vermelha, pois muitos deles

eram de ideias comunistas. Mas, nem todo livro vermelho era comunista, os que possuíam cores

15Disponível em: <http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/ditadura-vargas-incinerou-em-praca-

publica-1640-livros-de-jorge-amado/>

Page 59: Memoricídio - UnB

59

diferentes se salvaram, mas os vermelhos foram queimados (BÁEZ, 2010). Houve um grande

trabalho de bibliotecários engajados em guardar tais livros com os quais a ditadura considerava

subversivo. A Biblioteca Central da Universidade de Brasília é um exemplo, em 9 de abril de

1964, ela foi invadida pela polícia militar e todo material suspeito e passível de investigação foi

coletado e armazenado na Biblioteca Central. Isso levou ao fechamento da biblioteca mesmo

depois da liberação do campus. Alguns jornais da época noticiaram que vários documentos

foram queimados e destruídos, mas não existe qualquer indício que comprovem esse ato (BCE,

2016).

Em 1964, um golpe de Estado instaurou uma nova ditadura militar no Brasil, a repressão

aumentou vertiginosamente com os Atos institucionais, o mais cruel foi o AI -5 instaurado no

ano de 1968, por centralizar o poder no Presidente (BÁEZ, 2010). Vários militantes foram

torturados e alguns foram até assassinados por apenas se mostrarem contrários aos militares.

Para moldar a memória coletiva, os militares e os setores de extrema-direita que os

apoiavam saquearam e destruíram centenas de bens culturais que eram pertencentes aos

“terroristas”. Os latifundiários permitiam tráfico de obras de arte indígenas da Amazônia. As

aldeias foram desocupadas com explosivos. As músicas eram censuradas ao ponto de que

deviam seguir um padrão já fixado pelo DIP, mas alguns sempre conseguiam colocar suas ideias

de formas bem discretas e que acabavam passando pela censura (BÁEZ, 2010).

Báez (2010) afirma que no ano de 1985, veio o fim da ditadura militar no país, familiares

de militantes procuravam seus corpos ou saber de seus paradeiros. Mas os arquivos militares

eram sigilosos e não poderiam ser pesquisados ou abertos para ninguém, mesmo com ordem

judicial. Em 2004 centenas de documentos foram queimados na Base Aérea de Salvador. Em

2007, vários arquivos foram subtraídos da Agência Brasileira de Inteligência. Esses

documentos eram do Serviço Nacional de Informações (SNI), depósito de informação

confidencial sobre a repressão e assassínios da ditadura brasileira.

Em 2011, é instaurada a Comissão Nacional da Verdade, que tem por finalidade

investigar os crimes ocorridos na ditadura. O projeto Memórias Reveladas que tem por

finalidade lembrar os militantes da causa democrática brasileira que foram torturados, exilados

ou mortos. Seu lema é “Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça! ” (MEMÓRIAS

REVELADAS, 2010).

Os meios de dominação, sejam eles políticos ou religiosos, nunca são puros, sempre são

nefastos, carregados de ideais de domínio que ferem a constitucionalidade do cidadão em ser

Page 60: Memoricídio - UnB

60

livre e de ter sua opinião. O projeto de dominação passa por cima de tudo para impor o que

acredita ser o melhor.

Informação é poder, mas como todo o poder, há aqueles que querem mantê-lo para si

mesmos. Controlar, manipular e apagar a memória do passado, pois sem reminiscências do

passado, onde podem se encontrar vestígios de liberdade ou pensamentos contrários aos

impostos, devem ser destruídos do imaginário popular.

O que nota-se em guerras é sempre a intensa vontade de dominação, vontade de

aniquilar a cultura de outro, a ponto de esfacelar a sua identidade de nação para que nada sobre

desse povo, moldando-o à vontade do dominador.

É proibido pensar, falar e agir diferente, e aqueles que não obedecem devem ser punidos

para que sirvam de exemplos. Os governos totalitários, ditaduras, têm por principal arma o

medo. Revoluções sempre terão que derramar sangue, afinal, de que forma um novo mundo

pode permanecer? Os algozes têm por tendência a tentativa de reduzir o passado a zero para

recomeçar do nada, criar uma nova memória, novos símbolos, mitos, lendas que imprimam sua

grandeza. Não por acaso bibliotecários, museólogos, historiadores, arquivistas, arqueólogos,

entre vários outros, já foram assassinados por saberem demais, ou simplesmente por

representarem essa memória, representem o passado. Por isso se tornam uma ameaça aos

ditadores.

Como percebido a história das bibliotecas são recheadas de destruições desde de

acidentais ou intencionais. Mas a repetição delas requer atenção, a insistência em queimar,

revela o real objetivo: apagar a memória, para que esqueçam, e possa daí recomeçar, um mundo

novo e moderno onde o passado e ideias descartáveis a novas vontades devem ser aniquilados,

não havendo espaço para eles em seus novos domínios de poder e controle, pois, dominação,

manipulação, controle do passado, permitem um melhor controle do futuro.

Um pensamento que traduz a periculosidade do livro nas palavras de Schwarcz (2002,

p.421)

Livros guardam memórias e encantamentos, e se travestem. Perturbam e excitam a

fantasia, e as vezes irmanam o sonho com a ação, por isso trazem tanto medo e pedem

reação. E se os conteúdos passam [...] o poder alucinatório dos livros e bibliotecas,

seus grandes depósitos, continua presente.

A repressão, destruição e práticas de leitura são quase um círculo vicioso, como quase

tudo na humanidade o é. Por esse motivo, as bibliotecas entraram nessa história de memoricídio,

pois quando não estavam a favor de autoridades, estavam contra, onde o lembrar e saber eram

Page 61: Memoricídio - UnB

61

perigosos, e por isso como qualquer outro inimigo como sua constante ameaça pairando no ar,

precisavam ser destruídas.

Page 62: Memoricídio - UnB

62

6 ESQUECIMENTO

A damnatio memoriae (Báez, 2010) é uma expressão latina que significa “condenação

da memória”. Era um termo muito usado pelos romanos, uma sanção exercida contra a

recordação de um indivíduo ou ação social. Também “decretava” o esquecimento, a censura,

como uma forma de neutralizar a vitalidade de um nome ou acontecimento excluindo os feitos

pelos meios orais ou escritos de tudo o que futuramente possa causar interesse.

As práticas de apagar a memória são antigas. Quando o faraó Akhanaton, decidiu

abandonar o politeísmo egípcio e reconstruir uma sociedade monoteísta que adorassem apenas

o deus Athón e saiu para a cidade de Amarna com a intenção de construir uma nova cidade,

ordenou que todos os textos que contivessem menções sobre outros deuses fossem destruídos.

Seus sucessores apagaram tudo sobre ele após sua morte, até mesmo sua face de estátuas, seu

nome e tudo que fizesse menção a ele (BÁEZ, 2010).

Houve um caso na Grécia que o senador Virius Nicodemus Flavianus, que suicidou-se

em 394 a.C. e teve seu nome apagado de todas as inscrições. Em 431 a.C., o perdoaram e em

uma estátua foi colocado seu nome. Em carta, o imperador anistiou sua memória do

esquecimento público (BÁEZ, 2010).

Essa prática de apagar a memória de alguém é milenar, até mesmo na igreja. Carlos III

mandou apagar a memória do povo Inca. Stalin mandou apagar qualquer vestígio de memória

de Trotsky na União Soviética. Para que ocorresse no Brasil a unificação do idioma português,

foi necessário que houvesse uso da força e violência, ou seja, para fazer lembrar é necessário

esquecer (ABREU, 2007). Todos os impérios e regimes ditatoriais tentaram anular qualquer

vestígio de memória que trouxesse resistência.

A dinâmica entre memória e esquecimento certamente é fascinante. A memória é

seletiva. Memória é como representante da vida e o esquecimento é como a morte. Onde há

memória existe vida, e onde há esquecimento existe a morte, o nada. É como romper um laço

com a identidade.

A capacidade de lembrar possibilita a preservação de identidade política, social e

cultural. É uma referência ao indivíduo e ao social, por isso lembrar preserva as vivências da

coletividade, do grupo social. O lembrar preserva para as futuras gerações as experiências de

antepassados como uma transmissão de legado.

O esquecimento pode ser uma opção de restringir ao essencial certos fatos ou

informações a respeito de algo. Pode ser também uma forma de ocultamento de alguma ação

determinada. Pollak (1992) dizia que a oralidade ressaltava a memória de minorias, como uma

Page 63: Memoricídio - UnB

63

fonte da memória não oficial, no caso a memória nacional. O silêncio também é uma forma de

tentar olvidar, porém, mesmo que haja tentativas de silenciar a memória, ela jamais se cala para

sempre. Sempre deixa alguns vestígios para trás.

Existe o uso da memória e também o uso do esquecimento. Esquecer algo pode ser uma

opção, algo que é conveniente quando a pessoa tem profundo interesse voluntário de esquecer,

bloqueando a memória diante dos horrores vividos por ele, na disputa do que se deve lembrar

e o que deve ser esquecido. Mas esse esquecimento voluntário é diferente do olvidamento do

desconhecido ou de uma forma induzida por outro.

O esquecimento é um efeito colateral do memoricídio, na qual táticas de damnatio

memoriae são amplamentes utilizadas. É nítido que qualquer decisão sobre o que se deve

recordar e o que se deve esquecer é um ato de dominação. Cada sociedade constrói uma forma

parcial do passado e bloqueia involuntariamente ou voluntariamente o que se deve recordar,

para assim construir sua identidade.

Como mostrado nos exemplos de dominação da Igreja e de guerras, as destruições

deixam bem claras as intenções daqueles que em seu ato de violência simbólica desejavam

apagar patrimônios culturais como monumentos, museus, arquivos e bibliotecas como uma

forma de aniquilação cultural daquele povo como dito por Bourdieu:

Parte do princípio de que a cultura simbólica ou sistema simbólico é arbitrário, uma

vez que não assenta numa realidade dada como natural, o sistema simbólico de uma

determinada cultura é uma concessão social, e sua manutenção é fundamental para a

perpetuação de uma determinada sociedade, através de interiorização da cultura por

todos os membros da mesma (BOURDIEU, 1992 apud SOUZA, 2012, p. 24).

Um povo sem memória é como um morto que anda e não sabe se está vivo ou morto.

Eles acabam sendo presas fácil de um modelamento de pensamento e comportamento,

tornando-se mais passivos em receber ordens.

George Orwell, no livro 1984, descreve um futuro distópico, movido por um governo

totalitário, que supervisionado pelo “grande irmão”, exerce forte vigilância e forte censura ao

povo. O personagem Winston se vê constantemente entre a memória e o esquecimento. Ele

possui um caderno e o fato de apenas possuí-lo o condenaria a prisão. Escrever então, o levaria

à morte. Em vários momentos entre a tentação de escrever no caderno lhe vêm a memória a

pena que sofreria, e que o caderno seria vaporizado (queimado), e tudo e toda sua existência

seria apagada para sempre. Em um momento de brava coragem decide escrever uma mensagem:

Page 64: Memoricídio - UnB

64

Ao futuro ou passado, a um tempo em que o pensamento seja livre, em que os homens

sejam diferentes uns dos outros, em que não vivam sós – a um tempo em que a verdade

exista e em que o que for feito não seja desfeito: Da uniformidade, da era da solidão,

da era do grande irmão. (ORWELL, 2009, p. 40)

Winston tinha a certeza que o seu trabalho era plenamente manipulado: as informações,

os comportamentos, as histórias, a memória, o passado, o presente. Tudo era constantemente

modelado à vontade das autoridades. Ele em seus pensamentos diz que o passado não fora

simplesmente alterado, ele fora totalmente destruído, mas como ele poderia verificar tais fatos

quando o único registro que podia possuir estava em sua memória individual?

1984 e Fahrenheit 451 são apenas obras de ficção, porém tão assustadoramente reais,

ambos demonstram em seu roteiro o efeito de uma dominação da memória coletiva muito bem-

sucedida e os vestígios que o passado deixa. Ambos personagens se defrontam com a questão

da destruição da memória, percebem a manipulação do passado e presente, vão atrás da verdade,

possuem apenas a si mesmos como conhecedores da verdade, seus pensamentos são livres, mas

não podem ser expostos nem em um caderno, ou em um livro, quem dirá falado ao próximo.

No fim ambos são punidos por tal ato. O medo é o meio mais eficiente que governos totalitários

possuem.

O esquecimento é a arma mais poderosa para aqueles que desejam ocultar algo, que tem

por desejo a eliminação de resistências. É um forte aliado de governos autoritários, de líderes

religiosos, dos indivíduos inimigos da memória coletiva. O esquecimento, pode-se dizer, é

irmão da memória, pois para lembrar é necessário esquecer, um ciclo vicioso, elo inquebrável.

O olvidar é a tradução mais forte contrária à memória, pois se esquecermos, é como se nunca

tivesse existido.

De fato, esquecer é uma espécie de morte.

Page 65: Memoricídio - UnB

65

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante séculos as bibliotecas compartilham o ideal de liberdade de expressão. As suas

coleções abarcam todos os pensamentos e histórias, ela possuí toda a memória coletiva da

humanidade.

Para o homem é intrínseco a necessidade de lembrar, possuir uma memória sobre si

mesmo e outros indivíduos, ou até mesmo de seus antepassados. A memória é necessária para

a construção de uma identidade individual ou coletiva. Como dito por Báez (2010, p. 259), “não

existe cultura onde não há memória; não há identidade onde não há memória. Por sua vez não

há memória sem identidade”.

Como visto a memória é imprescindível, pois ela constitui o agente formador da

identidade individual e coletiva. Como observado neste trabalho, o homem necessita de meios

externos para propagar a sua memória, e os meios são objetos, pinturas, esculturas, escrita,

prédios, monumentos, histórias, etc. O patrimônio é uma construção social que diz respeito a

todos, é um dos suportes que a memória necessita para transmitir as histórias. Isso faz parte da

identidade e cultura. Todos esses meios compõem a identidade do indivíduo, é por fim torna-

se a herança cultural de uma nação, é através desses lugares de memória que se fortalece a ideia

nacionalista, pois são meios representativos a essas memórias.

Os livros e a biblioteca são um dos maiores símbolos de poder para a cultura de uma

nação por isso se tornam alvos de “ameaça”, por inúmeras razões. Pois é claro que, para dominar

uma nação, é preciso destruir o que lhe é de mais querido: sua identidade e cultura. Por isso é

necessário ter completa dominação sobre essas, entendendo assim o que lhes é importante e

depois aniquilando–as. O memoricídio causado a livros e bibliotecas, é um ato que visa ter total

controle sobre informações e reminiscências do passado, retirando assim do povo todo e

qualquer direito a oposições, pois assim será fácil a dominação completa de seu opressor a

nação dominada, esse ato é chamado por Bourdieu (1992) de violência simbólica, ela ocorre

quando há uma imposição da cultura dominante sobre a dominada.

A lembrança é o que nos torna humanos. O esquecimento é um efeito colateral das

tentativas de apagar, para gerar uma nova memória. O passado é o presente para o futuro, e a

guarda destes e seus suportes representativos tornam-se necessários.

Esquecimento é o irmão gêmeo da memória, irmãos opostos que se complementam em

suas diferenças. Mas no caso apresentado, ele é efeito de uma causa muito bem-sucedida. A

diferença entre o esquecer voluntário, é muito diferente do esquecer por ser privado

obrigatoriamente por ditadores, fanáticos religiosos. Esses dois são os mais fortes destruidores

Page 66: Memoricídio - UnB

66

que temos conhecimento, ao longo dos séculos causam as mais atrozes destruições aos livros e

bibliotecas.

A memória e o patrimônio são vitais e o memoricídio é um ato milenar que está

incrustado na sociedade, cabendo à humanidade vigiar a guarda da memória de livros e das

bibliotecas e dos demais patrimônios para que não esqueçamos das mazelas que a falta do

passado nos faz. Como diria Hobbes (2015, p. 345), “O homem é o lobo do homem”, e por isso

a memória tem que estar presente e salvaguardadas em seus centros do saber: Bibliotecas, para

que jamais esqueçam de como podem ser atrozes com outro homem. A ignorância aprisiona,

mas o conhecimento liberta.

O que percebe-se nesse trabalho é uma pequena parcela e tentativa de entender as causas

de destruições nas bibliotecas, e sobretudo o quão importante é protegê-las e conserva-las para

as futuras gerações, mostrando o valor de sua importância para a sociedade e nação, pois as

bibliotecas são sempre amigas do homem e não deveriam ser vistas como o contrário. Elas

guardam em suas estantes as mais valiosas histórias, aprendizados e uma infinita diversidade

de pensamentos, e é através dela que é possível recordar e reencontrar o passado. Livros nos

livram, não aprisionam. Portanto, deve-se pensar em melhores formas de educação social sobre

a importância da biblioteca, bem como sua preservação e guarda para as gerações futuras.

Page 67: Memoricídio - UnB

67

REFERÊNCIAS

ABREU, Regina. Patrimônio Cultural: Tensões e disputas no contexto de uma nova

ordem discursiva. Blumenau, Nova Letra, 2007, 263- 284 p.

AMARAL, Sérgio Tibiriçá. A Censura Prévia Inquisitiva. 2009. Disponível em:

<http://intertemas.toledoprudente.edu.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/989/953>

Acesso em: 18 de jun. 2016.

BÁEZ, Fernando. História universal da destruição dos livros: das tábuas da Suméria à

guerra do Iraque. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. 438 p.

BÁEZ, Fernando. A história da destruição cultural da América Latina: da conquista à

globalização. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010. 390 p.

BAILLY, Aurelia. Cidade de Palmira antes e depois da destruição. Disponível em:

<https://twitter.com/aureliabailly/status/715824005295554560> Acesso em 10 de jun 2016.

BARATIN, Marc; JACOB, Christian. O poder das bibliotecas: a memória dos livros no

Ocidente. 2. ed. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, 2006. 351 p.

BERRUGUETE, Pedro. São Domingos queimando livros heréticos dos albigenses.

Coetus international is fidelium Disponível em:

<http://coetusinternationalisfidelium.blogspot.com.br/2010/07/deslealdade-suprema-para-

com-deus-e.html> Acesso em 28 de maio 2016.

BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. São Paulo, Globo de bolso, 2014. 214 p.

BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia. 36° ed. Rio de Janeiro, Ediouro, 2006.

CENTRAL, Biblioteca da Universidade de Brasília. Sobre a BCE. Disponível em:

<http://www.bce.unb.br/sobre-a-bce/ > Acesso em: 16 de jun. 2016.

DELACROIX, Eugene. Liberdade guiando o povo. Disponível em:

<http://www.literaturaeshow.com.br/2016/02/analise-da-obra-liberdade-guiando-o.html >

Acesso em: 19 de jun. 2016.

GLOBO, O. Estado Islâmico destrói mais de 8 mil livros e manuscritos raros de

biblioteca no Iraque. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/mundo/estado-islamico-

destroi-mais-de-8-mil-livros-manuscritos-raros-de-biblioteca-no-iraque-15432926> Acesso

em: 16 de jun. 2016.

GONÇALVES, Regina Célia Vaz Ribeiro. Odisséias do perdão em la mémoire, L’

histoire, L’ Oubli De Paul Ricoeur. Universidade Estadual de Minas Gerais, 2007, 120 p.

Disponível em:

<http://www.funedi.edu.br/files/mestrado/Dissertacoes/TURMA2/DissertacaoReginaCVRGo

ncalves.pdf> Acesso em: 18 de jun. 2016.

Page 68: Memoricídio - UnB

68

HOBBES, Thomas. Leviatã: Ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil.

Tradutor: Daniel Moreira Miranda, Edipro, São Paulo, 2015, p. 616.

HOLOCAUSTO, Enciclopédia do. Estudantes alemães reúnem livros que eles consideram

"não-alemães”, 1933. Disponível em:

<https://www.ushmm.org/wlc/ptbr/media_ph.php?ModuleId=10005852&MediaId=681 >

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da língua portuguesa. Rio de

Janeiro, Nova Fronteira, 2001, 890 p.

FOCO, Adventismo em. Estado Islâmico destrói Biblioteca e preciosos livros antigos se

perdem. Disponível em: <https://adventismoemfoco.wordpress.com/2015/02/27/estado-

islamico-destroi-biblioteca-e-preciosos-livros-antigos-se-perdem/> Acesso em: 16 de jun.

2016

FUNARI, Pedro Paulo A. Os desafios da destruição e conservação do patrimônio cultural

no Brasil. Trabalhos de antropologia e etnologia. Porto, 2001 – p. 23. Disponível em:

<http://www.ufjf.br/maea/files/2009/10/texto1.pdf > Acesso em: 18 de maio 2016.

HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva. São Paulo: Editora Centauro, 2006.

HOUAISS, Antônio, VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa.

Lisboa: Temas e Debates, 2003. 3 v.

HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio:

Aeroplano, 2000, 24 p.

LE GOFF, História e memória. Tradução Bernardo Leitão... [et al]. – 5 ed. – Campinas, SP:

Editora da Unicamp, 2003, 541 p.

LEITÃO, Bárbara Júlia Menezello. Bibliotecas públicas, bibliotecários e censura na Era

Vargas e regime militar, Uma reflexão. Rio de Janeiro, Editora Interciência, 2011, p. 283

LIBRARY, Of Congress. General information. Estados Unidos, 2015. Disponível em:

<https://www.loc.gov/about/general-information/> Acesso em: 16 de jun. 2016.

LITERATORTURA, Estado Islâmico (ISIS) queimou 8 mil livros raros da biblioteca

pública de Mosul. Disponível em: <http://literatortura.com/2015/02/estado-islamico-isis-

queimou-8-mil-livros-raros-da-biblioteca-publica-de-mosul/ > Acesso em: 19 de jun. 2016.

LYONS, Martyn. Livro uma história viva. São Paulo, Editora Senac, 2011, p. 224.

MANGUEL, Alberto. Uma história de leitura. São Paulo, Companhia das letras, 1997, p.

405.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra. Tradução Paulo César de Souza.

São Paulo, Companhia das letras, 2011, p. 360.

Page 69: Memoricídio - UnB

69

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História.

Tradução: Yara Aun Khoury. São Paulo: PUC-SP n°10, p.12. 1993.

<http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/12101/8763 >

ORWELL, George. 1984. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, p. 414.

PEREIRA, Maria Juvanete Ferreira da Cunha. O Arquivo Público enquanto lugar de

memória. Em Tempos de Histórias – Publicação do programa de pós-graduação em história,

n°10, Brasília, 2006. 94-115 p. Disponível em:

<http://periodicos.unb.br/index.php/emtempos/article/view/2625 > Acesso em: 15 de maio

2016.

PLATÃO. Fedro. Tradução de Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães Editores, 1986: 120 –

123 p.

POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, v.5, n.10, 1992.

POMIAM, Krzystof. Memória. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa

da moeda, 2000. V.42 (Sistemática), p. 507 – 516.

PROENÇA, Graça. História da arte. 10. Ed. São Paulo: Ática, 2002. 279 p.

PROHIBITORIUM, Index Librorium. Capa do Index Librorium Prohibitorium, de 1595.

Página Catholic gene , 2011. Disponível em

<https://catholicgene.wordpress.com/2011/09/24/index-librorum-prohibitorum/>. Acesso em

18 de junho, 2016.

REVELADAS, Memórias. Centro de Referência das lutas políticas no Brasil. Disponível

em: <http://www.memoriasreveladas.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?tpl=home > Acesso

em: 15 de maio de 2016.

RAMOS, Jorge. Jornal Estado da Bahia de 1937. Correio 24 horas. Disponível em:

<http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/ditadura-vargas-incinerou-em-praca-

publica-1640-livros-de-jorge-amado/> Acesso em 24 de jun. 2016.

RTP, Jornal. Agosto: Palmira, cenário de horror com o Estado Islâmico. Disponível em:

<http://www.rtp.pt/noticias/mundo/agosto-palmira-cenario-de-horror-com-o-estado-

islamico_es884446> Acesso em: 15 de maio 2016.

SÃO PAULO, Folha de. Reforço para o terror. p.10. Disponível em:

<http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/2014/11/01/55/> Acesso em: 18 de jun. 2016.

SILVA, Kalina Vanderlei e Silva, Maciel Henrique. In: Dicionário de Conceitos Históricos.

Ed. Contexto – São Paulo; 2006. Disponível em: <http://www.igtf.rs.gov.br/wp-

content/uploads/2012/03/conceito_MEMÓRIA.pdf> Acesso em: 19 de maio de 2016.

SOUZA, Liliane Pereira de. A violência simbólica na escola: Contribuições de sociólogos

franceses ao fenômeno da violência escolar brasileira. Revista LABOR nº7, v.1, 2012.

Page 70: Memoricídio - UnB

70

Disponível em:

<http://www.revistalabor.ufc.br/Artigo/volume7/2_A_violencia_simbolica_na_escola_-

_Liliane_Pereira.pdf> Acesso em: 15 de jun. de 2016.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. A longa viagem da biblioteca dos reis- Do terremoto de Lisboa

à Independência do Brasil. São Paulo Companhia das letras, 2002, p.608.

TREVIZAN, Matheus e colaboradores. Dicionário etmológico da mitologia grega.

Disponível em: <http://demgol.units.it/pdf/demgol_pt.pdf > Acesso em: 12 de maio de 2016.

UNESCO: Patrimônio Cultural Imaterial. Brasil, 2010. Disponível em:

<http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/world-heritage/intangible

heritage/#c1048605> Acesso em: 02 de jun. 2016.

UNESCO, Convenção e protocolo para a proteção de bens culturais em caso de conflito

armado, Decreto n° 44.851. Paris, 1954. Disponível em:

<http://www.unesco.org/culture/natlaws/media/pdf/bresil/brazil_decreto_44851_11_11_1958

_por_orof.pdf> Acesso em: 02 de jun. 2016.

UNESCO, Sobre a Unesco. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/agencia/unesco/>

Acesso em: 02 de jun. 2016.

VIEIRA, Ítala Maduel. A memória em Maurice Halbwachs, Pierre Nora e Michel Pollak.

XI Encontro regional sudeste de história oral. Rio de Janeiro, 2015. Disponível em:

<http://www.sudeste2015.historiaoral.org.br/resources/anais/9/1429129701_ARQUIVO_Me

moria_Itala_Maduell.pdf > Acesso em: 15 de maio 2016.

WESTIN, Ricardo. Que fim levou o Palácio Monroe? Agência Senado. Brasília, 2015.

Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/05/04/que-fim-levou-o-

palacio-monroe> Acesso em: 12 de jun. 2016.